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1 MARCELO DE SALETE SOUZA A configuração da curadoria de arte afro-brasileira de Emanoel Araujo Dissertação para obtenção do título de mestre do Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profª. Drª. Dilma de Melo Silva, na área de concentração História e Historiografia da Arte. Este trabalho tem apoio da FAPESP. Universidade de São Paulo São Paulo 2009

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MARCELO DE SALETE SOUZA

A configuração da curadoria de arte afro-brasileira de Emanoel Araujo

Dissertação para obtenção do título de mestre do Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profª. Drª. Dilma de Melo Silva, na área de concentração História e Historiografia da Arte. Este trabalho tem apoio da FAPESP.

Universidade de São Paulo São Paulo

2009

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Dedico este trabalho à presença constante de Alaíde de Salete Souza,

à memória viva de Cláudio de Salete Souza,

à simplicidade de Francisco Benedito Souza,

à cumplicidade de Marcos e Sheila e à rica vida de Robson.

Dedico também aos amigos e companheiros

que tornaram este estudo possível

e em especial à amizade de Uirai Fuscaldo.

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Banca Examinadora Data: ____/___/___

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço aos meus professores e amigos. Gostaria de pontuar

aqui cada um em especial que contribuiu para este trabalho. Infelizmente, a escassez de

espaço não torna isso possível.

Em especial tenho de lembrar as ricas entrevistas realizadas com Maria Lucia

Montes, Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Gilberto Habib, Renata Felinto, Oswaldo

de Camargo, Maria da Betânia Galas e o próprio Emanoel Araujo. Sem estas

contribuições, este trabalho não seria possível. É preciso destacar também a ajuda de Ana

Lúcia Lopes e Percival Tirapelli. Mais do que material importante de pesquisa, todas

essas colaborações engrandeceram o meu olhar.

Durante seu desenvolvimento, este trabalho contou com a colaboração dos

funcionários do Museu Afro Brasil (em especial, Romilda Silva, Isabel Monteiro e

Claudio Nakai); dos funcionários da Biblioteca da Estação Pinacoteca; dos funcionários

do CEDOC, e dos funcionários da Biblioteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A todos estes sou muito grato pela ajuda.

Além disso, e de extrema importância, revelo minhas especiais considerações à

leitura sempre atenta de Brisa Batista e de Allan Santos da Rosa. Certamente, este texto,

em sua contínua reescrita, foi melhorado com o apoio destes. Mais do que isso, eles

foram interlocutores preciosos. Como não poderia deixar de mencionar, o apoio da

FAPESP foi essencial para a concretização desta dissertação.

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Resumo

Este trabalho objetiva realizar um estudo sobre a curadoria de Emanoel Araujo, artista,

colecionador e curador baiano. Focaremos compreender os interesses do curador em suas

mostras sobre arte afro-brasileira. A atividade de Araujo acontece dentro do museu de

arte e tem como objetivo último o ato expositivo. A sua maneira de ordenar as obras de

arte no espaço cria uma narrativa sobre arte afro-brasileira que poucas vezes foi abordada

dentro do museu. Perceber como é efetivada essa história, bem como quais são as

conseqüências dela para a história da arte no Brasil, é uma tarefa urgente. O universo da

exposição de Araujo, como um espaço privilegiado de debate e confronto, é de grande

relevância para compreender como se efetiva a visualidade e representação do negro em

toda a sociedade brasileira. Nesse sentido, a explanação sobre as principais exposições de

Araujo no Brasil traz problemas e interrogações relevantes para se pensar a arte afro-

brasileira e a arte brasileira como um todo. A curadoria da arte afro-brasileira de Araujo

é ainda um campo de poucas abordagens acadêmicas. Pontuar como começou essa ação,

como se efetivou e os seus desdobramentos dentro da história da arte é o nosso

propósito.

Palavras-chave: Emanoel Araujo. Arte afro-brasileira. Artes Plásticas. Museologia.

Exposição. Curadoria.

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Abstract

This paperwork intends to make a study about Emanuel Araujo’s directorship. He is a

notable baiano artist, collector and also a museum’s headman. The main focus is the

searching about his intention on the exhibitions of Afro-Brazilian art. Araujo’s work

happens inside the art museum and has the main target the expositive act. His way to

organize the art pieces in the museum’s space creates an unique narrative, many times

not as important as the exhibitions itself. Realize how this history is constructed and their

consequence to the History of Arts in Brazil is extremely urgent. The single universe of

the exposition, as a privileged space for debate and the confront between the elements is

very relevant to understand how the visibility and representative of the Negro individual

is really effective in the society. This study also focuses how the Afro-Brazilian Arts

appear in the literature about the theme. Besides, the explanation about Araujo’s

principal exhibitions in Brazil brings relevant questions and problems to reflect about the

Afro-Brazilian Arts and also all the Brazilian Arts fields. His narrative in Afro-Brazilian

Arts is a field still not much spoken in the academic environment. Point how this

movement has began, its effectuation and the future disenrollment in the History of Arts

is this paperwork purpose.

Keywords: Afro-Brazilian Arts. Emanuel Araujo. Museum. Exhibitions. Arts in Brazil.

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Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

1. SOBRE ARTE AFRO-BRASILEIRA ......................................................................... 15

A arte brasileira de Luis Gonzaga-Duque Estrada ....................................................... 17

O projeto “mulato” de Mário de Andrade .................................................................... 21

A “arte negra” de Nina Rodrigues ................................................................................ 23

Estudos recentes sobre arte afro-brasileira ................................................................... 25

Artistas negros e afro-brasileiros .................................................................................. 34

Arte afro-brasileira na curadoria de Emanoel Araujo ................................................... 37

2. O MUSEU E O ESPAÇO DA EXPOSIÇÃO............................................................... 43

O museu tradicional e a nova museologia .................................................................... 45

O museu tradicional e a arte de origem não-ocidental ................................................. 49

Cultura e arte afro-brasileira no museu ........................................................................ 52

Novas práticas museológicas e a exposição de Emanoel Araujo ................................. 59

3. AS FACES DO CURADOR ........................................................................................ 64

O artista ......................................................................................................................... 65

O colecionador .............................................................................................................. 71

O curador ...................................................................................................................... 74

4. O CONTEXTO DAS EXPOSIÇÕES ........................................................................... 81

Poética do acúmulo ....................................................................................................... 82

Exotismo ....................................................................................................................... 86

Memória e reconhecimento .......................................................................................... 90

Um momento preciso .................................................................................................... 94

Ambigüidade ................................................................................................................. 96

Ancestralidade ............................................................................................................ 100

5. AS EXPOSIÇÕES SOBRE ARTE AFRO-BRASILEIRA ........................................ 104

A Mão Afro-brasileira ................................................................................................ 106

Vozes da Diáspora ...................................................................................................... 111

Os Herdeiros da Noite – Fragmentos do imaginário negro ........................................ 115

Negro de Corpo e Alma .............................................................................................. 120

Brasileiro, Brasileiros ................................................................................................. 125

Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade ............................... 128

Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau.............................................................. 130

Negros Pintores ........................................................................................................... 133

Brasil – Terra de Contrastes ....................................................................................... 134

De Valentim a Valentim ............................................................................................. 136

Artistas afro-brasileiros do acervo permanente do Museu Afro Brasil ...................... 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 143

ANEXOS ........................................................................................................................ 153

Anexos de imagens ..................................................................................................... 154

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Anexos de entrevistas ................................................................................................. 196

Entrevista de Emanoel Araujo .................................................................................... 197

Entrevista de Maria Lucia Montes .............................................................................. 200

Entrevista de Gilbero Habib Mendonça ..................................................................... 213

Entrevista de Carlos Eugênio Marcondes de Moura .................................................. 228

Entrevista de Maria da Betânia Galas ......................................................................... 232

Entrevista de Oswaldo de Camargo ............................................................................ 234

Entrevista de Renata Felinto ....................................................................................... 236

Relação de parte das exposições com destaque sobre arte afro-brasileira e da África de Emanoel Araujo .......................................................................................................... 243

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 244

Referências bibliográficas de ou sobre Emanoel Araujo ............................................ 244

Referência bibliográfica geral ..................................................................................... 248

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Introdução

Este trabalho é um estudo sobre arte afro-brasileira nas exposições de Emanoel

Araujo. Pretendemos compreender o que é essa curadoria e como ela se efetiva no

espaço expositivo. Desse modo, focaremos o estudo dos seus antecedentes e de seu

contexto – tanto em sua esfera social como na especificidade das experiências do

curador.

Embora tenhamos como foco a curadoria de Araujo que remete ao universo afro-

brasileiro, o autor não se pautou somente por esse fenômeno. Ele abordou a arte erudita

internacional e propôs a compreensão da história da arte nacional focando a presença do

negro na arte. Em especial, a proposta do curador realizou uma narrativa da arte afro-

brasileira através dos objetos de arte, engendrando uma história do negro na arte

brasileira que poucas vezes foi evidenciada.

Em relação à curadoria, usamos este conceito para nos referir ao conjunto das

exposições de arte afro-brasileira de Araujo. Mais do que apenas uma mostra, a curadoria

demonstra um pensamento que perpassa diversas exposições. Essa é uma ação que

acontece num conjunto de trabalhos. A curadoria de Araujo não se apresenta

pontualmente em uma mostra, mas como um pensamento que se constrói, afirma,

polemiza e debate pela sua continuidade.

Cabe relatar os principais fatos biográficos sobre o curador Emanoel Araujo.

Baiano, nasceu em Santo Amaro em 15 de novembro de 1940. É adepto do candomblé,

filho de Ogum. Estudou na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia.

Trabalhando primeiramente com gravura, após algumas exposições na Bahia, passou a

apresentar seu trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em meados da década de

1970, o artista voltou-se à escultura. Em 1977 viaja para o II Festival Mundial de Artes

Negras na Nigéria. De 1981 até 1983 foi diretor do Museu de Arte da Bahia. Lá realizou

as suas primeiras exposições, como a mostra Bahia–África–Bahia (1983), entre outras.

Em 1988 ele organiza a exposição A Mão Afro-brasileira no Museu de Arte Moderna de

São Paulo. Posteriormente, tornou-se diretor na Pinacoteca de São Paulo, cargo que

ocupou durante duas gestões na década de 1990. Em 2004, após longa trajetória

pesquisando e expondo arte de ascendência negra, Araujo inaugura o Museu Afro Brasil.

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As exposições de arte afro-brasileira de Araujo adquirem pertinência como fator

de representação social. Isso está ligado diretamente às negociações para o

reconhecimento de grupos que historicamente foram alijados de suas próprias narrativas.

Essa necessidade de reconhecimento adquiriu grande envergadura na vida social

contemporânea, afetando a forma como entendemos a história e a vida em sociedade. Por

fim, não poderia deixar de afetar a forma que entendemos a arte brasileira.

Cabe definir um pouco melhor o termo arte afro-brasileira1. O estudo mais

detalhado deste fenômeno está descrito no primeiro capítulo deste trabalho. Antes disso,

porém, é importante procurar orientar nossa leitura em um sentido mais próximo de

nossas preocupações, já que esses estudos remetem a problemas bem diversificados e

complexos. Pretendemos entender o conceito de arte afro-brasileira de uma maneira

ampla. Isso significa tentar abarcar grande parte dos discursos sobre o conceito. E quais

são os principais dispositivos que temos para compreender o problema hoje? Podemos

sintetizar as principais tendências em: primeiro, arte afro-brasileira é produzida por

artistas ligados a cultos afro-brasileiros; segundo, arte afro-brasileira é produzida por

autores razoavelmente próximos da cultura negra; terceiro, arte afro-brasileira é

produzida por autores que remetem ao universo plástico e social do negro no Brasil. De

certo modo essas são as principais tendências para se pensar arte afro-brasileira.

Nenhuma delas é definitiva2.

Pensar em arte afro-brasileira é balizar todas essas formas de enxergar o

fenômeno. A contribuição dessa última tendência talvez seja a mais próxima do nosso

objetivo, procurando na forma do trabalho e em seu contexto as relações de uma

1 Tratar de arte afro-brasileira pode abranger a escultura, a pintura, o desenho, a dança, a literatura, a oralidade, o teatro, enfim, um conjunto vasto de manifestações culturais que tem na estética grande importância, senão mesmo sua razão principal. Diversos estudos têm utilizado esse termo deste modo. Contudo, em nosso caso, usamos o termo para nos referir especificamente ao que está mais próximo do que convencionamos chamar de artes plásticas – a escultura, a pintura, a gravura, o desenho e as manifestações próprias da história da arte contemporânea. É nesse sentido que a bibliografia mais precisa sobre o problema tem tratado esse universo (o que é melhor desenvolvido no Capítulo 1). 2 Realizando uma digressão sobre outro termo que tangencia nossa pesquisa, o uso de conceitos sobre “raça” neste trabalho objetiva sua aplicação dentro do universo social e cultural brasileiro. Exclui-se desse modo, então, o seu sentido biológico, pois esse não corresponde a grupos humanos. Por outro lado, para parte da academia, para os grupos negros organizados e para o público em geral o termo raça ainda é usado para caracterizar e distinguir grupos e pessoas. Jacques d’Adesky, em livro sobre pluralismo étnico e multiculturalismo no Brasil, descreve que “a desconstrução científica da raça biológica (...) não faz desaparecer a evidência da raça simbólica, da raça percebida e, invariavelmente, interpretada” (D’ADESKY, 2001, p. 46). Do mesmo modo, empregamos o termo “etnia” em associação com “raça” (étnico-racial) por compreender que este também revela uma noção de pertencimento coletivo pertinente, o que, em nosso caso, pode remeter à aspiração de objetivos comuns para um determinado grupo.

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produção afro-brasileira. Porém, consideramos que devemos estar atentos à constância e

pertinência de todas essas vertentes na obra de cada artista.

No mesmo sentido, vale analisar como usamos o termo artista afro-brasileiro.

Esta definição serve para os artistas, independentemente de sua origem étnico-racial, que

produzem obras de arte sob influência da cultura afro-brasileira. Isso pode transparecer

na forma estilística da obra ou no problema tratado. Embora esse modo de compreender

o tema seja bem amplo e repleto de sutilezas, não é nosso interesse enrijecer essa visão.

Nesse sentido, cremos que ela é a que mais se aproxima do modo como o curador Araujo

pensa e cria suas exposições focadas numa arte de origem afro-brasileira.

Por outro lado, usamos o termo artista negro para nos referirmos aos artistas que

não produzem uma obra diretamente sob o signo da cultura afro-brasileira. Esse artista,

muito freqüente nas exposições de Araujo, traz diversos outros problemas em relação ao

seu contexto e criação. Por hora, resta entender que o artista negro, que opera sua arte

geralmente sob influência européia (como diversos dos artistas negros acadêmicos do

século XIX), tem sua relevância enquanto artista que produz seu trabalho em condições

diferentes das de seus companheiros não-negros. Em outros termos, mesmo trabalhando

num código ocidental, a condição étnico-racial desse artista negro pode interferir

consideravelmente em seu trabalho final.

Assim como definimos uma perspectiva de leitura do conceito de arte afro-

brasileira, cabe descrever rapidamente o seu suposto oposto, a arte de ascendência

européia. Para a realização deste estudo, foi preciso destacar essas experiências em

campos diferenciados. Todavia, os entremeios, as nuances e o jogo entre esses territórios

são constantes. Não pretendemos recorrer a conceitos essencialistas. O diálogo entre

essas culturas ocorre continuamente, porém, isso não deixa de evidenciar que elas são

diferenciadas, observadas e sentidas em suas singularidades.

Quando inferimos sobre a arte de origem européia, assim, nos referimos a uma

produção que se vincula à história e técnica da arte ocidental. Em todo caso, essa história

e técnica não são sempre restritamente ocidentais. Por exemplo, a influência da arte não-

ocidental, da África e Oceania, no modernismo (que tem sua marca maior no cubismo),

aponta para hibridismos duradouros. Por outro lado, mesmo bebendo de uma fonte fora

da Europa, isso não impede que os artistas modernos sejam reconhecidos como

autênticos artistas da história da arte ocidental. A arte de origem européia passa a ser,

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então, um conceito usado para se diferenciar de obras de arte não-ocidentais, devido a

fatores de feitura, contexto, assim como o reconhecimento do público, do mercado, da

crítica e dos artistas. Mais do que características intrínsecas, assim, há um contexto que

legitima o que consideramos como ocidental ou não-ocidental.

No mesmo sentido, em nosso ambiente, arte não-ocidental passa a ser uma arte

que, em geral, não é reconhecida como própria da história da arte européia. Nesse caso,

arte não-ocidental pode ser a arte tradicional da África como também parte da arte afro-

brasileira. Em relação a arte afro-brasileira, é importante situar essa afirmação com

cautela. Ela se refere a uma arte tradicional (como as esculturas rituais dos Iorubas no

Brasil), mas cria outros problemas se tentamos abarcar a produção de artistas como

Rubem Valentim. A arte contemporânea afro-brasileira, de forte influência conceitual

européia ou norte-americana, está num terreno movediço entre esses dois campos – o

ocidental e o não-ocidental. Analisaremos com mais atenção essa característica no

Capítulo 1.

O uso de arte da África em nosso estudo também não pretende sintetizar toda a

experiência artística desse continente em um único modo de ver. Arte da África remete a

uma heterogeneidade grande de culturas e cruzamentos, o que nem sempre é percebido

pelo senso comum em exposições no ocidente. Não é nosso objetivo destrinchar todo

esse universo, o que seria por demais oneroso no momento. Para nós, interessa saber o

modo como esse conceito é utilizado e veiculado nas exposições no ocidente, percebendo

que ele pode encobrir ao invés de desnudar. Desse modo, a partir do uso desse termo,

não podemos esquecer a complexidade e diversidade de experiências as quais ele se

refere.

Esta pesquisa foi baseada em estudos acadêmicos, na consulta a documentos,

jornais e catálogos. Utilizamos a contribuição de colaboradores do curador para nos

embasarmos no entendimento das exposições de arte afro-brasileira realizadas na

Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Afro Brasil. As entrevistas aumentaram

as possibilidades de estudo do tema, além de ajudar a compor o panorama de um

período. Elas forneceram maior complexidade ao fenômeno analisado, bem como a

necessidade de pensar essa experiência.

Sobre os entrevistados, Maria Lucia Montes atuou junto à curadoria de Emanoel

Araujo por cerca de 10 anos, no período de 1995 até 2005. Socióloga, curadora,

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professora e pesquisadora, ela nos forneceu depoimento sobre as exposições de Araujo

desde a Pinacoteca até o início do Museu Afro Brasil. Montes colaborou na elaboração

de projetos, catálogos e na concepção das exposições. Gilberto Habib também atuou

junto a Araujo por quase 10 anos. Formado em artes plásticas e museologia, ele observou

a ação de Araujo pelo viés histórico, museológico e da prática de montar exposições.

Carlos Eugênio Marcondes de Moura, pesquisador, colabora com as exposições de

Araujo há cerca de 20 anos. Maria da Betânia Galas é formada em arte-educação e foi

consultora das exposições de Araujo no Museu Afro Brasil. Oswaldo de Camargo é

escritor e estudioso da literatura negra no Brasil. Ele foi colaborador de diversas

exposições de Araujo e é consultor do mesmo Museu. Temos também o relato de Renata

Felinto, consultora de arte educação do Museu Afro Brasil e pesquisadora de arte afro-

brasileira. Por fim, a fala do próprio curador contribuiu ainda mais para a complexidade

deste trabalho.

O movimento maior desta dissertação inicia-se dos temas mais amplos para o

mais específico. No primeiro capítulo procuraremos contornar o campo de nossa atuação:

a arte afro-brasileira dentro das exposições de Araujo. No capítulo seguinte, focaremos o

estudo do local onde este trabalho se desenvolve, a exposição de arte dentro do museu.

No terceiro capítulo buscamos a análise do curador pelas suas diversas atividades no

campo da arte (artista, curador e colecionador), procurando sua síntese na exposição.

Passaremos, no quarto capítulo, para a análise da forma e dos conceitos que contornam a

curadoria de Araujo. E, por fim, no quinto capítulo, estudaremos algumas das exposições

de arte afro-brasileira do curador baiano.

Desse modo, o Capítulo 1 pretende abarcar parte da produção acadêmica sobre

arte afro-brasileira. Nosso interesse foi resgatar as principais contribuições a respeito de

uma possível definição do termo. Assim, optamos por confrontar estudiosos tanto da

crítica de arte quanto da etnologia. Posteriormente, procuramos analisar o uso desse

conceito nas exposições do curador.

O Capítulo 2 pretende realizar um pequeno histórico sobre o museu dentro da

história ocidental, focando a sua forma de atribuir significados sobre as artes de origem

não-ocidental. Além disso, o pensamento a respeito de uma nova narrativa dentro do

museu – o uso de diferentes formatos e dispositivos para contar histórias – é parte das

proposições atuais que permeiam essa instituição.

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O Capítulo 3 busca analisar a curadoria de Araujo em suas diversas nuances. A

pesquisa sobre o colecionador, artista e curador Araujo foi o objetivo desse texto. O seu

pensamento enquanto curador possui bases nessas experiências.

O Capítulo 4 baseia-se na compreensão do contorno das exposições de Araujo.

Procuraremos aqui o estudo dos conceitos e processos que alicerçam o seu pensamento.

Desse modo, torna-se pertinente o estudo de conceitos como exotismo, acúmulo,

ambigüidade, memória, reconhecimento e ancestralidade.

No Capítulo 5 observaremos mais especificamente a análise do ato expositivo de

Araujo. A exposição é a ferramenta com que o trabalho curatorial se mostra ao público.

Assim, tornou-se importante balizar o estudo dessa curadoria a partir da análise do

espaço expositivo e das obras que constroem esse discurso, bem como sobre seu

contexto.

Devido à grande atividade de Araujo como curador, torna-se por demais

dispendioso a análise específica de todas as suas exposições. Isso é certamente uma

contribuição para outras pesquisas. Contudo, através de alguns exemplos, cremos poder

analisar o centro de suas preocupações sobre a arte afro-brasileira.

Araujo criou uma forma específica de pensar a arte afro-brasileira dentro do

museu. Porém, os estudos anteriores sobre essa personalidade tiveram seu interesse

principalmente em seu trabalho artístico (KLINTOWITZ, 1981; ALMEIDA, 2007;

PRESTON & ARAUJO, 1987; entre outros). A tarefa de dimensionar e compreender

essa experiência curatorial ainda não foi realizada. Nosso objetivo é contribuir para esse

debate e suas conexões com o ambiente artístico brasileiro.

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1. Sobre arte afro-brasileira

Analisar arte afro-brasileira é navegar em mares conturbados. Primeiro porque é

um campo pouco consolidado e preciso. Segundo, porque o próprio qualificativo da arte

aqui analisada encontra-se em estado de definição. Além disso, há poucos estudos sobre

o tema e esses se apresentam esparsamente na literatura acadêmica e na crítica de arte.

Ainda assim, procuraremos a seguir apresentar um breve panorama histórico da

formação desse campo3.

Inicialmente, adotaremos como definição de arte afro-brasileira aquela produção

material que de algum modo faz referência ao imaginário da cultura africana ou daquilo

que em nossa própria cultura consideramos como sendo originário daquele continente.

Desse modo, abordaremos alguns pesquisadores que se debruçaram sobre o tema.

Os primeiros trabalhos que mostraremos apenas fornecem o contorno do nosso

universo. Nesse sentido, trazemos a crítica de arte de Luis Gonzaga-Duque Estrada,

apresentando os indícios de uma história da arte no Brasil, preocupada com uma

orientação artística voltada para a ascendência européia. Mario de Andrade altera o

sentido desse vértice quando firma o seu objetivo artístico em torno de um artista mulato,

Antonio Francisco Lisboa (o Aleijadinho). Nina Rodrigues, no início do século XX, traz

abordagens próximas do universo da religião e estética do negro no Brasil. Finalmente, a

partir da segunda metade do século XX, Mario Barata, Clarival do Prado Valladares,

Marianno Carneiro da Cunha, George Nelson Preston, Marta Heloísa Leuba Salum,

dentre outros, são os pesquisadores que analisaram mais precisamente o nosso problema

– a arte afro-brasileira.

3 As obras produzidas por artistas afro-brasileiros, como as de Rubem Valentim, Agnaldo Manoel dos Santos, Emanoel Araujo, Rosana Paulino, as da família Julião, dentre as de diversos outros artistas, remetem ao universo da arte do negro no Brasil. Claro está que o sentido e problema trazido por cada uma dessas vertentes artísticas é diverso. Uns mais e outros menos, porém, tanto a crítica de arte quanto os artistas e público reconhecem algum tipo de referência de origem afro-brasileira nessa produção, seja ela presente na forma ou no contexto da obra. A nossa intenção no texto a seguir é apresentar um breve panorama histórico de alguns problemas pertinentes ao estudo desse tema e nuances.

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A arte brasileira de Luis Gonzaga-Duque Estrada

Em fins do século XIX a intelectualidade brasileira procurava constituir e

delinear uma identidade para o país. Após o período romântico do indianismo, novas

idéias do Antigo Continente passam a influir no entendimento da realidade brasileira

momentos antes da República e da libertação dos negros e africanos escravizados. O

positivismo tem seu espaço assegurado no Brasil pela influência de pensadores como o

Conde Arthur de Gobineau (1816-1882). Investigando esse período, cabe observar os

escritos de Lilia Schwarcz, afirmando que “a década de [18]70 é entendida como um

marco para a história das idéias no Brasil, uma vez que representa o momento de entrada

de todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise

cumprem um papel fundamental” (SCHWARCZ, 1993, p. 14).

Como parte desse universo, referimo-nos à crítica de arte de Luis Gonzaga-

Duque Estrada (Rio de Janeiro, 1863-1911). A princípio, suas observações sobre arte

brasileira resumem-se à crítica de seus contemporâneos. No entanto, o autor buscou

orientar-se para a criação de uma arte brasileira “legítima”, representativa de uma cultura

singular em relação à arte européia4. Ao idealizar e projetar uma arte nacional, ele

distingue, hierarquiza e opina sobre as diferentes experiências artísticas no Brasil.

Gonzaga-Duque defende princípios que afloram principalmente em suas

aspirações em defesa de uma arte nacional. O conjunto de idéias que permeia a obra do

crítico é influenciado pela filosofia positivista européia. Os conceitos de determinismo

racial convergem em demonstrar um extremo pessimismo quanto ao futuro da nação

brasileira, constituída por povos diversos. Tais preceitos têm seus desdobramentos em

sua crítica de arte. Como demonstrou Tadeu Chiarelli (1995) em texto sobre o crítico do

século XIX, esse não é o teor único do livro de Gonzaga-Duque. Em certos momentos, o

autor revela o contrário, ou seja, que é possível pensar numa nação futura a partir da

mescla dos diferentes povos aqui constituídos. No entanto, em sua conclusão, a

afirmação do crítico do século XIX não é tão otimista, tendendo para uma definição

depreciativa da diversidade cultural (e racial) brasileira.

4 Tadeu Chiarelli (1995) descreve que o livro de Gonzaga-Duque “torna visível, após tantos anos, o debate que fundamentou a constituição de parcela significativa da produção artística realizada no Brasil no século XIX e no século XX, e dos discursos estabelecidos sobre ela: refiro-me à questão da criação de uma arte nacional ou brasileira, uma arte que, em sua configuração final fosse capaz de emitir sinais inequívocos de uma identidade local intransferível” (1995, p. 12).

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Em A Arte Brasileira (primeira edição de 1888), Gonzaga-Duque tende a

considerar improvável a constituição de uma arte nacional promissora devido à variedade

étnico-racial do país. Vale citar um dos escritos iniciais do crítico sobre a constituição da

nação brasileira: “a família brasileira foi criada nesse meio híbrido: terror de um lado, e

de outro costumes mesclados, saturados das nugacidades, das superstições que sazonam

no cérebro corrompido dos escravos” (Luis Gonzaga-Duque Estrada apud CHIARELLI,

1995, p. 66). Do mesmo modo, descrevendo um dos capítulos finais de Gonzaga-Duque

no mesmo livro, o crítico Tadeu Chiarelli mostra que o escritor “parte de um diagnóstico

pessimista e preconceituoso da sociedade e da história brasileiras, que só poderia resultar

em conclusões igualmente pessimistas sobre a arte produzida no país” (1995, p. 23).

Na obra Mocidade Morta (primeira edição de 1899), o autor apresenta, por meio

de suas personagens, um modelo que orientava, para a elite da época, como deveriam ser

guiadas a arte e cultura nacionais:

Nós outros, americanos, somos, produtos de um amontoado de todas as raças, em que predomina mais esta do que aquela e, portanto, a nossa vida espiritual resulta da afinidade da raça predominante que, para nós, brasileiros, é a latina, pelo ramo português (...). Tu não ignoras (....) que somos um povo independente por sua política, temos as nossas leis, a nossa administração interna, somos uma nação oficialmente constituída. Ora bem. Mas (...) esses atributos não pressupõem nacionalismo, na verdadeira acepção do termo. Insensível, inapercebidamente, opera-se conosco a fusão dos mais dessemelhantes elementos, estamos num adiantado período cósmico. O que vier, após laborar de séculos, será outro povo (...), desviado completamente do primitivo que, por sua vez, foi assimilado, fundido, apurado, como se tem dado com os cessantes, minguados aborígenes. A nossa preceptora espiritual (...) é a Europa. (grifo nosso) (Luis Gonzaga-Duque Estrada apud CHIARELLI, 1995, p. 42).

Por esses escritos, é possível imaginar que a futura arte brasileira de Gonzaga-

Duque não deveria ser fruto das culturas chamadas “primitivas”. O crítico parece fazer

uma opção pelas classes dirigentes e européias na condução do ideal artístico do país5. A

sua perspectiva estética se dá pela via do colonizador, desconsiderando para último plano

a presença dos povos africanos e indígenas (o “primitivo”). Para Gonzaga-Duque,

embora a cultura e o povo brasileiro mostrem uma grande diversidade, a nação deveria

ser conduzida por seus ideais estéticos de matriz européia. É essa vertente que funda a

sua “nação oficialmente constituída”. Nesse sentido, os povos “primitivos” somente

5 Podemos objetar que a fala de uma simples personagem do livro pode não significar o todo, porém, pelo teor do enunciado é de se imaginar que essa personagem de Gonzaga-Duque revela mais do que parece à primeira vista. Nesse mesmo sentido, essa é uma fala muito próxima de outros textos do escritor.

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revelam-se importantes quando podem ser assimilados (ou seja, quando aderem à cultura

e poder dominante).

A arte dos povos colonizados não poderia ser referência relevante para o futuro,

significando apenas resquícios do passado. Cabe ressaltar a confluência entre arte,

política e cultura para o escritor. A produção de origem africana e indígena, fenômeno

que neste período dificilmente era considerado arte nos mesmos moldes que a arte

ocidental, não cabe dentro das possibilidades nacionais, do mesmo modo que não cabem

a estrutura social e nem a cultura desses povos. Gonzaga-Duque demonstra uma escolha

entre opções de maior valor e outras de menor ou nenhum prestígio. Essa é uma escolha

pelo ocidental, civilizado, contra o não-ocidental, “bárbaro”.

Gonzaga-Duque em Contemporâneos (primeira edição de 1929), numa crítica

elogiosa6 às naturezas-mortas do artista negro Estevão Roberto da Silva (1845-1891),

relaciona arte e raça na obra desse mesmo artista. Como o próprio autor diz, “quem,

como elle, vem de uma rude raça opprimida, e vem soffrendo, e vem luctando, não tem a

nebulosidade grisata, difficultosa, meandrica, ennovellada dos finos; vê sempre

sanguineo, vê sempre desesperadamente amarello” (Gonzaga-Duque, 1929, p. 98). Em

outro momento: “(...) essa prodigalidade de vermelhos, de amarellos e verdes não é nem

póde ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instincto colorista, vibrátil as

sensações bruscas, como é peculiar á raça de que veio (...)” (grifo nosso) (Gonzaga-

Duque, 1929, p. 97).

Gonzaga-Duque descreve que as cores fortes e contrastantes do artista Estevão

Roberto da Silva seriam próprias da sua condição racial e social. Entretanto, talvez as

cores de Estevão não sejam focadas em sua vivência étnico-racial mais do que em sua

experiência artística em escolher as suas influências. A sua orientação artística pode ser

uma escolha pautada numa experiência cultural e não pré-determinada racialmente. Em

outro sentido, a crítica de Gonzaga-Duque sobre a arte de Estevão Roberto da Silva

parece trazer certos conceitos deterministas sobre a condição racial do autor. Ao cruzar o

pertencimento racial de Estevão Roberto da Silva com a sua expressão artística, o crítico

de arte do século XIX condicionou a arte do artista a sua origem racial. Para o crítico,

6 Citando a obra de Estevão Roberto da Silva, ele diz ser “realmente (...) difícil, e até parece impossível, pintar frutos como Estevão (...)” (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 219).

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Estevão não escolhe o seu método de pintura, mas trabalha segundo seu “instincto

colorista”.

Após essa primeira fase, o discurso de Gonzaga-Duque muda consideravelmente.

Num comentário sobre a exposição do Salão de 1908, ele escreve:

Falta-lhe o cunho, a marca nacional? Mas senhores, a arte de um povo não resulta da vontade de um grupo nem da tentativa de uma escola. Nos países novos, nas condições especiais dos países americanos, em que o hibridismo das raças faz apontar os mais disparatos tipos, sem uma psicose determinada, sem o faceis por assim dizer étnico; em que as tradições das primeiras ondas de colonização se perdem e dispersam rapidamente, não se pode exigir uma caracterização de cenários, uma representação concordante e coesiva de indivíduos e costumes (...) (grifo nosso) (Luis Gonzaga-Duque Estrada apud CHIARELLI, 1995, p. 49).

Nesse momento, o escritor passa do pessimismo a uma crítica mais ambígua

sobre a arte nacional7. Em todo caso, não deixa de haver dúvida em sua colocação.

Gonzaga-Duque aponta para uma arte futura – fruto da miscigenação e de uma raça nova

– mas deixa um rastro de desconfiança quanto ao que pode ser esse futuro de “disparatos

tipos”. Quando ele aponta às “primeiras ondas de colonização” que se “perdem e

dispersam”, refere-se aos primeiros colonizadores brancos que se miscigenam com as

populações negras e indígenas. São os povos “originais” ocidentais que “perdem” e

“dispersam” a sua “pureza” em contato com as populações negras e indígenas. Todavia,

nesse trecho dúbio, a dúvida de Gonzaga-Duque talvez demonstre os seus primeiros

contatos com pensadores nacionais menos comprometidos com as escolas européias,

buscando reabilitar o país em uma condição especial diante da matriz ocidental,

considerando a miscigenação como caminho necessário.

Como um homem de letras que pensava seu tempo, Gonzaga-Duque é de grande

relevância para analisarmos a arte e a crítica de arte em fins do século XIX. Realizando a

ponte entre arte e ciência, o crítico adaptou-se ao pensamento de sua época e procurou

formar as bases artísticas para uma nação moderna. Tal busca não o eximia de

7 A crítica de Gonzaga-Duque é um movimento sinuoso. Sua orientação no sentido de uma arte esteticamente européia não o impede de ser pessimista, por exemplo, em relação à criação da Academia Imperial de Belas Artes no Brasil por artistas estrangeiros no início do século XIX. Para o crítico, esse fato desestabilizou a experiência dos artistas no país, forçando a ruptura de uma experiência de arte até então fortemente estabelecida: o barroco. Como o próprio crítico analisa: “(...) a colônia Lebreton concorreu, involuntariamente, para retirar da nossa arte a feição nativa e a originalidade” (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 57). Isso não impedia o crítico de atacar, igualmente, a falta de formação adequada dos artistas nacionais: “(...) daí, portanto, os insignificantes conhecimentos dos nossos antigos artistas e a superficialidade da maior parte dos modernos” (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 261).

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demonstrar os conflitos de seu pensamento entre o pessimismo e a euforia sobre o futuro

do país. Nesse caso, especificamente, os conceitos sobre raça de sua época influem em

seus escritos sobre arte.

O projeto “mulato” de Mário de Andrade

Mario de Andrade no ensaio O Aleijadinho (originalmente publicado em 1928)

faz desse artista parte de seu fundamento para uma arte brasileira moderna. Segundo o

escritor, “a prova mais importante de que havia um surto de racialidade brasileira, está

na imposição do mulato. (...) De todos esses exemplos principiam nascendo na colônia,

artistas novos que deformam sem sistematização possível a lição ultramarina. E entre

esses artistas brilha o mulato muito” (grifo nosso) (ANDRADE, 1984, p. 13). Antônio

Francisco Lisboa (o Aleijadinho, 1730-1814), de acordo com Mario, tem sua relevância

justamente por ser mulato. O escritor paulista utiliza esse argumento para colaborar em

seu projeto de construir um mito miscigenado e ímpar da arte brasileira. Como pedra

fundamental para o modernismo da Semana de 22, esse era um ponto de afirmação da

identidade do país diferente do que foi preconizado pela academia do século XIX.

Sobre a escolha do mito, Mario não poderia escolher, por exemplo, os franceses

da Academia de Belas Artes para seu propósito. A França era um pólo cultural

importante nos anos de 1920 para o Brasil. O próprio movimento modernista absorveu

influências desse local. Por outro lado, a imagem do índio foi utilizada pelo romantismo

do século XIX. Para Mario, esses escritores eram parte de uma cultura reacionária,

símbolos que precisavam ser repensados a favor de novas direções. Era preciso escolher

outro foco

A escolha de Mario direcionou-se para aquele que não é o explorador, nem o

“selvagem” e nem o escravo. O vértice que está ligado a esses três elementos é o mulato.

É certo que o crítico e escritor escolheu Aleijadinho não somente por sua identidade

étnico-racial, mas pela qualidade de sua obra. Porém, embora alteremos a ordem dos

fatores, o resultado é similar. Ele fez da “mulataria” de Aleijadinho um item importante

para a compreensão do artista mineiro.

Desse modo, na revisão brasileira das artes plásticas de Mario, a figura do mulato

Aleijadinho foi um elemento que serviu para a diferenciação do seu projeto de

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modernidade. Utilizando um fato antes desprezado, o paulista formulou uma

contraposição a seus predecessores do século XIX, bem como a toda corrente teórica que

apontava o português como único elemento civilizador do país.

Para entendermos melhor esse fenômeno, é oportuno rever brevemente seu

contexto. A publicação do ensaio de Mario sobre o artista mineiro ocorreu apenas 40

anos após a abolição da escravatura. No Brasil, ainda repercutiam os conceitos

positivistas e deterministas da Europa. Esse sistema científico descrevia a raça como um

elemento fundamental para o progresso ou declínio de uma sociedade. Para tanto,

hierarquizava e catalogava as diferenças humanas em padrões biológicos imutáveis.

Sendo assim, na época, a descrição do negro e do índio como inferiores ao branco era

fato dificilmente questionável8.

Algumas décadas anteriores a Mario, Luis Gonzaga-Duque Estrada descreveu

que o ideal de arte brasileira deveria ser herdeiro de uma tradição européia. Mario de

Andrade, apontando para a “mulataria” de Aleijadinho, escolheu uma outra referência

para pensar a arte do passado, posicionando-se para um outro futuro.

Nesse sentido, talvez ao perceber as características plásticas de Aleijadinho como

qualidades, Mario tenha incorporado alguns conceitos modernos sobre a forma e

estrutura, vislumbrando compreender outras formas de arte, como a popular e a não-

ocidental. Ao que tudo indica, a condição de mulato do artista mineiro pode estar

vinculada ao uso especial da sua técnica artística, a “deformação” não sistematizada dos

modelos europeus. Em outros termos, a origem étnico-racial de Aleijadinho também é

fonte da sua criação plástica singular9.

8 Por exemplo, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que apresenta uma visão sobre o negro mais preocupada com a cultura e um pouco menos determinista racialmente, somente foi publicado em 1933. O foco de Freyre foi criticar o sistema escravista colonial e não de culpabilizar as populações negras. Embora partindo de uma visão paternalista, o escritor pernambucano, ao contrário de seus pares, considerava os africanos que vieram para o Brasil como os mais “avançados” culturalmente na África. Não obstante, em último caso, a constituição da nação brasileira para o escritor acontece pela via portuguesa. 9 Marianno Carneiro da Cunha, a partir da leitura de Mário, faz uma vinculação direta entre a arte de Aleijadinho e as suas características africanas: “Mário de Andrade, no estudo mais belo e incisivo da pessoa e da obra do Aleijadinho, põe em evidência que Antônio Francisco Lisboa não é um ‘primitivo’ mas antes um renascentista em contexto barroco, e sobretudo um deformador sistemático. (...) A soma dessas noções são todavia o denominador comum que equaciona toda obra de arte chamada primitiva e africana, em particular. Se, por outro lado, existem paralelos europeus para justificarem esse aspecto sui generis da obra de Antônio Francisco Lisboa, existem igualmente, e com mais forte razão, convenções plásticas africanas que muito provavelmente se terão infiltrado ali e de vários modos. Com efeito, não seria este o caso de se apelar para um vago atavismo, como propõe G. Bazin, pois a cultura transmite-se pelo contato e pela vivência e não biologicamente” (grifo nosso) (CUNHA, 1983, p. 1018).

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Embora a abordagem de Mario não tenha pensado a arte afro-brasileira, ao

projetar uma arte nacional capitaneada pelo mulato, ele diferenciou-se da concepção de

arte de Gonzaga-Duque. Ambos os escritores dialogaram sobre como e quem pode ser o

modelo para delinear uma arte brasileira legítima. Assim, aprovar ou desprestigiar a

presença afro-brasileira na arte (seja pela autoria ou pela forma) é também ponderar

sobre qual tipo de arte é relevante para o país. Estamos lidando com uma disputa ainda

não focada na arte afro-brasileira como a compreendemos hoje, mas que demonstra a

“racialização” na qual estava inserida a crítica de arte nacional em fim do século XIX e

início do século XX.

A “arte negra” de Nina Rodrigues

Raimundo Nina Rodrigues foi um dos primeiros a estudar mais especificamente a

arte afro-brasileira no artigo intitulado As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil – A

Escultura (1904). A denominação utilizada por Rodrigues para referir-se a este

fenômeno foi “arte negra”10. Enquanto Mario de Andrade e Luis Gonzaga-Duque Estrada

estavam mais próximos do que pode ser considerado crítica de arte, Nina Rodrigues

produz uma perspectiva etnológica sobre as sociedades não-ocidentais. O pesquisador,

analisando exclusivamente a produção escultórica ritual afro-brasileira, apesar de

reconhecer potencialidades, não se desprendeu totalmente dos principais paradigmas do

período. Suas palavras se inserem dentro de um pensamento hierarquizante onde o negro

é sinônimo de cultura diferenciada, matéria de estudo sobre culturas ditas “primitivas”.

A tese de Rodrigues não se diferencia muito de certa preocupação contida em

Gonzaga-Duque. Os conceitos de determinismo racial ainda são idéias fortes para

explicar a natureza e a cultura dos povos africanos e não-ocidentais. Sendo assim,

classificar essas peças usando de subsídios evolucionistas é um dos seus temas: “Os

fructos da arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em peças de real

valor ethnographico, uma phase do desenvolvimento da cultura artística” (grifo nosso)

(sic) (RODRIGUES, 1904).

10 Sobre o uso dos termos arte negra e arte afro-brasileira, o primeiro exemplo parece trazer indícios de ordem biológica, enquanto o segundo remete a problemas do universo da cultura do negro no Brasil. É possível observar resquícios desse determinismo racial do primeiro caso nos escritos de Nina Rodrigues. Marta Leuba Heloísa Salum, comentando esse problema, diz que “tem razão quando diz Kabenguele [Munanga] que qualificar a arte afro-brasileira de ‘arte negra’ no Brasil seria ‘cair num certo biologismo’” (SALUM, 2004).

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Do mesmo modo, para analisar essas obras Rodrigues continuou a se basear no

modelo acadêmico de arte européia. Os ideais de semelhança, claro e escuro, perspectiva,

entre outros, foram usados pelo pesquisador para avaliar uma produção estruturada por

outros princípios. O resultado não poderia ser diferente. A moldura projetada por

Rodrigues não coube para compreensão dos artefatos de terreiro a sua frente. Imperícia e

ausência de escolas organizadas são alguns dos argumentos utilizados pelo estudioso

para definir a qualidade das obras de arte afro-brasileira. Como diz o pesquisador,

“mandam as regras de uma boa crítica desprezemos as imperfeições, o tosco da

execução, dando o devido desconto á falta de escolas organisadas, da correcção de

mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo, da segurança e

destreza manuaes, como na educação precisa na reproducção do natural” (sic) (grifo

nosso) (RODRIGUES, 1904).

No entanto, detendo-se especificamente sobre a produção de arte afro-brasileira,

Rodrigues também reconheceu certa força e qualidade nesse fenômeno. Afastando-se do

determinismo europeu, ele compreendeu um potencial de criação plástica africana que

até então mostrava-se impensável para a crítica da época. “(...) Na escultura é que, com

mais segurança e apuro, se revela a capacidade artística dos negros. O seu cultivo e

apreço, entre os escravos que vieram colonisar o Brazil, tanto se comprovam em

presumpções inductivas como no testemunho de factos e documentos” (sic) (grifo nosso)

(RODRIGUES, 1904).

Ao reconhecer certa potência nessas obras, Rodrigues tentou escapar dos

preceitos de avaliação ocidental e acadêmica. Com passos tímidos, o pesquisador parece

apontar para a necessidade de uma nova forma de avaliação dessa arte. Para este, tornar

essa produção mais significativa, mesmo não chegando ao status de arte, é também

valorizar os grupos negros escravizados. Seu intuito não era apenas redimir essa

população, mas, por meio disso, reabilitar a possibilidade do Brasil como um país

promissor. Distanciando-se do pessimismo e determinismo positivista quanto às

populações africanas, Rodrigues as considerou aptas e necessárias ao projeto de um país

civilizado nos trópicos.

Para esse pesquisador, a imagética afro-brasileira é constituída em grande parte

por autores anônimos. Diferenciar artistas e contribuições individuais não foi um

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objetivo relevante. Embora exista o artista enquanto indivíduo, a importância desses

estudos está em demonstrar e analisar as características do todo social ou étnico.

Num âmbito próximo, o vínculo entre essa manifestação artística e a religião foi

constante em Rodrigues. O estudo das qualidades estéticas serve para a compreensão da

estrutura religiosa que rege os mitos e narrativas dos grupos negros. Claro está que essa

tendência não compreendia esses objetos em sua singularidade apenas artística. Essas

obras são entendidas de acordo com seu poder de guardar significados sobre seu grupo.

Em Rodrigues é possível constatar um olhar meticuloso e atento à forma dos

objetos analisados, o que não impede o seu objetivo maior que era compreender a

comunidade que criou tal obra. Ainda assim, talvez não tenhamos apenas uma ciência

mecanicista que diferencia o outro, mas que está mais preocupada em compreender essa

produção dentro de um sistema de significado relevante na sociedade brasileira, a arte

dos negros recém-libertos.

Estudos recentes sobre arte afro-brasileira

Os estudos contemporâneos a respeito da arte afro-brasileira tentam definir

conceitos mais precisos sobre esse fenômeno. O próprio termo, arte afro-brasileira,

passa a ser difundido, mostrando uma convergência de sentidos sobre esse conceito entre

diversos estudiosos. Se antes tivemos a análise de obras buscando o coletivo, agora o

estudo específico de artistas, tentando desvendar o universo de alguns criadores, é um

foco pertinente.

Mário Barata, no texto A escultura de origem negra no Brasil (publicado

originalmente em 1957), mostrando preocupação semelhante à de Nina Rodrigues,

procura analisar a produção desses trabalhos sob o olhar da etnologia e da estética. “Não

é só a literatura, oral ou escrita, que exprime uma cultura, de um sistema de vida com

técnicas determinadas, no conceito antropológico. A criação plástica é uma expressão de

cultura tanto quanto visão estética do mundo” (Mario Barata apud A MÃO AFRO-

BRASILEIRA, 1988, p. 183).

Embora reconhecendo as diferenças e novas soluções dessa manifestação no

Brasil, o pesquisador procurou investigar quais as permanências da arte de origem

africana em solo nacional. Desse modo, vale citar os conceitos que o autor usa para

entender o problema:

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a) esculturas obedecendo às tendências estéticas negras, sendo obras de arte, todavia, de padrões novos. b) esculturas que sejam resultado do confronto da tradição plástica africana com a de outras origens, correspondendo às vezes a novas necessidades e situações. c) esculturas feitas por negros ou seus descendentes diretos ainda ligados à tradição africana, por vários setores, mas já sem nenhuma característica de formas de arte dessa origem, plasticamente esquecida ou superada. d) esculturas realizadas por descendentes de negros mais integrados à cultura branca, igualmente sem aspectos estilísticos africanos. Parece ser o caso de uma série de artistas mestiços como o Aleijadinho e Mestre Valentim, trabalhando dentro do sentido católico barroco. Este caso é interessante sociologicamente, mas já não é relacionado com a influência da estilística negra no Brasil. Portanto o deixaremos de lado, no exame que procederemos a seguir (Mario Barata apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p. 186).

Neste caso, Barata procurou descrever categorias para sistematizar a produção

escultórica afro-brasileira. Como podemos notar, o autor analisa esculturas de arte afro-

brasileiras que remetem à estilística africana, mas que já apresentam distância

considerável dessa fonte. As soluções plásticas desses artistas são diversas da

experiência africana, embora conservem, de algum modo, certos indícios.

Em primeiro lugar, Barata preocupa-se em mostrar a produção de artistas que

trabalham a partir de uma estética negra, procurando continuidade ou confrontos. Num

segundo momento, ele ressalta a análise da obra a partir da autoria negra do criador.

Nesse estágio, ele parece separar essa experiência entre o artista negro que ainda tem

certas influências distantes da arte africana (ele descreve esse conceito de maneira

ambígua no item C), e o artista negro e mestiço que produz a partir de uma arte de

origem ocidental. O autor exclui esses últimos artistas do seu tema de investigação, mas

os relaciona de certo modo ao seu problema.

Devemos ressaltar que a autoria do artista negro tem peso nas considerações de

Barata (como também em Nina Rodrigues). Entretanto, ao que parece, esse requisito

perde relativamente a sua relevância nos estudos posteriores. Os próximos autores

tendem a considerar a cultura mais importante que focar a autoria negra na produção.

Desse modo, a condição étnico-racial do artista, imaginamos, não é um fator

preponderante.

Clarival do Prado Valladares procurou traçar os vínculos entre religião, cultura

popular e influência erudita na obra de diversos artistas afro-brasileiros. Para Valladades,

a presença estilística de origem africana aparece “na especulação da iconologia africana

no Brasil através da remanescência e formas sincretizadas. Poucas vezes verifica-se a

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existência de esculturas originais africanas em uso nos cultos do candomblé” (grifo

nosso) (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 449).

É importante notar que a arte afro-brasileira para o pesquisador acontece sob o

cruzamento de diversas perspectivas. A sua arte “miscigenada”, repleta de trocas, possui

evidentemente seu diálogo com a arte de origem européia. No texto A Iconografia

Africana no Brasil (publicado primeiramente em 1969), o autor descreve que “a

amplitude da mestiçagem das três raças no Brasil faz uma escala de valores e atributos,

manifestados também nas artes eruditas e populares, que poderíamos identificar como

caráter brasileiro” (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 448).

Por outro lado, para Valladares a arte erudita brasileira tem a sua origem numa

influência principalmente européia. Os locais onde essa arte é apresentada, o museu,

excluiria sistematicamente a produção de arte não oriunda de um meio erudito e de elite.

Nesse sentido, o único local onde a arte de origem não-européia poderia frutificar seria

fora desse espaço, nos meios menos privilegiados da sociedade, daí a atenção para a arte

popular e dos terreiros.

A partir disso, é possível perceber a preocupação do autor em compreender dois

tipos de produção vinculados à arte afro-brasileira. No primeiro caso, temos os artistas

próprios desse universo. No segundo caso, há os artistas influenciados por essa cultura.

Nesse sentido, em relação a segunda situação, Valladares no texto Aspectos da

Iconografia Afro-brasileira (publicado primeiramente em 1976) analisou o trabalho de

artistas eruditos “influenciados” pelo contexto afro-brasileiro. Como o próprio autor

descreve, “podemos assinalar artistas eruditos brasileiros de qualquer situação étnica que

foram capazes de descobrir nas contingências da remanescência africana valores

iconográficos, simbólicos e semióticos suficientes para a formação de sua respectiva

linguagem estilística” (grifo nosso) (Valladares apud BRASILEIRO, BRASILEIROS,

2004, p. 119).

Em O Negro Brasileiro nas Artes Plásticas (publicado primeiramente em 1968),

Valladares também percebeu o intrincado jogo de significados atribuído aos artistas

populares, muitas vezes chamados de “primitivos” ou naifs, pela crítica de arte. Vale

citar o escritor comentando a visão dos críticos eruditos sobre esses artistas: “este [o

crítico ocidental] requer do ‘primitivo’ ser homem de cor, preto, mulato ou índio,

procedente da pobreza, a fim de que a obra seja autêntica pela origem” (Valladares apud

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A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, pp. 285, 286). A análise de Valladares

compreendeu que o termo “primitivo” revela muito mais sobre quem o usa do que sobre

o que ele tenta definir11. O fato do artista ser negro confere autenticidade ao objeto.

Desse modo, ele mostrou como o entendimento da arte “primitiva” possui nítidas

nuances étnico-raciais. A origem étnico-racial do autor passa a ser componente da obra

na medida em que pode evidenciar os significados pretendidos pela crítica.

Para Marianno Carneiro da Cunha, “arte afro-brasileira é uma expressão

convencionada artística que, ou desempenha função no culto dos orixás, ou trata de tema

ligado ao culto” (CUNHA, 1983, p. 994). Além disso, o pesquisador também traz uma

nova sistematização da arte afro-brasileira para fora da esfera religiosa. A partir de uma

estrutura singular, o pesquisador analisa a arte afro-brasileira de modo diferenciado,

separando entre as diretamente ligadas à estrutura litúrgica e as menos relacionadas ao

culto. As quatro classificações de Cunha são:

(...) aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente; os que o fazem de modo sistemático e consciente; os artistas que se servem não apenas de temas como também de soluções plásticas negras espontâneas, e não raro, inconscientemente; finalmente os artistas rituais. Os três primeiros grupos definiriam o termo afro-brasileiro em seu sentido lato e o último grupo em sentido estrito (CUNHA, 1983, p. 1023).

As suas quatro classificações podem ser resumidas em dois grupos principais:

primeiro, o trabalho possui signos afro-brasileiros, mas não possui conexão com as

religiões de matriz africana; e segundo, o trabalho é feito por artistas de culto e para uso

litúrgico em religiões de matriz afro-brasileira. Para esse último grupo, Cunha elaborou

um outro conceito, o de “arte ritual afro-brasileira”. Esse parece ser o termo que, para o

autor, melhor delimita o campo de arte próprio da cultura afro-brasileira.

Todavia, a definição de Cunha é de relevância para o nosso estudo não só pela

descrição de uma arte ritual afro-brasileira, mas pelos apontamentos a respeito de uma

arte afro-brasileira fora do uso litúrgico (embora não tenha aderido completamente a este

11 Vale citar Sally Price: “Uma idéia amplamente aceita dentro deste esquema geral é que, mais do que em qualquer arte das Grandes Civilizações do mundo (sejam Ocidentais ou Orientais), a Arte Primitiva emerge direta e espontaneamente de impulsos psicológicos. Da mesma forma como uma criança chora quando tem fome e emite sons de contentamento quando está satisfeita, imagina-se que os artistas Primitivos expressem seus sentimentos livres da capa impositiva do comportamento aprendido e das limitações conscientes que moldam o trabalho do artista Civilizado. E esta é a qualidade mais freqüentemente citada como catalisadora do entendimento entre Ocidentais e artistas Primitivos” (2000, p. 56).

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termo). Este último conceito define um espaço amplo de atuação dessa manifestação no

presente.

Destoando do foco que circunscreve o objeto de arte afro-brasileira ao seu

ambiente litúrgico, a contribuição de Nelson George Preston (1987) atenta para as

qualidades formais dessa produção. O interesse de Preston na análise da produção

plástica de Araujo foi compreender essa produção em relação ao seu contexto artístico.

Assim, tentando situar as relações entre a arte do escultor e gravador e a de diversos

outros artistas negros na América, o estudioso americano pesquisou as similaridades

estilísticas dessas obras. Nesse contexto, aproximou a obra de Araujo ao minimalismo

americano e à arte tradicional da África. As qualidades formais da obra de arte “neo-

africana” para Preston são descritas como:

Tensão entre eixo virtual e real. Tensão entre simetria virtual e real. Estacar rítmico ou empilhar de uma forma geométrica primária na configuração de um volume, plano, área espacial negativa ou positiva, formas fechadas ou abertas. Regularidade de um ritmo genérico ou padrão interrompido por motivos aderentes arranjados aleatoriamente, surpresas formais ou inversões semelhantes à fuga de unidades básicas de padrão. Desconformidade entre áreas pintadas e superfícies de planos. Jogos visuais nos quais formas reduzidas tornam-se ambivalentes e podem ser lidas como representação alternativa de uma coisa ou seu sinônimo ou antítese. Motivos “pars pro todo” que usam um aspecto evidente de uma coisa para representar sua inteireza. Combinações em técnica mista do que ao ocidental aparece como texturas irracionalmente correlatas, modelos, cores, objetos ou idéias (PRESTON & ARAUJO, 1987, p. 39).

A colocação de Preston tenta encontrar singularidades formais para obras de

influência africana em artistas de toda América. Para o autor, a arte da diáspora africana

criou continuidade e renovação na América12.

12 Por outro lado, Preston circunscreveu somente à arte de ascendência negra na América o mérito de produzir uma arte negra contemporânea legítima, o que ele denominou de arte “neo-africana”. Para o autor, o continente africano não é mais o centro de relevância da arte de origem negra. Esse centro estaria agora na América. Todavia, é possível que esses grupos étnico-raciais têm interesses diferentes e próprios sobre sua arte. Vale citar o próprio crítico e artista americano: “Uma quantidade de artistas da América do Sul, bacia do Caribe e América do Norte estão trabalhando em estilos neo-africanos autênticos conforme definido pela lista de cânones da arte paleo-africana acima citada. Assim como Araujo, eles trabalham em materiais contemporâneos, frequentemente industriais em sua essência, enquanto projetam um conteúdo formal claramente apoiado nos fundamentos da arte clássica africana. Seu trabalho representa, com efeito, a extensão da arte tribal em linguagem contemporânea. É o que a arte africana ter-se-ia tornado em seu próprio continente, não tivesse sido desmembrada por remoções, acidentes climáticos e intensa invasão turística. Infelizmente a maioria dos artistas africanos imita a arte européia ou produz versões peculiares de arte tribal que identificam o turista como patrão. Esta é a razão pela qual o núcleo do movimento neo-africano está fora da África” (PRESTON, 1987, p. 41).

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Cabe ressaltar que Preston não se ateve especificamente à análise da arte afro-

brasileira. O tema do pesquisador é pensar numa síntese da arte negra na América. Em

todo caso, como Preston tece suas questões a partir do estudo da obra plástica de Araujo,

o seu estudo tem grande proximidade com a arte afro-brasileira.

Dilma de Melo Silva (1989) analisou a arte afro-brasileira e africana apoiando-se

em estudos sociológicos, planejando contrapor-se aos estudos da arte de enfoque apenas

formal. Para tanto, buscou fundamentar sua contribuição em Roger Bastide, Nestor

Garcia Canclini, bem como em Marianno Carneiro da Cunha (1983). A partir deste

último autor, surgiu um dos temas principais de Silva, “verificar a continuidade

estilística dos protótipos africanos transportados para nosso país durante os anos de

colonização e escravidão negra” (SILVA, 1989, p. 53). É possível constatar que a

definição de Silva parte dos escritos sobre arte ritual afro-brasileira de Carneiro da

Cunha. Ela investigou o fenômeno dentro do universo artístico, observando na religião

um dos traços essenciais de continuidade da plástica afro-brasileira.

Marta Heloísa Leuba Salum (2000) utilizou inicialmente qualidades formais para

descrever o que pode ser a influência afro-brasileira na arte. Linguagem emblemática,

cromatismo vigoroso, visualidade monumental ou cênica e um caráter mais conceitual do

que objectual são alguns dos conceitos empregados pela autora para compreender a obra

afro-brasileira. Além de questões formais, a pesquisadora trouxe contribuições mais

amplas, considerando arte afro-brasileira “qualquer manifestação plástica e visual que

retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os

cenários socioculturais do negro no Brasil” (SALUM, 2000, p. 113). Essa definição

abarca grande parte de nossas preocupações e retoma alguns problemas citados por

outros teóricos.

Maria Cecília Félix Calaça (1999) utilizou ainda uma outra variação do tema de

nosso estudo, arte afro-descendente. Realizando um estudo sobre a obra de Ronaldo

Rego e Jorge dos Anjos, ela propôs uma leitura interpretativa apoiada na simbologia do

Candomblé e da Umbanda. Para a escolha dos artistas, bem como para a leitura das

obras, Calaça apoiou-se nas atribuições formais de Preston.

Kabengele Munanga (2000) partiu de princípio semelhante ao de Carneiro da

Cunha sobre a definição e possível definição da arte afro-brasileira. Dividiu a arte afro-

brasileira em três categorias. A primeira categoria é a dos artistas de culto. A segunda é a

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dos artistas que utilizam algum elemento afro-brasileiro sistematicamente em sua

produção. E a terceira é a dos artistas que possuem influência não muito evidente,

diluída.

Roberto Conduru em Arte Afro-brasileira (2007) procurou desenvolver uma

definição do termo arte afro-brasileira e de sua história. Ele se debruçou sobre o estudo

da arte religiosa de matriz africana, pesquisou artistas afro-brasileiros e as representações

do negro na arte brasileira em geral. Percebendo que não poderia focar apenas a arte

afro-brasileira na religião ou na obra de artistas influenciados pela arte africana, Conduru

trouxe para discussão trabalhos recentes de arte contemporânea. A definição de Salum,

focando amplamente toda manifestação que pretende pensar e representar a cultura e

realidade sócio-cultural do negro no Brasil (citada anteriormente), norteou a

compreensão de Conduru sobre arte afro-brasileira (CONDURU, 2007, p. 11). Ao não se

limitar a questões formais, o pesquisador pôs em voga a autoria e os desdobramentos

sociais e políticos dessa manifestação artística. Ele percebeu que a obra de diversos

artistas contemporâneos, por suas implicações e preocupações sobre a representação do

negro no Brasil, também pode pertencer a esse universo.

Todavia, Conduru talvez tenha aberto demais o campo ao tentar relacionar tipos

de arte bem diferenciados do território da arte afro-brasileira13. A contribuição maior do

professor, entretanto, é a percepção de que é possível pensar em arte afro-brasileira

dentro e fora do espaço de culto, assim como pertencente à cultura popular e à cultura

erudita. Ela permeia todos esses campos, não se restringindo a nenhum deles. Como

podemos notar anteriormente, o prenúncio dessa perspectiva já estava contido em

Valladares, Carneiro da Cunha e Salum.

Ao que parece, dentre os estudos citados, alguns trabalhos se tornaram referência

para compreender o fenômeno da arte afro-brasileira, como os conceitos definidos por

Marianno Carneiro da Cunha, George Nelson Preston, Marta Heloísa Leuba Salum e

Roberto Conduru.

Para Carneiro da Cunha, pertencentes à arte afro-brasileira são os artistas que

fazem referências continuas a essa cultura em suas obras. A partir disso ele define seu

13 Carlos Eugênio Marcondes de Moura teceu uma crítica a esse respeito dizendo que Conduru “começa a citar uns artistas contemporâneos que pelo que eu saiba não tem o menor envolvimento com essa questão, mas ele os coloca como artistas inseridos nesse mundo. É minha crítica ao trabalho dele. Entretanto, o que vem anteriormente é muito interessante” (MOURA, 2008).

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modo de classificação, propondo artistas mais ou menos relacionados à arte afro-

brasileira, privilegiando, no entanto, os artistas de culto das religiões afro-brasileiras.

A definição de Preston está mais preocupada em perceber a constância de uma

forma de representação da África na América. O texto crítico do pesquisador sobre a arte

de Emanoel Araujo se desdobra no estudo da arte da África na diáspora. Ele se preocupa

não apenas em definir uma forma dessa influência africana, como também em conceitos

que possam nortear essa manifestação no presente. A sua descrição de qualidades tenta

encontrar na forma uma veia de expressão e continuidade entre fazeres artísticos

baseados numa mesma cultura, embora em novas terras. Para o estudioso americano é

possível constatar essa permanência e sincronia entre diversas obras do universo do

negro na América.

Não obstante, para Preston, a preocupação excessiva com a forma, tentando

encontrar nela uma característica relevante em si mesma, não deixa de trazer outros

problemas. Se pensamos em definir a arte de origem africana e afro-americana em

modelos pré-determinados de forma, por outro lado, excluímos todo um conjunto de

obras que é próprio desse universo e que não compartilha desses princípios. Além disso,

os estudos contemporâneos sobre arte na pós-modernidade evidenciam os contextos

culturais, políticos e sociais de uma obra (HEARTNEY, 2002).

É certo que a forma é fenômeno relevante para os estudos de artes plásticas, mas

ela deve ser pensada em conjunto com seu contexto para o melhor entendimento de suas

dimensões. Assim, na tentativa de não fossilizar um pensamento em protótipos pré-

estabelecidos, talvez seja relevante pensar em atributos de autoria, contexto e circulação

para compreender essas peças além de seu aspecto formal. A partir disso é que citamos a

contribuição de Salum e de Conduru. Desse modo é que podemos compreender, por

exemplo, as instalações de Rosana Paulino ou de Genilson Soares como preocupadas

com alguns dos mesmos problemas que orientaram a escultura de Rubem Valentim ou

Agnaldo Manoel dos Santos. Todos esses pretendem trazer para o universo das artes

questões de identidade e representação. Afastados da imagem do exótico, comercial ou

folclórico, eles demonstram os problemas da instituição artística e museológica, que

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durante séculos determinou um espaço restrito para as artes dos grupos não

hegemônicos14.

Ainda sobre o conceito arte afro-brasileira, situar a arte de Agnaldo Manoel dos

Santos, Rosana Paulino e de Rubem Valentim sob esse mesmo termo parece realizar um

contorno muito amplo para o problema. Para delimitar melhor esse fenômeno, talvez seja

relevante desdobrar arte afro-brasileira em duas modalidades: uma arte afro-brasileira

tradicional e outra arte afro-brasileira contemporânea. No primeiro caso, podemos

limitar a arte afro-brasileira tradicional15 em objetos de culto e para outros artistas que

utilizam de uma mesma técnica de ascendência na África (como Agnaldo Manoel dos

Santos). Por outro lado, no segundo caso, a arte afro-brasileira contemporânea parece ter

sua sintonia entre a expressão afro-brasileira e a européia, implicando essas experiências

em resultados inusitados (Rubem Valentim, Rosana Paulino). Como podemos notar,

esses são modos distintos de arte afro-brasileira, trazem indícios de uma mesma

preocupação mas situam-se em territórios diferenciados.

Em todo caso, não é nosso objetivo estancar rigidamente esses conceitos em

planos antagônicos e distantes. A arte afro-brasileira contemporânea e a arte afro-

brasileira tradicional fazem parte de um mesmo jogo de significados. Elas implicam-se e

imiscuem-se continuamente. Desse ponto de vista, por exemplo, a arte de Mestre Didi

pode sinalizar pertencer a esses dois universos. Embora a sua concretude aponte para

uma tradição religiosa antiga, as soluções formais do artista e o seu trânsito dentro de

museus ou galerias de arte contemporâneas o tornam igualmente próprio desse espaço.

Muito provavelmente outros artistas afro-brasileiros se encaixam nesse mesmo território

ambíguo.

14 A preocupação em definir os limites para o conceito de arte afro-brasileira, pelo que vimos, é constante nesses trabalhos. Embora se tenha avançado nesse sentido, e talvez estejamos próximos de uma definição mais concisa para o termo, é importante fazer mais alguns questionamentos. O estudo de Jorge Coli, O que é Arte? (1981), procurando uma definição sobre arte na sociedade ocidental, define que é de suma importância compreender que arte não é um objeto fechado em si, mas um fenômeno que faz parte de um sistema que lhe atribui significados. “A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração, etc.” (COLI, 1981, p. 12). A obra de arte depende do artista, do crítico, do curador, do marchand, da instituição museológica e do público para que possa ser definida como tal. Esse circuito, sempre repleto de tensões, é responsável por lhe conferir o estatuto de arte. Desse modo, talvez o uso desses dispositivos possa ajudar também na definição da arte afro-brasileira. 15 Um termo sinônimo usado por alguns pesquisadores pode ser o de arte sacra afro-brasileira. Em todo caso, ressaltamos que o conceito de arte afro-brasileira tradicional também procura compreender os artistas que operam fora do âmbito litúrgico, mas utilizando de uma mesma solução formal.

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Do mesmo modo, usando esses conceitos, não estamos descrevendo momentos

históricos e artísticos distantes. Embora as correntes mais contemporâneas possam ser

vistas como produções que despontam a partir de meados do século XX e as obras

tradicionais possam remeter a uma técnica de muitas gerações atrás, ambas as correntes

são realizadas ainda hoje. A arte tradicional afro-brasileira tem na atualidade o seu vigor

e motivo, assim como a arte afro-brasileira contemporânea.

Por fim, imaginamos, esses são alguns autores e questões relevantes para analisar

o campo de estudos da arte afro-brasileira. Essas contribuições colaboram para contornar

o espaço em que atuamos. Entretanto, o conceito de arte afro-brasileira está em

movimento constante na contemporaneidade, ou seja, é um objeto em transformação.

Esses estudos não encerram o problema, mas tentam delinear o pano de fundo para sua

compreensão.

Artistas negros e afro-brasileiros

Além dos estudos de pesquisadores sobre arte afro-brasileira, as considerações

escritas de alguns artistas podem ser oportunas. Esses artistas afro-brasileiros,

participando do circuito mais erudito das artes plásticas – circulando entre museus e

galerias – mostram preocupações em relação a uma arte que pense o negro no Brasil,

descrevendo a sua própria produção e situação.

Desse modo, iniciamos apresentando a discussão a respeito do universo de arte

negra em Wilson Tiberio (1923-2005). Numa visão política do problema, o artista

escreveu que há diferenças entre o que podemos chamar de artista negro e negro artista:

(...) ‘A cor de Otelo’ (...) não basta para caracterizar o artista negro. O preto, que se dedica a uma arte pode ser sempre um negro artista e não se tornar nunca um artista negro. Artista negro como eu entendo, isto é o negro que coloca a sua arte a serviço de sua raça, que procura motivos negros para sua produção artística e que tem uma sensibilidade especial para tudo que recorda essa África gloriosa que sempre revejo nas litanias dos ‘candomblés’ baianos (...) (grifo nosso) (TIBERIO, 1946, p. 1).

Para o pintor, o artista negro trabalha com temas negros em suas pinturas,

buscando uma forma de expressar a sua vivência enquanto um indivíduo pertencente a

um determinado grupo. Por outro lado, o negro artista é o artista não vinculado

diretamente a essas prerrogativas. A própria vida e obra de Wilson Tiberio demonstram

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bem o seu interesse pelo primeiro caso. No entanto, se usarmos a sua definição

restritamente, relegamos ao esquecimento muitos outros artistas.

Em outro caso, Rubem Valentim se afirma como um artista afro-brasileiro e

expõe os seus princípios:

Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando seus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim (grifo nosso) (Rubem Valentim apud FONTELES & BARJA, 2001, p. 28).

Yêdamaria se refere a si mesma como uma artista que após outras experiências de

pintura escolheu buscar os signos de uma identidade negra – a iconografia de Yemanjá:

(...) de início, eu não me sentia artista negra, mas à medida que comecei a comparar as pinturas das Yemanjás com o colorido africano, descobri que, hoje, meu colorido está mais ligado às minhas raízes. O sentimento africano tem uma essência muito forte, musical, simbólica e cromática. Foi depois que a forma da sereia brotou que passei a tratar de um tema popular e africano, descobri toda a beleza do “Dois de fevereiro” – festa de Yemanjá – uma festa humilde, organizada pelo povo (grifo nosso) (YÊDAMARIA, 2006, p. 29).

Araujo, do mesmo modo, mostra que somente tardiamente voltou-se para essas

preocupações, após a sua viagem para a Nigéria: “Aí, eu comecei a ver a questão da arte

negra, comecei a adquirir certa consciência. Eu estava saindo da gravura para a

escultura. Já era uma forma de buscar, no tecido e na geometria, a repetição de planos.

Isso é uma coisa africana” (grifo nosso) (Emanoel Araujo apud ALMEIDA, 2007, p.

43).

Ao que parece, esses artistas demonstram alguns temas recorrentes: primeiro, a

busca de uma arte afro-brasileira está lado a lado com a estética de origem européia;

segundo, a definição desses artistas aparece como uma escolha consciente por uma forma

de produção diferenciada da arte européia. Formados em instituições de orientação

ocidental, esses artistas parecem perceber e buscar, a partir de um momento preciso, uma

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outra experiência artística. A procura de uma estética de origem em África, assim, torna-

se uma possibilidade de desenvolvimento de uma linguagem própria16.

Em outro momento, citando esse estado ambivalente de artistas eruditos e afro-

brasileiros, o curador se refere aos artistas “cuja obra se inscreve no limiar entre a cultura

de sua formação e a cultura do público consumidor; são artistas que refletem tanto a

consciência de seu meio como o inconsciente coletivo, compreendidos tanto pela norma

popular como pela norma erudita” (Emanoel Araujo apud OS HERDEIROS DA NOITE,

1994, p. 13).

Realizando uma digressão, esses artistas buscam conscientemente um modelo de

produção que podemos chamar de arte afro-brasileira. Por outro lado, no caso de outros

artistas, esse universo pode até mesmo bloquear a sua compreensão para além desse

limite conceitual. Renata Felinto, citando um diálogo com a artista Rosana Paulino,

revela que esta artista “estava em uma mostra de artistas afro-brasileiros e ela não era

chamada para uma (mostra) de artistas contemporâneos. É como se o afro-brasileiro e o

contemporâneo não fosse a mesma coisa. Há essa história do tempo mítico e religioso.

Parece que esse conceito de arte afro-brasileira ficou parado no tempo” (FELINTO,

2008).

Estudar arte afro-brasileira significa procurar compreender esse conceito dentro

dos diversos campos do universo das artes plásticas. Como podemos perceber, essa

busca de definição acontece em grande parte devido à necessidade desses artistas em

encontrar um outro modelo de criação artística. Embora operando dentro de uma tradição

ocidental (e não recusando essa influência), esses artistas procuram se afastar

ligeiramente desse fenômeno, orientando-se para a busca dos meios e cruzamentos entre

a arte européia e uma experiência projetivamente de origem na África.

16 Essa busca de identidade pela oposição a um modelo europeu-ocidental aparece mais uma vez em Araujo; vale citar a sua definição de arte afro-brasileira: “o que eu denomino de arte afro-brasileira é aquela manifestação que de certa forma sai fora de uma questão eurocêntrica. Como o Rubem Valentim, que está com um pé na geometria, mas a geometria dele está muito próxima de signos baianos. Nem são africanos, são baianos. A Rosana Paulino com aquela idéia de apropriar os patuás e botar fotos de família, dos seus ancestrais. E por aí vai. Há vários artistas. Não só negros, mas artistas brancos também” (grifo nosso) (ARAUJO, 2009).

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Arte afro-brasileira na curadoria de Emanoel Araujo

A proposta curatorial de Emanoel Araujo aponta para o uso de diversos conceitos

sobre arte afro-brasileira. A concepção do curador não se restringe somente à

representação e freqüência com que os elementos afro-brasileiros surgem na obra de um

artista de dentro ou de fora do culto, como sugeriu Marianno Carneiro da Cunha (1983).

Do mesmo modo, sua definição não está somente relacionada à forma das obras, como

descreveu Nelson George Preston (1987). É possível inferir que a proposta de Araujo se

aproxima e muito da definição utilizada por Marta Heloísa Leuba Salum17, procurando

na obra de arte afro-brasileira signos formais ou contextuais que a legitime. Em todo

caso, ela parece ser também a síntese dessas tendências.

A exposição do acervo permanente sobre arte contemporânea do Museu Afro

Brasil pode ilustrar esse problema. Nesse local, a obra de diferentes artistas estabelece

diálogos com esses conceitos.

O trabalho de Agnaldo Manoel dos Santos, de forte influência estilística da

África, com seu corte vigoroso e sintético, insere-se nesse espaço devido a sua forma. A

sua técnica remete a uma forma desenvolvida e alicerçada por civilizações africanas

durante séculos (como o trabalho escultórico dos iorubas).

O mesmo sentido conceitual não cabe para compreender a obra de Jorge dos

Santos ou de Rubem Valentim. Esses artistas, preocupados em fornecer um novo

formato para sua arte, solucionaram o problema através de influências estéticas européias

e africanas. Eles remetem a signos de origem em África somente após uma análise mais

cuidadosa de seus detalhes. A arte desses é cruzamento.

O caso de Rosana Paulino é ainda mais emblemático. Ao que parece, não há

cruzamento de signos pré-determinados afro-brasileiros. O método de trabalho e

produção da artista é oriundo das correntes contemporâneas da arte ocidental. O seu

contexto e problema, por outro lado, é pautado na busca de compreender variadas

questões sobre o corpo da mulher negra e a representação dessa no cotidiano social.

Como podemos notar, esses são temas que se aproximam dos conceitos

analisados anteriormente. A curadoria de Araujo permite e perpassa essas questões.

Assim, o curador não utiliza apenas um desses conceitos, mas implica-os em conjunto

17 Vale citar novamente que Salum descreve a arte afro-brasileira como “qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do negro no Brasil” (SALUM, 2000, p. 113).

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numa forma de exposição sobre arte afro-brasileira no Brasil. Há algum tipo de

colaboração entre os diversos modos de compreender essas obras. O curador usa, inverte

e subverte esses conceitos, demonstrando os seus problemas e limites. Esse

questionamento e confrontação são realizados na própria exposição, na prática empírica

de compreender e sistematizar a obra de cada artista num conjunto coeso ou conflituoso

de sentido.

Apresentando ponderações sobre a forma da escultura de Aleijadinho, o mesmo

curador diz, “de onde poderia vir, senão da África, aquela força expressionista contida na

obra do Aleijadinho? A sua escultura reducionista, geométrica, talhada com energia

angulosa, à maneira dos escultores nigerianos, pode ser resultante da influência dos três

escravos que trabalhavam com ele, mas mesmo assim o inconsciente que dominava

aquele processo de criação era o inconsciente do próprio Aleijadinho” (grifo nosso)

(Emanoel Araujo apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p. 10). Araujo, além de

afirmar a autoria de Aleijadinho (como fez Mario de Andrade), tenta compreender a sua

obra relacionada à estilística plástica das obras africanas. Essas categorias apresentadas

por Araujo são próprias do discurso pautado na forma de Preston18.

A importância do aspecto formal como fator fundador do trabalho de Preston

também influenciou a visão de Araujo em torno de toda a estética africana na América.

Revelando esse modo de pensar a América como uma unidade, o estudioso americano

diz que “na ausência de um sistema tribal de patronato religioso o artista neo-africano do

Novo Mundo sintetizou uma base intelectual para a escola neo-africana que produziu

uma arte cuja integridade formal é uma reafirmação dos cânones artísticos paleo-

africanos” (grifo nosso) (PRESTON & ARAUJO, 1987, p. 41). Nesse mesmo sentido,

Araujo descreve que “essa cultura africana, na unidade básica de sua diversidade

regional e mesmo tão subjugada, caminha junto com o negro, penetrando profundamente

nas Américas, no Caribe (...)” (grifo nosso) (HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 7).

Além disso, a exposição A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna, 1988)

trouxe um outro problema: de que forma avaliar e compreender a produção de artistas

negros pela sua autoria e não por modos de representação identificados com a cultura

afro-brasileira? Nesse caso, não nos limitamos apenas à arte afro-brasileira, mas

dirigimos nosso olhar para o artista negro que produz arte dentro de um código ocidental.

18 Anteriormente, quando Mário de Andrade descreve a “deformação” de Aleijadinho, talvez já estivesse apontando para essa influência do modo de esculpir africano na produção escultórica brasileira.

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Para Araujo, ressaltar a autoria negra é pensar a produção de diversos artistas

negros que operam dentro de um contexto de arte européia. Desde o Brasil colonial, a

presença de artistas negros nas artes plásticas é marcante e contínua, embora nem sempre

notada. Se a autoria negra na arte brasileira é relevante, a mesma não é percebida na obra

finalizada quando esses artistas apresentam um trabalho de contexto e forma em grande

parte ocidental. Seja no Brasil colonial ou no pós-abolição, a identificação do artista

negro com sua própria imagem e representação enquanto grupo sempre foi um

problema19. O modelo artístico europeu era, senão imprescindível, uma norma

subliminar para compreensão e entendimento de uma boa obra de arte.

O pensamento do artista sobre o mundo e sua própria identidade pode ser feito de

diversas formas. O artista pode não tratar de si e de seu grupo, mas direta ou

indiretamente, ele fala de sua experiência enquanto indivíduo pertencente a um grupo.

Essa contribuição é relevante para pensarmos no conceito curatorial de Araujo na

exposição A Mão Afro-brasileira. Ao agrupar os artistas pelo pertencimento étnico-

racial, o que temos é o interesse do curador pela variedade de formas como esse grupo

pensa em si e a sociedade.

Fato interessante: descrevendo esse contexto de troca de experiências e

identidades, o curador baiano diz que começou “a pesquisar a arte afro-brasileira e

descobri[u] muitos artistas brancos com fascínio pela cultura negra, assim como havia

artistas negros apaixonados pela arte européia” (ARAUJO, 2006b, p. 44). Notando esse

problema por outro lado, revelando o contexto social e cultural por trás dessas escolhas

séculos atrás, cabe citar novamente Maria Lucia Montes: “Na verdade o Ataide tem

legitimidade para representar o negro, embora não seja negro e, provavelmente, porque

não é negro. Se fosse negro, ele não teria jamais essa liberdade” (MONTES, 2008).

Ainda sobre a definição do termo arte afro-brasileira, cabe citar alguns

colaboradores do curador. Se para Renata Felinto arte afro-brasileira deve ser pensada a

partir do seu executor, para além do ambiente de culto, ressaltando também os trabalhos

19 Analisando a produção de artistas negros no Brasil, Aracy Amaral pontua argumento relevante: “Se Emanoel Araujo nos recorda que nos velhos tempos, na Bahia, os que sustentavam os terreiros de candomblé eram oriundos da classe média alta, construtores, empreiteiros de cor bem sucedidos na vida, ao mesmo tempo pode-se afirmar ser uma constante no Brasil, iniciado o processo de branqueamento, que o mulato, ao se clarear ou se tornar literalmente branco, esquece as suas raízes, pressionado, evidentemente, pelo preconceito odioso, e enterra sua ancestralidade sem procurar destrinchá-la, dela aprendendo o que lhe seria mais enriquecedor” (Aracy Amaral apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p. 247).

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de arte contemporânea20, para Carlos Eugênio Marcondes de Moura arte afro-brasileira é

apenas a arte realizada por artistas de culto ligados à matriz africana21. Em outro

momento, referindo-se às exposições de Araujo no Museu Afro Brasil, Maria da Betânia,

outra entrevistada, alega que muitos artistas negros não poderiam ser expostos

simplesmente por sua origem étnico-racial. Essas várias opiniões expressam mais uma

vez as sinuosidades desse território.

A definição de Carlos Eugênio é próxima dos escritos de Marianno Carneiro da

Cunha (1983). Para esse primeiro, arte afro-brasileira é o trabalho realizado em torno das

religiões de origem na África. Como pudemos constatar anteriormente, essa definição

entra em conflito com a proposta tanto de Roberto Conduru (2007) quanto de Marta

Heloísa Leuba Salum (2000). Ambos propõem uma obra de arte para além da estilística e

dos cultos afro-brasileiros, somando a isso a contribuição dos artistas contemporâneos.

Procurar na arte afro-brasileira somente os atributos de forma e legitimação conferidos

pelos locais de culto pode limitar esse fenômeno a um pequeno espaço de produção.

Além disso, é atribuir significados formais que engessam a obra de arte somente a um de

seus aspectos.

Cabe ressaltar que a religião tem sido um espaço importante de continuidade e

referência para a arte de origem na África. Muitos artistas têm encontrado nesse local

20 Como a própria pesquisadora Felinto diz, “penso em arte afrodescendente. A matriz é o indivíduo que produziu a obra. Eu penso muito na perspectiva do negro que pensa a sua própria trajetória e que de alguma maneira tenta elaborar isso através da pintura, do desenho, da fotografia, das instalações e performances. Eu tenho pensado mais nessa perspectiva também por conta da lei, que agora inclui o estudo da cultura indígena. Antes era uma lei que vinha para diferenciar um grupo, agora ela começa a botar todo o mundo que não é branco no mesmo saco. Bem, agora eu tenho pensado muito que é importante apresentar artistas negros produtores. Então, não tem sentido, por exemplo, estudar Di Cavalcante porque ele pintou mulatas ou estudar o Portinari porque ele pintou trabalhadores negros ou a Dijanira que pintou festas populares ou mesmo o Ronaldo Rego. Eu penso muito no negro como produtor da arte. Ele como protagonista e não mais como tema. Quando eu penso nesse termo, que não gosto muito, penso sob essa perspectiva, focando quem produz. E focando quem produz há uma grande diversidade de temas. Essas pessoas são artistas e vão colocar isso de diferentes modos na sua produção. Outros nem pensam em colocar essa discussão em suas obras” (grifo nosso) (FELINTO, 2008). 21 Cabe citar a análise de Carlos Eugênio Marcondes de Moura: “Essa arte (afro-)brasileira nasce de um envolvimento de alguns artistas com a questão da religião negra. Por exemplo, o Rubem Valentim, ele era ogan de um terreiro de candomblé. Toda essa geometria dele parte de objetos rituais. Ele pega um machado e vai trabalhando isso de mil maneiras, procurando novas geometrias, novas variações, novas formas. Mas você vê que no fundo a grande referência é a questão do objeto ritual do candomblé. (...) Um outro exemplo é o Ronaldo Rego do Rio de Janeiro. Iniciou-se na umbanda e depois passou pra o candomblé e toda obra do Ronaldo rego, a gravura e a escultura é todinha referenciada a esse culto do qual é devoto e está envolvido. Ele tem uma ligação profunda. Então, essa arte afro-brasileira é, me parece, basicamente uma arte religiosa. Mas ai você tem também artistas africanos que não são necessariamente ligados a esse universo religioso. Nem entro no universo de interesse deles” (grifo nosso) (MOURA, 2008).

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indícios para a criação de sua obra plástica. Nesse sentido, descrever a produção dos

artistas rituais das religiões de matriz africana no Brasil pode revelar caminhos

pertinentes dessa produção. No entanto, conferir a apenas esse território o poder de

consagrar um objeto como arte afro-brasileira talvez desconsidere as manifestações

contemporâneas que aconteceram sobre esse universo.

A proposta de Renata Felinto parece se ater a dois fundamentos de nosso estudo:

a autoria do artista negro e a constância deste em produzir reflexões sobre o seu próprio

grupo. Por sua vez, ao excluir o artista de outras ascendências, essa proposta pode relegar

ao esquecimento importantes contribuições. O próprio Araujo, citando esse problema,

observa que o artista Carybé (Hector Paride Bernabó) pode ser considerado um artista

afro-brasileiro. Araujo explica: “eu diria que Carybé é um artista afro-brasileiro. Porque

toda a produção dele está dirigida para registrar essa cultura. Mas no registro tem uma

invenção dele ali dentro e ela está ligada à questão afro-brasileira” (2009). Arte afro-

brasileira não estaria relacionada ao pertencimento étnico-racial do artista, mas sim à

preocupação deste em dialogar com essa cultura. A proposta de Salum, considerando

como arte afro-brasileira todo o universo de questões sobre o negro no Brasil e os objetos

de influência estilística africana tradicional, parece abarcar essas tendências.

Como citamos, Maria da Betânia considera descabida a participação de artistas

negros não focados numa produção afro-brasileira nessas mostras. A questão de Betânia

não diz respeito exatamente à arte afro-brasileira, mas aos artistas negros que utilizam de

uma linguagem ocidental para sua criação. Araujo responde a esse problema quando na

exposição Vozes da Diáspora (1993) diz que “claro está que essa exposição nem sempre

apresenta resultados estéticos com raízes na África” (apud VOZES, 1993). Aqui,

interessa saber a cor da pele do artista na medida em que isso revela um modo especial

de ver a realidade e de se impor no mundo. A maneira e estratégia como esses artistas

negros se inserem dentro do discurso oficial, do código dominante, é o objeto dessa

curadoria.

Para estudar a curadoria de Araujo é preciso discutir o contexto de arte afro-

brasileira de maneira ampla. Como vimos através do estudo de Carneiro da Cunha,

Preston, Salum e Conduru, parece ser necessário observar que proposições importantes e

diferenciadas são feitas por artistas rituais e pelos artistas alheios ao universo religioso

afro-brasileiro. São orientações diferentes para lidar com o tema. Uma é circunscrita ao

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código tradicional e religioso (nem por isso menos contemporâneo) e outra relacionada

ao contexto e circuito das artes plásticas atuais (com proposições que pensam seu

contexto étnico-racial dentro desse ambiente). Contudo, ambas são pertinentes. Ao que

parece, é desse modo que a experiência do curador baiano tenta compreender as diversas

possibilidades pelas quais um artista pode adentrar esse universo.

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2. O museu e o espaço da exposição

Para compreender a trajetória de Emanoel Araujo é preciso observar o espaço que

contorna suas exposições. Inserindo a narrativa de arte afro-brasileira dentro do museu

ou procurando um outro público, o curador subverte o tradicional uso dessa instituição.

A partir disso é que nos apoiamos em estudos sobre a história do museu no ocidente para

confrontar os problemas dessa instituição com as práticas delineadas por Araujo em

cerca de três décadas de atuação.

Iniciamos esse capítulo apresentando algumas das características do museu

tradicional. Nossa intenção é, sucintamente, pontuar os conceitos que nortearam parte

significativa da história dessa instituição. Se o museu tradicional utiliza um discurso

linear e universal, as discussões sobre o museu contemporâneo se orientam pelo discurso

polifônico. A partir do pós-guerra no século XX, os conceitos da nova museologia

principiam o debate acerca de uma outra concepção de museu.

Em um segundo momento, relacionando o museu e a arte de origem na África,

pretendemos compreender a forma como essa arte tem sido vista e tratada dentro do

museu ocidental. Embora foquemos as exposições de Araujo sobre arte afro-brasileira, a

proximidade e relação desta com a arte da África torna necessário estudar essas

conexões.

No subcapítulo seguinte localizamos as nossas preocupações em torno do museu

e a cultura e arte afro-brasileiras. Para analisar esse ambiente, utilizamos estudos que

atentam para a compreensão da história afro-brasileira dentro desse espaço. Cabe

verificar através de alguns estudos se os métodos usados para compreender a arte da

África nos museus ocidentais são os mesmos empregados para a arte e cultura afro-

brasileiras nos museus nacionais. Por fim, a última parte desse capítulo procura

contextualizar esses problemas frente à prática expositiva do curador Araujo.

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O museu tradicional e a nova museologia

O museu22 possui uma longa história no ocidente, “remonta ao tesouro dos

atenienses em Delfos, ao saque feito por Verres às antiguidades gregas e ao Museu

Alexandrino” (Hughes de Varine-Bohan apud ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO,

1979, p. 9). Na Antiguidade ou na Idade Média, ele também foi o detentor dos grandes

tesouros eclesiásticos.

Durante grande parte de sua história, o museu foi uma forma de apreciação

particular de obras para poucos. Após a Revolução Francesa, ele passa a ser local

destinado à esfera pública (em 1793 o Palácio do Louvre torna-se o Museu da

República)23. Somemos a esse fato o surgimento das grandes nações modernas. A

instauração de uma história nacional, mostrando aos diversos grupos sociais uma

narrativa que os amalgama, torna-se uma das características dessa instituição.

No século XIX a ciência tornou-se paradigma para a classificação e

hierarquização dos objetos dentro do museu. Impulsionado pela descoberta de novos

territórios (na América ou na África), o museu se torna a convergência entre dois

mundos pela perspectiva européia. A etnologia e a antropologia agem principalmente no

estudo dos objetos e nas sociedades “primitivas” de além-mar. Analisando a trajetória de

coleções africanas no Museu Etnológico de Berlim, na Alemanha, Wolfgang Döpcke

descreve que:

Ao contrário dos “gabinetes de curiosidades” das casas dinásticas dos séculos anteriores, os museus etnológicos da segunda metade do século XIX se constituíram com pretensões científicas. Em vez de satisfazer a mera curiosidade do observador com a exposição de objetos exóticos, definiram a ampliação do conhecimento científico como objeto principal dos museus e como razão do impulso colecionador. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a etnologia alemã estava profundamente influenciada pelo ideário evolucionista da história cultural. Não se estudavam as “sociedades primitivas” para

22 Vale perceber que “a palavra moderna museu é uma derivação do grego museion, nome dum templo de Atenas dedicado às musas. No século III a. C. a mesma palavra foi utilizada para designar um conjunto de edifícios construídos por Ptolomeu Filadelfo em seu palácio de Alexandria. Tratava-se dum complexo que compreendia a famosa biblioteca, um anfiteatro, um observatório, salas de trabalho e de estudo, um jardim botânico e uma coleção zoológica. Sabe-se por outro lado que já no século V a. C. se dava o nome de pinacoteca (pinakothéke) a uma das alas dos Propileus da Acrópole de Atenas, e Pausânias conta que nela se guardavam pinturas de Polignoto de Tasos e de outros artistas” (ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 24). Como demonstrado, podemos observar que o termo museu remete a duas concepções diferentes dessa instituição na Antiguidade, sendo que o termo pinacoteca é o mais próximo da instituição museu que analisamos no presente. 23 Antes disso, o Palácio de Belvedere em 1783, em Viena, já havia aberto suas portas à sociedade. Mais relevante que marcar um princípio desse fenômeno de abertura do museu é compreender que o século XIX é o despontar do museu como uma instituição destinada ao coletivo e não mais à elite dirigente.

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melhor conhecê-las ou para fundamentalmente compreendê-las como último objeto da pesquisa. A principal razão do trabalho etnológico era a compreensão dos caminhos de evolução cultural da humanidade, e os “povos primitivos” das colônias foram considerados testemunhas e representantes de estágios inferiores de uma trajetória humana unidimensional (grifo nosso) (2004, p. 36).

No caso dos museus no Brasil, temos o seu desenvolvimento no século XIX sob

duas orientações principais: primeira, o museu de ciência; segunda, o museu

comemorativo. O primeiro destina-se ao estudo da fauna, bem como das populações não-

ocidentais e sua produção material. O segundo é o local que zela pela guarda da memória

nacional, exibindo obras de arte como ilustração dessa história, procurando realizar o

apanágio dos fatos que definem o país (SCHWARCZ, 1993, p. 68).

Dentro desses diversos paradigmas do museu, podemos identificar um ponto em

comum – a sua profunda vinculação a uma perspectiva ocidental sobre a história e o

mundo. Esse espaço, “enquanto instituição e enquanto método de conservação e de

comunicação do patrimônio cultural da humanidade, é um fenômeno europeu que se

difundiu porque a Europa produziu a cultura dominante e os museus são uma das

instituições derivadas dessa cultura” (grifo nosso) (Hughes de Varine-Bohan apud

ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 12).

O museu tradicional, como vimos, é essencialmente linear, hierárquico e

autoritário. Essas são partes do método que marcou seu princípio. A representação

museológica é construída por quem detém o poder econômico, cultural e político.

Segundo essa perspectiva, um único caminho de desenvolvimento e entendimento da

história é possível. Manter essa visão dos fatos, da cultura e, portanto, da ação

museológica, não é possível apenas com ferramentas científicas, mas sim com estruturas

de poder que validam a história a partir do foco dominante.

Hughes de Varine-Bohan, ex-diretor do ICOM (Conselho Internacional dos

Museus), diz que:

(...) não podemos esquecer o fato de um museu ser sempre a função e o reflexo da classe social que o cria. Neste sentido pode afirmar-se que um museu que exprima a complexidade da sociedade de que faz parte não pode existir. É por este motivo que surge a necessidade de criar um novo conceito de museu em que cada indivíduo possa encontrar os elementos básicos para seu desenvolvimento enquanto ser humano e membro duma sociedade muito complexa como a atual (grifo nosso) (apud ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, pp. 79-81).

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Em contraposição à história do museu ocidental como instituição que constrói a

história do mundo sob a égide européia, em meados do século XX, após a Segunda

Guerra Mundial, diversos estudiosos começam a apontar para uma outra forma de

compreender as narrativas produzidas por essa instituição.

Para compreendermos essa situação, vale utilizar os estudos sobre a nova

museologia de Luiz Alonso Fernández (1999). O autor descreveu a contraposição entre

essas diferentes concepções de museu na história ocidental24.

Ressaltamos que o uso do conceito de museu tradicional e da nova museologia

mostram perspectivas diferentes em relação a essa instituição. Por outro lado, isso não se

refere a diferentes momentos históricos, mas sim a dois modelos presentes na atualidade.

Analisando os objetivos de uma nova concepção de museu, Fernández descreve

que este “Deberá incluso (...) reciclar – si no romper com ellos – los roles habituales de

sacra entidad conservadora y distante que ha venido ejerciendo en favor de una cercania

informadora y comunicativa com la comunidad” (FERNÁNDEZ, 1999, p. 15).

Contrapondo-se à afirmação de Theodor Adorno, de que museu é “mausoléu”,

local de coisas mortas (FERNÁNDEZ, 1999, p. 11), a nova museologia pretende travar

diálogo constante e eficaz com o público mais amplo e, principalmente, com sua própria

comunidade. O museu deixa de ser um espaço de e para especialistas e passa a ser

território de debate para todos. Deixa de ser local apenas de pesquisa, mas valoriza o

diálogo suscitado por essa mesma atividade. Sendo um espaço dedicado ao público,

apoiado evidentemente na pesquisa e em sua própria metodologia, essa instituição deve

buscar uma gestão democrática das atividades e formas de ação. Como diz Marc Maure,

(...) una de las características esenciales de la nueva museologia consiste en la utilización de métodos de trabajo basados en el diálogo entre el museólogo y la comunidad, para el estudio, la preservación y la difusion de la cultura de esta comunidad. (...) Es además um médio de expresión tridimensional, es decir que constituye um espacio físico que puede ser utilizado como un lugar de reencuentro, de convivência, de intercambio y de debate (grifo nosso) (apud ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, pp. 148-150).

24 Outro fator relevante de Fernández é estudar a instituição museológica como parte de uma disciplina científica. A museologia tem como objeto o estudo do museu e pode ser entendida em dois âmbitos: museologia e museografia. A primeira lida com a teorização e a segunda com os atributos práticos da atividade museológica. Cabe ressaltar que não há hierarquia dentro dessa separação. A prática da museografia se nutre da teoria da museologia assim como o inverso também é verdadeiro.

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Visando esse objetivo, cabe citar os paradigmas da nova museologia

desenvolvidos por Marc Maure e usados por Fernández:

1. La democracia cultural 2. Un nuevo y triple paradigma: de la monodisciplinaridad a pluridisciplinaridad, del

público a la comunidad y del edifício al território 3. La conscienciación 4. Un sistema abierto e interactivo 5. Diálogo entre sujetos 6. Un método: la exposición (Marc Maure apud FERNÁNDEZ , 1999, p. 82).

Esses paradigmas, para o autor espanhol, são um conjunto de proposições

necessárias para o museu frente aos problemas de nosso tempo. Cabe analisarmos alguns

desses conceitos: “la democracia cultural”, “la concienciación” e “un sistema abierto e

interativo”.

O primeiro item citado refere-se à “democracia cultural”, que, para Fernández, é

o trabalho de exposição e de museologia que compreende a diversidade cultural como

base para qualquer projeto dentro dessa instituição. Esse conceito contraria a antiga visão

do museu monocultural. Fernández diz que “La cultura de los ‘dejados de cuenta’,

‘olvidados’ y ‘oprimidos’ há llegado a ser el campo de elección de los ‘nuevos museos”

(FERNÁNDEZ, 1999, p. 106).

Por sua vez, “La concienciación” constitui-se como o resultado do trabalho e

proximidade entre o museu e seu público. O novo museu não se dirige apenas a um

público abstrato e homogêneo de receptores. O seu público é composto por uma

comunidade em constante proximidade com suas atividades. Essa comunidade é o

objeto último (e primeiro) de toda ação museológica. Ela não apenas recebe o conteúdo

de uma exposição, mas interage com esta, propondo a devolução da ação de leitura e

compreensão25.

Sobre o “sistema abierto e interativo”, a montagem singular de uma exposição

deve trazer um modo amplo de ver a mesma. Dessa maneira, temos a constituição de um

palco onde o diálogo e pluralismo de visões é possível e necessário. Essa multiplicidade

25 Como diz Hughes de Varine-Bohan: “O museu moderno, universidade para o povo através dos objetos, é um museu que pode abarcar a totalidade da comunidade que pretende servir” (ROJAS & CRESPAN & TRALLERO, 1979, p. 20).

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não deve enrijecer um modo de ver a mostra, mas atribui ao espaço uma característica

sinuosa que permite ao visitante criar seus próprios caminhos dentro do museu26.

Como podemos notar, a nova museologia pretende substituir a orientação linear e

autoritária do museu tradicional para compreender quão múltipla pode ser a

representação de um fato, de uma proposta expositiva, da história. Tal perspectiva

requisita o uso da multidisciplinaridade. Tanto a história da arte quanto as demais

ciências humanas são atributos importantes para se compreender um objeto dentro desse

espaço expositivo.

O museu tradicional e a arte de origem não-ocidental

O museu ocidental tem configurado um modo específico de ver a arte não-

ocidental em seu espaço. A exposição de Araujo, apresentando proximidades e objetos

de arte da África, requer a compreensão desse contexto.

Os estudos de Sally Price (2000) sobre arte não-ocidental em museus (e também

sobre o público, artistas, críticos e marchands) da Europa e Estados Unidos expõem as

nuances desse intrincado jogo de representação e poder. Para a autora, a trajetória das

coleções originalmente não-ocidentais27 em museus ocidentais são vistas a partir de,

primeiro, um contexto etnológico e, segundo, um contexto formalista.

A primeira posição, etnológica, aborda o contexto de produção desses objetos e

crê que seu entendimento está vinculado principalmente por seu uso social. Esse foi o

conceito que norteou o entendimento da arte da África em final do século XIX e

princípio do XX.

Cabe citar Price: “Na compreensão Ocidental das coisas, uma obra originada fora

das Grandes Tradições (ocidentais) deve ter sido criada por uma personagem sem nome

26 Comentando essa preocupação de apresentar ao visitante uma multiplicidade de caminhos, vale observar esse contexto: “As plantas clássicas impõem um percurso e uma ordem ao visitante, o que permite expor as peças de acordo com uma seqüência histórica ou uma coerência estilística, ou projetar comparações entre grupos de obras com um objetivo didático que exige que os visitantes circulem num sentido previsto. Mas também se imaginaram outros modelos de circulação que deixam plena liberdade ao visitante, podendo este escolher um itinerário próprio, prescindindo conseqüentemente das áreas de exposição que não lhe interessam” (ROJAS & CRESPAN & TRALLERO, 1979, p. 39). 27 Como arte não-ocidental citamos não apenas as obras produzidas fora do espaço que consideramos ocidental, mas também obras que, mesmo produzidas no ocidente, possuem uma estética ou mesmo uma maneira de ver que a diferencia dos tradicionais cânones europeus e americanos de arte (como por exemplo parte da arte afro-brasileira tradicional).

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que representa sua comunidade e cuja arte respeita os ditames de tradições

antiqüíssimas” (PRICE, 2000, p. 87). Essa noção de artista anônimo e do universo de

tradições antigas para compreender a arte da África tem sido utilizada em museus

ocidentais desde os primeiros contatos entre essas culturas. Desse modo, essas obras

obtidas em grande parte durante o período de colonização da África sofrem da quase

total ignorância sobre as circunstâncias específicas de sua elaboração e contexto.

A segunda posição, formalista, entende que os objetos de arte não-ocidentais

possuem qualidades formais que podem ser julgadas segundo cânones artísticos

pretensamente universais. Essa definição foi adotada em meados do século XX em

contraposição à antiga visão etnográfica. Acontece sob a influência de artistas e

marchands a partir de uma leitura moderna dessas obras de arte da África. Os artistas

não-ocidentais continuam a ser anônimos e a criar dentro de regras muito rígidas, porém,

suas obras mudam de enfoque em relação ao discurso do museu. Sobretudo, elas passam

a ser obras de arte e não apenas objetos etnográficos para entendimento de uma

sociedade. Analisando a visão do observador a partir dessa perspectiva, Price diz que

essa opção deixa “o olho esteticamente discriminante ser o nosso guia, com base em

algum conceito indefinido de beleza universal” (grifo nosso) (2000, p. 134) 28.

Ambos os caminhos são visões extremamente ocidentais sobre a arte dos povos

não-ocidentais. Como diz Hughes de Varine-Bohan, essa mesma visão permeia inclusive

os países fora da Europa:

A partir de princípios do século XIX, o desenvolvimento dos museus no resto do mundo é um fenômeno puramente colonialista. Foram os países europeus que impuseram aos não europeus seu método de análise do fenômeno e patrimônio culturais; obrigaram as elites e os povos destes países a ver sua própria cultura com olhos europeus (grifo nosso) (ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 12).

28 Comentando um diálogo entre curadores, artistas e marchands, Kwame Anthony Appiah (1997) desnuda a tortuosa estrutura de significados que regem uma exposição de arte da África em centros ocidentais. O olhar ocidental tende a não se considerar um modo de ver a realidade, muito pelo contrário, ele é a própria realidade. Sobre a exposição do Centro de Arte Africana de Nova York, em 1987, o autor analisa a posição de um grupo de curadores a respeito de obras tradicionais da África. Dentro desse grupo, formado por curadores, colecionadores, professores de história da arte e artistas (ocidentais e um africano), vale citar a crítica de David Rockefeller (colecionador americano) sobre um objeto de arte chamado figura feminina fanti: “(...) possuo coisas semelhantes a essa e sempre as apreciei. Essa é uma versão bem mais sofisticada do que as que tenho visto, e achei-a muito bonita (...) a composição total tem um ar muito contemporâneo, muito ocidental. É o tipo de coisa que combina muito bem com as coisas ocidentais contemporâneas. Ficaria bem num apartamento ou numa casa modernos” (APPIAH, 1997, p. 194). Esse comentário revela um modo comum de observar a arte não-ocidental na contemporaneidade, retirando dela seus contextos próprios e inserindo-a num local novo, relacionada à estética de uma arte moderna formalista.

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A análise etnológica, buscando compreender o entorno da produção e as

características sociais e culturais do grupo não pode ser descartada. Todavia, não

podemos negar o conteúdo estético dessas obras. Por sua vez, a análise estética é inócua

se não se presta à pesquisa dos símbolos próprios daquela cultura. Esses são dois modos

distintos de compreensão do fenômeno. Tomar um ou outro como único caminho

possível é negar alguma outra qualidade relevante do trabalho.

Além disso, como diz Sally Price (2000), um outro importante fato é

negligenciado diante dessas duas vertentes – a voz dos próprios executores dessas obras

geralmente é tratada como irrelevante. Segundo ela:

Ao aceitar que as obras de Arte Primitiva são dignas de serem exibidas ao lado das obras dos mais distintos artistas de nossas próprias sociedades (...), a nossa próxima tarefa consiste em reconhecer a existência e a legitimidade dos arcabouços estéticos dentro dos quais elas foram criadas. A contextualização não mais representaria uma pesada carga de crenças e rituais esotéricos que afastam da nossa mente a beleza dos objetos, e sim um novo e esclarecedor par de óculos (PRICE, 2000, p. 135).

A observação de Price busca um modo contemporâneo e adequado para expor o

que denomina de “arte primitiva”29. Para compor esse mosaico de maneira coerente, é

preciso buscar a contribuição da crítica de arte formalista e da etnologia – disciplinas

que, aparentemente, têm-se mostrado como antagonistas.

Segundo a pesquisadora, ambos os extremos isolados (o artístico ou o

etnográfico) são míopes para a compreensão dos objetos de arte não-ocidental. Ao que

parece, tanto a contextualização quanto o reconhecimento estético são relevantes para a

29 O termo “arte primitiva” é usado com reservas em nosso estudo e na obra de Price. No ocidente, a “arte primitiva” é em muitos casos vista como um fenômeno fora do território ocidental, realizada por povos situados em locais longínquos e produto de uma tradição que nega a individualidade do artista. Distante no tempo e no espaço, desprovida de artistas conscientes do seu próprio trabalho (a partir da perspectiva do indivíduo ocidental), esses são os dois principais paradigmas que norteiam o termo. Contudo, isso não corresponde a esse tipo de arte, mas a uma forma ocidental de ver a arte não-ocidental. Essa perspectiva está impregnada dos instrumentos da filosofia positivista do século XIX que serviram de base teórica à colonização da África e Oriente, subjugando povos a um modelo único de progresso. Do mesmo modo, diversos pesquisadores (LAUDE, 1968; JUNGE, 2003; PRICE, 2000) têm atentado para a existência de autoria da obra de arte em sociedades tradicionais. Em muitas dessas comunidades, o artista é responsável por uma produção específica de materiais, sendo reconhecido por tal trabalho, quando bem executado. O artista tradicional é um autor, todavia, que não usufrui da mesma autoria artística do artista ocidental moderno, pois sua arte (mais do que no ocidente) está vinculada a uma visão de mundo especial, em muito litúrgica. Essa tradição, no entanto, não o impede de arriscar e alterar. São culturas e histórias diferentes, com especificidades, mas não tão distantes a ponto de desconsiderar a possibilidade de autoria em sociedades tradicionais. É sob essa crítica que compreendemos o uso do termo “arte primitiva” (que está entre aspas) e, como acreditamos, seu uso não nos impede de lembrar que o nome carrega, em si, uma ideologia de dominação e exotização dos povos tradicionais na América indígena, na África e no Oriente.

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compreensão ampla da arte dos povos tradicionais da África e Oriente. Somada à

contextualização histórica, social e cultural do trabalho artístico, Price afirma a

necessidade de se estudar a iconografia e estética dos próprios povos e artistas

tradicionais30.

A etnologia deve suprir as informações necessárias sobre a composição da

sociedade, do artista ou do objeto de estudo em seu meio original. À crítica de arte cabe

compreender o objeto dentro de suas características formais, bem como relacioná-las à

estrutura cultural e social. Na arte da África, a forma não é uma definição somente do

artista, mas é o resultado de um diálogo com aqueles que detêm a autoridade de guardar

e comunicar os saberes da comunidade aos seus pares. Por outro lado, esse diálogo é

mediado pelo conhecimento técnico, pela qualidade de execução e pela orientação

estética do artista ou do grupo que realiza o objeto. Por último, mas não menos

importante, muito pelo contrário, essas duas perspectivas devem travar contato com o

conhecimento do grupo sobre seus próprios objetos.

Se é certo que a crítica ocidental pode se debruçar sobre as artes tradicionais não-

ocidentais, é igualmente relevante que essa crítica produza instrumentos adequados ao

seu objetivo. Analisar o objeto de arte não-ocidental do mesmo modo que outro objeto

ocidental é ignorar os princípios essenciais que regem essa arte. A crítica de arte não

pode se despojar de todo seus instrumentos, mas precisa adaptar-se, reconhecer as suas

limitações.

Cultura e arte afro-brasileira no museu

Como podemos notar no texto anterior, a arte da África é apresentada e difundida

de modo específico dentro do museu ocidental. Por sua vez, ao que parece, a arte e

cultura afro-brasileira também são compreendidas nos museus brasileiros a partir de

códigos de representação semelhantes. É possível que a arte afro-brasileira, em alguma

medida caudatária de sua ascendência em África, sofra dos mesmos problemas dentro do

museu ocidental, que por muito tempo mostrou esses objetos como artefatos de culturas

30 A exposição Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2008), com a vinda e discussão com os próprios artistas desse país, aponta para essa necessidade de conhecer as vozes desses criadores.

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estranhas e distantes. Como um filtro, o museu mostra ao público uma maneira de ver e

sentir. Pontuar as características dessa visão sobre a cultura e arte dos povos de

ascendência africana pelos museus brasileiros é o nosso objetivo nesse momento.

A arte afro-brasileira dentro do museu pode ser apresentada sob diferentes

concepções e configurações. Se em alguns aspectos podemos descrevê-la como a arte

produzida em terreiros para fins litúrgicos, esse não é o mesmo fenômeno de parte da

arte afro-brasileira de orientação estética contemporânea.

A arte afro-brasileira mais atual, que dialoga com os movimentos artísticos

internacionais contemporâneos, parece não sofrer dos mesmos problemas da arte de

maior ascendência estilística em África. Para esses dois modos de arte afro-brasileira há

um determinado tipo de exposição dentro do museu. Se a obra mais tradicional pode

estar circunscrita a conceitos próprios da etnologia, a segunda corrente, mais

contemporânea, geralmente está delimitada em exposições sobre arte, interagindo com

problemas da história da arte.

Esse esquema nem sempre é tão cristalino. Mesmo os artistas que operam dentro

de um código contemporâneo de arte podem se aproximar, conflituosamente, de um

discurso próprio da etnologia de décadas atrás31. Essas definições se mesclam,

coadunam, cruzam e divergem em desconcertantes embates. Como campos de poder e

tensão, eles se repelem ou se sobrepõem de diferentes formas, sugerindo, em alguns

casos, formatos híbridos.

Do mesmo modo como pensamos em diferentes orientações sobre arte afro-

brasileira, as características do seu entorno, o museu, também devem ser observadas. Em

cada tipo de museu – histórico, artístico, temático, etc. – temos um discurso específico

sobre o negro, sua arte e cultura. Destrinchar esses códigos requer atenção, pois, em

geral, o discurso do museu sobre a obra tende a amalgamar esses gêneros em um mesmo

propósito. O museu de arte pode utilizar objetos históricos e o museu de história pode

expor obras de arte, dentre outros intercâmbios e trocas. Sobretudo, um objeto dentro do

museu é polifônico. Ele pode sugerir muito mais do que a legenda ou o contexto

museológico sugerem.

31 Os artistas contemporâneos do Benin expostos no Museu Afro Brasil (Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade, Museu Afro Brasil, 2008) relataram o modo dúbio pelo qual é tratada a sua arte pelo público ocidental – para estes, ao que parece, ela não pertence ao tradicional e nem ao contemporâneo. Analisamos mais detalhadamente esse fato no Capítulo 5.

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Feitas as devidas observações, descreveremos a seguir a análise de alguns

estudiosos sobre a arte afro-brasileira em museus brasileiros. Essa rápida abordagem

procura contextualizar a experiência de museus antigos (século XIX) e outros mais

recentes (fim do século XX). Mais adiante, apresentaremos a experiência de exposição

de Lina Bo Bardi. Essa pesquisadora parece ter buscado um outro modo de ver a arte

afro-brasileira e uma breve análise de suas contribuições é necessária. Por fim,

analisaremos também a proposta de criação do Museu de Arte Negra de Abdias do

Nascimento.

No Brasil, analisando a cultura material dos povos negros em fins do século XIX

no museu (em muitos casos o que classificamos como arte tradicional afro-brasileira),

constatamos que essa era predominantemente vista como um objeto de ciência.

Procurando compreender o universo conceitual em relação aos povos e às obras de

origem não-ocidental dentro dos museus brasileiros em final do século XIX, cabe citar a

análise de Lilia Moritz Schwarcz: “Aos poucos, os museus etnológicos transformam-se

em depósitos ordenados de uma cultura material fetichizada e submetida a uma lógica

evolutiva” (1993, p. 69). Nesse mesmo sentido, a autora continua mostrando a

convergência entre as idéias raciais e o lugar do museu e das suas obras para a elite

intelectual da época:

Herdeiros de uma forma específica de classificação, os museus etnográficos aplicaram as máximas do evolucionismo social, que pressupunham uma estrita analogia biológica, substituindo organismos vivos por grupos sociais. Fiéis às máximas dos evolucionistas sociais, cujo foco de interesse centrava-se no desenvolvimento cultural da humanidade como um todo e não de uma sociedade em específico, os antropólogos dos museus pareceram entender o país como um grande “arquivo” de documentos originais e fundamentais para a verificação e estudo das “etapas atrasadas da humanidade” (grifo nosso) (1993, p. 92).

Esses objetos oriundos da cultura dos africanos escravizados, assim, para a

ciência do século XIX, deveriam compor um mosaico onde já estava predeterminado o

seu lugar e função. Eles correspondiam a artefatos produzidos por sociedades

diferenciadas temporalmente e espacialmente da ocidental. E embora estejamos falando

de uma produção dentro do Brasil, o princípio que orientava esses museus parece ser

análogo ao dos museus europeus.

Sobre o momento atual das exposições de arte afro-brasileira tradicional e do

negro, os estudos de Marcelo Nascimento Bernardo Cunha (2006) demonstram que essas

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coleções ainda são vistas e concebidas como tipos diferenciados de arte, muitas vezes

apenas objetos de ciência. Pertencendo principalmente a coleções etnológicas, os modos

de apreciação desses objetos diferem pouco do que foi feito há um século. Em geral, para

o autor, as exposições demonstram um grande interesse no passado que, não obstante,

engessa a possibilidade de se construir e de se pensar essas obras dentro do mundo

contemporâneo32.

Em sua análise sobre coleções e exposições no Brasil, Bernardo Cunha constatou

a ausência quase total de obras contemporâneas dos grupos afro-descendentes. Sendo

exposições que situam a presença africana no Brasil, a ausência de uma imagem atual da

arte afro-brasileira ou da África reafirma um contexto de representação estático, até

mesmo mítico, sobre esse grupo.

Como diz o pesquisador, em muitos museus brasileiros há

(...) uma visão com distorções e desqualificações da ancestralidade africana (...), que mesmo possibilitando a valorização do continente como produtor de complexas e milenares culturas, pode causar no espectador idéias de culturas rudimentares, que se esgotou e não se atualizou nas suas práticas e estratégias de resistência e renovações (BERNARDO, 2006, p. 99).

Em âmbito semelhante, há também a contribuição de Myrian Sepúlveda dos

Santos (2007)33. Apresentando ponderações sobre instituições brasileiras como o Museu

Nacional de Belas Artes, a pesquisadora relata duas imagens recorrentes sobre o negro

no Brasil: primeira, as obras e imagens de negros são em grande parte veiculadas como

obras do passado escravocrata; segunda, as imagens do negro na sociedade

contemporânea e passada são partes de um contexto de exotismo onde o esporte, a dança

e a música são os únicos espaços possíveis de identificação positiva desse grupo.

Ainda sobre o negro no museu, a autora mostra que:

o silêncio sobre raça pode representar a predominância de um imaginário coletivo, comum, capaz de se impor ao conjunto de cidadãos, independente de cor, etnia ou raça.

32 O próprio Emanoel Araujo procurar diferenciar sua trajetória diante dessas instituições: “Tem o Museu Afro-brasileiro da Bahia, o Museu da Escravidão lá em Pernanbuco (...) mas esses têm uma certa morfologia antiga e nós queremos criar uma tipologia que seja contemporânea, ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva” (ARAUJO, 2004b). 33 Podemos somar a esse trabalho a contribuição de Raul Lody (2003). O autor, apoiado em vasta pesquisa em acervos museológicos sobre o negro no Brasil, reitera a presença quase total do negro em coleções etnológicas. Embora seja sabida a presença do negro no espaço religioso e litúrgico de origem africana, a sua ausência em outros espaços torna difícil associar maior complexidade a sua imagem numa sociedade contemporânea repleta de antagonismos e hibridismos culturais.

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Cabe a nós, entretanto, investigar este imaginário comum e perceber em que medida ele traz hierarquia de valores e elege padrões estéticos e produções culturais de um segmento populacional em detrimento de outro (grifo nosso) (SANTOS, 2007).

A partir do estudo desse museu, a autora constata que o discurso sobre o negro no

Brasil está relacionado à ausência de conflitos. Essa visão harmoniosa, todavia, acaba

por distorcer a realidade e a representação desse mesmo grupo e da sociedade.

Outro estudioso do tema, J. Neves Bittencourt, relata a ênfase no sofrimento do

negro escravizado na narrativa produzida pelo Museu Histórico Nacional no Rio de

Janeiro: “Os ‘instrumentos de contenção e suplício’, por sua vez, fazem certo sentido,

caso considerados como documentos que indicam a relação entre escravos e seus

senhores. Indicam a posição dos africanos numa hierarquia social regulada pela

violência” (grifo nosso) (BITTENCOURT, 2008, pp. 209, 210). Se os grupos negros não

podem se identificar com essa representação, por outro lado, parece que só resta ao grupo

dominante legitimar essa visão dos fatos.

Em outro âmbito, a contribuição de Nelson Fernando Inocêncio da Silva (2001),

discutindo o currículo de cursos voltados às artes visuais, expôs problemas relativos ao

modo de compreender o contexto étnico-racial dentro da arte ocidental. Para ele, o “olhar

europeu, em questão, indubitavelmente definiu maneiras de ser e não ser representável,

além de delimitar o espaço da alteridade nas obras de arte e fora delas” (2001, p. 152).

Desse modo, para pensarmos em artes plásticas e questões de ordem étnico-racial

devemos solicitar que as ferramentas da crítica revejam suas próprias categorias,

engendrando outro modo de ver e conhecer. Como afirma o mesmo pesquisador, “tal

atitude implica questionamentos inevitáveis, que significam muito para as relações de

poder entre aqueles que estão no centro e os que estão na periferia do conhecimento”

(2001, p. 155).

Em outro momento, a partir do fim da década de 1950, pensando em práticas

curadoriais sobre arte e cultura afro-brasileira, Lina Bo Bardi (1914-1992) traz uma

experiência diferente desse contexto. De origem italiana, a arquiteta, curadora e

intelectual elaborou desde final dos anos de 1950 exposições que buscavam pensar e

situar a arte brasileira longe de se referenciar apenas na história da arte européia. As suas

exposições Bahia no Ibirapuera (Lina Bo Bardi e Martins Gonçalves, V Bienal de São

Paulo, 1959), Exposição Nordeste (Solar do Unhão, Salvador, Bahia, 1963) e a Mão do

Povo Brasileiro (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1969) são mostras que

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evidenciam pensamento amplo sobre a cultura nacional. Essas exposições de Lina

demonstram o interesse em valorizar objetos que tradicionalmente não pertencem ao

universo da exposição no museu. A arquiteta não operava dentro de uma lógica

tradicional de exposição e estava aberta a compreender a convergência e o cruzamento

dos mais variados objetos.

A atitude de Lina de rebaixamento do status da arte (de um ponto de vista

modernista) pretendia não mais compreender o espaço expográfico como um local

destinado somente a obras de arte e para um público seleto de pesquisadores e iniciados.

A proposta de Lina pretendeu aproximar o grande público do espaço de debate que deve

ser próprio do museu. Lina diz que “é nesse sentido social que se constitui o Museu de

Arte de São Paulo, que se dirige especificamente à massa não informada, nem

intelectual, nem preparada” (Lina Bo Bardi apud FERRAZ, 1993, p. 44).

Como parte disso, a sua ação de confronto frente aos “intelectuais acostumados à

arte estrangeira” é evidente em inúmeros de seus textos. Combater esses vetores era

confrontar uma forma de pensar a arte e a cultura brasileiras como um traço contínuo e

natural entre a Europa e o Brasil. Para Lina, essa continuidade não era nada linear e,

conseqüentemente, não poderia ser compreendida sem a presença da arte popular ou da

arte de origem afro-brasileira.

Outra faceta da exposição de Lina é o não uso de sinalizadores delimitando

gêneros artísticos. A comparação, diferenciação ou convergência entre formas de arte são

percebidas segundo a visão atenta do observador. É ele quem deve analisar e vislumbrar

questionamentos a respeito do limiar de significados entre uma obra popular e outra

erudita, entre um objeto religioso e outro artístico. Do mesmo modo, o tempo é outro

problema dado pela exposição a ser resolvido pelo observador, ao dispor obras de

diferentes épocas em um mesmo espaço.

Como diz a curadora,

(...) o fim do Museu é o de formar uma atmosfera, uma conduta apta a criar no visitante a forma mental adaptada à compreensão da obra de arte, e nesse sentido não se faz distinção entre uma obra de arte antiga e uma obra de arte moderna. No mesmo objetivo a obra de arte não é localizada segundo um critério cronológico mas apresentada quase propositalmente no sentido de produzir um choque que desperte reações de curiosidade e de investigação (grifo nosso) (Lina Bo Bardi apud FERRAZ, 1993, p. 46).

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A experiência de Lina, expondo obras de diferentes origens no museu de arte,

parece ser pioneira em retirar essa produção das tradicionais exposições de caráter

meramente etnológico no Brasil. Por outro lado, Lina compreendia muito bem que a sua

ação não poderia ser pensada somente a partir de uma perspectiva artística, formalista.

Etnologia e história são apoios relevantes para sua exposição.

O modo de expor da curadora também é peculiar. Inspirando-se nas feiras de

artesanato, as suas exposições remetem a mesma forma de organizar objetos. Na

Exposição Nordeste (1963), Lina mostra obras a partir de uma montagem a partir do

acúmulo, exibindo objetos de diversas procedências. Utilizando-se de suportes

transparentes ou que permitem o cruzamento visual de objetos em diversos planos, a

curadora planejou um intrincado jogo de significados onde tudo é passível de ser

comparado em diversas perspectivas (Imagem 15.3).

Ainda nesse sentido, a exposição África Negra (com curadoria de Lina Bo Bardi,

Pierre Verger, Marcelo Carvalho Ferraz e Marcelo Suzuki, MASP, 1988) expõe outro

modo de lidar com o espaço da exposição como cenografia. O uso da organização dos

painéis de modo circular (dois semicírculos), como um terreiro, e de folhas de coqueiro

sobre o chão é parte da iniciativa que tenta reinventar o território da exposição de arte a

partir do uso de dispositivos para além dos próprios objetos de arte (Imagem 15.4).

A ação de Lina Bo Bardi em buscar uma forma de compreender e organizar

objetos dentro de uma exposição, focando um novo público e um novo conceito sobre o

objeto de arte, parece ser própria das discussões que nortearam o movimento da nova

museologia nesse mesmo período. A contribuição de Lina (assim como também parece

ser a de Pietro Maria Bardi) procurou estabelecer um paradigma contemporâneo para a

exibição da arte brasileira.

Outra proposta no sentido de discutir as implicações de ordem étnico-raciais

dentro das artes plásticas e do museu foi realizada por Abdias do Nascimento, importante

pensador e propositor do Teatro Experimental do Negro. Sua ação foi direcionada à

criação do Museu de Arte Negra (MAN) em 1968. A proposta de Nascimento tornava o

problema de representação dos negros dentro das artes plásticas um fato fundamental

para supressão de práticas contínuas de aviltamento dessa cultura.

O escritor e militante focou a necessidade de pensar essa produção sob o viés do

executor dessas obras, ou seja, o negro que vê sua própria cultura. Todavia, Nascimento

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mostrava preocupação em delimitar que seu conceito de “arte negra” não estava restrito

somente a autores negros. O seu “Museu de Arte Negra” deveria congregar obras de arte

de todos os artistas vinculados à cultura e influência de arte africana: “Nosso museu

abriga obras de pretos, brancos, de amarelos, dos homens de todas as raças e

nacionalidades. Importam aqueles valores estéticos que só a raça negra conferem à

obra” (grifo nosso) (NASCIMENTO, 1968)34.

A contribuição de Nascimento precede em cerca de vinte anos as primeiras

exposições de arte afro-brasileira de Araujo. Ele traz ao universo das artes plásticas

muitos dos problemas que Araujo discute ainda hoje: a fuga do exotismo e a necessidade

de reconhecimento da história e arte afro-brasileiras. Nesse sentido, numa reflexão sobre

o Museu de Arte Negra, Nascimento descreve que

Isto não significa que o negro esteja querendo provar ao branco que ele é diferente; muito menos que o negro está fazendo o jogo racista branco, que o deseja “diferente”. Falo de auto-estima e auto-respeito, pois apenas como um ser íntegro e total, serei digno de me imanar ombro a ombro com outros homens íntegros na identidade de seu espírito e de sua composição histórica (grifo nosso) (NASCIMENTO, 2002).

Esses estudos convergem na compreensão de que os dispositivos relativos à

prática expográfica de objetos afro-brasileiros necessitam rever problemas de

contextualização e representação dessa arte. As sociedades modernas, contemplando seus

diversos segmentos, exigem uma representação complexa de si mesmas. O museu, sendo

um espaço onde esse debate se apresenta visualmente, necessita orientar seus esforços na

superação dos grilhões metodológicos e históricos que, ainda, o aprisionam.

Novas práticas museológicas e a exposição de Emanoel Araujo Como vimos, o museu é uma instituição ocidental conservadora em sua

concepção original. Hoje, devido a pressões de grupos antes marginalizados, novos

34 Por outro lado, a proposta de Nascimento não escapa ao uso de conceitos controversos como o “primitivismo” e a “negritude” de Léopold Senghor. Esses são conceitos sinuosos próprios do método de dominação empregado pelo colonialismo. A respeito da negritude, Kabengele Munanga descreve que, para alguns críticos, esse conceito “assumiu a inferioridade do negro forjada pelo branco” (1988, p. 7). No entanto, o movimento da negritude pode ter sido pertinente por delimitar uma primeira etapa de confronto para os intelectuais que se posicionavam contra as afirmações européias de uma África bárbara e atrasada.

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horizontes procuram evitar as antigas visões de didatismo linear e identidade

monocultural. Desse modo, o museu procura desenvolver novas formas de compreender

e propor o entendimento de obras e fatos sociais contemporâneos e passados35.

Dentro desse contexto é que os debates em torno da noção de identidade e

representação tornam-se fenômenos pertinentes para a instituição museológica. Por sua

vez, a concepção curatorial de Araujo objetiva concretizar essa necessidade na forma da

exposição de arte afro-brasileira. Como afirma o curador, esse foi o momento de

formalizar “uma história que nunca se materializou de fato como visualidade

museológica” (apud MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 11).

Anteriormente, descrevemos o conceito de “democracia cultural” de Marc Maure,

usado por Luis Alonso Fernández (1999), e a sua importância para a tentativa de

elaboração desse novo método expositivo. Esse aspecto da nova museologia aparece no

trabalho de exposição e de museologia de Araujo. Permitir uma perspectiva sobre a arte e

cultura afro-brasileira a partir do negro é evidentemente mostrar uma narrativa pouco

comum em exposições, procurando uma forma complexa de olhar um mesmo objeto.

Através desse ponto de vista, esses atores afastam-se de um modelo ocidental restrito,

buscando criar um outro modo de olhar a história. Como diz Maria Lucia Montes, é “o

negro olhando a arte negra” (MONTES, 2008).

De modo semelhante, em outro caso, a exposição Brasileiro, Brasileiros (Museu

Afro Brasil, 2004) focou compreender a presença do indígena na formação da cultura

brasileira não como objeto de estudo, mas tentando compreender a sua própria narrativa.

Nas palavras de MONTES:

Quando nós fizemos a primeira exposição temporária no Museu Afro Brasil – Brasileiro, Brasileiros (2004) – fizemos uma longa discussão sobre como construir a narrativa da exposição, sobre o conceito curatorial. O Museu Afro Brasil está contando a história do ponto de vista do negro. E portanto ele pode perfeitamente incorporar o negro da terra. Ele tem legitimidade para falar do índio a partir do lugar do negro. Ora, mas no mundo politicamente correto que nós vivemos já tem branco falando de índio, agora negro vai falar de índio? Deixamos claro que queremos falar do lugar do próprio índio. Então, pensamos em trazer um antropólogo que, em vez de ele filmar, dá uma câmera para o índio filmar o que quiser, inclusive ele mesmo. Há um lugar autônomo em que se pode falar de uma figura indígena do lugar dela (MONTES, 2008).

35 Como cita Fernández, “la primera y tal vez más importante constatación de que la museología ha encontrado una nueva perspectiva de influencia y acción sobre el museo en la sociedad actual es la de su doble condición de ciencia interdisciplinal y de permeable receptora de los câmbios sociales de nuestro tiempo” (FERNÁNDEZ, 1999, p. 64).

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Sobre a montagem, a exposição O Benin está vivo ainda lá (Museu Afro Brasil,

2007) apresenta logo em sua entrada a tentativa de construção de caminhos mais

propositores ao visitante, procurando criar um “sistema abierto e interativo”. No térreo,

um painel em diagonal secciona e abre a mostra sobre os artistas do país africano. Nesse

movimento, somos convidados a adentrar o espaço que se desenrola pelas laterais. No

piso inferior, a continuidade da mostra com artistas contemporâneos traz esse mesmo

princípio. Após descer a rampa do pavilhão, vemos o recinto central e uma

multiplicidade de caminhos a percorrer por painéis oblíquos à esquerda (Imagem 12.1).

Nesse mesmo sentido temos a exposição chamada A divina Inspiração (Museu

Afro Brasil, 2008) localizada no térreo do Museu. Esse evento, realizado num espaço

retangular, mostra em seu meio uma diversidade de caminhos e leituras próprias do

método sinuoso de Araujo. Assim, logo após a entrada da exposição, da esquerda para

direita, temos: o primeiro caminho voltado para arte religiosa afro-brasileira; o segundo

caminho traz relações entre obras de arte religiosas cristãs mais eruditas; uma terceira

área com trabalhos de arte contemporânea; e o quarto trajeto destinado a uma exposição

de ícones religiosos e populares (Imagem 7.4). Não há uma única possibilidade. O

visitante precisa escolher o seu tema de interesse e caminho.

A presença dos traços singulares da exposição de Araujo está nas cores e formas

oblíquas, assim como na sinuosidade do caminho criado ao percorrer a exposição. A

arquitetura expositiva do curador não é linear, mas entrecortada por painéis que

obliteram a visão, fazendo com que o conhecimento da exposição seja sempre um

caminhar por esquinas e corredores. Além disso, o visitante deve estar atento para

verificar as informações presentes na vertical e diagonal do espaço (Imagem 4.8 e

Imagem 7.2).

Se no museu tradicional há uma separação nítida entre as ciências, para a nova

museologia esses atributos são partes de um mesmo método e contribuem para a

compreensão de um mesmo fenômeno. Nesse sentido, se antes era preciso pensar

somente em arte de alto valor, separando-a de outras menos apreciáveis como também de

objetos não artísticos, na exposição de Araujo a arte está mergulhada em questões

históricas, culturais e em toda sorte de objetos que se mostram para a complexidade da

discussão. Como diz o próprio curador, a sua exposição é “um fato maior do que uma

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obra na parede. É um fato mesmo sensorial. De unir coisas, música, dança, texto, fala,

cor, luz. E é isso o que me caracteriza quando eu [Emanoel Araújo] faço uma exposição”

(grifo nosso) (ARAUJO, 2009).

A obra de arte não faz parte de uma esfera única e superior, mas se contamina

com objetos de todo o mundo. A complexidade dos problemas relativos à cultura

material dos negros no Brasil para além das artes plásticas fez Araujo enunciar esse

problema desde a exposição A Mão Afro-brasileira. Cabe citar o próprio curador:

Este projeto (...) tornou-se inesperadamente abrangente diante do imenso material existente localizado por nós, na exaustiva pesquisa para este livro, e assim fomos obrigados a sair do âmbito das artes plásticas e acrescentar a música erudita e popular, a literatura, as danças, o teatro, as artes de origem africana e uma nominata que resgata definitivamente a visibilidade do homem afro-brasileiro (apud A MÃO AFRO-BRASILEIRA, 1988, p. 10).

Como estudamos anteriormente, o espaço do museu traz restrições e convenções

rígidas, formadas em largo período histórico (O’DOHERTY, 2007). A presença do Boi

de Tião Carvalho na exposição Herdeiros da Noite (1995) e o convite que esse faz ao

público para adentrar a Pinacoteca é a interrupção, mesmo que simbólica e momentânea,

do universo austero e erudito desse espaço (Imagem 2.1). Como diz Maria Lucia Montes:

O Tião Carvalho tocou o boi na frente da Pinacoteca na Tiradentes num sábado de manhã. Juntou aquela gente toda e o Tião falou: “pode subir, pode entrar!”. Ele solicitou para o público entrar naquele espaço totalmente sacralizado, branco e de elite. Com isso estávamos quebrando a marca de elite e dizendo: “qualquer um pode entrar”. Não apenas qualquer um pode entrar mas, lá dentro, o público vai ver uma coisa que nunca viu, que faz parte desse mundo e do de qualquer um (MONTES, 2008).

Para Fernández, o diálogo entre sujeitos, a criação de um sistema aberto e

interativo e o desenvolvimento de uma consciência crítica parecem ser partes de um

mesmo todo: o fomento de um debate amplo sobre identidade, representação e os modos

de olhar a história e nós mesmos. Como podemos notar, relacionado a essas

preocupações, discutir a experiência dos povos historicamente marginalizados pela

cultura hegemônica é parte relevante para essa orientação museológica e para Araujo.

Muitos museus ainda reverberam a mesma ideologia da sua classe dominante. No

entanto, talvez atualmente possamos ter os primeiros indícios de um outro conceito de

museu, mais atento às vicissitudes e rugosidades da sociedade contemporânea.

Experiências demonstradas pelas exposições de Araujo, bem como sua atividade na

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direção de museus públicos, tentam apontar para essas possibilidades. Isso demonstra o

poder do museu e das exposições em criar debate e suscitar outras perspectivas.

Em suma, procuramos mostrar as diversas orientações de Araujo em relação ao

ato expositivo e museológico tradicional. O local onde se efetiva o trabalho desse

curador não é neutro, mas repleto de tensões, faz parte do modo como o ocidente via os

povos além de seu território no passado e de como isso desemboca em conflitos no

presente. O museu não mostra a realidade; ele cria a realidade a partir de dispositivos

fornecidos por uma cultura dominante, a qual está em constante atrito com outras. Nesse

sentido, as escolhas desse curador devem ser analisadas como métodos de contraposição

a esse sistema tradicional de compreender e narrar obras de arte no museu. Para esse fim,

os conceitos da nova museologia sobre a relevância do debate e diálogo (“la democracia

cultural”), privilegiando um método complexo de compreensão, podem colaborar. Isso

não está presente somente no discurso textual da exposição, mas na disposição dos

elementos formais, de uma estrutura singular da mesma. A forma sinuosa, oblíqua, da

curadoria de Araujo, tangenciando diversos fatos, parece voltar-se para essa

multiplicidade de sentidos e olhares.

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3. As faces do curador

Gravador, escultor, projetista gráfico, curador, colecionador e diretor de museus.

Muitas são as atividades de Emanoel Araujo dentro do universo das artes plásticas.

Procuramos, a seguir, selecionar o que parece mais contribuir para compreender o seu

trabalho de curadoria.

Buscar analisar a exposição de Araujo é tentar contornar a sua atuação enquanto

artista, curador e colecionador. Essas três tarefas implicam-se num mesmo sistema de

construção e desenvolvimento de significados sobre arte afro-brasileira. É na

convergência dessas atividades que o curador explora suas possibilidades na exposição.

Sendo assim, precisamos compreender a trajetória que permeia o contexto das suas

mostras, realizando a análise das implicações entre as diversas atividades do curador. O

girar desses elementos é que cria seu movimento maior, sua completude.

O artista

O artista Emanoel Araujo formou-se na Escola de Belas Artes da Universidade da

Bahia, aprendendo gravura com Henrique Oswald. A trajetória de Araujo, iniciada na

gravura e depois desenvolvida na escultura, teve relevante reconhecimento no âmbito

artístico brasileiro e internacional. Ele começou a expor suas obras em 1959,

participando de exposições coletivas e individuais. Desde 1966 tem recebido prêmios no

Brasil e no exterior devido a suas atividades na gravura e escultura. Dentre os diversos

prêmios que recebeu, citamos o Prêmio Odorico Tavares (Bahia, 1970); a Medalha de

Ouro da III Bienal Gráfica de Florença (Itália,1972); e o prêmio de gravador do ano

(1974) e escultor do ano (1983), ambos concedidos pela Associação de Críticos de Arte

de São Paulo. Em 1977, foi convidado a participar do II Festival Mundial de Arte e

Culturas Negras e Africanas de Lagos (II FESTAC), Nigéria. Em fins da década de 1980

lecionou na City College University of New York. Além disso, Klintowitz (1981),

Preston (1987) e Almeida (2007) são alguns dos críticos que têm analisado o seu

trabalho.

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O catálogo O construtivismo afetivo de Emanoel Araujo (KLINTOWITZ, 1981),

realizado durante mostra do artista Araujo no Museu de Arte de São Paulo, mostra a

síntese entre uma escultura monumental – a sua influência formal, moderna e construtiva

– e o vigor gráfico. A obra de Araujo é uma arte em contato com as experiências

estéticas brasileiras e internacionais em fins do século XX. Ela apresenta a passagem de

um artista, antes utilizando-se da figuração, para o abstrato; do espaço bidimensional

para o tridimensional.

A gravura figurativa de Araujo já mostrava em seu início o apreço do artista pelo

uso de cores intensas e contrastantes. Quando esse começa a utilizar uma linguagem

abstrata geométrica, este elemento permanece. Apresentando retas, diagonais e planos

extensos, a construção espacial de Araujo parece tender nessa época para uma leitura

concretista. Em todo caso, essa influência já não é tão formal, mas entrecortada por

outros motivos, o que talvez seja a principal característica do artista. Essa geometria,

como o próprio autor afirma, tem suas conexões na procura de mediações com a

experiência da arte na África. Isso resulta nas suas obras escultóricas, trabalhos que

desenvolve desde os anos de 1970. Nesse novo suporte, a escala das obras de Araujo

ganharam ainda maior amplitude, estabelecendo um contato permanente com a

arquitetura.

Em meados da década de 1960, a escolha por novos suportes demonstrava a

posição do artista diante das últimas tendências e perspectivas da arte internacional. Essa

era uma atitude contra o modo de enxergar a arte apenas circunscrita à tradicional pintura

e escultura figurativa. Assumir uma perspectiva abstrata e preocupada com o espaço

tridimensional era não apenas pensar numa vertente internacional, mas assumir esse

estilo como a vertente que melhor se enquadrava na vida social brasileira, aspirando a

uma modernidade política e social, contemporânea e democrática. A construção de

Brasília é, na arquitetura, o que melhor demonstra esse período. Nas artes plásticas, o

concretismo36 era a vertente que privilegiava o projeto para a conquista do espaço

36 Para Ronaldo Brito, o concretismo/neoconcretismo “pretendia intervir diretamente no centro da produção industrial e se preocupava explicitamente em levar adiante o ‘sonho suíço’ de transformar o ambiente social contemporâneo. Estava aberto e ávido pelas transformações culturais que os mass media podiam promover. (...) ele integrava-se ao esforço da superação do subdesenvolvimento e atacava frontalmente os arcaísmos do poder humanista tradicional no ambiente cultural brasileiro” (BRITO, 1999, p. 59).

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público. Em grande escala e com uma linguagem abstrata, essa arte presumia-se

universal, própria para as grandes massas.

A experiência de Araujo parece buscar essa perspectiva democrática, universal e

monumental da arte brasileira desse período. Citando a sua preocupação com a prática

artística e seu contexto social, Araujo revela que:

(...) minha idéia de trabalho público vem desde a época do Centro Popular de Cultura (CPC). Fiz algumas coisas de teatro, cenografia, cartazes, marionetes. Fiz toda a campanha de alfabetização do Paulo Freire, que infelizmente foi apreendida depois do golpe, mal tendo sido aplicada. Desde o começo tive essa formação, até ideológica, de trabalhar com a questão publica (apud HIRSZMAN, 1999, p. 7).

Tal aproximação com o contexto político da época o levou a ser interrogado pelos

militares em 1964, somente escapando de lá após convite do USIS (serviço de relações

culturais dos Estados Unidos) para realizar uma exposição e devido a sua amizade com

Carlos Lacerda, então Governador do Estado da Guanabara.

Sobre suas esculturas, como diz o organizador do catálogo do artista,

Emanoel Araujo é um dos primeiros artistas a discutir, através de sua obra, a questão do espaço da arte no Brasil. O país modificou-se, os centros urbanos tornam-se grandes cidades, a construção civil e pública é uma das maiores indústrias brasileiras, as necessidades de modernização são prementes e, neste contexto, o espaço público de nossa arte modificou-se (KLINTOWITZ, 1981, p. 82).

A escala ampliada de suas gravuras já apontava para o objetivo de pensar o

espaço público, o que se desenvolveu posteriormente com sua escultura. Como diz

Clarival do Prado Valladares a respeito da escala do artista baiano: “(...) há em toda a

obra de Emanoel Araujo inegável propósito de comunicação mais ampla. Ele não seguiu

as veredas que levam o artista à obra singular, privatizada. Seus grandes painéis em

madeira pintada ou suas estruturas em concreto visam um público maior e uma

comunicação mais profunda, através do envolvimento do seu observador” (Clarival do

Prado Valladares apud KLINTOWITZ, 1981, p. 16). Continuando, Mario Barata diz que

“a xilogravura de Emanoel Araujo é uma construção, quase uma arquitetura, em que

formas, sintetizadas ou simplificadas, mas sempre amplas, se integram como elementos

de um todo. Tende, pois, à monumentalidade” (Mario Barata apud PRESTON &

ARAUJO, 1987, p. 17).

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Dentro da crítica sobre o trabalho de Araujo, não podemos esquecer as freqüentes

citações referentes aos temas étnico-raciais. Esta característica, assumida pelo artista, ao

olhar da crítica tende a ser “atavismo” ou um componente fundamental para

individualizar sua arte. Em alguns casos, ressalta-se que é através dela que o artista

Araujo pode almejar o “universal”. Numa entrevista sobre suas influências africanas,

Araujo diz que “(...) isso é uma outra história, é de quando fui para um festival da

Nigéria, em 1976. Aí, eu comecei a ver a questão da arte negra, comecei a adquirir certa

consciência. Eu estava saindo da gravura para a escultura. Já era uma forma de buscar,

no tecido e na geometria, a repetição de planos. Isso é uma coisa africana (Emanoel

Araujo apud ALMEIDA, 2007, p. 43).

Vale citar algumas dessas críticas. Esta se refere ao particular “primitivismo” de

sua produção: “(...) seria sua súbita recusa a uma arte figurativa o reencontro dos gestos

artezanais de civilização primitivas? Também recusa de acreditar no sistema, recusa de

aceitar numa civilização? Não é voltando aos gestos de civilizações passadas que o

artista espera recriar o mito?” (sic) (grifo nosso) (PEDREIRA, 1981, p. 71).

A crítica a seguir, por outro lado, mostra como os elementos étnico-raciais em

Araujo apontam para uma arte chamada de universal: “A África lhe interessa na medida

em que possa suprir motivações e atributos universais, do mesmo modo que ele também

pesquisa e acolhe a linguagem estética de qualquer outra área. Não é, pois, um

pesquisador de símbolos, mas, apenas, um artista criador capaz de juntar origens para

alcançar o universo” (grifo nosso) (Clarival do Prado Valladares apud KLINTOWITZ,

1981, p. 15). Essas reverberações do trabalho de Araujo, mais do que revelar um

pensamento sobre o artista, mostram também o olhar da crítica a respeito dos elementos

étnico-raciais nas artes plásticas brasileiras.

Ao que parece, o objetivo de Araujo é incorporar os signos de sua identidade

étnico-racial dentro de uma iconografia moderna, própria de seu tempo. Ele não pretende

ser reconhecido como um artista étnico, mas como um artista que usa esses signos para

pensar o todo. Araujo, comentando a sua produção, diz que “passei para uma linguagem

geométrica que, em princípio, teria uma simbiose com o ritmo, com as formas, é uma

questão mais totêmica. Minha geometria parte do princípio do nada e vai se armando no

espaço com independência de qualquer significado simbólico. Só agora que meu trabalho

está voltando para essa simbologia [afro-baiana]” (ALMEIDA, 2007, p. 51). O artista

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reconhece a sua influência particular e étnica, mas parece buscar e almejar o tema

clássico da modernidade, a conquista da forma plena. Como um pêndulo, Araujo afirma

ambas as posições.

Sobre o artista e o curador, o trabalho expositivo de Araujo nutre-se de suas

experiências artísticas. Como um trabalho de arte, a elaboração do seu espaço expositivo

é um projeto que se constrói na ação de montagem e reordenação da exposição. Esse

labirinto expográfico cria conexões complexas e nem sempre previsíveis. Como diz

Maria Lucia Montes, a atividade de Araujo “como artista lhe permite improvisar. Essa

coisa de montar e desmontar exposição no dia, quando olhamos no final vemos que ele

tinha razão, está bem melhor assim. Na hora do planejamento é uma coisa, na hora da

exposição é outra” (MONTES, 2008).

A escultura do artista, utilizando-se de diagonais e cor, é uma influência forte

para a composição de suas mostras. Essa associação entre a forma das exposições de

Araujo e o seu trabalho artístico foi realizada por diversos colaboradores seus. O uso de

diagonais, cores contrastantes, a circulação nada óbvia do público devido à montagem da

exposição (propondo caminhos e perspectivas inusitadas), é próprio também da

experiência espacial das esculturas de Araujo. Maria Lucia Montes comentou a

influência do artista no curador Araujo:

Além de ser escultor, o grande sonho do Emanoel era ser arquiteto ou historiador. Ele como artista sintetizou essas profissões em seu trabalho curatorial. Quando estávamos montando a exposição dos 500 anos tinham quatro pessoas pensando o espaço do Pavilhão, que estava em reforma. Ele elaborou a parte de marcenaria inteira das quatro exposições curadas por ele. Aquele espaço todo do Ibirapuera era uma grande escultura do Emanoel. A coisa dos contrapontos, dos ângulos, uma característica inteiramente africana. (...) Cada ângulo trazia diferentes tipos de incidência de luzes dentro da profundidade do espaço. A montagem da exposição foi montada em função dessa visualidade. Não é possível dizer que veio primeiro o espaço e depois o conceito ou primeiro o conceito e depois o espaço. Está tudo junto (grifo nosso) (MONTES, 2008).

Como podemos notar, a forma da exposição de Araujo procura suas bases em sua

experiência artística. Além disso, como parte de seu trabalho plástico remete a uma

visualidade de origem afro-brasileira, essa característica também reverbera em suas

exposições. Em outras palavras, para colaboradores como Montes (2008), a forma de

pensar o espaço da exposição de Araujo traz nuances de uma espacialidade que remete à

arte da África.

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De modo semelhante, Gilberto Habib cita a elaboração de três exposições de

Araujo – Auguste Rodin (1995), Os Herdeiros da Noite (1994, 1995) e Rafael Bordalo

Pinheiro: O português tal e qual (1996) –, referindo-se ao grande teor de diálogo entre

as esculturas e a forma das exposições do curador. Há uma convergência de práticas

nesses trabalhos que implicam uma evidente troca entre as funções de curadoria e de

criação artística:

Acho que a exposição do Rodin é o Emanoel erudito na sua forma escultórica, na sua forma de lidar com espaço. Em primeiro lugar houve a maximidade da escultura do Jacques Vilan com a arquitetura da Pinacoteca. O Emanoel incorporou isso naquele momento. Se você for perceber os espaços, tinha uma determinada escultura ali dentro, ela está rebatendo a espacialidade da sala e determinadas bases reproduziam os ângulos da sala. (...) Mas isso só pra te dizer que ele articulou essa circulação na relação que a escultura tinha com esses eixos ortogonais. E você pode ver mais Emanoel escultor até em exposições anteriores. Se você perceber, Os Herdeiros da Noite tem essa espacialidade mais ligada à escultura do Emanoel e as diagonais que ele criava. (...) Era tanta coisa que tinha do Bordallo que não cabia na sala, mesmo ocupando o Museu todo com as peças do Bordallo. Havia ainda o problema de espaço. O que ele fez? Ele colocava os painéis na diagonal e otimizava o espaço. Se você for ver na planta, esses eram os mesmos eixos diagonais que ele usa na escultura dele (HABIB, 2008).

Analisando algumas obras do curador (Imagem 14.2), é possível notar essas

proximidades entre o ato de criar exposições e suas esculturas. Nessas obras, o uso de

cores e diagonais são elementos marcantes. Como um arquiteto, ele constrói o espaço

usando as possibilidades da forma em todas suas dimensões. Assim como a escultura de

Araujo parece assumir diferentes configurações de acordo com o ângulo observado, a sua

expografia dificilmente se dá à visão completa por um único ponto. Esta exige do

visitante o caminhar por entre seus diversos cruzamentos e retas. A disposição do acervo

permanente do Museu Afro Brasil evidencia esse traço (Imagem 4.8).

O uso dos painéis nas exposições do curador baiano também revela

características de suas opções estéticas. Em muitos casos, o curador elabora painéis que

remetem a um formato sinuoso, exibindo profundidades diferenciadas. Ao invés de

painéis apresentando obras em um mesmo plano, temos áreas com diversas camadas e

desníveis. Em outro caso, ele separa as obras usando divisórias do próprio painel entre

elas, deixando as peças à frente ou mais ao fundo. O resultado desse método é que não

podemos ver uma obra, situada num plano mais afastado, a partir de qualquer

perspectiva. O visitante necessita estar razoavelmente a noventa graus em relação ao

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painel e à obra. Desse modo, esses painéis podem revelar obras novas a cada curva

(Imagem 4.12).

O colecionador

Em texto sobre o ato de colecionar, Marcos Moraes revela que:

Ao longo de toda sua história, amealhando objetos, retirando-os de sua esfera de atuação original, “resignificando” cada fragmento da realidade, produzida ou não por si, o homem organiza coleções como testemunhos dessa atuação e esses conjuntos de objetos significantes despertam cada vez mais o interesse e atenção, provocando a curiosidade e o desejo de compreender seu valor (grifo nosso) (Moraes apud CINTRÃO, 2000, p. 42).

Nesse sentido, o colecionador é aquele que organiza objetos devido a uma

preocupação particular. O seu princípio pode ser estético, histórico ou sentimental.

Independentemente do seu motivo, a principal característica desse ato se dá pela

organização e sistematização de diversos objetos a partir de um olhar que os aproxima,

evidenciando algum tipo de afinidade.

Essa organização traz também um sentido de projeto. Este acontece pela

necessidade de atingir um fim. No caso de Araujo, imaginamos, é possível observar que

o seu projeto colecionista acontece finalmente no ato de exposição. Dentro dessa lógica,

o seu projeto da exposição de arte afro-brasileira tem seus indícios em sua coleção dos

mesmos objetos. A diferença entre o expositor e o colecionador, assim, é que o expositor

(curador) faz um recorte da ação do colecionador. A curadoria acontece necessariamente

pelo seu diálogo com essa coleção.

A respeito da atividade de colecionador, Araujo revela que

O termo preservar, manter, é a base de tudo. O colecionador não é só um investidor. Ele tem compromisso com a preservação de um período. Assim como esse acervo [do Museu Afro Brasil] que agora está disponibilizado a todos. A bem da verdade, toda essa minha coleção não me pertence. Está aqui, cuidada por mim por um tempo, mas serve para o gozo de todo mundo, sobretudo os negros (ARAUJO, 2006b, p. 48).

Sobre sua trajetória, o interesse colecionista de Araujo inicialmente parece

formar-se em torno de seu gosto pessoal por objetos barrocos em igrejas de Santo Amaro

da Purificação (J. K., 1992). Já a necessidade desse curador em realizar exposições

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focadas em arte e história afro-brasileiras parece ter seus primeiros indícios com o

contato com uma África conflituosa. O II FESTAC realizado em Lagos (Nigéria, 1977)

foi o momento em que Araujo conheceu e formou uma visão pessoal sobre a África. Para

o colecionador, essa foi uma viagem a um território repleto de novas complexidades e

experiências. O seu contato por esse continente desenvolveu-se em sua coleção de arte da

África e afro-brasileira. Relembrando a sua viagem, o curador diz: “Minha coleção com

objetos afro-brasileiros tomou corpo em 1976, quando fui para a Nigéria (África) para o

(II) Festival de Arte e Cultura Negra. Retornei em 1987 com a idéia de um projeto ‘A

Mão Afro-brasileira’, que se transformou numa exposição em 1988” (ARAUJO, 2006b,

p. 44).

Esse contato foi, para Araujo, a oportunidade de construir uma outra perspectiva

sobre a história da diáspora do negro. O seu trabalho de colecionador é a base para essa

história, que se realiza na exposição.

A narrativa de Araujo foi construída em relações nem sempre simples e evidentes

sobre a formação da cultura do negro brasileiro. O colecionador desenvolveu essa

história através de uma visualidade própria. A arte se tornou local singular para

demonstrar esse discurso, pois apresenta concretamente o diálogo entre contextos os

mais variados possíveis, mas nem por isso distantes de negociação.

As peças de Araujo, por outro lado, não se limitam apenas à arte afro-brasileira.

Cabe observar algumas fases de seu interesse: “Em 1981, foi a vez de peças art nouveau

e art déco. As esculturas brasileiras tiveram sua fase, uma deliciosa descoberta. Hoje

mantenho uma coleção batizada de ‘Perversos e Inocentes’, que são representações do

negro em cinzeiros, cartazes do início do século XX e outras formas de banalização”

(ARAUJO, 2006b, p. 47). Vale ressaltar que essa coleção “Perversos e Inocentes”

resultou na exposição Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007).

A coleção desse curador também passa pelo seu gosto estético e conhecimento

detalhado de antiquários e do ambiente mercadológico por trás das obras de arte. O

colecionador trafega neste ambiente constituindo grande parte de suas mostras através

desse contato. Comentando o modo de aquisição de obras de Araujo para a exposição de

Rafael Bordalo Pinheiro, Gilberto Habib relata que “Emanoel teria uma, duas, dez

exposições pra fazer do Bordalo devido a quantidade de coisas que ele sabia a respeito e

simplesmente pelos objetos. Simplesmente por conversar com as pessoas, por circular

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pelos antiquários, por ir reunindo tudo isso, por escrever essa história pelos objetos”

(grifo nosso) (HABIB, 2008).

Hugo Loetscher, comentando a forma de organização da coleção de Araujo em

seu recinto particular (o que parece ter muitas relações com suas exposições e atividade

artística), descreve que

o que Emanoel juntou estes anos todos não pode ser chamado de uma coleção. Estamos frente à frente a uma vida, ao seu cotidiano. A criação de um espaço vital: temos uma virgem com um manto protector diante de uma figura litorânea, de marfim; ao lado de uma cadeira com design sofisticado, um tamborete africano. Para um gosto estético puritano tanto ecletismo é um horror. Entretanto um certo refinamento atraiçoa a desordem. O que encontramos aqui reunido é a expressão de uma mentalidade. Duas vezes o artista se expressa. Uma vez através de sua obra, e outra através das obras dos outros. Com objetos, objetiva seu mundo. O interior é visivelmente exterior. Assim, afirma o privado e se confirma. O particular se transforma em história, a história de sua raça e de seu povo (1997, p. 69).

A coleção de Araujo, como podemos perceber, é um conjunto de obras que acaba

adquirindo diferentes nuances e possibilidades. A sua coleção de objetos de arte afro-

brasileira pode passar por numerosas maneiras de abordagem pelos olhos do curador. O

propósito e sentido de uma exposição num certo momento pode ser abordado de forma

diferenciada anos mais tarde. Esse sentido pode mesmo alterar-se em grande parte ou

talvez apenas ser acrescentado por outras perspectivas. Assim, a exposição de Araujo A

Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna, 1988), com foco na autoria do artista

negro, é razoavelmente diferente da exposição Negro de Corpo e Alma (Mostra do

Redescobrimento, 2000), que procura discutir todo o sentido da imagem feita sobre o

negro no Brasil. Essas são possibilidades diferenciadas que, todavia, podem surgir do

mesmo conjunto de peças exibidas, embora dispostas de modo singular em cada

exposição.

O contexto de criação das exposições de Araujo se dá num universo onde há o

cruzamento entre as suas diversas facetas – o curador, o colecionador e o artista. O

Araujo artista reverbera a sua experiência da forma em sua construção expositiva. O

Araujo colecionador projeta essa ação para o que mais tarde torna-se a exposição. O

Araujo curador formou-se através de sua coleção, mas também por uma compreensão do

espaço e dos elementos plásticos devido a sua atividade enquanto artista.

Esses três elementos são o contorno para compreensão da forma das exposições

do curador. São um conjunto de ações que criam um movimento circular e dinâmico do

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trabalho sempre inquieto e incansável desse em dispor obras no espaço. É preciso

salientar que tudo isso está imbuído de uma finalidade pública. O ato de expor é uma

ação de confronto e diálogo que acaba na interação e no olhar do outro.

O curador

A respeito da atividade curatorial, Tadeu Chiarelli descreve que “em tese, o

curador de qualquer exposição é sempre o primeiro responsável pelo conceito da mostra

a ser exibida, pelas escolhas das obras, da cor das paredes, iluminação, etc.”. O crítico

continua analisando que cabe “(...) ao curador criar condições para que o público possa

perceber novas possibilidades de apreciação das obras de arte, quando recontextualizadas

em universos precisos” (apud CINTRÃO, 2000, pp. 12, 15). Essa “recontextualização”

das obras é certamente o sentido da crítica de arte de um curador.

O curador é aquele que coordena, conceitua e organiza a exposição, realizando

uma narrativa através dos objetos expostos. Nesse sentido, vale atentarmos para esse

contínuo trabalho realizado por Araujo. Procuramos a seguir mostrar brevemente o seu

histórico como curador, suas influências e suas características.

A trajetória de Araujo enquanto curador tem seu princípio como diretor no Museu

de Arte da Bahia durante os anos de 1981 a 1983 (substituindo José Pedreira). As

exposições realizadas por Araujo no Museu de Arte da Bahia foram Inauguração do

Museu de Arte da Bahia, no Palacete do Corredor da Vitória; A Coleção de Odorico

Tavares de 05/11/1982; 400 anos do Mosteiro de São Bento, de 16/12/82 a 15/01/83;

Obra Seleta de Clarival Valladares de 18/01/83 a 18/02/83; Via Crucis – Raimundo

Oliveira, de 28/01 a 10/02/83; Escola Baiana de Pintura, de 08/02/83 a 08/03/83;

Bahia–África–Bahia, de 27/02 a 14/03/83; e a exposição 80 anos de Os Sertões de

Euclides da Cunha37. Após essa época, o curador realizou exposições independentes

como A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1988).

Araujo foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo de 1992 até 2002, local

inicialmente encontrado em estado precário pelo então diretor. Vale revelar que a

admissão de Emanoel Araujo na Pinacoteca foi turbulenta. Um conjunto de funcionários

37 Infelizmente, através de contatos com a atual gestão do Museu, não foram encontradas mais informações (como textos ou fotos) sobre essas exposições.

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do Museu e de personalidades realizaram um abaixo-assinado questionando a escolha do

artista baiano. Em contraposição a esse movimento, foi realizado outro abaixo-assinado,

que contou com o apoio de Entidades do Movimento Negro, para a manutenção deste no

cargo. A passagem de Araujo por esse espaço foi certamente um marco para as artes.

Através de exposições internacionais (Auguste Rodin, Maillol, Camile Claudel, etc.), a

Pinacoteca conquistou público e inseriu-se no circuito de arte como uma instituição de

relevância. Como cita Maria Hirszman, “o prédio estava repleto de goteiras, o segundo

andar havia sido destruído por décadas de uso pela Faculdade de Belas Artes. Hoje a

instituição é uma das mais modernas do País, equipada para receber as exposições mais

concorridas do circuito internacional” (HIRSZMAN, 1999, p. 7). Sobre a visitação, a

Pinacoteca passou de cerca de 2.000 visitantes mensais para mais de 30.000 visitantes

mensais durante a gestão de Araujo. Além das exposições internacionais, ele continuou

realizando mostras sobre arte e cultura afro-brasileiras.

O curador também foi peça importante durante a Mostra do Redescobrimento

(2000), momento em que organizou a exposição Negro de Corpo e Alma. Mais adiante,

entre inúmeras outras exposições, ele concretizou um projeto ambicioso e antigo, a

configuração e exposição de sua coleção sobre arte e cultura afro-brasileiras no Museu

Afro Brasil (2004).

O interesse deste pequeno texto é pontuar as características de Araujo como

curador. Não obstante, essa atividade também se confunde com suas ações como diretor

de museus. A atividade desse diretor parece indicar uma forma dinâmica e constante de

propor e realizar mostras, bem como de lidar com o universo museológico. Como indica

Maria Lucia Montes sobre o cotidiano administrativo na Pinacoteca:

A Pinacoteca era uma OSCIP sem ser OSCIP, podia angariar fundos de empresas pelas leis de incentivo para patrocinar uma exposição, mas muitas vezes precisava deles para a manutenção do museu. Então, depois, ele pegava o dinheiro do Estado, de manutenção do museu, e punha para pagar a exposição. Isso criava um problema, mas nós tínhamos um advogado específico para acertar legalmente essas coisas, o fluxo dos recursos, em termos de fundos públicos e privados. Isso tudo com integridade total, nunca sendo feito para se favorecer ninguém. Era resultado de uma impossibilidade de lidar com a burocracia. Se está chovendo dentro do museu, não é possível esperar uma licitação, então se usa o dinheiro que tem em caixa para o conserto (MONTES, 2008).

Em outro momento, descrevendo a compulsão pelo trabalho e pela realização,

Gilberto Habib relata que ele “sempre se pautava pelo que está feito, ou seja, o que

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importava era fazer, era o museu que está lá” (HABIB, 2008). Por outro lado, a ex-

diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Maria Alice Milliet, apresenta as suas

críticas ao modo de gerenciamento do Museu por Araujo: “Seria bom que ele tivesse o

mesmo empenho na busca de patrocínio para pesquisa” (apud SCAVONE &

MARGARIDO, 1998, p. 15).

Em outro âmbito, o trabalho curatorial de Araujo também surge de suas relações

com o entorno expositivo no Brasil. Nesse sentido, a influência (direta ou indireta38) do

ex-diretor do Museu de Arte de São Paulo, Pietro Maria Bardi (1900-1999), em sua

formação pode revelar fatos importantes. Araujo realizou a exposição Um certo ponto de

vista – Pietro Maria Bardi – 100 anos (Pinacoteca, 2000) sobre esse crítico e professor

de origem italiana.

A forma horizontal de apresentar os objetos de arte é um traço da exposição de

Bardi. Tratar a exposição como um local de amplas possibilidades, não se restringindo às

artes plásticas, mas compreendendo que esta dialoga com os diversos aspectos da

cultura, parece trazer maior complexidade aos objetos expostos no museu para o curador.

No catálogo da exposição realizada na Pinacoteca em 2000, constatamos esse

traço e a visão pessoal de Araujo sobre Bardi. Vejamos o que o curador baiano diz:

Esta exposição que agora a Pinacoteca dedica a Pietro Maria Bardi é pois um tributo a esse homem que dedicou meio século de sua vida ao Brasil. Colecionador de antiguidades, marchand, profundo conhecedor da arte universal, estudioso da arte e da cultura brasileira, foi também responsável por uma nova linguagem museológica e introduziu uma nova forma de dirigir um museu de arte. Assim, esta exposição se organiza a partir de um certo ponto de vista, a perspectiva do seu olhar, pelo que ele teve de multifacetado e multicultural, e pelo seu agudo alcance, capaz de apreender as pequenas obras com o mesmo calor com que sabia abordar a grande arte erudita (sic) (grifo nosso) (UM CERTO PONTO DE VISTA, 2000, p. 27).

Algumas das características que Araujo cita sobre Bardi – a intersecção entre

curador, colecionador, marchand, estudioso e sua preocupação por uma visão

multicultural da sociedade – são métodos de análise e ação muito presentes nos trabalhos

do baiano. Desse modo, a exposição de Bardi na Pinacoteca, além de uma homenagem

sobre essa personalidade do mundo das artes no Brasil, acaba sendo uma visita de Araujo

pela sua história e formação enquanto curador. 38 Como o próprio curador cita: “(...) o meu aprendizado foi autodidata. Convivi com dona Lina e com o Pietro, mas não foi assim o suficiente para me fazer um discípulo” (ARAUJO, 2009). E embora o curador baiano não assuma essa influência diretamente, a vivência dele com Pietro (e com Lina Bo Bardi) certamente afetou a sua produção.

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Como Gilberto Habib revela: “A exposição que ele fez dos 100 anos do Bardi era

o Emanoel lendo o modo de fazer museologia do Bardi, e era o modo dele [Emanoel

Araujo] fazer” (2008). Como o nome da exposição sugere, Um certo ponto de vista é o

olhar de Araujo a respeito do ex-diretor do MASP.

O foco da exposição de Araujo não se restringe aos temas da arte afro-brasileira.

Como já apontamos anteriormente, o curador direciona a sua visão sobre os mais

diferentes gêneros e temas. Todavia, cabe relatar a sua perspectiva preocupada em

perceber as obras e autores de marcada influência ou ascendência da África. No catálogo

da exposição Museu da Solidariedade Salvador Allende (SESI-SP, 2007) é possível

observar essa perspectiva. Comentando a obra de um artista peruano, Araujo diz ter visto

“os retratos de famílias coloniais, bem à maneira do começo do século XIX, do pintor

peruano que também trabalhou no Chile, o mulato Gil de Castro”. Mais adiante, o

curador informa que tentou “em vão descobrir alguma publicação sobre a sua vida”

(MUSEU DA SOLIDARIEDADE, 2007, p. 35). Se a ação curatorial de Araujo possui

grande alcance em diferentes áreas da arte, é certo que o seu olhar também está atento

aos artistas e obras que remetem a contextos étnico-raciais.

A instauração do Museu Afro Brasil (inaugurado em 2004) parece ser o auge

deste intento. O Museu traz uma proposta singular de curadoria, que abarca grande parte

da cultura material dos afro-brasileiros, da escravidão até trabalhos de arte

contemporânea. São cerca de 4000 obras em pintura, escultura, fotografia, instalação,

gravura, vídeo, estandartes e vestimentas, mostrando desde objetos indígenas a festas

populares do sul do país, com ênfase em objetos relacionados à cultura e arte afro-

brasileiras. Parte significativa deste acervo, cedida por regime de comodato, é devida à

coleção do mesmo curador.

O Museu Afro Brasil concretizou-se através do Decreto Municipal nº 44.816, de

1º de junho de 2004, da então prefeita Marta Suplicy em diálogo com grupos negros

organizados (onde despontou a participação de Emanoel Araujo), interessados na criação

de um museu voltado à cultura e arte afro-brasileira em São Paulo39. A implantação do

39 A respeito do Museu Afro Brasil, cabe realizar uma digressão sobre uma obra localizada em seu entorno: o monumento de Pedro Alvarez Cabral, de Luis Morrone Agostinho Vidal da Rocha (s/d). Um monumento é uma obra que expressa um modo de ver a história. Ele apresenta um conjunto de significados que, de acordo com seu observador, pode reforçar configurações a respeito de uma sociedade. Em sua presença física, pontuando um local no espaço, ele determina uma forma de enxergar esse território. A escultura de Pedro Alvarez Cabral é a confirmação de um pensamento sobre a história de São Paulo. Pelo seu poder de síntese e de sugestão, essa escultura é um dispositivo que apresenta a história do Brasil em sentido

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Museu foi realizada com patrocínio da Petrobrás, com incentivos da Lei Rouanet e do

Ministério da Cultura. A gestão inicial do projeto esteve sob responsabilidade do

Instituto Florestan Fernandes – IFF, por meio de termo de colaboração com a Secretaria

Municipal de Cultura.

O projeto de implantação mantém no Museu uma equipe interdisciplinar de

consultores, especialistas em museologia, história, antropologia, arte, educação, e

equipes operacionais e administrativas. A coordenação do trabalho é feita pelo curador

baiano. O Museu Afro Brasil é estruturado em núcleos de trabalho com objetivos

distintos: há o Núcleo de Tradição e História Oral, espaço que registra o depoimento de

personalidades relevantes para a história dos afro-brasileiros e para a história nacional; o

Núcleo de Educação, que coordena monitorias, cursos e a realização de material

pedagógico de apoio; o Núcleo de Museologia, que preserva o acervo e as coleções

apresentadas no Museu; o Núcleo de Pesquisa, que atua em diversas áreas do Museu,

seleciona textos e organiza visualmente o espaço. Além disso, há a Biblioteca Carolina

Maria de Jesus, que contém material bibliográfico, documental e audiovisual com ênfase

na arte, cultura e história afro-brasileira e africana; e o Teatro Ruth de Souza, onde se

realizam cursos e atividades culturais.

O acervo permanente do Museu está estruturado em África: diversidade e

permanência; Trabalho e escravidão; As religiões afro-brasileiras; O sagrado e o

profano; História e memória e Artes plásticas: a mão afro-brasileira. O Museu Afro singular; nos fala sobre o poder civilizador europeu nos trópicos. Se essa ação foi necessária para a instauração de um modelo ocidental de sociedade nos trópicos, é certo que a escravidão e genocídio de milhares de índios e negros também faz parte dessa história. A escultura presente no Parque no Ibirapuera parece não transparecer essa complexidade histórica, mas somente apontar para o fator “positivo” dessa investida. O local onde está situada a escultura, uma área nobre da cidade de São Paulo, composta majoritariamente por descendentes de europeus, reafirma a visão que descrevemos anteriormente. A escultura é um marco que transparece um momento e também seu entorno. Ela é o olhar da classe dirigente. Condensa em si essa perspectiva. Essa obra esteve por longo tempo marcando uma única perspectiva histórica. Hoje o seu entorno traz novos problemas. Um marco que demonstra esse fenômeno é a criação do Museu Afro Brasil, a cerca de 200 metros desse monumento. O que temos agora é um ruído, um conflito, que demonstra as sinuosidades de novos caminhos e orientações sobre aquela mesma história. Jacques d’Adesky expõe, em texto sobre espaço público e representação dos afro-brasileiros, o seguinte pensamento: “Sendo uma forma de nossa relação com as coisas, o espaço é um plano de articulação de fenômenos, na medida em que delineia configurações espaciais nas quais a população representa sua existência e realiza os loteamentos territoriais segundo os quais se dividem as sociedades. Esse traço relacional coloca-se como espacialidade culturalmente construída pela qual o sujeito apreende os objetos através de seu próprio posicionamento. Nesse sentido, a espacialidade é uma estrutura a priori em relação a um ator social. Ela possui certa permanência que ultrapassa as ações e a vontade do indivíduo. Mas é construída e transformada por grupos sociais em suas relações com os outros” (2001, p. 120). Mais adiante, o mesmo autor diz que “a invisibilidade do negro em representações como estátuas, bustos e chafarizes ou fontes ornamentais existentes nas ruas ou em praças públicas manifesta outra forma de alienação ou desterritorialidade, não sendo fruto do acaso, mas de uma relação de poder” (2001, p. 126).

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Brasil também tem realizado diversas exposições temporárias em seu interior. Nem todas

essas exposições são sobre arte, história ou cultura afro-brasileira. Embora tenha um

objetivo e universo de atuação preciso, a sua maleabilidade conceitual permite realizar

exposições sobre diferentes temas. Entretanto, essas exposições temporárias não deixam

de estabelecer diálogos com o acervo da instituição, local em que o objetivo do Museu

está mais evidente.

A passagem positiva de Araujo pela Pinacoteca do Estado de São Paulo não

garantiu uma continuidade sem problemas no Museu Afro Brasil. Em seus quatro anos

iniciais (de 2004 até 2008) esta instituição presenciou diversos problemas de ordem

financeira para continuar suas atividades. Como resultado, por algumas vezes o Museu

foi obrigado a fechar suas portas devido à falta de recursos.

O Museu Afro Brasil funcionou inicialmente com recursos da Petrobrás. A

instituição posteriormente se tornou uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de

Interesse Público) e atualmente deve tornar-se uma OS (Organização Social), formato no

qual teria mais recursos para garantir suas necessidades fundamentais40.

Ainda sobre a sua característica de diretor e administrador cultural, em 2005,

Araujo foi convidado para ocupar o cargo de Secretário na Secretaria de Cultura da

Cidade de São Paulo a convite do Prefeito José Serra. Ele permaneceu neste cargo por

cerca de três meses, quando deixou a Secretaria e expôs, em carta pública, as suas

divergências em relação à forma com que a cultura era gerida pelo Município.

Na carta intitulada Devolvo-lhe este cargo com uma enorme frustração, Araujo

revela um modo de ver a cultura e sua tensão frente a uma elite “culta”: “cultura é o que

foi produzido por uma verdadeira elite do saber e do conhecimento, erudito ou popular,

através da qual esse repertório existe até hoje, depois de séculos de sua criação; cultura,

portanto, são todas as ações criativas de artistas que deram sua vida e seu ser para

estarem mais próximos de Deus; artistas são esses seres abnegados, renegados e

40 Mais detalhes sobre a definição institucional do Museu Afro Brasil pode ser visto na carta de Emanoel Araujo publicada na revista RAIZ, n. 3 (ARAUJO, 2006c). A carta de Araujo foi respondida por Carlos Augusto Calil (o sucessor de Araujo na Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo) na revista RAIZ, n. 5 (CALIL, 2006). Dentre as diversas questões mencionadas nesse debate, um fato importante na mudança do Museu Afro Brasil como OSCIP ou OS, tem sido a exigência da doação da coleção particular de Araujo para o Estado. Araujo relata que a não doação das peças acontece porque existem outras instituições em São Paulo e no Brasil com o mesmo formato, ou seja, coleções particulares expostas em museus públicos (Museu de Arte Moderna, Museu Lasar Segall etc.). Todavia, como diz Calil, somente com a doação das obras o Museu Afro Brasil pode ser regularizado e se tornar uma OS. Tal debate somente foi resolvido em maio de 2009 com a autorização de Araujo da doação das obras ao Estado.

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desapercebidos por essa sociedade que disputa salões nobres para repousar seu cansaço

por tamanho esforço ou castigo, na tentativa de parecer ‘culto’” (Emanoel Araujo apud

MENA, 2005). Nesse momento, o mesmo não deixa de exigir cuidados e atenção da

Prefeitura em relação ao Museu Afro Brasil

(...) não toque com sua impropriedade no Museu Afro-Brasil, porque este é uma conquista de anos, resultante da grande dívida que o Brasil tem para com os seus negros e afro-descendentes que o construíram. Saiba que estaremos dispostos a defendê-lo com a mesma energia com que edificamos nossa nação em cinco séculos. Porque o Pavilhão Manoel da Nóbrega há muito tem sido ambicionado pelos donos da cultura oficial, que pensam que um museu dessa natureza não deveria estar em área tão nobre. No entanto, ele tem sido visitado nesses seis meses de existência por um enorme contingente de estrangeiros, brasileiros, brancos e, sobretudo, negros, não habituados a freqüentar tais espaços – para relembrar o quanto este país é devedor a esse nosso valoroso povo miscigenado (Emanoel Araujo apud MENA, 2005).

Por fim, como podemos perceber, por trás das diversas atividades curadoriais de

Araujo, há um projeto sobre a configuração da memória do negro na arte e na cultura que

veio sendo construído paulatinamente. Esse projeto tem seu início em sua coleção (e

talvez até mesmo em sua atividade artística) e é o que alicerça as suas exposições. O seu

intento de constituição dessa coleção, e conseqüentemente da exposição, provavelmente

já apresentava seus primeiros indícios desde a sua primeira viagem à África.

As atividades de Araujo como artista, curador e colecionador, assim, apresentam

evidentemente uma convergência dentro de suas exposições. Do mesmo modo, a visão

do curador em relação aos objetos na exposição tem suas conexões com a prática de

outros curadores. Além disso, a curadoria de Araujo apresenta-se como um projeto de

longo prazo na constituição da memória e da narrativa sobre a arte afro-brasileira.

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4. O contexto das exposições

O texto que se segue pretende compreender o contorno das exposições sobre arte

afro-brasileira de Emanoel Araujo. Para tanto, procuramos o estudo sobre alguns

conceitos recorrentes nas exposições do curador.

Iniciamos analisando o sentido do acúmulo nas exposições do curador baiano.

Esse método, presente em algumas das suas mostras, perpassa contextos históricos e

artísticos sobre a prática expositiva que devem ser aprofundados. Mais adiante, o

exotismo se refere ao sentido em que as peças de arte ou cultura afro-brasileiras são

apresentadas no museu. Sendo o exotismo um elemento que deturpa o sentido do objeto

de arte afro-brasileira no museu, devemos notar como o curador busca desviar-se desse

problema. Memória e reconhecimento são temas que dizem respeito à importância do

contexto social das exposições sobre arte afro-brasileira. Ao construir essa narrativa, o

curador acaba por apresentar e representar esse grupo étnico-racial para além do museu.

Do mesmo modo, esses conceitos influem no momento de realização dessas exposições.

A ambigüidade é outro tema que aparece nos colaboradores e em críticas sobre as

exposições. Ela diz respeito ao sentido dessas mostras, bem como à forma como o

curador compreende a cultura do negro no Brasil. Vale procurar compreender o seu

sentido. Ancestralidade, por fim, é um termo que aparece correntemente nessas

exposições sobre arte afro-brasileira. Esse conceito, entretanto, parece situar-se de forma

um pouco contraditória em alguns aspectos.

A curadoria de Araujo propõe o cruzamento dessas idéias em sua forma e

também em seu contexto. Tanto esses conceitos podem influir em sua construção

espacial como o uso de um dispositivo expositivo pode sugerir outros conceitos. É por

meio do estudo dessa forma que poderemos compreender a crítica de Araujo e a sua

tentativa de criar uma narrativa de arte afro-brasileira.

Poética do acúmulo

A maneira de apresentar obras dentro do museu altera-se de acordo com o

momento histórico. A organização dessas obras na exposição não é apenas um modo de

mostrar, mas de orientar como deve ser uma narrativa. Não sendo único, o método de

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exposição – a organização das obras dentro do museu – tem uma história diferenciada no

decorrer do tempo.

No século XIX, o acúmulo de obras num mesmo espaço era parte de um modo

específico de compreender a exposição. Nessa perspectiva, todo o espaço do museu era

espaço para exibir obras. Essa saturação tem proximidades com a idéia de “gabinete de

curiosidades”, em que o conjunto de objetos é percebido de forma diferenciada da nossa

experiência de museu atual. Desse modo,

(...) as coleções antigas acumulavam as peças sem a mínima ordem. Nas gravuras e pinturas do século XVI ao XVIII, podem ver-se quadros pendurados a cobrir totalmente as paredes, uns ao lado dos outros, misturados com toda a espécie de objetos. Este tipo de representação foi regra geral até meados do século XIX (...). Em 1799 adoptou-se a ordenação cronológica, ainda que se tenha continuado a utilizar a mesma mistura de pinturas, esculturas e objetos vários. Em 1810 uma nova ordenação apresentava as pinturas isoladamente, mas ainda em 1851 os grandes pintores do Renascimento italiano eram apresentados em filas duplas no Salon Carré do Louvre (grifo nosso) (ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 42).

Por outro lado, citando a obra Galeria de Exposição no Louvre (1833), de Samuel

F. B. Morse, onde podemos notar uma sala de exposição repleta de obras, o artista e

crítico Brian O’Doherty busca compreender esse modo saturado de usar o espaço pela

seguinte perspectiva:

As pinturas maiores vão para o todo (mais fáceis de ver a distância) e são às vezes distanciadas da parede para manter o plano do observador; os “melhores” quadros ficam na zona central; quadros pequenos caem bem embaixo. O trabalho perfeito de pendurar quadros resulta num mosaico engenhoso de molduras sem que se veja uma nesga de parede desperdiçada. Que norma de apreciação justificaria (para nossos olhos) uma barbaridade dessas? Uma e apenas uma: Cada quadro era encarado como uma entidade independente, totalmemte isolado de seu reles vizinho por uma moldura pesada ao seu redor e todo um sistema de perspectiva em seu interior. O recinto era descontínuo e dividido em categorias, do mesmo modo que as casas em que se penduravam esses quadros tinham salas diferentes para fins diferentes. A mentalidade do século XIX era taxonômica, e o olhar do século XIX reconhecia as hierarquias de gênero e o prestígio da moldura (grifo nosso) (O’DOHERTY, 2007, p. 6).

Contra esse método expositivo, a partir de fins do século XIX e início do XX

torna-se comum o museu de arte moderna apresentar obras numa leitura linear,

seqüencial. As obras são separadas por uma distância considerável uma das outras,

evidenciando um espaço arejado. Essa é uma forma que privilegia a horizontalidade. O

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uso de poucas cores nas paredes ressalta a neutralidade de todo o espaço de exposição41.

A obra, sobre esse espaço nulo, com sua cor e materialidade deve ser o único ponto de

interesse. A luz direcionada apenas ao objeto deixa na penumbra outros espaços do

museu. A obra se torna única e valiosa, isolada dos demais objetos.

Como diz Brian O’Dohert sobre o espaço da galeria moderna (o que pode ser

aplicado para o caso da exposição),

A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela “é arte”. A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores. (...) as coisas transformam-se em arte num recinto onde as idéias predominantes sobre arte concentram-se nelas (2007, p. 3).

Desse modo, uma das características do museu de arte moderno é ser um local de

restrições, asséptico. O que é permitido no mundo exterior não é permitido dentro desse

espaço. Esse é um local onde é preciso silenciar e prestar atenção. Um ambiente em que

a ausência de coisas mundanas lembra o espaço sagrado de uma igreja. Esse “cubo

branco”42, uma forma moderna de expor arte no museu, objetiva a extinção de qualquer

relação aparentemente estranha que possa tirar a atenção dos objetos.

Como podemos notar pela exposição de Araujo, o seu espaço não é constituído

por uma visão moderna do museu, onde se ressalta apenas alguns tipos de obras. Pelo

contrário, ele trabalha com uma poética onde o acúmulo de obras é uma forma de

compor a exposição. Não estamos remontando a uma expografia do século anterior, mas

notando que a forma de expor arte no museu moderno não é única.

O seu excesso de obras é uma forma de realizar a crítica de arte num espaço onde

a eleição de vários objetos – e a relação entre eles – é o mote central43. A sua exposição

41 Em relação ao uso de cores nas paredes, em início do século XX, considerava-se “que fundos demasiado escuros interferiam na contemplação do objeto em si mesmo, e pensou-se que o fundo perfeito seria o mais neutro, o que permite ver isoladamente o objeto. Assim muitos museus modernos têm paredes brancas ou da cor neutra dos materiais utilizados, para não criar contrastes cromáticos com as peças expostas” (ROJAS & CRESPÁN & TRALLERO, 1979, p. 41). 42 Nas palavras de Brian O’Doherty, “a criação do cubo branco impoluto, ubíquo, é um dos êxitos do modernismo – criação comercial, estética e tecnológica. (...) é geralmente visto como um emblema do afastamento do artista de uma sociedade à qual a galeria da acesso” (O’DOHERTY, 2007, pp. 90, 91). 43 Renata Felinto também relaciona esse olhar atento a “pequenas obras” com as características de acúmulo de Araujo e sua ação de colecionador: “Ele [Emanoel Araujo] fez uma exposição agora chamada Gabinete de Curiosidades (2008) onde há muito presente essa noção de acúmulo. É uma ação de colecionador. Ele pensa que todos os objetos são valiosos. Isso é muito interessante. Quando vamos a uma exposição

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não acontece apenas pela leitura linear e horizontal, mas também por uma narrativa

vertical e diagonal. Isso é diferente da concepção do museu moderno, que preza pela

escolha de poucos objetos dispostos horizontalmente44.

A exposição desse curador articula uma arquitetura expográfica em que os

objetos constroem o espaço com paredes e cores. Tudo isso usando diversos dispositivos

e, inclusive, o teto ou o chão da instituição. Todo o espaço do museu é recurso para

apresentação e relação de objetos entre si.

O uso do acúmulo em Araujo é também a confirmação de uma produção. No caso

de artistas como Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), ou mesmo no de menos

conhecidos, como Wilson Tiberio (1923-2005), temos no excesso a confirmação de uma

produção artística. Sendo assim, esse acúmulo é uma forma de materializar a história e

experiência desse indivíduo. Além disso, é uma oportunidade singular de comparar

histórias e obras que dificilmente são apresentados em conjunto.

Essa saturação assume diferentes formas de acordo com a exposição. A mostra

Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007), sob curadoria de Araujo, é

composta por obras de cultura popular, artesanato ou da indústria de massa. Essas

imagens revelam uma perspectiva jocosa sobre o negro. Elas não pertencem ao mundo

erudito das artes plásticas, mas referem-se ao mundo fugaz das peças produzidas em

série. São pequenos objetos expostos dentro de “armários”, colocados um ao lado do

outro, apresentados como num antiquário, formando dezenas de peças. Cada um deles

nos remete a uma forma de ver a cultura e a representação do negro na sociedade

ocidental. São objetos relevantes enquanto indício de um imaginário social sobre esse

grupo. A noção de acúmulo está muito presente nessa exposição (Imagem 11.2 e Imagem

11.3).

A maneira de expor objetos na exposição Imagens Perversas e Inocentes pela

saturação é diferente da maneira de expor objetos de arte na exposição Negros Pintores

(Museu Afro Brasil, 2008). Esses objetos são apresentados verticalmente nessa primeira,

enquanto que na segunda exposição as obras estão organizadas horizontalmente. Como

queremos saber o que há de mais valioso, mas na perspectiva do Emanoel, tudo é valioso. Isso por conta do valor histórico que está ligado ao objeto” (grifo nosso) (FELINTO, 2008). 44 Por outro lado, essa noção de acúmulo também tem proximidade com a forma de apresentar os objetos em feiras populares. Lina Bo Bardi nutria-se dessa experiência (Imagem 15.1), assim como Araújo parece dialogar com esse modo de apresentar os objetos.

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podemos notar, o sentido de acúmulo pode alterar-se de acordo com o artista ou o

contexto de obras apresentadas (Imagem 11.3).

Na exposição de arte contemporânea do Museu Afro Brasil, notamos que muitas

obras estão delimitadas num espaço pequeno de apresentação, criando forte proximidade

entre cada uma delas. As obras do Mestre Didi estão muito próximas das obras de

Octávio Araujo, pintor surrealista, e de diversos outros. Em outros termos, mesmo na

exposição de artistas contemporâneos, é possível constatar essa mesma noção de

saturação (Imagem 4.1).

Por fim, ao que parece, a forma de expor de Araujo implica-se nesses diferentes

modos de lidar com essa atividade. Sendo o método expositivo pautado em modelos

específicos, o curador baiano usa esses artifícios sempre que um problema parece

apontar para um modelo em particular. Todavia, cabe ressaltar que o mesmo mantém

certa distância dos princípios mais austeros do chamado “cubo branco”. Usando cores,

diagonais, luzes e sombras, a composição acumulativa do curador parece procurar

capturar os sentidos do visitante. Além das aparências, não podemos esquecer que esse é

o primeiro contato do público com a exposição e suas obras. Sendo assim, é possível que

a sedução visual de Araujo tenha no visitante o seu motivo.

Exotismo

O exotismo em relação às culturas não-ocidentais é um elemento contido na

história dos museus há muito tempo. Ao que parece, esse conceito já estava presente na

forma de pensar exposições do gabinete de curiosidades, revelando um modo específico

de ver a cultura de outros povos. Ele estabelece uma diferença entre o que é de sua

cultura e o outro, o próprio e o estranho, o que pertence e o que não pertence a tal

cultura. Assim:

O gabinete de curiosidades, considerado o protótipo e antecessor humanista e renascentista dos modernos museus, surgiu juntamente com a era de descobertas e explorações, datando provavelmente da época em que Cortez enviou, depois da conquista do México, amostras de peças arqueológicas, vistas como curiosidades do novo mundo, além de outras peculiaridades trazidas por navegadores do Oriente, que na Europa chamavam a atenção por sua beleza e unicidade. Originalmente chamado de Kunstkammer ou Wunderkammer, literalmente câmera das artes ou salão das maravilhas, tinham por propósito exibir uma coleção de coisas notáveis que refletissem a empresa do

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moderno conhecimento humano e despertassem a curiosidade alheia (grifo nosso) (GABINETE DE CURIOSIDADES, 2006).

Desse modo, o museu foi uma instituição relevante na mediação da imagem dos

povos da América, África e Oriente para a Europa. Ele se tornou um espaço específico

onde era possível ver o que é “próprio” daquelas culturas. Criou relações entre povos,

exacerbando diferenças e, além disso, construindo diferenças. Essa noção de exotismo e

museu muda no decorrer da história, passando a ter critérios mais científicos a partir do

século XIX. Ao invés do gabinete de curiosidades focando o diferente, temos, pelo filtro

da ciência, a perspectiva de que o outro deve ser tema de estudo para compreensão ampla

do mundo.

Esse modo científico de olhar a cultura dos povos de além-mar também foi uma

forma de afirmar o poder ocidental através do conhecimento. O museu e o gabinete de

curiosidades foram instituições que contribuíram para esse fim. Como diz Wolfgang

Döpcke,

(...) a sistematização, decifração e classificação dos “objetos etnográficos” dentro dos sistemas de pensamento ocidentais e da ordenação mental do mundo e de seus fenômenos, significam o adestramento do “selvagem”. Trata-se de uma dominação mental e intelectual, via idéias, um processo que se apropria de significados e que transmite a segurança do controle destes significados (grifo nosso) (DÖPCKE, 2004, p. 38).

Na exposição Negro de Corpo e Alma (Mostra do Redescobrimento, 2000),

focando a área Olhar o Outro, Araujo preocupou-se em discutir o exotismo tanto do

antigo gabinete de curiosidades como do olhar mais científico do século XIX.

Isso é possível constatar na pintura de Albert Eckout (1610-1666) e em diversos

outros trabalhos de artistas estrangeiros. Nesse período, era necessário criar uma

iconografia para o imaginário europeu sobre o novo continente. Essa imagem tenta uma

objetividade que, no entanto, é a construção de uma perspectiva européia sobre este

local.

Como diz o curador, a mostra Olhar o Outro procurou

(...) identificar, através de imagens e documentos de época, as formas do imaginário que constroem a figura do negro enquanto outro, quase sempre incapazes de aceitá-lo em sua diferença. Um imaginário que, antes de ser brasileiro, é essencialmente europeu, e que ganha forma através de um olhar exotizador. (...) No Brasil, prolongando a visão

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européia, é este mesmo imaginário que se reflete no olhar dos viajantes (...) (grifo nosso) (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 48).

O debate sobre esse “olhar exoticizador” esteve presente entre os organizadores

sobre o sentido da exposição Negro de Corpo e Alma, dentro do eixo Sentir a Alma. Ao

que parece, Araujo e seus colaboradores inicialmente compreenderam que o setor Sentir

a Alma abarcava artistas do modernismo brasileiro. Porém, notando nesses artistas algo

de “exotizador”, sugeriram mudar alguns artistas para a mostra Olhar o Corpo (onde o

sentido de exótico e estrangeiro é muito mais forte). Dessa maneira, procuravam

contextualizar esses artistas do modernismo num viés mais próximo dos artistas

estrangeiros do século XVII, como Albert Eckout.

Sobre esse momento, cabe citar Maria Lucia Montes: “tive um problema com

relação aos modernistas. O que são os modernistas? Olhar o Corpo ou Sentir a Alma?

Depois de sete anos trabalhando nisso, com o catálogo pronto, com os modernistas em

Sentir a Alma, o Emanoel decidiu que aquilo deveria ser Olhar o Corpo! Após muita

briga e discussões, acabou ficando assim mesmo” (MONTES, 2008). Talvez para o

modernismo brasileiro essa tenha sido uma forma de ver, mas também de se integrar ao

outro. Em todo caso, esse não deixa de ser um certo olhar de diferenciação45.

Presente não apenas no passado, esse olhar diferenciado também ocorre na

contemporaneidade. Atualmente, o exotismo contribui para tornar obras de arte quase

como objetos de consumo. Nesse sentido, essa mercadoria cultural se torna apenas mais

um objeto em todo o sistema de circulação de produtos46.

A exposição de Araujo parece buscar escapar do fenômeno de mercadologização

da cultura e da arte no museu. Seu discurso procura desconstruir a ação instrumental de

45 Comentando esse momento, Montes descreve o que parece ser a intenção de Araujo sobre a mostra Olhar o Corpo: “Eu até entendo porque ele [Araujo] estava incomodado. O cara que estava incomodado era o cara com argumento político. O Emanoel dizia ‘você vem com coisa de branco. Eu quero coisa de negro’. Mas o Emanoel tinha razão pelo seguinte: enquanto artista, ele estava olhando a representação. Essa representação ainda está impregnada dessa imagem, ainda que os artistas pensem em traços modernos e transformem isso em um ícone de modernidade e brasilidade. Enquanto imagem, ela ainda tem um traço forte de exotismo. Mas tem um detalhe, o exótico está sendo assumido como brasilidade, daí a história do porque Sentir a alma. É o momento em que a arte está legitimando uma versão de Brasil que não é pautada pelo modelo europeu” (grifo nosso) (MONTES, 2008). 46Como já disse Guy Debord, “a cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular” (1997, p. 126). Percebendo esse duplo sentido da cultura, analisa Otília Arantes que “a realidade, que é uma só, ora é vista como inteiramente cultural, ora como puramente econômica” (2002, p. 239). Essa afirmação não deixa de fazer sentido à grande parte da produção contemporânea de interesse econômico travestido de cultura ou de arte. Os interesses econômicos retiram o valor renovador e vital, que é próprio da cultura, e a esvazia.

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ver na cultura uma simples mercadoria alienada. Analisando esse fenômeno, o curador

baiano mostra que

(...) a massificação chegou a um ponto tal que não só a cultura, mas até a religião é atingida. Hoje, qualquer pessoa pode montar um candomblé. Você chega a um mercado (...) e encontra a galinha enrolada para ser sacrificada (...), tudo pronto. Ou seja, não é mais preciso criar uma atmosfera para justificar a existência do divino. Você chega lá e compra. Estamos numa época da desmistificação geral (...). As pessoas têm tanta pressa que vão a um museu e dizem: ‘eu fotografo o quadro e olho depois, em casa’ (grifo nosso) (ARAUJO, 2006a, p. 1).

Contra esse sentido de esvaziamento, todavia, a exposição de Araujo preza por

evidenciar o conflito. Isso está expresso em diversos textos do curador: “este silêncio foi

imposto a ferro e fogo pela narração da historiografia oficial e por ela a memória desse

país foi tantas vezes esquartejada, e tantas outras devorada por canhões de infantaria”

(MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 11). Em outro momento, recusando ao convite do

Ministro Gilberto Gil para curadoria de uma exposição no exterior, Araujo diz que

(...) o ano do Brasil na França nada mais é do que um evento para mostrar a diversidade do país no interior da França e para dar novos elementos ao desenvolvimento turístico daquela região, elementos de país exótico para francês ver. (...) queríamos mostrar o Brasil que (...) é negro, índio e cristão. A arte brasileira só pode ser descrita e entendida através desta história (grifo nosso) (ARAUJO, 2006a, p. 1).

Para compreender esse contexto, vale citar a descrição sobre diferentes tipos de

memória de Ulpiano Bezerra de Menezes. No primeiro caso, temos uma memória

fetichizada, própria do universo comercial e, no segundo, uma memória politizada, o

que, imaginamos, é o objetivo de Araujo. Assim, Menezes explica:

A primeira é conservadora, vale-se da fetichização, quer para transformar a memória em mercadoria, quer para utilizá-la como instrumento de legitimação potenciada pelo valor “cultural”. A segunda, ao inverso, é uma resposta, precisamente, às alienações provocadas pela expropriação da memória e representa pelo menos a emergência de uma consciência política (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p. 21).

Como podemos notar, esse conflito evidenciado no discurso de Araujo não é

próprio do modo de ver a cultura como simples mercadoria. Ao evidenciar o conflito, o

curador tenta compreender a produção de arte afro-brasileira por um outro viés – o da

conscientização dessa narrativa pelo público. É uma forma de ver que não passa pela

fugacidade, mas pela crítica, memória e reconhecimento.

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Memória e reconhecimento

A memória é uma construção de identidade a partir de um protagonista no

presente. É a visão de um determinado grupo sobre seu passado. Essa memória se

constrói pelo que lembramos e pelo que esquecemos (BERNARDO, 2006). A memória é

necessária para a construção das bases de um coletivo; pode orientar-se para a construção

de uma identidade.

Ulpiano T. Bezerra de Menezes também relata que:

(...) a memória de grupos e coletividades se organiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante, de feição adaptativa. A tradição (memória exteriorizada como modelo) nunca se refere a nenhum corpo consolidado de crenças, normas, valores, referências definidas na sua origem passada, mas está sujeita permanentemente à dinâmica social (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p. 11).

A memória pode entrar em conflito com as diversas formas de ver, compreender

e reconstituir o passado pelos diversos grupos que estão no presente. Em nosso caso, as

exposições de Araujo contam e recontam a história pela perspectiva do negro. O curador

apóia-se nessa perspectiva para construção de sua própria singularidade, que se defronta

com outras histórias. A memória, assim, é local de conflito e negociações.

Como podemos observar, a memória, por fortalecer uma identidade, confere um

substrato político e reivindicativo aos grupos que a requisitam. Desse modo, a construção

de uma história própria pode vincular-se à noção de reconhecimento proposta por

Charles Taylor (1993), filósofo que desenvolve pesquisa sobre relações culturais e

políticas em Quebec:

La tesis es que nuestra identidad se moldea em parte por el reconocimiento o por la falta de este; a menudo, también, por el falso reconocimiento de otros, y así, un individuo o un grupo de personas puede sufrir un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente o la sociedad que lo rodean le muestram, como reflejo, un cuadro limitativo, o degradante o despreciable de si mismo. El falso reconocimiento o la falta de reconocimiento puede causar daño, puede ser una forma de opresión que aprisione a alguien en un modo de ser falso, deformado y reducido (grifo nosso) (1993, p. 43).

Taylor elabora sua teoria baseada na filosofia, iniciando-se na noção de

identidade e resultando no conceito de reconhecimento. Segundo o autor, o

reconhecimento tem as primeiras bases filosóficas em Hegel, desenvolve-se em Rosseau

e configura-se finalmente em Joham Gottlob Herder. Estes primeiros, Hegel e Rosseau,

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trabalham com o conceito de autenticidade numa esfera individual, ou seja, desenvolvem

o argumento sobre a importância da noção de individualidade para o próprio sujeito.

Herder avança ao abarcar nesta categoria os povos e nações. Além dos indivíduos, cada

povo possui uma singularidade histórica e a necessidade de ser reconhecido por ela.

Jacques d’Adesky, partindo de estudo sobre Taylor, desenvolve o conceito de

reconhecimento em relação aos grupos negros brasileiros no seguinte sentido:

“(...) Taylor opõe-se às perspectivas teóricas que relegam as identidades à esfera do privado. Ao contrário, afirma que a identidade cultural deve fecundar todo o espaço público para permitir que as pessoas de uma etnia minoritária não se sintam depreciadas em um projeto que lhes seja estranho, uma vez que elas não se sentem verdadeiramente reconhecidas pela maioria com a qual compartilham a mesma entidade nacional” (grifo nosso) (D’ADESKY, 2001, p. 23).

O reconhecimento de uma identidade cultural acontece em esfera social e

coletiva a partir da memória de um grupo. Nesse sentido, o reconhecimento é a exigência

que os grupos organizados fazem para serem vistos como uma entidade unificada, com

memória e objetivos comuns, a fim de obterem legitimidade e força num campo

simbólico de representações sociais47.

Isso é próprio da exposição de Araujo. A sua construção de uma memória de arte

afro-brasileira orienta-se para o reconhecimento dos grupos negros. A partir do momento

em que esse grupo tem uma memória ele pode ser reconhecido como tal na esfera

pública e política, assim como também nas artes plásticas. A fala do curador abaixo,

comentando a exposição Brasileiro, Brasileiros (Museu Afro Brasil, 2004), traz esse

sentido de configuração e reordenação da memória:

Brasileiro, Brasileiros é, portanto, uma exposição, que inclui esse quebra-cabeça, a arte e a memória na sua armação conceitual. Aparentemente pode parecer apenas uma proposição estética de múltiplas linguagens, num jogo mais ou menos caótico, uma tentativa de uni-la aos fatos históricos da formação da identidade brasileira, procurando encontrar uma forma de linguagem capaz de converter idéias em experiências sensíveis, para assim armar um novo conceito sobre a arte nacional, não apenas sobre o aspecto analítico e estético, mas, sobretudo, por apontar elementos identificadores e claros dessa

47 Esse reconhecimento também possui forte afinidade com a idéia de identidade. Vale citar novamente d’Adesky: “Para Charles Taylor, a relação entre identidade e reconhecimento é de fundamental importância no mundo atual. A identidade representa, escreve ele, quem somos nós, ‘de onde viemos’ etc. Como tal, é o pano de fundo sobre o qual nossos gostos, nossos desejos, nossas opiniões e nossas aspirações tomam sentido. Mas a identidade, observa Taylor, não é elaborada no isolamento. Ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. A identidade pessoal e a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto. Estas dependem vitalmente das relações dialógicas com os outros (2001, p. 77).

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identidade na nossa história e no nosso passado (grifo nosso) (apud BRASILEIRO, BRASILEIROS, 2004, pp. 9, 10).

Por outro lado, a discussão sobre memória e reconhecimento também se aproxima

de um contexto político. Maria Lucia Montes parece demonstrar que o trabalho de

Araujo pode reverberar essas nuances. É certo que a sua forma de engajamento não é

direta e restrita. Sobretudo, a atuação do curador dentro do circuito artístico é a defesa de

uma visão especial sobre a arte brasileira. Como diz Montes:

(...) não tenha dúvida que ele é uma pessoa fundamental para pensar o que é legitimidade e representatividade para o negro, pensando em reformular uma outra história não só do negro, mas do Brasil. O seu engajamento militante é fruto da trajetória de vida dele, mas isso não é apenas um engajamento político militante restrito. Na verdade, ele está para além do que os movimentos negros pensam. Ele está pensando uma coisa crucial que nunca foi tematizada, nem na academia, nem nas instituições culturais, que é a cultura negra (grifo nosso) (MONTES, 2008).

Esse teor político inferido à trajetória de Araujo é também demonstrado durante

a entrevista do curador ao programa Roda Viva (2006). O programa foi exibido em

novembro de 2006, momento em que se comemorava os 35 anos do Dia da Consciência

Negra. A primeira pergunta do programa, realizada pelo repórter Paulo Markun, se refere

à posição de Araujo sobre políticas anti-racismo. A pergunta do repórter foi: “Diante da

situação de preconceito, inquestionável, que negros e pardos sofrem no Brasil, funciona

adotar políticas e práticas de afirmação que são semelhantes às dos Estados Unidos?”

(Paulo Markun apud RODA, 2006). É importante notar que o mote do programa não foi

a discussão de políticas públicas, mas sobre o trabalho artístico e expositivo de Araujo.

Em todo caso, por mais descabida que possa ter sido a pergunta, ela diz respeito a um

universo de referências que as exposições de Araujo tangenciam. Além disso, numa

visão abrangente, as exposições do curador se inserem dentro de um conjunto de ações

anti-racistas que atingem desde a esfera educacional como também o universo das artes.

Como diz Felinto, “o Museu Afro Brasil é uma instituição que faz parte de um conjunto

de ações afirmativas, do ponto de vista educacional e até do ponto de vista de cidadania”

(FELINTO, 2008).

Numa outra pergunta do mesmo programa, o professor Demétrio Magnoli

questionou Araujo a respeito da importância do dia 20 de novembro em detrimento do 13

de maio. A discussão que Magnoli insere é sobre a validade do 20 de novembro

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enquanto fato histórico. Para ele, o Quilombo dos Palmares (século XVII) não representa

na história brasileira um ideal maior do que o 13 de maio com os caifazes (século XIX).

Segundo o professor, Palmares, uma terra onde ainda haviam escravos, utilizava os

mesmos métodos que seus inimigos.

Essa pergunta não é dirigida somente a Araujo, mas a todos os setores negros

organizados do Brasil. Isso significa dizer que por mais que o curador não seja um porta-

voz oficial desse grupo, como o mesmo diz, ele assume para o público essas

expectativas. De certo modo, o trajeto e pensamento de Araujo levam a esses

questionamentos. Embora suas exposições não tenham uma conotação política restrita,

em alguns casos seu discurso assume a perspectiva do grupo que por diversas vezes

expõe.

Ainda sobre a questão de Magnoli, o dia 13 de maio é uma data oficial que

remete à abolição da escravidão em 1888. Nesse momento, as diversas contestações ao

regime escravocrata problematizavam a legitimidade de sua existência, provocando a

ruptura desse modelo de produção. A partir disso, a abolição, aparentemente feita de

cima para baixo, nas décadas seguintes tomou feições cada vez mais antagônicas para os

grupos negros organizados. Estes questionavam a validade desse marco histórico como

instaurador de uma sociedade livre e igualitária. O dia 13 de maio expressava apenas a

visão da elite sobre a história do negro no Brasil. Como resultado, o dia 20 de novembro

foi uma proposta dos grupos negros organizados já em fins do século XX para mostrar

uma outra perspectiva. Essa data passou a representar os anseios desse grupo, exibindo

como símbolo máximo o líder quilombola Zumbi dos Palmares48.

Entre essas duas datas temos a discussão oportuna sobre a representação dos

grupos negros na sociedade atual, sobre memória e reconhecimento. O dia 20 de

novembro não é a escolha por uma única verdade, mas é o momento em que esse grupo

negro ganha consciência de sua própria história. Assim, lutar por uma nova data que

represente os seus interesses significa mostrar que este grupo possui o poder de se pensar

48 Florestan Fernandes em artigo sobre o 13 de maio sintetiza essa mesma idéia sobre ambas as datas: “(...) o significado da data [20 de novembro], que brota da consciência negra e da compulsão libertária coletiva dos negros mais firmes e decididos nas pugnas raciais igualitárias, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. O 13 de Maio se contrapõe ao 20 de Novembro. A escravidão não impediu que o seu agente de trabalho e a sua vítima construísse sua própria história, independentemente dos mitos consagrados pela ‘história oficial’. A liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista. Essa conquista pressupõe que os negros redefinam a história, para situá-la em seus marcos concretos e entrosá-la com seus anseios mais profundos de auto-emancipação coletiva e de igualdade racial” (1989, p. 34).

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e de se auto-representar enquanto um coletivo com história e legitimidade. A discussão

dessa data, então, é sobre qual símbolo deve representar essa narrativa, bem como saber

quem o determina. Esse é o terreno próprio da ação de Araujo.

É relevante dimensionar que a história é feita por e para os contemporâneos.

Assim, o significado dessa data é importante enquanto puder simbolizar e gerar

aspirações desses grupos negros. “A elaboração da memória se dá no presente e para

responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe

incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar” (grifo nosso) (MENEZES, 1992, p.

11). A escolha dos grupos negros por um outro fato histórico é uma nova redefinição

desse mesmo grupo no presente.

Um momento preciso

O contexto de memória e reconhecimento reverbera-se também em relação ao

momento em que muitas das exposições de Araujo são realizadas. Esse estabelece um

diálogo entre a exposição e o seu contexto histórico. Vale pontuar brevemente alguns

desses episódios.

Realizando uma digressão, em meados do século XX, o Teatro Experimental do

Negro buscou na experiência do palco unir arte e política. Não deixou um subjugado ao

outro, mas procurou na inter-relação entre ambos uma tentativa de compreender a

situação do negro brasileiro. O TEN de Abdias do Nascimento mostrou que o campo da

arte pode ser rico ao debater temas sobre o negro brasileiro. Nascimento fomentou uma

consciência crítica a respeito da situação do negro que poucas vezes obteve alcance no

meio artístico. Cabe notar que um dos cartazes da exposição A Mão Afro-brasileira

(Museu de Arte Moderna, 1988) de Emanoel Araujo apresenta uma fotografia sobre essa

mesma experiência teatral (Imagem 13.3).

De modo semelhante, a ação de Araujo traz para dentro da exposição de arte todo

tipo de implicações étnico-raciais e políticas. A exposição A Mão Afro-brasileira está

submergida num contexto político de grande repercussão para os negros e a sociedade

brasileira. O momento de revisão proposto pelo ano de 1988 evidencia ainda mais essa

orientação. Nesse sentido, a preocupação dos grupos negros organizados em constituir

uma nova memória e história passa necessariamente por compreender a sua atuação

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dentro da cultura e da história da arte, espaço em que, historicamente, estes estavam

alijados.

No ano de 1988 ocorreram as comemorações que marcaram o centenário de 100

anos da abolição da escravidão. Essa data mostrou o amadurecimento do protesto do

movimento negro no Brasil. Mais do que comemoração, ela foi marcada pela revisão da

história do negro pela perspectiva do próprio negro. Se o discurso oficial procurou

comemorar o fim de um período e a condição de igualdade estendida a todos, esse

protesto denunciou um estado de opressão e de discriminação contínua. Mais do que

isso, evidenciou que sem a integração do negro na sociedade de classes o Brasil não

poderia tornar-se um país realmente democrático.

Como afirma Michael George Hanchard, em estudo sobre grupos negros

organizados no Brasil, esse foi um momento oportuno para a eclosão de um discurso

ainda restrito sobre a condição do negro brasileiro:

Os festejos comemorativos das sociedades multirraciais são, frequentemente, contestações da identidade nacional; os grupos dominantes esticam a tela mítica da “união nacional” para fazê-la incluir imagens dos grupos subalternos; os grupos subordinados contestam os mitos de união nacional promovidos pelo Estado. (...) Os eventos de 1988 trouxeram para o primeiro plano diversas contradições da política racial brasileira. Em termos micropolíticos, expuseram as lutas do movimento afro-brasileiro para se definir em relação à sociedade brasileira e, em última instância, em relação à sua própria história como movimento (grifo nosso) (HANCHARD, 2000, p. 167).

Mais adiante, em consonância com esse discurso, é preciso não esquecer o

momento da exposição Herdeiros da Noite (Pinacoteca, 1995), data que relembra os 300

anos da morte de Zumbi. Se a exposição A Mão Afro-brasileira aconteceu num momento

de contestação, a mostra Herdeiros da Noite é reivindicação. Como cita Kabengele

Munanga, “em 1988, ano do Centenário da Abolição, tivemos festas, discursos,

congressos nacionais e internacionais, manifestações culturais e artísticas em quase todo

o território nacional, marchas de protesto dos movimentos negros, etc.”. O autor

continua, concluindo que na marcha sobre Brasília em 20 de novembro de 1995 “o tom

não era apenas de denúncia e de protesto, mais do que isso, exigiu-se do governo e dos

poderes constituídos a busca das soluções, a serem concretizadas através dos programas

de ação anti-racistas em todos os domínios da vida nacional” (1996, pp. 88-90).

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Dentro desse contexto, vale observar o teor do texto de Maria Lucia Montes para o

catálogo da mostra Herdeiros da Noite:

De fato, embora os símbolos tradicionalmente associados à identidade nacional – samba, carnaval, feijoada, futebol – se originem ou se expressem de forma exemplar naqueles que são herdeiros das muitas culturas da África que se incorporaram à formação histórica deste país, nem por isso a sociedade nacional foi capaz de reconhecer aos descendentes de africanos no Brasil a igualdade de direitos – civis, políticos e sociais – que correspondesse, no plano sócio-econômico e político, à importância de sua contribuição cultural (HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 11).

A exposição Negro de Corpo e Alma (2000) evidencia um outro momento de

revisão da história nacional durante a comemoração dos 500 anos do país. O uso do

conceito curatorial separado em diversas áreas (Olhar o Corpo, Olhar a Si Mesmo e

Sentir a Alma) tenta compreender a presença do negro no Brasil em suas mais diferentes

formas dentro da arte brasileira e afro-brasileira.

Como podemos notar, a exposição A Mão Afro-brasileira (1988) mostrou a

produção artística afro-brasileira dentro de um contexto de compreensão desse legado a

partir de uma data que marca esse grupo e também a história do país. A exposição

Herdeiros da Noite (1995) foi uma homenagem a Zumbi. Nesse sentido, era mais

direcionada não apenas em constatar uma produção, mas em mostrar uma arte

projetualmente afro-brasileira; a obra dos artistas dessa exposição parecem indicar esse

caminho. Por sua vez, a exposição Negro de Corpo e Alma (2000) tentou realizar uma

análise de toda imagem do negro no Brasil. Não há apenas a constatação de uma

produção ou a afirmação de uma narrativa, mas a elaboração de um sistema para

compreender a representação desse grupo nesse território. Muitas das obras pertencentes

às exposições anteriores fazem parte dessa narrativa, porém elas foram utilizadas para

um novo contexto e fim.

Ambigüidade

Outro aspecto da curadoria de Araujo é a ambigüidade (ou ambivalência). Tal

fenômeno está presente na fala de Maria Lúcia Montes: “o que eu aprendi nesses sete

anos trabalhando com o Emanoel é que não é possível falar da problemática do negro no

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Brasil sem falar da ambivalência. Desde o Aleijadinho fazendo arte européia e o Ataide,

branco, pintando uma santa negra, há tensão” (grifo nosso) (MONTES, 2008)49.

Esse dispositivo pode mesmo originar-se na forma repleta de sobreposições da

experiência dos africanos no Brasil, entre o contato de diversas culturas. Ricardo Rosas,

citando W. E. B. Du Bois, trouxe uma contribuição importante quando este fala sobre a

dualidade do indivíduo negro na diáspora. Vale citar a análise de Rosas: “Um dos

grandes estudiosos de cultura afro-diaspórica do século passado, o norte-americano W.

E. B. Du Bois, via na cultura e no pensamento negro de sua época o que ele chamou de

‘consciência dupla’, uma sensação estranha, ‘essa sensação de estar sempre a se olhar

com os olhos de outros’” (grifo nosso) (apud FARKAS, 2005). Esse estranhamento pode

estar presente na obra de muitos artistas afro-brasileiros e negros, produzindo obras

dentro de um modelo estranho (europeu) da sua origem étnico-racial (africana), mas

legitimamente pertencente a sua cultura num novo território (brasileira)50.

A ambigüidade de Araujo procura trazer uma forma complexa de olhar a arte e a

cultura do negro na sociedade brasileira. Como diz Montes, está na capacidade de buscar

refletir a sinuosidade da cultura e história brasileira em relação a esse grupo, sempre em

tensão entre diversos universos. De modo semelhante, essa característica acaba

permeando também a forma de suas exposições. Essa ambigüidade, um modo sinuoso de

apontar para elementos diferentes, também remete-se ao estado de tensão que pode ser

gerado por esse método expositivo.

No caso da montagem de Araujo, podemos notar esse aspecto na exposição

Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007). Essa exposição constitui-se

como um conjunto de peças populares e da indústria de massa que representam o negro.

Individualmente, essas imagens revelam um humor jocoso. Porém, numa visão de

49 Em outro momento, a mesma pesquisadora relata: “Os modernistas diziam que a grande maravilha da cultura brasileira era ser antropofágica, vendo na antropofagia o indígena, mas o verdadeiro antropófago da cultura brasileira foi o negro, que comeu pelas bordas a cultura européia do senhor. Há o tempo inteiro essa ambigüidade e essa ambivalência de saber o que é negro. Se quiser separar e compreender, inclusive sobre uma estética negra, é possível; mas o tempo inteiro nós estamos nos debatendo com essa ambigüidade do lugar social do negro” (MONTES, 2008). 50 Nesse caminho, cabe observar mais uma vez a análise de Montes sobre a ambigüidade de Araujo: “Ele [Araujo] oscila. Tem horas em que odeia essa ambigüidade brasileira. Ele preferiria que branco fosse branco e preto fosse preto. Esse é o modelo americano, que por um acaso se aproxima da posição militante negra no Brasil, que eu considero um equívoco total em termos de movimento político. Não tem como dar certo, nossa história é outra. Então isso aparentemente o aproxima da militância dos movimentos negros, mas simplesmente porque ele não agüenta tanta ambigüidade. Por outro lado, tem essa pessoa com imensa sensibilidade e conhecimento da história do Brasil, que sabe que isso é balela, não é assim. A história desse país é a história da ambigüidade” (grifo nosso) (MONTES, 2008).

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conjunto, exacerba-se o grotesco. Essas imagens podem fortalecer um sentido de

alienação sobre a figura negra. Pela forma da exposição, é permitido perceber as nuances

e características desse olhar ideológico. Contudo, a ambigüidade entre o “Perverso” e o

“Inocente” é presente.

Embora exista um texto pontuando um certo olhar sobre a exposição, a forma

complexa da montagem, aproximando obras que a princípio estariam separadas, acaba

exacerbando uma leitura repleta de desvios. Esse sistema de significados, previstos ou

não pela curadoria, não procura solucionar o problema, mas o questionamento a respeito

do todo51. Por outro lado, essa ambigüidade pode colaborar ou confundir os olhares do

observador em certos casos.

Em outras exposições, essa ambigüidade pode assumir aspectos diferentes.

Caudatário de uma visão moderna, que em alguns casos evidencia o caráter estético das

obras, para Araujo, os objetos de arte (por si só) têm grande poder de conferir sentido

dentro de uma exposição. Algumas exposições do curador tentam criar o seu universo

somente pela lógica das obras expostas. Vale observar os apontamentos de alguns

críticos.

Na mostra Herdeiros da Noite (em Brasília, 1995), como diz Graça Ramos:

As peças exibidas na 508 Sul não têm, de acordo com o curador Emanoel Araujo, a intenção de explicar nem desvendar “uma cultura negra”, mas sim construir um referencial de acesso ao imaginário influenciado pelo universo afro-brasileiro. E são (...) uma comunicação estética que provoca o prazer e a emoção de gozar o belo (...). Por isso, para muitos, prescindem de explicações e interpretações (grifo nosso) (RAMOS, 1995).

Essa observação parece ser em grande parte resultado de uma visão moderna

sobre o objeto de arte e a exposição. A relação que Araujo constrói em suas exposições

exige do observador uma atenção formal sobre os objetos e seu contexto. Essa

51 A colaboração de van Mensch, procurando um novo modo de expor, parece contribuir para a noção de ambigüidade e tensão na exposição de Araujo: “a público le es mostrado cómo el pasado puede ser manipulado y desfigurado por los propósitos del presente. Los artefactos se quiebran desde una narrativa cronologica fijada y desde sus contextos originales, y son reunidos con artefactos contemporáneos similarmente descontextualizados. La exageración, la ironia, el humor y el absurdo son prestentados como recursos de remoción del sentido autoevidente del artefacto y su poder. En resumen, el diseño de la exposición debería destacar la professión de autor y cambiar las percepciones sobre el pasado de los artefactos” (grifo nosso) (van Mensch apud FERNÁNDEZ, 1999, p. 151)51.

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construção de sentido, todavia, nunca é uma via única. Muito pelo contrário, a narrativa

do curador é polifônica, complexa em sugerir e construir sentidos.

Observando esse método por outra perspectiva, Kátia Canton, na crítica intitulada

Imaginário africano tem painel confuso sobre a mostra Herdeiros da Noite diz que:

A exposição contrapõe obras de procedências e estilos diversos. Mesclá-se a produção de artistas negros e brancos que trabalham sob influência africana. Lado a lado, estão um conjunto de esculturas de iconografia ioruba de Mestre Didi, instrumentos litúrgicos do candomblé, de autoria de José Adário dos Santos; e obras contemporâneas e menos comprometidas com a questão da raiz (sic) (CANTON, 1995).

Esse tipo de crítica parece exacerbar o “ruído” que reverbera na leitura da

exposição (o que fica evidente no título do artigo de Canton). Para a crítica, esse ruído

originado pela disposição “confusa” dos objetos seria um empecilho para o entendimento

da exposição pelo público. No mesmo sentido, como cita Felinto: “Algumas montagens

[do Emanoel Araujo] são muito exuberantes, inclusive, mas sempre um pouco

complicadas para o público” (FELINTO, 2008). Nesse caminho, como pressuposto

dessas críticas, a função do museu e de seus dispositivos expositivos seria a de

comunicar transparentemente com o público, evidenciando um discurso preciso.

Não obstante, ao que parece, para Araujo, mais relevante que o discurso singular

e certo sobre a exposição é o conflito e complexidade de novas leituras que uma

disposição sinuosa pode causar. A fala do crítico e curador Tadeu Chiarelli sobre a

mesma exposição de Araujo traz esse contexto:

Sem ser banalmente didática, a mostra [Herdeiros da Noite] vai traçando num percurso sinuoso e cheio de reentrâncias estéticas e antropológicas, etnográficas e artísticas um itinerário analógico e poético cujo fio condutor é a permanência, em todas as obras ali apresentadas, de certas características formais, iconográficas e iconológicas. É extremamente excitante, após examinar uma marcante coleção de esculturas africanas ancestrais, penetrar numa sala de ex-votos brasileiros e dela sair para confrontar-se com um painel repleto de patuás de Rosana Paulino, realizados em Xerox. (...) Esta exposição (...), demonstra que qualquer discussão sobre o assunto (multiculturalismo) deve passar necessariamente pelo exame do legado que a ancestralidade africana nos deixou, e pelas razões raciais, políticas e econômicas que insistem em marginalizá-la, tornando seus produtos exemplares do folclore e não emanações vivas de parte significativa da subjetividade brasileira (grifo nosso) (CHIARELLI, 1994).

Do mesmo modo, citando Araujo, temos a descrição de Maria Lucia Montes:

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O Emanoel é um grande curador no sentido de que conceito e espaço são problemas pensados em conjunto. Isso também é uma coisa difícil de equalizar. Alguns reclamam que as exposições do Emanoel são over e confusas por causa desse método. Nem sempre ele pensa em evidenciar quais são as conexões para o visitante, o que o espaço te permite fazer. Tem exposição que não precisa ter nem texto. Há o espaço aqui, nós olhamos para lá do outro lado e o espaço te deu um contraponto, mostrou uma tensão, relativizou a leitura de um e outro (grifo nosso) (MONTES, 2008).

O didatismo do espaço museológico parece não ser um ponto constante das

necessidades do curador baiano. Porém, ao que aparenta, isso não é um problema para o

mesmo, mas um outro entendimento do dispositivo de exposição. Esta, para Araujo, é

um fenômeno razoavelmente em aberto. O entendimento do seu conjunto se dá pela

leitura relacional de suas obras. A ambigüidade, assim, parece ser um dispositivo que faz

parte dos intentos do curador, apontando obliquamente para diversos componentes.

Ancestralidade

O termo ancestralidade surge em algumas exposições de Emanoel Araujo para

explicar o processo de continuidade artística dos negros africanos na diáspora americana.

Tal conceito se refere a uma origem em comum da identidade do negro na diáspora. Ele

tornou-se um ponto de apoio para explicar a singularidade cultural entre África e

América. Cabe, no entanto, ressaltarmos que o uso do termo ancestralidade na arte afro-

brasileira tem um contorno não muito preciso.

Conduru traz à tona esse problema quando expressa suas dúvidas a respeito de

como podemos pensar a continuidade plástica africana entre os dois lados do oceano

Atlântico (o que podemos entender como ancestralidade):

É possível acreditar em atavismos para aceitar a ressurgência de valores escultóricos africanos em obras de arte no Brasil apenas porque foram feitas por afro-descendentes? (...) é possível pensar em sobrevivências na história da arte, em forças plásticas e simbólicas que ressurgem não racionalmente? (...) De um modo ou de outro, precisam surgir pesquisas que, a partir de evidências e documentos, pensem a continuidade de princípios, práticas e formas artísticas africanas no Brasil (grifo nosso) (CONDURU, 2007, pp. 21, 22).

Há, no mínimo, de acordo com bibliografia que consultamos sobre as exposições

de Araujo, dois modos distintos para observar o termo ancestralidade.

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No primeiro caso, a ancestralidade é um dispositivo atávico e inconsciente. Ela

permaneceria entre as gerações de negros na América que continuam a realizar uma arte

com influências africanas. Assim, por exemplo, a produção de Agnaldo Manoel dos

Santos seria uma espécie de “memória ancestral” das técnicas utilizadas na África. Um

texto contido no catálogo Para nunca esquecer – Negras memórias – Memórias de

negros (2002) sobre esse artista pode exemplificar o fenômeno:

Ingressando como auxiliar no ateliê do escultor baiano Mário Cravo, um sentimento atávico levou-o [Agnaldo Manoel dos Santos] a esculpir representações guardadas em sua memória ancestral, impressionantemente próxima dos cânones da arte africana, na qual tema e forma buscam soluções de síntese (grifo nosso) (Anônimo apud PARA NUNCA ESQUECER, 2002, p. 242).

Esse modo de perceber a origem da arte afro-brasileira através da ancestralidade é

capaz de obscurecer outras possíveis compreensões do mesmo problema. Ele pode tornar

a cultura um elemento estático. Essa passa a ser característica cristalizada de um povo, de

um grupo, não passível de alterações significativas durante o passar do tempo. Todavia,

as discussões atuais têm apontado cada vez mais para o modo relacional que é o caminho

de um fenômeno cultural. Assim, a cultura não traz um contorno definido, mas algo que

se refaz continuamente.

No segundo caso, Araujo parece compreender o terreno movediço em que opera.

Podemos notar pela fala descrita a seguir como ele expressa esse problema:

Agnaldo Manoel dos Santos, cuja a obra está impregnada de aspectos de ancestralidade com a arte africana, representa seja através da veia da intuição ou do inconsciente, esse inconsciente acumulado por vivências, a grande expressão da arte afro-brasileira, ou seja, um artista que em sua obra mais reducionista consegue expressar essa ligação entre Brasil e África (grifo nosso) (apud VOZES, 1993).

Desse modo, um inconsciente “acumulado por vivências” refere-se às

experiências concretas que ancoram o trabalho desse artista nas artes plásticas. Nesse

caso, a técnica desse escultor não está em uma lembrança fora da história, mas constitui-

se em sua atividade empírica sobre a matéria e o mundo. Essa experiência concreta o

conduziu a uma criação plástica baseada na estética em parte da arte da África, buscando

configurar também uma memória artística individual.

No mesmo sentido, referindo-se ao Museu Afro Brasil, o curador Araujo diz que

devemos estar atentos “a identificar na ancestralidade a dinâmica de uma cultura que se

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renova (...) (grifo nosso) (apud MUSEU AFRO BRASIL, 2006, p. 13). Esse significado,

o de uma cultura renovadora, é certamente um modo menos estático e rígido de entender

o problema. Araujo, assim, procura compreender que ancestralidade significa um diálogo

permanente entre passado e presente. Entre o que é e o que está sendo.

A cultura é um fenômeno poroso que está mais interligada com seu entorno do

que podemos imaginar. O termo ancestralidade na arte afro-brasileira, quando foca uma

origem estática, um “sistema atávico”, pode não dar conta de compreender esse

fenômeno do modo mais apropriado, embora, como vimos, ele possa trazer vários

significados.

Sidney W. Mintz e Richard Price (2003) podem contribuir para esse

entendimento quando descrevem a configuração de uma identidade em comum entre os

grupos negros africanos escravizados na América:

Todos os escravos devem ter-se descoberto aceitando, ainda que por necessidade, inúmeras práticas culturais “estrangeiras”, o que terá implicado uma reformulação gradativa de seus próprios modos tradicionais de fazer muitas coisas. Para muitos indivíduos, o compromisso com um novo mundo social e cultural e o engajamento nele devem ter assumido precedência, com muita rapidez, sobre o que não tardaria em se transformar, predominantemente, em saudade da terra natal. Lembramos a nós mesmos e a nossos leitores que, de modo geral, as pessoas não sentem saudades de uma “herança perdida”, nesses termos, fica intimamente ligada aos contextos sociais em que são vivenciados e percebidos os laços afetivos. Com a destruição desses laços, a “bagagem cultural” de cada indivíduo sofre uma transformação fenomenológica, até que a criação de novas estruturas institucionais permita a refabricação do conteúdo, baseado no passado – e muito distante dele (grifo nosso) (MINTZ & PRICE, 2003, p. 71).

Para Mintz e Price é certo que a identidade do negro na América é uma

reconstrução a partir dos contatos deste no Novo Mundo. A “refabricação” de conteúdos,

dos laços afetivos, a “bagagem cultural”, embora “baseada no passado”, se faz a partir do

presente e para as circunstâncias deste. A ancestralidade, assim, tem sentido quando se

refere a essa experiência coletiva e empírica desses indivíduos em face de um mesmo

problema, a reconfiguração de sua cultura (ou até mesmo a criação de uma nova cultura)

a partir de um território repleto de obstáculos. Nesse sentido, não estamos descrevendo a

retomada de uma memória atávica, mas reconhecendo que esta se faz continuamente pela

vivência, experiência, gestualidade, troca e oralidade desses indivíduos e povos no

mundo.

No mesmo caminho, como afirma Muniz Sodré sobre a trajetória cultural negra

na diáspora, “reelaboravam-se ou redefiniam-se as regras originais com o objetivo de

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preservar uma matriz fundadora. A tradição afirmava-se não como uma forma

paralisante, mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma negro

na descontinuidade histórica” (grifo nosso) (1988, p. 56). Essa “tradição”, a qual

podemos ler aqui como ancestralidade, traz na possibilidade de transformação um item

fundamental.

Em resumo, a análise desses temas pode contribuir para a compreensão de alguns

aspectos da curadoria de Araujo. Nossa tentativa foi apontar esses traços, considerando o

contorno de cada um deles. Esses temas interferem com peso diferenciado em cada uma

das diversas exposições de Araujo. Não circunscritos somente ao âmbito da cultura e

história, eles acabam permeando também a sua construção de uma curadoria da arte afro-

brasileira.

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5. As exposições sobre arte afro-brasileira

A história está lá e está integrada como parte da exposição.

Às vezes o sentido dessa história está na exposição espacialmente. Se podemos ver esses objetos de outro modo, não faz sentido a exposição.

A exposição tem sentido quando cria uma conversa com os objetos de um modo que só podemos vê-los na exposição.

Maria Lucia MONTES, 2008.

O trabalho final de Araujo acontece na exposição. A comparação de algumas de

suas mostras é, pois, oportuna. Selecionamos a seguir as exposições que parecem trazer o

cerne das preocupações do autor em relação à arte afro-brasileira: a afirmação da

produção de artistas negros e afro-brasileiros focados nessa cultura.

O trabalho expositivo desse curador tem operado dentro de diversos campos da

arte e da cultura. Dentro disso, como é o objetivo já descrito neste trabalho, delimitamos

apenas as exposições sobre arte afro-brasileira e outras sobre assuntos correlatos (arte da

África). Entretanto, este trabalho não pretende fazer a análise de todas as suas mostras

sobre arte e cultura afro-brasileiras, mas pretende, todavia, apontar quais parecem ser as

principais exposições e, através delas, os caminhos do curador.

As exposições sobre arte e cultura afro-brasileiras aqui apresentadas podem ser

divididas em dois núcleos principais: primeiro, as exposições independentes realizadas

em diferentes instituições (A Mão Afro-brasileira, Vozes da Diáspora, Os Herdeiros da

Noite, Negro de Corpo e Alma); e segundo, as exposições realizadas no Museu Afro

Brasil a partir de 2004 (Brasileiro, Brasileiros; Benin está vivo ainda lá; Bijagós;

Negros Pintores, Brasil – Terra de Contrastes; De Valentim a Valentim e a exposição de

arte contemporânea permanente dessa instituição).

As exposições sobre arte da África analisadas nesse momento evidenciam o

contexto entre essa produção e as obras afro-brasileiras. Realizadas no Museu Afro

Brasil, o contexto dessas mostras de arte da África junto a obras de artistas afro-

brasileiros traz mais uma vez o imaginário da diáspora negra de Araujo. O curador,

assim, estabelece contatos para o entendimento desse universo de significação da forma

plástica da África e dos afro-americanos em toda a América.

O local em que cada uma dessas mostras foi realizada altera razoavelmente o

sentido da mesma. O percurso narrativo realizado na exposição Os herdeiros da noite na

Pinacoteca, entre obras de Rodin e outras exposições; e a Negros Pintores no Museu

Afro Brasil, entre o acervo deste museu e outras exposições sobre arte afro-brasileira,

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tem seu sentido modificado pelo contexto de cada museu. Além disso, a partir do diálogo

entre obras singulares do artista e do contexto, cremos poder compreender um pouco

mais o universo dessa curadoria.

Desse modo, nossa análise também é uma interpretação das obras dentro do

discurso da exposição de Araujo, ou seja, dentro de um sistema de relações que as

norteiam. A obra individual possui, evidentemente, diversas possibilidades de leitura

para além desse universo. No entanto, atentamos para o discurso de Araujo que se forma

no conjunto das obras. Essas peças não são apenas artifícios, mas o alimento

indispensável para a sustentação da narrativa do curador. São esses objetos individuais

que no todo compõem e alicerçam o seu pensamento. Mais do que isso, as obras são a

própria razão do seu discurso.

A Mão Afro-brasileira

A exposição A Mão Afro-brasileira (Museu de Arte Moderna de São Paulo, de 25

de agosto a 25 de setembro de 1988) obteve a visitação de cerca de 2490 pessoas52 e

resultou numa publicação de mesmo nome, focando a produção artística, intelectual e

cultural do negro no país. A mostra não se restringiu a um determinado período de tempo

ou espaço e procurou relatar a presença de artistas negros nas artes em suas mais

variadas formas.

O título da exposição, A Mão Afro-brasileira53, demarca o sentido da mostra –

evidenciar a arte produzida por artistas negros. Longe de definir uma produção com certa

característica ou tendência, o evento traz diagnósticos sobre a arte desse grupo. O seu

interesse maior foi relatar a produção desses artistas independentemente de sua

orientação estética. Desse modo, essa exposição possui forte caráter documental e

histórico. Todavia, a qualidade da produção apresentada chama atenção e cada artista

cria conexões novas e inusitadas com seus parceiros, possibilitando leituras variadas.

52 Segundo dados do MAM de São Paulo, “o público foi dividido em estudantil: 920; turismetrô: 150; visitantes: 1420. Na presente relação não estão incluídas: as presenças na noite de vernissage; o número de pessoas da FUNDACAM (Fundação Nacional de Cultura Negra e Mesc. Brasileira)”. 53 Cabe lembrar a citação direta à exposição A mão do povo brasileiro (1969), de Lina Bo Bardi, realizada também no MAN de São Paulo. Assim, a exposição de Araujo cria um diálogo evidente com a proposta de Lina Bo Bardi de quase vinte anos antes.

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Na publicação de mesmo nome da exposição, o prefácio de Joel Rufino dos Santos

(1988) aponta para três problemas ao nos direcionarmos para o estudo da história visual

dos negros brasileiros: primeiro, julgar uma obra artística depende da autoridade social

da pessoa ou do grupo; segundo, a dificuldade de identificação de personagens negras

relevantes em nossa história; terceiro, a necessidade de reescrita da história fora da

perspectiva dominante. Como diz o próprio autor: “(...) Cultura é o que os cultos dizem

ser cultura, não passando tudo o mais de folclore” (SANTOS, 1988, p. 7).

Sobre a primeira questão, no século XIX, a qualidade da obra de arte era medida

segundo padrões acadêmicos. Aspectos como anatomia, claro e escuro, composição,

perspectiva, verossimilhança, dentre outros, são métodos de pensamento oriundos de

uma cultura (européia) e classe social que compartilham desses mesmos valores. As

peças analisadas por Nina Rodrigues (1904), por outro lado, estão nitidamente

vinculadas a uma orientação estética africana. Para o período, essas peças (então em

posse da polícia de Alagoas) são objetos sem valor, pertencendo, se muito, à ciência –

como pretendeu o próprio pesquisador baiano54. Essa crítica (seja ela da academia ou, no

caso de Rodrigues, de uma elite intelectual), assim, não compreendia ao todo seu objeto.

Passamos para a segunda questão, a autoria negra na história brasileira. É fato que

a escravidão moldou grande parte da história do Brasil e afetou a nossa visão sobre uma

faculdade essencial da vida em sociedade: o trabalho. No Brasil colonial, o trabalho é

uma tarefa de negros e mulatos escravizados. O trabalho é considerado não digno por

causa do escravo, e este é considerado inferior por causa do seu ofício. Sendo o trabalho

comum desqualificado como uma tarefa de escravos, não é de se estranhar que tal

preconceito recaísse também sobre o trabalho artístico. Se o trabalho artístico não era

uma função de relevância, pensar na autoria desses artistas negros e mulatos torna-se

ainda mais difícil. É importante salientar que a idéia de autoria diz respeito a uma outra

noção de trabalho em que o prestígio e reconhecimento é parte relevante, o que é

incompatível com a idéia de trabalho dentro de um sistema de escravidão.

54 Pertencente a essa exposição, vale atentar para a pintura de Domingos Teodoro de Ramos, O cabo Chico Diabo do diabo Chico deu cabo (1908). O quadro é uma representação sobre a Guerra do Paraguai, figurando a vitória brasileira pelas mãos de um negro. Essa foi a única obra do artista que restou da destruição e descaso. Grande parte da arte nacional foi relegada ao esquecimento por questões diversas independentemente de sua autoria. Todavia, as classes pobres e negras são provavelmente as que mais sofreram com tal ação. Desprovida de discurso que possa legitimar sua produção, bem como de mecanismos para introduzi-la em locais de prestígio, essa arte se tornou objeto dos dispositivos críticos do grupo dominante.

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No final do século XIX, Luis Estrada Gonzaga-Duque já descrevia que:

(...) sendo as profissões letradas as que maior interesse despertam ao brasileiro, é claro que a arte, considerada até há pouco tempo um desprezível ofício de negros e mulatos, medava em país onde não estão ainda desenvolvidos os luxos e o bom gosto, ficasse destinada as classes pobres, aquelas que não podiam educar convenientemente seus filhos para fazê-los entrar nas academias (Gonzaga-Duque apud CHIARELLI, 1995, p. 261).

A terceira questão de Joel Rufino dos Santos aborda a criação de uma nova história

do negro no Brasil. Fortalecer ou mesmo criar essa história, cultura e arte se dá num

momento de revisão em que o passado não pode ser estático. Como o curador Araujo

afirma: “Tornou-se necessário revelar quem negro foi e quem negro é e, para um povo

emergindo do terrível estigma da escravidão, essa afirmação tem uma grande relevância” 55. Longe de uma visão que limita a presença do negro apenas no Brasil colonial,

atomizando sua importância, Santos pretende situar o passado em uma nova perspectiva

frente ao presente. Esse tema passa, mais uma vez, pela noção de memória e de

reconhecimento do negro dentro de nossa sociedade. As artes plásticas, mostrando

concretamente a sua produção, contribuem sobremaneira para o objetivo de uma nova

memória e identidade.

Assim, buscando compreender toda a história do negro no Brasil a fim de refazê-la,

a exposição e publicação A Mão Afro-brasileira adquire uma conotação extremamente

enciclopédica. Revisitando personagens e temas do século XVIII até o XX, a

preocupação dessa mostra foi resgatar, materialmente, um conhecimento submerso. A

exposição foi dividida em quatro áreas: 1. O barroco e o rococó; 2. O século XIX – A

academia e os acadêmicos; 3. A herança africana e as artes de origem popular; 4. Arte

contemporânea. Como esses títulos sugerem, ela parece ser uma tentativa inicial em

compreender a história da arte de autoria negra no decorrer de largo período histórico.

Mesmo quando a produção de um artista negro não possui relação imediata com

sua origem étnico-racial (como alguns desenhos de Octavio Araujo), a sua presença

estava marcada nessa exposição. A tentativa da exposição é demonstrar a diversidade de

experiências dentro desse grupo. Se em alguns casos isso pode ser visto como alienação

55 No original, “it became necessary to reveal who blacks were and who blacks are and, for a people emerging from the terrible stigma of slavery, why this affirmation had such great relevance” (tradução nossa) (Emanoel Araujo apud BRAZIL: BODY & SOUL, 2001, p. 1).

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de sua origem étnico-racial, em outros pode mostrar como esses artistas pensam diversos

problemas ao seu redor, inseridos como estão em um outro contexto.

Uma exposição de artistas negros, à primeira vista, pode recair em esteriótipos

sobre a iconografia mais recorrente da arte da África mostrada no ocidente. No entanto,

embora grande parte das obras tenha mostrado proximidades com a estilística africana

tradicional, a variação e orientação estética de cada artista é marcante. Vale citar uma

nota sobre essa característica:

(...) os que esperavam encontrar signos baseados nos símbolos do candomblé e da macumba, ou vestígios dos desenhos tribais africanos, ficarão decepcionados. Estas marcas estão na exposição, mas não se constituem no motivo da exposição. Ao contrário, é uma mostra organizada contra todos os preconceitos, pois reconhece o direito do artista e do intelectual de organizar, estruturar e imaginar a sua produção a partir de sua problemática pessoal. E está é determinada apenas por ele mesmo. Não existe um catálogo de questões negras que torne obrigatório determinados temas (J. K., 1988).

Na contemporaneidade, um modelo artístico, um “catálogo de questões”, parece

não ditar a forma da arte de um artista. A arte, assim como a experiência cultural, é um

campo onde a experimentação e intercâmbio de experiências é ponto fundamental para

sua sobrevivência. Essa atividade, entretanto, nem por isso está isenta de ser atingida por

problemas de ordem política e ideológica. Em outras palavras, a liberdade do artista

esbarra em pormenores que podem minar sua escolha.

Se é certo que um artista negro pode escolher a orientação estética que melhor se

adaptar, também é verdade que problemas históricos e sociais agem em sua escolha.

Desse modo, realizar uma pintura sobre óleo pode ser mais promissor do que realizar

esculturas de madeira comumente chamadas de fetiche séculos atrás. Cada um desses

objetos possui uma área de circulação e exposição própria, nem sempre condizente com

os mesmos interesses do seu entorno.

Uma outra crítica sobre a exposição de 1988 aborda o problema sob outro ângulo:

O critério para a escolha dos artistas, como admite Araujo, não está ligado às preocupações estéticas dos autores de buscar uma linguagem própria, calçada na ancestralidade africana, mas apenas na cor da pele dos pesquisados. Se por um lado a opção é importante para arrancar da penumbra artistas desconhecidos, como o excelente Francisco Pedro do Amaral, autor do quadro mais famoso da marquesa de Santos, batizado Retrato de Dona Domitila, por outro demonstra a dominação cultural a que foram submetidos os negros, principalmente a partir do século XIX, obrigados a reproduzir os cânones europeus. Essa submissão ao pensamento “branco” está presente em toda a mostra, seja nas obras da academia do século passado, seja na produção

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contemporânea, de modo a deixar pouco espaço para que se perceba a verdadeira “mão afro-brasileira” nas obras expostas (grifo nosso) (BARREIRA, p. 140, 1988).

A partir do descrito, resta analisar o significado da afirmação “submissão ao

pensamento “branco”. Submeter é render, anular. É permitir a dominação e a aceitação

da situação de subalternidade. De certo modo é possível constatar que dentro dessa

lógica há uma possibilidade de escolha em aceitar ou não o estado de submissão ao

“cânone europeu”. Ora, esse conceito de submissão parece não descrever com nitidez

qual o sentido da dominação no Brasil colonial.

O “cânone europeu” não é alternativa a ser escolhida. Muito pelo contrário, ele se

apresenta como único vetor possível dentro do conjunto de normas que compõem aquela

época. Essas normas não são impostas, não são enunciados diretos. Elas constituem-se

como um sistema de significados, de verdades, que dificilmente permite fuga. Assim, o

artista negro não escolhe conscientemente por modelos de produção artística, mas “deve”

operar dentro desse modelo. Comentando as exposições de Araujo e seus artistas, Maria

Lucia Montes diz que:

A partir daí há uma série de outras questões a respeito da história da arte, dos estilos. Como definir isso? Quem são essas pessoas? É preciso ter muito clara essa perspectiva histórica na cabeça. E através da história e da produção plástica desses artistas acabamos entendendo inclusive por que o Brasil é um país racista do jeito que é. Você pega o Estevão Silva. Ele tinha condição de pintar qualquer coisa que o identificasse enquanto identidade étnica? Não tinha. Em compensação, se notamos o Athaíde, branco, vemos aqueles mulatos lá, que são filhos dele. Não há só o contato, tem uma mistura muito grande. Não dá muito para separar o que é negro e o que é branco na cultura brasileira. E, no entanto, há uma hierarquia muito nítida. A ponto de, se deu certo, deixou de ser negro. Naturalmente assume que é branco. Na verdade o Athaíde tem legitimidade para representar o negro, embora não seja negro e, provavelmente, porque não é negro. Se fosse negro ele não teria jamais essa liberdade (MONTES, 2008).

Para esses artistas negros da academia do século XX, não se submeter ao “cânone

europeu” significa se excluir de um conjunto de valores e normas de acesso aos

benefícios do topo de uma sociedade. É retirar-se dos signos que representam a

civilização e direcionar-se para a “barbárie”, que era a arte de negros e índios,

pertencendo a um circuito menos prestigiado. Não é por menos que as esculturas

estudadas por Nina Rodrigues (1904) faziam parte de um acervo policial. Isso demonstra

que essa produção estava muito longe de pertencer ao discurso erudito sobre as artes

plásticas. Pela sua orientação estética ela não poderia ser considerada arte, mas apenas

objeto do domínio da ciência ou do acervo policial.

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Esse discurso depreciativo sobre as artes de negros e índios somente começa a se

alterar em meados do século XX. Mesmo assim, é possível dizer que essa aceitação

nunca foi completa no museu de arte. Dessa forma, o debate sobre os critérios utilizados

para apresentar essa arte em museus é ainda complexo, mostrando os limites do discurso

da crítica de arte para compreender o fenômeno estético para além dos muros eruditos.

Em 1988, a exposição A mão afro-brasileira do curador baiano mostrou algumas

características que o acompanham até hoje. A atenção sobre a autoria do artista negro, a

construção de uma história da arte focada na produção de arte afro-brasileira e a

efetivação disso no ato expositivo parece ser a maior conquista do seu trabalho nesse

momento. Reunindo os seus esforços numa mostra ambiciosa, Araujo mostrou ao

público a sua visão sobre a arte e cultura dos grupos negros. Além disso, ele pretendeu

pensar a produção de artistas negros em grande parte desconhecidos do público. A

concretude de sua coleção, exposta na mostra, trouxe para o universo do museu uma

outra perspectiva sobre arte e cultura afro-brasileiras fora dos conceitos ocidentais e

científicos sobre esse grupo.

Vozes da Diáspora

A exposição Vozes da Diáspora (de 26 de novembro de 1992 a 20 de janeiro de

1993), mais focada nas artes plásticas, foi dividida em diversas partes: 1. Os pintores do

século XIX; 2. Altares emblemáticos de Rubem Valentim; 3. Brasil África Brasil – mostra

homenagem aos 90 anos do fotógrafo e etnólogo Pierre Verger; 4. Arte ritual do

candomblé; e 5. O inconsciente revelado (mostra sobre a obra do escultor Agnaldo

Manoel dos Santos).

Emanoel Araujo, então diretor da Pinacoteca do Estado, foi um dos curadores

dessa exposição junto com José Teixeira Leite, Olivio Tavares de Araujo, entre outros.

Cabe prestar atenção nos artistas da exposição como os pintores negros da academia do

século XIX, o pintor e escultor Rubem Valentim e o escultor Agnaldo Manuel dos

Santos. Ao agrupar esses artistas, Araujo cria uma narrativa sobre a arte de procedência

negra no Brasil. Não sendo homogêneas, o que chama atenção em cada uma dessas

experiências artísticas são justamente as diferenças. A mostra também homenageou o

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artista e antropólogo Pierre Verger (renomado estudioso da religião e da diáspora negra

no mundo).

Se antes o foco era a autoria negra, essa exposição se constituiu mais como a

tentativa de compreender uma produção de arte afro-brasileira, preocupada com a forma

e contexto da experiência negra no Brasil. Vale observar as diferenças e meandros desses

trabalhos.

É certo que cada um desses artistas traz problemas próprios advindos de seu

momento histórico e social. As possibilidades experimentadas por cada um deles é

também fruto de sua sociedade, sendo dificilmente realizável em outro momento e local.

O nosso objetivo, todavia, prossegue em tentar compreender como esses dilemas podem

ser estudados na mostra de Araujo. Ao fixar lado a lado essas obras no museu, o

problema contextual é parcialmente anulado, deixando a leitura dessas obras ainda mais

próximas. O ato expositivo não exclui o conhecimento do momento histórico da obra,

mas altera a sua percepção, fazendo com que a obra seja percebida em uma narrativa

específica.

Desse modo, reduzindo parcialmente o contexto histórico e focando a forma,

podemos supor as diferentes estratégias de criação de uma iconografia pessoal em alguns

artistas.

Entre os artistas da academia do século XIX nos deparamos com diversas

orientações. Embora a Academia Imperial de Belas Artes tenha se tornado um bloco

homogêneo para a crítica dos modernistas da década de 1920, houveram diferentes

experiências para diferentes objetivos dentro dessa mesma escola. Por exemplo, se o uso

da linha e da composição está muito bem representado na virtuosidade de Estevão

Roberto Silva (1845-1891), no caso de João Timótheo da Costa (1879-1932), o interesse

pela cor ambiente e pelos fenômenos da luz, tema próprio do impressionismo, é mais

pungente.

João Timótheo procurou conhecer os segredos da representação pela luz e

semelhança, não fornecendo muitos dados sobre um pensamento a respeito do negro no

Brasil. Ele está voltado para a apreensão de um estilo pessoal que o distinga, fortemente

baseado nas correntes impressionistas e expressionistas que conheceu de perto na

Europa.

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Não pretendemos inferir que João Timótheo ausentou-se de pensar em sua

singularidade étnico-racial dentro da academia. Afirmar esse fato depende de um estudo

mais aprofundado da obra do artista. Em todo caso, parece-nos que o principal interesse

desse artista foi compreender e apropriar-se da técnica da pintura em sua mais alta

instância. José Roberto Teixeira Leite, comentando o trabalho dos artistas negros

acadêmicos dessa exposição, revela que eles

(...) não deixam entrever, através de suas obras, qualquer traço, ainda que remoto, de suas raízes africanas, de sua ancestralidade, como inclusive parecem repudiá-las, ou ao menos cuidadosamente disfarçá-las, ao adotarem como meio expressivo, a pintura; como técnica, a boa cozinha pictórica (José Roberto Teixeira Leite apud VOZES DA DIÁSPORA, 1992, p. 5).

O pesquisador apenas exclui dessa perspectiva a obra de Estevão Roberto da

Silva, apoiando-se na análise de Luis Gonzaga-Duque Estrada sobre o pintor negro.

Como pudemos mostrar anteriormente, não nos parece que a crítica de Gonzaga-Duque,

relacionando expressão artística e condição étnico-racial, seja adequada para

compreender esse artista acadêmico. A crítica deste traz ainda resquícios deterministas e

evolucionistas sobre a obra de Estevão Roberto da Silva.

Por outro lado, se a forma de todos esses pintores já estava em grande parte

comprometida com uma orientação estética européia, talvez seja pertinente observar as

pinturas de personagens negros de Arthur Timótheo da Costa. Ao que parece, embora

não sejam muitas pinturas, esse pode ter sido um indício e tentativa de Arthur Timótheo

em se aproximar de sua condição étnico-racial em uma sociedade que negava a todo

momento essa possibilidade.

Por sua vez, a representação de Rubem Valentim (1922-1991) traz à tona signos

de uma religiosidade afro-brasileira. O artista utilizou a sua experiência ocidental para

criar uma visualidade comprometida e afro-brasileira. Olivio Tavares de Araujo,

comentando a obra do pintor, mostra que “às raízes nacionais e o universo

deliberadamente circunscrito, residem, em Valentim, no recurso à signos das religiões

afro-brasileiras, especialmente o candomblé, às chamadas ferramentas do culto, às

estruturas dos altares, aos símbolos dos deuses, etc., que ele transpõe para seu próprio

campo de trabalho erudito”. Em continuidade a esse comentário, destacando o seu

contexto na história da arte, o crítico diz que “Valentim é, evidentemente, um artista

construtivista, em quem a ordem e a estrutura predominam sobre qualquer impulso

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emocional de superfície, sendo a organização do espaço a regra essencial” (Olivio

Tavares de Araujo apud VOZES DA DIÁSPORA, 1992, p. 12).

Em relação à obra do artista Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962), é possível

notar que a escultura deste guarda conexões com obras tradicionais da África. O jovem

escultor criou um imaginário que chamou a atenção de diversos críticos no Brasil

(Francisco de Castro Ramos Neto, 1994; Clarival do Prado Valladares, 1988, 2004, etc.).

Alguns desses críticos usaram o conceito de ancestralidade para situar essa

proximidade com uma produção africana. Como vimos, o termo ancestralidade parece

dizer respeito a um conhecimento inato, quase instintivo. Não é exatamente isso que

constatamos ao estudar sua biografia. Agnaldo foi aprendiz do mestre Biquira Guarany,

escultor de carrancas para barcos no rio São Francisco. As carrancas de Guarany, embora

não sejam propriamente africanas, registram algo próprio dessa cultura artística56.

Apesar de ser um artista popular, Agnaldo tinha contato com artistas experientes

(ele também trabalhou com Mario Cravo Jr.). O escultor talvez compreendesse que sua

arte era diversa do cânone europeu presente na academia e nos meios eruditos. A arte de

Agnaldo, assim, longe de ser um simples sentimento de atavismo, é a compreensão do

significado de uma forma e o seu uso efetivo na contemporaneidade.

Comparando outros artistas, observamos que os caminhos de Agnaldo Manoel

dos Santos e de Rubem Valentim são semelhantes e também divergentes. O foco no

estudo de uma iconografia afro-brasileira é um fenômeno de afinidade entre ambos. Por

outro lado, a divergência se deve à forma de apropriação dos elementos necessários para

a criação dessa iconografia.

Se Agnaldo nutre-se de uma iconografia ligada à escultura popular com indícios

da experiência africana, Valentim explora outro percurso. Este abstrai das correntes

56 Tal problema nos remete a pensar como os negros no Brasil apreenderam e preservaram sua cultura material. Os africanos escravizados, em geral, vieram desprovidos de bens materiais. Para esses, somente restava seu corpo. Todavia, a sua cultura não estava apenas em seus pertences, mas em sua memória. Os negros africanos ao chegarem ao Brasil traziam o seu conhecimento a respeito da metalurgia, lavoura, caça e também sobre a criação de esculturas e obras de arte. Embora os objetos artísticos africanos no Brasil colonial fossem tratados como fetiches, isso não impediu que seu aprendizado, clandestino, continuasse nos terreiros de candomblé. Do mesmo modo, o ensino dessa técnica podia ser realizado, de modo não sistematizado, por aprendizes autodidatas em contato com exemplos dessa espécie de arte. Este era um aprendizado paciente e constante tanto do olhar como também da prática de esculpir. Recorrer ao conceito de “ancestralidade atávica”, presente também no catálogo da exposição por um autor desconhecido (apud PARA NUNCA ESQUECER, 2002, p. 242), portanto, talvez não defina com precisão essa experiência, que é cultural e não biológica.

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internacionais da arte os seus elementos para reutilizá-los dentro de uma visualidade

pessoal sobre os signos do candomblé. São dois percursos diferentes, reflexos da

experiência de cada artista, que também se refletem na crítica sobre eles. Enquanto a

crítica de arte se refere a Valentim como um artista erudito que domina a forma em seu

momento mais vanguardista, o concretismo, no caso de Agnaldo, as definições de artista

ingênuo e “instintivo” são recorrentes.

Por fim, a mostra Vozes da Diáspora, não se atendo apenas à ascendência negra,

preocupou-se em mostrar a produção de artistas que trabalharam de diversas formas

temas relacionados a uma visualidade de arte afro-brasileira. Como podemos perceber

pelo tema de cada exposição, Araujo parece tentar realizar um esboço a respeito das

diversas facetas do negro na arte no Brasil.

Os Herdeiros da Noite – Fragmentos do imaginário negro

A exposição Herdeiros da Noite – Fragmentos do Imaginário Negro (de 3 de

dezembro a 15 de janeiro de 1995, Pinacoteca) foi realizada em São Paulo, Belo

Horizonte e Brasília. Assim como cita o título da exposição, “fragmento” é parte de algo

maior, que se imagina completo, inteiro. O fragmento está para o todo assim como o

todo é o conjunto de suas partes. Como um quebra-cabeça de peças cambiáveis, a cada

momento podemos construir uma nova imagem dessa completude. Como diz Lilia

Schwarcz sobre a exposição: “o passe de mágica é mostrar que fazemos parte de um

universo cultural que, nos transcende, é miscigenado, e impõe inesperados ganchos entre

culturas que ora parecem distantes, ora surgem bem ao nosso lado” (sic) (grifo nosso)

(1995, p. 37).

A miscigenação cultural a qual se refere Schwarcz é justamente a capacidade de

alterar as peças do jogo sempre que for preciso. Assim, pela exposição Herdeiros da

Noite, somos convidados a comparar, analisar, questionar e apreciar o quanto a

concretude dessas partes nos diz sobre a cultura e arte afro-brasileiras.

Presentes na exposição, os santos chamados de Nó de Pinho do interior de São

Paulo trazem marcas desse percurso repleto de sobreposições. Objetos feitos por negros

nos séculos XVIII e XIX, embora tenham uma iconografia católica, sua feitura está

imbuída de gestos próprios da técnica de escultura africana. Se a figura representada é

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parte do imaginário católico, a forma de representação dessa é em grande medida afro-

brasileira. Essa representação mostra, evidentemente, o quanto de novos atributos

africanos recaem sobre uma figura, a princípio, ocidental, modificando também o seu

sentido como um todo. Como afirma Francisco de Castro Ramos Neto sobre esses

objetos, “a redução esquematiza drasticamente a figura esculpida, normalmente

geometrizando-a. Tais atributos estéticos ocorrem em ambas as expressões artísticas, na

africana como nesta singular imaginária paulista” (apud OS HERDEIROS DA NOITE,

1994, p. 53).

Cabe ressaltar que o discurso sobre mestiçagem cultural citado por Schwarcz,

todavia, dentro da exposição, não impede a sua compreensão enquanto território de

conflito. Nesse sentido, a apresentação de Maria Lucia Montes no catálogo da mostra

Herdeiros da Noite exacerba a necessidade de compreensão e reconhecimento não

apenas da cultura afro-brasileira, mas também de seus indivíduos no plano político:

Está é, sem dúvida, uma arte marcada pela dor e a humilhação inominável do passado de escravidão do negro no Brasil. Mas é também uma arte que mostra a força dessas culturas africanas, que se dissimula e permanece, desapercebida, na insignificância dos gestos quotidianos, da vestimenta, dos hábitos alimentares ou da linguagem do afeto, assim como na gratuidade da festa, da devoção ou da simples criação de algo que é belo (...) (Maria Lucia Montes apud ARAUJO, 1995, p. 12).

De modo semelhante, a fala de Araujo revela tanto o sincretismo quanto a

violência intrínseca desse processo histórico: “A absorção, complexa, desde os tempos

mais remotos, da cultura africana pelas sociedades escravistas; uma absorção que, de tão

antiga, nem mais é percebida; uma cultura que, contornando os mais opressores

obstáculos, poude continuar resistindo, existindo e se renovando continuamente” (sic)

(grifo nosso) (apud OS HERDEIROS DA NOITE, 1995, p. 13).

A afirmação das diversas polaridades culturais brasileiras, que são também

sociais, em divergência com a visão unificadora da mestiçagem, pode ser constatada em

Wilson do Nascimento Barbosa quando este aborda a cultura: “(...) sabe-se que não

existem culturas miscigenadas. O que há são culturas dominantes e dominadas, em que

os valores de umas são impostos por mecanismos institucionais sobre os valores das

outras. Nessas condições, a estrutura de poder define quais os valores ou rituais das

culturas dominadas que podem ser mantidos e a que custo” (grifo nosso) (2002, p. 47).

Esta perspectiva nega o sincretismo ou miscigenação cultural como resultado

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harmonioso de culturas diversas; o vê como dinâmica de forças de poderes desnivelados

e em constante atrito.

Essa crítica política (“contornando os mais opressores obstáculos”) não está

somente na curadoria afro-brasileira de Araujo, mas é fomentada pelo próprio espaço que

ocupa, ou seja, o museu. A ação de exposição, sendo um ato destinado à esfera pública,

acaba por evidenciar esse conflito e debate.

Alguns dos destaques dessa mostra são as obras de Agnaldo Manoel dos Santos,

Nino, Maurino Araujo, Mestre Didi, Ronaldo Rego, Rubem Valentim, o próprio curador

Emanoel Araujo, Jorge dos Anjos, Hélio de Oliveira, Edval Ramosa, Genilson Soares e

Rosana Paulino. Se a composição geral da mostra tem artistas já recorrentes da curadoria

de Araujo, há também outros artistas novos que começam a trazer novas vertentes de

ação e investigação.

Dentre esses novos artistas, podemos citar a obra de Genilson Soares e Rosana

Paulino. Embora atuando sobre diversos suportes, essa parece ser uma das primeiras

mostras de Araujo em que vemos trabalhos contemporâneos usando o formato da

instalação. Esses suportes trazem outros problemas se comparados à forma de

representação da arte afro-brasileira da obra de Rubem Valentim e Agnaldo Manoel dos

Santos, muito mais focada na iconografia e técnica de trabalho (próximo do universo

africano). Os artistas Soares e Paulino não se utilizam de uma iconografia e estrutura

formal que remeta à experiência africana no Brasil. Essa diferença, entretanto, não os

afasta de propor conexões artísticas sobre a realidade étnico-racial brasileira e de, até

mesmo, serem considerados como artistas afro-brasileiros. É dentro desse campo que

eles se inserem na exposição de Araujo.

A obra de Rosana Paulino feita com pequenas almofadas remetendo a patuás, com

antigas fotos em preto e branco retocadas com cor, revela um passado enigmático. A

constituição desse passado apoiado em imagens anônimas, fugidias, mostra-se num

trabalho incessante de aproximação em direção a uma história desconhecida. As

pequenas almofadas, macias, costuradas pela artista, dispostas lado a lado, tentam criar

uma genealogia de pertencimento que não é mais possível solucionar. Essa iconografia é

factível somente como ficção. Além disso, as imagens, que se repetem, sugerem a

possibilidade de câmbio a cada mostra. A mudança de sua ordem pode reordenar essa

mesma genealogia e narrativa (Imagem 2.5).

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Rosana Paulino se apropriou dos métodos da arte – erudita e ocidental – para

analisar a imagem contemporânea sobre o negro no Brasil. Desse modo, a artista

demonstra que não é apenas incorporando a forma e iconografia de arte afro-brasileira,

como fez Rubem Valentim e Agnaldo Manoel dos Santos, dentre outros, que podemos

formular problemas sobre o universo do negro no Brasil. A artista apresenta outra

possibilidade dentro da narrativa de arte afro-brasileira de Araujo.

A instalação de Soares (sem título – da série Orum, Aiyé, Espaços e Interstícios)

remete a signos ambíguos. Inicialmente, a imagem de uma nuvem azul, fixada na parede,

é própria de desenhos estilizados da cultura de massa. A imagem circular no chão é mais

emblemática e misteriosa. Entre ambas, há uma seta retilínea (de madeira ou metal) que

toca cada superfície. O título da obra cita o Orum (do ioruba, significa “morada dos

orixás”); e o Aiyé (“o local dos homens”). A nuvem pode remeter ao Orum, por sua vez,

o Aiyé seria a figura que ocupa o chão, o território dos homens. Esse é um entendimento

possível que, todavia, revela uma forma ocidental de atribuição de valores e significados.

O candomblé não distingue a separação entre céu e terra como na religião cristã;

acontece até mesmo o contrário. Durante o ritual, seus adeptos se voltam à terra

(deitando sobre o solo) em sinal de reverência aos seus ancestrais. A divisão entre o

Orum e o Aiyé, assim, se dá no plano horizontal e terreno. Por outro lado, a imagem

estilizada da nuvem azul de Soares brinca com ícones jocosos, um flerte entre universos

díspares – a religião do candomblé e a cultura de massa.

A religião é um fenômeno presente nas obras de vários artistas da exposição. Dois

deles, Mestre Didi e Rubem Valentim, apresentam uma produção muito próxima dessa

manifestação, embora tenham caminhos distintos57.

A obra de Rubem Valentim nutre-se do candomblé como fonte de signos para seu

trabalho. O artista desconstrói e constrói uma estrutura de significados entre a história da

arte e a religião. A intenção de Valentim é reordenar esse conteúdo num espaço

destinado à contemplação em grande parte estética – o museu de arte. Como artista, é

conhecedor dos mecanismos e dispositivos que compõem o sistema da arte. Seu objetivo

é adentrar esse espaço, inserindo algo que não é próprio do museu – a visualidade do

candomblé. O uso dos signos sagrados do candomblé em Rubem Valentim é a tentativa

do artista em compreender, num processo pessoal, plasticamente esse universo.

57 Os artistas Emanoel Araujo, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos também participam da exposição com obras influenciadas pelo candomblé.

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Mestre Didi (1917-) é um artista oriundo do terreiro de candomblé. Primeiramente,

suas peças não são destinadas ao museu, mas ao espaço de culto dos orixás. Por um

processo de desvio e devido à pertinência estética dessas peças, o museu acaba

apropriando-se de sua arte. Para o artista, a criação está pautada na continuidade de uma

forma de representação litúrgica. A qualidade da produção de Mestre Didi denuncia sua

habilidade em criar e recriar signos. Mesmo sendo obras inspiradas na liturgia, elas se

apresentam como objetos promissores para o museu. A complexidade da obra de Mestre

Didi também foi analisada por Juana Elbein dos Santos, afirmando que nessa produção

“o conceito estético é utilitário e dinâmico. O belo não é concebido como um mero

prazer estético, mas participa de todo um sistema. Os objetos tem uma finalidade e uma

função” (sic) (apud OS HERDEIROS DA NOITE 1995, p. 58, 59).

Se pensarmos na definição de arte afro-brasileira proposta por Mariano Carneiro da

Cunha (1983), Rubem Valentim é o artista erudito que utiliza sistematicamente a

iconografia do candomblé em sua obra; já o caso de Mestre Didi diz respeito ao artista

que faz parte da liturgia do culto, é um artista ritual de arte afro-brasileira.

A obra desses artistas recorre à religião como elemento de criação e recriação de

significados para a arte afro-brasileira. Dentre as manifestações que acompanharam os

africanos em sua travessia pelo Atlântico, a religião obteve relevância. Espalhados em

diferentes formas em todo território americano, o Candomblé, o Tambor de Mina,

Xangô, Vodu e a Santeria, dentre outras manifestações, atestam essa continuidade e

recriação de uma cosmogonia de origem na África. Sabendo dessa permanência, esses

artistas parecem refugiar-se nessa fonte como uma possibilidade de encontrar e organizar

uma experiência plástica relevante de significados à arte afro-brasileira.

Essa mostra trouxe para primeiro plano questões sobre diversidade de suportes e

contemporaneidade para o pensamento do curador. Ao incluir esses novos formatos, o

curador mostrou ser possível pensar em problemas da representação e presença do negro

nas artes plásticas do Brasil para um patamar diferente do analisado até então por alguns

estudiosos.

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Negro de Corpo e Alma

A mostra Negro de Corpo e Alma (2000), realizada no Parque do Ibirapuera,

Pavilhão Manoel da Nóbrega (mesmo espaço hoje ocupado pelo Museu Afro Brasil), faz

parte do evento maior chamado A Mostra do Redescobrimento, em comemoração aos

500 anos de “descobrimento” do País.

Ao que parece, a realização da mostra Negro de Corpo e Alma foi a concretização

de um projeto antigo do curador. A intenção de realizar essa exposição parece ter seus

primeiros indícios quando, já em início dos anos de 1990, o então curador da Pinacoteca

de São Paulo ambicionava criar um centro de memória sobre a arte, cultura e história do

negro no Brasil. Essa tentativa, de criação do Museu do Imaginário do Povo Brasileiro

foi interrompida antes de se tornar realidade58. Essa exposição parece ter sido a

confluência do esforço de Araujo e de uma grande equipe objetivando tornar visível esta

coleção sobre a visualidade afro-brasileira. Por sua vez, esse esforço desembocou, anos

mais tarde, na utilização desse mesmo espaço pelo Museu Afro Brasil.

Sobre o interesse da curadoria em relação a Negro de Corpo e Alma, como

descreve o próprio Araujo, vale citar o quadro O retrato do Marinheiro Simão, de José

Correia Lima (1814-1857). Como podemos notar, essa figura revela uma outra faceta da

representação do negro em fins do século XIX. Não há a imagem do negro escravo ou

exótico, mas a de um homem em sua inteira humanidade. Esta característica é negada ao

negro na maior parte das imagens produzidas no período. Em seu lugar temos imagens

recorrentes de negros e africanos escravizados, mais objetos do que homens59.

Partindo dessa preocupação, o estudo da representação do negro na arte brasileira

pode ser percebido nas três vertentes da exposição: Olhar o Corpo, Olhar a Si Mesmo e

58 Oswaldo Camargo: “fui conselheiro do Museu do Imaginário que deveria ter acontecido nesse local onde nós estamos (Estação Pinacoteca), fato que participei durante 8 meses e que não gorou, vejo que muito do que acontece no Museu Afro Brasil já estava ali contido. Ele [Emanoel Araujo] retrabalhou muita coisa. Absorveu, aumentou, ampliou. Eu considero o Museu Afro Brasil fruto de toda essa experiência do Emanoel” (CAMARGO, 2008). 59 Comparando duas obras nesse período, o texto de Araujo analisa que “na Academia Imperial de Belas Artes, todavia, duas obras chamam a atenção de modo especial, uma pela relativa raridade, outra pelo caráter emblemático. A primeira é uma imagem de um líder abolicionista, o Retrato do Marinheiro Simão, o Carvoeiro, de José Correia Lima (1814-1857), pouco comum para a época. A segunda, ao contrário, é o famoso quadro a Redenção de Cam, do pintor Modesto Brocos, que representa de modo exemplar a postura ideológica característica do pensamento social que se difunde a partir do século XIX, ao aludir de forma alegórica ao branqueamento (...)” (Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 46).

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Sentir a Alma. Essas maneiras de aproximação a esse conjunto de peças sobre o negro na

arte brasileira revela algumas formas de compreender sua presença.

Olhar o Corpo se refere a obras que se destinam a um modo de retratar o negro a

partir de estereótipos ocidentais. O princípio dessa visão parece exotizar a imagem do

negro. Esse, em quase tudo, é inverso ao homem ocidental. O universo africano e de seus

descendentes é de alteridade, exotismo e magia para os olhos europeus. Alguns dos

artistas presentes nessa vertente da exposição são desenhistas, gravuristas e fotógrafos

como José Conrado Roza, Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Carlos Julião, Thomas

Ender, Victor Frond, Joaquim Lopes de Barros, Marc Ferrez, Christiano Júnior, Gaensly,

entre outros.

Comentando os trabalhos de pintores estrangeiros nessa mostra, o curador descreve

que:

(...) as gravuras de Rugendas ou Debret (...) constroem imagens idílicas de negros, em posturas serenas, contra o pano de fundo de uma paisagem exuberante, não são por isso menos cruéis, recusando-lhes em nome de um olhar exotizador uma identidade ou um lugar próprio na sociedade em que vivem (grifo nosso) (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 48).

Nesse mesmo sentido, Muniz Sodré em trabalho sobre a dinâmica cultural negra

afirma que:

(...) emerge daí uma semiótica da monstruosidade: para a consciência subjetiva, epidianizada, o “afro” é um homem que a consciência eurocêntrica não consegue sentir como plenamente humano; é, como o monstro, não desconhecido, mas um conhecido que finalmente não se consegue perceber como idêntico à idéia universal de humano (grifo nosso) (SODRÉ, 1988, p. 160).

Mesmo quando tratamos do Brasil, a proximidade de conceitos permanece.

Recorrendo ao período colonial, é possível dizer que o africano escravizado no Brasil é

um ser incompleto pela sua condição social. A condição de escravizado não permite que

ele seja totalmente para ele mesmo, mas somente em relação ao outro, seu senhor. Este

detém todos os predicados da ação do escravizado, faz com que o escravizado exista em

benefício do escravizador. Se o escravizado não possui direito sobre seu próprio corpo,

também não o detém sobre sua imagem. Toda a imagem do escravo passa a ser a imagem

do escravizador sobre o escravizado, do europeu sobre o africano, do branco sobre o

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negro. Mesmo quando esses apresentam “imagens idílicas de negros”, o alheiamento é

um componente presente.

Olhar a Si Mesmo apresenta como o artista negro vê a sua própria imagem. Nesse

contexto, objetiva mostrar o negro a partir de sua experiência sobre o mundo e seus

pares. Em consonância com seu momento, a imagem do negro produzida sobre si se

baseia em muito na imagem que os brancos possuem sobre esses primeiros. Através da

história, impulsionada pela ciência européia, o conjunto de idéias que descreve os povos

africanos como “atrasados” e “bárbaros” se tornou uma “verdade” até mesmo para suas

vítimas: “(...) essas imagens refletem a dificuldade da construção de uma identidade

negra, sob o peso dos estereótipos criados pelo olhar do outro” (Emanoel Araujo apud

NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p. 49)60.

Em todo caso, isso não quer dizer que esses conceitos foram absorvidos

ingenuamente pelos grupos negros. A compreensão desses estereótipos e conceitos pode

ter servido dialeticamente para a construção de uma crítica mais profunda sobre o negro

e sua auto-representação. Era preciso conhecer e utilizar as ferramentas dominantes para

então superar esses mesmos mecanismos. O quadro de José Correa Lima e parte da

produção de Arthur Timótheo atestam esse argumento. Os principais artistas exibidos

nessa exposição foram Arthur Timótheo da Costa, Rafael Pinto Bandeira, Benedito José

Tobias, Mestre Athaíde, Antonio Francisco Lisboa, Mestre Valentim, José Teófilo de

Jesus, Militão Augusto de Azevedo, entre outros.

Sentir a Alma refere-se ao todo, tenta compreender a presença do negro na

produção artística brasileira a partir de diversos artistas. Essa área tratou de mostrar

como a experiência cultural afro-brasileira impregnou de marcas a arte brasileira erudita

e popular. Sendo um setor abrangente, ele mostrou como é possível compreender essa

cultura dentro do todo da arte nacional. Desse ponto de vista, cabe tanto parte dos artistas

negros acadêmicos como alguns dos modernistas e, finalmente, os artistas afro-

brasileiros contemporâneos.

60 Em epígrafes por diversas vezes repetidas nos catálogos de Araujo, vale lembrar o texto do poeta Cruz e Souza em início do século XX: “Artista?! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longíngua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tétricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nivarnizada pelo desprezo do mundo, Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!” (Cruz e Souza apud HERDEIROS DA NOITE, 1994, p. 7).

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A seção Sentir a Alma é provavelmente a mais ambígua e complexa da mostra.

Nela, a demarcação de limites sobre um campo de atuação afro-brasileiro pode levar a

análises muito diversas sobre o significado de cada obra. Em todo caso, como o curador

afirma: “ao realizar esse percurso, propondo-se a explorar o significado de ser Negro de

Corpo e Alma no Brasil, a exposição pretende assim levantar alguns elementos que

permitam compreender o desafio da construção da identidade do negro no mundo

contemporâneo (...)” (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO E ALMA, 2000, p.

53).

Nessa mostra, foram expostas obras de Rugendas, Debret, Carlos Julião, Antonio

Diogo da Silva Parreiras, Pedro Américo de Figueiredo e Mello, José Teófilo de Jesus,

Frei Jesuino de Monte Carmelo, Aleijadinho, Mestre Valentim da Fonseca e Silva,

Estevão Roberto da Silva, Emmanuel Zamor, os irmãos Arthur e João Timótheo da

Costa, Giuseppe Pancetti, Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Lasar Segall, Alfredo

Volpi, Walter Firmo, Bauer Sá, Adenor Gondim e diversos artistas contemporâneos afro-

brasileiros.

Além disso, a mostra contou com objetos produzidos em série pela indústria de

massa. Mais do que simples objetos, esses são ícones que materializam um pensamento.

Eles concretizam na forma um arcabouço de idéias sobre o negro no Brasil e no ocidente.

Em sua maioria jocosas, essas pequenas peças ou trabalhos gráficos trazem não apenas

humor, mas sarcasmo. Emanoel Araujo diz ser essa “uma postura que reflete um juízo

pejorativo (...) encontra expressão também numa imensa produção de objetos cotidianos

consumidos em todos os tempos, onde o negro figura como fetiche, objeto destinado a

atrair boa fortuna ou portador de má sorte” (Emanoel Araujo apud NEGRO DE CORPO

E ALMA, 2000, p. 46).

Dentre os artistas, vale citar o trabalho daqueles que se desenvolveram fora do

sistema de arte convencional erudito. A obra de Heitor dos Prazeres apresenta uma

experiência diversa desse modelo. Seja no uso das cores ou na organização do espaço

pictórico, vemos um modo distinto de construção dos elementos que constituem a sua

pintura. Essa construção do espaço pictórico – não pautado na perspectiva, mas em

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linhas ortogonais, simétricas – não só demonstra a sua distância do pensamento clássico

da arte ocidental, como a possibilidade de pensar esse espaço fora de tal lógica61.

Um século antes e a arte de Heitor dos Prazeres não seria alvo da crítica de arte

especializada. Qual é o fato que permite a sua presença dentro de espaços privilegiados

da arte como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951? Ora, se a obra de

Heitor dos Prazeres pôde ser compreendida e aceita dentro do discurso oficial de arte, é

porque alargou-se a compreensão e juízo sobre essa arte. A qualidade da produção de

Heitor dos Prazeres não poderia ser compreendida sem esses pressupostos. Por outro

lado, não é somente a crítica de arte que realiza um movimento de aceitação dessa

produção. A força dessas pinturas, num período de revisão da cultura ocidental pelo

modernismo, propiciou a sua aceitação.

Cabe notar o movimento da curadoria sobre os artistas. Após a exposição A Mão

Afro-brasileira, o critério de artista negro não foi utilizado restritamente. A categoria de

autoria negra agora se cruza com o contexto e regularidade do trabalho. Tal fato é que

permite a compreensão de artistas como Carybé (Hector Julio Paride Bernabó) e Pierre

Verger dentre os artistas escolhidos. Para Araujo, essa presença não se deve ao

pertencimento racial a um grupo, mas no modo de trabalho preocupado em discutir a

representação étnico-racial do negro no Brasil. A obra de Carybé se realiza na

representação de um imaginário negro, por mais que seja filtrada por um artista

originalmente fora dessa cultura.

Diferentemente das outras exposições, não temos mais o foco na autoria negra ou

numa tentativa de realizar a análise de uma produção comprometida com signos étnico-

raciais. Esses conceitos são relevantes e estão na mostra inseridos em um contexto maior,

onde cabe o estudo da representação do negro em grande parte da história brasileira.

61 A organização do espaço pictórico dentro do diagrama da perspectiva teve seus primeiros prenúncios na antiga Grécia, mas desenvolveu-se principalmente durante o renascimento italiano no século XV. Condizente com os princípios humanistas que pensam o homem como centro do universo (assim como na perspectiva é a visão pessoal que ordena o espaço), essa técnica pretendeu organizar o mundo a partir de um método geométrico adepto das descobertas científicas do período. A experiência da perspectiva foi uma descoberta tão profunda na cultura ocidental que perdurou até início do século XIX, quando os novos princípios da arte moderna abalaram esse cânone. Os artistas europeus desse período, influenciados pelo contato com obras não-ocidentais, passam a experimentar novas soluções.

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Brasileiro, Brasileiros

A primeira exposição do Museu Afro Brasil, Brasileiro, Brasileiros (inaugurada

em novembro de 2004), se debruçou sobre diversas configurações da arte brasileira. Esse

evento aconteceu como marco inaugural do Museu Afro Brasil no Parque do Ibirapuera,

pavilhão Manoel da Nóbrega, no mesmo espaço ocupado quatro anos antes pela

exposição Negro de Corpo e Alma.

Essa exposição, por sua vez, não teve como único foco o estudo da cultura e arte

afro-brasileiras, mas sim a tentativa de compreensão da arte nacional como um todo.

Araujo parece pretender refazer uma leitura da arte e cultura nacionais pela cultura afro-

brasileira.

A análise do título Brasileiro, Brasileiros fornece dados sobre o propósito da

mostra. Pensar em unidade, Brasileiro é buscar um símbolo que contenha esse poder de

síntese – o mestiço. Ao mesmo tempo, Brasileiros pode remeter às diversas identidades

que o constituem. Não há uma relação de subordinação, mas de coordenação,

proximidade e diálogo. Por outro lado, o que é diálogo pode se tornar conflito.

Mestiçagem e diversidade de identidades, assim, são faces diferentes de um mesmo

objeto. São elementos que se implicam num mesmo jogo de tensões e trocas.

Esse debate sobre miscigenação aparece também nas obras expostas. Em meados

do século XX, Valladares já apontava que pensar na produção plástica afro-brasileira é

investigar os caminhos e contatos permanentes entre a estética de origem européia e a

africana. “A amplitude da mestiçagem das três raças no Brasil faz uma escala de valores

e atributos, manifestados também nas artes eruditas e populares, que poderíamos

identificar como caráter brasileiro” (Valladares apud NEGRO DE CORPO E ALMA,

2000, p. 448).Essa troca está marcada em obras de origem popular como também em

trabalhos eruditos.

No caso dessa mostra, talvez seja possível percorrer esse conceito em grande

parte dos objetos expostos. A obra de Glauco Rodrigues, Oxossi (1974), onde vemos

uma adepta do candomblé com as cores azul e verde desse orixá ao lado de São Jorge, é

parte direta desse imaginário. No mesmo sentido, a obra Macumba, de Arthur Bispo do

Rosário, entre o erudito e o popular, entre o excesso e a aglomeração de materiais, típica

de certos objetos afro-brasileiros (como os de Mestre Didi), pode ser um elo entre essas

experiências. Por outro lado, usando um formato mais contemporâneo, a obra de Farnese

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de Andrade (Anunciação, 1982), utilizando-se de objetos barrocos em madeira e

reordenando isso na contemporaneidade, remete suavemente a esse contexto de

disparidades e sobreposições.

O método de crítica e, ambiguamente, elogio da nacionalidade é visível na

posição de Araujo: “Brasileiro, Brasileiros não é, portanto, tão-somente um resgate da

história multirracial e multicultural do Brasil. Brasileiro, Brasileiros é, primária e

basicamente, uma forma de legitimá-la, de rememorar para nós mesmos as nossas raízes,

de onde vêm as nossas fontes, que nos alimentam e nos tornam brasileiros (...)” (apud

BRASILEIRO, BRASILEIROS, 2004, p. 11). Num outro trecho, o mesmo cita que:

(...) no fim, esta exposição é uma grande trama consciente sobre esse grande substrato inconsciente, cheia de subjetividades distintas, para falar do povo brasileiro. Cada imagem, aqui representada, tem um extraordinário poder de persuadir os nossos preconceitos, são inteiramente nossos, porque assim passivamente aceitamos o medo de assumir o que sempre foi o nosso começo, uma nação mestiça (...) (grifo nosso) (apud BRASILEIRO, BRASILEIROS, 2004, p. 10).

Reconhecer o Brasil como mestiço, nas palavras de Araujo, é mostrá-lo diverso e

conflituoso. Ao que parece, esses são os fatos que definem a sua identidade nacional. A

mestiçagem de Araujo não diminui ou camufla a condição desigual e de violência em

que vivem as diversas identidades em nosso território. Ela própria é conflito. Para ele, a

visão que pretende identificar o quão indígena, africano ou europeu há na sociedade

brasileira, exigindo o reconhecimento de cada um destes grupos separadamente, não é

oposta ao reconhecimento desta mesma sociedade como uma cultura miscigenada.

Estes apontamentos demonstram não apenas os sentidos da exposição Brasileiro,

Brasileiros e o que pode significar a identidade no Brasil, mas exibe a complexidade de

diversos pontos de vista dentro da sociedade brasileira. A mostra apresenta perspectivas

convergentes e divergentes que, em todo caso, não deixam de trazer mais sentidos e

significados à exposição, já que ela mesma se pretende propositora do debate a respeito

da identidade e/ou das identidades nacionais62.

62 Araujo parece tender a apresentar a convergência entre estes dois pontos: a mestiçagem como símbolo nacional e a necessidade de reconhecer os componentes afro-brasileiros e indígenas em igualdade diante das contribuições européias. Contudo, é importante realçar a diferença dessa mestiçagem com a de outros estudiosos. Silvio Romero, por exemplo, reconhecia a contribuição do negro, mas a considerava de relevância inferior ao colonizador português europeu. De cunho estritamente biológico, Romero via a participação do negro e do índio, através da mestiçagem, somente como elemento adaptador do branco aos trópicos (ROMERO, 2002, p. 15). Este conflito entre uma identidade nacional mestiça e as identidades

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A mestiçagem de Araujo, que é reconhecimento das diversas culturas brasileiras,

talvez se aproxime do processo complexo descrito por Antônio Sergio Guimarães: “(...) a

nacionalidade brasileira, enquanto definição de identidade racial, se construiu no último

século no espaço de representação demarcado por três pólos raciais – o branco, o negro e

o índio –, se distanciando cuidadosamente de cada um deles, ainda que tomando-os como

referência, para a definição de uma mestiçagem singular (...)” (grifo nosso)

(GUIMARÃES, 2002, p. 124).

Em outros termos, há mestiçagem, mas não a mesma que víamos no passado

(diferente da fusão visando a uma nova “raça”, longe dos “primitivos”, apontada por

Luis Gonzaga-Duque Estrada). Essa mestiçagem, símbolo do mito nacional, é abalada

pelo reconhecimento das ascendências além do território nacional. Nesse processo

sinuoso, podemos constatar o estado de transitoriedade do conceito de mestiçagem como

identidade nacional. A complexidade do conceito de mestiçagem torna visível as

complicações da identidade brasileira neste século XXI. Como local de debate, a

exposição de Araujo manifesta este estado de inquietude.

específicas dos grupos negros, brancos e indígenas nos remete a duas formas de percepção distintas da história brasileira. A primeira visão, adotada pelas elites dirigentes e por ampla parcela da população, tem seus primeiros sinais nos relatos de viajantes do século XIX e ganha contornos definidos nos escritos de Gilberto Freyre. Ela descreve a nação brasileira como resultado da miscigenação entre, principalmente, os povos negros e brancos. A segunda abordagem, originária de movimentos negros modernos e de intelectuais como Abdias do Nascimento, evidencia o racismo brasileiro como fator relevante, se não central, da distância social entre negros e brancos, o que o faz aferroar “a preservação identitária (e negação da mestiçagem) como forma de luta anti-racista e de auto-definição coletiva”(D´ADESKY, 2001, p. 73). Eis a razão porque, em geral, os grupos negros criticam a definição de mestiço. Para esses, este conceito intermediário coaduna com harmonia social, nega a diferença de status e prestígio social entre os grupos brancos e negros, além de dividir aqueles que são discriminados por serem negros ou descendentes destes. Em resumo, no primeiro caso, a mestiçagem é utilizada como identidade nacional e o princípio que norteia uma suposta harmonia entre os grupos étnico-raciais brasileiros. No segundo, a mestiçagem é denunciada como discurso camuflador da condição precária (no setor social, econômico e político) dos afro-brasileiros diante dos grupos brancos. Cabe citar o próprio Araujo sobre essa questão: “A constituição dessa sociedade luso-brasileira se construiu com uma idéia de democracia racial. Até a tese do Gilberto Freyre, de embranquecimento, da união da cor, sempre teve uma complacência de um lado e do outro, uma forma afetiva permissiva, e isso é num certo sentido o que a gente chama de brasilidade, este país mestiço que ao mesmo tempo tem preconceito social misturado. Por outro lado, isso explica que não se tenha aqui uma certa raiva, o que é bom e é ruim. Bom, porque isso forma um povo aparentemente amistoso, e ruim porque amortece a reivindicação, que poderia ser mais coesa” (SÁ, 1998, p. 46).

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Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade

A exposição Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e contemporaneidade

(inaugurada em outubro de 2007 em comemoração aos três anos de atividades do Museu

Afro Brasil) focou apresentar diversos artistas contemporâneos do Benin em dois

espaços dessa instituição.

No piso inferior do Museu, a mostra apresentou as obras de Lambus Tagor,

Zinkpe, Tchif, Edwige Aplogan, ladis e Gerard Quenum. No térreo, estavam os artistas

Charles Placide, Alphonse Yemadge, Euloge Glélé, Cyprien Tokoudagba, Aston (que

estava anteriormente localizado no piso inferior) e Pierre Verger (único representante

não pertencente a esse país), além de esculturas e indumentárias.

A nossa descrição e análise sobre a exposição é focada principalmente em relação

a sua configuração espacial. Para isso, vamos nos basear na observação da disposição das

obras expostas. O nosso objetivo é conseguir através deste estudo uma compreensão

mais detalhada da montagem da mostra. Além disso, vale destacar a mesa-redonda

realizada com os artistas e o curador dessa exposição, procurando entender o contexto

desta.

A mostra localizada no piso inferior, por se apresentar num espaço aberto, era a

primeira a ser observada pelo visitante. Contendo pinturas, esculturas, indumentárias e

desenhos, ela revela certo contraste. A exposição no piso térreo, composta por

fotografias, esculturas e desenhos sobre painéis em fundo negro mostrou um traço mais

tradicional da cultura desse país (Imagem 6.2). A proximidade das fotos de Charles

Placide e Pierre Verger estabelecem uma comparação entre passado e presente (Imagem

6.3 e Imagem 6.4). Do mesmo modo, as imagens de antigos guerreiros em bronze (autor

desconhecido) defrontam-se com as imagens contemporâneas jocosas de Euloge Glélé

(Imagem 6.5 e Imagem 6.6).

O diálogo entre cada uma dessas obras faz parte do interesse maior da mostra:

evidenciar a contemporaneidade da arte produzida no Benin e, numa escala maior, em

toda a África. Embora a mostra seja composta por obras de arte antigas, estas parecem

existir somente na medida em que podem produzir um significado em perspectiva sobre

as obras no presente. A junção entre passado e presente, assim, acaba por mostrar não

apenas continuidade estilística, mas, pelo contrário, a heterogeneidade de formas que

pode assumir a arte desse país.

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Sobre o modo de montagem da exposição, logo na abertura da mostra no piso

térreo, um bloco em diagonal divide a entrada da mostra ao acesso do visitante (Imagem

6.1 e Imagem 12.2). Ao adentrar esse espaço, vemos as fotografias de Charles Placide e

Pierre Verger e, novamente, outro painel oblitera a visão ao restante da exposição. O

visitante somente percorre toda a exposição após transpor esse segundo elemento. Ali,

podemos ver esculturas, desenhos e as vestimentas dos eguns (numa estante rodeada por

vidros e luzes pontuais). No mesmo sentido, a mostra do piso inferior (sobre um fundo

verde) apresenta-se em painéis diagonais ao visitante (Imagem 12.1).

No momento de abertura da exposição aconteceu a mesa-redonda, organizada

pelo crítico de arte francês André Jolly com os artistas Edwige Aplogan, Dominique

Zinkpe, Tchif e Gérad Quenum. A fala inicial de um dos artistas do Benin criticou o

modo como a arte da África é vista no ocidente. Para o artista, o sistema de arte ocidental

exige do artista da África características estilísticas que remetam ao imaginário ocidental

sobre o continente africano. Essa é certamente uma forma cristalizada de ver a arte da

África a partir de conceitos europeus sobre esses povos. Dentro dessa perspectiva, há

certos componentes e idéias que são africanos, mais do que outros. A arte da África

corresponderia a esculturas rudimentares talhadas em madeira, espécies de fetiches

portadores de poderes místicos. Isso significa congelar a situação social e artística da

África num estado fora do tempo e espaço. Limitar a experiência da África na arte do

passado parece mantê-la no mesmo exotismo do período colonial.

Muniz Sodré, em livro sobre a dinâmica cultural negra no Brasil, relata que:

O etnicismo ocorre também na guetificação (separação por guetos) de imigrantes ou então na turistização das diferenças, que exige das culturas do povo uma “autenticidade” (uma espécie de “alma popular”), para melhor consumi-las. Dá-se desta forma a manutenção do princípio de identidade das diferenças: o outro tem que ser outro mesmo, ou seja, autenticamente diferente, para ser positivamente avaliado (grifo nosso) (1988, p. 164).

Em continuidade à discussão, os artistas abordaram as coleções de arte da África

nos museus europeus. A posse dessas obras, produto do sistema colonial que dominou a

África diante dos países europeus, é o desdobramento desse mesmo regime na

atualidade. Para os europeus, os museus africanos não possuem instalações e métodos de

conservação eficientes para a preservação das obras. Assim, um problema técnico acaba

servindo à posse, pelo mais forte, dos objetos que reiteram o seu poder.

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Wolfgang Döpcke, descrevendo o processo de aquisição das obras da África

pelos museus europeus, revela que esta posse é marcada

(...) pela conquista colonial, pela subjugação dos povos africanos e pela perpetuação da violência colonial. De certa maneira, a presença abundante destes objetos nos museus europeus reflete a derrota histórica dos seus criadores, dos “artistas” africanos do final do século XIX. A “arte africana”, que desde essa época se encontra nos museus europeus, é uma manifestação material, talvez uma das mais visíveis, da subjugação ao controle europeu de povos outrora livres (DÖPCKE, 2004, p. 34).

Além disso, os artistas contemporâneos do Benin ponderaram a necessidade de

situar sua arte no presente quando, pelo contrário, o ocidente a vê no passado. Para eles,

há incompreensão por parte do público ocidental para situar a arte contemporânea da

África. Em geral, as imagens de máscaras e esculturas de madeira se tornaram ícones

para todo o continente. Essas passam a ser representações permanentes e contínuas da

produção artística da África no passado e no presente. Toda forma que foge desse padrão

é estranha, não compreendida como um genuíno objeto africano.

A fala de André Jolly a respeito da arte da África exacerba algumas das

aspirações dos artistas africanos contemporâneos. Para ele, a África “hoje se constrói

também em torno de conceitos senão mais seculares e mais ‘contemporâneos’, inclusive

mais políticos” (apud BENIN ESTÁ VIVO AINDA LÁ, 2008, p. 50). Do mesmo modo,

essa exposição no Museu Afro Brasil tenta delimitar um outro espaço e tempo para a arte

do Benin e da África. A definição desse novo território parece ser parte da tarefa de

desconstruir o imaginário produzido por séculos pelo museu ocidental sobre os povos

não-ocidentais.

Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau

A exposição Bijagós – A arte dos povos da Guiné-Bissau (inaugurada em 19 de

julho de 2008), localizada no piso superior do Museu Afro Brasil, apresenta trabalhos de

diversos artistas dessa etnia, originária do Arquipélago dos Bijagós na Guiné-Bissau,

oeste da África. Composta por obras feitas principalmente em madeira, a mostra

apresenta objetos que pertencem a cerimônias como a chamada vaca-bruto, uma etapa da

iniciação dos cabaros (jovens iniciados) ao mundo adulto, entre outros.

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A mostra está localizada no piso superior em território retangular do museu ao

lado do Anfiteatro Ruth de Souza. Logo à frente da exposição, um painel apresenta a

mostra com a fotografia (em preto e branco) de um Bijagó trajado em vestimenta

cerimonial. A composição desse painel com a exposição e espaço retangular mais ao

fundo expõem a profundidade do espaço em perspectiva (Imagem 8.1).

Na área principal da exposição, há um plano dividindo o espaço em dois. A

primeira atitude do observador é escolher entre um deles. No primeiro espaço à direita,

mais largo, temos esculturas em madeira representando bois, hipopótamos, barbatanas de

tubarões, adornos corporais e máscaras. Ao fundo, a exibição de um documentário

(Defunto – The spirit people, de Michel Leblanc) mostra maiores detalhes sobre os ritos

e essa etnia. No segundo espaço à esquerda, mais estreito, vemos lanças e adornos de

braço. Os painéis são brancos, exibindo em áreas vazadas o fundo vermelho sob as obras

(assim como na exposição Negros Pintores). O limite estabelecido pelo vidro impede

uma aproximação maior. A mostra não apresenta largo uso do espaço vertical e nem de

acúmulo de obras. Ela é focada numa leitura razoavelmente horizontal do tema (Imagem

8.3). Em outras palavras, exceto talvez pelo uso da cor, nos aproximamos de um

contexto de exposição de obras do museu de arte moderno.

Se na exposição Benin está vivo ainda lá estavam artistas afinados com propostas

contemporâneas de arte, a exposição Bijagós mostrou uma arte vinculada a estilos mais

tradicionais. Se, numa visão restrita e culturalmente moldada, tendemos a imaginar os

objetos dos Bijagós como artefatos de um passado distante, a exposição de Araujo nos

revela que essa arte está muito mais próxima de nosso tempo. Além disso, ela expõe,

pela concretude de suas formas, a permanência dos ritos que lhe deram origem.

Contemporaneidade e heterogeneidade são, assim, dois conceitos pertinentes para

a arte da África nas exposições de Araujo. Esta não está no passado, mas no tempo

presente e necessita de ser discutida como tal. No mesmo sentido, ela não se apresenta

sob uma única forma, mas adquire nuances novas devido ao seu contato com

experiências contemporâneas.

A exposição não apresentou descrições mais detalhadas dos autores das obras.

Não sabemos a data precisa de muitas peças e nem se essas são feitas por um mesmo

artista. Essa apresentação, de certo modo, acaba por reiterar a visão um tanto restrita do

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antigo método etnográfico, onde autoria e tempo são dados menos relevantes63. Por outro

lado, expõe um problema antigo em relação à aquisição precária e circulação dessas

obras. Essa falta de informações pode ser tanto um problema da metodologia de

aquisição primeira dessas obras como do contexto de exibição em museus (onde escolhe-

se exatamente o que se quer mostrar e como)64. Em suma, não deixa de ser relevante e

oportuno obter mais informações a respeito dos artistas, do seu modo de trabalho e status

dentro de sua sociedade original.

Embora a necessidade de conhecer esses autores seja relevante (PRICE, 2000), é

preciso balizar que esse mesmo modelo deve ser aplicado cautelosamente para

compreensão das obras de arte da África. Devemos atentar que a noção de

individualidade e coletividade são conceitos tratados de modos distintos na África ou no

ocidente. Portanto, se talvez possamos falar em autoria artística em África, esse termo

deve sugerir também uma nova definição, razoavelmente diferente do seu uso nas

sociedades ocidentais européias e americanas.

O contexto maior dessa exposição não deixa de evidenciar os conflitos entre o

modo de entendimento da arte da África frente à arte de origem ocidental. A

apresentação de Araujo expõe o vínculo entre arte e tradição dos Bijagós, além de

relativizar os conceitos de apreciação dessas e da arte ocidental:

(...) o homem e suas circunstâncias naturais e sobrenaturais, sua procura no infinito do universo, pelo espaço cósmico para realização de seu drama, de seus ancestrais, assim as artes se estabelecem organicamente com a finalidade que ultrapassa o campo da estética pura. A arte é uma comunhão com o sagrado, uma emanação do espírito. Assim como a beleza seria a concretização de idéias metafísicas (grifo nosso) (apud BIJAGÓS, 2008, p. 2).

Araujo revela a oposição entre um modo de apreciar a arte tradicional dos povos

não-ocidentais baseado no conhecimento de seus mitos e cosmogonia (o “sagrado”) e

outro modo de apreciação ocidental focado apenas na forma (a “beleza” ou o belo é um

63 Isso está expresso pela fala do curador Araujo: “geralmente, a arte africana não tem autoria. É feita para cultuar os ancestrais, a colheita, natureza, circuncisão e outros ritos” (ARAUJO, 2006b, p. 46). 64 Comentando o modo de expor obras de arte não-ocidentais em museus, Sally Price em seu estudo constata que “depois que um artefato Primitivo é retirado do ‘campo’ (...), ele habitualmente recebe um novo passaporte. O pedigree de tal objeto normalmente não dá informações detalhadas sobre o seu criador ou os seus donos originais (indígenas); em vez disso, conta apenas as mãos Ocidentais pelas quais o objeto passou. Uma escultura africana que foi propriedade de Henri Matisse, Charles Ratton ou Nelson Rockfeller não tem, neste sistema, nenhuma relação com outra escultura do mesmo artista que não o tenha sido” (2000, p. 147).

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tema clássico da arte ocidental). Essa relativização não pretende substituir um modo de

apreciação por outro, mas mostrar como alguns códigos de compreensão das obras de

diferentes culturas se referem a dispositivos de histórias e culturas específicas. Sendo

assim, é oportuno aproximar esses conceitos para observar os seus limites, como

demonstrado pela citação de Araujo.

Negros Pintores

A exposição Negros Pintores (inaugurada em agosto de 2008) apresentou o

trabalho de artistas negros provenientes da Academia Imperial de Belas Artes. São eles:

Wilson Tiberio, Emmanuel Zamor, Antonio Rafael Pinto Bandeira, Benedito José de

Andrade, Benedito José Tobias, Antonio Firmino Monteiro, Estevão Roberto da Silva,

Horácio Hora e os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa. Grande parte desses pintores

já estavam presentes em outras mostras do curador desde A Mão Afro-brasileira (1988).

O livro Pintores Negros do Oitocentos (1988), escrito por José Roberto Teixeira Leite e

editado por Emanoel Araujo, já anunciava a atenção do curador por esses artistas.

Realizada no térreo do Museu, as obras foram dispostas sobre painéis de cor clara

(é o caso de Estevão Roberto da Silva, Antonio Rafael Pinto Bandeira, etc.) e vermelho

(Arthur e João Timótheo da Costa). Utilizando luzes pontuais sobre as obras, o evento

apresentou cada artista numa linha narrativa horizontal, evitando a disposição de obras

na vertical. A mostra não reverberou o mesmo acúmulo de objetos das anteriores

exposições do curador baiano. O foco em persuadir o olhar do visitante, por sua vez,

continua por ser um traço freqüente. A réplica de um ateliê, bem como o uso de grande

cenografia contribui para oferecer uma aproximação ao ambiente de trabalho próprio do

artista acadêmico. Do mesmo modo, o uso de cores intensas sob os quadros indicam o

interesse sensorial da montagem (Imagem 9.5).

Sobre a técnica e os artistas, mesmo dentro da academia, não há uma única forma

de pintura, mas diversidade de estilos que acompanham razoavelmente os interesses

artísticos de cada época. Assim, a linha definida de Estevão Roberto da Silva décadas

depois dá lugar às manchas e massas repletas de tinta de Arthur Timótheo da Costa. Do

ateliê desse primeiro passamos à pintura de cavalete ao céu aberto deste último; da

descrição fiel, à força da expressão e do traço, como demonstra a pintura de Wilson

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Tiberio. Tudo isso demonstra a heterogeneidade de experiências desses pintores mesmo

atuando dentro dos códigos da academia. Como podemos notar, grande parte dessas

peças fazem parte do acervo permanente do Museu Afro Brasil. Elas também têm sido

usadas em diversas outras exposições do curador. Nesse caso específico, além da

exposição de obras de coleções particulares, temos uma disposição que procura

evidenciar esses trabalhos em um contexto mais preciso sobre a arte da academia.

Brasil – Terra de Contrastes

A exposição Brasil – Terra de contrastes (inaugurada em novembro de 2008) é

baseada na visão pessoal do curador sobre o livro (de mesmo nome da exposição) escrito

por Roger Bastide (1964). A arte afro-brasileira não é o destaque dessa exposição.

Entretanto, essa exposição apresenta mais uma vez o pensamento espacial de Araujo no

museu.

A respeito da montagem, a exposição, localizada no piso inferior do Museu Afro

Brasil, ocupa todo o solo do espaço, projetando-se verticalmente, através de extensos

painéis. O pé direito alto do local orientou o uso dos painéis em uma leitura horizontal e

vertical. Novamente, como pode ser observado em outras exposições do curador, o

visitante é convidado a adentrar o espaço da mostra através de caminhos estreitos e

outros mais espaçados.

Em dois painéis extensos vemos pinturas abstratas e figurativas preenchendo o

espaço inicial da exposição. Esta apresenta trabalhos de artistas contemporâneos e

antigos nos mais diferentes formatos. Num primeiro painel amplo, por exemplo, temos

trabalhos de Henrique Oliveira, Farnese de Andrade, Samico, Manabu Mabe, Rubem

Valentim, dentre outros. Os trabalhos estão agrupados verticalmente, preocupando-se

com a proposta estética e de contexto de cada grupo de obras. Assim, temos um conjunto

sobre paisagem (composto por Rubem Ianelli, Newton Mesquita e Takashi Fukushima),

outro sobre figura humana (José Maria, Marcelo Grassman, Aldemir Martins, Gilvan

Samico e Acêncio) e pintura abstrata (Marcello Nitsche, Wega Nery, Giselda Leirner),

etc. Se na vertical há similaridades, a horizontal apresenta confrontos e cruzamentos,

como podemos perceber pela obra de Claudio Tozzi, Carlos Monforte, Antonio Henrique

Amaral Takazhi Fukushima, Gilvan Sâmico e Miguel dos Santos (Imagem 10.1).

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Ocupando um outro painel horizontal, planos vazados de fundo azul contêm

pequenas esculturas que vão desde o nó de pinho até os exus e ibejis, passando por

relicários dourados e imagens de Cristo. Mais ao fundo temos outros planos, altos,

expondo esculturas em madeira de Cristo e de centenas de pequenos ex-votos. Na parede

que contorna o espaço, por dentro, em leitura cronológica, há fragmentos do texto de

Roger Bastide (Imagem 10.3).

O tema da exposição, “contraste”, aparece na contraposição desses diversos

trabalhos, numa leitura horizontal e vertical das obras pelo espaço. Ao fundo da

exposição temos ainda trabalhos de escultura popular e contemporânea. Localizadas em

duas extremidades, a escultura de Frans Krajcberg e de Francisco Brennand são dois

modos bem distintos de se compreender esse problema. Uma é feita de cerâmica, lisa e

sintética; e a outra, da justaposição de troncos de madeira, rugosos e sinuosos. Como diz

o curador Araujo: “Queremos ainda usar desta idéia de contrastes para fazê-lo com a arte

brasileira de diferentes linguagens e pelas quais seus criadores se realizam dentro dessa

diversidade de períodos e de conteúdos” (BRASIL, 2008, p. 5).

Podemos observar o interesse da curadoria em organizar essas obras a partir de

uma visão formal sobre suportes, materiais empregados e gêneros artísticos. Através de

um olhar moderno, o curador organiza as obras em grupos de cor, textura e gênero. Em

frente a essas obras, por outro lado, há um mural com os escritos originais do

pesquisador francês, oferecendo uma leitura linear sobre diversos fatos que marcaram a

história brasileira. Esse texto, no entanto, não explica a exposição, mas serve apenas

como ponto de partida para pensar o pressuposto primeiro desta. O livro de Roger

Bastide é utilizado pelo curador na medida em que ele colabora para basear alguns dos

seus objetivos: uma releitura pessoal sobre a história da arte no Brasil. Essa exposição,

desse modo, parece ter afinidades com a mostra Brasileiro, Brasileiros (2004). Ambas

objetivam um olhar extenso sobre a arte no Brasil. Em todo caso, se Brasileiro,

Brasileiros traz a noção de mestiçagem, a exposição Brasil – Terra de Contrastes

evidencia compreender as polaridades.

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De Valentim a Valentim

A exposição De Valentim a Valentim (curadoria de Emanoel Araujo e de Mayra

Laudanna, Museu Afro Brasil, 2009) traz a visão de Araujo em relação à escultura no

Brasil, utilizando principalmente a produção de artistas da Academia Imperial de Belas

Artes do Rio de Janeiro e do Liceu de Artes e Ofício de São Paulo. Grande parte das

peças que compõem essa mostra é do Museu Nacional de Belas Artes, de coleções

particulares e da própria coleção de esculturas do curador do Museu Afro Brasil.

Em primeiro lugar, vale atentar para um dos artistas que, além de nomear a

exposição, inicia a mostra – Mestre Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813). Este é o

primeiro artista a ser apresentado por suas esculturas em madeira (São Matheus e São

João Evangelista, Imagem 16.2) e, mais à frente, por duas outras consideradas uma das

primeiras esculturas forjadas em metal no Brasil (Caçador Narciso e Ninfa). Mestre

Valentim, filho de português e de uma mulher negra, parece ter aprendido em Portugal o

seu ofício de escultor. Voltando ao Brasil, ele passa a desempenhar importante papel no

meio artístico nacional. Suas esculturas trazem a influência barroca, o que pode ser

notado pelas obras em madeira. Por outro lado, é possível constatar certos traços

neoclássicos nas peças feitas em metal.

Logo após as primeiras peças de Mestre Valentim, temos as obras que fazem

parte da Academia Imperial de Belas Artes, com destaque para o romantismo nas obras

do professor Rodolfo Bernadelli (1852-1931) e de seus alunos. Essas peças são em

grande parte realizadas em bronze. Em geral, atentam para a virtuosidade do artista em

representar o corpo humano. Além disso, elas também apresentam ícones e símbolos

importantes para a época, o que está presente na gestualidade, na vestimenta ou mesmo

no tema tratado. Somado ao espírito do romantismo, podemos verificar em muitas dessas

obras a influência do Art Nouveau e do Art Deco no uso de linhas sinuosas ou retas.

Entre Mestre Valentim e Rubem Valentim também temos a obra de Victor

Brecheret. A obra deste, de certa influência clássica, embora tendendo muito mais para o

Art Deco nessas peças, parece ser o nó que une ambas as experiências. Próximos a

Brecheret, há diversos artistas que se aproximam do universo estético do modernismo

brasileiro (como Ernesto de Fiori).

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Mais à frente, as esculturas finais da exposição mostram o trabalho de Rubem

Valentim (1922-1991). Mais uma vez, os ícones e o universo do candomblé marcam essa

produção. Este artista está em sala retangular ao lado de Frans Krajcberg, Francisco

Stockinger, Mario Cravo, Vasco Prado, Caribé e de Bruno Giorgi. Enquanto Caribé e

Bruno ainda trazem evidências de tendência clássica em sua forma, embora já pela via do

modernismo, Rubem Valentim e Frans Krajcberg são os artistas que parecem romper

mais contundentemente com a linha narrativa em grande parte acadêmica e moderna

desta exposição (Imagem 16.4).

Ao que tudo indica, grande parte dos artistas da exposição não são negros ou

mulatos. E, embora Mestre Valentim seja um artista desse grupo, somente a obra de

Rubem Valentim traz mais evidentemente a preocupação artística de lidar com o

universo do negro no Brasil. Nos outros casos, em relação à figura do negro, algumas

poucas peças de Joaquim Lopes Figueira (1904-1943) apresentam pontualmente esse

grupo. Muito mais freqüente, a figura do índio apresenta a afinidade entre os ideais da

academia e o que foi propagado pela literatura romântica de meados do século XIX. Se a

figura do índio aparece romanceada, desenvolvida em poses robustas e imponentes, o

negro em poucos casos é mais que uma figura curiosa. Todavia, nas obras do

modernismo ele já não é apenas o escravizado, mas apresenta certa individualidade.

A montagem da exposição está entre uma narrativa com forte acúmulo de obras

(as esculturas da academia e do modernismo) e outra mais linear (como o espaço

dedicado às obras de Rubem Valentim, Bruno Giorgi, Caribé e de Frans Krajcberg). As

obras estão agrupadas segundo o artista. Muitas delas não apresentam informações sobre

data de execução ou título, mas somente o nome do artista, data de nascimento e morte.

As obras mais contemporâneas (Rubem Valentim e Frans Krajcberg) estão em espaço

singular e arejado, de certo modo, separadas das demais. Os painéis usados em toda a

exposição são brancos, contrastando com as cores das obras. Além disso, estes têm

contornos circulares (algo que lembra até mesmo as esculturas de Rubem Valentim) e

apresentam em suas concavidades luzes neutras ou levemente azuladas (Imagem 16.3).

Como podemos notar, apesar da cor relativamente neutra (o branco), o aparato

cenográfico é certamente uma característica da exposição. Nesse caso, a cor branca não é

utilizada como neutralidade, mas parece compor e contrastar, buscando certo impacto

visual, com as obras expostas.

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A respeito dos objetos expostos, não há obras fora de um contexto mais erudito

da história da arte – esculturas em bronze, madeira, mármore ou gesso, apresentando

temas clássicos ocidentais como o corpo humano. Obras de arte popular como as da

família Julião, ex-votos, esculturas africanas, entre outros, o que é geralmente presente

nas exposições do curador, não estão nessa exposição. A escolha desses artistas, assim,

sinaliza um grupo de artistas que, à exceção de alguns, faz parte ou é próprio do universo

da história da arte ocidental moderno.

Apesar disso, a escultura (motivo dessa exposição) é apresentada de maneira

singular pela curadoria de Araujo e de Laudanna. Embora o contexto da maioria dessas

peças não possam ser relacionadas diretamente à arte afro-brasileira do curador e ao

contexto do Museu Afro Brasil, o uso e destaque dos artistas Mestre Valentim e de

Rubem Valentim procuram uma perspectiva direcionada. Esta é, evidentemente, própria

desta instituição e de seu curador. É um olhar diferente da experiência de história da arte

ocidental sobre esse conjunto de artistas. Trata-se de uma perspectiva que relaciona

diretamente a experiência do artista negro no Brasil dentro do contexto da arte nacional.

Artistas afro-brasileiros do acervo permanente do Museu Afro

Brasil

O acervo permanente do Museu Afro Brasil foi inaugurado em 2004 e está

dividido nos núcleos de Artes Plásticas, História e Memória, Trabalho e Escravidão,

Religiosidade e Festas.

Dentro disso, vale ressaltar o núcleo sobre artistas negros contemporâneos. Esse

espaço está delimitado na lateral direita do piso superior do Pavilhão Manoel da Nóbrega

(se considerarmos o acesso pela rampa). O local apresenta obras de artistas como Rubem

Valentim, Rosana Paulino, Whashington Silveira, Helio Oliveira, Heitor dos Prazeres,

Mestre Didi, Agnaldo Manoel dos Santos, George Nelson Preston, o próprio Emanoel

Araujo, Lisar, Yêdamaria, Octavio Araujo, entre outros.

A linha narrativa desse núcleo, começando por Rubem Valentim e finalizando

com Rosana Paulino e Lisar, foca diferentes tipos de obra de arte: pintura, escultura,

desenho, gravura e instalação. Não há separação por temas de interesse. O foco é mostrar

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a produção plástica de importantes autores negros e afro-brasileiros nas artes plásticas.

Longe de pensarmos num traço estilístico único, devemos compreender os caminhos

adotados por cada artista.

Num espaço contornado por três paredes em “U”, a série de seis impressões

(xerox transferido e matriz de acetato sobre papel segundo a legenda) de Rosana Paulino

explora o branco do papel com pequenos signos, fotos e frases. O título de cada uma

dessas obras é singelo e, ao mesmo tempo, questionador (“É tão fácil ser feliz”,

“Cinderela?”, “Tudo aquilo que você quer ser quando crescer”, “As armas do

império”, “Tudo para sua felicidade”) (Imagem 4.6).

Nas gravuras de Rosana Paulino, dispostas lateralmente, imagens de crianças,

frases curtas e figuras modulares (pertencentes ao universo da propaganda) formam um

conjunto de interrogações sobre gênero, identidade feminina e negra. A obra presente no

centro desse pequeno espaço dedicado à artista é composta por uma série de patuás

dispostos regularmente, formando um quadrado. Fotografias antigas (homens, mulheres

e crianças) foram gravadas em pequenas almofadas. Essas pessoas desconhecidas podem

ser agrupadas de acordo com sua representação étnico-racial (em sua maioria são

negras). Por serem fotografias antigas, desgastadas, quase apagadas, lembram um álbum

de retrato familiar. Embora as pequenas almofadas (costuradas em suas extremidades

com linhas ressaltadas) estejam agrupadas ordenadamente, o seu caráter de módulo

sugere a possibilidade de câmbio entre cada uma delas. Pensar em memória é quase

imperativo. A obra de Paulino, assim, adquire diálogo com a própria posição da

instituição. A busca e construção de uma memória é um trabalho permanente de olhar a

si mesmo enquanto indivíduo e coletivo, um retorno contínuo.

A obra de Washington Silveira (os trabalhos não possuem título), apresenta

esculturas feitas a partir de objetos cotidianos, alterando-se o sentido de uso deste. Não

há referências diretas à cultura ou estilística de arte afro-brasileira mais tradicional.

Desse modo, Silveira adentra esse espaço como um artista negro que demonstra o seu

raciocínio a partir do universo da arte contemporânea. O método desse artista é próprio

da arte conceitual, fazendo referências ao surrealismo e ao dadaísmo: um martelo

elástico que atinge a si mesmo; uma serra em grande escala feita, ela mesma, de madeira;

parte de uma mesa de madeira que projeta por seus pés suas raízes originais. O tema de

Silveira aqui é a madeira. Não apenas essa matéria em sua circunstância natural, mas

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como um ser moldado pela ação e perspectiva humana. Embora sejam todos objetos

comuns, o artista altera o sentido dos mesmos, comprometendo a sua leitura. Esses não

são mais objetos mundanos, mas proposições dentro de um contexto artístico sobre

suporte, forma, contexto, uso e técnica (Imagem 4.9).

Diferentemente desses, há artistas mais concentrados numa visualidade própria

do universo litúrgico afro-brasileiro. Rubem Valentim preocupa-se em explorar o

potencial gráfico e iconográfico de suas obras. Calcado numa construção visual de

reminiscência concretista, o artista projeta suas obras em serigrafias, pinturas e

esculturas. A sua composição bidimensional, quase abstrata, por outro lado, é fruto de

sua busca pessoal em repensar os signos do candomblé na arte. Cores e formas se

implicam numa estrutura extremamente contemporânea.

Helio de Oliveira, um artista de poucas obras em exposição no Museu, remete-se

ao mesmo universo religioso. Embora figurativo, suas xilogravuras beiram quase à

abstração. Alguns poucos pontos de luz apresentam um universo temático sempre

envolto por penumbras.

Participando de um mesmo pensamento focado na religião temos o artista Mestre

Didi. Sacerdote de cultos afro-brasileiros e artista renomado, Mestre Didi é figura

essencial para compreender a junção entre arte contemporânea e religiosidade. Jorge dos

Anjos e Emanoel Araujo (embora o primeiro seja mais restrito e o segundo mais sinuoso)

são igualmente próximos desse universo.

Nesse espaço, a obra de George Nelson Preston, artista e estudioso norte-

americano, expressa as relações entre estereótipos e veiculação de imagens no ocidente.

A sua técnica de colagem e sobreposição de imagens – exacerbando contrastes, entre

desenhos e fotos, linhas e planos – parece favorecer essa leitura. No mesmo sentido, o

seu uso da iconografia da história da arte ocidental, junto a contextos externos a esse

universo, busca trazer novos problemas e leituras para essa narrativa. Para Araujo, a obra

de Preston revela que “as tradições européias e as africanas são vistas, cada uma, como

alter ego da outra. O processo de resgate dos ‘africanismos’ e a justaposição aos

“europeismos” – este é o seu verdadeiro tema” (apud HERDEIROS DA NOITE, 1994, p.

13) (Imagem 4.10).

As litografias de Octavio Araújo em preto e branco remetem ao contexto da

história da arte ocidental. O seu tema principal, o nu feminino. Esse gênero clássico de

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desenho, todavia, em sua produção, dialoga com as correntes modernas do século XX – o

surrealismo. Além disso, os seus planos distantes, utilizando-se de perspectiva, claro e

escuro, etc., sugere uma orientação renascentista. A junção desses métodos de

representação, assim como o uso de signos de diversas culturas, compõem o universo

híbrido do artista.

Edval Ramosa é outro artista que está entre símbolos de diversas culturas. O

contexto formal, usando esferas em diferentes formatos e configurações, é forte em seu

trabalho. Por outro lado, a materialidade dessas peças é própria dos elementos utilizados

em religiões de matriz africana no Brasil. Contexto e forma, então, parecem sugerir a

comunicação entre ambientes culturais que se margeiam (Imagem 4.3).

A narrativa criada a partir desses artistas não é linear. Pode até mesmo ser feita

pela ordem inversa. Ela constitui-se por obras que se cruzam, intercambiam, criam um

jogo. A proximidade entre cada uma força o diálogo. Exceto por alguns casos (Octávio

Araujo e George Nelson Preston; Lizar e Heitor dos Prazeres; Emanoel Araujo e Colin

Chase) em geral elas se contrastam, não se assemelham em forma nem em suporte. Esse

núcleo de arte contemporânea também margeia outros núcleos, como o de religiosidade e

de memória, tornando as possibilidades de leitura ainda maiores. É possível acessar ou

sair dessa narrativa (a fim de buscar outras) a qualquer momento dentro do museu.

Em um núcleo diferente (do lado esquerdo do Museu Afro Brasil), as obras dos

artistas barrocos Aleijadinho e Mestre Valentim, assim como os acadêmicos Estevão

Roberto da Silva, Arthur e João Timótheo da Costa, entre outros, engendram um outro

modo de entender a manifestação afro-brasileira. Não estamos remontando a uma

religiosidade ou técnica estritamente de origem africana ou afro-brasileira. Entretanto,

mesmo não se tratando de arte afro-brasileira, eles não deixam de ser pertinentes à

curadoria de Araujo.

A partir do exposto, é possível observar alguns pólos de análise. Um se refere

aos artistas contemporâneos que possuem obras de arte focadas em pensar a presença

negra no Brasil, que podem ser chamados de artistas afro-brasileiros. Outro, de artistas

que não objetivam investigar esse universo, mas apresentam uma visão especial sobre a

sociedade em que vivem. Além disso, há os artistas que focam na religião um importante

núcleo para pensar a sua arte. Como já analisamos anteriormente, cada um desses tem

sua singularidade e relevância. Nem todas essas abordagens podem ser consideradas

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como arte afro-brasileiras. Todavia, em algumas mais e em outras menos, todas elas

estão relacionadas a esse fenômeno a partir do discurso criado pela exposição.

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Considerações finais

A história das exposições não trata apenas de dar a

ver a emergência, o contexto político e cultural de cada exposição, mas também sua recepção junto ao público e à crítica,

bem como sua efetividade na construção de uma história da arte. (...) vale lembrar que em história o que nos leva a olhar o passado é

sempre algo que nos inquieta no presente. MESQUITA, 2007, p. 151.

O estudo da curadoria de Emanoel Araujo requer um conjunto de ferramentas

diversas. Tentamos, neste trabalho, pontuar quais podem ser os modos de aproximação

em relação a esse objeto, focando o universo das artes plásticas afro-brasileiras. Para

isso, utilizamos estudos sobre arte afro-brasileira, museologia e sobre os temas que

tangenciam essas exposições. Esse é apenas um modo de analisar a contribuição desse

curador. Mais do que abarcar todo o conjunto da vida e obra de Araujo, objetivamos

fomentar a discussão a respeito das diversas características de seu trabalho expositivo.

Essas questões são de grande interesse para compreender não somente a exposição de

arte afro-brasileira, mas também para que possamos perceber as conexões entre

memória, identidade e reconhecimento da cultura negra no Brasil.

Num âmbito mais amplo, percebemos que, apesar de seus limites, o momento em

que Araujo surge no cenário artístico nacional aponta para uma sociedade em

transformação, onde vários campos de força tentam legitimar histórias singulares. As

artes plásticas, como local poroso e propício ao debate, é território singular para analisar

esse fenômeno. Ela reflete em si todas as contradições e paradoxos de uma sociedade.

Cabe rever o nosso desenvolvimento. Iniciamos procurando contextualizar o uso

do termo arte afro-brasileira. Essa análise mostrou o universo conceitual dessa

manifestação. Num segundo momento, apresentamos um breve histórico da instituição

museológica, notando nesta o espaço onde se efetiva a ação do curador. Assim,

atentamos por compreender o universo dos conceitos que perpassam o museu em relação

à arte de origem não-ocidental. O terceiro capítulo buscou visualizar o cruzamento entre

as diversas facetas de Araujo (o artista, o curador e o colecionador). O quarto capítulo

abarca o universo de conceitos que contornam suas exposições. Essas idéias acabam por

influir em suas exposições de arte afro-brasileira. Por fim, o quinto capítulo abarcou

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parte das mostras do curador, procurando utilizar o desenvolvimento citado

anteriormente para essa leitura.

A contribuição fornecida pelos entrevistados foi fundamental para dimensionar o

legado do curador. Essas falas trouxeram convergências e divergências relevantes.

Houve depoimentos semelhantes em relação ao modo de expor de Araujo, mostrando

como essa atividade está relacionada ao seu ofício de artista (MONTES, 2008; HABIB,

2008; FELINTO, 2008).

Outro fato a relatar é sobre a continuidade do trabalho expositivo desse curador.

Para alguns, o seu trajeto apresenta mudanças substanciais (por exemplo, na

incorporação de artistas contemporâneos a partir de meados da década de 1990). Renata

Felinto diz que:

(...) comparando todas essas exposições eu penso que ele incluiu mais artistas contemporâneos agora. Se formos pensar na exposição A Mão Afro-Brasileira, essa foi a exposição mais próxima do Museu Afro Brasil hoje. Ela fala de literatura, música, das artes; mas não tinha muito de arte contemporânea. Acho que o Museu Afro Brasil agora dá espaço para obras mais atuais, para o que acontece. É importante sempre atualizar, para não ficar uma imagem do negro estática (FELINTO, 2008).

Para outros, seu trabalho tem sido em grande parte a continuidade e discussão de

um mesmo problema (a história e arte dos negros no Brasil). Cabe citar Maria Lucia

Montes: “Quando se fala da diferença entre a exposição A Mão Afro-brasileira e a

Herdeiros da Noite, eu te digo que não tem diferença nenhuma no projeto. É a mesma

coisa porque o problema é o mesmo” (MONTES, 2008).

A semelhança conceitual da exposição A Mão Afro-brasileira com o Museu Afro

Brasil atesta a continuidade do pensamento de Araujo. Por outro lado, como cita

Oswaldo de Camargo, embora os temas sejam semelhantes, inclusive com o uso das

mesmas peças, a montagem e disposição das obras no espaço dá à exposição um novo

caráter e problema. Como diz Oswaldo de Camargo: “E depois vem a inquietação de

fazer da exposição dele uma coisa sempre renovada com o tempo. Ele pega uma peça

aqui, põe para lá. A exposição não é uma coisa estática. O Emanoel é tudo, menos

estático” (CAMARGO, 2008).

A exposição Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007) é parte

desse exemplo. As peças dessa exposição foram exibidas antes na mostra Negro de

Corpo e Alma (Mostra do Redescobrimento, 2000) e posteriormente resultaram na

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exposição Imagens Perversas e Inocentes. Em cada momento, a montagem e disposição

dessas peças conferem um novo significado e tema a mesma coleção exibida pelo

curador.

Desse modo, a forma diversa de dispor as obras altera substancialmente o

significado de cada exposição. Essa ação interfere também nas exposições com foco nas

artes plásticas. Ao trabalhar com artistas contemporâneos, modernos ou acadêmicos,

cada exposição de Araujo recria um espaço e discurso. O que temos é uma narrativa

sendo reconstruída. As possibilidades são muitas e devido à ausência de um pensamento

focado na arte afro-brasileira na nossa história da arte, ela se faz muito oportuna.

Essa proposta não é somente uma nova configuração da arte afro-brasileira, mas

uma revisão de toda nossa história. Esse conteúdo, feito através de novas relações, é um

trabalho infinito de interpretação e reconstrução da história. Uma narrativa que é

remodelada para ser novamente compreendida, sob perspectivas diversas. É esse

princípio que faz Araujo reordenar incansavelmente suas exposições, uma tentativa de

rever continuamente a história em suas múltiplas possibilidades.

A curadoria de Araujo, que é também crítica de arte, afirma pela exposição uma

narrativa. A proposta do curador baiano torna cada componente portador de um

significado especial. Ao construir um discurso sobre a representação da cultura e arte

afro-brasileiras no museu, ele acaba contaminando todos os objetos expostos.

Assim, o contexto das suas exposições de arte afro-brasileira, por sua vez, pode

ser pensado e exposto de duas maneiras. No primeiro caso, ele compõe uma possível

história da arte afro-brasileira com obras de mesmo contexto (como o núcleo de arte

contemporânea do Museu Afro Brasil). Essa curadoria engendra um vínculo entre

artistas afro-brasileiros e artistas negros que nem sempre estão lado a lado. Ao apresentar

a proximidade dessas obras (como as de Rosana Paulino, Rubem Valentim, Hélio de

Oliveira, entre outros), o curador os agrupa num núcleo coeso de pensamento. Sendo

obras de suporte e formatos diversos, há, porém, um vértice que as torna próximas: a

preocupação em refletir a matriz afro-brasileira na arte brasileira.

No segundo caso, a arte afro-brasileira entra em contato (evidenciando conflitos,

diálogos, proximidades e distâncias) com obras de arte que não pertencem a esse

universo (exposição Brasileiro, Brasileiros, 2004). Desse modo, essa contaminação pode

inserir novo significado numa produção que não é geralmente vista como próxima da

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cultura afro-brasileira. Ao elaborar um discurso curatorial sobre a presença afro-

brasileira na arte do Brasil, essa orientação acaba por realçar esse mesmo discurso em

peças oriundas de outros universos. É o que acontece com obras de Cândido Portinari65,

José Pancetti e de Lasar Segall exibidas pelo curador baiano em algumas exposições

específicas66. Ao recortar o conjunto de obras desses artistas sobre a representação do

negro na arte, Araujo lida com o contexto em que esses artistas retrataram esse grupo. O

que numa outra exposição poderia ser periférico, para ele é essencial.

Todavia, o tema não é superior ao fazer artístico. Ambos são relevantes na

medida em que a feitura da obra também é a própria obra. O discurso curatorial não

oblitera a visão do objeto, mas a informa de novos significados.

Não sendo restrita, a estratégia de Araujo considera o diálogo com a história da

arte brasileira. Seu contexto é afro-brasileiro, mas também um debruçar sobre a arte no

Brasil como um todo. O curador não cria um ramo, ele pretende adentrar ao tronco

principal da história da arte brasileira. Para ele, esse espaço não pode ser indiferente à

participação indígena, negra ou popular.

Nesse sentido, o curador tenta inserir a história da arte afro-brasileira dentro da

história da arte brasileira como um todo. Vale citar o próprio Araujo a respeito do

trabalho desenvolvido na Pinacoteca:

(...) ao lado dessas grandes exposições internacionais (Rodin etc.), a Pinacoteca continuaria, como sempre, o seu costumeiro trabalho de exposições dos artistas brasileiros. Desde os bustos-relicários da Sé da Bahia e os pintores do Bonfim até a escultura contemporânea mostrada no parque da Luz, desde Tenreiro, Silva, de Fiori até a arte e a religiosidade de raiz africana (...) (grifo nosso) (ARAUJO, 2002, p. 29).

Outra característica que margeia a construção de uma história da arte afro-

brasileira de Araujo é o uso de artistas negros que se aproximam de uma produção de

arte originalmente européia. Esses artistas negros fazem parte da exposição de Araujo e

65 A partir do modernismo de 1922 há uma mudança significativa de interesses sobre a personagem negra na arte. A figura do negro ganha força nas obras de Portinari, entre outros. Para Portinari, o negro é sobretudo o trabalho. Esse estereótipo do negro trabalhador, todavia, adquire um valor mais positivo do que negativo em suas pinturas. O trabalho passa a ser construção da nação. O que antes era castigo e alienação se torna virtude e potência de vida. O trabalho em Portinari é em sentido pleno. É a construção do próprio ser. Ele não é alienação, mas consciência de si e do mundo. É um trabalho virtuoso. 66 Trabalhos de Portinari (Baiana, década de 1950; Mulher sentada, 1936; Mulheres com cesto, 1939), Pancetti (Menino bom, 1945; Menino, 1945; Menina, 1934) e Segall (Orchestra, 1933) estão presentes na mostra Negro de Corpo e Alma, 2000, sob curadoria de Araujo. Todas essas obras apresentam personagens negras e mestiças. Assim, o curador atenta para um aspecto pouco visto da produção desses artistas, sob o viés da representação do afro-brasileiro.

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muitas vezes em paralelo aos artistas afro-brasileiros. Sem solucionar o problema, a

mostra de Araujo parece apenas indicar esse conflito, propondo, entretanto, o

estabelecimento do diálogo entre as partes.

Dentro dos diversos temas suscitados pelas exposições de Araujo, focando os

artistas e a construção de uma nova história da arte do negro no Brasil, os conceitos de

contemporaneidade e de heterogeneidade parecem contribuir para a compreensão desse

legado.

A contemporaneidade é a necessidade em atualizar e mostrar a produção de

artistas negros brasileiros ou africanos dentro do mundo atual. É preciso situar essas

obras em seu devido espaço. O modo tradicional como o museu tem observado essa

produção não contribui para essa construção. Novos conceitos e sistemas de significados

devem nortear uma visão mais complexa sobre essas obras. Os conceitos utilizados de

empréstimo da nova museologia servem para esse propósito. Do mesmo modo, isso

significa atualizar os conceitos da etnologia, da história da arte e de outras disciplinas.

A heterogeneidade, por sua vez, é oportuna para situar a produção afro-brasileira

dentro de um conjunto de representações diversificadas e concomitantes. Não estamos

analisando somente uma cultura, mas uma gama ampla de representações que, apesar de

ter referências importantes de origem na África, produzem os mais diversos caminhos no

Brasil. Os modos de configuração das obras de arte chamadas de afro-brasileiras são

parte desse intrincado sistema de signos.

Sobre o espaço do museu, há diversas formas de compreender uma exposição de

artes plásticas. A forma de exposição com paredes brancas, espaço neutro, ausência de

elementos para além das obras e o uso de considerável distância entre cada obra, o

chamado “cubo branco”, recusava usar referências do mundo externo ao museu. Somente

a narrativa construída a partir das obras era o universo ao qual o leitor deveria ter acesso.

Todo ruído – como paredes coloridas ou obras de arte muito próximas – deveria ser

eliminado para a eficaz leitura de uma obra de arte (O’DOHERTY, 2007).

A concepção expositiva de Araujo não se pautou por esses princípios. O uso das

cores em diversos trabalhos do curador é um elemento constitutivo fundamental. A cor é

uma informação que dialoga com os objetos ao redor, define um espaço, diferencia ou

aproxima os elementos. O uso de todo esse aparato para Araujo é a compreensão de que

a exposição se constrói também pela ativação (e não anulação) do espaço expositivo.

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Um tema que está intimamente ligado à concepção da museologia de Araujo é a

possibilidade de se repensar a produção de narrativas a partir de diversas conexões.

Nesse espaço, temos a proximidade entre arte erudita, popular, artes gráficas e diversas

outras formas de manifestação estética. A obra de arte afro-brasileira e da África passa a

ser componente essencial para compreender esse caminho. É preciso verificar os modos

como essas obras foram vistas para serem parte da instituição museológica. Mais do que

isso, devemos pensar em alternativas de superação do modelo de museu ocidental que

por séculos obliterou outras possibilidades de vislumbrar a arte de origem não-ocidental.

A narrativa linear dentro do museu, após as últimas décadas, foi afetada pelos

discursos críticos dos grupos considerados marginalizados – assim como por fatos

históricos, como o fim da II Guerra Mundial e a queda dos governos coloniais na África

e Oriente. Essas críticas contundentes ao museu tradicional, que apontavam para o seu

conservadorismo e anacronismo histórico, forçaram a abertura de um debate amplo sobre

os métodos e dispositivos do ato expositivo. Desse modo, foi cobrado do museu

tradicional uma forma mais democrática e contemporânea de escrever a história. O

museu passa a ser um local de debate sobre a melhor maneira de situar a participação dos

diversos grupos étnico-sociais presentes nas sociedades contemporâneas.

Essa é, certamente, apenas uma faceta dos novos problemas museológicos

enfrentados hoje. Não obstante, grande parte dos museus operam dentro de uma lógica

linear e autoritária. Todavia, as discussões mais pertinentes ao tema apontam

constantemente para os problemas dessa perspectiva, bem como para as possíveis

alternativas a esse método de construção da história (FERNÁNDEZ, 1999).

A atividade de Araujo como curador de exposições e diretor de museu tem

apontado para esse momento conflituoso da atividade museológica. Não é mais possível

descrever a história como uma seqüência linear de fatos. A história passa a ser a soma e

relação constante entre várias histórias possíveis. Essa nova constatação é pertinente não

apenas para o público especializado, mas para a população como um todo e, em especial,

para os grupos negros. Essa perspectiva pode alicerçar as bases para criar um debate

profundo sobre a participação artística do negro na arte brasileira. Além de questionar o

público mais amplo sobre as suas próprias referências a respeito do tema, essas

exposições fornecem subsídios para que os grupos afro-descendentes possam criar uma

nova consciência de si próprios.

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No caso da representação do negro e sua cultura, há outros museus brasileiros que

remetem a essa mesma preocupação (LODY, 2005). Todavia, a experiência de Araujo

tem outros contornos. Diferentemente dos demais museus com acervos da África ou

afro-brasileiros focados no passado (BITTENCOURT, 2008; BERNARDO, 2006;

SEPÚLVEDA, 2006), a exposição de Araujo trouxe a presença do negro em suas mais

diversas realizações na contemporaneidade. Não há, em Araujo, a cristalização de uma

cultura negra, mas a compreensão de sua complexidade nos mais diferentes meios.

O trabalho do curador também revela a dificuldade em definir uma história da

arte não-ocidental para além do discurso colonialista. A sua desconfiança em relação a

um suposto método científico de exposição do negro traz esses mesmos resquícios. Cabe

citar Araujo: “(...) em princípio esse não é um museu antropológico. O negro aqui não

serve como estudo científico. O negro aqui serve como manifestação cultural. Como

representação de uma identidade, de tradições, de memória. O Museu Afro Brasil

trabalha dentro de questões da arte, memória e história. Nós não estudamos

antropologicamente o negro” (2008). Para o curador, aplicar um novo olhar sobre essas

peças significa superar as ciências que trabalharam para tornar a cultura dos povos não-

ocidentais apenas um objeto de estudo amorfo (o que foi muitas vezes exibido sob a

mesma perspectiva pelo museu).

Sobre esse contexto, cabe citar a contribuição de Maria Lucia Montes,

comparando a exposição Arte e religiosidade, em Brasília, com outra exposição sobre

cultura afro-brasileira. Segundo a pesquisadora, essa

Foi uma exposição espantosa no sentido de ver a presença afro moldando a cultura brasileira. Nós estávamos num galpão, um centro cultural na sede da W3. A exposição era uma coisa que vinha de fora do governo e entrava no cotidiano de Brasília. Era preciso criar uma forma de leitura da exposição. O Kinoshita deu uma idéia para o pé direito alto, “Emanoel, porque não colocamos uns panos no teto”? Ótimo! Então nós tínhamos panos brancos cobrindo o espaço – cobrindo o templo de Oxalá. Depois tinha um pedaço ligado à escravidão – havia um véu negro, todo prateado, era uma noite tenebrosa e também um céu estrelado cobrindo um navio negreiro. Aquela exposição era inteiramente clara. Em contraposição, no Itamarati tinha uma exposição do Aleijadinho, inteirinha escura, fora os detalhes, cheia de trevas, sofrida, era um olhar de branco. O olhar do negro era uma coisa deslumbrante com o branco de Oxalá no meio e cor e mais cor, uma grande produção. É necessário ter muito senso de espaço para armar essas coisas como exposição. (...) Ele junta arquitetura, história e arte para pensar isso em curadoria. Depois tem isso do negro e artista. Ele pensa o significado dessa arte com a história e no espaço da exposição (MONTES, 2008).

Montes comparou a perspectiva de duas exposições semelhantes sobre arte e

cultura afro-brasileiras. O resultado de cada uma, no entanto, é bem diferente. Na

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concepção de Araujo, o uso da cor e do espaço oferecem outro olhar para os objetos. A

visão de Araujo não é oposta ao pensamento de um curador branco. Por outro lado, a sua

perspectiva é especial por ser de um negro, artista e estudioso da arte afro-brasileira. É a

visão de um curador com uma trajetória singular. Para escapar de uma visão cientificista

sobre essa cultura e arte, o curador busca maravilhar o olhar do visitante pela forma e

sentidos.

Os escritos de George Nelson Preston (1987), crítico e artista norte-americano,

tiveram influência sobre as exposições de Araujo. A perspectiva de Preston é de que a

arte de ascendência africana possui singularidades formais em sua diáspora americana. A

arte afro-americana, assim, teria sua continuidade estilística baseada na arte da África,

mas em novo formato, muito mais “vanguardista”. A proposta de Preston aborda

problemas complexos sobre o estudo da forma e da continuidade artística africana na

América. Todavia, parece dar significado único para uma expressão que é por demais

diversificada – a arte do continente africano67.

Em todo caso, a contribuição de Preston pôde dialogar e fornecer dados para a

concepção de arte afro-brasileira e da diáspora na América por Araujo68. Desse modo,

pensar nas formas artísticas do negro no Brasil significa compreender o intrincado jogo

de representações que esse grupo adquiriu e utiliza no continente americano. Como um

quebra-cabeça, as peças para o entendimento desse problema não estão somente em solo

brasileiro, mas em seu contorno.

Vale constatar que há proximidades e distâncias entre essas produções. Se

existem semelhanças entre a arte dos diversos povos de ascendência africana em solo

brasileiro, há uma infinidade de novos caminhos produzidos devido ao contato desses

com a arte e cultura ocidentais. Cada um desses caminhos resulta em um problema à

parte. 67 A arte da África que conhecemos, pertencente a diversos grupos desse continente, não parece ser passível de se aglutinar num mesmo conjunto homogêneo de formas e significados. Muito pelo contrário, a arte do continente africano é díspar, embora tenha também suas similaridades. Tentar compreender essa arte como uma unidade que influencia a tradição artística afro-americana, assim, parece ser uma tarefa difícil. É certo que a arte dos povos iorubas ainda tem sua permanência assegurada nos cultos aos orixás no Brasil. Porém, por certo essa representatividade adquiriu outros contornos, de acordo com problemas de assimilação e contato cultural com que cada população se defrontou em solo americano. 68 Comentando o crítico norte-americano, Maria Lúcia Montes diz: “me lembro de uma vez que o Emanoel conversou com o George Nelson Preston e ele disse ‘você sabia que o fato de você se chamar Emanoel e de eu me chamar George tem a ver com a hora de partida do navio na África?’. Efetivamente, é necessário ter essa dimensão de diáspora e esse diálogo não apenas com a África mas com a diáspora inteira. Uma coisa que o Emanoel nunca esqueceu. Isso está presente nas bandeiras do Haiti, nos retornados da África. A dimensão da diáspora está presente o tempo inteiro”(MONTES, 2008).

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A história das artes plásticas no Brasil são um fenômeno repleto de

ambigüidades. A influência de diversas culturas tornou esse espaço elemento rico em

possibilidades. Contrariando esse fato, a nossa história da arte esteve por muito tempo

entrelaçada às correntes internacionais vindas da Europa. A vinda da academia trouxe

uma visualidade própria do poder colonial. Sendo um país de colonização portuguesa, é

de se esperar que seus olhos estivessem voltados para a Europa.

Todavia, o nosso barroco é resultado da deglutição das experiências em além mar

pelos artistas locais. Mário de Andrade (1928) mostrou essa transfiguração artística ao

falar da arte de Aleijadinho. Como podemos notar, a presença dos povos africanos não

alterou somente a composição étnica da população, mas sua cultura e arte.

Outros teóricos em meados do século XX atentaram para a compreensão da

produção de arte afro-brasileira, não como um caso à parte, mas como presença

fundamental para entendimento de toda arte no Brasil. Para além dos textos, Araujo é o

curador que criou uma visualidade para a arte e cultura afro-brasileiras. A partir de seus

olhos, podemos conhecer e relacionar a obra de diferentes gerações de artistas negros e

afro-brasileiros. Dialogamos Mestre Valentim com Aleijadinho. Percebemos melhor a

textura e os meandros da pintura de Estevão Roberto da Silva, Arthur Timótheo de Costa

e de Wilson Tiberio. Analisamos em conjunto Genilson Soares, Rubem Valentim,

Rosana Paulino e Washington Silveira. Além dessa história singular, temos uma forma

específica de lidar com o espaço da exposição.

Nesse sentido, descrevendo a ação de Araujo na Pinacoteca, o que podemos

estender para toda sua trajetória, Ivo Mesquita traz a seguinte ponderação:

A despeito de uma teatralização excessiva na montagem das exposições, uma espetacularização de imagens e objetos por cores, luzes e pesado mobiliário expositivo, que por muitas vezes desviava a atenção do trabalho a ser visto para o aparato de exibição, esse conjunto de mais de vinte mostras (sobre arte afro-brasileira na Pinacoteca) revelou trabalhos importantes, imagens potentes, e seguramente derrubou barreiras, ampliou o território, transformando a percepção e o entendimento do lugar e das qualidades da negritude, e fincando uma cunha importante no delicado debate sobre raças no Brasil. Talvez, desde a inauguração da Pinacoteca em 1905, esse conjunto de exposições, aquisições e publicações constitua a mais importante mudança na orientação conceitual e técnica do Museu, abrindo-o para uma realidade sempre obliterada nos discursos hegemônicos locais (grifo nosso) (MESQUITA, 2007, p. 167).

Sob a gestão de Araujo, a Pinacoteca abrigou importantes exposições sobre arte

afro-brasileira durante os anos de 1990. A concretização desse percurso se deu em 2004,

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com a criação do Museu Afro Brasil, passando pela relevante mostra A Mão Afro-

Brasileira (1988) e Negro de Corpo e Alma (2000), entre muitas outras. Essas

exposições do curador baiano têm seu suporte baseado na produção artística vinculada à

experiência do negro no Brasil. A arte afro-brasileira, por sua vez, evidencia traços

contínuos e descontínuos de uma memória que se refaz continuamente. Como veladuras,

as exposições de arte afro-brasileira de Araujo produzem tensões, contatos e cruzamentos

com seu contorno artístico, cultural e social.

Como já citamos anteriormente, a história da arte e crítica de arte construída nos

museus expressa algo sobre campos de poder e legitimação de histórias e memórias. O

que pretendemos neste texto é mostrar como o desenvolvimento do conceito e da história

da arte afro-brasileira nas mostras de Araujo requisita o delineamento de uma outra

história para a arte nacional.

A sistematização de uma história da arte afro-brasileira também tem acontecido

pela articulação expográfica e museológica de Araujo. A sua curadoria foca em diversos

momentos a construção dessa memória, opondo, contextualizando e problematizando

obras e artistas. Através do dispositivo da exposição, Araujo revela um modo de ver a

arte afro-brasileira e o Brasil.

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ANEXOS

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Anexos de imagens

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Vozes da Diáspora (Pinacoteca, 1993).

Imagem 1.1. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

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Herdeiros da Noite (Pinacoteca, 1994).

Imagem 2.1. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.2. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

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Herdeiros da Noite (Minas Gerais, 1995).

Imagem 2.3. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.4. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

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Herdeiros da Noite (Brasília, 1995).

Imagem 2.5. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

Imagem 2.6. Fotógrafo não identificado - Acervo CEDOC / Pinacoteca do Estado de São Paulo

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Um português tal e qual – Rafael Bordalo Pinheiro (Pinacoteca, 1996).

Imagem 3. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado, 1996. Segmento O caricaturista. Esquema e montagem final da sala (foto cedida por Gilberto Habib).

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Acervo permanente do Museu Afro Brasil, 2008.

Imagem 4.1. Em destaque a obra de Mestre Didi e Octavio Araujo.

Imagem 4.2. Em destaque a Ronaldo Rêgo.

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Imagem 4.3. Em destaque a obra de Edval Ramosa.

Imagem 4.4. Em destaque a obra de Agnaldo Manoel dos Santos.

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Imagem 4.5. Em destaque a de Rubem Valentim.

Imagem 4.6. Em destaque a de Rosana Paulino.

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Imagem 4.7. Em destaque a obra de Mestre Valentim.

Imagem 4.8.

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Imagem 4.9. Em destaque a obra de Ronaldo Rego e Washington Silveira.

Imagem 4.10. Em destaque a obra de Mestre Didi e George Preston.

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Imagem 4.11. Em destaque a obra de Genílson Soares.

Imagem 4.12. Em destaque a obra de Emanoel Araujo.

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Brasileiro, brasileiros (Museu Afro Brasil, 2004).

Imagem 5.1. Fotografia de Nelson Kon

Imagem 5.2. Fotografia de Nelson Kon

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Imagem 5.3. Fotografia de Nelson Kon

Imagem 5.4. Fotografia de Nelson Kon

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Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

Imagem 6.1.

Imagem 6.2.

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Imagem 6.3. Em destaque a obra de Charles Placide.

Imagem 6.4.

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Imagem 6.5.

Imagem 6.6.

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A Divina Inspiração – Sagrada e Religiosa – Sincretismos (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 7.1. Foto de João Liberato.

Imagem 7.2.

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Imagem 7.3. Foto de João Liberato

Imagem 7.4.

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Imagem 7.5. Foto de João Liberato.

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Bijagos – A arte dos povos da Guiné-Bissau (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 8.1.

Imagem 8.2.

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Imagem 8.3.

Imagem 8.4.

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Negros Pintores (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 9.1.

Imagem 9.2.

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Imagem 9.3.

Imagem 9.4.

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Imagem 9.5.

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Brasil – Terra de contrastes (Museu Afro Brasil, 2008).

Imagem 10.1.

Imagem 10.2.

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Imagem 10.3. Fotógrafo não identificado.

Imagem 10.4.

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Imagens Perversas e Inocentes (Museu Afro Brasil, 2007).

Imagem 11.1.

Imagem 11.2.

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Imagem 11.3.

Imagem 11.4.

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Desenhos de exposições (esboço de planta baixa)

Imagem 12.1. Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

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Imagem 12.2. Benin está vivo ainda lá – Ancestralidade e Contemporaneidade (Museu Afro Brasil, 2007).

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Imagem 12.3. Bijagos – A arte dos povos da Guiné-Bissau (Museu Afro Brasil, 2008).

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Imagem 12.4. Brasil – Terra de Contrastes (Museu Afro Brasil, 2008).

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Imagem 12.5. Negros Pintores (Museu Afro Brasil, 2008).

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Imagem 12.6. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado, 1996. Segmento O caricaturista. Planta do espaço expositivo com anotações de Emanoel Araújo (Imagem cedida por Gilberto Habib).

Imagem 12.7. Exposição Rafael Bordalo Pinheiro - o português tal e qual, Pinacoteca do Estado, 1996. Segmento O caricaturista. Esquema de abertura de vitrines feito por Gilberto H. Oliveira a partir das diretrizes dadas pelo curador Emanoel Araujo (Imagem cedida por Gilberto Habib).

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Imagens de Cartazes

Imagem 13.1. Exposição Bahia, África Bahia (Museu de Arte da Bahia), 27/02 a 14/03/83

Imagem 13.2. Exposição Casa do Baiano, Museu Kumsthaus, Zurique, 1992.

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Imagem 13.3. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, 1988)

Imagem 13.5. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, 1988)

Imagem 13.4. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, 1988)

Imagem 13.6. A Mão Afro-brasileira (MAN-SP, 1988)

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Obras do artista Emanoel Araujo

Imagem 14.1. Fotógrafo não identificado. Escultura, madeira pintada, 1979, 1.60m, coleção Antonio Carlos Magalhães Imagem 14.2. Fotógrafo não identificado. Estrutura vermelha, madeira laqueada, 1981, 80cm, Acervo do artista

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Exposições de Lina Bo Bardi

Imagem 15.1. Fotógrafo não identificado. A mão do povo brasileiro (Lina Bo Bardi); MAN de São Paulo,1969.

Imagem 15.2. Fotógrafo não identificado. Bahia no Ibirapuera (Lina Bo Bardi Lina Bo Bardi e Martins Gonçalves); V Bienal de São Paulo,1959.

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Imagem 15.3. Fotógrafo não identificado. Exposição Nordeste (Lina Bo Bardi); Solar do Unhão, Salvador, Bahia, 1963.

Imagem 15.4. Fotógrafo não identificado. África Negra (Lina Bo Bardi); MASP, 1988.

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De Valentim a Valentim (Museu Afro Brasil, 2009)

Imagem 16.1.

Imagem 16.2.

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Imagem 16.3.

Imagem 16.4.

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Anexos de entrevistas

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Entrevista de Emanoel Araujo (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2009)

Gostaria que começasse nos dizendo sobre o início do seu trabalho com curadoria. Eu comecei a fazer curadoria no começo dos anos 1980 com a exposição África–Bahia–África no Museu de Arte da Bahia. Essa exposição é de 1981. Tem catálogo dessa exposição? Não. Tem apenas um cartaz. Depois disso passou para a exposição A Mão Afro-brasileira em 1988? Não. Houveram várias exposições lá no Museu de Arte da Bahia. Como foi o trabalho como diretor no Museu de Arte da Bahia? Como diretor eu comecei a convite do Antonio Carlos Magalhães. Entre as exigências que fiz para dirigir aquele Museu, solicitei que ele liberasse as verbas para mudança do Museu do prédio em que estava porque era uma casa no bairro de Nazaré. Uma casa que pertenceu a um ex-governador da Bahia. Então, eu aceitei o cargo e ele me deu recursos para isso. E assim foi de abril de 1981 até janeiro de 1983. Quase dois anos. Nisso eu dirigi várias curadorias: a exposição de Raimundo de Oliveira, os 400 anos do Museu de São Bento, a pintura baiana. Depois, em 1987, eu fiz a exposição A Mão Afro-brasileira. Um dos focos da exposição A Mão Afro-brasileira foi o artista negro, independentemente de seu estilo de origem afro-brasileira, como a obra de Agnaldo Manoel dos Santos. Como foi a elaboração do conceito dessa exposição? O conceito da exposição era mapear quem negro foi e quem negro é no Brasil. Independente se essa obra tivesse ou não contextualizada dentro desse espírito afro-brasileiro. Sendo negro num país escravocrata, o que o escravo, um sujeito cerceado, podia fazer estava limitado aos dogmas vigentes da época. Esse talento desses artistas africanos ou afro-brasileiros foi para a pintura, para a escultura, mas toda ela ligada aos dogmas eurocêntricos. Antes da exposição Negro de Corpo e Alma, existiu o projeto do Museu do Imaginário. Ele contribuiu para a execussão dessa exposição? Como? Não. Em 1988 eu fiz a exposição A Mão Afro-brasileira. Em 1990 a Suíça fez a exposição A Casa do Baiano. Com peças suas? Isso. Nessa época também teve o Herdeiros da Noite (1995), o Vozes da Diáspora (1993). Foram vários projetos ligados a essa questão. Só em 2000 foi acontecer a exposição Negro de Corpo e Alma. Quando o senhor estava na Pinacoteca de São Paulo não havia o projeto de constituir um arquivo sobre o negro no Brasil? Sim. Deu nisso aqui (o Museu Afro Brasil). O que o senhor acha do conceito de arte afro-brasileira? Ele serve para explicar grande parte dos artistas que estão nessa exposição, como a Rosana Paulino, o Rubem Valentim e outros? Essa é uma questão para ser discutida. O que eu denomino de arte afro-brasileira é aquela manifestação que de certa forma sai fora de uma questão eurocêntrica. Como o Rubem Valentim, que está com um pé na geometria, mas a geometria dele esta muito próxima de signos baianos. Nem são africanos, são baianos. A Rosana Paulino com aquela idéia de apropriar os patuás e

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botar fotos de família, dos seus ancestrais. E por aí vai. Há vários artistas. Não só negros, mas artistas brancos também. Eu diria que Carybé é um artista afro-brasileiro. Porque toda a produção dele está dirigida para registrar essa cultura. Mas no registro tem uma invenção dele ali dentro e ela está ligada à questão afro-brasileira. A história do museu como uma instituição ocidental geralmente tem tratado a imagem do negro como exótica. Como o senhor consegue evitar que a figura do negro seja tratada como exótica ou mercadoria? Em princípio esse não é um museu antropológico. O negro aqui não serve como estudo científico. O negro aqui serve como manifestação cultural, como representação de uma identidade, de tradições, de memória. O Museu Afro Brasil trabalha dentro de questões da arte, memória e história. Nós não estudamos antropologicamente o negro. O negro, o mulato ou o mestiço que fez alguma coisa nos interessa. Algum documento que exista sobre esse assunto nos interessa. Qualquer manifestação artística nos interessa. Nos interessa tudo que foi feito pela mão negra. Não precisa ser africana. É um erro pensar e querer que o artista seja africano. Brasileiro é brasileiro. Mesmo que ele tivesse sido um africano escravo, uma vez que é brasileiro ele é brasileiro. Quando esse sujeito volta para África ele não volta como africano, ele volta como brasileiro. É muito importante que se diga isso porque as pessoas pensam que seja fundamental pensar o artista como africano. Mas ele não pode mais ser africano. Mesmo o Candomblé. Ele é uma invenção brasileira. A Umbanda é mais brasileira ainda. Sei que a Umbanda já tem uma sintonia e miscigenação com a religião católica. Mas o que eu quero dizer é que, sendo o Candomblé uma religião de origem africana, mas brasileira na sua essência, os símbolos ou vieram da África ou daqui feitos por qualquer pessoa. Seja ele branco ou preto. Essa iconografia quase acabou porque a polícia reteu esse material. A Escola de Medicina Legal tinha esses objetos como estudo de antropologia absolutamente preconceituoso e racista. Mas tudo isso acabou. Algumas dessas coisas estão ainda no instituto histórico geográfico. Em Alagoas também tem uma coleção. A Bahia teve e jogaram fora. Tem o Museu da Polícia do Rio de Janeiro. Essa produção toda se perdeu. O que não se perdeu nós conseguimos ver em alguns lugares e aqui no Museu Afro Brasil. Em relação ao seu método de exposição, como você pensa o espaço expositivo? Eu entendo que a curadoria é um projeto que se fundamenta e se completa na medida em que ele se arma no espaço. Para mim, a curadoria não trata de um projeto puramente intelectual. Esse é também um projeto que tem vários tentáculos na montagem, na curadoria, na contextualização com objetos afins. Agrupar certos elementos num local que pode colaborar para um conteúdo mais denso, ou seja, a curadoria tem uma intenção de emocionar, evocar, é uma intenção poética. São várias as intenções e são vários os tentáculos armados para isso. É com essa característica que o meu trabalho difere do trabalho de outros curadores. Não é um trabalho somente intelectual. É um trabalho de pesquisa, de profundo conhecimento, de documentação. Enfim, de uma série de coisas. Sobre os seus trabalhos desde o Museu de Arte da Bahia, passando pelas diversas exposições na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil, o que você destaca nesse percurso? São muitas coisas. Não dá nem para enumerar. Bem, mas tem as exposições dos franceses: (Auguste) Rodin, Maillol. Mas até hoje uma das exposições que mais me impressionou foi a exposição Bahia–África–Bahia. Essa foi uma das primeiras que eu fiz. Essa exposição foi aberta num domingo às sete horas da noite. Pela primeira vez na Bahia uma exposição tinha na abertura 1500 pessoas. Quando eu falei com o Antonio Carlos Magalhães em fazer isso no domingo ele disse “eu vou, mas quem mais vai?”. E foi surpreendente. Eu não sei o que foi exatamente que aconteceu. Tinha os Filhos de Gandhi na porta, gente do teatro. Enfim, era um verdadeiro happening. Eu não tinha tido essa intenção. Não tinha imprensa. Houve uma convocação natural. Foi uma coisa fenomenal. De certa forma eu sempre tive essa intenção de que a exposição deve pegar a pessoa pelo emocional. Deve emocionar as pessoas. Para mim a exposição é um fato

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maior do que uma obra na parede. É um fato mesmo sensorial. De unir coisas, música, dança, texto, fala, cor, luz. E é isso o que me caracteriza quando eu faço uma exposição. Imagino que o senhor pôde conviver com pessoas como Pietro Maria Bardi, Odorico Tavares e Lina Bo Bardi. Como foi essa influência? O meu aprendizado foi autodidata. Convivi com Dona Lina e com o Pietro, mas não foi assim o suficiente para me fazer um discípulo. Eu sempre gostei da Lina porque ela tinha também esse espírito. Eu trabalhei com ela em 1963 na exposição Nordeste. Mas isso foi uma forma minha de observação não só aqui mas na Europa e Estados Unidos. Eu sou um inventor e descobridor de mim mesmo.

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Entrevista de Maria Lucia Montes (Concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: você colaborou durante um grande período com as exposições do Emanoel Araújo, como foi esse trabalho? Como você vê o percurso do Emanoel? MARIA LUCIA MONTES: O grande trabalho que o Emanoel Araujo fez em São Paulo, fora a carreira dele na Bahia, foi a partir da exposição que resultou na publicação A Mão Afro-brasileira e isso vai até o Museu Afro Brasil. O Emanoel está nos ajudando-nos a contar uma outra história da arte no Brasil, uma história que tem cor. Esse é um foco fundamental. Se você pegar a perspectiva daquela primeira exposição, os grandes nomes estão lá. E quem são essas pessoas? É um senso comum que são brancos. Um desses silêncios significativos e reveladores para a gente pensar que, quando alguém dá certo, em algum lugar da história do Brasil, na arte, na política, no que for, fica dado de barato, que é branco. Eu me lembro que uma vez o Francisco Weffort (Ministro de Estado da Cultura), se deu conta do que era a matriz brasileira quando a gente viu a quantidade de pessoas importantes na cultura brasileira que eram negras. Eu brincava com o Weffort e Emanoel falando “não me enlouqueça, por que agora eu vejo nome de rua e eu me pergunto de que cor é a rua”. Teodoro Sampaio, Rebouças, essa gente toda. Então, é essa a história que ele está contando. E olha que de 1988 até agora já fazem 20 anos. E antes disso tinham mais 20 ou 10 anos dele de busca dessa outra história. Acho isso de uma coerência total. Onde está a mão afro-brasileira? Que mão que é essa? Quem construiu o quê? E que quando deu certo sumiu enquanto identificação étnica? Essa é uma questão que atravessa o trabalho do Emanoel e o Museu Afro Brasil está lá para isso. A gente está lá naquele museu contando uma outra história. Do lugar do negro na história desse país.

A partir daí há uma série de outras questões a respeito da história da arte, dos estilos. Como definir isso? Quem são essas pessoas? É preciso ter muito clara essa perspectiva histórica na cabeça. E através da história e da produção plástica desses artistas acabamos entendendo inclusive por que o Brasil é um país racista do jeito que é. Você pega o Estevão Silva. Ele tinha condição de pintar qualquer coisa que o identificasse enquanto identidade étnica? Não tinha. Em compensação, se notamos o Ataíde, branco, vemos aqueles mulatos lá, que são filhos dele. É uma coisa muito louca, porque não há só o contato, há uma mistura muito grande. Não dá muito para separar o que é negro e o que é branco na cultura brasileira. E, no entanto, há uma hierarquia muito nítida. A ponto de, se deu certo, deixou de ser negro. Naturalmente se assume que é branco. Na verdade o Ataide tem legitimidade para representar o negro, embora não seja negro e, provavelmente, porque não é negro. Se fosse negro, ele não teria jamais essa liberdade. Você também estudou as religiões de matriz negra no Brasil. Isso me fez lembrar uma fala interessante do Reginaldo Prandi. Ele fala de negros que se tornam evangélicos e brancos que se tornam adeptos do candomblé. Ele diz que muitas vezes o negro não adere à religião do candomblé porque isso seria torná-lo cada vez mais negro, tornando o preconceito ainda maior. Esse fenômeno é próximo do que ocorre com esses artistas negros do fim do século XIX? Eu não diria que é próximo, porque religião é possível escolher. Você pode virar evangélico. Aqui não é os EUA, as pessoas não nascem numa família batista porque são negras. As pessoas nascem numa família católica, numa família de umbanda. Isso é normal. Até porque o protestantismo aqui é uma coisa nova. Ser católico não é um traço distintivo. Sendo branco ou negro, é brasileiro e acabou. Aliás, aqui não se é nem católico, é semicatólico, semimacumbeiro, semi tudo. É uma mistura religiosa. Então, a escolha da religião é um traço distintivo. Você escolhe para poder se distinguir. Eu diria que no caso dos artistas não é nem uma questão de escolha. Isso é implícito na sociedade. É um dado da sociedade brasileira. Inclusive, no trabalho todo do Emanoel, é possível perceber uma outra coisa interessante: a sociedade brasileira, sendo uma sociedade de ethos aristocrático (o que não quer dizer que seja aristocrática), é uma

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sociedade que permanece com o espírito do regime colonial, em pleno século XIX até hoje. Todos somos iguais mas alguns são mais iguais que outros. Isso é um traço de longa duração da histórica, um traço aristocrático que faz com que o trabalho manual seja comumente desqualificado.

Então, quando procuramos a mão afro-brasileira, na verdade, o que se tem atrás da grande construção da arte brasileira desde o século XVI e XVII são índios, negros e mestiços. A formação deles tem a ver com a corporação de ofícios. E por causa da corporação de ofícios tivemos uma presença dessa mão afro-brasileira infinitamente maior do que se poderia ter em outras circunstâncias. O trabalho manual não é valorizado. Há o mestre, que pode ser branco e portanto vai ensinar um modelo estético europeu, mas a execução e a capacidade de invenção são da mão afro-brasileira. Por causa da corporação temos assim o recrutamento em massa de negros, que podem ser livres. Deixam de ser artesãos para serem mestres também. Assumem um outro lugar dentro da vida social.

Quando vem a Missão Francesa se abolem as corporações de oficio e começa a tragédia. Eu aprendi com o Emanoel uma coisa espantosa, de que eu não tinha a menor noção, sobre a arte acadêmica do século XIX. Debret vem para montar, na verdade, um liceu de artes e oficios e uma academia de pintura. Foi chamado pelo Rei, “vamos fazer uma nova arte a partir de David”. E quem vamos botar nessa academia? Quem são os caras que criam arte? São os trabalhadores das corporações. Os negros. Entretanto, aqui já não se tem mais a corporação para sustentar. Agora eles têm que se afirmar enquanto indivíduos. Todavia, qualquer que seja o seu talento, eles, fora da corporação, não deixam de ser negros. Está aí a história exemplar do Estevão Silva, que recusa o prêmio de segundo lugar. Ele teve coragem de chegar na cara do Dom Pedro II e dizer “não, eu sou melhor”. A tragédia é que a maior parte desses artistas da academia são os naturalmente recrutáveis porque são eles que praticam a arte. São bons. Eles viviam por trás da corporação, havia toda uma tradição. Quando chega a academia eles têm de se afirmar enquanto indivíduos. E aí, por melhores que sejam, não adianta, a cor aparece. Esses artistas ou morrem pobres, miseráveis, ou loucos, ou ambos. A quantidade de tragédias no século XIX é impressionante. Enquanto essa mão de obra negra desaparecia no trabalho, havia eventualmente um Aleijadinho, ou Mestre Valentim, que por ser tão excepcional, ficava. Mas se pensarmos o negro artista tendo que se defrontar com outros concorrentes enquanto artista, entre um negro e um branco, a sociedade vai escolher o branco. Vai ficar com o que ela pensa que é bom. Isso é, o branco, não o negro. Há uma questão de status? Com o período da academia, uma coisa é contratar os serviços de um negro descendente de escravos e outra coisa é contratar, por exemplo, Debret, um artista francês. Logicamente, para a corte isso tem um prestígio diferenciado. Até porque antes da academia não se encontra um indivíduo, mas a corporação. Lá dentro o grande mestre pode ser branco, negro, não importa, há uma diluição social. Agora, quando o século XIX põe a questão da autoria, ele é obrigado a confrontar o artista enquanto indivíduo. Em compensação, há essa história complicada e ambígua, há um outro lado dessa sociedade que torna as relações tão próximas que as pessoas são capazes de aceitar esse artista negro inclusive enquanto indivíduo. É o caso do Mestre Valentim, o sujeito que é amigo do vice-Rei. Quando o Luis de Menezes precisa contratar alguém para as obras, quem ele contrata? O melhor artista da região, que é também amigo dele. Naquele quadro da reconstrução do Recolhimento do Parto, eles estão lá, Dom Luiz e o Mestre Valentim. Nós temos até samba de carnaval contando essa relação próxima do Mestre Valentim com o Dom Luis. Até os amores de Dom Luis o Mestre Valentim compartilhava, segundo a letra do samba. Você pode contar um pouco sobre o período em que esteve na Pinacoteca a partir de 1995? Ainda sobre as exposições, em 1988, A Mão Afro-brasileira, o Emanoel foca a autoria negra e na exposição de 1995, Herdeiros da Noite, nós temos um outro conceito sobre essa narrativa de arte afro-brasileira que inclui até mesmo o Pierre Verger. Como você vê essa mudança?

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Eu te diria que o Emanoel, pensando em profundidade essa história, precisou fazer um escrutínio geral da história deste país. O foco do Emanoel nunca é arte sozinha. É arte em contexto, é arte e história. Daí porque todo esse trabalho de levantamento da mão afro-brasileira tem um viés antropológico, porque busca o registro dessa permanência negra que impregna não apenas o artista negro, mas a sociedade brasileira no seu conjunto. Quando nós fizemos a primeira exposição temporária no Museu Afro Brasil – Brasileiro, Brasileiros (2004) – fizemos uma longa discussão sobre como construir a narrativa da exposição, sobre o conceito curatorial. O Museu Afro Brasil está contando a história do ponto de vista do negro. E portanto ele pode perfeitamente incorporar o negro da terra. Ele tem legitimidade para falar do índio a partir do lugar do negro.

Ora, mas no mundo politicamente correto que nós vivemos já tem branco falando de índio, o que é errado, e agora negro vai falar de índio? Deixamos claro que queríamos falar do lugar do próprio índio. Então, pensamos em trazer um antropólogo que, em vez de ele filmar, dá uma câmera para o índio filmar o que quiser, inclusive ele mesmo. Há um lugar autônomo em que se pode falar de uma figura indígena do lugar dela. Há uma língua que se preserva, formas de criação artística, plumária, de madeira, com pintura corporal, grafismos. E como fazer isso em relação ao negro? Que negro que fala pelos negros? Que grupo político fala em nome dos negros? Há somente divisão, divisão e divisão. Isso me lembra uma história maravilhosa do Adenor Gondim, o fotógrafo da Nossa Senhora da Boa Morte. Ele disse que um dia tinha um programa importante para ser feito em Salvador e estavam discutindo quem vai contratar quem, se vai mandar o ônibus para buscar mais gente. Bom, isso virou um problema, porque estavam elas todas se pegando para ver quem decidia. A mais velha olhou para ele e disse “sabe o que é isso? Senzala, meu filho, senzala”. Quer dizer, a sabedoria daquela senhora sabia o peso que a escravidão tinha deixado. Não temos redes de solidariedade horizontal no mundo dos escravos, o máximo que se pode ter são laços de solidariedade vertical, de negro amigo do feitor e por isso não apanha, o Mestre Valentim amigo do Dom Luis e por isso é reconhecido. A instituição da escravidão criou uma fratura social. Isso está presente até hoje. Há o socialista radical e o petista. Eles são os piores inimigos possíveis. Não é negro contra branco. Embora a ideologia seja essa, a prática é outra coisa. Qual é a produção artística caracteristicamente negra? Do que se pode dizer, “isso é negro”? Nós fizemos um inventário disso. Resultado: tudo o que se sabe ser negro é patrimônio nacional...

Os modernistas diziam que a grande maravilha da cultura brasileira era ser antropofágica, vendo na antropofagia o indígena, mas o verdadeiro antropófago da cultura brasileira foi o negro, que comeu pelas bordas a cultura européia do senhor. Há o tempo inteiro essa ambigüidade e essa ambivalência de saber o que é negro. Se quiser separar e compreender, inclusive sobre uma estética negra, é possível; mas o tempo inteiro nós estamos nos debatendo com essa ambigüidade do lugar social do negro. Isso está até na historia do Emanoel. Filho de ourives, ele nem era muito pobre, mas não era mais que um filho de ourives na Bahia. E ,sendo pobre, negro e gênio, essa é uma grande trajetória.

O Emanoel é uma pessoa difícil, mas quando olhamos a trajetória dele, não poderia ser de outro jeito. Ele precisou ser assim para achar um lugar nesse mundo. Ele está mergulhado profundamente na história do negro. Aonde está a presença desse negro? Para poder legitimar o seu próprio lugar dentro da sociedade, ele fez um trabalho espantoso. Ele fez um inventário desta sociedade, e eu não conheço ninguém que tenha tido a capacidade de reunir essa quantidade de material, essa possibilidade de reflexão que ele criou não apenas para ele mesmo, mas para todo mundo que trabalhou em conjunto com ele. Quando se fala da diferença entre a exposição A Mão Afro-brasileira e a Herdeiros da Noite, eu te digo que não tem diferença nenhuma no projeto. É a mesma coisa, porque o problema é o mesmo. No caso de A Mão Afro-brasileira havia um foco mais preciso, ele pesquisou a identidade étnica de artistas consagrados, escritores e cientistas. Há um momento muito ambíguo nessa história brasileira em que se tem efetivamente um lugar do negro que depois desaparece, “branqueia”. Os irmãos Timótheo, por exemplo, note as pinturas que retratam esses caras. Eles começam a ser pintados como negros. Mas depois que deu certo, vai branqueando de um jeito que se pergunta: é o mesmo cara? É! Mas só que, milagrosamente,

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mudou de cor. É a mesma coisa com essa gente toda do século XIX. Há um surto extraordinário de produção e criação intelectual negra no Brasil. Não apenas no campo das artes. Isso também tem a ver com educação. Esse é um grande instrumento através do qual é possível construir um outro lugar social para o negro. Exemplar é a história do Luis Gama: filho de escravo, vendido aos 5 anos de idade, revendido aos 13, indo parar no Rio de Janeiro. Depois, aos 17, inteligente demais, começa a aprender a ler e se torna o Luis Gama. Ele inventa uma história para si mesmo, constrói uma genealogia através de sua mãe... Que sumiu após a revolução dos malês. Aquele texto contando a biografia dele é de tirar o fôlego. A secura com que ele vai narrando aquelas coisas. Mas, em suma, essa é uma coisa muito peculiar da historia do Brasil. É um momento em que a instituição da escravidão está sendo posta em cheque. Isso deixa para as elites a pergunta “o que nós vamos fazer quando não houver mais escravos?”. Então, temos desde o Vergueiro importando imigrantes para as fazendas de café até o grande projeto educacional dos maçons. A maçonaria é absolutamente fundamental. Ela está por traz da criação do Liceu de Artes e Ofícios na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo. A história que nós conhecemos de mais sucesso tem os maçons por trás. Ramos de Azevedo, por exemplo, criador do Liceu, era maçom. A Unicsul lá no Jardim Anália Franco, a sede dela, é a casa da Anália Franco. E foi feita para ela pelo Ramos de Azevedo, em função do projeto educacional dela. Imagina, morando no interior, não casada, tinha um amante e se propunha a ensinar as primeiras letras para crianças brancas e negras! Na biblioteca, onde é a sede da Unicsul, tem uma parede inteirinha pintada com figurinhas escrevendo em cartilhas dos anos 1910 e 1920, tem brinquedos de crianças negras e brancas. A Anália Franco é maravilhosa e o apoio para esse tipo de iniciativa é sempre da maçonaria, que tem essa preocupação com a questão da abolição. É uma perspectiva humanista. A escravidão é um horror. Ela vai acabar e o que vai ser dessa gente? O que vai ser deste país?

Com a educação, no século XIX há gente importante ocupando cargos na arte, na literatura, nas ciências, na política etc. Isso em função desse processo de educação profundamente criado pela maçonaria. Há um momento da história brasileira onde teríamos tido a possibilidade de que a história do negro fosse de outro tipo. A abolição não acabou. Começou, mas não acabou. Não é à toa que o Patrocínio, o Nabuco, essa gente toda, era monarquista. Eles sabiam que a única possibilidade da abolição ser concluída é graças a quem vai precisar do apoio do negro, que é o Império. Os grandes abolicionistas são monarquistas. Eles têm consciência que misturar a questão social com a questão do regime político é um erro, mesmo dos republicanos históricos mais idealistas, como Silva Jardim ou Ruy Barbosa. Os republicanos de 1888 são todos aqueles que perderam os seus escravos e viram republicanos no ato. De onde sai o Partido Republicano? Da Convenção de Itu. Os caras já tinham resolvido o seu problema de mão de obra importando italianos e espanhóis. A partir desse momento, danem-se os negros. Já se resolveu o problema do café, mesmo com a república dos militares. Há um período de instabilidade e daí se instala o café-com-leite. Mas até os anos 1930 há continuidade com o século XIX. Há ainda um lugar do negro enquanto cidadão, a imprensa negra, os projetos educacionais feitos por negros. Depois, vem a Guerra, a década de 1940, e então isso vai mudar.

Quando, na década de 1930, estudam o lugar do negro, a democracia racial, isso não é invenção de Gilberto Freire. Se pensar no caso americano, há segregação racial lá e aqui há um tipo de convívio que seria impensável nos Estados Unidos dos anos 1930 e 1940. Aqui há condições sócio-raciais e inclusive econômicas , através da educação, de integrar esse negro enquanto cidadão. Isso pelo esforço dos próprios negros, porque a política oficial não resolveu o problema. O café-com-leite mantinha o domínio político para o benefício dos grandes senhores sulistas e acabou. Nas décadas seguintes isso se inverte, nos EUA o movimento dos direitos civis põe a população negra em outro patamar. Hoje, se comparamos a população negra americana e a brasileira, é água e vinho. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Por que estou falando isso? Porque tudo que eu aprendi da história do negro, sobre a estrutura de funcionamento desta sociedade, foi graças ao Emanoel. Por causa do trabalho que tinha de fazer com ele. Ele tinha pilhas de objetos sobre a mesa e precisava refletir sobre tudo isso para aprender a entender a si

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próprio, para mostrar ou justificar a sociedade brasileira, o mundo do qual ele é uma exceção. Ele seria a regra se tivesse nascido no século XVIII. O pai dele era um grande artífice, um ourives. Nós vamos escavando mais longe e vemos que toda a técnica de metalurgia brasileira é africana. São eles que sabem lidar com isso. A técnica de fabricação do metal não é portuguesa, é africana. O que é a grande coisa que o Emanoel fez? Primeiro rastreou a mão afro, depois começou a recortar fatias disso, e então deu a elas a dignidade de obras de museu. Uma coisa inteiramente inédita nesse sentido. Ele colocou certos objetos num espaço, o museu de arte, que tradicionalmente não recebia aqueles objetos dessa forma. Sim, na abertura da exposição Os Herdeiros da Noite o Emanoel chamou o Tião Carvalho, o maranhense lá do Morro do Querosene, do boi. Tinha também a baiana do acarajé. O Tião Carvalho tocou o boi na frente da Pinacoteca na Tiradentes num sábado de manhã. Juntou aquela gente toda e o Tião falou: “pode subir, pode entrar!”. Ele solicitou para o público entrar naquele espaço totalmente sacralizado, branco e de elite. Com isso estávamos quebrando a marca de elite e dizendo: “qualquer um pode entrar”. Não apenas qualquer um pode entrar mas, lá dentro, o público vai ver uma coisa que nunca viu, que faz parte desse mundo e do de qualquer um. Durante os anos 1990 a Pinacoteca deu um salto em termos de aceitação pelo público. Essas ações contribuíram para dar um novo caráter para a Pinacoteca? Sim, completamente. O Emanoel tem um toque de Midas. Ele tem uma inteligência absolutamente brilhante. Ele é um criador de exposições. A Pinacoteca precisava se tornar visível. Ela estava lá há 100 anos. O prédio caindo. A Faculdade de Belas Artes tinha acabado de sair do prédio. De onde era possível tirar dinheiro para reformar esse prédio? O Emanoel, de uma maneira genial, fez uma política de visibilidade da Pinacoteca. Isso tudo começou com a exposição do Rodin. Foi nessa época que fui parar lá. Não por causa do Rodin, mas por causa de outra coisa. Eu fiquei na Pinacoteca porque eu me dei conta do tamanho do desafio que o Emanoel estava propondo. Sobre o Rodin, o problema da fila de 7 horas para ver a exposição é que a exposição estava no primeiro andar. O Emanoel não tinha certeza da segurança das vigas para colocar aquelas esculturas com aquele peso e aquele monte de gente. Enfim, a exposição já estava sendo montada, e ele colocou ela lá embaixo para ter certeza que não teria risco para as pessoas. Ele mandou tirar o assoalho para dar uma olhada nas vigas, mas ainda assim havia um número limitado de pessoas que podiam circular no museu. Quando eu cheguei lá é que eu me dei conta de onde estava aquele homem. Ele fez tudo aquilo com a exposição do Rodin. O que ele tinha na cabeça, em termos de projeto, de reformar aquilo e pensar no que podia ser, era excelente. Ele pensou num outro lugar para ver a cultura no Brasil. Eu falei: “esse homem pensa longe demais”. Não tem nada de mesquinho, nada pequeno. Como nós podemos deixar esse cara sozinho?

Naquela época a Pinacoteca tinha duas restauradoras, que ao mesmo tempo atendiam telefone, recebiam correspondência etc; um designer gráfico que tinha feito o catálogo da exposição Rodin; um monitor que coordenava o trabalho para a exposição do Rodin e eu que cheguei. Isso era o staff da Pinacoteca. Na verdade, o Rodin foi o marco que permitiu ao Emanoel criar visibilidade para aquele espaço. Mas desde o começo ele foi demarcando que essa visibilidade tinha de ser original, mostrando uma outra coisa que nunca se viu na alta cultura. Quer dizer, Os Herdeiros da Noite é uma exposição que marca, com a baiana e o Tião, uma forma de estar trazendo esse outro universo para dentro do espaço sagrado da exposição. Agora, como é que eu fui parar lá foi um fato engraçado. Não tinha nada a ver com a Pinacoteca. Eu trabalhei 5 anos com carnaval, com o Joãosinho Trinta lá no Rio. E aí eu descobri um aderecista e fotógrafo. O tempo todo que eu estava registrando antropologicamente o cotidiano do barracão, esse cara fazia a mesma coisa com as fotos. Eu era personagem das fotos dele. Isso acaba com aquela definição antropológica de quem é sujeito e quem é objeto. Em 1994 ou 1995 eu vi o conjunto de fotos do cara e pirei. Pensei: “eu tenho que fazer uma exposição disso, é uma escola

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de samba vista por um lugar de onde ninguém viu . É o barracão se contando a si próprio, do lugar de dentro”. E essa exposição foi para a Pinacoteca? Não. Foi pro MAC. A Ana Mae estava lá e volta e meia ela me chamava. Dizia: “eu preciso de um antropólogo de plantão”. Isso acontecia toda vez que aparecia um “problema” naquele museu de arte, como um tapete de Corpus Christi... Como foi que essa produção entrou lá no MAC? Houve discussão? Claro. O layout dessa exposição foi de um templo, uma igreja. O Gabriel Borba construiu um cenário com uma grande nave central. Lá no altar-mor uma foto do Joãosinho Trinta dormindo, dentro de um carro alegórico, que era um navio, a nave dos loucos. Na epígrafe da exposição estava “um homem sonha – e mãos que trabalham e recriam o universo”. Para fazer isso há a cabeça do carnavalesco, mas sem aquele trabalho do barracão nada daquilo dá certo.

Na exposição, as capelas laterais foram construídas para virar os diversos setores de trabalho do barracão. Isso é uma coisa feita para a glória do efêmero. E ao invés de fazer a grande exposição de fotografia, fiz um trabalho de etnografia. Então havia o registro do processo. Cada painel contava um fragmento desse processo de trabalho, mas com o olho da etnografia. Alguns achavam um absurdo. Por que fazer uma exposição com um monte de fotografias de péssima qualidade? Claro, se estão querendo a imagem fotográfica em especial, não é isso o que eu foquei. Em compensação, uma das coisas que lembro com maior alegria é que provavelmente eu nunca vi o MAC com tanta gente. É claro que o Joãosinho veio ver. E aí todo mundo – vigia, porteiro, moça da limpeza – queria estar dentro da exposição. Na hora da fila, dentro da exposição, democraticamente aquilo era uma fila. Tinha gente que nem sabia quem era a Ana Mae. Ela estava no meio da fila, eu falei “Ana Mae, deixe eu levá-la até o Joãosinho”. Ela disse “não, está ótimo aqui”. Essa exposição foi uma experiência completamente esquizofrênica e desconexa na história do MAC. Por um lado era o “horror estético” completo. Imagine papel enrolado, pregador de roupa, fotografia de má qualidade e aquela inundação de imagens. Agora, por outro lado, tinha a coragem e a beleza da Ana Mae de bancar aquilo, essa inundação de gente, os outros, aqueles que vão ver o bumba-meu-boi na porta da Pinacoteca. Isso é uma questão de proximidade e identificação do público com o universo cultural que lhe diz respeito, exatamente como o Emanoel Araujo faz? Aliás, na exposição Os Herdeiros da Noite, aconteceu que o pessoal morria de medo de entrar lá dentro. Aí o boi disse “pode vir, não é proibido”. Depois de entrar, eles não deram grande bola para a exposição Herdeiros da Noite; em compensação, o acervo da Pinacoteca, aquela maravilhosa arte do XIX, foi muito visitado. Perguntavam, “a gente pode voltar aqui?” Claro que pode. Pela primeira vez eles tiveram acesso a grande arte porque a gente os chamou, pelo boi. E trazendo uma coisa nova em termos de visualidade. Coisas que os faziam perguntar sobre o que aquilo está fazendo lá dentro? Então a identificação era o boi e a grande cultura. A exposição que estava no meio eles podiam pular. Viram, gostaram, mas não entenderam muito. Até porque a exposição, que tinha como subtítulo Fragmentos do imaginário negro, não era uma coisa muito fácil para um público iniciante. Mas eles viram uma exposição do século XIX que, no entanto, também tinha um pintor como o Estevão Silva... Claro. Mas aí eles não sabem quem é branco ou preto. Depois eles vão tirar o Estevão Silva do contexto e vê-lo como negro... Fato interessante desse período foi a criação da sala do Rubem Valentim num local privilegiado. O artista, fortemente identificado com uma cultura afro-brasileira, estava do lado do Rodin e de diversos outros artistas da chamada alta cultura brasileira e internacional. Isso é uma nova narrativa que se forma?

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Como projeto museológico, é uma revolução. Há um novo convívio, um diálogo, que é inteiramente inusitado. Eu não conheço ninguém que tenha feito uma coisa tão inovadora, como projeto de museu, como essa. Agora, o que me levou para a Pinacoteca é que estava fazendo aquela exposição do Joãosinho Trinta lá no MAC e o Emanoel estava fazendo uma exposição sobre carnaval com acervo do Tinhorão. Eu tinha levado um tombo, uma ruptura de ligamento, que me impedia de andar. Uma amiga minha ligou para uma outra e disse “Alugue uma cadeira de rodas, pegue a Maria Lucia e leve na Pinacoteca. Tem uma exposição de carnaval lá e ela tem que ir falar com o diretor do museu”. Eu tinha uma vaga idéia que o Emanoel era um negro. Quando o vi passando lá na Pinacoteca, fui atrás e perguntei “você é o Emanoel?”. Ele disse “sou”. E aí conheci o Emanoel e falei com ele sobre a minha exposição do carnaval. Depois houve um debate no MAC e nós convidamos o Emanoel. Ele foi lá, foi ótimo. E ele perguntou se eu não queria ir na Pinacoteca, “tem um projeto lá que estou desenvolvendo e você podia dar uma olhada”. Isso já era na época do Rodin. Fui lá ver o projeto dele. Chamava Negro de Corpo e Alma. Isso em 1994 já? Sim, foram quase sete anos de trabalho até a exposição de 2000. Ela era inicialmente um projeto e depois se tornou a exposição Negro de Corpo e Alma. O Emanoel me chamou lá para dar uma olhada nesse projeto. Quando eu olhei o que era aquele museu e o que aquele homem tinha na cabeça, pensei, “tenho de ficar”. Tinha lá o Gilberto Habib que trabalhou na monitoria do Rodin, um designer gráfico, duas restauradoras, eu, mais seis meninos da montagem, tudo em paralelo ao trabalho da Pinacoteca. O que tinha lá de funcionário público era muito pouco. O Emanoel precisou criar um museu paralelo para poder implementar essas ações. Na exposição Negro de Corpo e Alma há uma divisão interessante sobre os temas – Olhar o

Corpo, Olhar a si Mesmo, Sentir a Alma – como foi a elaboração desses conceitos para pensar essa exposição? Isso já estava na cabeça do Emanoel num primeiro momento. Devido ao tamanho do material que ele tinha, nós tentamos fazer um projeto, no qual transformaríamos a Pinacoteca num núcleo de pesquisa associado à USP para poder, via FAPESP, legitimar esse local como um lugar de pesquisa. Além disso, poderíamos pagar pesquisadores, começar a organizar aquele acervo do Emanoel e fazer uma troca entre Universidade e museu. Isso era uma coisa totalmente desprovida de propósito para a FAPESP naquele momento. Hoje em dia, a FAPESP estava louca para fazermos um projeto assim, mas quando isso foi proposto, não aconteceu. Teve uma época em que havia um bando de pesquisadores discutindo a catalogação desse material e aprendendo a refletir sobre ele através da sua manipulação. Nós tinhamos a Íris Kantor, da História; a Iara Schreiber, historiadora e antropóloga; a Luciana Aguiar, professora da USP; o Gilberto Habib e eu, além de outras pessoas. Nós fomos pesquisando aquele material, discutindo com o Emanoel o tempo inteiro. O vínculo entre Universidade e FAPESP não aconteceu, mas nunca deixamos de mexer no material. Enquanto isso, o Emanoel continuava com a política de visibilidade da Pinacoteca. A primeira exposição grande que acompanhei foi a do Rafael Bordalo Pinheiro, o caricaturista, o ceramista e os artistas do Grupo do Leão. Uma exposição internacional. Um detalhe: o Emanoel tinha a casa dele forrada de material do Bordalo. Nós pudemos fazer uma recomposição do que era aquele mundo da caricatura sobre o Imperador, sobre sua relação com o Agostini, com o Patrocínio. Tanto que o Emanoel agora fez uma exposição sobre o Bordalo e o Patrocínio. Hoje ele tem legitimidade no Museu Afro Brasil para fazer uma exposição só sobre o Patrocínio. Antes, essa era apenas uma vertente da obra do caricaturista e ceramista Bordalo. De repente nós começamos a fazer uma outra exposição negreira – na Bahia eles chamam todo branco que estuda negro de negreiro, Verger era negreiro, o Carybé, e eu, claro, fui promovida a negreira – era Arte e Religiosidade no Brasil – Heranças Africanas. O tempo todo era uma tarefa de romper fronteiras. Isso é uma coisa absolutamente característica do Emanoel. Aconteceu uma exposição de fotos africanas também em 1996?

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Isso tinha a toda hora. O mês de maio era dedicado à fotografia. Aconteceu uma exposição que fizemos sobre o cara que retratou Canudos, Geraldo de Barros. Nessa época estava saindo o filme. Então nós fizemos um jogo sobre o que é ficção e o que é realidade com fotografias. A fotografia como suposto documento da época é construção, é o olhar do republicano querendo acabar com os fanáticos. O único lugar em que há de fato a população de Canudos é a hora em que eles estão rendidos e a foto do conselheiro morto. Por outro lado, nós tínhamos as cenas do filme, que era ficção. Na verdade, para conhecer a Canudos pelo seu outro lado era preciso ver a imagem do povo real na obra de ficção, pois o documento “real” da época é que era uma outra ficção. Nós tivemos também a exposição do Walter Firmo, sobre Pixinguinha. E, finalmente, a dos fotógrafos africanos. O mês da fotografia era o momento de pesquisar esses temas populares ou de mostrar o trabalho de fotógrafos negros. Toda a parte de fotografia do Museu Afro Brasil atual foi instituída a partir desse trabalho do mês da fotografia na Pinacoteca. Havia as grandes exposições internacionais, sempre com um pé na historia. A escultura começou com o Rodin, passou pelo Maillol, o Bourdelle, a Camille Claudel. Aqui a gente já estava no Ibirapuera. A Pinacoteca tinha finalmente dinheiro para ser reformada e o museu foi para o Ibirapuera. A exposição que fizemos no parque era a conclusão dessa série dos grandes escultores.

Entre outras coisas, nós resolvemos naquela época fazer um site na UOL sobre a exposição da Camille. Então a exposição estava on-line também. Havia muito retorno de pessoas de todo o Brasil. Isso teve desdobramentos e o Emanoel ganhou um prêmio na França por causa da exposição do Rodin. O pessoal do Museu Rodin na França nunca tinha visto uma exposição tão próxima da obra do Rodin. Com o prédio da Pinacoteca, mais um escultor fazendo a curadoria, foi excelente. Isso criou uma forte relação do Emanoel com o Museu Rodin que permitiu depois a criação de outras exposições do Rodin pelo Brasil. E finalmente a proposta de criação de um Museu do Rodin na Bahia, que agora não se sabe quando que vai sair. O governo do Antonio Carlos Magalhães, o PFL, fez essa parceria em forma de comodato. Uma coisa inédita. O Museu Rodin estava fazendo uma filial cedendo em comodato peças do museu para a Bahia. Fizeram até uma exposição baseada no projeto do museu para inaugurar. Mas mudou o Governo. Imagina, projeto do PFL? O Wagner vê... Mas o começo disso tudo está na exposição do Emanoel. Ele tem uma trajetória vinculada à arte dele, a escultura e a procura por grandes exposições internacionais de prestígio, mostrando os escultores clássicos e os contemporâneos. E agora no Museu Afro Brasil ele trouxe os artistas africanos. Há essa linha do escultor Emanoel refletindo sobre a história da sua arte. Além do vínculo entre artista e curador, o Emanoel também é colecionador. Você entrou em contato com essa coleção? Tentando sistematizar esse conjunto que é suporte para as exposições dele? Inviável. (risos) Como foi esse trabalho com a coleção? Isso nós fizemos quando finalmente fomos montar a exposição Negro de Corpo e Alma. Nós já estávamos no Ibirapuera e ele foi trazendo aquele material. Já tinhamos trabalhado com uma boa parte dele, desde quando eu fui para lá ajudar no projeto Negro de Corpo e Alma, para o centro de pesquisa, que era um projeto de catalogação do colecionador. Isso serviria de base para fazer o projeto Negro de Corpo e Alma. Mas com a FAPESP não aconteceu. Finalmente a exposição foi realizada, depois de quatro ou cinco tentativas. Tinha um amigo dele que queria levar a exposição para Nova York, mas não aconteceu. A Bienal queria que o Emanoel fosse curador de uma outra exposição nos 500 anos, ele foi e disse que não, “eu quero fazer esse outro projeto”. Era para serem 10 exposições, acabaram sendo 11. Incluiram Negro de Corpo e Alma. Que inclusive está separada da mostra arte afro-brasileira na exposição Brasil + 500... Sim, que foi realizada pelo Kabengele Munanga. O Emanoel também fez a curadoria da mostra de arte popular e sobrou a Carta de Caminha e o Cangaço. Tudo lá dentro do prédio. Fora que o Edemar Cid Ferreira saía com o Emanoel de baixo do braço para difundir a imagem do Brasil no

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mundo. Ele era curador de quatro exposições lá dentro do museu. Nunca foi tão fácil trabalhar com o Emanoel. Como não dava para criar maluquices, nós tínhamos algum problema, pegávamos o celular e falávamos com ele. Emanoel, o problema é esse. Temos a solução 1, 2 ou 3. Qual você prefere? Bem, faça isso e aquilo. Quer dizer, ele pegava aquelas e criava uma outra alternativa. Era preciso ter objetividade. Enfim, nessa hora de organizar o conceito curatorial, ele foi trazendo o acervo lá para o Parque. Era uma quantidade enorme de material sem conservação. O Gilberto Habib comprou quilômetros de acetato para poder embalar o material. Haviam as grandes mapotecas também. Nós então olhávamos cada peça e catalogávamos segundo os temas Olhar o corpo, Olhar a si mesmo e Sentir a alma.

O acervo foi organizado em função da exposição. O Emanoel não achava mais nada (risos). Mas dentro de toda aquela produção industrial, nós já sabíamos onde ia cada coisa. Como o Emanoel estava muito ocupado, essa época foi um dos momentos em que nós mais trabalhamos em conjunto, efetivamente. Nós criamos esse diálogo espacial da exposição. Se alguém via na diagonal, havia tensões; se visse na vertical, havia continuidade; se olhasse na horizontal, contrastes. Todo o desenho do espaço foi pensado para fazer uma narrativa que é muito complexa. Essa narrativa é menos linear, propõe mais confrontos? Nem uma coisa nem outra. O que eu aprendi nesses sete anos trabalhando com o Emanoel é que não é possível falar da problemática do negro no Brasil sem falar da ambivalência. Desde o Aleijadinho fazendo arte européia e o Ataide, branco, pintando uma santa negra, há tensão. Isso perpassa tudo o que podemos pensar sobre a história do negro no Brasil. Eu tive um problema com relação aos modernistas. O que são os modernistas? Olhar o corpo ou Sentir a alma? Depois de sete anos trabalhando nisso, com o catálogo pronto, com os modernistas em Sentir a alma, o Emanoel decidiu que aquilo deveria ser Olhar o corpo! Após muita briga e discussões, acabou ficando assim mesmo... E os artistas do Olhar o corpo ficaram situados principalmente dentro dos séculos XVII e XVIII? Sim, um olhar principalmente exotizador. Tinha a tapeçaria, o anão com vitiligo, as formas caricaturais e até mesmo partituras de música. Nos anos 1930 quando começaram a valorizar a presença negra, a ilustração é integralmente caricatural. Eu até entendo porque ele estava incomodado. O cara que estava incomodado era o cara com argumento político. O Emanoel dizia “você vem com coisa de branco. Eu quero coisa de negro”.

Mas o Emanoel tinha razão pelo seguinte: enquanto artista, ele estava olhando a representação. Essa representação ainda está impregnada dessa imagem, ainda que os artistas pensem em traços modernos e transformem isso em um ícone de modernidade e brasilidade. Enquanto imagem, ela ainda tem um traço forte de exotismo. Mas tem um detalhe, o exótico está sendo assumido como brasilidade, daí a história do porque Sentir a alma. É o momento em que a arte está legitimando uma versão de Brasil que não é pautada pelo modelo europeu. Exatamente quando o Mário de Andrade fala sobre a “mulataria” do Aleijadinho, Mestre Valentim. Sim. Sentir a alma era menos uma visão de representação plástica que uma representação a serviço de uma outra cultura, que está sendo afirmada como inseparável de uma herança negra. O que define uma identidade cultural, uma cultura nacional. É muito difícil lidar com isso. Você tocou num ponto importante quando falou do Emanoel político. Embora o Emanoel não seja um militante, muito do trabalho dele vem de encontro com anseios da comunidade negra organizada, no sentido de criar uma representação do negro a partir do próprio negro. Como você vê isso?

Não se esqueça que quando se pensa em negro também é necessário pensar em pobreza, em carência. Uma imagem que ele tentou em sua vida manter à distância, até mesmo para poder

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continuar sendo quem ele é. A dificuldade de lidar com o Emanoel eu balizei como parte de sua história. Novamente, é a tensão e ambivalência. Eu vi o Emanoel colocar os braços em cima da mesa e chorar feito criança um dia na Pinacoteca. Nós tínhamos um técnico que foi consertar o telhado, ele estava desempregado, não tinha onde morar e estava dormindo no andar de cima da Pinacoteca. E o que faz o Emanoel? O diretor de uma instituição pública? Ele tinha que colocar um negro pobre para fora? Ele chorou... Outra vez, quando ele foi pegar as peças do Artur Bispo do Rosário na instituição psiquiátrica ele voltou e caiu em prantos. Dizia “por que aquele cara estava trancafiado lá e não eu? Ele era só um artista. Eu, negro e rico, sou artista. Ele, negro e pobre, é louco”. Dentro daquela instituição só tinha negro pobre. Isso dilacerou o Emanoel. O seu jeito difícil foi o modo que ele conseguiu para legitimar a sua posição. Não peça para ele ser militante, pois a sua história já remete a isso.

Ele oscila. Tem horas em que odeia essa ambigüidade brasileira. Ele preferiria que branco fosse branco e preto fosse preto. Esse é o modelo americano, que por um acaso se aproxima da posição militante negra no Brasil, que eu considero um equívoco total em termos de movimento político. Não tem como dar certo, nossa história é outra. Então isso aparentemente o aproxima da militância dos movimentos negros, mas simplesmente porque ele não agüenta tanta ambigüidade. Por outro lado, tem essa pessoa com imensa sensibilidade e conhecimento da história do Brasil, que sabe que isso é balela, não é assim. A história desse país é a história da ambigüidade. Agora, não tenha dúvida que ele é uma pessoa fundamental para pensar o que é legitimidade e representatividade para o negro, pensando em reformular uma outra história não só do negro, mas do Brasil. O seu engajamento militante é fruto da trajetória de vida dele, mas isso não é apenas um engajamento político militante restrito. Na verdade, ele está para além do que os movimentos negros pensam. Ele está pensando uma coisa crucial que nunca foi tematizada, nem na academia, nem nas instituições culturais, que é a cultura negra. Se pensamos no negro na história do Brasil, pensamos em escravidão. Mas se pensamos todo o resto do Brasil, não há Brasil sem o negro. É uma trajetória inteira que desemboca no Museu Afro Brasil. Sobre a questão da curadoria, eu acho que o Emanoel tem um instinto de produção e criação visual que é absolutamente extraordinário. Além de ser escultor, o grande sonho do Emanoel era ser arquiteto ou historiador. Ele como artista sintetizou essas profissões em seu trabalho curatorial. Quando estávamos montando a exposição dos 500 anos tinha quatro pessoas pensando o espaço do Pavilhão, que estava em reforma. Ele elaborou a parte de marcenaria inteira das quatro exposições curadas por ele. Aquele espaço todo do Ibirapuera era uma grande escultura do Emanoel.

A coisa dos contrapontos, dos ângulos, é uma característica inteiramente africana. Eu me lembro de uma vez em que o Emanoel conversava com o George Nelson Preston, professor da CUNY, e este disse, “você sabia que o fato de você se chamar Emanoel e de eu me chamar George tem a ver com a hora de partida do navio na África?”. Efetivamente, é necessário ter essa dimensão de diáspora, esse diálogo não apenas com a África, mas com a diáspora inteira. Uma coisa que o Emanoel nunca esqueceu. Isso está presente nas bandeiras do Haiti e nos retornados da África. A dimensão da diáspora está presente o tempo inteiro. O George, quando analisou o trabalho do Emanoel, viu que ele está contaminado do reducionismo e da assimetria que são uma característica da arte africana. Isso é um valor que está na música, nos desenhos dos tecidos, no modo de talha da escultura. E a obra do Emanoel é isso. Ainda sobre a curadoria, ele tinha quatro exposições na cabeça e quando nós entrávamos no pavilhão do Ibirapuera eram 13 mil m2 de escultura do Emanoel. Cada ângulo trazia diferentes tipos de incidência de luzes dentro da profundidade do espaço. A montagem da exposição foi criada em função dessa visualidade. Não é possível dizer que veio primeiro o espaço e depois o conceito ou primeiro o conceito e depois o espaço. Está tudo junto. Eu digo que só conseguia trabalhar com o Emanoel porque já tinha visto o Joãosinho Trinta trabalhando no barracão. Ele só sabia definir o acabamento dos carros colocando todos enfileirados no barracão, percebendo em que ordem eles aparecem para o público. Ele fazia isso empiricamente e com o Emanoel era a mesma coisa. Na exposição dos Herdeiros da Noite em Belo Horizonte, ele sentou com o Kinoshita, o arquiteto, planejou tudo, foi montado e no dia de inaugurar a exposição ele disse, “não está legal, desmonta”. Eram nove

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horas da manhã e estávamos mudando a exposição! Já que mudou a disposição das peças, isso altera também o texto, porque o texto estava pautado num diálogo específico entre as peças. Durante a exposição e depois da abertura havia mudanças na exposição? Não durante as exposições, isso acontece no Museu Afro Brasil. Isso é muito complicado em termos de museu. É próprio do museu fazer uma leitura da exposição, preparar o material pedagógico em função disso, de um modo que não dá para mudar tudo assim. Como se faz para desenvolver e dar continuidade a esse trabalho educativo? O museu é a vida do Emanoel inteira, ele conhece cada peça e pode mexer nelas como bem entender. Mas esse tipo de intervenção Atrapalha, e muito. o trabalho na instituição. São duas lógicas distintas, a exposição dele e o trabalho educativo? Sendo que o trabalho educativo necessita ser um trabalho didático? Não é uma questão de duas lógicas, exposição e educação. A questão é que uma coisa é uma exposição e outra é a criação de um museu. O Emanoel gerenciou brilhantissimamente a Pinacoteca porque tinha uma infra-estrutura pronta. Ele podia criar um museu em paralelo e administrar essas coisas. O grande drama do Museu Afro Brasil é que isso não está garantido, para poder manter o museu é preciso criar eventos o tempo inteiro. A Pinacoteca era uma OSCIP sem ser OSCIP, podia angariar fundos de empresas pelas leis de incentivo para patrocinar uma exposição, mas muitas vezes precisava deles para a manutenção do museu. Então, depois, ele pegava o dinheiro do Estado, de manutenção do museu, e punha para pagar a exposição. Isso criava um problema, mas nós tínhamos um advogado específico para acertar legalmenter essas coisas, o fluxo dos recursos, em termos de fundos públicos e privados. Isso tudo com integridade total, nunca sendo feito para se favorecer ninguém. Era resultado de uma impossibilidade de lidar com a burocracia. Se está chovendo dentro do museu, não é possível esperar uma licitação, então se usa o dinheiro que tem em caixa para o conserto. Enfim, isso estava garantido lá, no Museu Afro Brasil não está. Fazer isso na Pinacoteca foi possível graças a uma política de visibilidade da instituição. Ele faz a mesma coisa no Museu Afro Brasil, daí que a exposição permanente seja tão mutável, até as exposições temporárias às vezes podem mudar. Na exposição Brasileiro – Brasileiros ele desmontou a exposição, fez um remix do que sobrou e virou uma outra exposição. Ele está o tempo todo sendo pressionado por essa dinâmica de segurar a instituição. Isso é um negócio completamente contraditório, porque a lógica de criação da instituição exige um planejamento e a lógica do cara que faz a exposição é ser criativo e mexer o tempo inteiro, pois sem isso o museu não subsiste. Mas quando se faz isso, mina as bases da instituição. Isso cria uma tensão e uma contradição muito grande. Se de repente ele morre, aquele acervo pode sumir de um dia para o outro. Essa é uma preocupação minha. O Emanoel precisaria poder confiar nos outros para dividir responsabilidades. Eu vi que os mesmos problemas começavam a acontecer e vi que precisava sair, mesmo antes de ir embora. Não dá. Porque eu acho que estou certa de uma perspectiva, mas ele também está certo de outra.

O Emanoel é um grande curador no sentido de que conceito e espaço são problemas pensados em conjunto. Isso também é uma coisa difícil de equalizar. Alguns reclamam que as exposições do Emanoel são over e confusas por causa desse método. Nem sempre ele pensa em evidenciar quais são as conexões para o visitante, porque o espaço te permite fazer. Tem exposição que não precisa ter nem texto. Há o espaço aqui, nós olhamos para lá do outro lado e o espaço te deu um contraponto, mostrou uma tensão, relativizou a leitura de um e outro. Mas quando isso é feito com pressa pode ficar mais difícil de ser lido.

Agora, a genialidade dele como artista lhe permite improvisar. Essa coisa de montar e desmontar exposição no dia, quando olhamos isso no final, vemos que ele tinha razão, está bem melhor assim. Na hora do planejamento é uma coisa, na hora da exposição é outra. Olha, tudo que eu aprendi sobre museologia e Brasil visto dessa perspectiva é devido ao Emanoel. Quando ele fez uma exposição sobre as várias facetas do Francisco Brenan, eu estava ajudando a fazer o texto e conversei com o Emanoel. Ele começou a contar as coisas técnicas do fazer do artista. Isso foi maravilhoso. Como ele tem uma cultura extraordinária, era um escultor vendo um outro

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escultor que também é desenhista e gravador. Isso é o que estava posto na curadoria daquela exposição. Eu aprendi indiretamente.

Enfim, o que eu destacaria nessas exposições: 1) a arte e 2) o negro olhando a arte negra. Ele constrói isso o tempo inteiro com histórias. Eu nunca vi o Emanoel pensar numa exposição somente na arte, sozinha. Aprendi que nada na arte existe sem o seu contexto, sem contextualização. Isso não é feito de fora. A história está lá e está integrada como parte da exposição. Às vezes o sentido dessa história está na exposição espacialmente. Se podemos ver esses objetos de outro modo, não faz sentido a exposição. A exposição tem sentido quando cria uma conversa com os objetos de um modo que só podemos ver na exposição.

Me lembrei da exposição Arte e religiosidade, em Brasília. Foi uma exposição espantosa no sentido de ver a presença afro moldando a cultura brasileira. Nós estávamos num galpão, um centro cultural na sede da W3. A exposição era uma coisa que vinha de fora do governo e entrava no cotidiano de Brasília. Era preciso criar uma forma de leitura da exposição. O Kinoshita deu uma idéia para o pé direito alto, “Emanoel, porque não colocamos uns panos no teto”? Ótimo! Então nós tínhamos panos brancos cobrindo o espaço – cobrindo o templo de Oxalá. Depois tinha um pedaço ligado à escravidão – havia um véu negro, todo prateado, era uma noite tenebrosa e também um céu estrelado cobrindo um navio negreiro. Aquela exposição era inteiramente clara. Em contraposição, no Itamarati tinha uma exposição do Aleijadinho, inteirinha escura, fora os detalhes, cheia de trevas, sofrida, era um olhar de branco. O olhar do negro era uma coisa deslumbrante com o branco de Oxalá no meio e cor e mais cor, uma grande produção. É necessário ter muito senso de espaço para armar essas coisas como exposição. É maravilhosa essa coisa que o Emanoel faz. Ele junta arquitetura, história e arte para pensar isso em curadoria. Depois tem isso do negro e artista. Ele pensa o significado dessa arte com a história e no espaço da exposição. Há também o Emanoel artista que lê a sua própria arte, o seu trabalho com a escultura. Junto com a exposição do Rodin foi feita a exposição Expressões do Corpo. Ele pegou os grandes escultores e os fazia dialogar com a escultura clássica francesa. São diálogos fundamentais, as matrizes brasileiras com o clássico. O erudito e o popular nunca separados. Isso acontece quando ele apresenta, por exemplo, o Nino. A primeira exposição do Nino foi na Pinacoteca. Quando ele fez a exposição de arte popular foi incrível. Nunca tínhamos visto tantas peças de arte popular. Sobre a Janete Costa, que tem um engajamento político completo com essa arte, o Emanoel avalia que ela mistura tudo. Mas tem um texto do Clarival do Prado Valladares que fala da Janete. Ele fala sobre a sua antiga concepção pessoal de arte popular como arcaica. Ele sempre achou que sabia o que era arte popular, mas a Janete mostrou para ele coisas contemporâneas de arte popular. No fim ele diz “bendita Janete, que me fez sair de meus cânones”. Então, quando ela faz exposição, o objetivo dela é legitimar essa arte como grande arte, desconstruir a visão de mercado de arte, utilizando de uma atitude minimalista, mostrando cada obra em isolado. O Emanoel, ao contrário, inundou o espaço inteiro. Os dois têm razão. Pelo excesso o Emanoel mostra a grandeza dessa criatividade. A Janete desconstrói preconceitos, botando no espaço do museu uma obra do Nino como se mostraria uma obra do Brancusi. São duas formas diferentes de se pensar. Outra coisa, quando tínhamos tempo havia pessoas que trabalhavam como interlocutores, fazendo contrapontos. O Emanoel trabalhava com essas pessoas, dialogando. Isso era para ele mesmo ter a clareza do raciocínio. Eu fiz muito esse papel. Era a interlocutora que cuidava da palavra. Ele não tinha muita paciência para isso. Isso ele fez muito também com o Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Tivemos também a Maria Ignez Mantovani Franco. Ela é dona de uma empresa que lida com criação de museus, montagem de exposições e tramitações internacionais. Ela foi contratada para fazer a logística inteira da exposição do Brasil + 500. Quando ela viu quem era o Edemar Cid Ferreira, pulou fora. Ele processou a empresa e ela ganhou o processo. A Maria Ignez foi uma parceira constante do Emanoel. Depois, na montagem do Museu Afro Brasil, tinha mais gente para fazer esse diálogo com ele, como o Vagner Gonçalves, o Oswaldo de Camargo, o Luis

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Carlos Santos. Havia um espectro grande de pessoas que na montagem do museu fizeram essa função de diálogo. Isso se reflete também no trabalho curatorial. Como o Emanoel sempre trabalha com um grupo muito qualificado de colaboradores, você considera que isso ajudou para a criação de um debate dentro da própria exposição? Paradoxalmente, isso ocorre menos no Museu Afro Brasil do que podia e devia. Isso acontece menos do que quando estávamos atuando apenas com as exposições. O que há de forte dentro do museu é a equipe do pessoal da montagem, que foram formados pelo Emanoel. Os interlocutores que poderiam dar suporte ao Emanoel poderiam ter dado suporte para fazer isso no programa do museu. E como ao invés do museu sobrou a lógica da exposição, é em função da exposição que ele vai recorrendo a essas pessoas. O trabalho de educação é uma coisa difícil de manter, até porque para falar do museu é preciso uma grande pesquisa – preparar o material e discutir com os educadores – para poder ter a continuidade institucional do museu. Isso é uma dificuldade grande, um tanto por causa dessa lógica de produção de exposições uma atrás da outra. Isso porque precisa movimentar o museu. A situação obriga a ter essa rotatividade. De qualquer modo, estou falando da perspectiva de quem pensa a longo prazo a instituição, pois é de uma tal urgência o debate, que toda ação se torna fundamental e relevante.

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Entrevista de Gilbero Habib Mendonça (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008)

MARCELO DE SALETE SOUZA: Gilberto, conte-nos como foi o início do seu trabalho com o Emanoel Araújo. GILBERTO HABIB OLIVEIRA: Eu trabalhei com o Emanoel cerca de 10 anos, de 1995 até 2005. Trabalhei com ele até ele se desvincular da Pinacoteca em 2002. Ele foi pra o Museu Afro Brasil e eu permaneci na Pinacoteca na gestão do Marcelo Araújo. Depois fui trabalhar quase que um ano no Museu Afro Brasil, até 2005. Então, tivemos contato por quase 10 anos. Nesse meio tempo aconteceu a Mostra BRASIL + 500. Esse não era um trabalho diretamente vinculado à Pinacoteca, mas capitaneado pelo Emanoel. Especificamente nos módulos O Negro de Corpo e Alma e Arte Popular eu fui assistente de curadoria dele. O Emanoel cuidou também um pouco do módulo Carta de Pero Vaz de Caminha, que era um outro módulo das 13 ou 15 exposições que a Mostra BRASIL + 500 tinha, mas nesse módulo eu não trabalhei diretamente com ele, porque era uma curadoria conjunta. Um pouco antes, em 1994, entre as diversas exposições na Pinacoteca, aconteceu Os

Herdeiros da Noite. Você estava junto? Não, mas a verdade, se você for pensar do ponto de vista da idealização do Emanoel, Herdeiros da Noite é parte de um único grande projeto que ele vinha construindo há muitos anos, desde quando ele começou a colecionar privadamente a partir dos anos 70. Eu acho que, num plano geral, este grande eixo estava muito mais próximo de ser chamado de Negro de Corpo e Alma, mas era como se ele fosse sendo executado ao longo dos anos. E depois do Negro de Corpo e Alma a gente vê que ele tinha mesmo um plano ainda maior que era a realização do Museu Afro Brasil. Eu acho que o aspecto mais delineado desse pensamento cabe até no Museu do Imaginário. Esse foi numa etapa em que ele se desvinculou da Pinacoteca. Houve todo um entreato de um ano de trabalho em cima disso. Eu assisti isso de fora, mas sempre refleti sobre o trabalho do Emanoel. Sobretudo pelo meu vínculo com a historicidade do fenômeno e do pensamento museológico brasileiro. Na minha leitura acho que esse pensamento todo está melhor delineado na idéia do Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, que não pôde ser executado. Isso acabou sendo realizado no Museu Afro Brasil por circunstâncias políticas e históricas.

O pensamento da exposição Os Herdeiros da Noite foi sendo constituído ao longo dos anos. Foi uma dessas etapas que não aconteceu isoladamente, ou seja, como exposição, a primeira vez foi em 1994. Eu ainda não tinha vínculo com o Emanoel e depois essa exposição se repetiu por duas vezes, sempre ele modificando as coisas, mas trabalhando esse repertório. A primeira vez na Pinacoteca eu não estava lá. Depois em Minas Gerais eu já estava trabalhando com ele, mas não acompanhei isso de perto. Bem, eu posso falar mais da minha relação com o Emanoel para você entender porque eu não estava tão perto naquele momento. O meu trabalho com o Emanoel aconteceu em 1995 de uma maneira muito peculiar, porque na época eu ainda era estudante de artes plásticas na Faculdade Santa Marcelina. Eu realizei um trabalho de estágio no Museu do Ipiranga, pesquisando documentos, desenhos e artistas do século XIX (na ocasião eram os Irmãos Bernadelli). Eu comecei a me dedicar a esse universo do século XIX e ao universo dos museus, focando o Museu Paulista, no Ipiranga. Comecei a elaborar uma idéia de uma outra visão da história da arte brasileira, já que o que a gente aprendia na faculdade era bastante precário em relação a tudo isso. Foi uma experiência única essa no Museu do Ipiranga.

Bem, então fiquei sabendo que ia ter uma exposição na Pinacoteca e que eles iam contratar um monitor. (A Pinacoteca até então estava esquecida, fora do circuito badalado dos museus). Me ofereci para isso e fui meio que entrando. Eu entendia do assunto, tinha estudado algo do Rodin e eu queria trabalhar nisso. Fui entrando nas aulas que o Percival Tirapelli dava (num curso preparatório para monitores, elaborado a pedido do Emanoel). Chegou o momento em que a gente teve a visita guiada com o Jacques Vilain, que era o diretor do Museu Rodin e que começava a ter uma ligação muito próxima com o Emanoel. Nessa visita guiada eu fiz

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perguntas e me destaquei porque o pessoal do grupo era muito tímido (e desinformado). Acho que a Pinacoteca na época era muito precária nesse tipo de atitude. Os monitores eram funcionários públicos muito antigos, não tinham motivação. Quando aconteceu essa exposição, me destaquei ainda mais porque a Pinacoteca teve aquela visibilidade. Internamente tudo isso era muita novidade, o Emanoel que também estava ali, batalhando por uma transformação grande do museu, era sensível a isso. Então, logo eu estava ali no meio do arquiteto, da secretária. Estava ali a conversar com todo o staff da Pinacoteca, fazendo a monitoria daquele jeito e refletindo como é que poderíamos melhorar o atendimento do público. O Emanoel é que me “pinçou” nessa situação. E quando houve a visita do Presidente Fernando Henrique o Emanoel me chamou para fazer monitoria para ele, para participar do “cortejo” do Presidente. Eu fiquei conhecido então como “o monitor do presidente”. Por ironia o pessoal teve certo ciúme, mas eu sempre tive esse vínculo com o Emanoel. Ele dava muitas broncas, mas assim fomos progredindo. Mas acho que o que unia muito a equipe, o que me vinculou muito ao Emanoel nessa ocasião é que tudo ali significava ter muita garra. Eu tive que cavar essa oportunidade de trabalhar ali. Hoje em dia eu vejo que no plano histórico mais amplo o Emanoel estava cavando todas essas oportunidades para o museu e para essas idéias dele. Depois eu vim a entender esses projetos que ele vinha mantendo e toda a idéia que ele tinha de renovar o acervo da Pinacoteca, de melhorar o acesso a Pinacoteca. Esse pensamento ele nunca explicitou teoricamente. Ele fez na prática.

Hoje eu vejo o pensamento do Emanoel sendo lido, ou tendo que ser lido quase que arqueologicamente pela reunião parcial de fatos e objetos. Tem algo interessante: o Emanoel era muito reticente em teorizar, formalizar, escrever esse pensamento. Eu nunca deixei de querer entender isso, então eu tive que buscar meios para ler as idéias e o pensamento do Emanoel. Ele dava umas pontadas: “não tente me entender, não tente adivinhar o que eu estou pensando”. Em meio a tudo isso eu tive uma experiência muito particular. Em primeiro lugar eu fui formado (na primeira turma do Curso de Especialização em Museologia do MAE/USP) nesse período. Mesmo tendo acabado a faculdade, considero que uma formação tão importante quanto a faculdade foi o contato com o Emanoel e com a Profa. Maria Lúcia Montes. Considero-os como a minha “outra universidade”. Então, parte dessa minha experiência foi ir fazendo, ir produzindo, conforme toda essa expectativa que era gerada ali na Pinacoteca. E enquanto eu não entendia tudo, fui reunindo dados e essas coisas.

Em 1999 houve o Curso de Especialização em Museologia no MAE - USP, coordenado pela Profa. Cristina Bruno. Nisso, eu quis formalizar, aprender essa experiência mais formal no campo da Museologia. Eu percebia que o que eu aprendia com o Emanoel era museologia, mas o que eu aprendia com ele era basicamente na prática, enquanto que o curso, pelo currículo, seria a organização formal (e teórica) disso.

Mas isso ainda culminou com outra coisa que foi o seguinte: uma vontade de entender a cabeça do Emanoel e interagir melhor com ele. Percebi que ele estava criando um grande legado. Não só do ponto de vista do museu que está lá, da coleção, da cultura material, mas sobretudo do ponto de vista museológico. Isso tudo me ajudou a entender melhor como os projetos isolados do tipo Herdeiros da Noite foram progressivamente mostrando o sentido maior do pensamento museologico de Emanoel. E isso está muito evidente na passagem dele na Pinacoteca. A Pinacoteca passou de um museu esquecido para um museu de grande aceitação pelo público. Ele sempre se pautava pelo que estava sendo feito, ou seja, o que importava era fazer, era o museu que está lá. Mas existe um pensamento, existe uma linha de diretrizes que conduziu essas atitudes. Hoje em dia isso pode ser lido — que em parte é o que você está fazendo —, pode ser formalizado para que outras pessoas aprendam com essa experiência. Eu queria muito entender e registrar, mas também percebia que eu era um sujeito isolado por tentar “ler” essa trajetória do Emanoel. Era difícil porque o Emanoel era bastante instável, muito agressivo até, e a maioria das pessoas estavam mais preocupadas em se defender. Eu, além de me defender dessa postura agressiva dele tinha também que interagir, tinha que corresponder. Queria ler, deixar isso escrito, fazer as pessoas entenderem que ele era uma memória viva. Eu era um pouco ligado nessas

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experiências porque eu tinha um contato muito próximo com ele quando ele criava alguma coisa, quando ele comprava um objeto, por exemplo. Tive oportunidades de acompanhar o Emanoel em muitas viagens. Ou mesmo aqui em São Paulo, às vezes a gente ia juntos na feirinha do Bixiga, ou do MASP. No Rio de Janeiro nós íamos para os antiquários da Av. Siqueira Campos ou do Rio Design Center. Como você percebeu o olhar dele no momento em que ele adquiria alguma coisa? O que ele considerava importante? Isso é algo tão fascinante que daria um capítulo à parte. As atitudes de Emanoel como colecionista genial e compulsivo concentram a chave de seu pensamento museológico, e o Museu Afro está aí para provar, mas trata-se de um projeto que só estará completo quando ele morrer, e só então poderá ser melhor compreendido. Antes, deixe apenas eu tentar completar meu raciocínio anterior. Chegou um momento em que eu pensava — Estou adquirindo toda essa experiência sobre os museus e ao mesmo tempo eles (os museus) estão necessitados de formação e capacitação de funcionários! Então pensei em criar um curso básico junto com o SENAC – SP para formação de pessoas para trabalhar em museus. Reuni um pouco de imagens, conceitos do curso, preparei uma apostila e introduzimos esse sistema no SENAC - SP. Paradoxalmente, foi este o motivo para a retaliação mais severa que Emanoel fez contra mim, dizendo que o havia “traído” e me afastando de algumas funções que eu exercia como seu assistente direto na Pinacoteca.

Eu passei a entender melhor o Emanoel durante alguns trabalhos que eu fiz na Pinacoteca. Uma vez, eu viajava como courrier e fui à Bahia pegar obras na Igreja do BonFim, em Salvador. Eu percebia que aquilo era um patrimônio de 200, 300 anos e que nunca tinha saído da Bahia, e que só sairia nesta ocasião porque o Emanoel era o Emanoel. Era pelas relações que o Emanoel tinha, ou seja, não era dinheiro, não era papel, não era apólice de seguro. Só que ao mesmo tempo, mexendo com tudo isso havia a tal classe de museólogos da Bahia, aquelas pessoas plantadas em determinados cargos, que estavam no “sistema” e que quando o Emanoel trabalhou lá enfrentou problemas muito grandes. Talvez por preconceito, ou por icompetência mesmo, essas pessoas devem ter comprometido muito o trabalho dele. Pessoas que tiveram oportunidade de estudar no momento em que negros não tinham. Era uma classe de brancos, que usou desses conhecimentos e privilégios para criar um certo entrave nas relações de trabalho. O Emanoel quando foi dirigir o Museu de Arte da Bahia deve ter se debatido com isso. Daquele momento em diante eu parei pra pensar que ele odiava museólogos em parte por causa disso. Eram pessoas que não queriam mudanças? Aquela coisa do Emanoel dizer “pega esse negócio, vamos botar aqui”. Ele queria fazer as coisas e o museólogo diz “não, vamos restaurar, não sei quem é o senhor, não pode pegar com a mão”. E o Emanoel pegava a obra com a mão... Ele comprava algo no Bexiga um dia antes, assim casualmente, um objeto de feira, e no dia seguinte chegava um museólogo para dizer que não podia pegar com a mão. Ele queria fazer! Queria trazer mais 500 obras (no final da gestão chegou a quase 3.000). Ele queria restaurar também, tanto é que formou dentro do museu um núcleo de restauro! Mas não queria que as pessoas impedissem seu trabalho. Eu deduzo que nesses anos todos na Bahia, ele deve ter tido razões para ter um certo preconceito com os museólogos. Mas eu tinha outro pensamento em relação a museologia. Hoje eu também tenho minhas ressalvas com a “classe” museológica. Você pode ver o histórico aí dos Cursos de Especialização do MAE - USP, pela batalha insana que nós temos pelo reconhecimento do curso e a falta de entendimento que nós tivemos por parte da classe museológica. Hoje em dia dou ainda mais razão para certos aspectos do Emanoel sobre essa “classe”. O curso no MAE – USP foi abortado por questões políticas? Ele foi um curso que teve várias edições, um curso bem qualificado, bem montado. A Cristina Bruno teve bastante mérito nisso e também o Marcelo Araújo, que dava aulas lá. No meu entender o curso foi perfeito. A bagagem e a experiência que ele pôde nos transmitir com as

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viagens foi imensa. Haviam professores do mundo inteiro: Espanha, França, Portugal, México, Estados Unidos etc. Era um curso fantástico mas, quando a gente se formou, nos demos conta que tínhamos uma referência muito próxima dos cursos de graduação em museologia da Bahia e do Rio de Janeiro. Nós reivindicamos reconhecimento e equiparação. Só que a classe museológica nacional dizia que pela lei, para ser nomeado “museólogo” tínhamos que ter a graduação, e que não bastava a especializaçõa latu senso, por mais que o nosso latu senso tivesse investido na nossa formação além do convencional. Houve todo um entrave, retaliações, problemas. Eu vejo que, no geral, os museólogos estão mais interessados no seu título do que numa proteção do patrimônio público. Enfim, acho que essa minha visão está muito interligada com a do Emanoel. Porque, muito do que aprendi foi fazendo, aprendi muito mais no sistema do Emanoel do que no outro sistema. Eu fiquei preso nessas duas formas de aprender a fazer museologia e acho que tirei o melhor delas. Hoje em dia acho que sou um “filho” bastardo dessas duas coisas e ao mesmo tempo pago um preço por isso. Porque com o Emanoel eu tive esse tratamento retaliativo e para a classe museológica eu imagino não ser nada, ou no mínimo um entrave. Na verdade eu acho que nem posso ser considerado assim... Não posso nem dizer que sou um entrave porque eles não sabem tanto de mim. Mas eu tentei sistematizar minha experiência dessa forma, botando isso em prática. Por isso é que eu fui criar o curso no SENAC. Durou 5 anos: fiz um curso introdutório, depois incrementei com outros módulos. Hoje em dia ainda me chamam para dar cursos esporádicos. Estou muito contente com tudo que eu aprendi e na forma como eu tenho retribuído isso, ainda que o Emanoel não aceite.

A minha monografia no curso de especialização em museologia no ano de 2000, quando estava tendo essa experiência da mostra Brasil + 500, foi trabalhada a partir do pensamento museológico brasileiro, uma parte mais teórica. Eu queria trabalhar alguma coisa em torno do Emanoel, mas ele não ia poder servir de meu informante. Então pensei em pedir a colaboração da Profa Maria Lúcia Montes, que era uma pessoa muito próxima a nós e com quem eu conversava muito. Ela estava muito envolvida nos projetos do Emanoel (dentro e fora da Pinacoteca), era sua intelocutora e uma espécie de ghostwriter, porque o Emanoel viajava muito. Uma vez ele estava em Nova York e a gente tinha que ajudar a formatar os dois catálogos das mostras Negro de Corpo e Alma e Arte Popular, tínhamos que editar e separar as fotos, (juntos, eles formavam cerca de 800 páginas) e a Maria Lúcia foi quem se manteve mais ocupada com isso (assistida por mim). Falei com minha orientadora Cristina Bruno que queria pesquisar alguma coisa em torno dessa experiência, colocar isso numa perspectiva histórica, comparar com outros exemplos de gestão, algo que tinha a ver com cultura popular ou a maneira informal de fazer museologia. Mas ter o Emanoel como objeto de estudo seria de fato muito complicado e minha pesquisa culminou num tema que indiretamente estaria ligado à toda esta questão: fui estudar o Affonso de Taunay, que foi o diretor do Museu Paulista no ano do centenário da Independência. Affonso de Taunay foi quem transformou o Museu Paulista —que na época era Museu de História Natural — em “Museu de História”, propriamente dita. Ele entrou no museu em 1917 e saiu em 1945. Ele teve muitos anos de gestão, foi um homem visionário e realizador de uma nova concepção museológica para sua época. Em Taunay, como em Emanoel pude perceber que havia um modelo, em termos gerais, muito personalista de se lidar com acervos e museus. Taunay transformou o “seu” museu radicalmente, ou seja, ele transformou todo o Museu Paulista para contar em uma nova versão da história. Imagine que naquela época era um desafio tremendo tratar com a burocracia do Estado e ao mesmo tempo envolver o público cuja maioria era de (imigrantes) miseráveis e analfabetos. Era preciso ter força para mudar o sistema. Foi ele quem ornamentou o Museu Paulista com todas as alegorias da independência que hoje reconhecemos como seu imaginário mais difundido. Ele tinha um contato direto com os artistas, encomendando as obras. Enfim, foi dessa forma que eu me mantive: ligando alguns fatos da personalidade singular de Affonso de Taunay ao contexto contemporâneo vivenciado com Emanoel Araújo.

Primeiramente, o Museu Paulista foi feito com essa característica de museu de história natural?

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Na verdade, o edifício era para ser só um monumento que marcasse o lugar onde teria sido a Proclamação da Independência. Quando foi construído o edifício, em meio às obras, foi decidido que seria depositado uma coleção que já existia. Isso foi uma coleção particular reunida com outros objetos que eram do Museu da Província. Teve até briga com o arquiteto que não queria este destino para o prédio, mas acabaram fazendo isso. O primeiro diretor foi o alemão Hermann Von Hiering que era especialista em história natural. Nesta primeira fase o museu estava metido com moluscos, biologia, botânica, etnólogos, laboratórios e pesquisadores que saiam Brasil afora colecionando espécies da fauna e flora, além de material etnográfico, e depositando tudo lá no museu. Quando o Taunay entrou acabou com isso, mudou não apenas a maneira de pensar, mas de “fazer museu”. O lugar hoje é para comemorar a independência. Ele tirou dali de dentro muitas coleções, que mesmo depois dele seguiram formando outras instituições como o Museu de Zoologia e o própro MAE - USP, enfim, ele foi atuando e dando esse novo direcionamento para o museu. De caráter comemorativo... É. E, sobretudo, de uma forma muito pessoal. Era ele quem pegava o telefone, escrevia carta, dizia para os artistas “eu quero que você desenhe um bandeirante assim, assim, assim.” Inclusive numa destas representações, o artista Henrique Bernardelli esboçou um bandeirante fumando seu cachimbo e ele (Taunay) disse, “não quero isso”. Na verdade, ele escrevia muito. Era engenheiro por formação, mas historiador por “aclamação”. Ele difundiu um imaginário particular a respeito da história do Brasil. Ele usou do aparato relacionado aos objetos para escrever essa história, ou seja, como o Emanoel estava fazendo na Pinacoteca, ainda que com um outro direcionamento. Isso me ajudou a entender a cabeça do Emanoel e a interagir com ele. E vice versa.

Como te falei, o Affonso de Taunay teve a ousadia de agir diretamente na criação da obra do artista. Isso quando não era ele quem intermediava que peças fossem parar na coleção do museu. Ele foi criando prestígio e tudo isso foi misturando o público e o privado de uma forma descomunal. Ele tinha uma coluna no jornal para dizer o que estava acontecendo no museu. Por exemplo, ele às vezes escrevia: “tal pessoa vai doar armas ou coleções antigas”. Ele fazia estas pessoas entrarem para história, dizia o que era importante, o que era a história do Brasil, e, no museu, “sacramentava” os objetos que comprovavam isso. Ao mesmo tempo as pessoas davam mais poder e prestígio a ele. Eu acho genial a articulação que ele fez. Aqui em São Paulo, na década de XX,. Era muito ousado e original juntar ao quadro do Pedro Américo, com toda sua monumentalidade, uma mecha de cabelo. Isso cria uma cena delirante. Mesmo que historicamente você saiba que certos detalhes não poderiam ter acontecido em 1822! Utilizando esse artifício de imaginário, ele criou uma associação entre elementos laicos ou cívicos, próprios de um Museu, a elementos sagrados, como relicários em uma catedral. Ele criou uma ornamentação luxuosa dentro do museu numa época em São Paulo era ainda muito pobre. A pessoa devia chegar naquele luga, ver todo aquele luxo e talvez fazer sinal da cruz para Dom Pedro!

Até pouco tempo atrás, na época que eu trabalhei no Museu Paulista, existia aquele programa de televisão “Porta da Esperança” do Sílvio Santos, e uma vez foi uma menina se apresentar cujo sonho era vestir-se de princesa e caminhar pelo museu. A idéia de princesas, reis e castelos estava associada àquele imaginário plantado pelo Taunay, de tapete vermelho e grandes escadarias.

E um outro detalhe interessante é que nesse período da gestão do Taunay, São Paulo tinha um contingente de imigrantes muito grande. Por um lado imigrantes, pessoas que tinham sido alfabetizadas na sua língua nativa e, por outro lado, haviam os brasileiros, pobres, mulatos, analfabetos, ou seja, a questão do ensino formal, ou do uso da “palavra” talvez fosse menos comum no cotidiano das instituições culturais. Então Taunay cria um sistema de comunicação visual, como o imaginário aplicado das igrejas e catedrais. Ele consegue estabelecer um contato com o público só com imagem, ou quase sem usar textos e palavras. Eu percebi que, mesmo sem consciência, herdamos muito dessa experiência museológica de Taunay, sobretudo em atitudes como as do Emanoel.

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Mas, você me perguntava sobre como o Emanoel montava suas coleções... eu não sei se você já estudou isso — de repente você pode até coletar mais informações do que eu — mas eu falo a partir do que vi de perto catalogando boa parte das coleções dele. O Emanoel se estabeleceu em São Paulo por volta de 1971. Fui percebendo que até certa época, certos objetos de arte que ele tinha se reportavam mais ou menos a década de 1970, ao círculo de amigos artistas, entre outros amigos que ele tinha, que determinaram que ele viesse para São Paulo. Ele poderia ter permanecido no Rio de Janeiro, era época da ditadura e ele ja havia passado por lá também... Época inclusive em que ele fez muitas exposições com suas obras aqui em São Paulo e no Rio. Ele tinha um círculo de amizade muito grande. Mas eu sabia que ele tinha tido um apadrinhamento de um Senador em Brasília na década de 60, que me parece o havia ajudado a não ser preso pelo regime militar no período em que participara de movimentos estudantis. Penso que Emanoel deve ter sido um sujeito de idéias diferenciadas, que poderiam ter levado isso tudo a um outro desfecho, e acho que o legado dele, agora. deixa isso claro. Ele poderia ter tido muitos problemas por ser pobre, negro, pela formação e idéias que tinha. Se você for perceber, ele vinha de Santo Amaro da Purificação, como o Caetano Veloso, ele compartilhava da natureza de idéias pelas quais Caetano foi perseguido. Mas deduzo que ele não teve problemas pelo círculo de amizades políticas em Brasília, Rio e São Paulo. Eu acho que se pudesse ser levantado os objetos que ele foi adquirindo nesse período, com certeza teria um pouco de um paralelo entre o que ele pensava, o círculo de amizades no meio artístico e os objetos que ele reunia.

Ele tinha coleção de várias coisas. Uma delas era a coleção de escultura em bronze, que cheguei a catalogar integralmente. Mas havia muitas outras coleções, tanta coisa que deu pra fazer um Museu Afro inteiro. Naquela época ele morava na Rua dos Ingleses. Sairam várias reportagens comentando como a casa era grande e como tinha coisas lá dentro. Eu convivia com isso, com os objetos, e dali deduzia essas coisas. Como foi o impacto com essas coleções que você teve a oportunidade de catalogar? O que você via lá que definia o gosto e o interesse do Emanoel? Acho que o caso emblemático que você vai perceber na coleção de peças que ele tinha era a coleção de cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, que além de ceramista foi pintor e caricaturista. Olha, em 1996 eu já estava na Pinacoteca, e Emanoel decidiu montar uma exposição sobre Bordalo. Essa foi uma das mostras mais bonitas que o Emanoel criou. O assunto acabou gerando três exposições: o caricaturista, o ceramista e o artista do Grupo do Leão essa última a partir de aspectos da pintura do Bordalo Pinheiro. Ele fez essas três exposições ocupando quase que a Pinacoteca inteira, basicamente com o que ele tinha colecionado de Bordalo. Este para mim e para muita gente era um artista totalmente desconhecido. Mas o Emanoel conhecia o Bordalo pelos objetos. O Bordalo não era tão famoso como o Picasso. O Bordalo era um artista português que foi pra o Rio no século XIX. Trabalhou no Rio de Janeiro e tinha uma relação forte com o Brasil. Essa relação estava depositada nos antiquários e nos colecionadores. O Bordalo até hoje é um tipo de artista que, se você caminha pelo Rio de Janeiro você sente o clima dele. Há uma atmosfera do Bordalo, de suas obras, na Lapa. Isso eu presenciei várias vezes quando viajava com o Emanoel para o Rio de Janeiro. Aos domingos a gente acordava cedo e ia na Siqueira Campos, que é uma região no Rio que tem muitos antiquários. É um pouco como a feira do Bixiga, porém permanente. A gente entrava, todo mundo cumprimentava o Emanoel, todo mundo queria vender coisas para o Emanoel. Ele olhava tudo aquilo e adorava. Viamos coisas maravilhosas. Eu tinha uma ânsia de falar “Emanoel olha isso, olha aquilo”. Mas ele já tinha visto aquilo, já sabia que atrás da peça da vitrine da rua tal havia algo. Ele ia direto e falava para o cara “— Quanto custa isso?”. Ele respondia “Emanoel, pra você, 300 reais”. Pronto, mandava levar pra São Paulo e entregar na Pinacoteca.

Era uma coisa meio mágica e eu percebia que, fora a genialidade do Emanoel, e a capacidade dele perceber as coisas, havia uma experiência muito grande sendo formada em mim.

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Vivenciei isso com o Emanoel por volta de 1996 e 2000. Se eu for imaginar que ele vinha construindo essa vivência desde os anos 1970... há trinta anos isso vinha sendo feito!.

Tem também os episódios da relação dele com Pietro Maria Bardi. Todos esses tipos de amizades e relações em São Paulo e no Rio de Janeiro eram muito próximas de outros colecionadores. Então essa gente passava muita coisa para ele. Eu citei o Bardi, mas em São Paulo tinha também o Giuseppe Baccaro, que hoje está lá em Olinda. Num capítulo à parte, eu depois tive a oportunidade de trabalhar para uma exposição sobre a coleção do Baccaro. Eu com a Profa Maria Lúcia Montes e já longe do Emanoel. Isso até é simbólico porque eu conhecia muitos objetos do Baccaro, que o Emanoel trazia para suas exposições no período da Pinacoteca. Ele viajava e trazia toneladas de coisas e dizia “ah, comprei isso do Baccaro”. Depois você vai ver, tem até um livro que a gente fez sobre o Baccaro e você vai entender por quê ele também é um colecionista raro. É uma coisa muito curiosa porque a cabeça do Baccaro é uma coisa muito boa para você entender o Emanoel também. O Emanoel trazia esses objetos do Baccaro, mas curiosamente eu só o conheci pessoalmente depois de me afastar do Emanoel. Ele sempre teve um olhar dirigido para as obras e os artistas que lhe interessavam? É, os artistas e os temas, é interessante também como isso está interligado. Mas outra coisa que eu também queria colocar, que eu acho que é chave para você entender isso e que eu também tive oportunidade de conhecer o Jean Boghici, no Rio de Janeiro. O Jean Boghici é um sujeito que ia para Europa e comprava Modiglianis e outros artistas da chamada “Escola de Paris”. Era gente com muito macete, era gente apaixonada por arte, por colecionismo, então tinha todo o macete do que é original e do que não é, como comprar barato, como capitalizar.

O Baccaro era um italiano que chegou no Brasil por volta dos anos 50 ele bateu na porta da Tarsila do Amaral e meio que falou “escuta, a signora é que é a Tarsila? É que io aprendi nos livro que a signora fez a tal Semana de 22 e coisa e tal”. Quer dizer, talvez não tenha sido bem assim... mas o fato é que ele teve a idéia de propor a ela que fizessem gravuras em metal a partir de imagens como a do Abaporu. Ou seja, ele começou a intervir neste mercado, a valorizar coisas que nós ainda não valorizávamos. A perceber que Tarsila já estava esquecida (ou talvez não fosse ainda reconhecida como é hoje) e que por isso não vendia seus quadros, mas poderia tentar vender gravuras. Ele assim foi ganhando dinheiro aqui em São Paulo, mas era comunista, queria ajudar os pobres, e questionava por que vendia-se Portinari por milhões aqui em São Paulo se Portinari pintava a miséria real no nordeste? Então ele vendeu tudo o que tinha aqui e foi para Pernambuco ajudar os pobres de lá. O Baccaro é uma figura ímpar, está vivo até hoje com uma vitalidade incrível. Se você perceber, o Baccaro estava fazendo isso no final dos anos 60 e o Emanoel chega aqui e pega essa gente, que são pessoas que estão “se fazendo”. São pessoas que estavam construindo a sua própria história e sempre por esse viés, que é “escrever” a história pelos objetos de coleção, interagir com a história pelos objetos de coleção, transformar a história por meio destes objetos. Todos eles estavam construindo seu patrimônio e seu testemunho por meio da articulação de objetos de coleção. Isso é uma coisa que a museologia dá recursos para entender. Entender como ocorre tanto no plano pessoal como em circuitos maiores ou menores, mas que normalmente é uma história que se faz com a articulação de objetos de coleção, colecionadores, galerias, antiquários, enfim, agentes do colecionismo privado.

No plano do colecionalismo público nós temos exemplos como eu te citei, o Taunay... o Bardi. Nem sei se Emanoel contava, assim, com a experiência do Taunay, mas ele (Emanoel) é um estereótipo desse mesmo paradigma. Ele esteve com o Bardi, que também é outro exemplo, tinha contato direto e, na Pinacoteca, houve uma oportunidade de trabalharmos em uma exposição comemorativa do centenário de nascimento do Bardi. Tudo que trabalhei com o Emanoel, era assim, um testamento. A exposição que fizemos dos 100 anos do Bardi era o Emanoel “lendo” o modo do Bardi fazer museologia, e era o modo dele, Emanoel, fazer a sua própria. Na mostra Brasil + 500 o módulo Arte Popular veio de um raciocínio que é o seguinte: o Mário de Andrade nas décadas de 1920/ 30 olhou para a cultura brasileira e percebeu que existia um Brasil que não constava na “oficialidade”. Ele percebeu que esse “outro” Brasil possuia uma riqueza cultural diversificada, que não estava preservada nos documentos nem nas

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expressões artísticas convencionais, mas era viva nas festas, nos ritos e em outras manifestações simbólicas e sinestésicas. Eram culturas e histórias manifestadas por um outro vocabulário, por uma outra sintaxe, que não era exclusivamente a da palavra, mas dos gestos, da música, das tradições. Então o Mário revolucionou esse sistema quando ele saiu em busca de referências e registros dessa nossa cultura. Ele saiu com um gravador para gravar a música lá no interior do nordeste, do norte, no interior de São Paulo. Ele saiu com o Luis Saia filmando as congadas. O Mário falava que existia um Brasil que tem a ver com os gestos, que tem a ver com a cultura não material e que precisava ser trazido para dentro dos museus. Se a gente continuasse aprendendo só o Brasil dos documentos, o Brasil escrito, a gente só ia valorizar Dom João VI e capitania hereditária. Ele falava, “onde está a congada?” Está lá, viva, acontecendo neste momento, e se eu não for gravar e filmar ela pode deixar de acontecer. Então o Mário revolucionou isso, só que o Mário teve todo aquele embate político da era Vargas, com o Departamento de Cultura que depois o rechaçou.

Bom, na seqüência desse raciocínio, salvo algumas pessoas que trabalharam mais próximo do Mário e alguns exemplos isolados, você vai ver esta questão ser retomada somente 20 anos depois, com Lina Bo Bardi, que vem de fora. Ela olha a cultura brasileira e se encanta com a Bahia. Ela é uma pessoa que também pensa reunindo as coisas e objetos. Um caso emblemático... eu não conheci a Lina pessoalmente, mas as várias vezes que tive acesso aos objetos dela, que hoje pertencem ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, tive esse contato por portas abertas pelo Emanoel. Quando o Emanoel queria alguma coisa e ligava lá, o Instituto podia estar desorganizado, estar em briga com a família do Bardi, mas o Emanoel ligava e falava e eu ia buscar. Eu entrava e a casa estava, até por uma questão litigiosa, como a Lina tinha deixado. Em cima da mesa da Lina tinha uma foto do Che Guevara, um fifó nordestino e um brinquedinho de plástico de kinder ovo. Eu chorava de comoção, de sentir a presença viva e forte dela. A Lina tinha esses objetos e eu chegava a ter saudades da “Dona Lina”! Sabe a vontade de chorar de saudade de alguém? Aquilo estava tão impregnado da pessoa, tão impregnado desses pensamentos. Você diz: essa mulher “escreveu” isso para mim, ela está falando comigo por esses objetos, ela organizou esses objetos na casa. A mulher já morreu e ela está conversando comigo por esses objetos. Então vemos que é uma forma de transmitir, de comunicar, pra além da experiência pessoal, pra além da experiência de quando as pessoas estão vivas. O Emanoel sabia escrever dessa forma, sabia traduzir isso. Aí eu te digo, uma coisa é você saber como isso funciona e outra coisa é ter a capacidade de fazer isso funcionar. A outra coisa ainda é você fazer isso funcionar em larga escala do ponto de vista científico e profissional. Algo mais além disso tudo é disseminar uma visão do mundo, uma visão do Brasil que você quer falar e que a burocracia oficial ou a cultura oficial não te permitem, então você vai por esses subterfúgios. Aí é onde tudo isso se interliga com a cultura afro-brasileira, ou seja, quando os negros eram perseguidos, eles tinham uma outra forma de se comunicar, de escrever isso e de transmitir isso, além da sua limitação física no tempo e no espaço. Os seus códigos, a sua cultura (a Maria Lúcia me ajudou a entender isso), ou seja, o quanto esses signos e significados são importantes. Se Lina está me comunicando uma frase ou pensamento, a cultura negra conseguiu transmitir uma cosmologia inteira simplesmente pela articulação de gestos, de sons e de referenciais estéticas, simbólicas e sensoriais.

O que acontece é que o Emanoel é também uma pessoa erudita. Ele viajou pelo mundo e fez contato com essas pessoas. Então o arcabouço do Emanoel não é simplesmente a defesa, digamos assim, da cultura popular e negra. Isso está junto também com a cultura altamente erudita que o acompanha desde Santo Amaro da Purificação, passando por Nova York, França, Alemanha, Bixiga e Parque do Ibirapuera. E como você vê isso? O Emanoel, com os vários conceitos que ele tem, vai de encontro com uma nova museologia, de abrir o museu para novos públicos, sem ser apenas o público de especialistas. Ele cria um debate através dessas obras, não é aquela coisa dirigida. Ele colocou essa arte que até então não estava lá no museu. Na Pinacoteca, por exemplo, tem a exposição Os Herdeiros da Noite e antes teve a do Rodin. Aconteceu também a sala do

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Rubem Valentim ao lado do Rodin e de outros artistas do século XIX e início do XX, a cultura popular lado a lado com a cultura erudita. Na nossa visão, é importante destacar que o Rubem Valentim talvez não fosse tão valorizado dessa forma na época do Emanoel, mas talvez a gente possa até pensar que ele, na sua época, já fazia essa síntese com a arte abstrata, essa coisa geométrica. Teve casos mais radicais... Tem o Nino também... O Nino é também já mais avançado e nisso a gente pode dizer que há a assinatura do Emanoel em toda essa história. Pouco antes de ele sair, ele quis fazer o livro da Pinacoteca. Na verdade ele quis fazer dois livros, um sobre A Reforma e outro sobre A Coleção. Ele queria fazer isso constar, mostrar, deixar o pensamento e as ações dele resgitradas para que depois que ele saísse as pessoas não falassem mal. Essa foi uma das oportunidades de eu articular esse pensamento dele. Você vai ver que no finalzinho do livro, onde eu tive a oportunidade de inserir um apanhado das exposições realizadas pela Pinacoteca na gestão do Emanoel, ali no final está documentado parte deste pensamento por meio do histórico das exposições. Eu quis registrar todas essas exposições e a gente selecionou as imagens que ilustravam toda a variedade de assuntos e visão de cultura brasielira que o Emanoel fez na Pinacoteca. Por exemplo, a exposição que ele fez sobre o Rubem Valentim, Rodin, o circo, sobre escultura brasileira, etc tudo que ele fez tem uma amostragem ali, só que esse livro infelizmente teve uma distribuição muito restrita, uma dsitribuição só para escolas da rede pública. Ninguém de nós ficou com um exemplar.

Na biblioteca da Pinacoteca tem um. Eu tenho uma cópia dele porque eu encadernei um boneco do livro. Emprestei, mas ainda não me devolveram. É um livro assim dificílimo. São dois volumes, um sobre a Arquitetura e outro sobre a Coleção. O da Arquitetura até foi reeditado, inclusive comercializado . O da coleção não foi, eu até batalhei muito para que ele fosse reeditado quando o Marcelo Araújo disse querer reeditar este livros, mas não foi adiante. Essa idéia do pensamento do Emanoel é tão forte que ele encontra resistência, as pessoas percebem. E se aquilo não é o que as pessoas querem dizer, as pessoas têm as suas formas de boicotar. Então esse livro não foi reeditado acredito que por isso.

Mas ali consta um pouco desse pensamento. O que eu ia te falar é que para mim e para a Maria Lúcia, esse livro fecha um pouco essa idéia. A atitude do Emanoel que para mim consolida tudo isso é a gigantesca escultura da família Julião exposta num dos pátios internos da Pinacoteca... aquele totem enorme de madeira entalhada a mão com figuras de macacos e árvores. Então, você imagina o que aquele totem está fazendo ali? Como compreender aquela cultura? Você não tem como esconder. O Emanoel encontrou uma solução, inclusive na exposição do Rodin, ele fez uma caixa cobrindo a escultura do Brecheret, gigante, que ficava na entrada, disfarçando ela como um banner da exposição no hall de entrada. Agora o Julião não, não tem como esconder. O Julião atravessa dois andares e ele é um exemplo ao dizer que aquilo é cultura popular, que aquilo tem a ver com a cultura afro-brasileira, que aquilo tem a ver com o museu inteiro, que aquilo é o indício transversal de toda cultura brasileira, do popular ao erudito, do português ao afro e ao indígena. E eu acho que ela, ali, é uma síntese desse pensamento genial do Emanoel.

Na verdade a Pinacoteca no final dessa gestão do Emanoel estava muito bem articulada nesse percurso. Ela começava com as vitrines de arte sacra na entrada do museu. O Emanoel aceitou lá uma doação que tinha objetos de prata. Ele tinha alguns objetos bastante sofisticados que até eram para ser doados para o Museu de Arte Sacra, mas a pessoa falou que não, que queria deixar pra Pinacoteca. O Emanoel aceitou e fez essa vitrine no hall de entrada do museu. Ele montou as vitrines e criou elas bem sofisticadas, forrou com tecido adamascado, enfim, um luxo. Isso também está no livro porque na hora de fazer o livro, como o Emanoel deu carta branca, peguei o Nelson Kon (fotográfo) pelo braço e falei “Nelson, a gente vai fotografar isso, isso, isso e isso”. Por exemplo, essas vitrines, eu pedi para o Nelson tirar uma foto panorâmica que pegava todo o saguão da Pinacoteca com as duas vitrines. Isso era muito difícil porque a distância era curta e ele teve que tirar duas fotos e juntar por meio de recursos de computador.

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Nesta imagem, disposta na abertura do livro, além das vitrines tem as esculturas de Mestre Valentim, que mostrava o Brasil do final do século XVIII e XIX, que é contemporâneo do Aleijadinho. Você entra na Pinacoteca, que é teoricamente um acervo de transição do século XIX pra o século XX, só que qual é o preâmbulo que você tem? Toda a arte que antecede isso. O Mestre Valentim, que é contemporâneo do Aleijadinho, o Brasil colônia, a arte religiosa, que já vem carregada de arte brasileira. Depois caminhamos pela Pinacoteca, e no corredor seguinte, há a visão do Julião. É como se ao final do percurso você visse isso desembocar num “mar” contemporâneo. Mas a presença deste Julião ali é algo que as pessoas do museu, mesmo as que trabalahram com Emanoel, nunca entenderam em sentido profundo.

O caso do Bordalo também era um exemplo assim. É todo o conhecimento que você vê de um artista genial. Um artista de arte brasileira do final do século XIX, que tinha toda essa relação com Dom Pedro II, com a política e depois volta para Portugal e tem lá uma importante indústria de cerâmica, ou seja, um artista importantíssimo. O Emanoel teria uma, duas, dez exposições pra fazer do Bordalo devido a quantidade de coisas que ele sabia a respeito dele, simplesmente por meio dos objetos. Simplesmente por conversar com as pessoas, por circular pelos antiquários, por ir reunindo tudo isso, por escrever essa história por meio dos objetos. Ele fez isso numa época em que o museu era extremamente precário. O museu ainda não tinha sido reformado e foi uma das exposições mais lindas, da forma como ele criou as vitrines, da forma como ele tinha pensado aquilo.

A mostra de escultura Expressões do Corpo, no final de 1996, teve também um conceito maravilhoso. Essa foi uma exposição feita para que a obra de escultores brasileiros dialogasse com a obra de Auguste Rodin. Então a Pinacoteca recebeu algumas esculturas do Rodin por doação e o Emanoel queria dar visibilidade para aquilo e falou “vamos fazer uma exposição que faça com que a escultura dos brasileiros dialogue com as do Rodin”. Eram escultores que de alguma forma aprenderam (indiretamente) com o Rodin que aplicaram algo dele em suas obras. Então ele juntou Brecheret, Bruno Giorgi, Leopoldo e Silva – que é um dos escultores que mais tem obras em São Paulo mas que é desconhecido. Ele tem a obra Indio Pescador ali no começo da Avenida Paulista, tem a Aretuza dentro do Trianon, Nostalgia na frente do jóquei, entre outras... era um escultor importantíssimo pra São Paulo, cheio de obras e que agora é pouco conhecido. Veja, o Emanoel fazia isso dialogar com Rodin. E onde ele vai mostrar isso? Ele então usava o museu pra contar essa história. Essa ação no museu é para formalizar esse pensamento? Na reunião dessas peças ele concretiza essa história? Exatamente, consolida essa história. Ele reconta essa história e vai reescrevendo do ponto de vista oficial de uma instituição. E se a instituição é insuficiente, ele transforma as regras do jogo. Ele transforma a instituição. Ele transforma as exposições e as coleções. Como aparece esse teor conservador do museu hoje? É conservador no pior aspecto. Porque quando o Emanoel quis aceitar as obras do Rodin, quando ele fez a campanha para que doassem a coleção para a Pinacoteca – e depois convenceu os empresários do Banco Safra para isso – as pessoas falam: “por que a Pinacoteca tem que ter Rodin?”. “O museu não deve aceitar isso em seu acervo!”. “Deve mandar isso pro MASP!” Isso aconteceu com tudo que ele foi fazendo até culminar com o Julião., quastionado por ser uma expressão da arte popular em meio a tantos referenciais eruditos. O que as pessoas não entendem até hoje é o seguinte: a Pinacoteca não é um museu do século XIX. Ela é um museu de arte em São Paulo, uma coleção pública de arte, pertencente ao Estado, que desde sempre se formou a partir da produção contemporânea. Ela é anterior à essas teorias todas que vão dividindo a arte. Então é legitimamente um grande museu de arte brasileira, e de arte de São Paulo. O grande exemplo disso é que a Pinacoteca coleciona Almeida Jr. desde a época em que Almeida Jr era um artista contemporâneo. A primeira doação feita para a Pinacoteca foi feita pelo próprio Almeida Jr., com a intenmção de formar a Pinacoteca, e isso não consta porque o Almeida Jr. morreu em 1899 e a Pinacoteca só foi criada em 1905, seguindo o exemplo daquela doação. Tem

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documentos que provam isso pois eu pesquisei e sobre os quais já escrevi porque quis fazer uma exposição sobre o museu na época do seu centenário, mas não apoiram. Se voce me permite, vale contar que por volta de 1895 e 1897 já queriam fazer um museu de arte em São Paulo, mas existia apenas a coleção do Estado, que era uma coleção de vários objetos de cunho histórico, depositado no Museu do Ipiranga. Existia algumas obras de arte lá dentro também, e numa determinada vez que os políticos foram lá, viram isso e falaram, “vamos retirar essas obras daqui e vamos fazer um museu de arte em São Paulo”. O Liceu de Artes e Ofícios já estava se articulando para isso, inclusive eles já estavam juntando dinheiro para fazer o prédio. Então eles falaram “vamos reparar essas obras”. E o Almeida Jr. é o primeiro a doar aquela obra “A leitura” para o Estado como pontapé incial desta iniciativa. Só que ele morreu no final de 1899 e essa ação começou por volta desse período. Isso vai se consolidar somente com a criação da Pinacoteca por volta de 1905.

O Almeida Jr. era um artista contemporâneo que doou obras. Oscar Pereira da Silva também. Nas décadas de 10 e 20 as obras de muitos artistas pensionistas foram também incorporadas. Ainda na década de 1970 o museu continuava colecionando, estimulando os artistas a fazerem doações. Sem falar nesse entreato maravilhoso, que é quase criminoso ser esquecido, pois não se dá o devido valor na Pinacoteca, que é os anos 1930 a 1960. São Paulo tem uma produção maravilhosa, a Pinacoteca tem a reserva técnica lotada desses artistas e quase não se fala, nem se pesquisa isso. Um dos poucos exemplos, e isso também está ligado ao mérito do Emanoel, foi a exposição do Rafael Galvez. Ele foi um artista desse período e estava vivo até bem pouco tempo atrás, atravessou essa geração e estava esquecido. Ele aprendeu com outros escultores lá na década 1920 e produziu até a década de 1990. Enfim, tem o Júlio Guerra, que foi um artista premiadíssimo do qual eu e aMaria Lúcia tivemos o privilégio de fazer uma exposição há pouco tempo, no SESC Santo Amaro. Eu passei a gostar mais ainda disso tudo por ver o quanto a obra de Julio Guerra foi e continua sendo importante pra São Paulo, por haver ganho prêmios, por sua erudição tremenda, por sua fantástica visão a respeito da cultura brasileira. Sobre ele a Pinacoteca ainda não fez um catálogo decente. Isso só pra te dizer que ainda hoje, quando a Pinacoteca expõe uma obra dessas, as pessoas não olham para dizer que isso tem tudo a ver com a Pinacoteca. Para eles o museu têm que produzir coisas do século XIX ou tem que fazer exposição tipo blockbuster. E por mais que ela faça isso ou aquilo, em determinadas circunstâncias em que a Pinacoteca recebeu uma grande quantidade de público, já na gestão do Marcelo Araújo, fechava-se as portas do acervo pra remanejar pessoas para vigiar o acervo temporário. Eu ficava indignado, eu dizia, “não se pode fazer isso, arrumem qualquer outra solução, mas não se pode fechar as portas do acervo”. O que na prática estava sendo feito sob alegação de ser a “única saída”, era totalmente contrário ao que Emanoel havia feito nos 10 anos antriores. Simbolicamente, fechar as portas do acervo era apenas uma das atitudes nefastas a nossa história, mas infelizmente houveram outras atitudes similares como, por exemplo, não expor obras da reserva técnica por longos períodos, não publicar pesquisas sobre o acervo, etc Você falou sobre essa exposição dos 100 anos do Bardi que foi feita na Pinacoteca. O Emanoel também fez outra exposição sobre colecionadores como a do Odorico Tavares em 2005 no Museu Afro Brasil. A Maria Lúcia falou do Emanoel na época que aconteceu a exposição do Rodin, da forma como ele montava a exposição, era um escultor falando com outro escultor, que é o Rodin. Ela via ali muito disso, que era o Emanoel pensando espaços pra exposição do Rodin como se ele estivesse esculpindo. Então, na verdade, diria que o Emanoel é uma figura privilegiada, porque ele é artista, colecionador e curador. E quando ele está fazendo curadoria ele está dialogando com o trabalho que ele mesmo faz? O Emanoel escultor é um artista que trabalha com o espaço, com a espacialidade da escultura. Se a gente for perceber até quando ele é gravador, quando ele é xilogravador, ele está preocupado com o espaço. E não é à toa que isso vira relevo. Ele trabalha a bidimensionalidade tão exacerbadamente que ela salta, vira relevo e depois vira escultura. Isso é da trajetória plástica do Emanoel. Ela se dá dessa forma. Mas, enfim, o Emanoel é um erudito. Ele tem uma erudição tremenda das formas africanas telúricas e ele é ao mesmo tempo erudito dos livros. Quando ele

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passeava pelo museu, ele cantava e abria os livros de Gonçalves Dias. Acho que a exposição Rodin, de 1995, nos mostrou um Emanoel erudito na sua forma escultórica, na sua forma de lidar com o espaço. Tudo começou com a empatia entre o diretor do Museu Rodin, Jacques Vilan, e a arquitetura da Pinacoteca. A partir de então Emanoel incorporou isso, e potencializou aquele momento. Se você percebesse os espaços das salas, tinha uma determinada escultura ali dentro que estava rebatendo a espacialidade da sala inteira, e determinadas bases reproduziam os ângulos e frisos da sala. Não bastasse isso, ele criou uma ornamentação para as bases que estavam lá nas frisas da arquitetura quase centenária. Foram bases extremamente lindas e tão perfeitas que estão lá até hoje. Aquelas bases eram tão boas, que depois a Pinacoteca fez algumas exposições itinerantes do Rodin e eu me encarregava justamente de usar essas bases nessa curadoria para reavivar um pouco essa idéia. Eu as levava porque onde essas bases chegavam elas construíam o espaço do entorno. A gente chegou a fazer a exposição do Rodin em espaços como o Palácio de Campos de Jordão, em São Paulo, a arquitetura do Oscar Niemayer em Curitiba, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Eu conseguia trabalhar perfeitamente em qualquer espaço seja ele uma arquitetura monumental ou um caixotão moderno, só com essas bases que o Emanoel tinha construído pro Rodin em 1995.

Isso só pra te dizer que ele articulou essa relação da escultura com esses eixos ortogonais das bases. E você pode ver mais Emanoel escultor até em exposições anteriores. Os Herdeiros da Noite tem também uma espacialidade peculiar, mais ligada a escultura do Emanoel e as diagonais que ele criava. Por muitos anos o arquiteto Hiromu Kinoshita foi o braço direito de Emanoel nestes assuntos, ele ajudou muito, era um amigo, colaborador e ouvia muitos gritos também.

Tem uma exposição lindíssima, que até uso como exemplo quando dou aulas de montagem de exposição, chamda Os Viajantes Alemães, exposições que ele criou entre 1992 e 1994. O período que ele já era diretor no museu mas eu ainda não estava lá. Você vê os painéis que ele criava, onde já usava pé direito duplo. Na época o museu não tinha dinheiro e ele mandava forrar aquilo com papel craft, ele mandava xerocar. Tinha o Pedro Quintanilha que era um dos montadores que reproduzia os desenhos naquele sistema de ampliação com slides. O Pedro inclusive desenhou as caricaturas do Bordalo como gigantografia na parede. Então o Emanoel usou muito desses recursos na própria exposição do Bordalo e eu guardo referências disso. Era tanta coisa que tinha do Bordalo que não cabia na sala, mesmo ocupando o museu todo com as peças do Bordalo. Havia ainda o problema de espaço. O que ele fez? Ele colocava os painéis na diagonal e otimizava o espaço. Se você for ver em planta, eram os eixos diagonais que ele usa como estrutura.

O Bardi era uma pessoa que conhecia muito sobre as coisas, foi um grande marchand na Europa e aqui em São Paulo, e vemos que boa parte do repertório do Emanoel estava plantado ali. Emanoel adquiriu do Bardi uma obra do pintor Frangipane, que muita gente cobiçava. Era uma alegoria da América. Então você vê que a coleção do Emanoel vem desde os primórdios, desde a alegoria da América, até representações do Brasil colonial, a chegada dos negros e assim por diante. Da escravidão até a arte contemporânea. Você ajudou na montagem das exposições do Emanoel? Como você percebia isso? É uma loucura. Mas posso sintetizar, de tudo que eu fiz ali, o que eu mais gostei e aprendi, era a pesquisa. Sobretudo entender as coleções do museu, trabalhar com as coleções dos museus. Se o Emanoel estava querendo fazer uma exposição, e havia alguma reunião no Ministério da Cultura no Rio de Janeiro, ele falava “Gilberto, você vai no Rio de Janeiro comigo essa semana”. Aí íamos para o Rio de Janeiro na sexta ou no sábado. No dia seguinte bem cedo (por volta das 5:30 da manhã) ele ligava no meu quarto, “vamos lá andar na praia” ... isso eu odiava. Aí, então, 6 horas da manhã estavamos eu e o Emanoel caminhando na praia. Depois a gente ia na Siqueira Campos onde ele fazia um tour pelos antiquários, onde tinha todos os amigos. Ele adora isso. Todo mundo conhecia ele. Quando chegava na casa de alguém, via um quadro que gostava para compor aquela exposição ele falava “ah, vou pedir isso pra você, vou colocar lá na Pinacoteca”. Ele ia indicando os objetos e quando chegava na Pinacoteca ele perguntava “Gilberto, cadê a foto

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daquele quadro?”. Então, as exposições do Emanoel estavam todas na cabeça dele, era como se fosse só ele puxar da memória que tudo aparecia.

Depois de feito isso ele ia comprando objeto pra ir completando sua coleção ou mesmo o acervo do museu. Tem aqui até um exemplo do Bardi. Tinha peças que ele poderia encontrar em qualquer lugar e pagar cinqüenta reais, dependendo. A gente chegou a comprar um par de bustos de bronze do José Cucê por R$ 300,00 na feirinha do Bixiga. Quando o Emanoel não conseguia o dinheiro da Associação dos Amigos pra comprar, ele mesmo pagava. Tirava dinheiro do bolso dele para conseguir fazer a exposição que queria.

Levei um tempo pra perceber isso. Sabia que eu não ia pro Rio só pra passear. Tudo era ao mesmo tempo protocolar e informal. Por isso nem sempre eu sabia exatamente qual das inúmeras peças das quais ele estava falando, em meio a uma reunião informal ou durante jantar, seria requisitada depois. Qual era exatamente a que eu tinha que fotografar ou catalogar. Eu apanhei muito com isso, nunca consegui adivinhar, até mesmo para interagir. Acabei resolvendo meu problema assim. Às vezes tinha que catalogar todas as possíves para empréstimo e anotar o telefone do clecionador para quando o Emanoel pedisse. Ninguém conseguiria adivinhar o que ele queria. Na verdade isso foi uma coisa tão dramática que culminou numa relação conflituosa entre eu e ele, já no Museu Afro Brasil. O museu acabou sendo esse espaço para o Emanoel fazer esse exercício de colecionismo alucinadamente. Mas com um diferencial que beirava a perversidade: quando ele imaginava uma exposição e tinha essa combinação de idéias, ele comprava no domingo, na segunda-feira a obra chegava na Pinacoteca e na terça-feira já estava pendurada no espaço da exposição. Sem que outras pessoas se dessem conta. Nem o pessoal do Setor de Conservação, nem do Setor Educativo etc. Então, veja só, aquilo ia reescrevendo a história da arte, diariamente de modo alucinado, seguindo o ritmo exclusivo da cabeça dele. Quando o museu foi reinaugurado, em 1998, após uma breve passagem da coleção pelo Pq do ibirapuera, Emanoel pediu pra Maria Cecília França Lourenço e outras pessoas escreverem um texto sobre os vários segmentso do acervo. Os textos, em geral acadêmicos, ficara aquém do que estava sendo mostrado. Naturalmente, os historiadores consagrados escrevem o que aprenderam ao longo de 30 ou 40 anos de carreira, e nem sempre mudam seus conceitos. Muito menos na velocidade em que o Emanoel trocava os quadros na parede. O Emanoel mudava e mudava a forma de contar. Então, o monitor/educador lá na Pinacoteca dizia “aqui temos o Almeid.....” e no dia seguinte ele chegava pra contar essa história e a obra já não estava lá. É uma sistematização do conhecimento que precisa ter. É organizacional. Você está numa instituição. Tudo tem um significado. Uma pessoa para doar uma obra pra o museu precisa consolidar que aquilo é patrimônio público, tem esses termos, isso faz parte do fazer museológico. É aconselhavel que algumas mudanças desta natureza também o fossem. É uma burocracia necessária. É, pra legalizar a coisa. Então a gente trabalahava duro para catalogar. No Museu Afro Brasil então a coisa só piorou. O monitor/educador chegava lá e perguntava “Gilberto, qual o nome dessa peça africana?”. E como não havia dado tempo de estudar, pesquisar, catalogar ou sequer registrar a peça, ficavam informações incompletas. Trabalahvamos de domingo a domingo mas, sem esperar, surgia uma peça sem catalogação que estava na vitrine e as pessoas corriam me perguntar se aquilo era Exu ou o quê!.

Mesmo assim, chegavam novos lotes de peças para fazer registro ou comodato, algo que necessitava a presença de advogado responsável, mas que no final, antes mesmo de registrar, ja se fazia necessário arumar mais tempo para cuidar de mais uma “safra” com centenas de peças pra fazer outro comodato. E você acha que os orgãos públicos aos quais o Museu Afro Brasil estava subordinado e os advogados entendem a cabeça de um curador? Voltando um pouco, você trabalhou na exposição do Barroco em 2000?

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Não trabalhei em tudo. O Gonçalo, marceneiro, e outras pessoas do museu trabalhavam também no ateliê particular do Emanoel como ajudantes das esculturas dele, sendo pagos por ele. Ele tinha pelo menos três especialistas: um como pintor, um como marceneiro e um como carpinteiro, era com esses profissionais que ele articulava boa parte do qeu se fazia no museu. São artesões que têm conhecimento nas mãos, não na ponta do lápis. (Acessando o computador, Gilberto mostra fotos da exposição de Rafael Bordalo) Esses são desenhos seus? Esses do Bordalo que tenho aqui são meus. E foi num momento desses, quando estava justamente pensando em como ia ser a monitoria, como as peças que o Emanoel tinha comprado no Rio de Janeiro iam ficar, como fazer a circulação para os monitores. Veja bem, quando eu me especializei em Museologia, fui ar aula no SENAC e assim, contrariei Emanoel, ele me mudou de setor, me afastando de seu gabinete, assim, eu não fiquei mais distante dele, mas numa sala junto do setor de Museologia. Eu não participava da montagem, mas me cabia ajudar na ação educativa. Na montagem especificamente eu tinha pouca ação porque os montadores eram um grupo muito ligado ao Emanoel. E coemcei a fazer o que podia para entender como Emanoel trabalhava, comecei a elaborar um sistema para registrar a relação de significado entre cada obra que Emanoel colocava na parede. Fotografei tudo e organizei as fotos. Então fui organizando a coisa desse jeito porque me era possível. Entrei na Pinacoteca em 1995, mas tive a preocupação de saber o que tinha acontecido antes. Fui atrás de catálogos, reuni fotos, e passei a organizar slides e outras referências das exposições: se eram do tempo Emanoel, se eram anterior, se eram posterior, se eram do acervo particular dele. Ja na gestão do Marcelo Araújoeu tentei continuar a organizar isso tudo mas não fiz da forma que queria. Fiz um projeto para a Fundação VITAE de organização do Setor de Documentação, com o intuito de catalogar e dar sentido aos inúmeros documentos avulsos ja quase perdidos ali... mas a ideía não vingou. Na gestão do diretor Marcelo Araújo ele falou “— Isso tudo aqui vai para o prédio do DOC... e eu abri mão de seguir tocando por questões políticas” Atualmente, ele é da Estação Pinacoteca? É mas esse setor de documentação é uma outra coisa, não exatamente o projeto que eu queria. Nessa história toda, achei que ele tinha que ter uma ênfase no sistema de imagem e rechear isso de informação. (Gilberto mostra slides) Isso são umas coisas que eu uso pra dar aula sobre a Pinacoteca. Isso aqui é uma foto antiga, é a concepção. Você vê que numa foto como essa tem uma passarela vermelha e coincidentemente é a mesma passarela vermelha que o Taunay usava pra dar mais grandiosidade, maior dignidade ao vistante e ao qua havia dentro do museu. Basicamente um instrumento de sofisticação da exerincia de quem visita um museu. As pessoas sempre falavam “— Porque o Emanoel tem sempre tapetes persas na entrada do museu”. Ora, o público merece isso. Porque esse tapete tem que estar só na sala do diretor? “Mas as pessoas vão pisar, vão gastar”. Essa era uma visão extremamente restrita que é a que acabou prevalescendo hoje. (Ainda sobre o uso da imagem como documentação...) Aqui você fez uma comparação entre a Pinacoteca em meados do século XIX e início do XXI? As pessoas viam essas fotos e achavam que eram do século XIX, não sabiam que eram de 1946, quando o museu foi reinstalado, isso ficou perdido no imaginário das pessoas. Quando o museu estava pra fazer o centenário em 2005 eu quis justamente pegar essa parte de pesquisa pra lidar com isso. Fiz um relatório até. Apresentei para o Marcelo Araújo, mas ele não quis investir naquilo. Pegou e guardou, tinha informações valiosas e quis usar do jeito dele. Isso virou o centenário da Pinacoteca, uma exposição na FIESP. A ocupação de outros espaços da cidade, contando a história da formação profissional e de trabalho, o que significava receber imigrantes, o quanto a coleção participava na formação de pessoas, como uma obra transmite conhecimento, tudo isso virou simplesmente uma coleção da Tarsila do Amaral.

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Você pode voltar a falar mais um pouco dessa foto de 2001 que mostra as paredes da Pinacatoca” forradas” de obras de cima a baixo? O que fica evidente acompanhando as exposições do Emanoel, uma característica dele, é essa questão da quantidade de obras que são expostas. No Museu Afro Brasil em 4 anos o acervo em exposição foi muito expandido. Quando nós pensamos em museu de arte hoje, é uma obra aqui, outra lá, tem um metro de distância entre cada uma. São concepções diferentes. Na verdade, essa noção de minimalismo é um dado contemporâneo. Parece que ele é a verdade maior, mas se ver historicamente ele é muito circunscrito, muito restrito. Essa coisa de uma obra na parede é um conceito da museologia chamado cubo branco e foi discutida por um cara chamado Brian O'Doherty (No interior do cubo branco). É interessante porque percebemos que a idéia desse conceito do cubo branco é uma coisa que começa a nascer como uma arquitetura funcionalista. Ela vai deixando de ser funcionalista e se tornando mais estética. Depois de estética ela passa a agregar significado, ou seja, fazer uma coisa acéptica e minimalista passa a ser um código de um determinado pensamento.

O Brasil tem uma diversidade cultura e referencial inclusive do ponto de vista do colecionismo. O Brasil tem uma experiência de colecionismo anterior ao século XX, já no século XIX. O Emanoel pode trazer isso como informação, ou seja, isso passa a ser o signo de uma mentalidade e você elege ela como qualquer outra que está dentro do museu. O Emanoel não teorizou isso, mas aplicou. Na Pinacoteca isso não só mostrava a coleção do século XIX como trazia o referencial de museologia que a Pinacoteca aplicava contemporaneamente. Não que a Pinacoteca tinha um único jeito de fazer as coisas. Ela fazia isso na sala do século XIX, numa sala de arte acadêmica, onde era totalmente pertinente, e numa outra sala ela se dava ao luxo de criar uma outra museografia.

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Entrevista de Carlos Eugênio Marcondes de Moura (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008) MARCELO DE SALETE: Eu realizo um trabalho sobre a curadoria do Emanuel Araujo focando os artistas que ele apresenta, a narrativa que ele constrói através deles, compondo uma idéia de arte afro-brasileira. Como você ajudou o Emanoel nessas mostras? CARLOS EUGÊNIO MARCONDES DE MOURA: A minha participação com o Emanuel não foi no sentido de explorar determinado artista, foi uma coisa mais diferenciada, de indicar o que aparentemente não estava muito conhecido. Por exemplo, houve um fotógrafo carioca no século XIX chamado Militão de Azevedo, o Militão. O Militão chega a São Paulo como ator de teatro, depois ele se estabelece como fotógrafo. Ele ficou muito conhecido porque ele fez algumas fotos comparativas de São Paulo entre 1861 e 1881. Ele fotografou os mesmos pontos de São Paulo e mostrou as mudanças que houve. Mas ao lado disso, ele fazia fotografia de estúdio. Então no Museu Paulista eu localizai mais ou menos umas trezentas fotos só de negros, do Militão, cobrindo toda essa década. Eu chamei atenção para isso. E este trabalho foi incorporado às exposições do Emanuel e ao acervo do Museu (Afro Brasil) também. Isso foi uma coisa, outra coisa bem pontual foi no Maranhão. Existe nas festas uma máscara chamada cazumbá, que é muito interessante porque ela invoca até certo ponto uma imaginária negra africana. Eu chamei atenção do Emanuel para isso e ele incorporou esses trabalhos. E as minhas pesquisas com ele sempre foram para o lado africano, pra o lado das religiões afro-brasileiras Por exemplo, nós fizemos uma exposição no Ibirapuera e eu chamei duas mães de santo de umbanda, que também tem alguma relação com o candomblé, para constituir altares de várias divindades. A primeira coisa que eu fiz com ele foram as pequenas biografias de negros que se destacaram de algum modo nas instâncias de conhecimento e da vida pública. Essa foi a primeira colaboração minha com o Emanuel nesse sentido. Toda essa iconografia em branco e preto do livro, quase toda foi levantada por mim também. Você participou com o Emanoel Araujo de uma exposição na Alemanha. Também foi nesse sentido de levar as coisas da arte ritual, do candomblé para a exposição. Foi mais por aí. Agora sobre os artistas contemporâneos isso é coisa do Emanuel e da Maria Lúcia. O seu foco foi principalmente em termos de religião? Sim, porque é o que conheço mais e que mais me interessava. Como foi esse trajeto até a criação do livro A Travessia da Kalunga Grande? Bom, eu sou meio rato de arquivo. Gosto muito de ir atrás das coisas, de imagens, e não aceito, não admito de jeito nenhum uma equipe me ajudando. Não. Eu acho que o prazer de você descobrir algo é uma coisa que não tem preço. Eu vou atrás das histórias sempre. Ai percebi que havia muita coisa até conhecida como a produção do Debret, do Rugendas, mas havia muita coisa que merecia ser divulgada. Por exemplo, as revistas ilustradas do século XIX, que tem muita coisa relativa ao negro, eu explorei e esgotei a principal revista que foi a Revista Ilustrada do Angelo Agostine, que começa a circular na década 1870 e vai até 1890. Eu percorri toda coleção pra ver tudo que havia lá relativo ao negro. Vamos voltar um pouco atrás, o objetivo primeiro desse livro era indexar tudo que era tipo de imagem relativa ao negro. Eu colocava em primeiro lugar o autor e a legenda da imagem quando havia. Eu trabalhei medindo cada imagem, fazendo a data e o descritor, ou seja, uma chamada para informar mais ou menos a que a imagem se referia. Isso era muito importante depois para outra etapa que era a elaboração dos índices. No pé da imagem eu colocava fonte, o autor, a obra e a página. A partir dessa catalogação tinha que fazer o índice, senão as pessoas iam ficar totalmente perdidas. Então, eu fiz um índice de artistas, um índice dos tais famosos descritores, um índice topográfico das localidades a que se referiam as imagens. Basicamente esses três índices. Com isso a pessoa poderia se orientar um pouco mais nas pesquisas. Por mim eu poderia representar muito mais, mas eu só pude reproduzir 500 entre

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as 2700 que eu registrei. Mas eu fui da primeira imagem que é 1739 até o fim desse século XIX e eu não entrei no século XX. Para você ter uma idéia, eu fiz agora uma pesquisa sobre o índio. Era a mesma característica, só que eu recuei um pouco porque no fim do século XVI começam a aparecer as primeiras imagens indígenas. Então eu fui do comecinho do século XVI até 2005. São 11600 imagens. Se eu tivesse feito isso em relação ao negro no século XX, nossa, ia ser uma coisa de louco. Mas essa é uma pesquisa que precisa ser feita. Alguém tem que fazer essa pesquisa. Foram 500 imagens reproduzidas no livro, mas todas as 2700 indexadas. Tem toda a catalogação, está tudo catalogado. Não pude reproduzir todas as 500 porque editorialmente é muito caro. E custaria muito caro pra o público, mas mesmo assim vendeu bem. E como foi seu primeiro trabalho com o Emanoel Araujo? A primeira ocasião que eu trabalhei com o Emanuel foi nos festejos da abolição (na mostra A Mão Afro-brasileira, 1988), foi no Ibirapuera. Ele me chamou, foi uma coisa bem geral e ajudei no circuito de cinema também, mas esse ciclo foi um fracasso. Não dá certo você fazer um ciclo de cinema no interior de uma exposição porque as pessoas perdem muito tempo pra isso e é preciso que haja uma grande divulgação diária na imprensa. Há menos que elas se programem muito, não podem ficar mais de uma hora no cinema. Você participou da montagem das exposições com o Emanoel Araujo também? Uma loucura. Você entra às duas horas da tarde num dia e sai no dia seguinte às quatro da tarde. É assim, tem que ficar direto. E o que o senhor achava dessas mostras? Isso é coisa do Emanuel mesmo. Ele determina toda a questão do espaço expositivo. Isso é um planejamento chamado de expografia, ela é todinha do Emanuel. Claro que pode dar um palpite ou outro, mas tudo é uma criação do Emanuel. Muitas das obras populares das exposições do Emanuel, algumas décadas atrás, não entravam no Museu, eram obras que não pertenciam a esse espaço. Justamente, esse é o grande mérito do Emanuel. Primeiro a criação do Museu Afro Brasil, num local em que havia muito olho gordo em relação aquele espaço. Tinha muito preconceito, porque haviam pessoas que achavam um absurdo São Paulo ter um Museu Afro Brasil. “Isso é coisa para Bahia, Pernambuco”. Aliás, parece que em termos relativos, proporcionalmente, a cidade de São Paulo tem uma população negra maior que de Salvador. Mas isso não é divulgado. Então foi uma batalha conseguir aquele espaço. Ele já vinha criando uma coleção respeitável ao longo dos anos. O senhor acompanhou o desenvolvimento dessa coleção? Não, não acompanhei, mas sabia. Foram surgindo novos artistas contemporâneos e criando uma teia. Muita coisa foi doada ao Museu, acredito que é a própria coleção do Emanuel, isso acho que está lá em comodato. Mas tem muita coisa que é parte do acervo da Instituição. O senhor chegou a ter contato e a fazer pesquisas com essa exposição? Não. Uma das coisas que foi pra lá foi minha coleção, minha biblioteca, foi pra o Museu Afro Brasil. Algumas teses de mestrado, revistas, jornais e algumas fotografias. Uma das características do Emanuel é ser curador, artista e colecionador. Como você vê esse cruzamento de atividades? Acho importante porque isso vai despertando nele mil possibilidades, mil visões, mil articulações. Ele parte de uma experiência museográfica, porque havia um museu na Bahia que praticamente renasceu nas mãos do Emanuel. Foi uma experiência muito importante para ele ter sido diretor desse museu. Então, ele já veio com uma experiência administrativa que é extremamente importante. Essa visão ele pode aprofundar na Pinacoteca. Quando ele chega no Museu Afro Brasil, ele já estava amadurecido. Ele é uma pessoa que se relaciona muito em

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vários níveis - político, social e etc. Ele tem uma projeção fora do Brasil, é uma pessoa bastante bem articulada e isso ajuda muito o Museu. O que o senhor ressalta em termos de ação do Emanoel que até então é pouco trabalhado no Brasil? A grande ação do Museu Afro Brasil está sendo a ida das escolas. Mas, em primeiro lugar, ainda não existe no brasileiro uma cultura de freqüentar museus. O museu intimida as pessoas e eu não sei até que ponto existe uma articulação mais profunda do museu com as comunidades negras de São Paulo. Existem pontos de articulação da população negra em São Paulo, como por exemplo, a Brasilândia. Mas eu não sei até que ponto existe uma articulação do Museu com essas comunidades no sentido de trazer as populações para o Museu. Isso precisa ser aprofundado e desenvolvido. Por exemplo, em Cuba, eles pegam acervos de Museu e levam as populações rurais que não têm acesso. Mostram arte para essas populações, dão a essas pessoas a idéia do que é o Museu. Eles vão atrás. Imagina fazer uma interação com as populações quilombolas, seria um trabalho fantástico. Mostrar um outro lado da história deles a eles mesmos. Só ficando no plano das comunidades quilombolas, quantas delas sabem que existe um Museu Afro Brasil em São Paulo? Isso seria realmente uma grande coisa a se fazer. Alguns estudiosos usam o termo arte afro-brasileira. O Emanuel acaba trabalhando com ela. Você considera esse termo relevante? Essa arte brasileira nasce de um envolvimento de alguns artistas com a questão da religião negra. Por exemplo, o Rubem Valentim, ele era ogan de um terreiro de candomblé. Toda essa geometria dele parte de objetos rituais. Ele pega um machado e vai trabalhando isso de mil maneiras, procurando novas geometrias, novas variações, novas formas. Mas você vê que no fundo a grande referência é a questão do objeto ritual do candomblé. O Agnaldo Manoel dos Santos vai trabalhar como auxiliar no estúdio do Mário Cravo. O Agnaldo, que não tinha muito conhecimento do que seria arte africana, de repente, através dos livros do Mário Cravo e da escultura, tem um gozo de criatividade. O Hélio de Oliveira era filho carnal de um pai de santo e deveria suceder o pai dele na chefia do terreiro. Portanto, ele nasceu num terreiro de candomblé. Ele morreu muito jovem, tanto ele como o Agnaldo, mas ele estava completamente imerso nesse mundo. O Mestre Didi é o sacerdote supremo do culto dos antepassados, a mãe dele foi uma mãe de santo carnal e conhecidíssima na Bahia. Ele pertence a esse universo. Fora desse universo, há pessoas que supostamente não teriam nada a ver com isso, por exemplo o Carybé. Ele é um argentino e veio ao Brasil, na Bahia. Se fixou, começou a registrar aquele mundo baiano e de repente se envolve profundamente com a religião, ganha um posto honorífico no território de Ilê Ache Opon Afonja e não era simplesmente uma coisa de vaidade e status. Ele comparecia a todos os cultos e ajudava da forma que lhe fosse possível o terreiro. Ele sentia o envolvimento profundo com o terreiro e registra na sua obra isso. Um outro exemplo é o Ronaldo Rego do Rio de Janeiro. Iniciou-se na umbanda e depois passou pra o candomblé e toda obra do Ronaldo rego, a gravura e a escultura é todinha referenciada a esse culto do qual é devoto e está envolvido. Ele tem uma ligação profunda. Então, essa arte afro brasileira é, me parece, basicamente uma arte religiosa. Mas ai você tem também artistas africanos que não são necessariamente ligados a esse universo religioso. Nem entro no universo de interesse deles. Há o artista negro, inserido nesse universo de religiosidade, que cria a partir desse universo e o artista não negro, mas também referenciado a esse universo. Há também o artista negro que não está preocupado com a questão da religiosidade e tem uma criatividade desligada disso. Você viu um livro que saiu agora do Conduru? É uma conceituação sobre o que é arte afro-brasileira. Então, o Conduru, começa a citar uns artistas contemporâneos que pelo que eu saiba não tem o menor envolvimento com essa questão, mas ele os coloca como artistas inseridos nesse mundo. É minha crítica ao trabalho dele. Entretanto, o que vem anteriormente é muito interessante. Porque você considera que esses trabalhos não fazem parte de uma arte afro-brasileira?

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Porque são pessoas que pensaram em imagens sem saber realmente o que significa aquilo no sentido mais profundo. É uma coisa muito superficial, não dá pra caracterizar esses artistas como alguém que se situa num plano do Mestre Didi, do Rubem Valentim.

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Entrevista de Maria da Betânia Galas (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008) MARCELO DE SALETE SOUZA: Gostaria de saber como tem sido o seu trabalho junto das exposições do Emanoel Araujo, focando como tem sido o trabalho de organização de uma arte afro-brasileira. Por exemplo, creio que essa é a primeira vez em que temos os irmãos Timótheo próximos do Rubem Valentim etc. Como você ve esse fenômeno? MARIA DA BETÂNIA GALAS: Eu comecei devido a um convite da Professora Maria Lucia Montes. Eu já tinha realizado trabalhos com ela. O Emanoel conheci graças a ela. Comecei o trabalho no Museu Afro Brasil antes do museu existir. Eu estava presente nas primeiras reuniões de formulação do Museu, quando o prédio ainda não havia sido restaurado. Nós tinhamos apenas uma mesa onde fazíamos as reuniões sobre o projeto. Lá participavam muitas pessoas. Algumas que já não estão mais. O Vagner Gonçalves, Luis Carlos Lima, Maria Lucia, Luiz Carlos, Oswaldo de Camargo, muitas pessoas que vieram a compor um núcleo interdisciplinar de implantação do museu. O Museu Afro Brasil começou com esse núcleo interdisciplinar e com o projeto de implantação de dez meses patrocinado pela Petrobras e apoiada pela Prefeitura de São Paulo, que foi quem cedeu o lugar. E você atuava exatamente em que? Eu sou arte educadora por profissão, tenho trabalhos na área de cenografia, e tive formação em teatro de bonecos no nordeste. Esse meu vínculo com arte popular foi que gerou o interesse das pessoas para a minha aproximação com o Emanoel. Como você vê essas exposições do Emanoel desde quando começou o Museu Afro Brasil? Há uma mistura. Eu passei a perceber e estudar muitas coisas a partir dessa relação com o Emanoel. Há algum tempo já existe o discurso de rompimento entre o erudito e o popular, de se ter uma postura mais pluralista em relação a arte e a cultura, mas na realidade isso não acontece. É uma coisa que está apenas no discurso. Se você notar os museus e galerias você vê exatamente isso. Quando há algo de arte popular ela aparece como arte anônima. Não há grandes trabalhos reflexivos sobre os artistas populares. E isso aparece separado do restante. Bem, eu tive a oportunidade de trabalhar com uma pessoa que vê esse universo em conjunto, que valoriza e dá um local de prestígio para essa arte, para os criadores de todos os segmentos. Mais do que isso, ele coloca luz em locais onde antes não havia. Além disso, ele persegue essa perspectiva do negro com grande dedicação e aprofundamento. A minha percepção dele é essa de poder ver uma forma de reinventar o Brasil. Isso sempre foi negado. Poder ver a produção negra num local de destaque por sua força e representatividade na fundação do Brasil. É absurdo como ainda se nega essa manifestação. Eu trabalhei em escolas e vi isso cotidianamente. Você falou da forma do Emanoel de criar exposições. Você acompanhou a montagem e criação de alguma exposição? Como você vê o modo do Emanoel ocupar o espaço expositivo? O Emanoel é um escultor. A sua formação aparece de forma clara na exposição. Ele percebe não só o objeto que precisa ser mostrado em sua relação com o público, um objeto que traz uma informação cultural, mas percebe nesse objeto uma superfície que compõe com o espaço. Então ele vê esse objeto como cor. Ele vê esse objeto como linha, forma dentro do espaço. Isso é bem evidente nas montagens do Emanoel. Algumas vezes ele chega até a trair determinados princípios expositivos em nome disso. Por exemplo, seria interessante poder ver algumas esculturas por inteiro. A primeira entrada numa exposição do Emanoel é sempre um impacto. E você tem outros aspectos, pessoas de diversas formações com diversas reflexões. Inegavelmente, ele trabalha com a sua formação de curador e a sua formação de escultor. As duas em conjunto.

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Não sei se você acompanhou o trabalho dele na Pinacoteca, mas você considera que há alguma diferença entre o trabalho de exposição na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil? Tem. Aqui ele tem um projeto em que ele mergulha numa perspectiva, que é a linha central e outras circulando em volta. Ele pretende trazer tudo aquilo que são objetos que falam dessa presença do negro no Brasil em sua perspectiva histórica e artística. Isso traz outro tipo de informação. Na Pinacoteca ele tinha um interesse mais universal com a arte. A presença dessa vertente européia, branca e masculina, embora o emanoel tenha sempre apresentado sua marca, lá tinha grande participação. No Museu Afro Brasil o princípal é a cultura negra. Isso faz com que tudo que envolve esse sistema também seja alterado, é preciso pensar em uma outra forma de exposição, em formas de evidenciar contrastes, traços e composições que evidenciem uma forma própria de expor arte afro-brasileira. Alguns autores usam o conceito de arte afro-brasileira para delimitar a influência africana em alguns artistas. O Emanoel trabalha com obras de Rubem Valentim, Agnaldo Santos, Rosana Paulino e, além disso, usa artistas que não estão diretamente vinculados a uma experiência afro-brasileira, como a Yedamaria. Como você vê o uso desses diversos artistas dentro dessas diversas formas de expressão? Eu acho que isso tem criado algumas confusões. Pode-se ter uma idéia equivocada de que simplesmente é preciso ter a cor da pele. Acho que isso não é exatamente arte afro-brasileira. Existem várias concepções sobre o que é ou mesmo se existe arte afro-brasileira, mas cabe notar que em certos artistas é possível perceber um pensar das formas, da maneira de compor, onde forma e conteúdo expressivo faz um tributo a um jeito africano de fazer arte ou de pensar os objetos no mundo. Há pessoas que trazem essa permanência de um modo sutil, como a gemialidade dos ibejis, que aparece até em Farnese de Andrade (é lógico que ele está discutindo outras coisas, mas essa referência está lá). Isso acontece nas esculturas de Cosme e Damião também, na Europa elas estão separadas e aqui elas estão sobre um único bloco. Há essas sutilezas. Em relação a cor da pele do artista negro, mesmo quando trabalha com uma concepção ocidental de arte eu creio que é preciso ver a forma como o negro enfrenta a sua condição. É importante dizer, como cita o Emanoel, quem negro foi e quem negro é, porque as adversidades para essa população foram outras. Por isso é relevante apresentar esses artistas com fotos. Isso no entanto não pde se misturar com a concepção de arte afro-brasileira. Pensar em arte afro-brasileira é uma outra coisa. Se ela existe, se ela não existe, como ela existe. Ela se revela de uma forma mais forte em alguns momentos e em outros momentos se revela em sutilezas. Na arte popular isso é muito comum. São sutilezas que falam de uma ancestralidade, de uma memória da mão, da memória de um grupo. Você considera que a proposta do Museu Afro Brasil, assim como o que aconteceu com a Pinacoteca, é uma nova forma de se pensar em Museu? O que seria essa nova concepção? Sim. É uma nova concepção. A concepção já existia, mas o enfrentamento dessa idéia aconteceu pelo Emanoel. Isso desde a preocupação de se criar um Museu do Imaginário, do Mauraux, onde todas as culturas podem estar presentes. As grandes exposições da década de 1960 com a libertação dos países africanos. As ligas camponesas aqui, todos esses movimentos em massa para colocar o povo em evidência, tudo isso gera uma discussão sobre o multicultural. E no Brasil essa discussão está sendo colocada pelo Emanoel.

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Entrevista de Oswaldo de Camargo (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008) MARCELO DE SALETE SOUZA: Como foi sua colaboração com as exposições do Emanoel Araujo? OSWALDO DE CAMARGO: No seu campo de atividades, o Emanoel é enciclopédico. Ele é talvez um dos maiores curadores, um dos maiores conhecedores de arte, sobretudo a brasileira e, por extensão, a arte de conteúdo afro em nosso país. E ele aplica esse conhecimento fazendo museologia. Em 1988 ele precisou de alguém que fizesse uma matéria a respeito de escritores negros para o livro A Mão Afro-Brasileira. Eu já vinha juntando artigos, retratos e recortes sobre o negro, para meu uso pessoal como escritor, e tive o prazer de estar perto de uma pessoa que é um grande entusiasta da cultura negra. Assim, pude colaborar com o Emanoel para a sua exposição e também pude adquirir um grande conhecimento por meio dessa parceria, até mesmo sobre música, pois também sou músico. A minha colaboração para a A Mão Afro-Brasileira foi desde o início até o fim.. Acompanhei até as dificuldades para angariar patrocínio. No seu estúdio, eu pude me aproximar, como poucos, do Emanoel, vendo-o diagramar o livro e percebi que, nisso também, ele é mestre. Eu considero a Mão Afro-Brasileira, concretização disso tudo, a melhor publicação sobre o negro no centenário da Abolição, 1988.. Foi nessa época que eu conheci os livros que falavam sobre a produção do Emanoel e fiquei a par da avaliação crítica sobre ela. Mas a minha principal colaboração foi o pequeno ensaio que escrevi¸ sob o título A Mão Afra em nossa Literatura. Colaborando com a curadoria do Emanoel Araujo? Esse foi o primeiro trabalho. Aliás, eu não conhecia o Emanoel. Apesar de estar desde os 19 anos participando em associações negras em São Paulo (com 23 anos fui diretor de cultura da Associação Cultural do Negro), não conhecia o Emanoel. Isso porque nesse momento o Emanoel talvez fosse recém-chegado a São Paulo, e o ramo dele era outro, o que o levava a conviver em outros locais. Eu acredito que A Mão Afro-Brasileira, a exposição e o livro, foi o momento em que o Emanoel pôde conhecer melhor a cultura do negro em São Paulo. Acho que a partir dessa exposição e do livro o Emanoel começou a ficar mais perto da coletividade negra paulistana. O senhor acompanhou a montagem da exposição A Mão Afro-brasileira? Não, isso não era da minha área. Mas tive o prazer de emprestar um quadro da Maria Auxiliadora – A colheita de cáctus – para ser exposto. Como você percebe o uso que o Emanoel faz dos artistas negros dentro dessas exposições? Anteriormente, por exemplo, não havia muitas exposições que agrupavam artistas negros dentro de um mesmo conceito como ele fez. O Emanoel nesse ponto se mostra muito inteligente. Ele usa uma segmentação que trata do negro e joga luz sobre ela, aprofundando a visão e o conhecimento a respeito.. Eu acredito que um dos poucos artistas que têm condições de fazer isso é ele, pois o Emanoel “vive” artes plásticas e está fundamente envolvido com o negro. Ele está impregnado dessa temática. Não só por ele ser negro. Naturalmente não só por causa disso, haja visto que no tempo de Machado de Assis houve outros autores negros e mulatos, mas sendo Machado de Assis, um mestiço, o maior nome da Literatura brasileira a atenção se voltou sobretudo para ele – que não se prendeu tanto a essa questão –, o que se entende. Então, o Emanoel tira da sombra autores bons que, se não fosse o trabalho dele, ninguém conheceria. Mas isso aconteceu por quê? Porque ele foi atrás, e como ele é um homem muito conhecido, freqüenta as melhores rodas de artistas, ele teve maior facilidade de chegar a esses autores e lançá-los. Isso é óbvio. Ninguém pode dizer que conhece de artes plásticas se não conhece o mínimo de Aleijadinho e de Mestre Valentim, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres. Eu estou falando que ele vai muito além disso. Ele busca o século XIX, o XVIII. O Emanoel para mim é um descobridor. Ele faz uma circunavegação nas artes e vai trazendo

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novidades, descobrindo terras e confirmando nomes não só no âmbito negro, mas no da cultura em geral do País.. Só que ele tem algo muito importante. Ele tem o prestígio de um artista plástico. E com isso traz à tona as outras artes. É daí que averiguo que ele é dono de um espírito enciclopédico. Ele traz a literatura, a música, com as artes plásticas. O Emanoel, para mim, é um grande desbravador É um homem inquieto, que gosta de fazer. Você acompanhou a trajetória do Emanoel desde a Pinacoteca até o Museu Afro-Brasil. Você considera que aconteceu alguma diferença dentro dessa trajetória? O Emanoel naturalmente foi crescendo. Ele foi se construindo nessa visão. Tudo que fazemos nessa vida é uma construção. Você nunca é o mesmo. O homem é uma construção de si mesmo, uma idéia que não é minha, mas que amo citar. Então, o Emanoel, como falei, ele vivia num ambiente mais rarefeito, depois ele foi conhecendo mais da história do negro. Ele foi se enriquecendo.O projeto dele assim foi sendo cada vez maior, com mais soma, com mais gente se agregando. O Emanoel é um artista sempre em caminhada e em alguns aspectos solitário. Eu não posso dizer que existam dois ou três “Emanoeís”. O Emanoel é único. De pintores primitivos eu posso citar dez ou cinco. Mas o Emanoel, sobretudo como museólogo, é único. E por felicidade nossa é um negro. Ele poderia ser negro e isso não ter a mínima conseqüência para o que aqui nos interessa, podia ser um negro que passa em branco. Mas o Emanoel é um negro intelectual que não passa em branco. Ele enegrece o que faz. E não enegrece à toa. Ele tem uma meta, que é fazer uma releitura do País. E é muito necessário que se faça essa releitura, sobretudo com artes. Dentro disso tudo, o que você destaca do trabalho do Emanoel? Eu destaco, além das soberbas exposições que ele realizou, a inquietação e as buscas dele. Como fui consultor do Museu do Imaginário, um grande projeto do Emanoel, do qual participei durante oito meses em 1999, posso afirmar que muito do que acontece no Museu Afro Brasil já estava ali contido e aparece agora retrabalhado. Ele absorveu, aumentou, ampliou. Eu considero o Museu Afro Brasil fruto de toda essa experiência do Emanoel. Ele deu uma olhada sobretudo no século XIX, momento que eu considero de maior prestígio da nossa história. É o século de Paula Brito, Machado de Assis, do Cruz e Souza, do José do Patrocínio, Teodoro Sampaio e esses personagens todos e tantos outros que vieram antes deles ou depois são trabalhados muito bem pelo Emanoel. Fazendo livros, produzindo catálogos, o Emanoel, na minha opinião, é um extraordinário divulgador da cultura negra, apontando rumos para uma arejada história do negro no Brasil. Você considera que há um modo específico do Emanoel Araujo em montar exposições? A forma de lidar com o espaço, de pensar a distribuição das obras? Sem dúvida. O Emanoel é um homem de minúcias. Ele tem o entusiasmos de que falavam os gregos, isto é, a inspiração, como se fosse um transe, que pega o poeta. . O Emanoel trabalha, creio, muitas vezes da mesma maneira que o poeta com seu poema. A disposição que o Emanoel faz é um poema. Ele trabalha com esse claro e escuro da pintura, com essa luminosidade que também é da literatura. Ele dá a tonalidade única possível, a tonalidade própria do Emanoel. Se fosse outro seria diferente. E depois vem a inquietação de fazer da exposição dele uma coisa sempre renovada com o tempo. Ele pega uma peça aqui, põe para lá. A exposição não é uma coisa estática. O Emanoel é tudo, menos estático.

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Entrevista de Renata Felinto (concedida a Marcelo de Salete Souza em 2008) MARCELO DE SALETE SOUZA: Gostaria de saber como você começou a trabalhar com o Emanoel Araujo e como foi o início dessa trajetória. RENATA FELINTO: Eu conheci o Emanoel quando fui trabalhar na exposição do Rodin A Porta do Inferno. Eu já conhecia o Emanoel de nome, já estudava arte afro-brasileira, e daí o Percival Tirapelli, amigo do Emanoel, meu orientador também, me convidou para trabalhar na exposição sobre a Porta do Inferno do Rodin. Isso foi um contato profissional. Um contato um pouco mais próximo eu tive quando fui fazer uma entrevista com ele para o meu mestrado. Essa foi uma entrevista sobre o trabalho artístico dele e sobre a definição do termo arte afro-brasileira. Porque na verdade creio que foi ele quem deu visibilidade para esse termo dentro das artes plásticas. Foi ele quem também ampliou o uso desse termo porque antes arte afro-brasileira era arte somente ritual. Ele ampliou um pouco esse prisma ainda que eu tenha algumas ressalvas quanto a esse termo. Quais são as suas ressalvas em relação a esse termo especificamente? Eu penso que ninguém chama a Tomie Hotake de artista nipo-brasileira, ela é uma artista do abstracionismo informal apenas. Quando nos referimos a ela nós falamos muito mais a respeito das características de sua pintura e pelas escolas com as quais ela dialoga do que pela origem dela. Quando falamos em Candido Portinari, também não nos referimos a ele como ítalo-brasileiro. Eu considero, então, que isso pode fechar várias portas. Conversando com a Rosana Paulino, ela falou que isso acontecia muito com ela. A Rosana estava em uma mostra de artistas afro-brasileiros e ela não era chamada para uma de artistas contemporâneos. É como se o afro-brasileiro e o contemporâneo não fossem palavras que se referem a uma mesma época. Há essa história do tempo mítico e religioso. Parece que esse conceito de arte afro-brasileira ficou parado no tempo. Essa é minha discussão do doutorado até. No Museu Afro Brasil foi que eu tive maior contato com o Emanoel. Mas o Emanoel é uma pessoa muito reservada. Então, as conversas que eu tive com ele sempre foram conversas muito pontuais, com diversas outras pessoas. Depois que ele voltou do Benin é que eu fui almoçar com ele algumas vezes e pude conversar melhor. Como você considera que o Emanoel lida com o termo arte afro-brasileira? Eu considero que ele abraça esse termo. Mas para o Emanoel esse termo é tão amplo que cabe uma grande diversidade de pessoas que penso que, para mim, não poderia. Por exemplo, o Caribé. Daí você começa a questionar também uma série de características e problemas para efetivar esse termo. É arte afro-brasileira uma arte que apresenta certas características? É arte afro-brasileira a arte produzida por negros? A arte que tem um mesmo tema? A arte que tem como tema as religiões afro-brasileiras? Considero que há um monte de problemas que, para o Emanoel, ele abarca e entende tudo isso como afro-brasileiro. Isso para ele é super importante. Foi ele quem deu visibilidade para essa tendência, essa terminologia. Em uma tendência você consegue citar algumas características. No caso da arte afro-brasileira não há essa possibilidade. Se você vir a Yêdamaria, que está lá no Museu Afro Brasil, que é uma amiga particular do Emanoel, nota que ela faz naturezas mortas. Ao mesmo tempo tem um Mestre Didi, que é um sacerdote. A estética dele é ritual, mas a obra não foi sacralizada. O Emanoel abarca tudo isso. E creio que ele entende tudo isso como arte afro-brasileira. E o que você acha que deveria ser entendido como arte afro-brasileira? Você consegue definir como compreender melhor esse termo? Não. Esse é um caminho difícil e daí você exclui um monte de gente. Nos meus textos, por exemplo, eu excluo todos os brancos. Eu penso em arte afrodescendente. A matriz é o indivíduo que produziu a obra. Eu penso muito na perspectiva do negro que pensa a sua própria trajetória e que de alguma maneira tenta elaborar isso através da pintura, do desenho, da fotografia, das

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instalações e performances. Eu tenho pensado mais nessa perspectiva também por conta da lei, que agora inclui o estudo da cultura indígena. Antes era uma lei que vinha para diferenciar um grupo, agora ela começa a botar todo o mundo que não é branco no mesmo saco. Bem, agora eu tenho pensado muito que é importante apresentar artistas negros produtores. Então, não tem sentido, por exemplo, estudar Di Cavalcante porque ele pintou mulatas ou estudar o Portinari porque ele pintou trabalhadores negros ou a Dijanira que pintou festas populares ou mesmo o Ronaldo Rego. Eu penso muito no negro como produtor da arte. Ele como protagonista e não mais como tema. Quando eu penso nesse termo, que não gosto muito, penso sob essa perspectiva, focando quem produz. E focando quem produz há uma grande diversidade de temas. Essas pessoas são artistas e vão colocar isso de diferentes modos na sua produção. Outros nem pensam em colocar essa discussão em suas obras. Como, por exemplo, a própria Yêdamaria? Mas ela tem alguns trabalhos que são um tanto “Black Panthers”. Tem alguns trabalhos de colagem e fotografia com negros e brancos. Lembra um pouco também de Iemanjá como tema. Ela tem essa fase, mas não se restringiu a ela. Não dá para ficar só nesse assunto. Você sai disso naturalmente. Você precisa se interessar por outras coisas. Esse é um problema do meu doutorado, pensar esse termo, pensar se serve ou não, se precisa existir. Se esses artistas devem ser pensados junto às correntes de arte em que trabalham ao invés de serem somente limitados à arte afro-brasileira. Trabalhando nas exposições do Emanoel Araujo, como você percebe a montagem desses trabalhos? Ele tem tudo amarrado na cabeça dele, mas é muito ocupado. Então, em poucas exposições ele pode sair com os educadores para falar sobre o conceito da exposição. Mas pelas conversas que temos com ele é possível constatar que ele tem tudo isso muito bem elaborado. Ele sabe o que quer fazer. Algumas montagens são muito exuberantes, inclusive, mas sempre um pouco complicadas para o público. Às vezes, isso me parece mais projetos pessoais dele, coisas que ele vem elaborando há muito tempo. Que ele quer mostrar, mas não pensa no trajeto da pessoa dentro do espaço. Não tem esse cuidado didático para quem vai conhecer tanto o Museu como o assunto da exposição. Na exposição sobre religiosidade, por exemplo, creio que faltavam textos produzidos para a exposição. Mesmo sobre o percurso, tem algumas montagens que são um pouco labirínticas. Como acontece com o acervo permanente... Sim, as obras do acervo permanente são em nichos, as obras são agrupadas. Tem as peças que falam sobre trabalho, as peças que falam sobre a África, mas essa montagem não é didática. Agora ela está um pouco mais didática, porque tem uma vitrine com os dados da peça, com informações de onde vêm aqueles objetos no continente africano. Tem muitas escolas que visitam o Museu, tem muitos turistas e pessoas que vão sozinhas, creio que falta um pouco desse didatismo para essas pessoas entenderam o que está ali, pois caso contrário fica um diálogo para um público muito especializado de pessoas que já tem conceitos mais cristalizados sobre o que eles vão ver no Museu. O Emanoel tem toda essa intenção de mostrar essa produção mas o seu foco não é pensar exatamente no público. No Museu Afro Brasil ele tem dado um pouco mais de atenção ao núcleo de educação. As exposições dele sempre têm muita informação. Como você percebe o cruzamento das diversas facetas do Emanoel – curador, artista e colecionador? Você considera que tudo isso interfere no modo como ele expõe? Interfere. Eu creio que ele pensa as exposições sozinho. Eu já vi ele montando uma exposição. Mais do que uma pessoa que é só curadora, que necessita de um arquiteto, um engenheiro; ele consegue pensar o espaço sozinho. Ele faz e depois consulta as pessoas para saber se é possível ou não. Ele consegue transitar por esse meio da curadoria com muita facilidade. Mas como diretor, eu acho que talvez ele devesse ser um diretor artístico, apenas curatorial, porque, caso

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contrário, ficam muitas funções para ele administrar, para ele se responsabilizar sozinho. Esses buracos, como a falta de atenção com o público, em parte tem a ver com isso. É um acumulo de funções. Ele está presente em várias funções ali, quando ele deveria delegar funções para as pessoas que estão próximas dele. Eu creio que isso complica. Ao mesmo tempo, ele apresentou algumas obras novas no Tomie Hotake. Nós sabemos que quando você tem uma produção artística e um trabalho para te sustentar a produção artística fica em segundo plano. No caso do Emanoel ele acaba deixando de lado a produção artística dele para cuidar dessas funções, que são tão prazerosas quanto. Para mim, ele é uma pessoa que gosta de pensar a arte. Pensar a arte dentro das suas várias especificidades. Produzindo, pensando em como dispô-la no espaço, em como comercializá-la, é uma atividade muito global, mas que para ele poderia ser apenas a artística e de curadoria. A parte administrativa deveria ficar com outra pessoa. Mas eu creio que ele consegue visualizar o que ele quer. Ele tem o conceito, ele sabe qual cor usar na parede. Há essa crítica hoje sobre o cubo branco, mas eu acho que ele tem o equilíbrio disso tudo. Ele não coloca o efeito pelo efeito, ele coloca a parede com cor para criar a ambientação do espaço expositivo. Ele sabe exatamente o que tem de ser discutido em cada espaço. Ele concebe cada espaço e só falta que isso fique mais visível para o público. Pensando no trabalho na Pinacoteca e no museu Afro Brasil, você vê alguma diferença nessa trajetória? O Emanoel mudou o modo de pensar em exposição? Eu penso que no Museu Afro Brasil ele talvez esteja mais sozinho. Quando ele estava na Pinacoteca ele tinha um grande apoio do Mario Covas, por exemplo, do Governo do Estado. Sim. Um apoio institucional importante... Sim. Por ser uma Instituição que agora já tem mais de 100 anos, que é muito importante para o Estado de São Paulo, eu penso que ele tinha mais apoio lá, conseguia mais verba facilmente. Tudo era mais fácil na Pinacoteca. Também porque era um tipo de arte que reiterava os valores da arte ocidental. Por sua vez, o Museu Afro Brasil é uma instituição que faz parte de um conjunto de ações afirmativas, do ponto de vista educacional e até do ponto de vista de cidadania. Aqui na USP você tem a Casa de Cultura Japonesa, tem o próprio Tomie Hotake perto, isso privilegia um segmento social. Há todos os outros museus que apresentam uma arte ocidental e branca. De repente surge o Museu Afro Brasil enorme, do tamanho de uma Pinacoteca quase, apresentando uma arte produzida por negros. Isso causa um grande enfrentamento. Inclusive, tem muitos críticos de arte que eu nunca vi freqüentando o Museu Afro Brasil. É como se eles não dessem o aval para aquele espaço. Creio que lá o Emanoel tem esses vários enfrentamentos, não é apenas um enfrentamento financeiro com o Governo e a Prefeitura, mas também um enfrentamento com a área de arte e cultura. Ele mesmo já falou que o Museu é como uma bomba que pode explodir a qualquer momento. Não só pela falta de dinheiro, mas porque é um prédio que foi visado por várias instituições, inclusive pelo MAM, que é um Museu importante. Assim, eu creio que é muito mais difícil de ele gerir o Museu Afro Brasil do que a Pinacoteca. Tem um problema que penso que é uma falta de vontade política também das pessoas que o circundam. Sobre as exposições do Emanoel de 1988 até hoje, você vê alguma diferença? Comparando todas essas exposições eu penso que ele incluiu mais artistas contemporâneos agora. Se formos pensar na exposição A Mão Afro-Brasileira, penso que essa foi a exposição mais próxima do Museu Afro Brasil hoje. Ela fala de literatura, música, das artes; mas não tinha muito de arte contemporânea. Eu acho que o Museu Afro Brasil agora dá espaço para obras mais atuais, para o que acontece agora. Eu penso que é importante sempre atualizar, para não ficar uma imagem do negro estática. Tem alguns assuntos que não são contemplados e que são importantes dentro da trajetória do negro no Brasil, como a música, capoeira, por exemplo. Não é possível querer abarcar tudo. Mas a diferença que percebo é essa: hoje há muito mais arte contemporânea. E sempre tem muita religiosidade também. Mas há uma crítica – ele podia ampliar essa visão também sobre o candomblé, mostrar a umbanda e outras formas de religiões afro no Brasil. Às vezes algumas pessoas vão até o Museu e falam “eu já vi isso em outra

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exposição”. Nós temos de explicar que esses objetos já fora apresentados antes, mas que agora estão num novo contexto. Mas exceto a parte de arte as outras áreas não tiveram muitas modificações. E o acumulo de obras nas exposições do Museu Afro Brasil? Desde a sua inauguração é possível perceber que o Emanoel aumentou e muito o número de obras. Ele fez uma exposição agora chamada Gabinete de Curiosidades onde há muito presente essa noção de acúmulo. É uma ação de colecionador. Ele pensa que todos os objetos são valiosos. Isso é muito interessante. Quando vamos a uma exposição queremos saber o que há de mais valioso, mas na perspectiva do Emanoel, tudo é valioso. Isso por conta do valor histórico que está ligado ao objeto. Para ele faz todo o sentido colocar um objeto de trabalho do lado de uma gravura. Isso é uma característica barroca dele. Isso tem a ver muito com as esculturas dele. Isso é tão próprio dele que ele consegue distribuir isso no espaço – embora impactante num primeiro momento – de uma forma coerente. Há objetos que tem uma conexão com os documentos que estão do lado ou com um quadro mais a frente. Se compararmos o Museu Afro Brasil com a exposição Negro de Corpo e Alma o Museu está muito mais limpo. Ele tem uma narrativa na cabeça sobre os objetos. Aquele objeto tem de estar naquele espaço junto daquele outro. Isso para que o discurso da exposição tenha coerência. Como você vê as discussões sobre a nova museologia no trabalho do Emanoel? Imagino que há muito de um revisionismo histórico nas exposições do Emanoel. Isso é uma postura de indivíduo negro que acontece desde a sua primeira exposição. Eu não sei como ele passou por 1969, por essas discussões sobre a visibilidade dos excluídos, mas ele passou por tudo isso. Me parece que tudo isso surge no Emanoel como fruto de um posicionamento pessoal dele, uma auto conscientização dele enquanto negro e baiano, uma pessoal que viajou. Acredito que isso tenha mais importância que os fatores da política e da história. É algo natural dele. Eu acho que ele faria isso independente dessa voz sobre pluralidade que há hoje. O percurso pessoal dele levou a isso... Sim. Penso que é muito mais uma visão pessoal que ele tem do negro nos EUA e no Brasil. Ele pega essas duas coisas e junta. Por conta de toda sua história, ele entende que o Museu Afro Brasil é um espaço legítimo dos negros que demorou muito tempo para acontecer. Existem vários Museus desse tipo, porém menores, nos EUA. Nos EUA somente 11% da população é negra, considerando os pardos. Eu penso que essa trajetória do Emanoel, assim, é independente de toda essa movimentação museológica de hoje. É uma coisa da formação dele, algo que ele foi elaborando e chegou a isso. (...) Olha, tudo lá no Museu poderia ser perfeito se ele funcionasse administrativamente como outros espaços. Há diversas ONGs de bairro, associações de moradores etc., que procuram o Museu Afro Brasil . Eles entendem que a visita ao Museu Afro Brasil vai mexer um pouco com a identidade. Tem gente que não gosta, o pessoal de antropologia e das ciências sociais não gosta de usar o termo identidade. Eu fico pensando nesse termo e precisamos ver que numa pessoa existem várias identidades. Há um cruzamento de identidades. Nós somos negros, mas temos uma formação ocidental. Isso me deixa com o pé atrás. Mas essas ONGs pensam muito nessa auto-imagem dos indivíduos do bairro, na sociedade que os exclui. Esse pessoal sabe que o Museu pode ajudar a fortalecer a identidade dessas pessoas. A pessoa vai aprender um pouco do percurso histórico desse grupo do qual ela faz parte. E isso acontece. Como educadora eu já percebi como acontece. Eu já trabalhei em vários Museus e aqui é o único local onde nós podemos perceber a mudança da pessoa, enquanto indivíduo, por causa de uma visita. Isso não acontece numa visita a uma exposição de arte impressionista, de arte russa, de arte chinesa ou de arte contemporânea. Nessas exposições trabalham-se orientações estéticas que podem não estar ligadas a determinados grupos, mas no Museu Afro Brasil estamos trabalhando com a imagem de um grupo. A imagem que os outros têm desse grupo. Você vê como essa imagem negativa pode se tornar positiva ou ser melhor compreendida.

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O Museu Afro Brasil tem uma proximidade muito grande com a sua comunidade? Exatamente. Você se vê ali na história como protagonista. Há uma demanda para isso. Essas pessoas de ONGs e professores acabaram percebendo esse movimento e valorizam algo que sempre foi deixado de lado. Por fim, o Emanoel é um marco. É uma das pessoas mais importantes das artes hoje no Brasil. Isso apesar de ele não ter esse reconhecimento. Se ele tivesse não faltaria dinheiro para o Museu Afro Brasil. Talvez, esse seja um caso triste em que, mais uma vez a pessoa só vai ser devidamente respeitada e reconhecida quando não estiver mais aqui para receber as homenagens. Ele causou uma revolução nas artes. Ao mesmo tempo há um hiato, é preciso resolver esse problema entre o contemporâneo e o tradicional no Museu. Mas o importante é que ele pode mostrar para todos, brancos e negros, essa produção. Eu mesma estudava história da arte sem nenhuma identificação com aqueles artistas, eu gostava de um ou outro, mas não me identificava. Mesmo em relação à produção africana, pois nós não somos mais africanos. Depois disso apareceu o Emanoel. A partir desse momento eu vi o que eu quero pesquisar e o que eu posso fazer. Ele começou isso e a gente precisa continuar.

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Questionário para entrevista com Emanoel Araujo 1. Nos conte sobre seu percurso como curador. Como se deu o caminho entre o artista e o colecionador para o curador? 2. Como foi o interesse inicial pelo ato de colecionar? Quais são seus principais interesses e como acontece essa atividade? 3. Como foi a elaboração da mostra A Mão Afro-brasileira? Como foi o contexto dos 100 anos da abolição para você e de que forma isso influenciou na organização da exposição? Além disso, porque o foco da autoria negra e não no trabalho artístico na exposição A Mão Afro-brasileira? 4. A exposição Negro de Corpo e Alma parece ter sido a maior exposição em seu trabalho curatorial até a criação do Museu Afro Brasil. Como foi gestada essa exposição e a divisão entre os núcleos Sentir a alma, Olhar o corpo e Olhar a si mesmo? 5. Como foi a criação do Museu Afro Brasil e a divisão dos núcleos entre arte contemporânea, religião, memória etc.? 6. Em seus textos é possível verificar a fuga da visão da arte africana e afro-brasileira como exótica, como é possível fugir desses estereótipos? 7. O que o senhor entende pelo termo arte afro-brasileira? Existe uma arte afro-brasileira ou somente arte brasileira? 8. Como é o seu método de trabalho para montar exposições? Como você pensa a distribuição do espaço, da luz e das cores? Qual é o objetivo maior dessa montagem? Quais os principais conceitos que norteiam suas exposições? 9. O que é necessário para repensar a história da arte brasileira, tradicionalmente de orientação européia, hoje em relação aos afro-brasileiros? Como incluir o artista e a população negra nesse espaço? 10. Como foi o seu trabalho com Pietro Maria Bardi e Dona Lina Bo Bardi? Eles, assim como Odorico Tavares, foram importantes para seu trabalho de curadoria atual?

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Questionário para entrevista com os colaboradores 1. Como foi sua trajetória de trabalho junto as curadorias de Emanoel Araujo. 2. Como você percebe os artistas negros dentro dessas exposições? 3. Quais são as características da montagem de Araujo, o seu método de trabalho? 4. O que você considera de mais relevante no trabalho curatorial de Araujo? 5. Você considera o termo arte afro-brasileira relevante para explicar a produção dos artistas apresentados por Araujo? 6. O que diferencia o trabalho de Araujo na Pinacoteca e no Museu Afro Brasil? 7. A curadoria de Araujo faz parte de uma nova concepção de museu? Quais seriam as características desse projeto? 8. O percurso de exposições de Araujo tem se alterado desde a exposição A mão afro-brasileira?

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Relação de parte das exposições com destaque sobre arte afro-

brasileira e da África de Emanoel Araujo

Bahia–África–Bahia, Museu de Arte da Bahia, Salvador (27/02 a 14/03/83).

A Mão Afro-Brasileira, Museu de Arte Moderna, São Paulo, 1988.

A Casa do Baiano: O negro brasileiro refletido na coleção de Araujo, Museu Baerengasse, Zurique, Suiça, 1990.

Vozes da Diáspora, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 1992.

Os Herdeiros da Noite – Fragmentos do imaginário negro, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1994; Centro de Cultura de Belo Horizonte, 1995; Espaço Cultural 508 Sul – Brasília, 1995.

Antologia da Fotografia Africana, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 1996.

Arte e Religiosidade no Brasil – Heranças Africanas, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 1997.

Negro de Corpo e Alma, Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 anos, São Paulo, 2000.

Para Nunca Esquecer: Negras Memórias, Memórias de Negros, Museu Histórico Nacional, RJ, 2001; Galeria de Arte do SESI, SP, 2003; Palácio das Artes, MG, 2003.

Brazil: Body & Soul. (curadoria de Emanoel Araujo, Edward J. Sullivan, German o Celant, J. Zugazagoitia, N. Aguilar, M. Mariano). Guggenheim Museum, New York, 2001.

Mario Cravo Neto – O Tigre do Dahomey_A Serpente de Whydah. Museu Afro Brasil, São Paulo, 2005.

O Imaginário do Povo Brasileiro. Museu Afro Brasil, SP, 2005.

Carybé: O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó , Museu Afro Brasil, São Paulo, 2006.

Yêdamaria, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2006.

Imagens Perversas e Inocentes, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2007.

Benin Está Vivo Ainda Lá – Ancestralidade e Contemporaneidade, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2007.

Bijagós – Arte dos Povos da Guiné-Bissau, 4º Festival de Arte Negra, MG, 2006; Museu Afro Brasil, SP, 2007.

A Divina Inspiração – Sagrada e Religiosa – Sincretismos, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2008.

Walter Firmo em Preto e Branco, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2008.

Negros Pintores, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2008.

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Referências Bibliográficas

Referências bibliográficas de ou sobre Emanoel Araujo

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ÁFRICA E AFRICANIAS DE JOSÉ DE GUIMARÃES (curadoria de Emanoel Araujo). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2007.

ALMEIDA, Miguel de. Emanoel Araujo. São Paulo: Lazuli Editora, Companhia Editora Nacional, 2007.

__________. Poética da ancestralidade. Gazeta Mercantil, São Paulo, p. 7, 10-12-2004a.

ARAUJO, Emanoel. África, Parte I: Pedaço do Brasil. Jornal do Comércio, São Paulo, 2005a.

__________. África, Parte II: À procura de uma identidade. Jornal do Comércio, São Paulo, 2005b.

__________. África, Parte III: Um percurso. São Paulo: Jornal do Comércio, 2005c.

__________. Autobiografia do gesto (curadoria de Agnaldo Farias). São Paulo: Instituto Tomie Ohtake (exposição: 1 de março a 1 de abril de 2007).

__________. Entrevista. A Tarde, Salvador, p. 20, 23-10-2004b.

__________. Entrevista (concedida a Giovanna Castro). Correio da Bahia, Salvador, 11-06-2006a, p. 1, Folha da Bahia.

__________. Entrevista concedida a Marcelo de Salete Souza. São Paulo, 2009.

__________. Guardião da memória (entrevista). Retrô – Coleções & Antiguidades. São Paulo, Ano 2, n. 7, abril de 2006b, pp. 42-48.

__________. Esculturas (catálogo de exposição). São Paulo: Galeria Cesar Aché (de 27-11-84 a 22-12-84), 1984.

__________. Mecenas polêmico (entrevista concedida a Maurício Pestana). Raça Brasil. São Paulo: Editora Escala, n. 128, 2009, pp. 12-15.

__________. O museu de Emanoel (depoimento a Alexandre Bandeira). Raiz – Cultura do Brasil. São Paulo: Editora Cultura em Ação, fevereiro de 2006c, n. 3, pp. 75-77.

__________ (org.). Restauro, reforma e adaptação do edifício da Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca, 2002.

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__________. O que acho maravilhoso é poder fazer (entrevista concedida a Olivio Tavares de Araujo). D. O. Leitura, Imprensa oficial do Estado, São Paulo, ano 19, n. 11, pp. 27-41, novembro de 2001b.

__________. Os traços do curador (entrevista concedida a A. L. Vieira). Carta Capital, São Paulo, n. 00, 21-03-2007, p. 72.

__________. O vingador negro (entrevista). Correio da Bahia, Salvador, Caderno especial do programa aprovado, 27-05-2006d, pp. 10-11.

__________. Uma cultura indigente (entrevista concedida a Ana Paula Souza). Carta Capital, Plural, São Paulo, n. 00, 03-05-2006e, pp. 62,63.

A MÃO AFRO-BRASILEIRA: significado da contribuição artística e histórica (curadoria de Emanoel Araujo, catálogo de exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo). São Paulo: TENENGE – Técnica Nacional de Engenharia, 1988.

ANTOLOGIA DA FOTOGRAFIA AFRICANA E DO OCEANO ÍNDICO (curadoria de Emanoel Araujo). São Paulo: Revue Noire & Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1996.

ARTE E RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA (curadoria de Emanoel Araujo e Carlos Eugênio Marcondes de Moura). São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1994.

ARTE E RELIGIOSIDADE NO BRASIL – heranças africanas (curadoria de Emanoel Araujo). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1997a.

BARREIRA, Vagner. A estética do axé. Veja, São Paulo, 07-09-1988, n. 00, pp. 140, 141, Arte.

BENIN ESTÁ VIVO AINDA LÁ – Ancestralidade e contemporaneidade (curadoria de Emanoel Araujo). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2008.

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Breve biografia do pesquisador Marcelo de Salete Souza

Marcelo de Salete Souza é paulistano. Graduou-se em Artes Plásticas pela Universidade

de São Paulo. Ele tem estudado arte afro-brasileira desde o início de sua graduação. Essa

preocupação resultou neste trabalho de mestrado do Programa Interunidades em Estética

e História da Arte da mesma Universidade. Marcelo também é desenhista, ilustrador e

escritor de histórias em quadrinhos, tendo já publicado livro no Brasil e no exterior.

E-mail: [email protected]

Website: www.dsalete.art.br

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