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A CONSTRUÇÃO DA CIVILIDADE NUMA CIDADE DO BRASIL CENTRAL PECUÁRIO: SEGURANÇA PÚBLICA, URBANIZAÇÃO E SOCIABILIDADE EM BARRETOS (1890/1937) Humberto Perinelli Neto UNESP/CEUBM/FEF/CEMUMC [email protected] Rodrigo Ribeiro Paziani FEF/CEMUMC [email protected] Resumo: O presente artigo expressa uma pesquisa cujo objetivo envolve a compreensão do estabelecimento de um projeto civilizador que incluía, entre outros expedientes, o estabelecimento da segurança pública em Barretos, cidade paulista que na aurora do séc. XX era caracterizada pela riqueza advinda do crescente comércio mercantil do gado, portanto, habitada por uma população marcada por códigos de sociabilidade sertanejos, vistos com repulsa pelas elites políticas locais. Palavras-chave: segurança pública; códigos de sociabilidades; Brasil Central Pecuário. Abstract: This article expresses a search whose objective involves understanding the establishment of a civilizing project that included, among other initiatives, the establishment of public security in Barretos, Sao Paulo city that at the dawn of the century. XX was characterized by the wealth coming from the growing trade market for livestock, thus inhabited by a population marked by codes of social sertanejos, viewed with disgust by local political elites. Keywords: public safety, codes of sociability; Brasil Central Pecuário. A experiência brasileira envolvendo a modernidade esteve caracterizada, entre outras coisas, pela presença e defesa inconteste de certos discursos associados à ordem e ao progresso. Dentre estes discursos, deve-se destacar (1) a necessidade de respeito as leis e as instituições policiais e jurídicas, (2) a importância da educação como instrumento de valorização pessoal e coletiva; (3) a constituição de um poder público municipal centralizado e institucionalizado. 1 Tais discursos se evidenciavam no espaço urbano, segundo práticas específicas e variadas, tendo em vista que envolvendo a presença de novos personagens e a materialização de novos edifícios destinados a sustentar efetiva e simbolicamente esta nova ordem a constituir. O advento das ferrovias e de outras novidades motivadas pela riqueza cafeeira propiciaram a acentuação da presença desses discursos nas comunidades situadas nos rincões que constituíam o Mundo do 1 HOLANDA, S. B. (dir.). História geral da civilização brasileira – o Brasil Republicano: Sociedades e Instituições (1889-1930), III tomo, 1º volume. DIFEL, 1985; FAUSTO, B. (dir.). História geral da civilização brasileira – o Brasil Republicano: estrutura de poder e economia (1889-1930), III tomo, 2° volume. São Paulo, Difel, 1985.

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A CONSTRUÇÃO DA CIVILIDADE NUMA CIDADE DO BRASIL CENTRAL PECUÁRIO: SEGURANÇA PÚBLICA, URBANIZAÇÃO E SOCIABILIDADE EM

BARRETOS (1890/1937)

Humberto Perinelli Neto UNESP/CEUBM/FEF/CEMUMC

[email protected]

Rodrigo Ribeiro Paziani FEF/CEMUMC

[email protected]

Resumo: O presente artigo expressa uma pesquisa cujo objetivo envolve a compreensão do estabelecimento de um projeto civilizador que incluía, entre outros expedientes, o estabelecimento da segurança pública em Barretos, cidade paulista que na aurora do séc. XX era caracterizada pela riqueza advinda do crescente comércio mercantil do gado, portanto, habitada por uma população marcada por códigos de sociabilidade sertanejos, vistos com repulsa pelas elites políticas locais. Palavras-chave: segurança pública; códigos de sociabilidades; Brasil Central Pecuário. Abstract: This article expresses a search whose objective involves understanding the establishment of a civilizing project that included, among other initiatives, the establishment of public security in Barretos, Sao Paulo city that at the dawn of the century. XX was characterized by the wealth coming from the growing trade market for livestock, thus inhabited by a population marked by codes of social sertanejos, viewed with disgust by local political elites. Keywords: public safety, codes of sociability; Brasil Central Pecuário.

A experiência brasileira envolvendo a modernidade esteve caracterizada, entre outras coisas, pela presença e defesa inconteste de certos discursos associados à ordem e ao progresso. Dentre estes discursos, deve-se destacar (1) a necessidade de respeito as leis e as instituições policiais e jurídicas, (2) a importância da educação como instrumento de valorização pessoal e coletiva; (3) a constituição de um poder público municipal centralizado e institucionalizado.1 Tais discursos se evidenciavam no espaço urbano, segundo práticas específicas e variadas, tendo em vista que envolvendo a presença de novos personagens e a materialização de novos edifícios destinados a sustentar efetiva e simbolicamente esta nova ordem a constituir. O advento das ferrovias e de outras novidades motivadas pela riqueza cafeeira propiciaram a acentuação da presença desses discursos nas comunidades situadas nos rincões que constituíam o Mundo do

1 HOLANDA, S. B. (dir.). História geral da civilização brasileira – o Brasil Republicano: Sociedades e Instituições (1889-1930), III tomo, 1º volume. DIFEL, 1985; FAUSTO, B. (dir.). História geral da civilização brasileira – o Brasil Republicano: estrutura de poder e economia (1889-1930), III tomo, 2° volume. São Paulo, Difel, 1985.

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Café.2 Em Barretos, se juntava a influência da riqueza cafeeira o ganho gerado pelo comércio dos animais, ainda mais intenso nas primeiras décadas do século XX.

Temos na Figura 1 o primeiro registro fotográfico de Barretos, realizado em 1917. Não há informações sobre seu autor, mas sua existência pode estar associada a questões como a preocupação com o planejamento da cidade e o surgimento de uma identidade social coletiva.3 Ao que parece, tal fotografia foi produzida a partir da colina situada ao sul da colina central, o que significa reconhecer o fato de que a área da zona do meretrício (“Outro Mundo”) foi descartada da imagem que se pretendia da cidade. Dentro dessa área é notória a presença dos edifícios associados aos discursos da ordem: Igreja do Divino Espírito Santo, o Fórum e Cadeia, o Grupo Escolar e o Paço Municipal. O entorno desse núcleo civilizado é marcado, entretanto, por matas naturais (como se vê ao fundo e à esquerda), de onde se extraiam madeiras para diversos fins. Em todo o extenso primeiro plano verifica-se a existência de um conjunto de casas e outros benefícios (cercas de arame farpado, tulhas, currais, pomares, etc) que constituíam chácaras destinadas a abastecer a cidade com alimentos e, principalmente, abrigar peões, boiadeiros e boiadas em trânsito. Tanto as matas quanto às chácaras tornavam muito tênues os limites entre civilizado/bárbaro e rural/urbano

Figura 1 - Localização dos emblemas da ordem no centro de Barretos, 1917

Grupo Escolar

Paço Municipal Cadeia e Fórum

Igreja do Divino Espírito Santo

FONTE: Museu Histórico, Artístico, Folclórico Municipal de Barretos.

Promover um passeio vagaroso pela cidade, dispensando atenção especial para apreciação dos emblemas da nova ordem construída parece ser tarefa fundamental para compreensão da modernidade vivida pelos barretenses. A contar do século XVIII, o urbanismo foi empregado para recuperar o homem, tendo em vista que oportunizaria uma nova reintegração do homem ao espaço e a sociedade, prestando-se esse saber a “uma opção que não é apenas de

2 DOIN, J. E. M. (et al). A Belle Époque Caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852/1930) - a proposta do CEMUMC. Revista Brasileira de História, v.53, p.91-122, 2007. 3 Como ressalta Maria Lourenço: “Ver é algo para além do olhar, já que esse ato requer pensamento, seja pelo lembrar reminescente e saudoso seja pelo relacionar. Ver a cidade movimenta ideais, vivências, conhecimentos derivados dos conceitos, entendimentos, afetos, enfim, todo o universo humano, gerador de inúmeras imagens. LOURENÇO, M. C. F. A posse da Cidade: entre imagens e figurações. In FABRIS, A. & BATISTA, M. R. (orgs.). V Congresso brasileiro de história da arte. Tema: Cidade – história, cultura e arte. São Paulo: CBHA/FAPESP/ECA/USP, 1995.

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ordem estética, mas igualmente de ordem moral”.4 Contudo, um olhar mais apurado revela que a referida intencionalidade não foi capaz de excluir certas matizes sociais, portanto, mesmo que inovadora nas suas formas, expressavam as criações urbanas desse período pressupostos relacionados a prerrogativas pessoais ou de determinados grupos. Sendo assim, as construções urbanas se tornam exponenciais demonstrações das ambigüidades e das contradições presentes na modernidade, ou, dito de outra forma, exemplos bem acabados do quanto esse processo histórico foi marcado pelo “antagonismo entre vontade inovadora e tendências conservadoras”.5

A modernidade instaurada em Barretos por meio dessas transformações urbanas remete a repercussão do processo histórico relacionado à vigência da idéia de civilidade na Europa, a contar do século XVI. A respeito desse processo, Norbert Elias afirma que a construção da modernidade no Ocidente se baseou principalmente no inter-relacionamento de três fenômenos sociais: a definição de uma esfera pública de poder, a adoção de códigos de sociabilidade tidos como civilizados (repulsa, auto-controle, etc) e o controle da violência, pulsões e emoções.6 Todos os edifícios da ordem mencionados anteriormente diziam respeito, justamente, aos fatores mencionados, inclusive o templo da Igreja Católica, instituição que também defendia códigos de sociabilidade civilizados, o controle das emoções e que ainda exercia o poder público, tendo em vista a associação entre Igreja e Estado no Brasil durante os períodos colonial e imperial, tendo em vista o Padroado. Contudo, neste artigo o enfoque recai sobre o edifício da Cadeia e Fórum, bem como as condutas e sociabilidades associadas a essas instituições.

A construção do edifício destinado ao Fórum e a Cadeia fazia parte desse contexto. Estava localizado na rua 15, esquina com a avenida 18, posição geográfica que chama atenção, pois esse ponto estava situado um quarteirão abaixo da extremidade do quadrilátero central e, ao mesmo tempo, tinha sua fachada frontal posicionada para a direção sul, o que significava, do ponto de vista da planta cadastral de Barretos, estar voltado para a área em que poderia ser encontrado o “Outro Mundo”, zona urbana que era tratada como sendo signo de desordem e, por conta disso, era alvo de intervenções profundas do Poder Público local. Ao que parece, numa cidade ocupada por uma população fluída, tendo em vista a presença dos entrantes mineiros e dos homens associados ao circuito mercantil do gado, a presença efetiva da Justiça - materializada na construção desse edifício – representava, na verdade, uma tentativa clara de dotar o espaço urbano de um ordenamento social mais afeito às concepções dos bacharéis e dos coronéis que comandavam a política local.7

A riqueza promovida pelo comércio do gado impulsionava a modernização urbana em Barretos, ao mesmo tempo em que motivava nesse mesmo espaço a presença de homens dotados de comportamentos que caracterizavam o viver no Brasil Central Pecuário. Estes habitus sertanejo é parcialmente recuperado pela leitura atenta do código de posturas de 1893. Neste documento consta: proibição de encenar publicamente gestos considerados imorais e indecentes; proibição da colocação de escritos ameaçadores nos postes, paredes e esquinas.8 A punição destes e de outros comportamentos desta natureza exigiam a instauração do Cartório de Paz (em 1884) e a ação dos juízes de direito, juízes de paz, dos delegados e auxiliares. O combate ao que

4 STAROBINSKI, J. 1789 - Os emblemas da razão. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.55. 5 Cf ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. Trad. Píer Luigi Cobra. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 6 ELIAS, N. O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 (vol.I e II). 7 Marcos Bretas aponta com maestria a relação existente entre a criação de uma polícia moderna e o crescimento urbano da cidade do Rio de Janeiro, a ponto de associar as ocorrências policiais ao termo problemas urbanos, ao invés de crimes ou delitos. Embora a legislação paulista sobre segurança pública possua especificidades em relação aquela que foi implantada ao Rio de Janeiro, nos valemos das contribuições desse autor no que tange a pensar o vínculo estreito entre controle social, espaço urbano e ação policial. BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 8 Atas da Câmara Municipal de Barretos: Livro n.1 (01/10/1892 a 06/10/1896).

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era tido como bárbaro, por gente que se considerava civilizada, exigia a constituição de todo esse aparato, capaz de impor a constituição de um novo modelo de cidade aos seus habitantes. A exigência desta tarefa era reclamada com intensidade pelos membros das elites políticas locais:

Não é raro que a população pacifica d’esta cidade passe consecutivamente noites inteiras em sobresalto, ao estampido inpertinente e systhematico de foguetes e de tiros de armas de fogo, privada do repouso, a que tem incontestável direito, por uma horda de desoccupados, cujos excessos de linguagem, articulada quase sempre aos berros e aos guinchos, não recuam mesmo diante da indecência e da obscenidade. Dirão elles que se divertem a seu modo, e que n’isso exercem apenas um direito. De accordo. Unicamente, nas sociedades civilizadas – o é n’isto que se assenta o nobre principio da sociabilidade – a vida em commum se funda sobre uma série ininterrupta de concessões mútuas e recíprocas, a [ineligivel] de nosso direito termina exatamente onde começa o direito do nosso visinho. Que nós nos divirtamos é muito justo, é mesmo uma necessidade moral, que phylosophos da catatura de Herbert Spencer não se dediganm de aconselhar. Mas para que nos divertirmmmos privemmos os outros do repouso e da tranqüilidade, - eis o direito que se contesta, porque, ainda que licito, seria iníquo. De mais, o verdadeiro praser, o praser nobre, sincero, digno do homem, não pode existir no barulho e no escandallo, que esse so poderia distrahir aos outros. O praser legitimo está sobretudo no intimo repouso da consciência e do espírito, e ir procural-o na desordem e na agitação será falseal-o na sua origem e desnaturalizal-o em seus fins. O que é necessário, o que é indispensável é que à autoridade se alia a parte san da população, para expurgar quanto antes de seu seio este mal que tão funestos resultados deve produzir.9

A matéria em questão é importantíssima. Ela oportuniza vislumbrar o fato de que em

pleno espaço urbano continuava a ocorrer hábitos que traduziam a vivência do Brasil Central Pecuário. Tais pessoas eram alheias às concepções burguesas envolvendo tempo de repouso, de trabalho e de lazer (“praser legitimo está sobretudo no intimo repouso da consciência e do espírito”). Esse mesmo grupo também desconhecia as obrigações e garantias juridicamente previstas na legislação pública (“série ininterrupta de concessões mútuas e recíprocas”). Contudo, o desapego a todo esse estilo de vida provocava nos representantes das elites locais um desprezo capaz de desqualificar o comportamento dessas pessoas, fosse diminuindo-as moralmente (“indecência”, “obscenidade”, “escandallo”, “horda de desoccupados”), fosse, inclusive, pondo em cheque até mesmo o fato de serem tidos como seres humanos (“excessos de linguagem, articulada quase sempre aos berros e aos guinchos”).10 Ao final das contas, esta apreciação negativa por parte das elites resultava na elaboração de um discurso responsável por tecer a construção de certa “fisionomia do criminoso”, baseada no cientificismo e no positivismo comtiano, portanto, considerado legitimo e, a contar daí, oportuno para validar a perseguição, prisão e o extermínio dessa gente e, por conseguinte, de seus modos e maneiras.11 Apoiado 9 O Sertanejo. Barretos, 19 de maio de 1901. (grifos meus) 10 Jean Starobinski afirma que existiram várias definições para o termo civilização, porém a contar do momento em que “[...] o valor dinâmico do sufixo de ação (ação) desapareceu, a palavra designa não mais um devir, mas um estado [...].” Sendo assim, verificamos que “Ela se torna (o critério por excelência) motivo de exaltação para todos aqueles que respondem ao seu apelo; ou, inversamente, fundamenta uma condenação; tudo que não é civilização, tudo que lhe resiste, tudo que a ameaça, fará figura de monstro ou de mal absoluto. STAROBINSKI, J. A palavra civilização. In ___. As máscaras da civilização – ensaios. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.32. 11 Após o Iluminismo, a radicalização da laicização do conhecimento promoveu interpretações da realidade social responsáveis pela configuração de várias instituições e, por conseguinte, de suas práticas. Uma das instituições modificadas foi justamente a prisão, que passou a ser vista como local de regeneração de um individuo considerado desviante social, mas passível de recuperação. A partir daí é que as “teorias criminológicas modernas” foram concebidas e, com elas, as discussões envolvendo os métodos de regeneração do criminoso, a compreensão de suas atitudes e a definição de seu tipo físico, social e/ou psicológico. ALVAREZ, M. C. Bacharéis, criminologistas e

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exatamente nesse discurso é que as autoridades policiais aplicavam a “prisão correcional”, deixando assim evidente a ação de um poder excedente e discricionário.12

Diferentes indícios históricos indicam o quanto a violência era relativamente comum nessa sociedade. Ponto de comércio bovino, Barretos era também referência para a venda de gado roubado, o que motivava desavenças entre boiadeiros, invernistas e peões, como é o caso de dois criadores mato-grossenses que eram inimigos entre si e que, em 1901, se dirigiram para esta localidade a fim de se apoderar “de todas as rezes e outros animais cujas marcas coincidiam com aquelas [que traziam] e até couros nos açougues”.13 Era também por conta de se tornar centro do comércio de gado que Barretos passava a concentrar serviços burocráticos e administrativos, muitas vezes, não compreendidos e até refutados pelos homens do gado, a ponto de reações violentas serem organizadas, tal qual a que foi registrada em 24 de dezembro de 1886, quando 40 homens munidos de garruchas, espingardas, facas e outras armas invadiram o cartório de Paz e ”por meio de ameaças e à viva força o respectivo escrivão a entregar-lhes as listas dos cidadãos para o alistamento militar feitas pelos inspetores de quarteirão, e um livro e demais papéis referentes ao mesmo alistamento”14.

Nota-se pela suntuosidade do edifício destinado a abrigar a Cadeia e o Fórum que era grande a tarefa reservada aos magistérios e outros oficiais associados à manutenção da ordem (Fig.127). Inaugurado em 1910, abrigava um biblioteca jurídica, possuía uma arquitetura marcada pelo estilo eclético com predominância do Neoclássico (partes principais são de estilo neoclássico e a decoração é barroca) e estava situado num terreno que incluía na área frontal ao edifício um pequeno jardim, cuidadosamente providenciado.15 Aliás, nota cômica, mas verídica e própria em ressaltar a apreensão existente em torno do edifício que abrigava a Cadeia e o Fórum pode ser conferida na preocupação exacerbada para com a sua estética, sua decoração e seu ajuste as normas de saneamento e higiene, cristalinamente enunciadas na ocasião envolvendo sua inauguração:

É um prédio de dois pavimentos, construído com muita solidez, em estylo moderno e muito elegante pela sua fachada e pela sua posição, que o destaca de longe. [...] É todo murado, e as prisões, em número de 6, são largas, espaçosas, com installações sanitárias e muito seguras, visando todas o completo isollamento do preso com o exterior e com o rebuliço das ruas. Resta agora que o governo complete a obra, construindo já a casa das praças e remettendo um mobiliário que combine com o prédio.16

A tarefa dos encarregados da justiça, de fato, não era fácil. Acostumados a uma vida

provisória, os homens do circuito mercantil do gado que freqüentemente transitavam por Barretos portavam e usavam, de forma livre, armas de fogo, sem contar a companhia de facas e canivetes que sempre traziam consigo presos nas guaiacas. A existência da zona do meretrício na região do “Outro Mundo” tornava a vida dos agentes da lei mais complicada, tendo em vista que

juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889/1930). São Paulo: IBCCRIM, 2003; SCHWARCZ, L. M. Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 12 Prisão correcional envolvia a ação da policia contra pessoas tidas como fora das normas civilizadas, ou seja, bêbados, vadios, prostitutas, mendigos, esfarrapados, sujos, negros, homossexuais e pobres. Quem inaugura esse debate é: FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880/1924). São Paulo: brasiliense, 1984. Na esteira dessa referência, constam bons trabalhos: SANTOS, M. A. C. Paladinos da ordem – polícia e sociedade em São Paulo na virada do século XIX ao XX. São Paulo: USP/FFLCH, 2004 (Tese de Doutorado em História); SOUZA, L. A. F. Poder de polícia, Policia Civil e práticas policiais na cidade de São Paulo (1889/1930). São Paulo: USP/FFLCH, 1998 (Tese de Doutorado em História). 13 ROCHA, O. F. Barretos de outrora Barretos: s/ed, 1954, p.91. 14 Idem, p.91. 15 Cf. GOMBRICH, E. H. História da arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. 16 Commércio de Barretos, 08 de maio de 1910 (grifos meus).

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as desavenças e os acertos de conta pessoais eram constantes entre os moradores e freqüentadores, como atestam as memórias de viventes desse espaço.17 No entanto, incidentes envolvendo o uso de armas e coisas do tipo não ocorriam apenas na zona do meretrício, como atesta Thereza Conde18, moradora de Barretos na década de 1910, ao afirmar que certo “dia saiu uma briga na loja de papai e eu tive de me esconder atrás de um tambor de óleo, para me proteger”. Situações como essa e tantas outras é que explicam a solicitação para criação de uma Delegacia Regional feita pelo prefeito municipal de Barretos junto ao governador de São Paulo, em 1937, alegando o seguinte:

1) A cidade de Barretos, pela sua posição em frente ao Triângulo Mineiro e pela surpreendente qualidade das suas forragens, veio a tornar-se o maior centro pastoril do país, bastando dizer que no ano passado de 1.936, mais de 600 mil bois transitaram pelas suas estradas, em demanda dos frigoríficos e xarqueadas. 2) Esse desenvolvimento comercial que vem aumentando de ano para ano, e que tende a alargar-se cada vez mais, abrange ainda, como zona de influência, todo o sul de Goiaz e Mato Grosso. 3)Assim, pois, da sua posição de fronteira e do gênero de seu principal comércio, decorrerem muito naturalmente, para a cidade, problemas policiais da mais alta importância: Não só é ela sempre procurada por forasteiros que, atraidos pela sua opulência, vêm em busca de meios de vida, mas ainda pelo número impressionante de mercadores de gado, com suas comitivas, vindos de Minas, Goiaz e Mato Grosso. 4) Ao lado dessa população flutuante, quasi sempre irriquieta e turbulenta, vem crescendo a cidade num surto surpreendente de progresso, com suas rendas municipais já ultrapassadas de mil contos de réis e as estaduais de quasi quatro mil contos de réis, senão mais, creando assim problemas novos de toda ordem, destacando-se entre estes, como dos mais urgentes a serem resolvidos, os de caráter policial. 5) Para isto, entretanto, é por demais deficiente o atual aparelhamento policial, pois, a despeito do inexcedível zelo do actual delegado, nunca pode ser perfeita a fiscalização em torno de hotéis, pensões, cabarés, estações, trânsito de ruas e estradas, movimento do operariado, capturas, etc. 6) A vista do exposto, e este para pedir os bons ofícios de Vossa Excelência no sentido de ser creada em Barretos, a Delegacia Regional e, assim, de dotar a cidade com um aparelhamento capaz de corresponder, em eficiência, às suas grandes e conhecidas necessidades.19

Texto apresentado, cabe refletir sobre os sentidos nele contido. Em sua solicitação, o

prefeito de Barretos indica claramente o perfil daqueles que eram motivo de preocupação da administração pública e, por conta disso, deveriam merecer atenção por parte das forças policiais: uma “população flutuante, quasi sempre irriquieta e turbulenta”, formada por “forasteiros [...] atraidos pela sua opulência”, “mercadores de gado, com suas comitivas, vindos de Minas, Goiaz e Mato Grosso”, isto é, por homens que não faziam parte da comunidade barretense, mas que convivia com seus membros eventualmente. Aos “flutuantes” se juntava ainda o operariado, que pertencia à própria comunidade local, mas que era considerado igualmente desestabilizador da ordem burguesa que se pretendia construir em Barretos.20 Noutra passagem da mesma solicitação, percebe-se ainda os locais a serem privilegiadamente vigiados: “hotéis, pensões, cabarés, estações, trânsito de ruas e estradas” – espaços, portanto, do que

17 PIACENTINI, B. C. Beni, o mito sexual de uma época. s/r, p.85-86. 18 Barretos Memórias, 1988, p.2. 19 Correio de Barretos. 17 de junho de 1937 (grifos meus). 20 Todos esses homens se enquadravam naquilo que as elites do período denominavam “classes pobres” enquanto “classes perigosas”, ou seja, eram personagens que compunham um grupo formado por negros libertos que, em busca de melhores oportunidades, passam a viver nos grandes urbanos e que se tornam suspeitos preferenciais e potencialmente ameaçadores para a ordem que se instituía, sendo posteriormente associados a este mesmo grupo os brancos pobres nacionais e os estrangeiros. CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias da corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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poderia denominar-se como sendo “de passagem”.21 Depreende-se, então, que a cidade não era apenas associada à oportunidade, ao progresso e a civilização, mas também ao perigo e ao medo presentes, especialmente, nos boiadeiros e peões, personagens que colaboravam para a riqueza local, mas que, ao mesmo tempo, expressavam o tênue fio existente entre riqueza e risco.

As atuações das autoridades responsáveis pela ordem em Barretos revelam a estreita separação existente entre civilização e barbárie.22 Em crônica baseada em fatos locais, por exemplo, aprende-se que a guarda municipal era formada por “latagões topadores de qualquer parada, a maioria aparentada dele (o prefeito), e outros velhos amigos apaniguados às famílias, na política local”23. Contudo, apesar da truculência registrada dos guardas municipais, as dificuldades encontradas motivavam a presença da Força Pública (a “captura”, como dizia a população local), a ponto do tenente João Antônio de Oliveira, popularmente conhecido como “Tenente-Galinha”24 e um dos mais renomados justiceiros do interior paulista, ser figura conhecida na cidade, mantendo nela, inclusive, residência. A presença constante de homens da Força Pública em Barretos evidência, mais do que nunca, o fato de que as ações de brutalidade praticadas por sujeitos pertencentes ao circuito do gado eram combatidas também com brutalidade pelos representantes da lei, destoando dos métodos e técnicas apreendidas com as lições das missões do Exército francês.25 Tal postura, diga-se, favorecia um clima tenso e perigoso nesta localidade, como sugere a seguinte crônica:

Polícia, naquela época, no interior, era uma das profissões de mais alto risco que havia, principalmente em Barretos. O ajuntamento constante da peonada estradeira, nômade, vinda sabe lá de onde, infestava os pontos de diversões, como o Bico de Pavão, bares e cassinos. E nestas situações, só um policial louco iria querer “tirar farinha” por cima de peão forasteiro, em processo de gastar seu dinheirinho ganho a suor grudento dos estradões. Era só querer e morrer. Morrer ingloriamente no pontaço de uma charqueadeira, de um punhal traiçoeiro ou num certeiro tiro. Acontecia o crime, peão enrustia-se pelas quebradas da vida e adeus viola. Para o morto não haveria remédio, para o assassino as lonjuras dos corredores boiadeiros da vida que o manteriam a salvo das grades. Por isso, polícia era distante de arruaça de peão, por instinto de sobrevivência. A farda não garantia nem aparava risco de faca nem estrago de bala. Mas ... e a “captura”? O famoso pelotão da Força Pública de São Paulo era atuante e marcava presença periodicamente pela região, dependendo das necessidades. Com essa acontecia, porém, dois aspectos sérios, que acabavam criando mais problemas que soluções por onde transitavam. Primeiro, o excesso de truculência que empregavam em suas operações. Isto porque, para caçar bandidos, assassinos, fazia-se necessário o emprego de homens destemidos, tão violentos ou mais que aqueles, para combate-los. Isto causava um profundo mal-estar na população, sempre disposta, tendente a se colocar ao lado do mais fraco.

21 Todos estes espaços faziam parte de um universo que não era totalmente controlado pelas elites e que era visto por parte delas como sendo vinculados a presença de desocupados, vadios e outros tipos de desajustados às concepções burguesas acerca da família, do trabalho, especialmente. CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. 22 DOIN, J. E. M. Capitalismo bucaneiro: dívida externa, materialidade e cultura na saga do café (1889-1930). Franca: UNESP/FHDSS, 2001, 2 vols. (Tese de Livre docência em História) 23 MACHIONE, G. J. A reclamação do parente. In ___. Entre minha gente. Barretos: Soares Oliveira, 1996, p.95. 24 Vale a pena conferir o apontamento que Joseph Love dedica à caracterização do Tenente Galinha: “Galinha e seus homens efetivamente deram cabo de muitos bandidos perigosos que assolavam a fronteira do café, mandando sua orelhas decepadas como um troféu para as autoridades na capital. Mas, também violentavam as mulheres de caipiras pobres e pacíficos, massacravam ciganos e espancavam sem piedade homens e mulheres inocentes que de algum modo incorriam em seu desagrado”. LOVE, J. A locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937. Trad. Vera Alice Cardoso da Silva, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.177. 25 Quanto as Missões Francesas: ANDRADE, E; CAMARA, H. F. A força pública de São Paulo – esboço histórico (1831/1931). São Paulo: Sociedade Impressora Paulista, 1931.

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A chegada da “captura” causava medo, apreensão em todos os setores da vida de uma comunidade. Um verdadeiro pânico coletivo. Contavam-se histórias terríveis da atuação dos “capturas” nesta e naquela cidade. Espancamentos, prisões de inocentes, assassinatos a sangue frio e mais uma multidão de absurdos hediondos. Fato era que aqueles homens não eram flores para se cheirar. Nem deviam, pois confrontavam-se no seu dia-a-dia com os piores facínoras de todos os cantos do Estado. Eram empregados, justamente, quando a ação do policial comum do lugar não surtia efeito. Era uma tropa especial para lidar com criminosos especiais. O segundo problema, atinente, era a falta de constância no trânsito daquelas unidades punitivas e sua chegada era sempre incerta. Não era todo dia, nem toda hora que se tinha em mãos os captura para cair de pau e bala em cima dos “fora-da-lei”, principalmente os ladrões de gado. Com estes, requeria-se uma investigação minuciosa, muitas vezes, prolongada até se chegar aos verdadeiros culpados.26 Todavia, além de oportunizar um melhor entendimento da maneira como era constituída

a ordem nessa cidade, as descrições envolvendo as autoridades policiais locais e a “captura” são fundamentais para entender a dinâmica social existente entre os moradores e as forças da ordem nas fimbrias do cotidiano local.27 É fato que a violência registrada em Barretos era expressiva, tendo em vista a sua própria configuração econômica. Contudo, a presença da força pública, especialmente da captura, deve ser interpretada como um claro sinal dos limites de ação do policiamento local em virtude de certos compromissos assumidos com os indivíduos tidos como criminosos ou, então, com seus mandatários, lembrando que o predicado “de boiadeiro” indica a subordinação do peão a um outro sujeito, respeitado, diga-se, numa cidade como Barretos. Assim, entende-se melhor parte do temor da população em relação à “captura”: além de violentos, tais homens eram desconhecidos, não faziam parte dos “acordos assumidos” entre os membros daquela comunidade, além disso, estavam acostumados a agir conforme estratégias coercitivas por eles próprios traçadas e que lhes geravam “ganhos extra-oficiais”.28

A construção do edifício do Fórum e da Cadeia traduzia mudanças profundas no panorama político nacional e na situação vivida pelos próprios moradores de Barretos. Em relação ao primeiro fator, cabe reconhecer que após a instauração da República houve a implantação de projetos melhor delineados acerca da Segurança Pública, por parte dos homens que lideravam as instituições criadas ou reformadas a contar desse regime político.29 Já no que se refere ao segundo, atenta-se ao fato de a inauguração do prédio da Cadeia e Fórum expressar a gradativa conquista de importância política por parte desta localidade, já que aquela altura havia angariado a condição de freguesia (1874), município e vila (1885), foros de cidade (1897) e comarca (1890). Até a fundação do Fórum e da Cadeia, não havia sido erigido em Barretos o Fórum, enquanto a cadeia havia sido improvisada em diversas casas e, até mesmo, num coqueiro, onde eram amarrados os criminosos. Com a criação da comarca de Barretos, passava a ser obrigatória a construção de uma edificação que traduzisse de modo marcante a incorporação dessa localidade ao julgo do Estado, entretanto, as dificuldades registradas em relação à violência ali praticada parecem ter dificultado a fixação de um magistrado nos primeiros meses da instauração oficial desta repartição pública.

Apenas em meados da década de 1890, Barretos passou a contar com a presença efetiva de magistrados. Em 1896, o Dr. Joaquim Fernando de Barros foi nomeado para dirigir a

26 MACHIONE, G. J. A reclamação do parente. In ___. Entre minha gente... Op. Cit., p.94-95. 27 A nova ordem social pretendida passa a ser compreendida de acordo com os ritmos sociais que caracterizam o estilo de vida da população em questão, como insiste: DIAS, M. O. L. S. Cotidiano e poder em São Paulo no século XIX – Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984. 28 ROSEMBERG, A. Polícia, policiamento e o policial na província de São Paulo, no final do Império: a instituição, prática cotidiana e cultura. São Paulo: USP/FFLCH, 2008 (Tese de Doutorado em História). 29 FERNANDES, H. R. A Força Pública no Estado de São Paulo. In FAUSTO, B. (org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1985, Tomo III, v.2, p.235-256.

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Comarca sediada nesse município, tratava-se de homem nascido em Campinas (1844), pertencente a tradicional família paulista, deputado provincial pelo Partido Liberal (sendo, posteriormente, filiado ao Partido Republicano) e formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, portanto, dotado de reconhecimento social e de larga experiência, atributos fundamentais para impor as elites locais o respeito à nova ordem burocrática implantada após a República e, ao mesmo tempo, lidar com as dificuldades registradas numa região de fronteira. Em 1901, diante do falecimento de Joaquim Barros, assumiu essa comarca o Dr. João Batista Martins de Menezes, homem igualmente experiente, formado em Direito pela mesma Faculdade de São Paulo, mas que havia exercido as funções de promotor público em Paranaguá e Pindamonhangaba, bem como a de advogado, de curador geral de órfãos, de vereador e de inspetor literário em Santos” (uma das principais cidades do estado de São Paulo, por essa época). Assim é descrita a recepção providenciada ao segundo magistrado a assumir a Comarca de Barretos:

Barretos engalanara-se de arcos, flores, folhagem e bandeirolas. Era magnífico, surpreendente, ver-se desfilar mansamente através das ruas assim enfeitadas a multidão de cavaleiros. O cortejo entrou pela Rua Alfredo Ellis e quebrou à mão direita na Avenida José Pedro, indo parar na Rua Prudente de Morais, à porta do Hotel das Famílias de Luiz Ribeiro Borges. A banda de música do tabelião Olavo, Euterpe Barretense, que estava tocando no coreto do Largo, à passagem do ilustre hóspede, veio aboletar-se no coreto defronte ao hotel e continuou a tocar. Depois serviu-se a vasta cerveja, e o Intendente Municipal dr. Pedro Paulo de Souza Nogueira saudou o integro magistrado, – (à quem o benemérito Govêrno do Estado, em bôa hora confiara os destinos judiciários desta comarca). O dr. Menezes agradeceu, – (com a voz embargada pela comoção). Às 6 horas da tarde foi banquete, de 60 talheres (mesa em forma de I), no Centro Recreativo, estabelecimento de bilhares e outras diversões, de propriedade do tenente Dermeval Castilho (pai do Zézinho). Em uma sala contígua, a Euterpe Barretense ia passando o seu grande repertório.30 A cena mencionada é propícia em revelar o quanto os membros das elites políticas

barretenses já eram versados na importância de “contar com essa autoridade”. Distantes daquela sociedade, corremos o risco de não levar em conta que “arcos, flores, folhagem e bandeirolas”, assim como uma comitiva de cavaleiros diziam respeito aos signos que essa gente portava em ocasiões especiais, como as festividades sagradas, daí, inclusive o emprego da palavra “cortejo”. Na simplicidade de seus gestos, preparavam os lideres políticos locais uma situação capaz de emocionar o recém chegado magistrado e, mediante isso, fazer com que laços afetivos se tornassem a base de compromissos que deveriam ser públicos, dado o exercício do cargo de juiz e de outros, como vereador, delegado, prefeito, entre outros. Finalizando a estratégia de inclusão do juiz ao grupo, lhe foram oferecidos signos que ilustravam bom-gosto e estilo, caso da “banda de música”, “cerveja” e “banquete”. Garantia-se com esse e outros expedientes que os abusos eleitorais, as denúncias sobre o uso da coisa pública e os acertos de contas pessoais fossem interpretados de “modo diferente”.

Não obstante, ao temor em relação à captura e aos gestos cordiais com que se tratavam os magistrados juntavam-se outros casos ilustrativos de que a atuação da polícia e das autoridades jurídicas estava vinculada aos interesses dos próprios membros das elites locais, como prova a prostituição. À medida que o desenvolvimento econômico de Barretos gerou uma movimentação considerável de homens endinheirados, uma considerável zona prostitutiva foi se formando no centro desta localidade, conforme já foi dito. Os “cabarets” ou simplesmente “casas de pensão” se tornaram espaços de entretenimento freqüentados por compradores de gado e diretores dos frigoríficos, invernistas e boiadeiros, profissionais liberais, comerciantes, funcionários públicos graduados e, portanto, dentro desse mesmo grupo, por autoridades políticas. Nesses espaços de

30 O Sertanejo. Barretos, 28 de julho de 1901.

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sociabilidade, negócios eram realizados, discussões políticas eram travadas e saberes envolvendo novas concepções sobre o corpo, etiquetas e modas eram apreendidas pelos freqüentadores.31 Explica-se, assim, a dificuldade de se promover a transferência desses estabelecimentos para outra área desta cidade (o que ocorreria, definitivamente, apenas na década de 1960).

A relação entre prostitutas, políticos e autoridades policiais prosseguiu de modo acentuado por décadas seguintes aos anos de 1930, o que nos permite obter maiores informações a respeito desse tipo de envolvimento, cujas práticas e artimanhas haviam sido gestadas ao longo da primeira década do século XX.32 Em muitos casos, as cafetinas que agiam nesses prostíbulos colaboravam com a polícia, delatando a presença de ladrões, gigolôs, vendedores de entorpecentes e outras figuras procuradas. Para evitar encrencas com as autoridades policiais e atender os anseios de uma elite aspirante aos comportamentos modernos é que as proprietárias desses meretrícios mantinham um rígido controle da higiene desses espaços e do comportamento das prostitutas, bem como impediam a entrada de negros, mulatos ou de qualquer outro considerado desqualificado. Para reforçar a boa convivência com os políticos é que essas mesmas cafetinas lhes reservavam mulheres recém incluídas no grupo de meretrizes e lhes promoviam festas particulares. Somam-se ainda a este repertório de estratégias, outras duas, assim descritas:

[...] todas as prostitutas que chegassem e hospedassem por tempos ou anos nas respectivas casas de pensões, as proprietárias para ganharem nas cartas e terem mais força, levavam-aspara que tirassem novos títulos e obrigavam-as a votarem nos candidatos do partido [...] A aproveitavam a situação, desabusavam as autoridades, faziam tudo para que os fortes políticos transferissem até certos delegados conforme o caso, e muitos e muitos soldados eram postos a disposição dos dirigentes da política local”.33

Todavia, a situação envolvendo os prostíbulos de luxo não era um caso isolado de como

os interesses dos próprios membros das elites locais eram fortemente considerados na atuação da polícia e das autoridades jurídicas. Localidade formada originalmente à margem do poder público, por conseguinte, sob o ímpeto de interesses privados, em Barretos havia se tornado comum o fato dos laços familiares e econômicos originarem bandos armados a serviço de causas diversas, como disputas por terras, contendas eleitorais ou desentendimentos de âmbitos mais pessoais.34 O grande número de agregados registrados nas fazendas existentes no século XIX tornava mais aguda essa situação, já que muitos deles se tornavam “bate-paus” de homens mais graduados, como forma de sobreviver as mudanças que haviam provocado a expulsão de suas famílias das terras até então ocupadas. Essa situação, diga-se, era percebida por alguns bacharéis: “Comecem por acabar com o patronato, esse anachronismo dos tempos coloniaes e dos capitães-mares, em virtude do qual cada chefe ou homem poderoso tinha à sua devoção uma clientela numerosa de valentões ociosos”.35 A construção de uma ordem moderna exigia lidar também com isso, o que foi feito, normalmente, ora se aliando a essa força paramilitar, ora combatendo-a com maior barbárie.

31 RAGO, M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. Rio de Janeiro/RJ: Paz e Terra, 1991. 32 PIACENTINI, B. C. Beni, o mito sexual de uma época... Op. Cit; PIACENTINI, B. C. A casa verde da beira da linha, onde a maldição da aids não tinha vez. Ribeirão Preto: Passos, s/d. 33 PIACENTINI, B. C. Beni, o mito sexual de uma época... Op. Cit., p.94. 34 DOIN, J. E. M. Capitalismo bucaneiro... Op. Cit. 35 O Sertanejo. Barretos, 07 de julho de 1900.

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Fontes Atas da Câmara Municipal de Barretos: Livro n.1 (01/10/1892 a 06/10/1896). Barretos Memórias, 1988, p.2. Commércio de Barretos, 08 de maio de 1910. Correio de Barretos. 17 de junho de 1937. MACHIONE, G. J. A reclamação do parente. In ___. Entre minha gente. Barretos: Soares Oliveira, 1996, p.93-97. PIACENTINI, B. C. Beni, o mito sexual de uma época. s/r, p.85-86. ___. A casa verde da beira da linha, onde a maldição da aids não tinha vez. Ribeirão Preto: Passos, s/d. ROCHA, Osório Faleiros. Barretos de outrora. Barretos: s/e, 1954. O Sertanejo. Barretos, 07 de julho de 1900. O Sertanejo. Barretos, 19 de maio de 1901. O Sertanejo. Barretos, 28 de julho de 1901.