a construcao social do valor

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA KARLA PINHO DA FONSECA LEITE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO VALOR: um estudo antropológico sobre o mercado imobiliário do bairro de Icaraí e suas fronteiras, Morro do Cavalão e Jardim Icaraí. NITERÓI 2013

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    KARLA PINHO DA FONSECA LEITE

    A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:

    um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,

    Morro do Cavalo e Jardim Icara.

    NITERI

    2013

  • KARLA PINHO DA FONSECA LEITE

    A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:

    um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,

    Morro do Cavalo e Jardim Icara.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps

    Graduao em Antropologia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    obteno do ttulo de mestre.

    Orientador:

    Prof Dr Jos Svio Leopoldi

    Niteri, RJ

    2013

  • KARLA PINHO DA FONSECA LEITE

    A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:

    um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,

    Morro do Cavalo e Jardim Icara.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps

    Graduao em Antropologia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade

    Federal Fluminense,como requisito parcial

    obteno do ttulo de mestre.

    Aprovada em 29 de agosto de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof Dr Jos Svio Leopoldi UFF Orientador

    Prof Dr Janana Nascimento Simes UFRRJ

    Prof Dr Laura Graziela Gomes - UFF

    Prof Dr Nilton Santos UFF

    Niteri

    2013

  • AGRADECIMENTOS

    A realizao deste trabalho s foi possvel graas ao apoio e ao incentivo do meu estimado

    orientador Jos Svio Leopoldi.

    Agradeo ao professor Nilton Santos por me acolher em suas aulas, na graduao de Cincias

    sociais da Universidade Federal Fluminense. Aos professores do Programa de Ps graduao

    em Antropologia da UFF, particularmente aqueles que me receberam em suas salas de aula;

    Edilson Mrcio Almeida da Silva e Fbio Reis Mota. Agradeo tambm a Capes por seu

    apoio. No poderia deixar de mencionar a grande ajuda da Associao das Damas de Caridade

    de So Vicente de Paulo. Agradeo em especial ao Seu Csar, Dona Snia, Dona Conceio,

    Dona Graa e a Cristiana por toda a ateno dispensada a mim durante a minha pesquisa de

    campo.

    Agradeo as palavras de estmulo da amiga e professora da UFRRJ Janana Nascimento

    Simes e ao Dr. Mrcio por seus esclarecimentos, fundamentais para o meu trabalho de

    campo.

    Finalmente, agradeo a confiana e a grande ajuda da minha famlia. Meu amigo, meu amor e

    minha casa, Geraldo. Minha filha muito amada, Maria Fernanda. Por fim, agradeo aos meus

    amigos Vanderlei, Valria, Verinha, Roberto, Iron, Delmar, Juliane, Patrcia, Fernando,

    Viviane e Carlos Henrique, ao meu pai, Antonio Jorge e a minha sogra Gilda pela torcida e

    boas vibraes que tornaram possvel a concluso deste trabalho. Por ltimo, preciso

    agradecer a calorosa acolhida da professora Laura Graziela, em suas aulas de Antropologia

    Econmica e ao amigo Rafael Velasquez por seu companheirismo durante nosso estgio de

    docncia.

  • RESUMO

    O presente trabalho procura refletir sobre as orientaes culturais e sociais que norteiam a

    formao do valor econmico (preo). Assim, foram observadas as mltiplas lgicas, cdigos

    de conduta e valores que orientam as prticas das pessoas em suas aes no mercado

    imobilirio do bairro de Icara. Dois limites do bairro, Morro do Cavalo e Jardim Icara, se

    mostraram um solo frtil para a compreenso das articulaes que so estabelecidas na

    construo do valor. A proposta foi verificar por um lado, o discurso que justifica o valor

    econmico do imvel, contrastando perspectivas de dentro e fora da favela. E, por outro,

    compreender como tal discurso apropriado por interesses aparentemente conflitantes quando

    se fala de casa como investimento (interesse individual) e casa como moradia (interesse

    social).

    Palavras chave: Valor; Mercado; Individualismo; Racionalidade; Antropologia Econmica;

    Consumo.

  • ABSTRACT

    This paper seeks to reflect on the social and cultural orientations that affect the formation of economic

    value (price). Thus, there were observed the multiple logics, conduct codes and values that guide the

    people actions in the property market of the region of Icara. There are two boundaries at the place,

    Morro do Cavalo and Jardim Icara, as a possibility for understanding the nature of the joints, which

    are established in the construction of value. The proposal is to verify the discourse that justifies the

    economic value of the property, contrasting perspectives from inside and outside of the shantytown.

    And, in the other hand, to understand how such discourse is appropriated by seemingly conflicting

    interests when the subjected is the house as an investment (as individual interest) and home such as

    housing (as social interest).

    Keys Word: Value; Market; Individualism; Rationality; Economic anthropology; Consumption

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Fig. 1 Logomarca de Niteri...................................................................................... 81

    Fig. 2 Limites dos bairros de Niteri......................................................................... 84

    Fig. 3 Limites Municipais da Comunidade do Morro do Cavalo............................ 90

    Fig. 4 Vias de acesso ao Morro do Cavalo e principais avenidas de circulao...... 91

    Fig. 5 Localidades do Morro do Cavalo.................................................................. 93

    Fig. 6 Bingo na sede da ADCSVP............................................................................. 125

    Fig. 7 Creche SVP..................................................................................................... 126

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Evoluo histrica da populao de Niteri e do bairro de Icara.................. 21

    Tabela 2 Classificao das cidades do Brasil por preo mediano do metro quadrado.. 83

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADEMI Associao dos Dirigentes do Mercado Imobilirio

    ADCSVP Associao das Damas de Caridade de So Vicente de Paulo

    AMAMC Associao dos Moradores e Amigos do Morro do Cavalo

    CCOB Conselho Comunitrio da Orla da Baa de Niteri

    CDL Cmara de Dirigentes Lojistas de Niteri

    CLIN Companhia Municipal de Limpeza Urbana de Niteri

    COMPERJ Complexo Petroqumico do Rio de Janeiro

    COMPUR Conselho Municipal de Planejamento Urbano

    FAMNIT Federao da Associao de Moradores de Niteri

    FNHIS Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social

    GPAE Grupamento de Polcia em reas Especiais

    IAB Instituto de Arquitetos do Brasil

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDH ndice de Desenvolvimento Humano

    IGPM ndice Geral de Preos do Mercado

    IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

    ITBI Imposto de Transmisso de Bens Imveis

    NEPHU-UFF Ncleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade

    Federal Fluminense

    ONU Organizao das Naes Unidas

    ONU HABITAT Programa das Naes Unidas para os Assentamentos Humanos

  • ONGS Organizaes No Governamentais

    PEMAS Plano Estratgico Municipal para Assentamentos Informais Urbanos de

    Niteri

    PIB Produto Interno Bruto

    SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos

    SNHSI Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social

    SVP So Vicente de Paulo

    UFF Universidade Federal Fluminense

    UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

  • SUMRIO

    Apresentao, p. 12

    Introduo, p. 15

    Parte I A sociedade moderna: o capitalismo e a centralidade da categoria econmico, p. 26

    1- Comportamento e escolha: os limites da racionalidade econmica, p. 33

    2- O valor econmico: produto das relaes de troca, p. 46

    3- A mercadoria moradia, p. 58

    Parte II -Espao, lugar, moradia e favela: consideraes sobre o bairro de Icara e o Morro do

    Cavalo, p. 69

    4- Cdigo formal e prtica social: mercados imobilirios de Icara e Morro do Cavalo, p. 93

    4.1- Entendendo o mercado: situaes e depoimentos, p. 99

    4.2- Relativizando a autoria da escolha: espao social e espao simblico, p. 109

    4.3- Mdia e representao no mercado imobilirio, p. 112

    4.4- Moradia em reas de interesse social: valor social sem valor econmico, p. 117

    5- Para alm do individualismo moderno: a economia solidria da Associao das Damas

    de Caridade de So Vicente de Paulo, p. 124

    6- Consideraes finais, p. 128

    7- Referncias bibliogrficas, p. 132

    8- ANEXOS, p. 139

    8.1- Fotos de Icara e Morro do Cavalo, p. 139

    8.2- Casa do Sr. Pedro e vizinhana, p. 140

    8.3- Ruas Mem de S e Lemos Cunha em Icara, p. 141

    8.4 Rua Joaquim Tvora em Icara, p. 142

    8.5- Comunidade do Morro do Cavalo, p. 143

    8.6- Reportagens do Centro de Memrias Fluminense, p. 146

    8.7- Plano Diretor de Niteri, p. 148

  • APRESENTAO

    Ainda na graduao em Cincias econmicas, a to mencionada racionalidade

    humana em suas teorias despertava-me certa curiosidade. Afinal, se analisarmos a

    racionalidade pela tica econmica, algumas decises sobre o consumo, observadas no dia a

    dia, no parecem to racionais assim. Uma observao realmente eficaz deve possuir alguma

    dose de relativizao. Como nos ensina Boas (2010), referindo-se aos chamados grupos

    primitivos, mas com extenso a sociedades modernas, no se pode afirmar que um mesmo

    fenmeno possua a mesma causa em locais diferentes. O mais apropriado seria um estudo

    detalhado de costumes em sua relao com a cultura total da tribo que os pratica, em conexo

    com uma investigao de sua distribuio geogrfica entre tribos vizinhas (BOAS, 2010,p.

    33). Ou seja, no podemos extrair o fenmeno de seu contexto para que ele seja

    adequadamente compreendido. Nesse sentido, entender decises de consumo requer

    relativizar tambm a noo de racionalidade dentro do grupo estudado.

    A discusso sobre racionalidade que permeia esta dissertao de mestrado, agora em

    Antropologia, est inserida no debate acerca dos conceitos de necessidade e valor. Tais

    conceitos sero discutidos no mbito da produo habitacional urbana no contexto capitalista.

    Embora a habitao constitua uma necessidade bsica, de abrigo para o ser humano, sua

    produo segue a mesma lgica capitalista de qualquer outra mercadoria. Moradias de

    diferentes formas, acabamentos e estilos so produzidos para diferentes pblicos, delineando

    status e demarcando territrios na cidade. Isso quer dizer que quando consumidas, definem

    estilos de vida. Alm disso, ainda que a casa seja um bem de consumo, ela tambm se

    configura como investimento, ou seja, esperada a obteno de lucro com sua venda. Decorre

    desse fato que o preo, expresso em dinheiro, possa sofrer alteraes devido a aes

    especulativas no mercado imobilirio. Por isso, a relao entre valor e preo, por vezes,

    percebida pelas pessoas em geral como no equivalente. A determinao do preo de uma

    mercadoria conforma critrios objetivos e subjetivos, que dizem respeito a valores polticos,

    sociais, culturais, econmicos e at mesmo afetivos. Como observa Simmel1 (1978 apud

    APPADURAI, 2010, p. 15), o valor jamais uma propriedade inerente aos objetos, mas um

    julgamento que os sujeitos fazem sobre ele.

    Orientando-me por essa premissa, segui para a pesquisa de campo, iniciada em

    dezembro de 2011, no bairro de Icara, onde morava na poca, situado no municpio de

    1 SIMMEL, G. Fashion. The philosophy of Money. London: Routledge, 1978, p. 63.

  • Niteri. O Municpio faz parte da chamada regio metropolitana2 do Estado do Rio de

    Janeiro. O bairro conhecido por abrigar uma populao de alto poder aquisitivo. No entanto,

    encontramos no seu interior uma favela denominada Morro do Cavalo. O primeiro aspecto

    que chamou minha ateno foi o duplo significado do nome Morro do Cavalo. Alm de

    designar um acidente geogrfico, ou seja, uma elevao natural do terreno com altura de

    200 bm aproximadamente, nos limites entre os bairros de Icara, So Francisco e Vital Brazil,

    tambm designa a favela encontrada no local. Porm, no nomeia cotidianamente outra rea

    habitada no Morro, onde encontramos casas de alto padro construtivo. Quando esses imveis

    residenciais so ofertados nas imobilirias, sua localizao descrita como Estrada Fres ou

    So Francisco, ainda que eles estejam situados no Morro do Cavalo. Diante desse fato, no

    mnimo curioso, fui motivada a incluir o Morro do Cavalo na pesquisa.

    Afinal, se a localizao um critrio de valor, dentre outros, para a construo do

    preo da moradia, e sabido que a proximidade da favela reduz esse valor, o que dizer sobre

    os discursos que permeiam a formao dos preos na Estrada Fres? O que dizer, ento, sobre

    a escolha de morar em uma favela de Icara? Alm disso, podemos indagar sobre a construo

    do valor no interior da favela, e este um ponto destacado nesta dissertao. Mesmo que as

    casas no sejam negociadas atravs de imobilirias legalmente constitudas, existe interesse

    de compra, venda e aluguel em tais reas e regras para que essas relaes de troca se

    estabeleam. Atravs da anlise do mercado imobilirio do Morro do Cavalo e do Bairro de

    Icara podemos observar aspectos que orientam a construo do valor econmico inserido no

    contexto das relaes de troca capitalista.

    Em diferentes momentos do trabalho de campo foram realizadas entrevistas

    informais, conversas, por vezes gravadas, com moradores do bairro de Icara e do Morro do

    Cavalo, homens e mulheres chefes de famlia, e tambm corretores imobilirios. Houve

    ainda a ajuda dos funcionrios do Programa Mdico de Famlia da Prefeitura de Niteri e da

    Associao das Damas de Caridade So Vicente de Paulo, instituio filantrpica, que, alm

    de prestar auxlio ao Morro do Cavalo atravs de projetos sociais, mantm uma creche

    comunitria no morro. Foram analisadas peas publicitrias, anncios de jornais e revistas de

    grande circulao bem como notcias de pequenos jornais de bairro. Todo dispndio de

    2 Art. 1 Fica instituda a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, composta pelos Municpios do Rio de Janeiro,

    Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itabora, Japeri, Mag, Maric, Mesquita, Nilpolis, Niteri, Nova

    Iguau, Paracambi, Queimados, So Gonalo, So Joo de Meriti, Seropdica, Tangu e Itagua, com vistas

    organizao, ao planejamento e a execuo de funes pblicas e servios de interesse metropolitano ou comum.

    (NR) Nova redao dada pela Lei Complementar n 133/2009.

    Disponvel em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/0/eb26342129c7ae9203256571007be153?OpenDocument

    Acesso em10/02/2013 12:37

  • energia fsica e mental orientados para execuo dessa pesquisa visaram contribuir, ainda que

    modestamente, para reflexo acerca da construo do valor sob o ponto de vista da

    antropologia do consumo.

  • INTRODUO

    Pode parecer, primeira vista, que morar em uma favela nada tenha a ver com a

    escolha. Para o senso comum, morar em uma favela no passa de uma imposio econmica.

    Porm, alguns estudos sobre o mercado imobilirio em favelas mostram a complexidade do

    tema, abordando as lgicas de tal escolha. Uma pesquisa bastante abrangente publicada sobre

    esse assunto, coordenada pelo economista Pedro Abramo (2009), demonstra que, pelo mesmo

    preo, o indivduo pode optar entre morar ou no na favela. O preo das moradias, em

    algumas favelas brasileiras est em crescente alta. Mesmo sem escritura da casa, ele pode ser

    superior ao preo de um imvel fora da favela, com escritura. Outra pesquisadora brasileira, a

    antroploga Mariana Cavalcanti (2010), refora essa ideia atravs do conceito de mercados

    imobilirios limiares, ao mostrar que o preo do imvel em uma favela pode ser equivalente

    ao de um imvel situado nas suas proximidades.

    Os resultados dessas pesquisas sugerem que para alm de uma restrio

    oramentria, as escolhas funcionam a partir de lgicas que dizem respeito aos atributos

    sociais e culturais que envolvem a moradia. Mesmo que haja uma restrio de ordem

    econmica, existe tambm um leque de opes dentro de uma mesma faixa de renda. Na

    escolha individual, portanto, entram em jogo aspectos sociais, culturais, polticos, histricos e

    at mesmo morais.

    A pesquisa no buscou separar tais aspectos, j que eles esto imbricados; buscou-se

    to somente lanar luz sobre eles, optando por alguns recortes, atravs da reflexo sobre

    alguns conceitos pertinentes ao assunto, evidenciando como o valor construdo socialmente

    atravs das relaes de mercado. Consciente de que no existe uma nica resposta para

    qualquer que seja a pergunta, sei que o inverso tambm verdadeiro. Ou seja, podemos partir

    de pressupostos diferentes e chegar a respostas semelhantes. Cabe, ento, definir alguns

    pressupostos para que a pesquisa se torne vivel. Como orienta Evans Pritchard (1978, p. 300;

    302),no se pode estudar nada sem uma teoria. E acrescenta, para que a observao

    emprica tenha validade, preciso que ela seja guiada e inspirada por alguma viso geral

    sobre a natureza dos fenmenos estudados. Guiada por esse princpio, este trabalho ser

    apresentado duas partes. A primeira tratar de alguns pressupostos necessrios execuo da

    pesquisa de campo e a segunda parte tratar da apresentao dos dados empricos, suas

    anlises e possveis comparaes entre os mercados imobilirios do Morro do Cavalo e

  • Icara . Aqui, na introduo, irei expor meu objeto, o locus da pesquisa de campo e minhas

    hipteses.

    O campo: bairro de Icara

    No incio da pesquisa de campo, dezembro 2011, era uma recm-moradora do bairro.

    No foi nada fcil conseguir alugar um apartamento em Icara. Percorri vrias imobilirias e a

    resposta era sempre a mesma, No temos imvel para alugar em Icara! O jornal do

    Municpio de Niteri, O Fluminense, alertava: a espera para conseguir imvel pode chegar a

    trs meses. Negociao pode diminuir o valor do aluguel. Metro quadrado no bairro est

    custando at R$ 8 mil (UCHA, 2012a). Em comparao com a mdia nacional do preo do

    metro quadrado, que no mesmo perodo era de R$ 6.799,00, (ZAP IMVEIS, 2012) morar no

    bairro estava caro. fcil perceber que o preo um fator segregador do espao urbano, mas

    no to fcil identificar porque algum escolheu um bairro em detrimento de outro,

    utilizando, aparentemente, os mesmos critrios de preferncia. E, se o preo est to alto,

    porque a demanda pelo bairro to grande a ponto de faltar imveis para alugar?

    Afunilando ainda mais esse pensamento, poderamos perguntar o porqu de escolher

    uma rua e no outra, dentro do mesmo bairro. A vizinhana, por vezes, tambm um critrio

    de escolha. Logicamente, os corretores de imveis tm muito a dizer sobre o assunto, mas

    durante minhas conversas com esses profissionais ficava a impresso que possuam um

    discurso pronto, que de tanto repeti-lo tornava-se uma verdade inquestionvel. No lhes

    importava se me apresentasse como provvel compradora, inquilina, ou pesquisadora. A

    diferena estava na forma de tratamento dispensado a mim. Como inquilina nem merecia

    ateno. Bastava retirar as chaves do imvel na recepo e deixar um documento de

    identidade. A visita era feita sem acompanhamento de um corretor. Como pesquisadora,

    merecia menos ateno ainda. A grande merecedora de ateno era a compradora. A razo,

    mencionada por corretores, era o ganho da comisso por imvel vendido, alm das metas

    mensais que queriam atingir.

    O discurso dos corretores sobre os atributos que faziam do bairro, o eleito, diz

    respeito a sua utilidade prtica. Ele se concretiza na enumerao de pontos positivos. O bairro

    possui timas escolas, saneamento bsico, rea de lazer e recreao (praia, Campo de So

    Bento, praas), hospitais, restaurantes, teatros, ampla rede de servios de sade, rede de

    transportes, rede de comrcio, bancos, coleta de lixo, segurana pblica, prximo ao centro

    do Rio de Janeiro, onde muitos trabalham, tambm prximo a uma Universidade Federal, e

    acima de tudo, para usufruir de todos esses benefcios no necessrio utilizao de veculo

  • automotor. Com uma rpida caminhada resolvemos todos os nossos problemas, tudo

    perto, afirmam os corretores. Pareceu-me que o tamanho da moradia, a forma etc. tinham

    menor importncia. Outro ponto, que por vezes, emerge nas conversas, est relacionado ao

    tema especulao. Vrios corretores mencionam que comprar um imvel no bairro

    considerado um timo investimento, pois sua tendncia de valorizao inabalvel. Neste

    caso percebe-se que a compra de um imvel no se presta apenas como bem de consumo

    (moradia), ela representa um investimento em si, visando ganhos atravs do aluguel, ou do

    lucro, gerado pela venda em momento posterior.

    Mesmo quando comprado visando moradia, o imvel representa uma reserva de

    valor para o seu proprietrio. A habitao uma mercadoria especial, que tem sua produo

    e distribuio complexas (MARICATO, 1997, p. 46). uma mercadoria cara. Sua compra

    requer esforos e sacrifcios, principalmente quando um financiamento necessrio. No

    como comprar um vestido ou sapato. O comprador precisa ter certeza que no ir perder

    dinheiro fazendo um mau negcio. A certeza de uma valorizao advm, dentre outras coisas,

    da perspectiva de investimento pblico feito no bairro. Quando ruas e avenidas so abertas ou

    melhoradas, por exemplo, o preo dos imveis no local tende a sofrer alguma valorizao.

    Sabemos, no entanto, que decises relativas a tais melhorias ocorrem na esfera poltica e so,

    por vezes, contaminadas pelos interesses econmicos de construtoras. Em muitas ocasies,

    esperamos que os governos sejam anticorporaes, dirigidos por motivaes distintas

    daquelas que buscam apenas o lucro, corrigindo falhas de mercados e reconhecendo valor

    onde o setor privado no enxerga, como observa Raj Patel (2010) em seu livro O valor de

    nada, e intervindo quando os benefcios sociais so maiores que os individuais. Uma das

    razes pelas quais o setor de habitao no Brasil palco de constantes conflitos, diz respeito

    ao choque entre benefcios sociais e individuais e seu produto o conhecido dficit

    habitacional. Ainda que a moradia seja um direito constitucional e um ponto chave para o

    desenvolvimento sustentvel do pas, ela alvo do capitalismo, em sua busca por lucro.

    A busca pelo lucro, como j mencionei, no privilgio das construtoras e

    incorporadoras; pessoas fsicas tambm tentam alcan-lo. Por trs dessa busca, no entanto,

    escondem-se outros objetivos. A busca por status social um deles. Ela se mostra atravs da

    apropriao de elementos simblicos institudos socialmente. O bairro conforma tais

    elementos na medida em que sua identidade construda a partir de informaes objetivas e

    tambm subjetivas. Frequentemente cria-se em torno de um bairro bem localizado certa aura

    de magia e encantamento que compe o imaginrio popular.

  • Podemos verificar que vem de longe o fascnio pelas regies litorneas do Estado do

    Rio de Janeiro. Atravs do relato apaixonado de um imigrante portugus, no seu livro Niteri

    e minha vida, constatamos o encantamento provocado pelas praias da cidade, incluindo a

    praia de Icara.

    (...) passando pelas praias das Flexas e Icara e do Saco de So Francisco. (...)

    Apenas o rumor das ondas do mar e o trintar dos pssaros cortavam a solido do

    lugar.(...) tendo o mar, a brisa que dele soprava e a mata por companheiros, eu me

    transportava nas asas do meu pensamento de adolescente, ao meu lar distante

    (LIMA, 1974, p. 14).

    Uma vista agradvel o desejo recorrente quando se trata de moradia. Na cidade do

    Rio de Janeiro, conhecida mundialmente por suas belezas naturais, morar perto delas um

    privilgio e sinal de status. De acordo com os corretores de imveis, em manchete divulgada

    pelo jornal O Globo, A primeira pergunta do carioca : tem vista? (TAVARES, 2012, p. 3)

    A noo de beleza natural (florestas, parques e praias) como integrante do valor da moradia

    tambm compartilhada por moradores e pretendentes a moradores de Niteri. Assim, morar

    em Icara obter uma fatia dessa beleza. Ou talvez mais, j que possvel avistar do bairro, a

    cidade do Rio de Janeiro e seus pontos tursticos mais conhecidos: Po de Acar e Cristo

    Redentor. Os moradores da cidade do Rio de Janeiro costumam afirmar que o mais bonito de

    Niteri vista do Rio. A proximidade geogrfica entre os municpios fez de Niteri, uma

    opo de moradia muito atraente. Alguns especialistas do mercado imobilirio chegam a

    afirmar que:

    A escassez de terrenos na badalada zona sul do Rio de Janeiro tem feito com que

    algumas construtoras escolham Niteri para tentar criar uma verso local do Leblon,

    o bairro mais caro do Rio. Em Icara, na zona sul da cidade, o preo do metro

    quadrado subiu 50% nos ltimos dois anos (NAPOLITANO; MEYER; STEFANO,

    2012, p. 71).

    Esse bairro, alm das construtoras, atraiu lojas renomadas e acessveis a pessoas com

    grande poder aquisitivo, que se estabeleceram principalmente na antiga rua comercial,

    Moreira Csar. Ela abriga ainda, alm das lojas de rua, galerias que fazem, por enquanto,

    as vezes de shoppings, equipadas com cafeterias e bistrs. Isso porque, O Clube Central, que

    existia na rua, foi demolido em 2012, e est sendo construdo um shopping em seu lugar. Ao

    longo dos ltimos cinco anos outras ruas manifestaram vocao para o comrcio de luxo. A

    Rua Tavares de Macedo um exemplo; nela encontramos lojas de alto padro. Seguindo a

    linha do comrcio popular, destaca-se a Rua Gavio Peixoto, que tambm concentra grande

  • quantidade de agncias bancrias e possui a funo de via de circulao para nibus. Pode-se

    dizer que outra rua importante do bairro a Lopes Trovo. Ela comea na praia e cruza as

    ruas Moreira Csar, Tavares de Macedo e Gavio Peixoto. Mesmo caracterizado como bairro

    residencial, Icara possui ampla rede de servios e comrcio. Existem no bairro vrios

    edifcios comerciais que abrigam consultrios mdicos.

    Encontramos tambm, em Icara, duas escolas particulares consideradas

    tradicionais: So Vicente de Paulo, colgio de freiras e La Salle Abel, colgio de padres.

    Embora existam vrias outras escolas, essas contribuem mais fortemente para a construo da

    identidade do bairro, assim como o antigo Clube Regatas, localizado na praia de Icara. O

    prdio do Cinema Icara, atualmente em reforma, depois de comprado pela Universidade

    Federal Fluminense - UFF, o prdio da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, antigo

    Cassino, e o Complexo Esportivo Caio Martins.

    As principais vias de acesso ao bairro so a Av. Roberto Silveira, que corta seu

    interior e a Praia de Icara margeada pela Av. Jorn. Alberto Francisco Torres. Essas duas

    avenidas, juntamente com a Av. Ary Parreiras so as maiores do bairro, em largura e

    extenso. O bairro possui outras ruas com grandes extenses, mas so consideravelmente

    estreitas. Existem duas grandes reas de lazer no bairro: o Campo de So Bento, com rvores,

    jardim, chafariz, brinquedos para crianas, feira de artesanato no final de semana, aparelhos

    de exerccio para terceira idade e ginstica gratuita, patrocinada pela prefeitura, todas as

    tardes, e a praia, com extenso de 2 Km, tambm utilizada para prtica esportiva. Icara, alm

    disso, possui dois teatros em funcionamento e um fechado para reforma.

    Na fronteira dos bairros Icara e Santa Rosa, podemos encontrar uma tradicional

    quitanda, resqucio de uma poca passada que d ao bairro ares de cidade pequena,

    embora possua todo equipamento urbano de uma cidade grande. Quem mora no bairro, diz

    que este um atributo adorado, mas posto em risco, segundo os moradores mais antigos. A

    culpa atribuda especulao imobiliria, que inflou o bairro e trouxe alguns problemas,

    pelos moradores.

    O boom imobilirio que est acontecendo hoje (2013) no bairro de Icara (e no

    Brasil) j ocorreu em outros momentos, sendo fruto do desempenho econmico positivo do

    pas e reflexo direto de polticas pblicas e habitacionais adotadas pelo Governo. Cabe citar a

    construo da Ponte Costa e Silva conhecida como Ponte Rio -Niteri. Ela foi apontada como

    fator desencadeador do boom imobilirio ocorrido na poca em 1974 e retratada por jornal

    local. Invadida por milhares de pessoas da baixada fluminense e do subrbio do Rio na

  • poca da fuso3, Icara foi palco de uma insana especulao imobiliria h 20 anos atrs; o

    bairro se copacabanizou e hoje prdios com 20 andares no so raros.(...) (FOLHA DE

    NITERI, 1997, p. 8-9). Assim como Copacabana era o bairro preferido pelo carioca, Icara o

    era pelos moradores de Niteri. O bairro o mais populoso do Municpio. Podemos visualizar

    na tabela abaixo a srie histrica de sua ocupao.

    Tabela 1 evoluo histrica da populao de Niteri e do bairro de Icara

    POPULAO

    Srie

    Histrica

    1970 % 1980 % 1991 % 2000 % 2010 %

    Niteri 324.246 100 397.123 100 436.155 100 459.451 100 487.562 100

    Icara 39.949 12,32 61.843 15,57 62.494 14,33 75.127 15,40 78.715 16,14

    Fonte IBGE censo demogrfico 1979-1980-1991-2000-2010

    Em 1991, segundo o Censo do IBGE, 92,91% dos domiclios do bairro eram

    apartamentos e somente 5,43% eram casas. O restante era composto por ocupaes irregulares

    e favelas. Com o passar do tempo era visvel, de acordo com relatos dos moradores, que o

    espao do bairro foi ficando saturado. As construtoras sabiam que as pessoas queriam morar

    em Icara, mas no havia mais espao fsico para novos empreendimentos. Ainda mais, dentro

    dos padres atuais de conforto e lazer, ou seja, era necessria uma rea de grandes dimenses.

    Assim, as construtoras acabaram migrando para o bairro vizinho, Santa Rosa, e escolheram

    uma parte, considerada pelos corretores de imveis como a melhor. Construes

    comearam a ser erguidas no lugar de casas muito antigas do bairro, surgindo ento uma

    regio chamada Jardim Icara: era o bairro de Santa Rosa com alma de Icara. Todas as

    propagandas e classificados de imveis passaram a utilizar o nome Jardim Icara para

    designar os endereos da regio. No intuito de constatar o nascimento do novo bairro, me

    dirigi secretaria de urbanismo da prefeitura. L descobri a inexistncia de um bairro com

    esse nome. Jardim Icara no um bairro, ainda; uma regio, uma fronteira dos bairros

    Icara e Santa Rosa. Sob o ttulo, roubaram meu bairro! um blog descreve esse processo de

    um jeito bem particular.

    (...) Santa Rosa pra mim era sinnimo de lugar quieto e bonito, cheio de casas e

    arborizado, bem diferente de onde eu morava que era cheio de prdios. Mas os

    tempos so outros. A invaso imobiliria chegou com tudo e com ela a destruio de

    3 A cidade do Rio, depois que cedeu seu posto de Distrito Federal a Braslia, passou a constituir o Estado da

    Guanabara. A cidade de Niteri na ocasio era a capital do Estado do Rio de Janeiro. Junto com a ligao das

    cidades de Niteri e Rio de Janeiro atravs da ponte Costa e Silva ocorreu a fuso dos Estados da Guanabara e

    Rio de Janeiro, ficando a cidade do Rio de Janeiro como a capital do Estado do Rio de Janeiro.

  • casas de 1940/50, conjunto de casas, casas geminadas, pequenos prdios e vilas. No

    satisfeitos em destruir tudo e mudar a cara do bairro, os donos das imobilirias

    renomearam o bairro como se renomeia um arquivo no computador, e o bairro de

    Santa Rosa virou Jardim Icara, numa aluso continuidade ao bairro vizinho Icara,

    valorizado comercialmente e que cheio de prdios. (...) Com a mudana veio

    logicamente a mudana de preo dos apartamentos, aluguis e a glamourizao do

    bairro. Os jornais entrarem nessa onda; e renomear tambm no me espanta j que os jornais aqui da cidade, trs no mximo, devem ter recebido dinheiro a rodo em

    propaganda anunciando os novos empreendimentos em suas pginas, da a animao

    em renomear o bairro tambm sem nenhum questionamento. O que me espanta

    mesmo a prefeitura tambm ter entrado nesta ;onda;. No que eu no ache que a prefeitura est lucrando com a proliferao de prdios, sei que est j que onde se

    pagava um IPTU vo se pagar sessenta, mas achei meio sem noo e sem senso

    histrico deixarem mudar o nome de um bairro desta forma, sem consulta e sem

    aviso aos moradores. Os antigos continuam morando em Santa Rosa, os novos

    moram no Jardim Icara. E ningum se decide em relao a isso. Acaba que no final

    das contas no se sabe mais o que e o que no Santa Rosa. No se sabe onde

    comea e onde termina porque se voc ligar pra qualquer padaria, eles vo dizer que

    esto no Jd. Icara e ningum diz que est em Santa Rosa. mais bonito, devem

    achar, mais esttico. menos roa, menos provinciano, tudo o que Niteri quer

    ser. Santa rosa no mapa do prefeito deve ser um bairro de trs ruas se muito. E sem

    nenhuma identidade mais. Antes casas de 1950, hoje prdios onde s mudam so as

    cores. Antes prdios de 4 a 6 andares, hoje de 12 no mnimo. E Niteri no vai

    sossegar enquanto no for um pequeno Rio de Janeiro. Pena. A graa era que no

    fosse mesmo igual ao Rio, mesmo com a proximidade. Mas no o que pensa o

    prefeito e os novos moradores que vm, em sua maioria do Rio de Janeiro fugindo

    da violncia. (OVERBLOG, 2008)

    Outra estratgia para ganhar espao em Icara foi seguir rumo ao buraco negro do

    bairro, a ltima Rua da Praia de Icara, Joaquim Tvora, onde atualmente podemos

    vislumbrar quatro novos empreendimentos (um j concludo e os outros trs ainda em

    construo) e o limite com o bairro de Santa Rosa. A Rua Joaquim Tvora curta, arborizada,

    tranquila, oferece ligao com o final da famosa rua comercial Moreira Csar e termina no

    tnel que liga os bairros Icara e So Francisco. Aparentemente um timo lugar para morar,

    se no fosse pela favela do Morro do Cavalo, na opinio de morador antigo do bairro. A

    rua, pelo que pude observar, possui seis acessos favela. Parece ser esse o motivo, de ter sido

    pouco desejada pelas construtoras. Em 1998, o jornal O Globo, mencionou esse fato, dizendo

    que a Rua Joaquim Tvora era um dos poucos lugares do bairro que ainda comportavam

    grandes construes. Na ocasio, Rogrio Maciel, presidente da Associao dos Dirigentes do

    Mercado Imobilirio (ADEMI), afirmou que o nico obstculo para a expanso e valorizao

    imobiliria da Joaquim Tvora tinha sido derrubado, ou seja, a resistncia que as pessoas

    mantinham pela proximidade da Rua com o Morro do Cavalo. Na opinio do presidente da

    ADEMI, As pessoas perceberam que se trata de uma rua como qualquer outra do bairro.

    Hoje, os imveis da Joaquim Tvora so valorizados pela proximidade com a praia de Icara e

    o comrcio (GLOBO, 1998, p. 19.). importante dizer que na poca estava sendo lanado

    na rua um novo empreendimento, o Edifcio York Palace. Interesses parte, nesse momento,

  • ficou claro a existncia de um movimento de propaganda positiva para a rua. Porm, at hoje,

    existem dissidentes desse movimento. A rua ganhou destaque quando um prdio abandonado,

    ainda em fase de construo, foi invadido em 2001.

    A equipe de reportagem do O Globo esteve em agosto do ano de 2004 no local e

    verificou que na poca os ocupantes invasores tinham abastecimento regular de energia

    eltrica, mas usavam gato de gua. Organizados, tinham at associao, batizada de

    Condomnio Amigos da Paz, que cobrava R$ 30,00 de taxa de condomnio. Os prdios foram

    apelidados pela vizinhana de Carandiru. O diretor da empresa guas de Niteri, mesmo no

    concordando com a ocupao instalou o medidor de gua alegando que deveria conter o furto

    de gua. A conta, no entanto, nunca foi paga e j acumula dvida de sete mil e quinhentos

    reais (GLOBO, 2004, p.4). Em 2005 o prdio foi desocupado e uma nova construtora retomou

    e concluiu o projeto. O condomnio, composto por 2 prdios, fica bem em frente favela do

    Morro do Cavalo.

    Moradores antigos ainda mantm uma opinio negativa sobre a rua. A proximidade

    da favela, no entanto, desperta sentimentos contraditrios. A Rua Joaquim Tvora comea

    esquerda, no final da praia de Icara, seguindo a numerao crescente de sua avenida.

    direita, encontra-se a Estrada Fres, que segue morro acima, s margens da Baa de

    Guanabara. A Estrada Fres, que est localizada no Morro do Cavalo, conta com acesso

    favela e possui manses de alto padro construtivo. Nada sugere que a proximidade com a

    favela seja uma aspecto que influa negativamente no preo dos imveis ali situados.

    De acordo com o plano diretor de Niteri o Morro pertence aos bairros Icara, Vital

    Brazil e So Francisco. Por essa diviso a Rua Joaquim Tvora situa-se em Icara e a Estrada

    Fres em So Francisco. Ser que vista da Baa a grande vedete do preo? E o tamanho

    dessas casas? E l na favela, qual a lgica de valorizao e formao de preos das moradias?

    Qual a lgica de ocupao do Morro do Cavalo? Quem so as pessoas que querem morar l?

    Foi nesse momento que decidi incluir o Morro do Cavalo no campo da pesquisa. Comparar

    um mercado com regras legalizadas para compra, venda, locao e avaliao de imveis com

    outro guiado por regras intuitivas, poderia descortinar interessantes critrios de valor

    subjetivos e objetivos.

    A incluso do Morro do Cavalo no campo

    A busca por moradia em reas urbanas embora represente, na teoria, o acesso aos

    padres de vida materiais e no materiais que definem um estilo de vida urbano, na

    prtica, esse acesso aos bens urbanos possui gradaes. E exatamente nesse ponto emerge a

  • contribuio requerida ao antroplogo. Um dos problemas para o investigador,

    especialmente para o antroplogo, buscar definir que padres so esses, como so definidos

    e quais os smbolos que indicam esta participao maior ou menor (VELHO, 2002, p. 21).

    Com o objetivo definido e o campo alargado, como fazer a entrada no Morro do

    Cavalo?

    Por uma dessas coincidncias da vida, descobri que o porteiro do prdio onde eu

    morava residia no morro. No incio, ele no estimulou minha ida at l. Dizia que todos

    perceberiam que eu no era moradora do morro. Imaginariam que eu queria comprar drogas.

    E, alm de tudo, eu nunca deveria subir o morro em um domingo, dia em que o morro fica

    cheio de gente toa, bebendo. O tempo passou e em fevereiro de 2012 o porteiro me

    apresentou ao Dudu do Cavalo. Simptico e falante, ele j tinha sido candidato a vereador,

    mas no conseguiu se eleger. Culpa dos moradores, segundo ele, que no so unidos e nem

    pensam no bem da comunidade. No votaram nele e, portanto, perderam a chance de ter um

    representante da comunidade na cmara. Atualmente, ele o presidente da Associao dos

    Moradores e Amigos do Morro do Cavalo - AMAMC, eleito em junho de 2012.

    A primeira vez que fui ao Morro do Cavalo, em fevereiro de 1012, subi pelo acesso

    no final da Rua Lemos Cunha, em Icara. A subida localiza na lateral do Tnel Icara - So

    Francisco. No incio da Ladeira pude ver uma fila de motos que prestavam o servio de

    Mototaxi. O preo da corrida era de dois Reais, mas subi a p, debaixo de um sol

    escaldante. Vi todo tipo de casa, entre pequenas, mdias e grandes; vrias tinham reboco e

    eram pintadas, outras no, mas aguardava para ver o campo de futebol, to comentado pelo

    porteiro. Ele era um ponto de referncia para a localizao da casa do Dudu, do GPAE4, do

    comrcio local, da Associao dos Moradores e da Creche Comunitria So Vicente de Paulo,

    todos situados na Alameda Paris, inclusive o campo de futebol. Mais tarde descobri que quase

    todos os moradores residem na Alameda Paris, que cruza todo o morro.

    As primeiras casas foram construdas de frente para a Alameda Paris. Conforme as

    famlias iam crescendo, novas casas eram construdas no quintal dos fundos. Embora as

    casas fossem de fundos, suas entradas eram laterais; ento, formaram-se ruas (bem estreitas)

    perpendiculares a avenida principal. Essas vielas no tm nomes, nem asfaltamento, por

    isso, a maior parte dos endereos no Morro do Cavalo se reporta asfaltada Alameda Paris.

    Famlias inteiras moram no morro, e na maioria das vezes os casamentos acontecem

    entre os prprios moradores. Descobri que a maioria dos moradores possui algum grau de

    4 GPAE Grupamento de Polcia em reas Especiais criado antes da UPP (unidade de policia pacificadora) da

    cidade do Rio de Janeiro

  • parentesco, como ocorre em muitas cidades interioranas. O Censo 2010 contabilizou 2.032

    moradores no Morro do Cavalo com mdia de 3.3 moradores por domiclio. Existe

    controvrsia nesse resultado, como veremos mais adiante.

    Os nmeros das casas foram colocados por ocasio da chegada de energia eltrica no

    Morro. Seu Albertino, nascido no morro, lembra como era difcil andar por ele, na noite

    escura, antes da energia eltrica, quando era tudo barro, no tinha asfalto, no tinha nada,

    s vezes, a gente tropeava, a gente j estava no tato. A gente j sabia mais ou menos onde

    tinha pedra, buraco...5 (SANTOS, 2007, p. 11) Hoje, os moradores possuem acesso rede

    eltrica, abastecimento de gua, telefone, internet e coleta de lixo, embora a prestao desses

    servios no seja satisfatria.

    O Morro foi dividido pela prefeitura, atravs do plano diretor da cidade, em rea de

    interesse social e ambiental, excluindo, claro, a rea j ocupada pelos Casares. Os

    objetivos dessa classificao so a preservao de mata nativa e a proteo dos moradores, de

    baixa renda, de uma possvel especulao imobiliria, que pode incentivar a expulso dessa

    populao do local. Essa iniciativa seria nobre se no fosse a constante alterao das regras

    do jogo em favor dos interesses do capital imobilirio. O poder pblico usa o discurso da

    proteo ao meio ambiente, apenas quando visa interdio do uso e ocupao do solo pela

    populao de baixa renda. O exemplo disso foi a construo do condomnio de luxo Chcaras

    da Fres, na rea de preservao ambiental do Morro do Cavalo. Esse um dos exemplos

    dos casos polmicos, em que as leis so usadas a favor do lucro. Polmica ainda maior se

    instaura quando em uma conversa com moradora de Icara, ouo: esses favelados no tem

    direito de morar em frente praia, referindo-se populao da favela do Morro do Cavalo.

    Eu pago um IPTU altssimo e no moro. Eles no pagam nada e moram em frente praia!

    Entre conflitos, negociaes , metamorfoses sociais, espaciais e culturais, moradores e

    imobilirias vo construindo e reconstruindo o bairro a todo momento, enquanto novas

    dinmicas sociais vo se formando.

    O bairro de Icara e seu Morro, o Cavalo, so parte um do outro, e se afetam

    mutuamente. Por isso, a necessidade de incluir o Morro do Cavalo no meu campo de

    pesquisa e testar trs hipteses. A primeira refere-se construo do preo. Ela abarca

    critrios de valor subjetivos, como a busca por um determinado estilo de vida, alcance de um

    novo status social, proximidade de familiares e vizinhana. A segunda mostra que o discurso

    5 Relato extrado do livro Naquele Tempo: causos e histrias contadas pela gente do Morro do Cavalo. Escrito

    atravs de uma parceria entre o Programa mdico de famlia e a Associao dos Moradores e Amigos do Morro

    do Cavalo.

  • sobre o valor da moradia conflitante no que diz respeito ao preo (valor de troca) e ao bem

    estar social/individual (valor de uso). Eles so colocados em lados opostos, ou seja, quando o

    objetivo o lucro, o preo justificado atravs do valor de mercado e quando o objetivo da

    moradia a satisfao de uma necessidade bsica do indivduo e uma organizao espacial

    sustentvel, o discurso recai sobre o valor de uso. A nomeao da moradia como pertencente a

    uma rea de interesse social, tenta excluir o valor econmico (de troca) que inerente ao bem

    moradia. A existncia de um mercado informal sinaliza que a despeito de ser uma

    necessidade bsica ela tambm investimento e reserva de valor. O mercado, ento, se

    constitui revelia do ESTADO e cria-se a tenso entre valor de uso e valor de troca. A

    moradia uma mercadoria institucionalizada, e, como tal, possui valor de uso e valor de troca

    simultaneamente. A terceira hiptese refere-se valorizao dos imveis situados no entorno

    de favelas resultante de um movimento em curso a favor da percepo positiva da favela,

    ocasionando a alterao das suas fronteiras simblicas.

  • 26

    Parte I- A sociedade Moderna: o capitalismo e a centralidade da categoria econmico

    A sociedade de mercado no transforma simplesmente as coisas em mercadorias ela cria a prpria cultura e as prprias ideias sobre a natureza humana e a ordem

    social. (PATEL, 2010,p. 30)

    A era moderna testemunhou a emergncia de um novo modo de considerar os

    fenmenos humanos e a delimitao de um domnio separado que evocamos correntemente

    pelas palavras economia, econmico. Esse pensamento, dentre outros, guiou Louis Dumont

    (2000, p. 47) em sua obra Homo Aequalis, na qual buscou resgatar a histria das ideias,

    precisamente daquelas que serviram de escopo para a ascenso da economia como uma

    categoria autnoma e principal agente organizador da sociedade, promotor do

    desenvolvimento e bem estar social.

    A economia, a esfera da vida social em que se d a produo, a distribuio e o

    consumo de bens, adquiriu um grau de autonomia na sociedade ocidental moderna no

    encontrada em nenhuma outra sociedade. Dumont (2000) argumenta que Adam Smith (1996)

    ao publicar seu livro Riqueza das Naes, marco da constituio da cincia econmica, lanou

    as bases para que a economia passasse a ser vista como um sistema autnomo, autoregulvel e

    que, portanto, funcionaria em direo ao bem estar social e ao desenvolvimento econmico

    independentemente da ao poltica. Para Adam Smith, as leis do mercado tratariam de

    deixar a economia em equilbrio rumo ao progresso. Travava-se, portanto, de identificar leis

    de mercado como leis naturais. No entanto, conforme argumenta Dumont (2000), a Lei da

    Natureza, tanto moral quanto fsica, fruto de uma ordem poltica e teolgica e por isso a

    autonomia dada ao sistema econmico fictcia. O sistema econmico no pode estar isento

    de juzo de valor; ele s pode ser concebido como autnomo normativamente. Na prtica, ele

    no independente da ao humana; e estabelecer diretrizes para o comportamento humano,

    racional nos termos econmicos, estabelecer princpios reguladores de sua conduta, ou seja

    normas morais ditadas culturalmente. Segundo Durkheim (2006), para os economistas

    ortodoxos, a economia produz naturalmente suas consequncias morais; basta que ela seja

    livre. Porm, nem sempre progresso industrial e moral coincidem. A ideia por trs do livre

    mercado, de acordo com Durkheim (2006), a viso de que os laos sociais so apenas uma

    relao superficial determinada por interesses mtuos. como se a nao fosse uma imensa

    corporao na qual os indivduos recebem na proporo do que oferecem e permanecem nela

    enquanto forem adequadamente remunerados. Ora, se a sociedade fosse apenas um

    aglomerado de indivduos simplesmente egostas, como explicar a vida em sociedade, o que

  • 27

    une as pessoas? Para Durkheim, a moral tem essa funo prtica: tornar possvel a sociedade,

    e salvaguardar os interesses coletivos. As ideias morais frequentemente afetam os eventos

    econmicos, porm no modelo de economia como sistema autnomo, o comportamento moral

    posto de fora, ou, como prefere Dumont, dado a priori. Seria como afirmar que o

    indivduo um ser moral por natureza. Sendo assim, possvel seguir adiante e propor uma

    ao humana guiada pelo desejo de obter os melhores resultados a partir da utilizao tima

    de seus recursos, o que convergir com o melhor para a sociedade, o desenvolvimento

    econmico.

    A concepo de autonomia do sistema econmico serviu como base para a

    formulao do materialismo histrico proposto por Marx6 (1976 apud MULLER, 2006). Para

    ele, o funcionamento de qualquer sociedade definido pelas relaes de produo. A diviso

    social do trabalho, formada a partir da interao humana com a natureza na busca pela

    satisfao das necessidades humanas, ir produzir distines de classe e consequentemente

    guiar a organizao social e poltica da sociedade em questo. Entretanto, Marshall Sahlins

    (2003) observa que o materialismo histrico um conhecimento produzido pela sociedade

    burguesa acerca de si mesma, utilizando suas prprias categorias de entendimento, tomando a

    produo apenas como um processo de satisfao das prprias necessidades, no sentido strito

    do termo. No entanto, embora existam os imperativos biolgicos que lancem os indivduos

    ao, cada sociedade busca meios de sobrevivncia de maneira especfica. Ele assinala que,

    mesmo que o ser humano necessite de abrigo ele o far de uma forma particular, dado que

    cada forma lhe imprime um significado.

    (...)como uma cabana de campons ou o castelo de um nobre. Essa determinao de

    valores de uso, um tipo especfico de construo habitacional como um tipo

    especfico de lar, representa um processo contnuo de vida social na qual os homens

    reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos e definem-se em termos

    dos objetos.(SAHLINS, 2003, p. 188)

    Por trs do processo de produo material, a razo prtica, nos termos de Sahlins,

    possvel encontrar uma inteno cultural que modela a relaes sociais, dotando os objetos de

    um valor simblico no necessariamente ligado somente s suas propriedades fsicas. Polanyi7

    (1980 apud Mulher, 2006) reconhece que a sociedade seja naturalmente condicionada por

    fatores econmicos, porm, para ele verdade tambm que a economia est submersa em

    relaes sociais. O prprio Marx, atravs do conceito de fetichismo da mercadoria, reconhece

    6 MARX, Karl. Le Capital: critque de lconomie Politique.Paris: Editions Sociales, 1976.

    7 POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

  • 28

    que na sociedade capitalista a generalizao da produo mercantil fez com que as trocas

    passassem a ser vistas como uma relao entre coisas e no entre pessoas. A quantidade de

    trabalho contida nas mercadorias, aquilo que para Marx realmente gera valor e est presente

    em todas as mercadorias, est oculta nas relaes de troca na sociedade capitalista. As

    relaes de troca na sociedade capitalista esto inscritas em um sistema de interesses de

    compra e venda atravs da categoria mercado. Podemos identificar o mercado, de acordo com

    a proposta de Muller (2006), como uma instituio social e um modelo cultural. Instituio

    social por sua formao ter se dado no interior da sociedade como meio de estabelecimento de

    um sistema de trocas, dada a necessidade de sociabilidade e obteno de recursos. O

    capitalismo, sugere Polanyi, necessita de instituies sociais como o mercado. O mercado por

    sua vez para funcionar precisa da sociedade. A sociedade, contudo, precisa permitir que

    coisas possam ser compradas e vendidas, ou seja, transformadas em mercadoria. O conceito

    de mercadoria que melhor atente dos objetivos deste trabalho proposto por Arjun Apaddurai

    (2010, p. 26): mercadoria qualquer coisa destinada troca.

    Embora os mercados existam desde tempos remotos, a forma mercadoria dos objetos

    no fixa no tempo e espao. Nem sempre trabalho e terras foram mercadorias. A grande

    transformao de Polanyi8 (1980 apud PATEL 2010) descreve como terra e trabalho

    transformaram-se em mercadorias. Essa grande transformao, nada pacfica, deu-se atravs

    do processo de cercamento dos campos, expulsando muitos camponeses para as cidades onde

    passaram a vender sua fora de trabalho. As mudanas sociais foram de grandes propores e

    imps novas regras sociais reguladoras da terra e do trabalho. O mercado alcanou o estatuto

    de regulador das relaes sociais, evidenciado por Muller (2006). Para esta autora,

    atualmente, existe o predomnio da ideia de mercado como nico modelo de relaes capaz de

    garantir o crescimento econmico e desenvolvimento social.

    No mundo moderno, o mercado tornou-se o articulador em praticamente todas as

    esferas da vida social, no apenas por sua eficcia material, mas tambm por sua eficcia

    simblica, ou seja, porque, na sociedade capitalista contempornea, a economia tornou-se o

    locus privilegiado da produo simblica e de sua transmisso (SALHINS9, 1979 apud

    MULLER, 2006, p. 15). possvel falar em mercado da moda, mercado de trabalho, mercado

    cultural, mercado de casamento, mercado imobilirio etc. Certamente, seu sentido

    compartilhado por todos e, alm disso, conceitos cunhados na esfera econmica como lucro,

    investimento etc. foram dominados pela populao e utilizados em outras esferas sociais.

    8 POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

    9 SAHLINS, Marshall. Cultura e razo prtica. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

  • 29

    Eventualmente, ouvimos a expresso vou investir nesse namoro, na qual subentende-se que

    o lucro esperado o casamento. As relaes sociais em geral podem ser observadas sob o

    prisma das relaes de troca, onde os interesses dos agentes se confrontam e ambos esperam

    obter ganhos satisfatrios. Podemos entender o mercado, portanto, na sociedade capitalista,

    como um modelo cultural de relaes sociais. No entanto, embora o capitalismo tenha a

    tendncia mercantilizao das coisas, preciso o consentimento social para tal.

    A economia e a sociedade, como tentou mostrar Polanyi, fazem parte do mesmo

    conjunto, assim como mercado e sociedade so dois lados da mesma moeda. A lgica do livre

    mercado sempre necessita de uma base social, e por isso que Polanyi no separa a nossa

    maneira de viver em governo e livre mercado para ele trata-se apenas da sociedade de

    mercado (POLANYI10, 1980 apud PATEL, 2010, p. 25). Polanyi, inspirou a abordagem

    social dos fenmenos econmicos em muitos autores, chegando como fizeram alguns, a

    abordar a economia considerando-a um sistema de representaes (DUMONT, 1982) ou

    ainda, um sistema cultural passvel de uma anlise simblica (SAHLINS, 1979) (MULLER,

    2006, p. 14). A unio dessas duas formas de enxergar o capitalismo nos leva a considerar a

    proposta de Patel (2010), na qual o mundo moderno v a si prprio atravs dos olhos do

    mercado. Fato que faz ser praticamente impossvel administr-lo sem precific-lo e deix-lo a

    cargo do livre mercado.

    A centralidade da economia foi se solidificando medida que a industrializao e a

    produo de bens materiais foi se intensificando. O parmetro para o desenvolvimento social

    frequentemente o desenvolvimento econmico. O consumo tornou-se o termmetro social

    do desenvolvimento adotado por institutos de pesquisa; possvel determinar nveis de

    pobreza a partir do nmero de eletrodomsticos em casa.

    Em trabalho apresentado Escola de Ps graduao em economia da Fundao

    Getlio Vargas (FERREIRA, 2004), sobre as condies habitacionais da Regio

    Metropolitana do Rio de Janeiro, foi mostrado que, embora a regio tenha um grande nmero

    de pessoas vivendo em reas de favela, o dobro da mdia das demais regies ( e quase trs

    vezes a mdia brasileira), o percentual de pobres 40% menor. A proposta do trabalho foi

    verificar ndices de pobreza, levando-se em considerao alm da densidade habitacional por

    domiclio e acesso gua canalizada, energia eltrica e coleta de lixo, o consumo de bens

    durveis, sendo a soma desses fatores determinante para o conhecimento de condies de

    10

    POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

  • 30

    moradia. Segundo Ferreira (2004) no possvel determinar nveis de pobreza de uma regio

    apenas levando-se em considerao o contingente populacional das favelas.

    O consumo de bens durveis pode ser um indicador de pobreza. Entretanto nas

    favelas da regio metropolitana, o ndice de domiclios com televiso e geladeira, por

    exemplo, o mesmo que fora delas. Inclusive, segundo Ferreira, h existncia de mais

    pessoas sem banheiro em casa que pessoas sem televiso ou geladeira. O consumo de bens

    durveis est distribudo nos domiclios da regio metropolitana entre 95% com geladeira,

    96% com televiso, 93,4% rdio e 35% mquina de lavar, garantindo a sada da situao de

    pobreza, a despeito das condies fsicas da casa, educao e sade. Este trabalho, dentre

    outros, mostra como o consumo de bens de consumo durveis, para a sociedade capitalista,

    serve como parmetro para a ascenso social e medida de qualidade de vida. Entretanto, a

    pobreza a despeito do consumo de bens durveis, uma realidade tambm fora das favelas,

    inclusive de cidades inteiras como mostra o comentrio do mdico do posto de sade do

    Morro do Cavalo, Dr. Mrcio, ao comparar sua cidade de origem com a comunidade:

    No interior de Minas Gerais, todo mundo isso aqui, ento no tem esse negcio, eu

    fui criado nesse contexto, tem diviso de classes, mas todo mundo convive no

    mesmo espao, todo mundo frequenta tudo. Eu vim de um lugar onde a carncia

    grande, Vale do Jequitinhonha e Vale do Rio doce. Eu cresci vendo esses contrastes.

    (informao verbal)11

    Na regio metropolitana do Rio, os moradores das favelas possivelmente ganharam

    voz medida que se tornaram consumidores. A sociedade de mercado enxerga o indivduo

    enquanto consumidor em potencial. Da o crescimento da importncia social da nova

    classe mdia. O conceito de nova classe mdia, no entanto, alvo de crticas. Ele

    acusado de representar apenas uma faixa de renda, extrada de seu contexto cultural. O

    assunto foi abordado no jornal O Fluminense:

    No final do ms passado, a Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE) da

    Presidncia da Repblica definiu que a nova classe mdia integrada pelos

    indivduos que vivem em famlias com renda per capita (somando-se a renda

    familiar e dividindo-a pelo nmero de pessoas que compe a famlia) entre R$ 291 e

    R$ 1019. Pela definio, 54% da populao brasileira estariam enquadradas na

    classe mdia. ( CLASSE mdia gera polmica, O Fluminense, 2012, p. 11)

    11

    Entrevista concedida por Dr. Mrcio, mdico do Programa Mdico de Famlia no Morro do Cavalo, [jan.

    2013]. Entrevistador Karla Pinho da Fonseca Leite. Niteri, 2013.

  • 31

    A polmica surgiu, segundo o jornal, em razo do baixo valor estimado para a faixa

    de renda da classe mdia, dado que o Brasil sexta economia mundial, levando-se em conta

    seu PIB12

    . Nos EUA, a populao dentro dessa faixa de renda proposta considerada pobre.

    Soma-se a esse fato, outro: a SAE considerou como suprfluos, itens como plano de sade,

    cursos superiores, consulta e tratamentos mdicos, hospitalizao e servios de cirurgia,

    enquanto foram considerados essenciais roupas, remdios, aluguel, transporte urbano,

    alimentao, gua, esgoto, eletrodomsticos entre outros, ou seja, desconsiderou o consumo

    de bens e servios que identificam a classe mdia ao longo da histria; aquela composta por

    pessoas com nvel superior, profissionais liberais que tem acesso a educao particular para os

    filhos, plano de sade etc. Ao longo da reportagem citado o argumento da sociloga Cladia

    Scir, no qual ela afirma estar ocorrendo uma financeirizao da pobreza e no a efetiva

    ascenso de uma nova classe mdia. A questo da sustentabilidade da ascenso de uma nova

    classe mdia posta em xeque quando se trata do acesso aos bens culturais e educao de

    qualidade que ainda possuem acesso difcil nessa na faixa de renda estimada para a classe

    mdia. O consumo sozinho, segundo Claudia, no pode ser parmetro. A representao da

    classe mdia deve, portanto, levar em considerao outros critrios que no digam respeito

    somente ao nvel de renda. Ao mesmo tempo podemos dizer que o consumo em parte define

    grupos de indivduos. Quando identificamos a classe mdia pelo consumo da educao

    privada ou consumo cultural (teatro, cinema, apresentaes de bal), estamos identificando

    um grupo atravs do seu consumo que compe e/ou sinaliza um estilo de vida.

    A nova classe mdia representada, segundo o colunista Artur Xexo, pela

    preferncia por msicas de ax, pagode e sertanejo universitrio, em sua coluna na Revista O

    Globo. Nela ele comenta que os novos consumidores so muito bem vindos, mas que a velha

    classe mdia est perdendo espao pela emergncia da nova classe mdia.

    No gosto de ax. Nem de pagode. Nem mesmo de sertanejo universitrio. Por isso,

    no custa perguntar: d para tocar outra coisa? (...) Ensinaram-me a fechar o ms

    sem contas a pagar. Agora, o governo me alicia. Crdito!Crdito! Crdito! E eu no

    quero comprar uma TV de plasma, nem um segundo telefone celular, nem quero

    passar frias em Porto Seguro. Na verdade estou pensando em vender meu micro-

    ondas e a minha secretria eletrnica. Tornei-me um estranho no ninho. Sou da

    velha classe mdia. (...) onde foi parar a televiso da velha classe mdia? Sempre fui

    noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti s novelas de Ivany Ribeiro em verso

    original. Mas no aguento mais tramas ambientadas na comunidade, sambo na

    trilha sonora, mocinha cozinheira e gal jogador de futebol. Eu quero de volta minha

    novela de Gilberto Braga! (XEXO, 2012, p. 66)

    12

    PIB Produto Interno Bruto

  • 32

    O consumo em certa medida identifica seus consumidores. E, por isso, a

    argumentao sobre o consumo exposta neste trabalho emerge tanto da ideia proposta por

    Sahlins (1979) na identificao do capitalismo como uma ordem cultural que se realiza no

    plano dos bens materiais, dado que a materialidade do capitalismo , afinal, uma forma de

    simbolizar, quanto da identificao do capitalismo como um sistema de representaes

    proposto por Dumont (1996) atravs da ideologia moderna: o individualismo. A sociedade

    moderna para Dumont operou uma revoluo nos valores engendrados ao longo dos sculos

    no Ocidente Cristo. A mais significativa mudana se refere representao do indivduo

    como um valor na sociedade moderna. Em seu argumento Dumont distingue os dois sentidos

    pelos quais a expresso indivduo utilizada. Um deles refere-se ao sentido geral da

    representao do ser enquanto espcie humana, o sujeito da ao, o agente humano particular.

    O segundo diz respeito ao ser moral, independente, autnomo e assim no social tal como se

    encontra na ideologia moderna, o indivduo na sociedade moderna o substrato de palavras

    como liberdade e igualdade. Para salvaguardar a supremacia do individual sobre o

    coletivo preciso garantir a igualdade de todos e a liberdade de escolha do indivduo sob a

    alegao de que sua natureza moral ir gui-lo na busca pelo bem social. Os princpios da

    ideologia moderna e sua relao com a categoria econmico nortearam Dumont em sua

    busca para o entendimento da cultura moderna ocidental.

    A ideologia pode ser entendida como representaes coletivas, termo cunhado por

    Durkheim (2009) para identificar crenas, ideias, valores, smbolos e perspectivas formadoras

    dos modos de pensamento e sentimento que so gerais numa sociedade ou grupo particular e

    que so compatilhadas como uma propriedade coletiva. Para compreender o mundo preciso

    usar conceitos que permitem captar e organizar as experincias percebidas pelos sentidos.

    Representaes coletivas so os conceitos socialmente compartilhados pelos quais os

    indivduos interagem entre si e com a natureza. Dessa maneira possvel dizer que a realidade

    socialmente construda. As representaes coletivas se tornam visveis medida que tomam

    uma forma material em livros, revistas, jornais, msicas. Essas formas documentais

    funcionam como canais sociais que podem influenciar o comportamento dos indivduos.

  • 33

    Captulo 1 - Comportamento e escolha: os limites da racionalidade econmica

    Quando a razo evocada como essncia de certas escolhas, principalmente aquelas

    de cunho econmico, alguns fragmentos so deixados pelo caminho. Isso ocorre porque,

    embora a razo possa parecer em um primeiro momento uma categoria puramente objetiva,

    verificamos que na vida prtica as relaes sociais que requerem um maior grau de

    racionalidade (relaes econmicas), esto, tambm, envoltas por questes morais, polticas,

    sentimentais e ideolgicas que interferem no processo de escolha e suscitam diferentes

    gradaes de sociabilidade.

    Uma relao de troca econmica no se esgota no simples ato de compra e venda. O

    mercado, seja ele uma lgica de troca ou um espao fsico, propicia relaes de sociabilidade.

    fcil perceber esse aspecto quando verificamos relaes de lealdade, confiana e

    credibilidade em relao a uma determinada marca de produtos, a um estabelecimento

    comercial ou a um profissional especfico, seja uma manicure, um cabeleireiro, um

    aougueiro ou um corretor de imveis, entre outros. Portanto, as escolhas do que comprar,

    onde comprar, como comprar e com quem comprar, principalmente quando falamos em

    decises individuais, esto envoltas por um carter tanto objetivo quanto subjetivo. Dessa

    forma, podemos dizer que uma atitude racional no necessariamente aquela desprovida de

    sentimentos, emoes e juzos de valor, mas sim aquela que possui uma lgica que leva em

    considerao outros benefcios, no apenas aqueles ligados puramente a maximizao de

    ganhos materiais.

    A compra pode ser entendida como um processo. No mercado imobilirio, a

    mercadoria vendida cara e de difcil acesso. Para uma grande parcela da populao a compra

    de uma casa s possvel mediante a um financiamento bancrio (emprstimo) cujo

    pagamento feito por um longo perodo (longo prazo), muitas vezes por um perodo de trinta

    ou trinta e cinco anos. Isso quer dizer que a busca por um imvel precisa ser demorada e

    exige que o comprador de alguma forma estabelea com o corretor de imveis uma relao de

    confiana. Em contrapartida, o corretor para obter sucesso no seu ofcio precisa adotar seu

    cliente, lhe dar ateno, conhec-lo bem, identificar suas necessidades para melhor atend-lo.

    Depois de algumas, ou muitas opes oferecidas ao cliente no decorrer dos meses possvel

    encontrar o imvel desejado, ou no. A compra de um imvel residencial realmente um

    processo, por vezes, demorado, o que gera um envolvimento entre as pessoas envolvidas.

    Quando um imvel comprado novo, ou ainda na planta, a relao entre a

    construtora e o comprador perdura at o trmino da garantia do imvel, que geralmente de

  • 34

    cinco anos contados a partir do final da construo e entrega das chaves. Alm disso, um

    aspecto importante que deve ser observado no processo de escolha o contexto da tomada de

    deciso, tanto em relao ao momento de vida do comprador e ainda sua posio

    socioeconmica, assim como ao prprio cenrio socioeconmico do pas. Quanto ao momento

    de vida do comprador, alguns fatores concorrem para a racionalizao da escolha, como o

    papel da ponderao sobre o tempo e o esforo associados escolha, as emoes, a interao

    social e ainda o impacto dos fatores externos como as propagandas de imveis. Seguindo essa

    direo, possvel vislumbrar critrios que direcionam uma escolha.

    Os critrios, que so inmeros, esto inscritos em ns, acumulados pela convivncia

    social e imerso cultural. No entanto, critrios culturais incorporados por ns tambm esto

    sujeitos a interpretaes individuais. Dessa maneira, pertinente inferir que a anlise do

    processo de escolha deve levar em considerao um vasto conjunto de variveis, dentre eles, o

    contexto, as ferramentas cognitivas de avaliao pertencentes cultura nativa e a distino

    entre decises individuais e coletivas. Alis, conforme Weber13

    (1950 apud THIRY-

    CHERQUES, 2009, p. 900) argumenta, uma coisa nunca irracional por ela mesma, mas

    somente quando considerada a partir de um determinado ponto de vista. A compreenso do

    conceito de escolha racional, dessa forma, pode ir alm da viso fundante da cincia

    econmica na qual o ser humano um agente maximizador, e uma escolha racional seria

    aquela em que o indivduo utiliza os recursos que possui com vistas a alcanar o melhor

    resultado. O melhor resultado, no entanto, relativo e no tem haver somente com ganhos

    materiais.

    De acordo com Hermano Roberto Thiry-Cherques em seu artigo, Max Weber: o

    processo de racionalizao e o desencantamento do trabalho nas organizaes

    contemporneas, a modernidade para Weber representou uma reordenao racional da cultura

    e da sociedade exposta em sua obra, Economia e sociedade. Nela ele distingue a racionalidade

    formal, substantiva, meio finalstica e a racionalidade quanto aos valores. Para ele a

    racionalidade formal aquela relativa prtica e ao clculo presentes em procedimentos

    (prticos) burocrticos nos sistemas jurdicos e econmicos, onde so requeridas regras,

    hierarquias, especializao e treinamento. A racionalidade substantiva por sua vez est

    relacionada ao contedo desses sistemas operacionais, ou seja, sua lgica estabelecida

    pelos objetivos e no pelos processos. Seria pertinente dizer que a substancia da economia a

    interao do ser humano com a natureza a fim de obter os recursos necessrios a sua

    13

    WEBER, Max. The protestant ethic and the spirit of capitalism. Nova York: Charles Scribners Sons, 1950.

  • 35

    sobrevivncia. E a formalizao desse objetivo consiste em eleger procedimentos para a sua

    obteno.

    No entanto, tais procedimentos no so os mesmos em todas as culturas assim

    como a racionalidade usada para tal. Isso quer dizer que falar sobre uma racionalizao (geral

    e universal) da produo implicaria afirmar que em todo e qualquer lugar (no tempo e espao)

    seria utilizado o mesmo processo racional de produo: atingir a maior produo possvel

    levando-se em conta a capacidade produtiva, ou seja, a alocao tima dos recursos escassos.

    Pensando nisso, Weber introduz uma segunda distino, as racionalidades meio finalstica e

    valorativa. Elas derivam da ideia de que cada ao corresponde a um tipo e se refere a um

    grau maior ou menor de racionalidade. A ao racional aquela que est relacionada tanto aos

    fins que se pretende alcanar quanto aos meios para alcan-los.

    De modo que um comportamento racional no precisa, necessariamente, obedecer a

    uma lgica finalstica. Pode ser um valor-racional sempre que seus fins ou meios sejam religiosos, morais ou ticos e no diretamente ligados lgica formal,

    cincia ou eficincia econmica. (WEBER14

    , 2000 apud THIRY-CHERQUES,

    2009, p. 899)

    De acordo com Thiry-Cherques, o valor para Weber a concepo de algo legtimo

    que se torna motivo para uma ao. Sabemos, no entanto, que a eleio de um valor um

    processo de luta do qual muitas vezes nem tomamos conscincia. A conduo de uma vida

    consciente, entretanto, em ltima instncia afirmar alguns valores em detrimento de outros.

    Os valores no so demonstrveis por mtodos da cincia: s podem ser objeto da

    compreenso. (...) no h valores que possam ser ditos superiores a outros: a hierarquia dos

    valores cultural, no sentido contemporneo do termo (THIRY-CHERQUES, 2009, p. 900).

    Desse modo, possvel entender que os fins e os meios so direcionados, em alguns

    momentos, pela racionalidade valorativa. Isso significa que em certas escolhas o racional no

    tem a ver simplesmente com a maximizao. Ao examinar certas escolhas de consumo

    possvel verificar a coexistncia de vrias racionalidades que eventualmente buscam a

    maximizao, mas que tambm buscam integrao social, realizao pessoal, recompensas

    materiais, status, poder etc. A compreenso das condies e razes da emergncia dos valores

    sociais engendrados nessa busca necessria para o entendimento da formao do preo de

    um bem. A complexidade das aes humanas torna praticamente impossvel a determinao

    14

    WEBER, Max. Economia e sociedade. Traduo de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Braslia:

    Universidade de Braslia, 2000.

  • 36

    de uma racionalidade pura e universal. O sistema de escolhas e preferncias no obedece a

    uma lgica absoluta nem quanto aos valores nem aos fins.

    Desde que haja conscincia na ao, podemos cham-la de racional. A

    racionalizao o processo que confere significado diferenciao de linhas de ao

    (THIRY-CHERQUES, 2009, p. 901). A ao social na esfera econmica tambm , antes de

    tudo, uma relao social, e como tal, influenciada por valores culturais. Portanto, pode ser

    pensada para alm de uma pura objetivao da maximizao de recursos como demonstra o

    artigo Racionalidade e escolha do professor e economista, Orlando Gomes (2007).

    Na cincia econmica, atualmente, segundo o artigo, duas importantes linhas de

    pensamento tm sido desenvolvidas. Uma diz respeito deciso individual, a outra a interao

    social. Na primeira linha est cada vez mais presente a ideia de que as emoes contam,e,

    alm disso, o contexto temporal e o esforo necessrio deciso tambm contam. Na

    segunda, a problemtica da escolha racional considera o impacto de fatores externos, como a

    publicidade.

    No que diz respeito deciso individual, estudos recentes partem da premissa que a

    vida um misto de razo e emoo, o que torna relevante em muitos processos de deciso,

    inclusive econmicos, a considerao de sentimentos como a inveja, o medo, o prazer, entre

    outros. Quando confrontamos cognio e emoo distingui-se de certa maneira deciso de

    curto e longo prazo, ou seja, no processo de escolha quando optamos por benefcios imediatos

    os sentimentos, de certa forma, prevalecem. J quando a escolha pensada no longo prazo,

    a cognio se sobrepe e colide com frequncia com uma avaliao intertemporal de todos os

    prs e contras envolvidos na deciso. Alm disso, as novas teorias admitem a existncia de

    falhas cognitivas. Mesmo que uma ao seja pautada em um comportamento racional

    extremo, podem ocorrem falhas de percepo, partindo-se do pressuposto de que as

    decises so tomadas face s experincias de vida.

    O raciocnio humano encontra-se preparado para responder essencialmente a

    questes que so de alguma forma familiares os processos mentais associam sempre um novo problema a uma situao j conhecida, mas o novo problema pode

    exigir um tipo de resposta completamente diferente. O reconhecimento de que

    existem certos limites capacidade cognitiva importante para entender que,

    mesmo sob o pressuposto de comportamento racional, no h resultados absolutos e

    inequvocos que sejam gerados por decises humanas. Ao acrescentar os limites da

    capacidade de raciocnio importante perceber que, frequentemente, as decises

    esto dependentes do contexto; um mesmo processo de deciso, enquadrado de

    forma diferente, traduz-se com regularidade em diferentes escolhas. (GOMES, 2007,

    p.56)

  • 37

    Caso uma pessoa seja constrangida a tomar uma deciso em curto espao de tempo,

    ela no poder considerar um nmero muito grande de alternativas, nesse caso a melhor

    soluo possvel poder ser afetada pelo pouco tempo para tomar a deciso. Por exemplo,

    quando uma pessoa busca um apartamento para comprar e possui um prazo limitado para tal,

    em funo de sua sada imediata do imvel no qual est morando, a sua deciso ser afetada

    por esse fator. Ser crucial simplificar seu raciocnio. Da mesma forma quando uma famlia

    est h muito tempo procurando um imvel para comprar, seu cansao e/ou desnimo afetaro

    sua escolha. Mesmo que tais fatores no sejam percebidos conscientemente eles interferem na

    tomada de deciso.

    As falhas cognitivas dizem respeito familiaridade de uma situao. Ela nos induz

    a agir por intuio, ou seja, de forma no consciente, mas mecnica. Mesmo sendo eficiente

    em um ambiente de trabalho, uma ao mecnica, por exemplo, no suscita questionamentos

    sobre melhores modos de fazer. Uma deciso intuitiva , por definio, uma deciso que no

    deixa lugar dvida (GOMES, 2007, p. 60). Nesse sentido, ela permite reduzir custos de

    ponderao de problemas, mas, ao restringir a dvida, restringe tambm a possibilidade de

    encontrar novas solues, eventualmente preferveis soluo intuitiva. Dessa maneira,

    retornamos a Weber (2000). Agir por hbito no agir de maneira racional. A racionalidade

    implica uma ao consciente. Agir de maneira consciente fazer um levantamento de

    informaes e traar estratgias para uma ao eficiente e eficaz.

    A deciso de comprar um imvel, por exemplo, requer um mnimo de informaes

    sobre ele. Porm, a forma pela qual essa comunicao contextualizada afeta a percepo e

    contribui tambm para que seja gerada uma viso acerca de necessidades e preferncias. As

    informaes transmitidas por corretores imobilirios, incorporadoras e construtoras (atravs

    de folders, folhetos e propagandas) afetam sobremaneira as percepes individuais. Da

    mesma forma, informaes de familiares, vizinhos, amigos, notcias de jornais, revistas e

    internet influenciam na tomada de deciso.

    Por exemplo, quando nos dizem que h probabilidade de 99% de fazermos uma

    viagem tranquila, reagimos de forma diferente a quando se afirma que h uma

    probabilidade de 1% de termos um acidente. O modo como se contextualizam os

    fatos tende a afetar as decises. (GOMES, 2007, p. 60)

    Percebemos por esse exemplo que a deciso, mesmo individual, no independente

    da existncia social. Avanando nessa linha de pensamento seria possvel observar que uma

    norma social instituda medida que sua existncia fruto de uma acumulao de

  • 38

    experincias sociais. Essa interpretao prope que a interao social um fator a ser

    considerado na categoria racionalidade. A escolha no reflete apenas a utilidade individual,

    mas a relao com terceiros; noes como poder, prestgio, sociabilidade, estatuto, tica etc.

    (GOMES, 2007, p. 61). De acordo com Orlando Gomes a teoria da escolha discreta abarca a

    noo de que o comportamento em sociedade pode influenciar os processos de deciso.

    Mesmo que a deciso individual seja guiada pela sociedade, ela no deixa de ser

    racional. Os autores mais populares, segundo Gomes so McFadden (1973), Manski e

    MacFadden (1981) e Anderson (1993). Um campo de anlise dessa teoria o mercado

    financeiro, de onde se origina a teoria do comportamento de rebanho, onde as aes

    individuais vo se reproduzindo a partir de um comportamento original. No caso do

    mercado imobilirio, tal comportamento se verifica em processos especulativos. O

    comportamento de empresrios urbanos, aqueles que arcam com os riscos da atividade

    imobiliria ao investirem em novas construes, guiam as decises das famlias quanto

    escolha do local de compra de seus imveis, gerando uma conveno urbana. Como bem

    diz Abramo, a conveno urbana o mecanismo de coordenao que atua de forma tcita e

    implcita, sendo, portanto frgil e podendo ser revertida a qualquer momento (ABRAMO15,

    2011 apud ABRAMO 2007, p. 175).

    A vida em sociedade influencia, ainda que indiretamente, as escolhas individuais.

    Durante a vida, o indivduo passa por um processo de socializao no qual, simultaneamente,

    acontece a interiorizao da exterioridade e a exteriorizao da interioridade. (BOURDIEU,

    1983) Levando-se em conta as condies materiais de existncia e o meio social, so

    produzidas Bourdieu acrescenta ainda que

    disposies que so princpios geradores e estruturadores das prticas e das

    representaes que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem ser o produto da obedincia a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a

    inteno consciente dos fins e o domnio expresso das operaes necessrias para

    atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ao organizadora de

    um regente.( BOURDIEU, 1983, p. 61)

    Tais disposies fazem do indivduo uma pessoa social, ou seja, o seu papel social

    determinar suas distncia e posio sociais dentro de uma certa estrutura social. Isso no

    quer dizer que no seja possvel o desprendimento de certas condutas esperadas, no entanto,

    15

    ABRAMO, Pedro. PAIXO, Luiz Andrs; PONTES, Eduardo. O mercado imobilirio como revelador das

    preferncias pelos atributos espaciais: uma anlise do impacto da criminalidade urbana no preo de apartamento

    em Belo Horizonte. Separata de: Revista Economia Contempornea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 171-197, jan.-

    abr. 2011.

  • 39

    ela requer certo grau de conscientizao devido incorporao da estrutura social atravs do

    seu habitus. Ainda que o individualismo seja o alicerce da sociedade moderna, as decises

    individuais so influenciadas pela estrutura social vigente, mas ao mesmo tempo ela

    apreendia individualmente, ou seja o poder de deciso individual e sujeito a diferentes

    interpretaes, e, portanto, a reproduo social no se d de maneira perfeita.

    Se o individualismo pressupe a liberdade de escolha do indivduo, ao invs de uma

    atitude egosta e maximizadora, o indivduo pode optar por agir de forma no individualista e

    pensar no bem social como forma de alcanar seu bem estar pessoal. Como argumenta

    Gilberto Velho, na sociedade moderna ocidental, os indivduos escolhem ou podem escolher.

    Esse o alicerce do individualismo moderno. No entanto, encontramos dimenses e

    instncias desindividualizadoras, observadas no comprometimento a certas instituies

    sociais (VELHO, 2008, p. 25). possvel encontrar dentro da sociedade capitalista

    comportamentos solidrios tais como projetos sociais, fruto de iniciativas individuais ou da

    unio de grupos de indivduos representados por cooperativas, associaes, instituies de

    caridade. Na comunidade do Cavalo, o comportamento desviante (ao que no objetiva o

    lucro) est representado na comunidade pela Associao das Damas de Caridade So Vicente

    de Paulo. Muitas negociaes de compra e venda no morro foram realizadas por intermdio

    dessa Associao. A falecida diretora, Dona Suely, comprou vrias casas para pessoas

    carentes no morro, assim como ajudou na construo de muitas delas.

    No mercado imobilirio do Morro do Cavalo possvel observar que muitas

    transaes so feitas entre amigos, conhecidos ou vizinhos, o que , para todos, um fator

    positivo, pois torna vivel a compra de uma moradia, inclusive com parcelamento. O fato das

    moradias no morro no pertencerem ao circuito do mercado imobilirio legalizado, torna

    impossvel ao comprador ou ao vendedor recorrer justia no caso de se sentirem

    prejudicados, principalmente em relao ao pagamento parcelado que ocorre contando com a

    boa ndole do comprador, avaliada atravs dos laos de amizade, recomendao de parentes,

    comportamento na comunidade, entre outros. Alm disso, nem sempre a compra de uma

    moradia ou o investimento em benfeitorias referem-se somente a perspectiva de ganhos

    futuros (lucro). Sandra, moradora do Morro do Cavalo, diz saber que o dinheiro que est

    investindo em sua casa, dificilmente ser resgatado com a venda de seu imvel. A localidade

    na qual mora, sofre com constante falta de gua. Segundo ela, j ficou um ms sem gua.

    Embora more no morro h trinta e cinco anos, sua casa foi comprada recentemente; at ento,

    ela morava na casa da me.

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    Permanecer em um lugar familiar um importante critrio de escolha, mesmo

    sabendo que o local escolhido um lugar desvalorizado, como a localidade conhecida como

    Divinia16

    . A proximidade de familiares e amigos permite que a vida individual se torne mais

    fcil, como no caso de Kely, moradora que, nascida no Morro do Cavalo h dezoito anos,

    prefere continuar morando no morro. L ela pode contar a ajuda da sua me. J Cristina, a

    me de Kely pode contar com a ajuda do primo, pedreiro, com a reforma da casa. Viver

    prximo aos familiares traz conformo e segurana e uma rede de sociabilidade importante

    para vida cotidiana, embora o morro ainda no seja um lugar valorizado dentro do mercado

    imobilirio legalmente constitudo. O bem estar gerado pela proximidade de amigos e

    familiares pode ser aumentado mediante o uso do dinheiro para melhoria nas condies gerais

    da moradia e do acesso a servios bsicos de infraestrutura.

    Se o bem-estar pode ser traduzido como felicidade, poderamos nos perguntar se

    dinheiro traz felicidade. Em certo ponto sim, diz a investigao sobre dinheiro e felicidade,

    realizada pelo economista Richard Easterlin, mencionada no livro O valor de nada, escrito

    pelo economista indiano Raj Patel (2010). De acordo com a pesquisa, as pessoas com nveis

    de renda maiores se declaram mais felizes do que pessoas com nveis de renda menores. No

    entanto, em pases onde o nvel de renda suficiente para garantir boas condies de moradia,

    alimentao, gua e energia eltrica, aumentos sucessivos na renda no