a construção histórica da identidade

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2 A construção histórica da identidade Este capítulo aborda de forma sucinta o percurso histórico que molda o sujeito tal qual o conhecemos hoje, procurando sinalizar que a concepção de indivíduo é um constructo histórico e que, portanto, implica uma dimensão política. Nesse intuito, apresento a gênese do individualismo moderno sob a ótica de Louis Dumont (1985) a partir da religião cristã e do contexto social próprio da Idade Média. Em seguida, delineio os cinco grandes desenvolvimentos da teoria social e das ciências humanas, ocorridos na segunda metade do século XX, que, segundo Stuart Hall (2003), corroboram o descentramento final do sujeito cartesiano, o que delineia o perfil do sujeito contemporâneo. Ilumino sua análise abordando Michel Foucault quanto à relação da individualidade com a sujeição do corpo. 2.1. Do “indivíduo-em-relação-com-Deus” ao “indivíduo-no-mundo”. Da universitas à societas. Dois caminhos de um mesmo percurso Em sua leitura sobre a gênese do individualismo a partir da religião cristã, Louis Dumont (1985) reconhece, logo de início, que a concepção de individualismo de então se diferencia da atual, na medida em que o homem era entendido como um “indivíduo-em-relação-com-Deus”, portanto, um “indivíduo- fora-do-mundo”. Tal indivíduo obedecia às regras deste mundo e as reconhecia, porém fazendo-o apenas em função de Deus, subordinado a ele, o que significava a relativização da ordem mundana por sua subordinação aos valores absolutos. No século VIII, no entanto, há uma transformação dramática nessa concepção do “indivíduo-fora-do-mundo”, à medida que a Igreja decide reinar direta ou indiretamente sobre o mundo, arrogando-se um poder temporal supremo, a partir do rompimento com Bizâncio. Essa mudança insere decisivamente o cristão no mundo, alterando ao longo do tempo a concepção de individualismo prevalecente em um processo que se concluiu, segundo Dumont, apenas com o

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Este capítulo aborda o percurso histórico que molda o sujeito tal qual o conhecemos hoje, procurando sinalizar a concepção de indivíduo.

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  • 2 A construo histrica da identidade

    Este captulo aborda de forma sucinta o percurso histrico que molda o

    sujeito tal qual o conhecemos hoje, procurando sinalizar que a concepo de

    indivduo um constructo histrico e que, portanto, implica uma dimenso

    poltica. Nesse intuito, apresento a gnese do individualismo moderno sob a tica

    de Louis Dumont (1985) a partir da religio crist e do contexto social prprio da

    Idade Mdia. Em seguida, delineio os cinco grandes desenvolvimentos da teoria

    social e das cincias humanas, ocorridos na segunda metade do sculo XX, que,

    segundo Stuart Hall (2003), corroboram o descentramento final do sujeito

    cartesiano, o que delineia o perfil do sujeito contemporneo. Ilumino sua anlise

    abordando Michel Foucault quanto relao da individualidade com a sujeio do

    corpo.

    2.1. Do indivduo-em-relao-com-Deus ao indivduo-no-mundo. Da universitas societas. Dois caminhos de um mesmo percurso

    Em sua leitura sobre a gnese do individualismo a partir da religio crist,

    Louis Dumont (1985) reconhece, logo de incio, que a concepo de

    individualismo de ento se diferencia da atual, na medida em que o homem era

    entendido como um indivduo-em-relao-com-Deus, portanto, um indivduo-

    fora-do-mundo. Tal indivduo obedecia s regras deste mundo e as reconhecia,

    porm fazendo-o apenas em funo de Deus, subordinado a ele, o que significava

    a relativizao da ordem mundana por sua subordinao aos valores absolutos.

    No sculo VIII, no entanto, h uma transformao dramtica nessa

    concepo do indivduo-fora-do-mundo, medida que a Igreja decide reinar

    direta ou indiretamente sobre o mundo, arrogando-se um poder temporal supremo,

    a partir do rompimento com Bizncio. Essa mudana insere decisivamente o

    cristo no mundo, alterando ao longo do tempo a concepo de individualismo

    prevalecente em um processo que se concluiu, segundo Dumont, apenas com o

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  • 17

    calvinismo, ainda que outros fatores, como as seitas, o Iluminismo e a Reforma

    Luterana, tenham dele participado.

    A teocracia calvinista representou a ruptura com a dicotomia hierrquica de

    antagonismo entre Deus e o mundo, lanando o homem definitivamente neste,

    ainda que o mantendo completamente impotente diante da onipotncia divina.

    Isso quer dizer que sua salvao era uma graa determinada pela insondvel

    vontade de Deus. Cabia ao eleito, por conseguinte, trabalhar no mundo pela

    glorificao divina.

    Alterando o foco do cristianismo para a sociedade medieval , Dumont

    percebe o enfraquecimento ao longo do tempo da concepo de universitas, ou

    seja, do corpo social como um todo, em que os homens so apenas partes do

    mesmo, em detrimento da societas, isto , associao pura e simples. Nesse

    percurso, Guilherme de Occam, escolstico franciscano que viveu no sculo XIV,

    apresentado pelo autor como o arauto do estado de esprito moderno. Occam

    expunha sistematicamente o nominalismo em face do realismo de Santo Toms de

    Aquino. Enquanto Santo Toms defendia que os seres particulares, como Pedro e

    Paulo, eram substncias primeiras, ou seja, entidades auto-suficientes da

    primeira espcie, os universais, como o gnero, as classes de seres, etc., eram

    substncias segundas, uma vez que existentes em si mesmos. Contudo, para

    Occam, era necessrio separar as coisas dos sinais, das palavras, dos universais,

    uma vez que as coisas s podiam ser simples, isoladas, sendo seres nicos. De

    acordo com essa concepo, na pessoa de Pedro, por exemplo, s existia Pedro.

    As classes, as idias no deviam ser coisificadas, como o fez Aquino.

    Uma das conseqncias dessa percepo diz respeito a mudanas na forma

    de entendimento da lei natural. Esta no podia mais ser deduzida de uma suposta

    ordem ideal das coisas, afinal, nada existia alm da lei real estabelecida por Deus

    ou pelo homem por delegao divina: a lei positiva, expresso em sua totalidade

    da vontade ou do poder do legislador. Da mesma forma, o direito deixou de ser

    visto como uma relao justa entre seres sociais para reconhecer o poder do

    indivduo.

    Ainda que sobre Occam no se possa dizer que influenciou diretamente o

    desenvolvimento do direito moderno, como assinala Dumont, ao abordar o

    nominalismo, o subjetivismo e o positivismo jurdicos, ele subsidiou o nascimento

    do indivduo na filosofia e no direito. Afinal,

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    (q)uando nada mais existe de ontologicamente real alm do ser particular, quando a noo de direito se prende, no a uma ordem natural e social mas ao ser humano particular, esse ser humano particular torna-se um indivduo no sentido moderno do termo (Dumont, 1985, p. 79).

    A conseqncia imediata dessa viso foi a nfase que passou a ser atribuda ao

    poder, equivalente idia de ordem e hierarquia modernas. Assim, ainda que

    Occam no tenha abordado a poltica propriamente dita, ele iluminou as noes de

    soberania do povo e de contrato poltico, segundo Dumont. Desse momento, a

    liberdade do indivduo que Occam estendeu da vida mstica vida em sociedade

    suplantou a idia de comunidade. Isso representou, ainda que implicitamente, a

    passagem da vida em comunidade para a vida em sociedade.

    Voltando Reforma, a sociedade global transformou-se em Estado

    individual, no qual o poder laico supremo e santo, haja vista a teoria do direito

    divino dos reis, e a religio teria seu santurio no interior de cada indivduo

    cristo. Em um Estado de homogeneidade religiosa como o alemo, essa

    concepo foi empreendida sem problemas. Mas em outros Estados em que havia

    a coexistncia de confisses diversas, uma nova mudana prosseguiu. Diante das

    guerras religiosas que tinham espao nesses Estados, os polticos inseridos nos

    mesmos passaram a recomendar a tolerncia religiosa quando esta fosse benfica

    para o Estado. A partir do direito de resistir perseguio de um tirano baseado

    na idia de contrato entre governantes e governados, concepo proposta pelos

    tericos jesutas do direito natural ao desenvolverem a teoria moderna, na qual o

    Estado est alicerado em um contrato social e poltico, em que Igreja e Estado se

    constituem em sociedades distintas e autnomas , esse fenmeno levaria

    afirmao do direito individual de liberdade de conscincia. Assim sendo, a

    igualdade passou a ser um imperativo existencial, de forma que a autoridade s

    podia ser exercida por delegao ou representao. Dessa forma, a questo da

    associao e da subordinao esteve no cerne das trs grandes filosofias do

    contrato que se desenvolveram entre os sculos XVII e XVIII, a saber, as escolas

    de Hobbes, Locke e Rousseau.

    O triunfo do indivduo marcado para Dumont em um sentido quando da

    promulgao da Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, em 1789.

    Nesta, o direito de liberdade de conscincia foi essencial para a constituio dos

    demais direitos do homem.

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    Todo esse processo de ascenso do individualismo moderno acabou por ser

    golpeado pela Revoluo Francesa. Considerada marca de triunfo do

    individualismo, ela deixou, no entanto, um grande vcuo relacionado, muito pelo

    contrrio, ao seu fracasso. esse vazio herdado pelos romnticos que determinou

    fortemente uma volta universitas, visando regenerao da sociedade. Das

    discusses tericas desenvolvidas a partir da Revoluo, tem-se que os pensadores

    franceses da primeira metade do sculo XIX foram levados a

    considerar o homem como ser social, a insistir nos fatores sociais que constituem a matria-prima da personalidade, e explicam, em ltima instncia, que a sociedade no redutvel a uma construo artificial na base de indivduos. (...) Nesta perspectiva, o Estado moderno corresponde apenas a uma parte da vida social, e no existe descontinuidade absoluta entre a poltica autoconsciente dos modernos e outros tipos de sociedade que o filsofo poltico propenso a colocar abaixo do limiar da humanidade adulta (Dumont, 1985, p. 119-120).

    Tem-se, portanto, um retorno a alguns elementos holistas (universitas), que

    foram anteriormente dominados, mas no extintos ao longo da ascenso do

    individualismo. Isso aproxima, em certa medida, as sociedades tradicionais e

    moderna. O surgimento do socialismo e da sociologia, datado dessa poca,

    evidencia tal encontro. Para o autor, (a) sociologia apresenta, no plano de uma

    disciplina especializada, a conscincia do todo social que se encontrava no plano

    da conscincia comum nas sociedades no individualistas (Dumont, 1985, p.

    120).

    J no socialismo tem-se a redescoberta do todo social ao mesmo tempo em

    que h a conservao de certos aspectos da Revoluo. No ocorreu um retorno

    completo ao holismo, uma vez que a hierarquia foi negada; porm, por outro lado,

    o individualismo fragmentou-se, j que foi mantido em alguns aspectos e negado

    em outros.

    Dumont soube delinear com clareza as transformaes pelas quais o

    indivduo-em-relao-com-Deus do incio da era crist foi paulatinamente se

    transformando no indivduo-no-mundo, totalmente submetido vontade de

    Deus. Da universitas societas, tem-se a conquista do direito de liberdade de

    conscincia, que acaba por inspirar outros direitos estabelecidos na Declarao

    dos Direitos do Homem e do Cidado. A igualdade torna-se um imperativo

    existencial, de forma a inviabilizar qualquer autoridade exercida de outra forma

    que no por delegao. Est-se, portanto, diante de um Estado constitudo a partir

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    de um contrato entre governante e governados. Ao fim de sua narrativa, Dumont

    ressalta o retorno da societas a alguns aspectos da universitas, mediante o fracasso

    da Revoluo Francesa e o surgimento do socialismo e da sociologia.

    2.2. Do sujeito cartesiano ao sujeito moderno: as implicaes do poder-saber na constituio do indivduo

    At o sculo XVII, Stuart Hall (2003) entende que ainda era possvel pensar

    os processos da vida moderna como centrados no sujeito da razo. Entretanto,

    com a complexificao das sociedades, a vida foi se tornando mais coletiva e

    social. As estruturas do Estado-nao, das grandes massas da democracia moderna

    e as formaes de classe do capitalismo moderno impuseram s teorias e leis

    clssicas reformulaes. Surge, ento, uma concepo mais social do indivduo,

    que passa a ser visto, localizado e definido no interior das grandes estruturas

    modernas. Hall nomeia-o como o sujeito sociolgico, formado e modificado

    continuamente pelas interaes sociais. Adquire-se a conscincia de que o ncleo

    interior do sujeito no era to autnomo e auto-suficiente como se pensava, mas

    se constitua na relao com outros. Dessa forma, a identidade preenchia o espao

    entre o mundo privado e o pblico. Era, portanto, a identidade que costurava o

    sujeito estrutura social (Hall, 2003, p. 12). As leituras darwinianas que

    tornaram o sujeito um ser biolgico e o surgimento das cincias sociais

    contriburam para a articulao de um conjunto de fundamentos que deram base

    ao sujeito sociolgico. A teoria da socializao, por exemplo, defendeu a

    concepo de haver a internalizao do exterior pelo indivduo e a externalizao

    de seu interior.

    Posteriormente, avanos na teoria social e nas cincias humanas ocorridos

    no pensamento na segunda metade do sculo XX, ou que sobre ele tiveram seu

    principal impacto, provocaram para os defensores da fragmentao da identidade

    moderna o descentramento final do sujeito cartesiano. Foram cinco os

    descentramentos apontados por Hall:

    1. d-se pela releitura, na dcada de 1960, do pensamento marxista, que atrela a ao humana s condies histricas dadas;

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    2. ocorre graas teoria freudiana quanto formulao do inconsciente. A anlise que pensadores como Lacan fazem dessa teoria prope a identidade como uma

    construo realizada ao longo da vida, tendo por base processos psquicos e

    simblicos inconscientes;

    3. diz respeito teoria de Saussure, que afirma a lngua como um sistema social, anterior a ns e atravs do qual nos expressamos, sem, portanto, qualquer

    autoria sobre as afirmaes ou os significados do que expressamos. Soma-se a

    isso o fato de que os significados das palavras tambm variam na medida em

    que se relacionam por similaridade e/ou diferena com outras palavras. Hall

    cita a noite: sabemos o que a noite porque sabemos o que o dia. O

    eu tambm conhecido em contraposio ao outro. O significado,

    portanto, inerentemente instvel: apesar de buscar o fechamento (a

    identidade), freqentemente questionado pela diferena;

    4. d-se a partir da teoria do poder disciplinar de Foucault, que afirma a construo do corpo, do indivduo, para control-lo normatizando,

    disciplinando e corrigindo. Trata-se de um corpo dcil. Os mtodos punitivos

    so considerados sob o prisma da ttica poltica; e

    5. por fim, o feminismo, no s como movimento, mas como crtica terica, na medida em que traz para o debate categorias como o privado e o pblico;

    politiza a subjetividade, questionando a formao das identidades sexuais e de

    gnero.1 Surgiu nos anos 1960 juntamente com outros novos movimentos

    sociais, por exemplo, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas e

    as lutas pelos direitos civis. A especificidade de tais movimentos diz respeito

    ao apelo identidade social de seus articuladores a mulher, os pacifistas, os

    negros, dentre outros, o que posteriormente foi chamado de poltica de

    identidade, ou seja, cada movimento defende uma identidade especfica.

    A abordagem de Michel Foucault (1987), como sinalizado, aponta para a

    constituio do indivduo ligada ao surgimento da institucionalizao das normas

    e disciplinas, com foco no corpo, empreendida por sistemas especializados. O

    1 Embora a categoria gnero s tenha sido criada como instrumento metodolgico na dcada de 1980, conforme Rose Marie Muraro (2001), por intelectuais mulheres para dar conta da entrada das mulheres no domnio pblico. De incio, seu uso est associado a apontar a discriminao que as mesmas sofriam em todos os mbitos sociais. Muraro conclui que a categoria soma-se e complementa a categoria classe social para apontar a existncia de diversas opresses ao longo da histria.

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    autor afirma que a disciplina inverte o que denominou eixo poltico da

    individualizao (Foucault, 1987, p. 160). Nas sociedades de at ento, a

    individualizao estava ligada ao poder. Ou seja, quanto maior o poder ou

    privilgio de um homem, mais individualizado ele se apresentava. E isso se fazia

    por meio de rituais coroamento do rei, por exemplo , discursos sobre as

    proezas realizadas, construo de monumentos ps-morte, entre outros. Por outro

    lado, em um regime disciplinar, a individualizao d-se por meio de fiscalizaes

    e de comparaes entre norma e desvio. Em outras palavras, o

    momento em que passamos de mecanismos histrico-rituais de formao da individualidade a mecanismos cientfico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorvel pela do homem calculvel, esse momento em que as cincias do homem se tornaram possveis, aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia poltica do corpo (Foucault, 1987, p. 161).

    Hall chama a ateno para o fato de que esse poder produto das novas

    instituies coletivas e de grande escala da contemporaneidade. Suas tcnicas

    individualizam o sujeito e seu corpo proporcionalmente sua organizao e ao

    aspecto coletivo, de forma que quanto mais organizada e coletiva for, maior ser o

    isolamento, a vigilncia e a individualizao do sujeito.

    Voltando a Foucault, este tambm ressalta a constituio do corpo

    relacionada s mudanas econmicas provocadas pelo capitalismo, que provocou

    a socializao do corpo para transform-lo em fora de trabalho. Dessa forma, foi

    necessria a criao de um sistema de sujeio que o tornasse produtivo, ao

    mesmo tempo que submisso. Tm-se, entre outras aes, a rotinizao do

    processo produtivo com sua cronometrizao, a construo de diversos conceitos

    e campos de anlise subjetividade, conscincia, personalidade, psique para

    falar da alma, porm, visando ao controle do corpo: Uma alma o habita e o leva

    existncia, que ela mesma uma pea no domnio exercido pelo poder sobre o

    corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia poltica; a alma, priso do

    corpo (Foucault, 1987, p. 29).

    E a prpria criao do dispositivo da sexualidade. O termo dispositivo

    tem para Foucault trs dimenses: uma diz respeito ao conjunto de discursos,

    instituies, leis, enunciados cientficos, proposies filosficas, entre outros, ou

    seja, o dispositivo a rede que abarca esses elementos, que podem ser ou no

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    discursivos. A segunda dimenso a da natureza dessas relaes, na forma de

    jogo, em que mudanas de posies, de funes, podem ocorrer. A terceira trata

    da funo estratgica dominante relacionada a um determinado momento

    histrico, em que um dispositivo tem por funo principal responder a uma

    urgncia.

    O dispositivo , portanto, para o autor, um conjunto de estratgias de

    relaes de fora que sustenta tipos de saber e por eles, da mesma forma,

    sustentado.

    Para Foucault, a sexualidade define-se da seguinte forma:

    o nome que se pode dar a um dispositivo histrico: no realidade subterrnea que apreende com dificuldade, mas grande rede da superfcie em que a estimulao dos corpos, a intensificao dos prazeres, a incitao ao discurso, a formao dos conhecimentos, o reforo dos controles e das resistncias, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratgias de saber e poder (Foucault, 1985, p. 100).

    Logo, o dispositivo da sexualidade tem por finalidade no o reproduzir,

    mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada

    vez mais global (Foucault, 1985, p. 101), constituindo-se na verdade do sexo e

    de seus prazeres. Uma verdade que, por se esconder do indivduo, precisa ser

    perscrutada atravs das confisses que, de prtica religiosa, acabam por se tornar

    prtica cientfica.

    Dessa forma, a partir do sculo XVIII possvel delinear quatro grandes

    grupos estratgicos que desenvolvem dispositivos de saber e poder a respeito do

    sexo. So eles:

    a) histerizao do corpo da mulher: processo trplice, pelo qual o corpo da mulher

    tornou-se um corpo integralmente saturado de sexualidade, sob o efeito de

    patologia intrnseca a ele e em comunicao com a sociedade, cuja fecundidade

    foi regulada com o espao familiar, no qual deve ser elemento substancial e

    funcional, e com a vida das crianas, que deve produzir e garantir. Assim, a Me,

    com sua imagem em negativo que a mulher nervosa, constitui a forma mais

    visvel desta histerizao (Foucault, 1985, p. 99);

    b) pedagogizao do sexo da criana: a criana torna-se um ser sexual liminar

    ao mesmo tempo aqum e j no sexo, sobre uma linha de demarcao perigosa.

    Caber aos educadores, familiares, mdicos e, posteriormente, psiclogos zelar;

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    c) socializao das condutas de procriao: controle/regulamentao da

    sexualidade;

    d) psiquiatrizao do prazer perverso: a partir do isolamento do instinto sexual

    como instinto biolgico e psquico autnomo, realizou-se o mapeamento clnico

    de todas as formas de anomalias que poderiam abat-lo, definindo padres de

    normalidade e patologia e uma respectiva tecnologia corretiva para as anomalias.

    Esses novos discursos a respeito das sexualidades perifricas originam uma nova

    especificao dos indivduos: enquanto o praticante de sodomia era nos antigos

    direitos civil ou cannico um sujeito jurdico, no sculo XIX ele se transforma em

    detentor de uma histria, uma anatomia e, por vezes, uma fisiologia misteriosas.

    Logo, indivduo e sexualidade tornam-se indissociveis. Na prtica, isso quer

    dizer que, enquanto o sodomita era considerado um reincidente, o homossexual se

    converteu em uma espcie.

    Em sntese, Foucault pontua que a colocao do sexo em discurso

    (Foucault, 1985, p. 24) remonta tradio asctica e monstica. Afinal, o

    cristianismo forjou o sexo como o ncleo no qual a verdade do sujeito humano

    est inserida. Por meio das confisses, dos exames de conscincia, a sexualidade

    foi colocada no centro da existncia e da salvao, para a qual o domnio de seus

    movimentos obscuros se faz necessrio. No entanto, a partir do sculo XVII, a

    prtica da confisso generaliza-se e massifica-se, implicando uma acelerada

    fermentao discursiva (Foucault, 1985, p. 23) a respeito do sexo,2 no prprio

    mbito do exerccio de poder, pelo incitamento institucional para se falar do sexo,

    um falar sempre mais e com mais detalhes. Esse incitamento objetiva a anlise, a

    categorizao, a especificao do sexo por meio de pesquisas cientficas que se

    sobrepem aos discursos morais relacionados Igreja, a fim de o inserir, de forma

    regulada, em sistemas de utilidade para o bem de todos. Ainda que o casal

    heterossexual, cuja sexualidade chamada por Foucault de regulada, tenha sido

    2 nesse perodo, entre os sculos XVIII e XIX, conforme citao de Rohden (2004) ao trabalho de Laqueur (1992), que surge a noo de dois sexos biolgicos distintos. At ento, segundo tal autor, o modelo sexual predominante, herdado dos gregos, entendia a existncia de apenas um sexo biolgico e pelo menos dois gneros. Homem e mulher eram biologicamente iguais, sendo na mulher internos o pnis e os testculos. Os gneros eram, ento, incutidos social e culturalmente. Ainda segundo Laqueur, esse modelo vigorou at o Renascimento, quando uma srie de fatores vai propiciar a construo do modelo de dois sexos. Um desses fatores, por exemplo, de cunho epistemolgico, d-se a partir da observao dos atos determinantes da biologia. Para mais informaes a respeito da constituio dos saberes sobre o sexo e da elaborao da noo de diferena sexual, ver ainda Fabola Rohden (2005).

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    at certo ponto preservado nesse processo pela aliana legtima (a matrimonial),

    tendo direito a uma maior discrio, a medicina penetrou em seus prazeres,

    inventando patologias orgnicas, funcionais e mesmo mentais a partir das

    prticas sexuais incompletas, e relacionando-os ao desenvolvimento e s

    perturbaes do instinto; enfim, gerindo-os.

    Em suma, Hall evidencia as conseqncias que o desenvolvimento das

    teorias sociais e das cincias naturais desencadeou sobre a concepo de indivduo

    contemporneo. A percepo agora de um indivduo que se constitui ao longo da

    vida a partir de processos inconscientes e de contraposio aos outros, cujas

    aes esto atreladas s condies histricas. Um corpo dcil, no entanto,

    politizado. Em funo das anlises de Foucault, essa afirmao pde ser feita e

    Hall reconheceu nelas os dois ltimos descentramentos do sujeito cartesiano.

    Foucault apresenta o processo de individualizao via sujeio do corpo ao poder

    disciplinar e particularmente ao dispositivo da sexualidade. Das confisses

    religiosas s prticas cientficas, tem-se uma exploso de discursos sobre o sexo

    que guarda um segredo fugidio ao prprio sujeito e que, por isso, precisa ser

    investigado. Um segredo que contm o cerne do indivduo. Se at o sculo XVII

    existia apenas a carne, no sculo XVIII h a constituio de uma sexualidade, e a

    partir do sculo XIX, um sexo, em um corpo dcil, disciplinado. No entanto, os

    mesmos dispositivos de verdade que se impem aos indivduos, especialmente

    mulher histerizada e aos homossexuais pervertidos, fornece os elementos com os

    quais esses indivduos podero empreender um contradiscurso em sua defesa. Isso

    culmina, por exemplo, com os movimentos feminista e LGBT. Finalizo este

    percurso de apresentao da constituio do sujeito como um constructo histrico

    perpassado por estratgias de poder, traando em linhas bem gerais o cenrio

    atual.

    Alm da medicina, como apresentado anteriormente, outros sistemas

    especializados substituram, na contemporaneidade, o conhecimento

    proporcionado pela tradio, transmitido de gerao em gerao, e passaram a

    difundir conhecimento tcnico independentemente de quem faria uso do mesmo.

    Permeando todas as esferas da vida social, seja em relao aos remdios que se

    tomam, casa que se manda construir, ao carro que se dirige, ou ao terapeuta que

    se procura na busca do autoconhecimento, dentre muitos outros, esses sistemas

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    so marcados pela reflexividade,3 conforme conceituada por Anthony Giddens

    (2002), que mina as certezas do conhecimento. A cincia passou a se basear no

    princpio metodolgico da dvida, ciente de que novos conhecimentos podero

    surgir, conhecimentos esses que alteraro ou mesmo anularo uma determinada

    doutrina cientfica j aceita. Em termos existenciais, esse contexto traz em si um

    ceticismo generalizado associado razo providencial4 e a conscincia de que o

    bem e o mal esto contidos na cincia e na tecnologia; portanto, tanto podem

    trazer risco e perigo para a humanidade quanto benefcios.

    Vale ressaltar que a dvida institucionalizada torna o papel do especialista,

    que o apenas na sua rea de atuao, fundamental no processo de reflexividade,

    na medida em que referncia para as prticas sociais, e alimenta a ideologia da

    inovao e da marcha adiante, como afirma Zygmunt Bauman (1998).

    Tem-se, portanto, um quadro perturbador: a vida enquadrada por sistemas

    especializados que, ao mesmo tempo, no contm a verdade nica. Em meio a um

    caos organizado, os parmetros que constituram o sujeito at ento tambm se

    alteraram e deram a ele a experincia de multiidentidades ou identidades mveis.

    A identidade contempornea passa a ser: formada e transformada continuamente

    em relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos

    sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 2003, p. 13).

    Soma-se essa exploso de identidades excessiva reflexividade

    institucional, s incertezas de uma vida em constante mudana, a vetores de

    poder, e surge um sujeito como projeto de sua prpria reflexividade, dono de uma

    biografia que ressignificada continuamente.

    Em suma, as transformaes que marcam a contemporaneidade conduzem

    fragmentao das identidades de classe, gnero, sexualidade, etnia, raa e

    nacionalidade, que no passado haviam fornecido aos indivduos claras

    localizaes sociais. Tais mudanas colocaram em dvida a idia que temos de

    ns prprios como sujeitos integrados (Hall, 2003, p. 9). Essa dupla descentrao

    dos sujeitos, tanto do seu lugar no mundo social e cultural como de si mesmos,

    gerou uma crise de identidade, que aponta para a possibilidade de novas

    articulaes novas identidades, por vezes at contraditrias. Nesse percurso,

    3 Giddens conceitua a reflexividade institucional da seguinte forma: a reflexividade da modernidade, que envolve a incorporao rotineira de conhecimento ou informao novos em situaes de ao que so assim reconstitudas ou reorganizadas (Giddens, 2002, p. 223). 4 Crena de que, quanto maior o conhecimento a respeito da natureza das coisas, mais segura ser a existncia humana.

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    Beck (1997) assinala o processo de individualizao, no qual a antiga biografia

    padronizada do sujeito iluminista tornou-se uma biografia ressignificada, ou, nas

    palavras de Giddens, uma biografia reflexiva, que lana o ser humano em um

    estado de incerteza permanente no limitado prpria sorte, mas que se estende

    futura configurao do mundo e aos critrios de erro e acerto exigidos para se

    viver nele.

    Est dada, portanto, a grande virada histrica: do discurso nico da verdade

    s mltiplas verdades das cincias e dos corpos. nesse cenrio que o Movimento

    LGBT,5 objeto de minha pesquisa, se insere, tendo ele mesmo se organizado em

    torno de mltiplas identidades: os gays, as lsbicas, os bissexuais e os

    transgneros, esta ltima aglutinando outras duas: os travestis e os transexuais.

    Para se delimitarem tais identidades, no entanto, um caminho precisou ser

    percorrido, no o da mera criao de novos nomes, mas o da formao de

    conceitos e simbolismos inerentes que estabelecero quem tem o poder

    hegemnico, cujas crenas sociais o reiteraro. Esse o tema do prximo

    captulo.

    5 Segundo Castells (2001), a origem do movimento de lsbicas est associado ao movimento feminista. Em uma viso simplista, o autor cr que a identificao do homem como inimigo de classe permite que o lesbianismo latente em algumas mulheres venha tona. Quanto ao movimento gay, ele identifica trs fatores: o clima de rebelio provocado pelos movimentos questionadores da dcada de 1960; o impacto do feminismo sobre o patriarcalismo, uma vez que ao questionar a categoria mulher, questiona por extenso a categoria homem; e a represso violenta contra a homossexualidade. Ele assinala ainda trs outros fatores que contriburam para o surgimento de ambos os movimentos lsbico e gay: um menor controle sobre o indivduo no mundo do trabalho graas a uma economia informacional que fez surgir novos tipos de empregos e uma rede de negcios mais flexvel; a popularidade da liberao sexual to propalada pelos movimentos da dcada de 1960; e a prpria separao fsica e psicolgica entre homens e mulheres. Castells reconhece que essa afirmao controversa e esclarece que, embora homossexualidade e heterossexualidade possuam uma existncia e um padro de desenvolvimento independentes, a profunda ciso provocada pelo discurso feminista e a incapacidade da maioria dos homens de lidar com a perda de privilgios acabaram por gerar redes de amizade e apoio entre pessoas do mesmo sexo, em que foi possvel a vivncia de diversas formas de expresso do desejo.

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