a construção retórica do ordenamento jurídico

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  • 7/23/2019 A Construo Retrica Do Ordenamento Jurdico

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    RETRICA COMO METDICA PARA ESTUDO DO DIREITO

    Joo Maurcio Adeodato(Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Pesquisador 1-A do CNPq)

    Currculo do autor em:http://lattes.cnpq.br/8269423647045727

    Resumo:Para as filosofias ontolgicas, essencialistas, claramente dominantesna tradio ocidental e na filosofia do direito atual, a linguagem meroinstrumento, um meio para a descoberta da verdade, que pode ser aparente,para umas, ou se esconder por trs das aparncias, para outras, com todas ascombinaes e ecletismos. O comum a idia de que, com mtodo, lgica,intuio, emoo e todo seu aparato cognoscitivo competentemente aplicado, possvel aos seres humanos chegar verdade, assertiva que coagiria todos a

    aceit-la (racionalidade). No campo tico, a verdade equivale a correto, justoe outros adjetivos laudatrios. Este artigo defende a tese de que isso umailuso altamente funcional e que os precrios acordos da linguagem no soapenas o mximo de garantia possvel, so a nica. E ainda que sejatemporria, autopoitica, circunstancial e frequentemente rompida em suaspromessas, s o que se pode chamar de racionalidade.

    Palavras-chave: retrica metdica metodologia e mtodo retrico historicismo, ceticismo e humanismo.

    Abstract:According to ontological, essentialist philosophies, clearly prevailingin Western tradition and in contemporary philosophy of law, language is a mereinstrument to the discovery of truth, which can be apparent to some, or to hidebehind appearances, to others, with all combinations and eclecticisms. Thecommon idea is that with method, logic, intuition, emotion and all theirknowledge apparatus, it is possible for human beings to find truth, statementswhich would compel everyone to acceptance (rationality). In what ethics isconcerned, truth equals correctness, justice and other laudatory adjectives. Thispaper defends the thesis that this is a highly functional illusion and that theprecarious agreements of language not only constitute the maximum possible

    guarantees, they are the only ones. Moreover, despite being temporary,autopoietic, circumstantial and frequently disrespected, this is all that can becalled rationality.

    Keywords: rhetorical methodic rhetorical methodology and method historicism, skepticism and humanism.

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    Sumrio:

    Introduo: retrica e perspectiva do mundo

    1. Os fundamentos: ethos,pathose logos

    2. Da sofstica retrica: inseres de historicismo, ceticismo e humanismo

    3. Trs dimenses da retrica: como mtodo, metodologia e metdica

    4. Desenvolvimentos futuros para uma retrica metdica desestruturante

    Introduo: retrica e perspectiva do mundo

    Este texto tem por objetivo expor o entendimento de que a retrica uma maneira de experimentar o mundo, com as associaes que o verbo

    acarreta, a exemplo de olhar, sentir, pensar, provar, julgar. umamaneira de ao mesmo tempo observar e estar no ambiente. Isso significa dizerque a retrica no exatamente uma filosofia, nem tampouco uma escola depensamento.

    Dependendo da amplitude que se tenha do conceito de filosofia, aretrica pode estar dentro ou fora dela. Se a filosofia a busca pela verdade, aretrica prescinde desse conceito e, assim, no est dentro da filosofia. OttmarBallweg separa retrica e filosofia segundo esse critrio e exclui desta ltimacorrentes de pensamento como ceticismo, agnosticismo, voluntarismo,nominalismo, positivismo, pragmatismo e niilismo1.

    Mas, se a concepo que se tem de filosofia no tem a verdade comopressuposto de investigao, a a postura retrica se ope ontolgica, ambasconstituindo uma das dicotomias bsicas da filosofia ocidental. Este texto parteda concepo da retrica como uma espcie de filosofia, mais do que umaescola, dadas suas amplitude, longevidade e abrangncia.

    Esse tipo de filosofia se caracteriza por achar que a linguagem (retrica) o ponto comum dessas realidades em que vivemos (Blumenberg) e, comotal, o nico campo para o conhecimento bem peculiar que o ser humano podeter do mundo (o conhecimento retrico). So retricas todas as concepesfilosficas que partem de uma antropologia pobre, enquanto so ontolgicastodas aquelas que tomam por base uma antropologia rica. Transcreva-se umpequeno resumo do que foi estudado com mais detalhes anteriormente e queagora se toma como pressuposto j discutido:

    Na linha de Arnold Gehlen, Hans Blumenberg resume em duastendncias opostas as bases antropolgicas de uma evoluo na concepo dateoria do conhecimento que pode ser detectada no Ocidente, diviso que sepode fazer aqui corresponder dicotomia essencialismo versus retrica, ou

    1 BALLWEG, Ottmar. Phronetik, Semiotik und Rhetorik, in: BALLWEG, Ottmar; SEIBERT,

    Thomas-Michael (Hrsg.). Rhetorische Rechtstheorie. Freiburg-Mnchen: Alber, 1982, p. 27-71.

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    dicotomia verdade versus conjetura. Uma das mudanas de paradigma, naperspectiva da modernidade e da ps-modernidade, seria exatamente deixar dever o ser humano como espcie triunfante que domina a natureza, constri seuprprio mundo e representa a coroa da criao, como queriam a filosofia dahistria e a biologia evolucionria, para entend-lo como ser retardado,

    metafrico, intermediado em sua relao com o meio ambiente, dominado pelanecessidade de compensao em virtude de seu distanciamento da naturezacircundante. Na terminologia de Gehlen, o ser humano ora visto pelaantropologia filosfica como um ente ricoou pleno(reiches Wesen), ora comoum ente pobre ou carente (armes Wesen), segundo suas relaes com omeio circundante. 2

    Para as filosofias ontolgicas, essencialistas, a linguagem meroinstrumento, um meio para a descoberta da verdade, que pode ser aparente,para uns, ou se esconder por trs das aparncias, para outros, com todas ascombinaes e ecletismos. O importante a idia de que, com mtodo, lgica,intuio, emoo e todo seu aparato cognoscitivo competentemente aplicado, possvel aos seres humanos chegar verdade, a uma concluso que coagiriatodos a aceit-la. No campo tico, a verdade equivale ao correto, ao justo. Paraos retricos dos mais diversos matizes, contrariamente, o ponto comum aconvico de que isso uma iluso e a linguagem no apenas o mximo deacordo possvel, o nico. E ainda que esse acordo seja temporrio,circunstancial e muitas vezes rompido, s o que se pode chamar deracionalidade.

    Enquanto pleno, o ser humano possui o critrio e capaz de chegar verdade, servindo-lhe a lngua apenas como instrumento e a retrica comosimples ornamento, pelos quais aquele que fala pode influir no meio de formamais ou menos eficaz; como ser deficiente ou carente, o ser humano incapazde perceber quaisquer verdades a respeito do mundo, independentemente deum contexto lingstico, nica realidade artificialcom que capaz de lidar.

    Assim colocado o problema: a linguagem e tudo o que se conven-cionou chamar de inteligncia, mente, esprito, pode ser visto como umplus,como habitualmente feito na cultura ocidental, mas tambm como um minus.E o que se denomina livre arbtrio ou liberdade resulta de um plus ou de umminus em relao natureza? A liberdade pode ser vista como algo sublime

    que assemelha o ser humano a Deus e o torna superior aos demais seres. Mastodas essas caractersticas humanas tambm podem ser pensadas, ctica oubiologicamente, como um defeito no cdigo gentico, gerando inadaptao aomundo e conflitos, inexistentes entre abelhas e formigas. 3

    2 ADEODATO, Joo Maurcio. Conjetura e verdade, in: ADEODATO, Joo Maurcio. tica eretrica para uma teoria da dogmtica jurdica. So Paulo: Saraiva, 2007 (3. ed. rev. eampl.), p. 309 s.

    3ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do direito uma crtica verdade na tica e na cincia

    (em contraposio ontologia de Nicolai Hartmann). So Paulo: Saraiva, 2005 (3 ed. rev. eampl.), p. 235 s. Todo o livro trata dessa dicotomia.

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    V-se facilmente como a concepo da filosofia como retrica, maismodesta, vai levar a diferenas relevantes no que concerne teoria doconhecimento e postura tica diante do mundo.

    A retrica tambm poderia ser dita um mtodo filosfico, mas essa

    afirmao estaria incompleta, na medida em que outra tese aqui exatamentetentar mostrar que a retrica, alm de mtodo, consiste tambm de umametodologia e de uma metdica, para isso tomando por base a distino entreretrica material, prtica e analtica, que ser discutida adiante.

    Tenta-se assim cooperar para combater um equvoco bem difundido, noapenas entre o vulgo, mas tambm no meio filosfico, qual seja, o de queretrica exclusivamente ornamento e estratgia para influir na opinio dosincautos. Mesmo considerando a importncia dessa sua funo, a retrica vaimuito alm dela e pode servir como instrumento para situar o ser humano demodo mais adequado no mundo, tanto no que concerne ao conhecimento,

    quanto naquilo que diz respeito ao relacionamento com os demais sereshumanos.

    Tal modo de abordagem presta-se a anlise em filosofia do direito e emoutros campos discursivos, inclusive no estudo dos paradigmas das cinciasbiolgicas e matemticas, pois descreve uma situao do prprio conhecimentohumano e de sua linguagem. Tambm a cincia um meta-acordo lingsticosobre um ambiente lingstico comum, o qual tambm acordado. A intenodo texto sugerir a anlise retrica diante de paradigmas empricos e conceitosprimordiais do direito tributrio, mas o alcance da postura retrica muito maisamplo.

    Aquelas duas inclinaes (ontolgicas e retricas), que vo marcar acultura ocidental, revelam-se desde cedo no radicalismo das oposies naGrcia antiga: para Parmnides, nada muda, pois o movimento uma iluso eo conhecimento, imanente, sua garantia j est no ser humano; para Herclito,tudo muda e s a mudana tem carter permanente, sendo esse mundoexterior em mudana o ponto mais firme para o conhecimento, que transcendente, pois tudo passa, nada permanece (

    pnta rei oden mnei na sntese tardia de seu pensamento).

    O grau de originalidade e afirmao de certeza das diversas correntesque exprimiram essa oposio na filosofia extremamente varivel, mas pode-se dizer que os racionalistas vm confrontando os empiristas pelo menos atDescartes e Locke e que as snteses tentadas por Kant, Hegel e outrospensadores no resolvem a oposio.

    Resta claro, nesse embate, que as ontologias tm prevalecido nasconcepes filosficas do Ocidente, de todo o mundo, sobretudo aps a vitriados monotesmos e a defesa intransigente de sua prpria verdade. Deixando delado todo o vis retrico que acompanha a civilizao ocidental desde asofstica, a autora afirma que A filosofia uma deliberao orientada por umvalor: a verdade. o desejo do verdadeiro que move a filosofia e suscita

    filosofias

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    , exatamente interpretando uma frase de Kant que parece expressar4CHAU, Marilena. Convite filosofia. So Paulo: Atica, 2003, p. 88.

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    o contrrio: no se aprende filosofia, mas a filosofar. No se trata, no caso,apenas da tradicional defesa platnica do critrio da verdade: talvez a verdadeseja mesmo corolrio de uma necessidade atvica do ser humano porsegurana, verdade na teoria do conhecimento, justia na esfera tica.

    No Ocidente, o domnio de uma forma de racionalismo, que culmina emDescartes, transparece nas diversas lnguas, plenas de consoantes, quetemperam as vogais, de controle mais difcil, diferentemente do que ocorre nochins, por exemplo. Temperam no sentido musical tcnico mesmo. Temperamcom os dentes, a lngua, os lbios, o palato. Como as consoantes, osinstrumentos e a msica do ocidente racionalizam os sons exatamentetemperando-os, o que significa definindo-os, seja por meio dos dedos doviolinista, da afinao do piano ou das formas de partituras, tonais adodecafnicas. Por isso a msica oriental soa indefinida aos ouvidosocidentais.

    Conhecendo esse ambiente, h tambm motivos estratgicos para adefesa da verdade, pelo menos entre os juristas prticos, que escondem ocarter retrico de sua profisso para fortalecer os prprios argumentos. Aodefender uma verdade da lei e dos fatos, sem reconhecer que se trata demeras opinies, o jurista apresenta-se como terico ou cientista e no comodoutrinador ou dogmtico5.

    A retrica surge ligada sofstica e herda o preconceito contra ela, oqual leva a sua identificao com a erstica, colocando em um mesmo planoentimemas e erismas, os falsos juzos6. Mais correto ver o erisma como umdos tipos de encadeamento de juzos, de argumentos sofsticos, diferente do

    entimema. E, ainda assim, o juzo erstico tem dois sentidos bsicos: o de falsoargumento, uma associao pejorativa feita sofstica, como o objetivo devencer a qualquer preo, e o de controvrsia, do dissoi logoi, ligado agonstica, arte do debate no discurso. A tradio anti-retrica no apenasidentifica entimema e erisma, como tambm reduz o prprio erisma a umaacepo negativa, que no a nica.

    Aqui, procedendo analiticamente e tentando afastar juzos de valor, poisque todo ser humano por vezes argumenta eristicamente, mesmo no sentido doengodo, pode-se definir a erstica como uma forma de argumentao que seutiliza da ignorncia do adversrio, sobre qualquer assunto, para lev-lo a

    contradies, confuses, afirmaes inverossmeis ou falsas, e assim vencer odebate. Observe-se que as afirmaes podem ser conscientemente falsas, isto, o orador pode saber que est mentindo, mas isso no ocorrenecessariamente; e objetivamente falsas no podem ser, pois isso implicariauma certeza que ultrapassa o controle pblico da linguagem, conforme se ver.

    5 BALLWEG, Ottmar. Phronetik, Semiotik und Rhetorik, in: BALLWEG, Ottmar; SEIBERT,Thomas-Michael (Hrsg.). Rhetorische Rechtstheorie. Freiburg-Mnchen: Alber, 1982, p. 38-39.

    6 ADEODATO, Joo Maurcio. O silogismo retrico (entimema) na argumentao judicial, in:

    ADEODATO, Joo Maurcio. tica e retrica para uma teoria da dogmtica jurdica. SoPaulo: Saraiva, 2007 (3. ed. rev. e ampl.), p. 325 s.

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    O fato que poucos crculos filosficos causam tanto debate econtrovrsia como o da sofstica. Seus defensores ora so vistos comopoliticamente de esquerda, ora como de direita, desde os sofistas clssicos,que se contrapunham a Scrates, Plato e Aristteles, at os cticoscontemporneos. So, por um lado, considerados sintoma e mesmo causa da

    decadncia da Polis grega e, por outro, progressistas, modernos, atiluministas. Relativistas, niilistas, agnsticos, individualistas, cticos epositivistas so alguns dos eptetos aplicados aos sofistas, todos comfundamento7.

    Este texto comea com as bases sofsticas e aristotlicas da retrica naGrcia antiga, mostra sua evoluo diante da insero das concepesfilosficas do historicismo, do ceticismo e do humanismo, para, finalmente,tentar desenvolver criativamente a concepo tripartida da retrica, sugeridapor Ottmar Ballweg a partir da obra de Charles William Morris.

    Deve-se insistir que a inteno no expor o pensamento dessesautores, no se trata exatamente de suas definies, pois no se pode dizerque endossariam os inmeros adendos e complementaes feitos sua revelia.

    1. Os fundamentos: ethos, pathose logos

    Essas trs expresses so utilizadas na Retrica de Aristteles comomeios de persuaso na comunicao e compem a auto-apresentao dosoradores: a primeira espcie depende do carter pessoal do orador; asegunda, de provocar no auditrio certo estado de esprito; a terceira, da

    prova, ou aparente prova, fornecida pelas palavras do discurso propriamentedito 8. Vo impregnar toda a terminologia retrica posterior e precisam serrapidamente explicitadas aqui para que se compreenda o que significa a atituderetrica.

    O grande problema, comum quando se estudam temas e expresses detamanha longevidade e importncia, o alto grau de porosidade lingstica daspalavras; ao longo de tantos anos, h interseces, diferenciaes, traduesou simplesmente confuses entre os termos.

    Em Aristteles colocada claramente a juno entre retrica e virtudemoral, fazendo o ethos acompanhar a virtude (aret) e a ponderao ouprudncia (phrnsis), muito embora o carter necessrio dessa correlaotenha sido questionado desde o incio, debatendo os eruditos sobre diferentes

    7 KIRSTE, Stephan. Einleitung, in: KIRSTE, Stephan; WAECHTER, Kay; WALTHER, Manfred(Hrsg.). Die Sophistik Entstehung, Gestalt und Folgeprobleme des Gegensatzes vonNaturrecht und positivem Recht. Stuttgart: Steiner, 2002, p. 7-16. GAST, Wolfgang. Die sechsElemente der juristischen Rhetorik: Das Modell rhetorischer Kommunikation bei derRechtsanwendung, in: SOUDRY, Rouven (Hrsg.). Rhetorik Eine interdisziplinre Einfhrungin die rhetorische Praxis. Heidelberg: C. F. Mller Verlag, 2006, p. 30. E GUTHRIE, W. K. C. Thesophists. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 51.

    8 ARISTOTLE. Rhetoric, trad. W. Rhys Roberts. Col. Great Books of the Western World.Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990, v. 8, I, 2, 1356a1-5 e 14-16, p. 595.

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    critrios para separao conceitual entre ethos, aret e phrnsis. Da mesmamaneira que Aristteles insiste para que a retrica no possa ser usada semuma boa tica, opinies contrrias vem a retrica como um instrumento paraquaisquer fins. Exatamente a presena dessa controvrsia atesta o problema darelao milenar entre retrica e ethos.

    Etimologicamente, a palavra ethos j parece trazer uma confluncia ouevoluo de duas palavras gregas, semelhantes, mas distintas: de um lado(, thos), significando costume, uso, hbito, e de outro (, thos), significando carter, forma de pensar. No grego arcaico umtermo no se distinguia do outro9. Depois da diferenciao, porm, ainda hojese percebem esses dois sentidos na palavra tica: um social e um pessoal.

    O ethosdesignava, assim, um carter que resultado do hbito, que sepercebe na aparncia, nos traos, nas caractersticas, no olhar, no porte.Inicialmente, com esse sentido mais fsico, o lugar onde se tem o hbito de

    viver (habitar), a que se est acostumado, inclusive os animais; a passa adesignar uso, costume, maneiras; uma terceira acepo a de disposio decarter, no sentido de inclinao a determinadas atitudes e escolhas humanas,como ter um ethos sonhador, colrico ou melanclico; e um quarto, talvezposterior, refere-se impresso produzida por um orador nos circunstantes, oque j vai se aproximar do sentido depathos10.

    A palavra tica j vem significar o conjunto de conhecimentosrelacionados ao ethos. Mas no apenas a doutrina ou disciplina para estudodo ethos, mas tambm esse prprio ethos, no sentido de designarsimultaneamente a meta-linguagem (estudo do carter humano) e a

    linguagem-objeto (o carter humano, tal como ele se apresenta). Outrosautores preferem denominar essa tica-objeto de moral, reservando aexpresso filosofia moral para o conhecimento do objeto11.

    importante reter que, no plano da meta-linguagem, processou-se maisuma diferenciao: tica expressa, de um lado, o estudo dos fins queefetivamente guiam a conduta e dosmeiosque conduzem a esses fins, todoschamados valores; de outro, refere-se ao estudo das maneiras decontrolar e guiar esses meios e fins. Para dar um exemplo, pela primeiraperspectiva, o conhecimento tico mostra que indivduos inseguros tendem a seaproximar de bajuladores, este um dado emprico; pela outra, que tanto

    bajuladores como inseguros devem ser evitados (ou louvados, dependendo datica). A primeira a tica descritiva, a segunda, a prescritiva.

    Um dos argumentos eficientes, a favor da tica prescritiva comoperspectiva gnoseolgica (plano da meta-linguagem) mais adequada, que a

    9PELLEGRIN, Pierre. Le Vocabulaire dAristote. Paris: Ellipses, 2001, p. 23 s.

    10 LIDDEL, Henry George e SCOTT, Robert (comp.). A Greek-English Lexicon. Oxford:Clarendon Press, 1996, p. 480 e p. 766. BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec Franais(rdigavec le concours de E. Egger). Paris: Hachette, 2000 (27e. ed.), p. 581 e p. 894.

    11CHAU, Marilena. Convite filosofia. So Paulo: tica, 2001, p. 339 s.

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    abordagem descritiva j est a cargo da sociologia, da antropologia, dapsicologia e de mais outras cincias12.

    Para desviar do problema, incluindo todos os planos, vai-se aqui fazer aequivalncia entre esses dois sentidos tradicionais da expresso tica (meta-

    linguagem e linguagem-objeto), um dos quais (meta-linguagem) se subdivideem mais dois (tica descritiva e prescritiva) o que resulta em trs acepes ,sugerindo uma outra tripartio: retricas material, prtica e analtica.

    Pathos, plural pth, significa paixo, emoo, sentimento. Fora doscrculos filosficos, a expresso era usada na linguagem comum e designavaqualquer forma de sentimento, mais no sentido de sofrimento, em oposio afazer ativamente. Na Retrica de Aristteles, o pathos est associado aoouvinte e o ethosao orador, ainda que essa associao tenha diminudo e atdesaparecido em autores posteriores. O conceito de pathos firma-se paradesignar qualquer emoo de dor ou alegria, por meio da qual as pessoas se

    modificam de tal modo que suas decises se tornam diferentes do seu estadohabitual. No Renascimento, a retrica dopathos sistematizada como parte datpica, reunindo os denominados argumentos patticos.

    Mas, alm de significar esses estados dalma, pathos designa aexpresso ou articulao desses sentimentos e tambm, o que mais interessacomo sentido retrico, indica uma qualidade do discurso, que consiste emdespertar no ouvinte os mesmos sentimentos que o orador deseja transmitir. Aest o ponto mais importante: o pathos que desperta o pathos por artes daretrica. Essa transmissibilidade pattica do discurso se d quando o oradorconsegue uma disposio contrria quilo que quer atacar (indignao,

    deeiinosis, indignatio) ou adeso quilo que quer defender (compaixo,comiserao, eleeinologia, miseratio).

    A importncia dada ao pathos pelos oradores parece ter sido muitogrande na retrica sofstica ao tempo de Aristteles, pois ele faz crticas aosdiscursos excessiva ou exclusivamente circunscritos ao pathos. Mesmo assim,em sua tica, apesar de os sentimentos serem considerados irracionais,Aristteles destaca a importncia do pathos e v uma relao estreita entrepathos e ethos, pois os afetos precisam ser controlados pela virtude docarter e alcanar um meio-termo desejvel racionalmente, prudentemente, ametriopatiaentre os extremos malficos das paixes, pois ...a virtude refere-se

    a paixes e aes, nas quais o excesso uma forma de fracasso... 13.Hoje, o adjetivo pattico ainda mostra a vitria desse controle apolneo

    (Nietzsche), de Aristteles a Kant, aparecendo sempre com sentido excessivo,pejorativamente. Isso porque, como j advertia a retrica antiga, embora semas ilaes de Aristteles, o grande perigo dopathos o exagero, transformar

    12NERI, Demtrio. Filosofia moral manual introdutivo, trad. Orlando Soares Moreira. SoPaulo: Loyola, 2004, p. 27-29.

    13ARISTOTLE. Nichomachean Ethics. W. D. Ross. Col. Great Books of the Western World.Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990, v. 8, II, 5-6, 1106b20-25, p. 352.

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    a indignao ou a compaixo em afetao. Isso torna o pathosvazio, torna-omuito profundo, bathos.

    Essa ligao entre pathos e ethos, em Aristteles, est no contexto deconsider-los formas de persuaso retrica, ao lado do logos, como dito. E os

    raciocnios demonstrativos do logos no tinham o prestgio que a cincialgica lhes veio emprestar na modernidade. H uma conscincia clara, j naGrcia antiga, de que certos assuntos humanos, assim como determinadostipos de auditrio, pouco tm a fazer com a razo lgica. Mesmo assim, essarazo analtica, tal como entendida hoje, de carter cogente, constitua apenasum dos aspectos da palavra.

    O termo logos, plural lgoi, passou a ser traduzido como razo oucincia, mas originalmente parece ter significado linguagem. O primeirosentido de logos(na forma verbal lgein) falar, dizer, designando a princpioapenas o prprio ato, mas depois tambm o resultado da ao, ou seja, a fala

    mesma. A segunda conotao adquirida pela palavra a de reunir, colecionar,como em katlogos. Esses sentidos permanecem ligados palavra logosdesdeseu aparecimento, assim como os de razo, argumentao, definio,pensamento, verbo, orao etc., muitos deles com freqente emprego naretrica14.

    O sentido de logosguarda certa oposio com o de rgon, que significaresultado, efeito, efetividade, realidade e atualmente utilizado por Ballweg,como se ver adiante. A distino entre logose rgonaparece em Anaxgorase os sofistas a fazem equivaler quela entre nomosephysis, respectivamente,emprestando assim um carter tambm normativo ao logos. S depois surge a

    lgica na acepo atual, mas fica competindo com vrios outros sentidosdurante longo tempo. Observe-se ainda que o estudo metdico do pensamentoracional-dedutivo chamado por Aristteles de analticae no de lgica, estaexpresso utilizada para a arte da disputa argumentativa; para o filsofo, aanaltica e no a lgica que se ope retrica. Na mesma direo, sofistascomo Iscrates definiam a retrica como a arte do logos.

    Em outras palavras, logos linguagem em sentido performtico, comtodas as suas estratgias e matizes, no designa apenas o sistema de regrasdirigentes do pensamento. S posteriormente separaram-se o logos lgico darazo e os mbitos da opinio, da percepo e do mito. Por isso Protgoras j

    defendera o dissoi logoi, afirmando que, em qualquer tema, possvel manteropinies contrrias. Da porque todas as coisas so ao mesmo tempo boas ems, justas e injustas, verdadeiras e falsas.

    Esse o logosda retrica.

    14 UEDING, Gert (Hrsg.). Historisches Wrterbuch der Rhetorik, Band 5. Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994, p. 624 s.

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    2. Da sofstica retrica: inseres de historicismo, ceticismo ehumanismo

    Uma tese aqui que a retrica nasce da sofstica e torna-se maisextensa do que ela. Isso se deve a acrscimos, diferenas conceituais e novas

    atitudes que foram fornecendo sofstica inseres mais filosficas, que atransformaram em retrica. As principais so as contribuies do historicismo,do ceticismo e do humanismo.

    Essa viso no de maneira alguma nica. Para outros autores, osurgimento da retrica e da sofstica paralelo, ficando a retrica com areflexo sobre a linguagem e a sofstica com a reflexo sobre o poder, o que seteria tornado o critrio definitivo de sua separao15.

    Esse processo toma grande impulso com a virada humanista, tambmchamada de socrtica, depois da qual a filosofia passa a se ocupar mais do serhumano e da tica do que do cosmos, modificando a tradio pr-socrtica dos

    filsofos que procuravam uma ontologia da natureza, mais semelhantes aosmodernos astrnomos e fsicos. Essa mudana humanista no deve seratribuda apenas a Scrates, insista-se, mas tambm aos sofistas, quedisputavam com os socrticos em torno das razes do bem e do mal.

    Essas razes antigas do humanismo passam para a Repblica Romana,para o chamado crculo cipinico, descrito por Scipio Aemilianus (185-129 a.C.), e o studia humanitatis, conceito j presente em Ccero (143-106 a. C.).Mais longe ainda podem-se detectar suas origens em Herclito, precursor jreferido, que distingue o ser humano dos demais seres vivos por meio de razoe linguagem (logos), carter distintivo de humanidade.

    Primeiro, ento, o historicismo, pois a histria era considerada umaparte da retrica na Grcia Antiga e consistia nos relatos exemplares dascondutas eticamente positivas ou negativas, aquelas condutas que poderiamfornecer exemplos para uma argumentao convincente. Esses exemploshistricos seriam, por isso mesmo, uma concretizao da persuaso, umargumentum auctoritatis feito carne. Aristteles afirma que um argumento(entimema) baseado em um exemplo que as pessoas crem ter realmenteocorrido mais convincente do que quando no h essa crena.

    Foi a revoluo do racionalismo cartesiano que estabeleceu uma

    concepo etiolgicae escatolgicada histria. A nova histria passou a sercausal, vista como um estudo natural de causas e efeitos, a exemplo dos novosparadigmas da fsica e da biologia, assim como progressista, na medida em quesupostamente se evolui para melhor. Comea-se a fingir a hiptese de umnexo causal entre presente e passado, inclusive fazendo prevalecer o moderno

    15 BALLWEG, Ottmar. Phronetik, Semiotik und Rhetorik, in: BALLWEG, Ottmar; SEIBERT,Thomas-Michael (Hrsg.). Rhetorische Rechtstheorie. Freiburg-Mnchen: Alber, 1982, p. 33.

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    frente ao antigo, assentar a superioridade do presente, fruto do denodadoesforo do homem.16

    O historicismo da retrica sisfico, procura ir contra essas perspectivasetiolgica e escatolgica. A histria no deve ser pensada em termos causais

    nem caminha para algum ponto previamente determinvel, exatamente porqueos consensos temporrios de sentidos so circunstanciais e infinitamentevariveis, por vezes, contraditrios. Assim como Ssifo no sabe at onde,montanha acima, conseguir transportar a pedra, a humanidade no sabeaonde vai chegar. E cada tempo histrico construdo a cada momento17.

    a viso historicista (ou histrica, tanto faz) que permite compreender odesprestgio a que uma viso improcedentemente parcial metonmica levoua retrica. Pensando na perspectiva tripartida tomada aqui, as filosofiastradicionais identificaram a retrica exclusivamente com seu vis estratgico,deixando de lado o aspecto material da retrica como nica realidade possvel e

    assumindo que toda retrica busca convencer e influir sobre a conduta alheia.Por outro lado, dentre os trs fundamentos da retrica procedeu-se a

    outra tomada da parte pelo todo (ou da espcie pelo gnero), ao se identificara retrica com seu aspecto pattico, sua funo de despertar emoes. Asontologias da verdade se apossaram das retricas do logos e do ethos,colocando a gnoseologia e a tica como principais preocupaes d A filosofia,imputando aos retricos no apenas um mero pathos, mas um pathos semethosnem logos, reduzido a argumentos falaciosos, enganadores. No veio toa a m fama dos retricos, ainda que plena de equvocos.

    Nem na Europa medieval, com toda a preponderncia de Plato e daparte ontolgica de Aristteles, a retrica foi to desconsiderada como no incioda modernidade, pela nova mentalidade cartesiana, exatamente para combatero historicismo e o humanismo renascentista que haviam ressuscitado com todafora as fontes filosficas da retrica antiga. A modernidade esse hiato, quetorna a retrica ainda mais marginal, at a virada lingstica do sculo XX,quando recomea alguma ateno s perspectivas retricas.

    A crtica e a mudana de paradigmas a que a modernidade vai submeteresse domnio temporrio do humanismo, que se instalara ao longo doRenascimento, j antecipada por Mulcaster, em 1580, e por Francis Bacon,pregando uma maior dedicao s cincias naturais, reclamando de umaeducao excessivamente retrica. Algum tempo depois, com o racionalismocartesiano e hobbesiano, a nova mentalidade estava instalada no Ocidente e ahistria deixa de ser vista como registro de relatos exemplares e passa a serconcebida como causal, reveladora de nexos naturais entre fatos. At hoje.

    16 GIL CREMADES, Juan Jos e RUS RUFINO, Salvador. Estdio preliminar, in THOMASIUS,Christian. Historia algo ms extensa del derecho natural. Madrid: Tecnos, 1998, p. IX-XLVII, p. X-XI.

    17ADEODATO, Joo Maurcio. tica e retrica para uma teoria da dogmtica jurdica. SoPaulo: Saraiva, 2007 (3. ed. rev. e ampl.). Sobre Ssifo, p. 266; sobre a etiologia, p. 391 s.

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    Mas o humanismo j se incorporara retrica. Os fundamentos dohumanismo j estavam na reviravolta de Scrates e no toa que aRenascena italiana inspirava-se no helenismo. Na mesma fonte inspirou-se ohumanismo da Roma clssica, de Ccero e do Crculo Cipiano, dentre outros,ficando a Idade Mdia como o interregno de um teologismo que precisava ser

    combatido. Mesmo com a banalizao e desintegrao do conceito dehumanismo na modernidade, ao mesmo tempo atacado por cientificistas,estruturalistas, marxistas, essa revoluo cultural vem coincidir com ahegemonia europia no mundo desde o final do sculo XV at meados dosculo XX18.

    Com a importncia da intersubjetividade trazida pelo humanismo, aperspectiva retrica no se pode embasar nas certezas subjetivas, na razosolipsista do mtodo cartesiano. Linguagem implica convivncia, pois no hcomunicao em isolamento. Implica pluralidade e, assim, relativizao dasconcepes de verdade, pois os seres humanos percebem diferentemente arealidade. Ao contrrio das correntes filosficas dominantes ontologiasessencialistas ou convencionalistas, histrico-escatolgicas e evolutivas , asquais imaginam o conhecimento e a tica como em alguma medida absolutos eindependentes da linguagem, ou fruto de um desenvolvimento histricoobjetivista, o humanismo defende que o conhecimento s possvel dentro dalinguagem e do relativismo que ela necessariamente traz. Logo, retrico.

    Uma das principais obras de estudo era a Rhetorica ad Herennium,atribuda a Ccero, mas depois questionada em sua autenticidade. A visotaxonomista da obra, assim como a de muitas outras do gnero, pode serexemplificada pelas partes fundamentais do discurso, presentes nas obrassobre retrica: inventio (criar a plausibilidade do argumento), dispositio(organizar as informaes), elocutio (adequar o pensamento a sua formas deexpresso), memoria (reter a informao) e pronuntiatio (conteno, posturada voz, sobriedade, elegncia no falar ou escrever) 19.

    As classificaes e critrios variam muito, contudo, podendo-se falarnessas partes como estgios de produo do discurso, reservando adenominao de partes orationis para exordium, narratio, argumentatio econclusio ou peroratio, cujos detalhes no interessam aqui20. So apenascitados para exemplificar algo do currculo humanista.

    Retrica ornamento, sim, mas no apenas ornamento. Ornatus aqualidade do orador que coroa o discurso e a palavra a mesma empregada noestar preparado para a batalha. Observe-se a expresso ornado e no

    18LAFAYE, Jacques. Por amor al griego. La nacin europea, seorio humanista (siglos XIV-XVII). Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2005, p. 21-25.

    19A obra continua sendo publicada integrando as de Marco Tlio Ccero. Retrica a Herennio.Obras Completas de Marco Tulio Cceron (em 16 tomos). Madrid: Librera y Casa EditorialHernando, 1928, tomo III.

    20 UEDING, Gert. Was ist Rhetorik?, in: SOUDRY, Rouven (Hrsg.). Rhetorik Eine

    interdisziplinre Einfhrung in die rhetorische Praxis. Heidelberg: C. F. Mller Verlag, 2006, p.13-23.

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    ornamentado. Essa armadura consiste do conjunto de qualidades quecompem o estilo, a habilidade culminante do grande orador21. A Retorica adHerennium compara literalmente a eloqncia a uma arma poderosa paraaniquilar os inimigos.

    J antes de Quintiliano a retrica se divide em uma teoria daargumentao, tpica, e uma teoria das figuras, mais formal. curioso notarcomo a nfase sobre o ornamento parece vir mais dos adversrios do quepropriamente dos retricos. Claro que isso no desmerece a estratgia doornamento, mas a importncia da tpica como contedo persuasivo dodiscurso mostra que o formalismo radical, basicamente classificatrio eexclusivamente dedicado a essas figuras de estilo, de que por vezes soacusados os discpulos de Quintiliano, no resiste a uma anlise mais acurada.

    Paradigmtica a respeito a viso de um desses discpulos, por volta de1815, no Recife: Frei Caneca no reduz a retrica a uma teoria de figuras e

    estilos, simplificao at hoje difundida; mantm-se fiel a Aristteles econsidera tambm os aspectos tpicos da retrica. Com efeito, ainseparabilidade entre a anlise formal das figuras de linguagem e ocontedo argumentativo, que o orador deseja transmitir, sempreenfatizada. Se os motivos em uma perorao podem ser ticos ou patticos,por exemplo, a escolha precisa ter como critrio e fundamento a finalidadetpica daquele discurso e o devido decoro precisa levar em considerao ...apessoa do proprio orador; as pessoas dos seus ouvintes; e as pessoas cercadas quaes versa o seu discurso 22. Tais consideraes so tpicas, no sentidode que os contedos persuasivos s sero preenchidos por lugares-comuns,vlidos para aquele ambiente discursivo, aquele contexto retrico,precariamente generalizveis e de difcil controle. O humanismo vem preenchera tpica de contedo tico e Frei Caneca apenas um dentre vrios autores a irnessa direo.

    Faltam, ento, algumas palavras sobre o ceticismo, cuja ligao com ohistoricismo tambm forte. Os processos histricos so pensados por meio deconceitos amplos que se expressam em palavras, porque no h outro jeito;porm, muito mais que meras palavras designativas de objetos, os processoshistricos simplesmente no podem ser definidos. Diz Nietzsche, visionrio davirada lingstica de Wittgenstein, que s aconteceria no sculo XX: Todos os

    conceitos nos quais se compe semioticamente um processo inteiro escapam definio; definvel somente aquilo que no tem histria. 23

    21 SKINNER, Quentin. Reason and rhetoric in the philosophy of Hobbes. Cambridge:Cambridge University Press, 1996, p. 49 s.

    22 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Tratado de eloqncia. In: Obras polticas eliterrias (colecionadas pelo Comendador Antonio Joaquim de Mello). Recife: TypographiaMercantil, 1875 (ed. fac simile, 1972, p. 63-155), p. 69, 77 epassim.

    23NIETZSCHE, Friedrich. Zur Genealogie der Moral Eine Streitschrift, inCOLLI, Giorgio

    MONTINARI, Mazzino (Hrsg.): Friedrich Nietzsche Kritische Studienausgabe infnfzehn Bnde, vol. 5. Berlin: Walter de Gruyter, p. 245-424 (II, 13, p. 317).

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    A viso histrica traz, assim, um componente ctico, uma resignaodiante da impossibilidade de compreender de forma definida qualquer coisa quese processe na histria, que tenha histria, como diz Nietzsche. O que humano modifica-se ao longo do tempo e isso s pode ser compreendido sobperspectiva relativa: relativa s preferncias dos participantes, aos consensos

    lingsticos, s capacidades de causar dano ao outro, de distribuir vantagens,em suma, ao ambiente da comunicao.

    Tomando lies do ceticismo pirrnico, duas atitudes que podemconduzir a esse relativismo ctico so uma isosteniano campo gnoseolgico euma ataraxiano campo tico. Isosteniasignifica procurar suspender quaisquerjuzos definitivos, o que leva a uma viso de mundo e a um estado de espritoque os cticos consideram desejvel. Isso se consegue ponderando os ladosdiversos das controvrsias, concluindo pela igual fora (literalmente isostenia)dos argumentos. Assemelha-se ao dissoi logoide Protgoras, j referido: todacontrovrsia tem lados diversos e no h um lado certo.

    Ataraxia significa imperturbabilidade, pois a expresso constri-se pelanegao da tarach, a perturbao que traz infelicidade. A adiaforia, ento,valor importante para o ctico, consiste na convico de que as coisas eacontecimentos so indiferentes para com os seres humanos e que o acaso, oazar e a fortuna so parte da vida, pois a racionalidade est no ser humano eno no mundo. Esses estados de esprito, por assim dizer, contribuem para aidia de moderao, ou metriopatia, j mencionada, ideal tambm pregadopelos esticos e epicuristas. Ser ctico no implica estar completamente livredas perturbaes inevitveis da vida; mas consider-las ms ou contrrias aosapetites humanos no razovel e torna mais difcil a ataraxia.

    Esses conceitos tambm j foram debatidos com mais detalhes em outrolugar24.

    A corroborar a tese de que sofstica tambm filosofia, note-se que justamente na passagem da religio filosofia, pela qual a nova pretenso deracionalidade vem se confrontar com a crena, que atesta a diviso da filosofiaentre as sofsticas, desviantes, contra as ontologias da verdade, descendentesmais fiis da tradio religiosa. As religies, claro, vm em apoio dessasltimas, mormente os grandes monotesmos e suas cosmologias exclusivistas.

    Mesmo na religio grega, politesta, Hesodo mostra como o Caos inicialse organiza em um Cosmos, ordenando a matria da Terra, Gaia, a qual gerasozinha Urano e se une a ele, dando nascimento a Cronos, o Tempo. Estevence o pai e j pe alguma ordem a mais no Cosmos, mas devora tudo,desvairadamente, inclusive seus prprios filhos com Ria (Cibele), sua irm emulher. Ria consegue engan-lo no nascimento de Zeus, que escapa sanhado pai para depois derrub-lo e tomar o poder. Zeus representa a vitria darazo e da espiritualidade sobre o fluxo interminvel do tempo, completando oprocesso de ordenao e conseqente domnio do Caos. A se pode falar do

    24ADEODATO, Joo Maurcio. Pirronismo, direito e senso comum o ceticismo construtor da

    tolerncia, in: ADEODATO, Joo Maurcio. tica e retrica para uma teoria da dogmticajurdica. So Paulo: Saraiva, 2007 (3. ed. rev. e ampl.), p. 377 s.

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    surgimento do ser humano propriamente dito, com a criao de uma linguagemcompreensiva para proteg-lo e faz-lo senhor do mundo ainda que apenasde seu ambiente, o mundo de seus signos.

    ESQUEMA 1(evoluo histrica da retrica)

    Teoria das figuras Teoria da argumentao

    (estilo, ornamento) (tpica, entimemtica)

    Retrica

    (Ceticismo, Historicismo e Humanismo)

    Sofstica Ontologias da verdade

    Filosofia

    Religio

    Mito

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    Portanto, a sofstica constitui o primeiro movimento retrico na histriado pensamento ocidental. O conceito de retrica assim complexo e modificou-se muito ao longo da histria, o que dificulta sobremaneira sua definio. Mastanto a retrica quanto a doutrina jurdica (no sentido de uma viso maisespecializada do direito, da jurisprudncia ou cincia do direito) parecem ter

    nascido da sofstica. A retrica se bifurca em uma teoria das figuras e do estilo(sentido formal estrito), a retrica-ornamento, e uma teoria daargumentao de estrutura entimemtica (claro que no de estrutura racional-dedutiva, como as teorias da argumentao contemporneas de Habermas eAlexy), a retrica-tpica, tambm entendida pelos gregos antigos como umdos sentidos de dialtica.

    Aristteles definia o conceito de tpica como o conjunto de lugares-comuns que constituiria um dos fundamentos dos argumentos entimemticos,ao lado do paradigma, por exemplo. Modernamente, na esteira do pensamentode Viehweg, a tpica passa a ser vista como uma dessas duas subdivises daretrica, ao lado da teoria das figuras; para outros tpica e retrica sosinnimos, em oposio lgica e filosofia.25

    Segundo outros registros respeitveis, em certo ponto da Antiguidadegrega a palavra dialtica passou a ser usada como sinnimo de lgica,identificao que passa pela Idade Mdia e perdura at a modernidade. Talsentido dessas palavras no , porm, unnime, encontrando adversrios comoKant e Schopenhauer, os quais, mais etimologicamente, associam a dialtica retrica e sofstica, como a arte de disputar, unindo a lgica s regras a

    priori do pensamento puro26. Esse entendimento parece ter hoje se firmadocomo dominante.

    3. Trs dimenses da retrica: como mtodo, metodologia e metdica

    Deixando de lado o termo dialtica, que em cada pensador parece tersentido diferente, entenda-se aqui retrica em trs acepes principais:27

    25 VIEHWEG, Theodor. Topik und Jurisprudenz Ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichenGrundlagenforschung. Mnchen: C. H. Beck, 1974 (4. Aufl.). SCHLIEFFEN, Katharina von.Rhetorische Analyse des Rechts: Risiken, Gewinn und neue Einsichten, in: SOUDRY, Rouven(Hrsg.). Rhetorik Eine interdisziplinre Einfhrung in die rhetorische Praxis. Heidelberg: C. F.

    Mller Verlag, 2006, p. 42-64.26 SCHOPENHAUER, Arthur. Eristische Dialektik, in: SCHOPENHAUER, Arthur. SmtlicheWerke, 6. Band. DEUSSEN, Paul (Hrsg.). Mnchen, 1923, p. 391-428.

    27Para esse conceito de retrica tenta-se aqui detalhar mais a sugesto de BALLWEG, Ottmar.Phronetik, Semiotik und Rhetorik, in: BALLWEG, Ottmar; SEIBERT, Thomas-Michael (Hrsg.).Rhetorische Rechtstheorie. Freiburg-Mnchen: Alber, 1982, p. 27-71; BALLWEG, Ottmar.Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHANZE Helmut e KOPPERSCHMIDT, Joseph (Hrsg.).Rhetorik und Philosophie. Mnchen: Wilhelm Fink, 1989, p. 15-42; e BALLWEG, Ottmar.Rhetorik und Vertrauen. In:DENNINGER, E., HINZ, M., MAYER-TASCH, P. e ROELLECKE, G.(Hrsg.). Kritik und Vertrauen Festschrift fr Peter Schneider zum 70. Geburtstag.Frankfurt a.M.: Anton Hain, 1990 (trad. Joo Maurcio Adeodato. Retrica analtica e direito.Revista Brasileira de Filosofia, n 163, fasc. 39. So Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia,1991, p. 175-184).

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    A retrica material, existencial, so as prprias relaes humanas,entendidas todas enquanto comunicao, que constituem o primeiro plano darealidade: a maneira pela qual os seres humanos efetivamente secomunicam, suas artes e tcnicassobre como conduzir-se diante dos demais,tecendo o prprio ambiente em que acontece a comunicao. A retrica

    material natural no sentido de que se d imediatamente, antes de qualquerreflexo, ela faz parte da prpria condio antropolgica, o dado ntico dasociabilidade humana, no sentido de uma comunicao real.

    Isso significa que conhecer apenas relatos sobre o mundo a condioantropolgica da retrica ou a condio retrica da natureza humana. Oconhecimento no pode ser isoladamente obtido, como queriam Scrates eDescartes. Depende da intersubjetividade. A se verifica que toda comunicaointersubjetiva retrica, quer dizer, o ser humano, mais do que um animalracional, um animal retrico.

    At a comunicao intrassubjetiva, o dilogo consigo mesmo quecaracteriza o pensamento, retrico. Quando as pesquisas sobre o crebrohumano mapeiam suas regies e reaes qumicas a estmulos, com todasas mquinas e mtodos possveis, isso consiste to somente de consensoscomunicativos temporrios que se transmitem por relatos. Oseletrocardiogramas, o bombardeio de eltrons e as doenas mentais so partesdesses relatos que constituema vida humana.

    Assim, a retrica material o que se poderia conceder ser a nicacondio ontolgica da antropologia. Quer dizer, o ser humano s pode serconcebido dessa perspectiva, sem a retrica material no humano. Trata-se

    da prpria condio lingstica da espcie, voltada para si mesma em umuniverso de signos e sentidos.

    Hermann Cohen diz que somente o pensamento capaz de produzir oser.28A linguagem, no o pensamento como conceito metafsico, produzoser de forma bem literal. Nesse sentido da retrica material, no h diferenaentre os quasares e os buracos negros, de um lado, e os anjos e demniosmedievais e contemporneos, de outro. O ser humano hoje vive e cr emcarros, rvores e arranha-cus; da realidade medieval (com fiisdescendentes hoje), alm de animais e pessoas, fazem parte do mundo bruxase predies. por isso que um juiz contemporneo no aceitaria na lide

    argumentos baseados em viagens no tempo e cidados na Europa medievalno compreenderiam histrias sobre viagens em foguetes e avies. Oimportante a crena no relato, e essas relaes comunicativas fazem aretrica material.

    Nos dias atuais fala-se no riso como um fator benfico sade,socialmente desejvel, indcio de afabilidade, sucesso, amizade, mas o risopode ser tambm tido como atitude abominvel, escarnecedora dos fracos e

    28COHEN, Hermann. Logik der reinen Erkenntnis, Helmut Holzhey (Hrsg.).WerkeBd. 6, 1.Teil (System der Philosophie). Hildesheim/New York: Georg Olms Verlag, 1977. Tambm R.

    VANCOURT: Prface trad. francesa da Mtaphysique de la Connaissancede Nicolai Hart-mann. Paris: Aubier, 1945, p. 18 s.

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    oprimidos, tanto como um exemplo de incivilidade e indelicadeza quanto (sic)como uma reao descontrolada e, portanto, brbara...29

    Do ponto de vista da autoridade da cincia, por exemplo, vrus econtaminaes so temas de todo tipo de relatos discursivos, ainda que poucas

    pessoas compreendam os relatos a respeito. Quase todos conhecemabsolutamente nada sobre os critrios e dados empricos que levaram adeterminada informao (relato). Da mesma maneira, j avisara Aristteles naRetrica, certos argumentos so to complexos e exigem tantos pressupostospara serem discutidos que se tornam ineficazes para auditrios leigos, comoocorre no discurso cientfico moderno. O que interessa mesmo a crenaretrica.

    Os constrangimentos discursivos desses consensos podem ser maisrgidos, como na religio ou na cincia, mas a realidade retrica a mesma.Elas consistem em uma srie de proposies confirmadas por determinados

    observadores privilegiados (os cientistas ou a cpula das igrejas, por exemplo),isto , relatos discursivos em que eles acreditam e que afirmam ser arealidade. O sucesso do relato depende de fazer os circunstantes tambmacreditarem nele, sua retrica material, sua existncia.

    O leitor j compreendeu que irrelevante para os objetivos aqui se apredio, a teoria, a ideologia, a verdade cientfica foram ou noposteriormente verificadas na realidade, confirmao que, por sua vez, j outro procedimento retrico, tambm sujeito a acordos fugidios, a outratransformao de paradigma cientfico, a outro relato qualquer.

    Comunicar sobre algo o que faz esse algo existir, e como existir, eis aretrica material de Nietzsche.

    Do ponto de vista do conhecimento, o subjetivismo contido na tradioda certeza cartesiana, no sentido de que a garantia da evidncia seria aconscincia subjetiva da experincia interna, com sua autocoerncia, no maissubsiste depois da virada hermenutica (ou lingustica), protagonizada porWittgenstein, Heidegger e outros, os quais colocam como fonte primeira oconhecimento intersubjetivamente vlido, proveniente do mundo exterior. Oprimado gnoseolgico da experincia interna no pode prevalecer porque noh uma verdade subjetiva; a soluo passa por um contedo de sentido nombito de uma linguagem comum a outras pessoas, na possibilidade de seguir,ou no, regras publicamente controlveis. Da a indispensabilidade dapessoa do outro para a construo de qualquer sentido, qualquercomunicao30. Por isso existem demnios e buracos negros, id e ego, ainvaso holandesa em Pernambuco.

    29 SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clssica do riso, trad. Alessandro Zir. SoLeopoldo: Unisinos, 2004, p. 71.

    30APEL, Karl-Otto. Wittgenstein und Heidegger: Kritische Wiederholung und Ergnzung einesVergleichs, in: McGUINESS, Brian (Hrsg.). Der Lwe spricht und wir knnen ihn nicht

    verstehen. Ein Symposion an der Universitt Frankfurt anllich des hundertsten Geburtstagsvon Ludwig Wiittgenstein. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1991, p. 27-68, p. 30-31.

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    Esses controles pblicos da linguagem so condicionais, temporrios,autopoiticos e circunstanciais; quanto mais complexo o meio social, mais seacentua esse carter mutante e mais difcil estud-los.

    Mas essas dificuldades no podem ser resolvidas por intermdio de uma

    coisa em si como estmulo real ao conhecimento, sensao, aopensamento. No s o conhecimento retrico, a prpria existncia humana o. No parece haver impresses, percepes, nada que possa existir fora dalinguagem, mesmo que seja a linguagem consigo mesmo que constitui opensamento. Este o pressuposto da retrica material. Realidade comunicao, relatos sobre outros relatos, no h eventos em si. Nem sequerse pode dizer que a coisa em si , como queria Kant, pois isso no faz sentidofora do preconceito etiolgico, que precisa procurar uma causa primeira e noconsidera devidamente a autonomia dos acordos lingsticos. E no apenas opensamento conceitual funciona retoricamente, mas tambm o pictrico etodos os tipos de significados de todos os tipos de linguagem.

    A perspectiva retrica sobre a qual se reflete aqui tampouco seassemelha ao entendimento de Berkeley, por exemplo, sobre o conhecimentohumano, que no abandona o paradigma cartesiano. Berkeley sustenta quetoda realidade mental e que existir o mesmo que ser percebido; mas serpercebido no significa apenas a percepo sensvel (viso, audio olfato,paladar, tato). Os livros na gaveta, argumenta Berkeley, existem porque sepensa neles, se os imagina. O argumento engenhoso, pois no se podeconceber quaisquer objetos sem a mente que os concebe, ou seja: no se podepensar o impensado, essa uma contradictio in terminis.

    Mas Berkeley mantm pressuposies de ontologias da verdade, apesarde seu ceticismo. H um subjetivismo solipsista, uma confiana no indivduocomo fonte do critrio de conhecimento. A diferena para a concepo daretrica material que esta parte do controle pblico da linguagem, a qualconduz aos consensos condicionais e temporrios que constituem acomunicao, desprezando os critrios subjetivistas de aferio da realidade,tais como o pensamento, o cogitode que Berkeley no se livra.

    A retrica material cuida dos fatos, esses relatos intersubjetivos sobreoutras relaes comunicativas, elaborados segundo a percepo de cada um eem sua interao, sempre utentes com utentes (assim se chamam os

    usurios, os participantes do discurso). Essa dimenso material correspondeaqui ao mtodo. Os mtodos so maneiras pelas quais efetivamente ocorre acomunicao no ambiente, as regularidades de conduta das pessoas, a condutareal. Esse real consiste, por sua vez, de discursos retoricamente regulados,os relatos discursivos, os fatos, isto , descries retricas de estmulos,tambm lingsticos, lingisticamente percebidos.

    A matria inicial do conhecimento no a coisa em si da estticatranscendental de Kant, mas sim essa retrica. Os mtodos so as formas, maisou menos regulares, mediante as quais esses relatos, que fazem os sereshumanos perceberem a realidade, se organizam. Todas as relaes humanas

    com o ambiente se do dessa maneira, seja o natural, seja o social. Nesse

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    nvel no h reflexo, a prpria realidade ntica da vida humana. A retricamaterial, existencial, o conjunto de mtodos de ao humana.

    Isso explica a condio do ser humano na viso de Hans Blumenberg jcomentada, um ser que no tem lugar no mundo real e por isso criou seu

    mundo de linguagem, um mundo s seu e do qual no consegue escapar. Da aantropologia autista que subjaz a esta concepo de retrica, um autismoexistencial. Isso ocorre tanto no plano intrassubjetivo como no intersubjetivo.Quando um ser humano individual constri em torno de si os auto-relatos quebem entende, o controle pblico da linguagem pode ser um parmetro darealidade, como no caso de definir algum como louco, por exemplo,algum que cr numa situao que todos percebem diferentemente. Mas oindivduo isolado, por isso de louco todos tm um pouco, produz mecanismosde compensao e auto-indulgncia que prevalecem sobre o controle pblico dalinguagem (o que os outros acham a realidade), o que fcil observar emmuitas pessoas, umas mais, outras menos, como se achar inteligente, bommsico ou amado por outrem.

    Esse autismo ocorre tambm em relao a comunidades inteiras e a oprprio controle pblico da linguagem pode construir realidades fantsticas,relatos que ganham mais e mais consistncia por seu carter coletivo, como noconto A roupa nova do rei.31. Sem parmetros de avaliao, esse imaginriochega s raias de loucuras generalizadas que no tm qualquer respaldoemprico. Na linguagem metafsica, pode-se falar em desvios do espritoobjetivo, ou esprito objetivo inautntico como o faz Nicolai Hartmann32,provavelmente pensando no nazismo com o qual conviveu. A o controle pblicocontemporneo (atual) da linguagem no ajuda e s a perspectiva retrica,com seu ceticismo tolerante, e o distanciamento histrico podem fornecer ummeta-controle e proteger a sanidade emprica.

    Dizer que a prpria realidade retrica significa tambm que alinguagem controla as relaes humanas por meio de promessas, as quaispodem ou no ser cumpridas, no todo ou em parte. Isso real, controle nahora. Mas, por essa caracterstica da razo humana, essas expectativas atuaistm como referncia o futuro, que no existe, apenas imaginado por meio deum discurso atual, este, sim, existente.

    A retrica prtica, ou estratgica, j reflexiva, constitui um primeiro

    grau de meta-retrica, uma retrica sobre a retrica material, que parte dela ea ela retorna para reconstitu-la, isto , interferir sobre ela. Para chegar a essaprxis, a retrica estratgica precisa de uma doutrina, uma teoria, aqueleconjunto de regras, construdas a partir da observao da retrica dos mtodos,que tem por objetivo influir sobre eles e possibilitar sucesso a quem deles seutiliza. Ela observa como funciona a retrica material e verifica que frmulas

    31 ANDERSEN, Hans Christian. Des Kaisers neue Kleid, in: ANDERSEN, Hans Christian.Mrchen, berstezt von Heinrich Denhardt. Stuttgart: Reklam, 1986, p. 111-117.

    32HARTMANN, Nicolai. Das Problem des geistigen Seins Untersuchung zur Grundlegung

    der Geschichtsphilosophie und der Geistswissenschaften. Berlin: Walter de Gruyter, 1949, p.338 s.

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    do certo, construindo uma pragmtica finalstica e normativa da comunicao. literalmente uma metodologia(teoria dos mtodos) da retrica material.

    Trata-se de uma prtica que pode ser ensinada, construindo umadoutrina a partir de experincias, observaes e reflexes. Desse nvel de

    retrica provm a tpica, a teoria da argumentao, as figuras de linguagem ede estilo. Os discursos prticos so estratgias para modificar fatos (relatos daretrica material) e erigi-los em objetos, isto , fatos relativamente fixados,aos quais alguns relatos selecionados aderem, em detrimento de outros; osutentes os determinam, constituem esses objetos, transformando relatos deopinies em objetos, que supostamente constituem as definies da linguagemde controle instituda, os relatos corretos, a verdade. A metodologia(Methodenlehre) esse conjunto de estratgias que visam o sucesso, umaviso sobre mtodos que funcionam para determinados contextos e sobre comofuncionam, uma teoria voltada para a prxis.

    Essa retrica estratgica estuda que topoi aparecem maisfreqentemente em um discurso, os mtodos empregados para esse ou aqueleefeito, como os lugares-comuns retricos so produzidos, utilizados,manipulados. Ela estuda o kairos, o momento adequado de dizer e fazeracontecer, ocupa-se da influncia da linguagem, da gesticulao, das tticasempregadas e de seus efeitos sobre a retrica material, ou seja, sobre aconduta dos sujeitos, lanando mo de exerccios e reflexes sobre seusresultados.

    Finalmente, a retrica analtica procura ter uma viso descritiva eabstrair-se de preferncias axiolgicas, mesmo diante de objetos valorativos.

    Diferentemente da estratgica, a retrica descritiva formal, mas nuncanormativa, no pretende orientar a ao. Pode-se dizer, usando Viehweg, que aretrica analtica zettica, a estratgica, dogmtica. A retrica analticaprocura ampliar a semitica e dar igual ateno aos elementos signo, sentido(objeto) e utente dentro dos sistemas lingsticos, o que no fcil: masBallweg reconhece que essa dificuldade ela divide com a semitica 33.

    Dizer que a perspectiva analtica da retrica constitui uma metdicasignifica que, como ela se forma a partir dos dois nveis retricos anteriores,no pode ser confundida com um mtodo, no sentido de padres decomunicao, nem com uma metodologia ou teoria do mtodo, estratgias para

    controle e interferncia sobre esses mtodos (metodo-logos). A retricametdica analisa a relao entre como se processa a linguagem humana ecomo as pessoas acumulam experincias e desenvolvem estratgias parautiliz-la de modo mais eficiente. Esse terceiro nvel serve ao distanciamentonecessrio para compreender os outros dois.

    Pensando mais especificamente no direito, Mller afirma que a metdicajurdica tem a tarefa de esclarecer as diversas funes e as formas derealizao do direito (legislao, governo, administrao, jurisdio, cincia do

    33 BALLWEG, Ottmar. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHANZE Helmut e

    KOPPERSCHMIDT, Joseph (Hrsg.). Rhetorik und Philosophie. Mnchen: Wilhelm Fink, 1989,p. 19-20.

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    direito), diante de uma estrutura normativa geral e prvia e da necessidade deconcretizao da norma. A metdica pesquisa o trabalho prtico dos rgos eindivduos que exercem essas funes; procura conceituar, definir, em suma,estruturar essas formas de realizao (aqui chamados mtodos, retricamaterial), por um lado, e as estratgias de que as pessoas envolvidas nessas

    formas lanam mo (a teoria dos mtodos, metodologia), de outro34.Mtodo o caminho (, odos), como se procede para atingir

    determinado objetivo. Metodologia a doutrina sobre os mtodos, isto , aviso que se tem desses caminhos e as tentativas de control-los. Metdica oestudo da relao entre esses mtodos e essas metodologias para compreend-los.

    No campo do direito, a metdica, analtica como se pretende, no seconfunde com a lgica jurdica formal, ou com a disciplina metodologia dodireito (a Methodenlehre adquiriu na doutrina alem esse sentido bem

    prprio), nem com uma tcnica de soluo de casos. Menos ainda um novomtodo, pois os mtodos so estudados pela metodologia e essa relao queinteressa metdica, como dito.

    Ver o nvel analtico como uma metdica sugere ir alm da metodologiae reconhecer que ele tambm tem como objeto os aspectos prticos daretrica. A fora persuasiva ou enganadora da retrica estratgica, sobre a qualtanto se escreveu, no esgota a retrica, mas torna-se tambm objeto daprpria retrica (analtica), esclarecendo uma dimenso revelada de quando emvez na histria da filosofia, mas s agora estudada com mais nfase. ametalinguagem (metalinguagem de segundo nvel ou meta-metalinguagem)

    para observao das retricas material e estratgica, sem o objetivo de influirsobre elas. Por ter essa preocupao desconstrutivista e analtica, procurandoabster-se de atitudes valorativas, a postura metdica aqui pode ser chamadadesestruturante, em contraponto teoria de Mller.

    A metdica jurdica consiste numa teoria sobre a relao entre a teoriada prtica (a metodologia, a doutrina dogmtica, no caso do direito) e essamesma prtica (conjunto de mtodos); procura uma meta-teoria, que veja ocaso concreto em relao com as metodologias que o procuram conformar. Aretrica analtica descritiva, porque quer estudar, de modo maisdesinteressado e neutro possvel, essa influncia que as metodologias (que so

    valorativas) exercem sobre os mtodos (que tambm implicam escolhasaxiolgicas).

    A argumentao estratgica se dirige a fins, busca produzir algum tipode efeito. Mediante um discurso dirigido persuaso, ela procura provocaracordo e aceitao. A conversa uma oportunidade e a linguagem, umaferramenta do orador para influenciar o ouvinte. Vem dessa funo estratgicaa acusao, que feita retrica, no sentido de que no serve justia da

    34 Assim, para o conceito de metdica, aqui se aproveita e modifica, dando-lhe aceporetrica, uma idia de MLLER, Friedrich. Juristische Methodik. Berlin: Duncker und

    Humblot, 1997, p. 25-36, e Mtodos de trabalho em direito constitucional. So Paulo:Max Limonad, 2000, p. 21-23, p. 38 s. e p. 51 s.

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    deciso, mas sim manipulao do prximo com o objetivo de estabelecer, deefetivar os pontos de vista daquele que fala. Perfeitamente; mas a retricaanaltica, trazendo os conceitos de retrica material e seu prprio conceito deanaltica, pretende outra abordagem, combatendo essa reduo metonmica daretrica a apenas uma de suas acepes, a estratgica.

    Ressalte-se que esses nveis retricos se interpenetram, no soseparveis de forma rgida, a no ser analiticamente, pois uma estratgia utilizaanlises e uma retrica analtica pode se tornar o foco de estudo de outraanlise.

    Assume-se aqui que a postura retrica pode dar outra contribuio almde seu nvel estratgico e ornamental, ou seja, alm de sua ajuda para osucesso da comunicao. A atitude metdica da retrica pode propiciar maisconhecimento das relaes humanas, eventualmente legitimar suas regras,testando seu acordo com as regras do jogo, por exemplo (a lei e outras fontes

    de normas jurdicas, no caso do direito), alm de fornecer apoio aceitao dedecises.

    4. Elementos para uma retrica analtica

    Para Charles William Morris, a retrica seria uma antepassada dasemitica, uma precursora mais simples. Para Ottmar Ballweg, ao contrrio, asemitica est contida na retrica, assim como teorias desconstrutivistas esistmicas, dentre outras. Ballweg, que toma por base a semitica de Morris,

    objetiva adicionar a dimenso frontica(de fronesis,prudentia) semiticade Morris. Essas duas, somadas dimenso tradicional holottica (deholismo), de que Morris tampouco se ocupou, completam a retrica analtica deBallweg, cada uma das trs com trs sub-dimenses respectivas.

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    ESQUEMA 2(retrica analtica de Ballweg)

    pitanutica (U->S)

    frontica (U->) ergntica (U->O)

    agntica (U->U)

    sinttica (S->S)

    analtica semitica (S->) semntica (S->O)

    pragmtica (S->U)

    axiottica (O->S)

    holottica (O->) ontottica (O->O)teleottica (O->U)

    Retrica prtica

    material

    A anlise retrica holottica visa por a descoberto, desconstruir ossistemas lingsticos holsticos, das ontologias tradicionais, mostrando que

    tambm so retricos os objetos e valores alegadamente extralingusticos, anatureza, o conceito, a sntese. Na perspectiva holottica da retricaanaltica, tal como entendida aqui, os objetos so relatos (temporariamente)vencedores. assim que existem buracos negros no universo e que pode sercalculada a velocidade da luz, ao mesmo tempo em que no existem sereshumanos com mil anos de idade. Dependendo do contexto, claro.

    Para esclarecer a perspectiva holottica, o termo holismo tem origemno adjetivo grego holiks, que significa universal. Seu emprego modernoparece ter sido inspirao de J. C. Smuts, em 1926. Holstica pode ser definidacomo a tendncia, supostamente presente em todo o universo, de que as

    unidades se agrupem em novas unidades organizadas, progressivamente maisamplas, na direo de uma totalidade harmnica, coordenadas por um princpio

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    ontolgico unificador. As trs subdivises da holottica inspiram-se natripartio semitica, segundo essa objetivao retrica totalizadora se dirija aosigno (objetivismo lingstico), do prprio objeto (ontologismo) ou do sujeito(subjetivismo).

    A anlise retrica semiticaproposta por Ballweg limita-se a incluir ascontribuies de Morris, conforme j referido. A semitica vista aqui como omais importante produto da virada lingstica do incio do sculo XX, quandoa linguagem e seus signos passam a ser reconhecidos como o terceiro elementoirredutvel do conhecimento, ao lado das tendncias empiristas (Herclito aLocke) e racionalistas (Parmnides a Descartes), tambm j referidas acima.

    A anlise retrica frontica ou prudencial tenta ir adiante, na medidaem que no mais enfatiza o signo, como a semitica, mas sim os prpriosparticipantes que se utilizam da comunicao, os utentes. Ela constitui a atituderetrica propriamente dita, a atitude tomada pelo retrico analtico, pois lhe

    d uma perspectiva alm da material, na qual todos esto imersos, e daprtica, que dominada pelo tcnico, pelo especialista. Ou seja: na dimensoprtica impera o especialista no tipo de discurso em questo e no o retrico, oterico geral do discurso.

    Partindo da nfase sobre os utentes (anlise prudencial ou frontica) ecombinando os trs elementos de Morris utente, objeto e signo , Ballwegsugere as sub-dimenses agntica, ergntica e pitanutica, que interessammais de perto aqui.

    Para Ballweg, agntica(U->U) a dimenso da frontica que observacomo os utentes se interrelacionam, constituindo padres e maneiras de agir,vale dizer, semnticas sociais, como as formas de conduta do corteso, dohomme de lettres, do gentleman, do caballero, do coronel nordestino, d ocarioca etc.35

    A analtica agntica deixa os prprios sinais da comunicao em segundoplano e se concentra na conduta dos utentes. Suas temticas, exemplificaBallweg quanto ao direito, giram em torno da definio da figura do sujeito dedireito, se uma relao jurdica s se d entre sujeitos, o que significam credor,devedor, obrigado, inadimplente. Nos sujeitos da poltica, o que enseja adiferenciao amigo/inimigo? O importante determinar se as relaes entre ossujeitos, abstraindo o quanto possvel os sinais pelos quais se expressam, soprotagonsticas, sinagonsticas ou antagonsticas, outra forma de mencionar queessas relaes vo da cooperao ao conflito.

    Para procurar entender melhor a classificao, note-se que a expressoagntica inspirada em agonstica (agnistik). O adjetivo agnistiksremete originalmente ao sentido de apto a lutar, tendo depois se estendidoaos debates e competitividade que caracterizam a vida pblica, assim como retrica que os acompanha. Como em toda concorrncia, a agonstica

    35 BALLWEG, Ottmar. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHANZE Helmut e

    KOPPERSCHMIDT, Joseph (Hrsg.). Rhetorik und Philosophie. Mnchen: Wilhelm Fink, 1989,p. 39-40.

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    orientada para a vitria sobre o adversrio. A erstica uma das formasestratgicas de expresso nessa luta36.

    A retrica analtica ergnticase d entre intrprete e significado, utentee objeto (U->O), diz Ballweg, e ocupa-se das definies jurdicas, polticas,

    econmicas etc. que regulam a propriedade, a posse e demais relaes com osbens, as coisas a que do valor os seres humanos. Essas relaes ergnticasvo influir sobre as relaes agnticas entre os sujeitos, pois os bens de todaespcie catalisam intenes e interesses. O dinheiro a linguagem de controlemais importante nas relaes ergnticas, mas essas no se reduzem aos benseconmicos (Ballweg menciona os bens culturais como exemplo).

    O termo ergntica parece ser retirado do grego rgon (, ),que tem basicamente trs significados: 1. ato, manuseio, fato; 2. trabalho,execuo de tarefa, empresa, negcio; 3. o resultado, o objeto produzido poresse trabalho. Em sentido mais figurado pode expressar efetividade, realidade

    efetivada (Wirklichkeit).A terceira subdiviso da frontica Ballweg chamava, a princpio,

    agortica(Agoretik), a partir da expresso agora, o local, a praa em que sefaziam as assemblias dos cidados. Preferiu depois a denominaopitanutica (U->S), que parece ter sido inspirada no adjetivo pithans(). Em seu sentido ativo, esse adjetivo pode ser aplicado a pessoas ecoisas, significando pessoa simptica, que desperta confiana, e coisa provvel,confivel; em sentido passivo significa a pessoa fcil de convencer, atobediente.

    Ballweg escolhe essa denominao para indicar a dimenso entre osutentes e os sinais de linguagem. Ele insiste que a escolha que o sujeito utentefaz dos sinais de linguagem, que constitui a pitanutica, s faz sentido ao ladodas outras duas sub-dimenses. Observa que essas escolhas tambm podemser institucionalizadas, como em diversos contextos no direito dogmtico, emque o vocabulrio no est ao alvedrio do utente, mas sim previamentevinculado a nus de fundamentao, pressupostos processuais, nus de prova,regras contratuais etc. A analtica pitanutica procura explicar como surge opoder da definio, pelo qual os sistemas lingsticos so construdos edestrudos.

    5. Desenvolvimentos para uma retrica metdica desestruturante

    Um ponto difcil para estabelecer um dilogo com a retrica analtica deBallweg est no carter fragmentrio de seus escritos, nos quais as sugestes einsightsno so desenvolvidos e do margem a prolongamentos controversos,conforme buscou-se apontar no item acima, o qual j contm explicaes quevo alm dos textos do autor, procurando detalh-los e no apenas exp-los.Agora a ocasio para um dilogo com eles.

    36 UEDING, Gert (Hrsg.). Historisches Wrterbuch der Rhetorik, Band 2. Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994, p. 261.

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    Por isso procurou-se tornar mais clara a diferenciao entre pitanutica(utente signo) e a dimenso pragmtica da semitica (signo utente),colocando o ponto de partida para uma discusso sobre as diferenasconceituais entre as concepes da retricae do pragmatismo, que ter queser deixada para outra oportunidade.

    Ao definir a dimenso agntica, Ballweg tampouco explica com nitidezcomo se podem perceber relaes entre utentes sem atentar para os signos, oumesmo, como se pode separar relao de signo, como se houvesse apossibilidade de intersubjetividade sem signos. Nessa direo, este texto tentaesclarecer a concepo de retrica como condio humana de existncia, comoa prpria matria da humanidade, pois a est a base para compreender os trsnveis da retrica.

    Uma objeo mais geral que uma retrica metdica precisa dispensar ohbito ontologista de partir da dicotomia sujeito objeto. Ora, como recusar a

    categoria sujeito objeto tomando por base a semitica de Morris, queincorpora essa distino? Uma resposta possvel, e aqui escolhida, que aretrica apenas registra e analisa que essa categoria sujeito objeto constituiuma forma da comunicao humana, sem assumir seu carter necessrio. Querdizer, a comunicao humana criou a oposio e a utiliza, obrigando o retricoa consider-la, pois, em sentido retrico material, sujeito e objeto existem.

    A retrica precisa considerar que jamais trata de sujeito, no singular,mas sempre de utentes de signos, para que a perspectiva relacional,intersubjetiva, afaste tanto os riscos do objetivismo empirista, reificador,quanto aqueles do subjetivismo cartesiano, ambos ontolgicos. A retrica se d

    entre sujeitos, no h, a rigor, objetos (coisas), como dito; e objetos soacordos lingsticos que os sujeitos estabelecem em conjunto, semprecondicionais, temporrios e auto-referentes, conforme tambm enfatizado.

    Ressalte-se que, na perspectiva metdica proposta aqui, a retrica nose limita ao consenso, como querem retricos contemporneos, os quaisenfatizam a funo metodolgica da retrica37. A retrica metdica tambmafasta-se tanto do procedimentalismo de Habermas e outros, quanto dahermenutica filosfica de Gadamer e seus discpulos, pois a pr-compreensoimplica o conceito de convico de verdade, condicionada ao mundo da vida, oque no se coaduna com os pressupostos analticos.

    Mesmo na dimenso metodolgica, note-se que a busca do consensonem sempre o caso e que a retrica tambm se constitui na ao estratgica,em ameaas e outras formas de controle de dissenso. Retrica no condiz comviolncia, certo, mas a ameaa de violncia pode ser retrica, assim como aautoridade e o engodo38; e essas frmulas no se incluem na persuaso.

    37 Afirma que a teleologia da retrica obteno de consenso GAST, Wolfgang. Die sechsElemente der juristischen Rhetorik: Das Modell rhetorischer Kommunikation bei derRechtsanwendung, in: SOUDRY, Rouven (Hrsg.). Rhetorik Eine interdisziplinre Einfhrungin die rhetorische Praxis. Heidelberg: C. F. Mller Verlag, 2006, p. 32.

    38ADEODATO, Joo Maurcio.A retrica constitucional Sobre tolerncia, direitos humanose outros fundamentos ticos do direito positivo. So Paulo: Sariava, 2008, cap. 4.

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    Retrica metdica tampouco se confunde com hermenutica tradicional, poisesta muito mais textual, descendente que da exegese de textos bblicos etalmdicos. A retrica grega, envolve ethos, pathos, logos, oralidade,gestualidade e, tambm, textos.

    No mesmo sentido de diferenciar-se, a retrica procura manter ao largoconceitos como os de eficcia ou positivao simblica do direito ou de outraslinguagens, pois toda eficcia, toda manipulao da realidade, todapositivao simblica. No h evidncias de uma eficcia real, umaverdadeira eficcia, para ser comparada eficcia simblica, apenas inmerase diferentes possibilidades, todas simblicas.

    Resumindo os aspectos construtivos sugeridos aqui, alm do objetivogeral de situar o que significa a postura mais abrangente da retricacontempornea, a tese que utilizar os conceitos de mtodo, metodologia emetdica vai tornar mais precisa a classificao da atitude retrica em material,

    prtica e analtica. Essa depurao conceitual enfatiza a retrica analtica comoa atitude filosfica mais adequada, tanto para conhecer o mundo (gnoseologia)como para avali-lo (tica) e agir.

    Depois, no mesmo sentido de aclarar os critrios para as diferentesatitudes retricas, este texto estabelece uma correspondncia entre elas e assub-dimenses da frontica proposta por Ballweg: a agntica parte daretrica material, a ergntica cabe retrica estratgica e a retrica analticaestuda a dimenso pitanutica.