a condição de servente na construção civil

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  • Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2011, vol. 14, n. 2, pp. 241-262

    A condio de servente na construo civil

    Paulo Henrique Faleiro dos Santos1 e Vanessa Andrade de Barros2

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)

    Compreender as razes e o contexto em que gerada e reproduzida a discriminao da categoria dos serventes na construo civil, bem como suas implicaes psicossociais. Esse foi o objetivo norteador de uma investigao desenvolvida atravs de um estudo de caso, cujos resultados e anlises do corpo ao presente artigo. O trabalho se inscreve nas chamadas Clnicas do Trabalho, na perspectiva da psicossociologia do trabalho. Tomou-se como campo do estudo uma empresa privada de pequeno porte do ramo da construo civil, situada na Regio Metropolitana de Belo Horizonte, MG. A pesquisa foi dividida em trs etapas: (a) estudos preliminares; (b) observaes ergonmicas e entrevistas; e (c) anlise das entrevistas e estruturao do texto. Constatou-se uma marcante contradio entre os discursos dirigidos ao servente quando falam de sua atividade a partir do senso comum e aqueles que partem da vivncia e da anlise do trabalho real desses profissionais. Alm disso, revelou-se que a condio de servente encarna um conjunto de caractersticas assimiladas como negativas, que dificultam a formao de uma autoimagem e de uma identidade positivas por parte daqueles que so por ela marcados. Identificou-se tambm que a discriminao da categoria exerce importante funo poltica (controle social) atravs do enfraquecimento ou mesmo anulao da coeso e organizao coletivas. O estudo denuncia a coexistncia dos mais sofisticados mecanismos de produo e a sujeio de seres humanos a relaes/situaes de vida e trabalho humilhantes e/ou degradantes, contradio classificada como tica e moralmente insustentvel. Ele sugere ainda que a negligncia de investimentos focados no desenvolvimento humano, no contexto de trabalho, mostra-se contraproducente, mesmo que sob a lgica do lucro. Finalmente, as consideraes apontam para a necessidade de criao de outro conceito de trabalho em nossas sociedades.

    Palavras-chave: Serventes, Construo civil, Discriminao, Clnicas do trabalho.

    The servant condition in construction

    To understand the roots and the context in which discrimination at servants (attendant laborers) in construction is generated and reproduced, as well as their psychosocial implications. This was the guiding objective of a research developed through a case study. It's results and analysis embodies the present article. The work fits in the so-called Clinics of Labor, at the labor psychosociology perspective. The field of study was a small private company in the business of construction, situated in the metropolitan area of Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil. The research was divided into three stages: (a) preliminary studies, (b) ergonomic observations and interviews and (c) categorization of verbalization and structuring of the text. It was found a striking contradiction between the discourse addressed to the servant when speaking of his activity from the common sense and the speeches that come from analysis of the actual work of these professionals. Besides that, it was revealed that the condition embodies a set of characteristics treated as negative, which hinder the formation of a self-image and a positive identity by those who are marked by it. It was also found that the category of discrimination has an important political function (social control) by weakening and breaking down cohesion and collective organization. The study reveals the coexistence of sophisticated mechanisms of construction production and the placing of human beings into humiliating and/or degrading conditions, which is classified as ethically and morally untenable. It also suggests that the neglect of investments focused on human development, in the work context, reveals to be counterproductive, even under the profit logic. Finally, the considerations point to the need of overcoming the old social order and to create a new concept of work in our societies.

    Keywords: Servant (attendant laborer), Construction business, Discrimination, Labor clinics.

    1 Mestre em Psicologia pela UFMG.

    2 Professora do Programa de Ps-graduao em Psicologia da UFMG. Laboratrio de Ensino, Pesquisa e Extenso em Psicologia do Trabalho (LabTrab).

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    Introduo

    Ento, tipo assim, eu queria entender por que essa to discriminao que tem com o servente. Eu pelo menos no entendo. Porque ns, todo mundo, tanto faz encarregado, principalmente, igual eu, sou pedreiro, precisa do servente, n. Porque o pedreiro sem o servente ele no faz nada. Ele faz, mas menos do que com o servente. isso que eu queria at, nesse caso, at eu mesmo queria entender por que dessa discriminao que tem contra o servente (pedreiro).

    s pilares que sustentam o presente trabalho esto fincados bem a, no incmodo provocado pela situao excludente e ambivalente to bem apresentada na fala do

    pedreiro Zezinho3. Ao ingressar como psiclogo social em canteiros de obras, em abril de 2007, o que logo chamou a minha ateno foi observar uma desconfortvel contradio. Aquela existente entre o que eu percebia como um lugar marginal ou um no lugar, atribudo dentro daquele campo e no apenas nele aos operrios tidos como menos qualificados, os serventes, e a importncia de sua atividade no processo produtivo da construo civil.

    O

    So muitos os esteretipos depreciativos lanados a esses trabalhadores, depositando nos indivduos a responsabilidade exclusiva pela situao de vida tantas vezes precria, alm de desviar a ateno daquilo que Jacques Duraffourg delata com transparncia e lucidez:

    As mudanas importantes sobre as quais ningum quer falar referem-se ao contedo e s condies de trabalho. Dizer que os jovens so preguiosos e no querem trabalhar, que as pessoas resistem s mudanas e elas no querem sair de onde esto!: isso no uma argumentao. Na melhor das hipteses uma maneira de se recusar a ver a realidade e, na pior, uma desonestidade. (...) Tenho mesmo a tendncia de inverter o discurso: no um drama que pessoas sejam foradas a aceitar situaes em que perdem sua sade ao serem obrigadas a trabalhar? (...) Quando eu encontro essas pessoas na minha vida profissional, elas dizem que esperam s uma coisa, poder trocar de emprego: quem, realmente, resiste mudana? (Duraffourg, Durrive & Duc, 2007, p. 54)

    A reflexo do ergonomista aponta, entretanto, para um cenrio preocupante tambm queles que resistem a enxergar o real. Tal cenrio j se faz presente no mundo globalizado e no permite ser despercebido tanto pela iniciativa pblica quanto pela privada no Brasil, em vrios setores produtivos e, com efeito, no da construo civil e infraestrutura. Trata-se da escassez de profissionais disponveis para suprir a crescente demanda de produo que, segundo os indicadores econmicos e a projeo dos especialistas (Almeida, 2010), se far presente pelo menos ao longo da prxima dcada.

    A classe de operrios no setor subdividida em trs nveis hierrquicos definidos em funo de capacitao tcnica: servente (ou ajudante), semioficial (ou meio oficial) e oficial. A categoria dos serventes encontra-se, portanto, no polo inferior de atribuio de status profissional, sendo caracterizada pelos maiores nveis de precariedade, heteronomia e baixa valorizao social, vinculados s tarefas que lhe so atribudas e aos sujeitos que as realizam. Ainda assim, trata-se da categoria que rene o maior contingente de operrios em uma obra.

    Mas o que se encontra por trs, ao redor e no cerne da discriminao, da recusa e da vivncia da condio servente? Como reage subjetiva e socialmente o sujeito que habita ou evita habitar esse no lugar? Trata-se de fato de um no lugar? E que lugar ocupa o trabalho na organizao da sociabilidade desses sujeitos (modos de vida, escolhas, identidade, valores)? O presente artigo sustenta-se em parte significativa dos resultados e das discusses de uma pesquisa impulsionada por essas e outras inquietaes, nascidas, por sua vez, do contato com o dia a dia dos serventes. Compreender as razes e o contexto em que gerada e reproduzida essa to discriminao que tem contra o servente, bem como suas implicaes

    3 Os nomes de todos os trabalhadores entrevistados foram substitudos por pseudnimos nas citaes de suas falas.

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    psicossociais, foi a motivao propulsora do estudo que, somente ao longo de seu prprio desenvolvimento, se permitiu desvelar como objetivo geral. Focalizaremos aqui a condio de servente na construo civil, apresentando o contexto de discriminao, desvalorizao, humilhao e de assdio psicossocial vivenciado pela categoria e abordando suas implicaes individuais, sociais e polticas, tal como nos ensinam a Psicossociologia do Trabalho (Lhuilier & Clot, 2010) e a Ergologia (Schwartz & Durrive, 2009).

    A pesquisa

    Para a realizao da pesquisa, lanamos mo da opo metodolgica do estudo de caso:

    Uma situao de trabalho contm as questes da sociedade. Inversamente, pela maneira como se trabalha, cada um toma posio nestes debates da sociedade e os recompe na sua escala (Schwartz, Durrive & Duc, 2007a, p. 31).

    Segundo Yin (1989, apud Bressan, 2000), o estudo de caso uma inquirio emprica que investiga um fenmeno contemporneo dentro de um contexto da vida real, em que comportamentos relevantes no podem ser manipulados, mas possvel fazer observaes diretas e entrevistas sistemticas. Caracteriza-se pela capacidade de lidar com uma completa variedade de evidncias documentos, artefatos, entrevistas e observaes. Alguns autores afirmam que o estudo de caso no uma metodologia especfica, mas uma forma de organizar dados preservando o carter nico do objeto social em estudo (Goode & Hatt, 1952, apud Coutinho & Chaves, 2001). A escolha metodolgica submete-se s caractersticas especficas do objeto focalizado, s afinidades terico-conceituais do pesquisador e, no menos, conscincia dos limites estabelecidos pela envergadura caracterstica de uma dissertao de mestrado, contexto acadmico em que a pesquisa foi desenvolvida.

    Tomamos como campo do estudo uma empresa privada de pequeno porte do ramo da construo civil, situada na Regio Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Estado de Minas Gerais. A construtora contava, no momento da pesquisa, com 392 funcionrios diretos, isto , formalmente registrados em seu quadro de efetivos. Desses, 292 (74,5%) eram operrios (oficiais, meio oficiais ou serventes). Na categoria de operrios, dos 292 que compunham o grupo, 106 (36%) eram oficiais (pedreiros, carpinteiros, armadores, operadores de mquinas, montadores e eletricistas), 28 (10%) meio oficiais e 158 (54%) serventes. Nota-se que a categoria dos serventes se apresenta como significativamente mais numerosa nos canteiros de obra da empresa. Em relao a todo o quadro de funcionrios (392), os serventes representavam no momento 40,3%.

    A encomenda de interveno enunciada pela diretoria da empresa era a de promover a melhoria das condies de vida dos trabalhadores atravs da doao de casas prprias a funcionrios de nvel operrio, definindo-se critrios e mtodos para isso. Atravs da frequentao do canteiro de obras em busca de conhecer a realidade de trabalho, bem como de discusses com os trabalhadores e com a direo da empresa, conseguimos transformar uma encomenda vinda da alta hierarquia, sem a participao dos trabalhadores, em uma demanda. Isso significou envolver trabalhadores e direo em um projeto comum de pesquisa/interveno que visava compreender as situaes de trabalho para transform-las (Lhuilier & Clot, 2010; Carreteiro & Barros, 2010).

    A primeira fase do trabalho teve incio em abril de 2007. Alm de observaes situacionais do dia a dia de trabalho e comunicaes informais junto aos operrios, formulamos um roteiro de orientao para uma conversa realizada individualmente com os funcionrios diretos (formalmente registrados na construtora) e indiretos (funcionrios de empreiteiros

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    terceirizados) presentes em uma determinada obra. Ao todo, no perodo de julho a dezembro de 2007, foram trabalhados os dados de 79 (setenta e nove) entrevistas, contemplando a totalidade dos operrios efetivos do perodo, sendo 43 (quarenta e trs) funcionrios da construtora e 36 (trinta e seis) da empreiteira terceirizada. Participaram das entrevistas os cargos de servente (33), pedreiro (10), armador (13), carpinteiro (14), almoxarife (1), eletricista (1), encarregado (3), mestre de obras (1), vigia (2) e tcnico de segurana (1). A ordem das entrevistas foi aleatria, levando em considerao exclusivamente a disponibilidade dos entrevistados no momento da entrevista, visando impactar o mnimo possvel o andamento da obra. A aplicao da primeira metade das entrevistas, que duravam em mdia 2 horas e 30 minutos cada, foi feita pelo pesquisador, enquanto que, para as demais, pude contar com a valiosa participao de duas estagirias de psicologia. Todas elas foram realizadas durante o horrio de trabalho dos entrevistados, com a anuncia da empresa. O roteiro elaborado apresentou questes focadas em quatro contextos (pessoal, familiar, moradia e comunitrio), tendo investigado aspectos variados, tais como idade, escolaridade, idade em que iniciaram a atividade laboral, a primeira atividade exercida, sonhos, desejos, hbitos, nvel de satisfao/insatisfao em relao situao de vida, composio familiar, rendimento familiar, escolaridade dos filhos, condies de moradia, aspectos comunitrios, dentre outros. Essa aproximao da realidade de vida e trabalho dos operrios bem como o meu retorno academia e encontro com o pensamento de representantes das Clnicas do Trabalho e da Ergologia exigiu a explicitao de um posicionamento: o favorecimento da melhoria das condies de vida dos trabalhadores no deveria partir de outro ponto que no o investimento na melhoria das condies de trabalho. Caso contrrio, a iniciativa se mostraria mope e assumiria uma contradio recorrente: atravs dos discursos ideolgicos e publicitrios de Responsabilidade Social Empresarial, cuidar de fora e ignorar a realidade a ser transformada do lado de dentro dos tapumes. Ainda na primeira etapa do estudo, iniciamos a reviso bibliogrfica acerca do trabalho operrio na construo civil brasileira e a pesquisa documental, compilando dados diversos acerca do setor, informaes que se mostraram imprescindveis para a caracterizao geral do campo sobre o qual, ento, nos debruamos.

    A segunda fase da pesquisa foi composta por observaes de cunho ergonmico da atividade dos serventes e trs entrevistas semiestruturadas realizadas em grupo. A participao nas entrevistas em grupos foi espontnea. Contando com a autorizao da empresa, aps exposio de seus objetivos e condies, convidamos abertamente todo o grupo de funcionrios de uma obra que ocupavam ou j haviam ocupado a categoria de servente a participar, de forma facultativa, da primeira entrevista, no horrio de trabalho. Dispuseram-se a participar 26 funcionrios, sendo 13 serventes, 9 pedreiros, 1 operador de mquinas, 1 meio oficial e 2 encarregados (um de eltrica e um de armao). A provocao inicial utilizada para disparar as verbalizaes foi: falem-me sobre o trabalho do servente. As colocaes do pesquisador se fizeram presentes no sentido de solicitar esclarecimentos, mediar as manifestaes, manter o foco da discusso no trabalho do servente e, ocasionalmente, tambm participar da discusso com colocaes advindas das observaes ergonmicas da atividade de trabalho da categoria. importante mencionar que mesmo os participantes com funes distintas dos serventes haviam pertencido categoria na fase inicial de sua carreira profissional. Assim, a discusso em grupo propiciou a expresso, a troca e a produo de saberes, ideias e opinies acerca do trabalho dos serventes entre profissionais em diferentes etapas do desenvolvimento profissional na construo civil. Visando maximizar a participao dos participantes, o grupo inicial foi dividido em dois subgrupos, sendo realizada uma nova entrevista com cada. Assim, a segunda entrevista contou com a participao de 12 trabalhadores (sendo 6 serventes, 4 pedreiros, 1 meio oficial e 1 encarregado de armao). A entrevista com o Subgrupo B contou com 11 trabalhadores (sendo 4 serventes, 5 pedreiros, 1 operador de mquinas e 1 encarregado de eltrica).

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    A terceira e ltima fase da pesquisa compreendeu a organizao do material obtido atravs das entrevistas grupais em categorias de anlise, bem como a estruturao dos captulos da dissertao.

    O trabalho do servente

    [...] servente muito discriminado, porque no profisso, sofrimento (servente).

    H certo consenso de que o desenvolvimento tecnolgico na construo civil aliviou o servio pesado designado aos operrios, em especial aos serventes. Entretanto, nota-se que determinadas posturas organizacionais no setor no acompanharam a evoluo alcanada pela tecnologia aplicada aos equipamentos. A fase inicial de mobilizao do canteiro de obras, por exemplo, comumente caracterizada pela precariedade das condies de trabalho e convivncia (vestirios, sanitrios, refeitrio). Tivemos a oportunidade de presenciar serventes e outros operrios carregando latas de concreto nos ombros para o enchimento de pilares no terceiro andar de uma obra, fase em que o elevador de carga e a grua (guindaste) ainda no haviam sido locados. Como o concreto tem um tempo limitado de validade entre a usinagem e a aplicao, chama a ateno a correria e o nvel de esforo e desgaste exigido dos trabalhadores para a execuo da atividade.

    Observamos com mais ateno a atividade de um servente escalado para, no contexto descrito, receber dos colegas todas as latas de concreto e transferir seu contedo para o preenchimento das formas de um pilar. Ele se posiciona em uma plataforma montada sobre um andaime, a 2 metros de altura da laje, bem na extremidade desta, a uma altura de aproximadamente 8 metros da base do prdio. As latas so colocadas por outro servente no tablado de madeirite sobre o qual ele se encontra. Um terceiro servente responsvel por levantar cada lata do cho, que tem o peso de 45 kg, e pass-la para o primeiro despejar o concreto dentro da forma. A lata por ele girada na altura da sua cabea, sendo encaixada por entre as ferragens do pilar. O trabalhador bate a lata virada na forma para que o concreto remanescente se solte do fundo da lata. A lata vazia colocada no cho e outra lata cheia j chega s suas mos. O servente mal tem tempo para tomar flego e observar a longa fila de colegas com latas nos ombros, latas que ainda passaro por suas mos. Nesse processo, uma boa quantidade de concreto respinga para todos os lados, atingindo o ambiente, a roupa, braos e tambm o rosto dos trabalhadores. Encontra-se ao seu lado um quarto operrio, este um oficial, responsvel por vibrar o concreto, isto , introduzir na massa j despejada dentro da forma do pilar um aparelho vibrador necessrio para o correto assentamento do concreto e a preveno da formao de bolhas de ar. Esse aparelho produz um rudo incmodo, alto e constante. Soma-se ao contexto a indumentria exigida ao funcionrio. Trata-se dos EPIs (Equipamentos de Proteo Individual), que promovem considervel desconforto. Na atividade observada, o servente utilizava capacete, uniforme (cala e camisa 67% polister e 33% viscose, um material pesado, quente e resistente), botas de PVC (sete lguas, material impermevel, de cano longo), cinto de segurana (que pesa entre 2 kg e 3 kg e o prende ao andaime para evitar quedas), luvas de raspa (uma luva grande, que faz o trabalhador perder o tato fino e que no impermevel) e protetores auriculares (pea de silicone introduzida no ouvido).

    Para o enchimento do pilar em questo, foram necessrias cerca de 65 latas de concreto, totalizando 2.945 kg despejados na forma. Notamos que, a partir do tero final da atividade, o servente observado apresenta sinais claros de fadiga, como tremor nos braos e tenso na expresso facial. O encarregado permanece todo o tempo ao lado, supervisionando (e fiscalizando) o servio. Finalizada a tarefa, pouco aps ele descer do andaime, nos aproximamos

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    e perguntamos como ele se sentia, demonstrando que o nvel de esforo exigido na atividade havia chamado nossa ateno. O servente, 21 anos, magro, recm-chegado do interior, novato na construo civil e na empresa, relatou no momento que se sentia normal, que a atividade era cansativa, mas normal.

    Nota-se na situao observada o nvel de sobrepeso fsico e presso psquica envolvidos na atividade. Para lidar com sua execuo, o servente lana mo de si mesmo. Cada momento exige que escolhas sejam feitas e, com elas, riscos sejam assumidos. Nesse momento entra em cena o corpo-si, essa entidade um tanto enigmtica que, segundo Schwartz (2007), atravessa tanto o intelectual quanto o corporal e o cultural, responsvel pela gesto da distncia entre o real e o prescrito na busca de tornar a situao vivvel. Nesse processo, o trabalhador gerencia as infidelidades do meio4, isto , tudo aquilo que preenche essa distncia, o que no haviam previsto, mas que l est: a dor e fadiga nos braos, o incmodo da luva e dos demais equipamentos de segurana, as caractersticas fsicas da forma de madeira e do posicionamento das ferragens, que exigem que ele encaixe a lata de uma determinada maneira para conseguir despejar o seu contedo no pilar, o ardor da mistura de suor e cimento nos olhos, a vertigem pela altura em que se encontra executando a atividade, o acmulo de latas chegando e esperando para serem despejadas no pilar, dentre outras.

    Alm do esforo fsico e psquico necessrios para a sua realizao naquele contexto, o que mais a atividade observada exige do servente? Obedincia? Submisso? Que efeitos produzem essas exigncias? Que sentido(s) o sujeito confere a esse trabalho? Essas indagaes nos convidam a, alm do trabalho real (tudo aquilo que o servente faz alm do prescrito pra viabilizar a execuo da tarefa), considerar tambm o real da atividade (tudo aquilo que ele no fez e gostaria de ter feito, todos os conflitos internos com os quais teve que lidar ao longo do processo, todas as aes que chegou a considerar e decidiu no concretizar).5 possvel perceber que o trabalhador est imerso naquilo que Durrive e Schwartz (2008) denominam dramtica do uso de si, conceito com o qual os autores, ao examinarem a complexidade inerente a todo ato de trabalho humano, visam devolver algo de grandeza quilo que considerado infinitamente pequeno ou negligencivel. Durrive e Schwartz nos ajudam a perceber que, executando a atividade observada, existe um sujeito fazendo uso de suas prprias capacidades, de seus prprios recursos e de suas prprias escolhas para dar conta de fazer algo.

    A condio de servente

    Ao lado das exigncias, dificuldades e precariedades objetivas presentes no exerccio de sua atividade, ao servente tambm delegada a tarefa de lidar com a desvalorizao de sua atividade e com um conjunto de discriminaes a ele dirigidas, diretamente ligadas ao seu pertencimento categoria profissional.

    , eu, pra ser honesto com voc, em pouco tempo que eu trabalho na construo civil, deu pra se notar o seguinte: o trabalho de servente na rea da construo civil, deu pra se notar o seguinte, ele um pouco desvalorizado. Pra comear pelo prprio encarregado. Segundo, desvalorizado tambm, de uma certa maneira, at mesmo por alguns colegas de servio. (...) Ah, pera a, voc um servente, sua obrigao fazer essa limpeza, sua obrigao deixar isso aqui limpo pra mim, entendeu? Se voc quiser, bem, se voc no quiser eu simplesmente vou chegar at o encarregado e vou pedir pra te trocar (servente, Andr).

    4 Ver Schwartz et al. (2007b, p. 95).

    5 Ver Clot (2001).

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    Em verdade, o servente sequer goza do status de profissional no setor, no chega a ocupar um cargo oficial.

    Quer diz, arte realmente a profisso da pessoa, quer diz que a profisso uma arte, entendeu? Seja o carpinteiro, o pedreiro, o marceneiro, o eletricista, o bombeiro, quer diz, tudo arte, entendeu? (Carpinteiro Carlos apud Sousa, 1983, p. 95).

    Arte deve ser o seguinte, em qualquer profisso, n, ou seja, a nica pessoa que num tem arte servente, porque servente num tem arte no. Mas passando pra profissional, cada um tem sua arte, ou seja, mecnico, ou lanterneiro, ou jardineiro, ou pintor, ou carpinteiro, ou estucador, ou armador... todo profissional. Isso arte (Carpinteiro Joo apud Sousa, 1983, p. 95).

    [...] Eu acho que o servente, qualquer que seja ele, ele deveria correr atrs, mostrar mais interesse no servio profissional pra ver se ele consegue uma classificao, porque a tudo ajuda, em termos de salrio, em termos de mais respeito, que eu acho que falta, com certeza, falta um pouquinho de respeito, o servente nunca ele respeitado como profissional, e muitas vez exatamente por causa disso, porque eles no procura esfor. Mas, a partir do momento que eles faz o esforo da parte deles, eles vo conseguir um objetivo na vida, eles vo ter uma profisso. [...] Ento eu acho que oc tem que trabalhar com esse objetivo, de correr atrs de uma profisso, de um trem qualquer, seno vai ficando a vida inteira de servente (encarregado, Tio).

    As duas primeiras citaes extradas da pesquisa de Sousa (1983) realizada junto aos operrios construtores de Braslia deixam clara a noo de que, na construo civil, todos os operrios detm uma arte, uma profisso, com exceo exclusiva do servente. J o relato do encarregado participante de nosso prprio estudo coloca em evidncia que um trem qualquer seria melhor opo do que ficar a vida inteira de servente. O esforo exigido vinculado ao objetivo de deixar de ser servente para que, ento, o sujeito passe a ser respeitado, entre outras coisas, como profissional. Tal perspectiva, compartilhada no apenas entre operrios e encarregados, mas em todo o setor (demais nveis de gesto e at mesmo de ensino6), nos coloca uma questo inevitvel: se no profisso, o que ?

    Muitas vezes... eu j trabalhei em uma obra que a gente era muito isvalorizado. Assim, no so todos os pedreiros, muitas vez os pedreiro falava assim com a gente: Ah, servente pra mim no nada (servente, Nil).

    As anlises apresentadas em nosso estudo sobre o trabalho do servente demonstram de forma inequvoca seu carter de atividade profissional (Santos, 2010). Ainda que acolha trabalhadores sem qualificao prvia, a observao mais atenta da atividade revela que a formao profissional do servente ocorre na prtica, no exerccio do ofcio, exigindo a aquisio de saberes especializados, bem como de competncias7 determinantes para a correta, segura e eficaz realizao de prticas especficas. Tais saberes investidos na atividade geralmente passam despercebidos pelos observadores e, amide, pelos prprios trabalhadores. A esse respeito, so ilustrativas as palavras presentes nas primeiras trs frases do encarregado que, em meio ao dilogo com o grupo na entrevista, busca reformular sua colocao anterior:

    Porque se ele como ajudante, ele sendo ajudante, ele um profissional. Na atividade dele, ele um profissional, n. Ele sabe fazer a massa, ele sabe atender o pedreiro, a pessoa que t com ele, certinho, ento eu acho que ele um profissional tambm. S que, s vezes, igual eu t acabando de te dizer, tem uns caras, igual ele acabou de dizer a, parece que no quer ter um objetivo na vida. Quer ficar ali a vida inteira, n. Outras vezes, s vezes falta oportunidade, n. Mas, na maioria das vezes o cara parece que no quer ter um objetivo na vida. Eu acho que isso (encarregado, Tio).

    6 Fato constatado em conversas entre o pesquisador e docentes de uma das mais respeitveis instituies de ensino superior em engenharia civil do Estado de Minas Gerais.

    7 Ser competente tirar partido do meio, gerir as relaes de antecipao e de encontro em funo de valores, [...] antes de tudo, um 'agir' aqui e agora (Schwartz et al., 2007b, p. 98 e 2007c, p. 207).

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    A partir da quarta frase da citao, entretanto, o encarregado passa a atribuir quase exclusivamente ao querer do sujeito (ou falta dele) a responsabilidade por suas condies de vida e trabalho. Ainda que se trate de uma perspectiva psicologizante e reducionista (incutida historicamente no imaginrio social), tal olhar sobre a atitude resignada de muitos serventes, observada por ele e por vrios operrios (dentre eles, os prprios serventes), pode abrir caminho para a evidncia de algo relevante sobre a categoria. Referimo-nos nossa prpria perspectiva de que, alm de profisso, dado o contexto que a abraa, trata-se tambm de uma condio, a condio de servente, em uma acepo consonante postulada por Louis Le Guillant (2006) em seus estudos junto s empregadas domsticas. Mais do que o exerccio de uma determinada atividade profissional, ser servente implica em um conjunto de vivncias objetivas e subjetivas, de considervel impacto tanto na formao da identidade quanto na sociabilidade dos sujeitos marcados por essa condio. Tal aspecto de condio da categoria servente, que estigmatiza e desqualifica a situao e o sujeito que a ela se vinculam, , em parte, apresentada nas seguintes falas de operrios:

    O cara no sabe nada, n. A, tipo assim, qualquer coisa que acontece, qualquer coisa, ah, o cara servente, fez qualquer coisa errada ali. Ele pode ser um pedreiro, que s vezes ele pedreiro, mas, se fez qualquer coisa errada, os prprios colegas mesmo fala: ah, o cara servente, nem sabe trabalhar direito (risos dos colegas ao fundo). O que mais acontece no meu modo de pensar isso, n. No, o cara servente, quer dizer, t jogando o cara pra baixo. Tipo assim, sabe, no meu modo de pensar assim.

    Pesquisador: O servente no sabe nada?

    , o modo de dizer, n, o pessoal fala, n. No todo mundo que fala (pedreiro, Zezinho).

    A marca (estigma) servente remete ao no saber nada e, conforme indicado na citao, usada at mesmo direcionada aos oficiais. J a ambiguidade dos sentimentos do sujeito para com a empresa e a profisso (que ocorre tambm na condio de domstica) se expressa, por exemplo, em tudo aquilo que o faz negar o pertencimento condio de servente, por um lado (atitude manifesta, entre outras coisas, no objetivo de ser classificado o mais rpido possvel), e, por outro, a satisfao pelo ingresso concedido pela profisso ao universo do trabalho formal (outras portas no se abrem), a frgil proteo por ela oferecida diante do completo desamparo social (desemprego/indigncia) e a identificao desse degrau como etapa fundamental para o acesso a melhorias nas condies de vida e trabalho.

    [...] s vezes alguns no tm uma boa educao, no tm, assim, um grau de estudo, entendeu, e fica com receio de comentar, fica com receio de falar as coisas pelo seguinte, porque ele acha que, de uma certa maneira, que ele no vai ter a capacidade de entrar numa outra empresa, de trabalhar num outro setor de servio (servente, Andr).

    Assim, o servente negado pelo contexto como sujeito (tarefas, colegas, chefia, organizao, sociedade) e, enquanto deseja ele negar a sua condio, entende que, ainda sendo dura, ela quem o acolhe e pode lhe oferecer condies mnimas de subsistncia, seguridade (basicamente salrio fixo, cesta bsica, previdncia social, FGTS e seguro desemprego), insero social (atravs de alguma participao no processo produtivo), bem como algumas oportunidades de desenvolvimento profissional. Negao e afirmao, ressentimento e uma espcie de gratido, atitudes e sentimentos que andam lado a lado caracterizando, portanto, um dos conflitos psquicos que o servente deve gerir. Observemos as trs falas de um mesmo servente:

    Se fosse todo mundo, os servente, fosse tudo inguinorante, sabe o que ia acontecer? Ia falar assim: Ah, c quer saber, eu acho que eu vou embora porque eu no t sendo valorizado nem nada no servio, ento o que que eu vou fazer, eu vou embora, vou (servente, Nil).

    Vo supor, igual eu trabaiei em uma outra obra a, eles muito disprezava de mim: ah, oc toda

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    vida vai ser servente?, eu falei assim u, se eu gosto da minha profisso eu gosto, u, eu no vou querer mudar de profisso. Muitas vez as pessoa jogava na minha cara que eu vou ser servente toda a vida, eu falo no, eu vou ser, que a minha profisso, que eu gosto, que eu amei. Mas, muitas vez, talvez a pessoa, igual, fala [...] rebaixar a gente, fala assim ah, c bobo demais ser servente toda vida. No porque servente toda vida, porque a gente gosta da profisso da gente. Eu gosto do que eu fao (servente, Nil).

    Servente muito discriminado, porque no profisso, sofrimento (servente, Nil).

    Alimentam ainda mais esses conflitos, ao lado do no reconhecimento e da desqualificao profissional, a vivncia cotidiana da subservincia e impotncia perante os constrangimentos impostos pelo e no trabalho. Tais situaes so assimiladas como violncia diante da qual os serventes parecem no encontrar meios eficazes de se defender, o que provoca impactos na autoestima dos sujeitos, conforme veremos a seguir.

    Humilhao e vergonha

    Seus olhos embotados de cimento e lgrima (Construo, Chico Buarque de Holanda).

    Em seus estudos e escritos, o psicossocilogo Vincent de Gaulejac (2006) indica que pessoas submetidas a violncias humilhantes (processos de estigmatizao, coisificao, dependncia e perda de dignidade) podem apresentar um sentimento de vergonha que se instala quando a identidade do indivduo alterada. Para ele, o que produz a humilhao a negao da condio de humano, de semelhante, de cidado ou de sujeito.

    Diante de violncias extremas, (o indivduo) invadido pela desumanizao e pela confuso. As referncias habituais que lhe permitem situar-se em relao aos outros e a si mesmo so fragilizadas ou destrudas. [...] O sujeito dilacerado por tenses contraditrias entre a tentativa de salvaguardar sua unidade e a impossibilidade de consegui-lo sem rejeitar uma parte de si mesmo (Gaulejac, 2006, p. 103).

    Aspectos da vivncia de violncias humilhantes e o seu impacto na autoestima dos sujeitos protagonistas da condio servente so observados nas falas que seguem:

    A gente no tem vergonha de falar que a gente chora, mas quem fala que num chora, ele chora sim, porque, qualquer palavra que voc falar com uma pessoa, voc humilha a pessoa, igual muitas vez eu j fui humilhado (servente, Nil).

    [...] talvez o pedreiro fala assim: ah, c vai ser burro toda a vida?, nunca deve falar isso com a pessoa porque ele pode magoar a pessoa, falar com a pessoa ah, c obrigado a aprender (servente, Nil).

    Por que que hoje ento est sendo aberto a pela Prefeitura de Belo Horizonte, est sendo aberto a por empresas, aqui mesmo voc prova disso, voc traz vrios cursos a , pra implantar, entendeu, por que que muitos serventes no tm coragem de ir? Primeiro, s vezes o prprio complexo de inferioridade. Porque palavras que machucam, palavras que revoltam a pessoa, a pessoa fica com aquilo na mente. [...] Ento, quer dizer, o servente, s vezes ele aprende a ser um carpinteiro, a ser um pedreiro, porque ele no d ouvido a isso... aquele que tem um pouco de personalidade, que s vezes aquele que tem um pouco, assim, ele cria na sua mente aquele complexo de inferioridade, entendeu, ele d ouvido quilo, ele fica traumatizado com aquilo e no faz. [...] A o que que acontece. O servente se auto se desvaloriza por si mesmo, tem aquele complexo de inferioridade, que ele nunca vai chegar, entendeu? Ah, eu vou me esforar pra que, eu vou fazer por qu? Eu vou fazer simplesmente pra mim ter o meu sustento ali mensal, s pra mim ajudar ali, ou pra mim pagar minha conta de gua e luz, c entendeu, s pra mim ajudar

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    dentro de casa. [...] E, infelizmente, uma classe que, no desfazendo, porque hoje, no mercado, onde que t tendo mais requisio, entendeu, de mo de obra, mas, infelizmente, de uma certa maneira, ela desvalorizada. Socialmente, socialmente. a realidade (servente, Andr).

    Ainda segundo Gaulejac, as violncias humilhantes obrigam o sujeito ao enfrentamento de uma imagem negativa de si que o situa em uma contradio entre o que deveria ser para ser reconhecido socialmente e a identidade que lhe atribuda. O autor postula o termo sofrimento social, dizendo que este nasce quando o sujeito obrigado a ocupar um lugar social que o anula, desqualifica, coisifica ou desconsidera. produzido, portanto, pelas contradies sociais que transpassam a identidade (represso, explorao, excluso), gerando um conflito que internalizado adiante da impotncia do sujeito de sair dessa posio, um conflito interno de origem externa. De um lado, a excluso, o desamparo social, condies de vida e trabalho difceis, penosas, que produzem, do outro, uma vulnerabilidade identitria, uma ferida narcsica, uma invalidao psquica. Na perspectiva de Gaulejac, o sofrimento subjetivo provocado por esse conflito s pode ser atenuado por uma mudana objetiva de sua situao social. Tal sofrimento pode tanto paralisar como impulsionar o sujeito. Ele criativo se leva o sujeito ao engajamento na busca de mudana da situao vivida e ao rompimento com a internalizao do estigma. Por outro lado, fonte de embotamento se inibe as potencialidades do sujeito, podendo levar resignao e passividade.

    As contribuies do autor talvez nos ajudem a melhor refletir sobre aspectos subjacentes aparente falta de querer ter um objetivo na vida apresentada por alguns serventes de acordo com o relato do encarregado anteriormente citado. Para toda dor/sofrimento busca-se a cura (quando possvel) ou o alvio, a anestesia (quando no mais se acredita em suas prprias foras para lutar e/ou na possibilidade daquela). Devido s restries financeiras a que esto submetidos os serventes, observa-se que, com frequncia, eles elegem um anestsico popular e genuinamente brasileiro para o enfrentamento do sofrimento cotidiano: a cachaa. A esse respeito, Fabiana Silva (2006) empreendeu um valoroso estudo ao buscar identificar e compreender as possveis relaes entre, de um lado, as situaes concretas de trabalho e de vida de operrios da construo civil e, do outro, os altos ndices de quadros de alcoolismo entre os trabalhadores nesse setor.

    A negao da condio servente

    Quem proclama a fraqueza do outro revela sua prpria estatura (Frei Cludio van Balen).

    fcil notar nos canteiros de obra a marginalizao dos serventes promovida pelo conjunto dos atores que povoam o campo, partindo dos engenheiros, passando pelos prestadores de servio terceirizados, mestres de obra, encarregados e oficiais, chegando at os prprios serventes, atravs da internalizao e/ou projeo do estigma. A discriminao excludente se faz presente, por exemplo, em comentrios, brincadeiras e, principalmente, nas interaes de trabalho estabelecidas entre os serventes e os atores apontados.

    Dentro da construo civil, o que eu j notei isso: a maioria de encarregados, a maioria de mestres de obras, entendeu, sai do prprio setor do trabalho. No errado, no. Ele fez por onde, por merecer. C t me entendendo? S que o seguinte, eles no tm, assim, muito dilogo, s vezes no sabem conversar, s vezes no sabem pedir, entendeu? (servente, Andr).

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    Com apenas um pouco mais de ateno no olhar, possvel perceber tambm que, atrelada a essa reificao, excluso e marginalizao, subjaz a expresso de uma negao, a negao da condio de servente.

    Num t dizendo que o encarregado quer ser melhor que as pessoas, mas tem uns encarregados que gostam de ser melhor do que as pessoas [...]. S isso (servente, Nil).

    Porque tem muitos pedreiro tambm que c trabalha com ele, mas ele no te d chance. Ce t trabalhano a ele fala: pode deixar isso a, porque voc vai fazer cagada. No so todos, n, mas tem alguns que falam. Porque tem muitas pessoas, que eles tambm j foi servente, n, mas tem muitas pessoas que, s porque eles pego um grau, eles pensa que j mais, que j mais alguma coisa que o outro. No (servente, Edson).

    [...] tem muitos pedreiros que eu j trabalhei que gritam com o ajudante. Eu acho que ningum gosta de ser chamado ateno e no precisa ser gritado tambm, n? s vezes a pessoa t daqui ali e t gritando com a pessoa. Eu acho isso errado, tambm, acho chato (pedreiro, Jos de Ftima).

    Mais uma vez Gaulejac quem nos ajuda a melhor compreender o indissocivel entrelace entre a subjetividade (individual) e a objetividade (social) presente nessa relao de negao do excludo, dos sujeitos que se situam margem.

    A figura do excludo revela a nossa prpria vergonha. Se rejeitamos aquele que nos estende a mo, porque o consideramos um vagabundo, um enganador ou um delinquente potencial, porque ele est nos remetendo imagem daquilo que tememos nos tornar. Rejeita-se a relao, porque se recusa a identificao. Coloca-se o outro distncia, porque ele incomoda. Essa relao intersubjetiva, descrita aqui sumariamente, profundamente social. Ela cristaliza as fraturas sociais que atravessam atualmente a nossa sociedade. um efeito da luta por lugares entre os que batalham para conserv-los, os que procuram ter um lugar e os que no mais o tm. [...] Trata-se de uma questo social (Castel, 1995), que produz os efeitos psicolgicos. Assim, torna-se essencial fazermos a distino entre os determinismos socioeconmicos e suas consequncias psicolgicas. Ao querermos responder, no plano psicolgico, a problemas de gnese social, corremos o risco de aprisionarmos os indivduos na impotncia e na culpabilidade. Mas, inversamente, ao esquecermos os efeitos psquicos das situaes sociais e econmicas, deixamos de compreender por que e como os indivduos se mobilizam ou se desmobilizam para produzir a sociedade (Elias, 1939) (Gaulejac, 2001, p. 39).

    Por mais que tenha em suas mos a carteira assinada, que tenha conquistado o livramento do desemprego, o servente ainda assim no consegue se livrar do seu problema. Na luta por lugares, ele permanece habitando um no lugar, talvez ainda mais incmodo do que aquele, pelo fato de o seu no pertencimento ao grupo lhe ser exposto amide e em um contexto mais circunscrito do que o da sociedade em geral. Diante do terror da anulao que assombra esse no lugar, todos dele se esquivam, sejam os que o habitam, os que por l j passaram, seja os que sequer cogitam dele se aproximar, fazendo o possvel, consciente e inconscientemente, para evitar o estabelecimento de qualquer identificao para com ele. Nesse sentido, a violncia dirigida aos serventes atravs de comentrios depreciativos, de atitudes desqualificadoras, do abuso do poder na forma da atribuio de determinadas tarefas extenuantes e/ou humilhantes, tudo isso pode expressar uma averso e intolerncia condio de servente, isto , possibilidade de identificao de si mesmo como algum desqualificado, sem valor, indigno de reconhecimento, invisvel... enfim, indiferena ao olhar do outro. Vejamos alguns depoimentos que ilustram a reificao e violncia dirigidas ao servente:

    Muitas vezes, assim, igual servente, muitas vezes pedrero chega, obriga o servente a lavar as ferramentas dele (...). , c obrigado a lavar minhas ferramenta, voc est pra isso aqui. (...) Num assim, no! Ele tem que chegar na humildade e falar: , c faz esse favor pra mim, lava

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    essas ferramenta, e tudo. A o que que vai acontecer. No, fao, com o maior prazer eu fao. Mas muita gente, igual eu mesmo j fui humilhado nisso a (servente, Nil).

    E quando s vezes acontece tambm o seguinte: , ns tamo precisando que a empresa faz hora extra at as 20h, c entendeu, ou at as 22h. Entre aspas, alguns encarregados chega e sabe conversar. Ele fala: , Fulano, eu t precisando que voc fique at as 22h, h possibilidade? Tudo bem. Agora, acontece tambm de, s vezes, o encarregado chegar at perto do servente e falar assim: eu t precisando que voc fique at tantas horas. Se ele falar que no, de uma certa maneira comea uma perseguio com ele. At ameaa verbal. Ento alm de ser um servio pesado, certas horas, no so todas, entendeu, alm de haver essa discriminao verbal, salarial, essa discriminao tambm, de uma certa maneira, do prprio colega de servio (servente, Andr).

    Em seus prprios estudos junto a trabalhadoras domsticas (bonne tout faire) Gaulejac identificou nos depoimentos daquelas dois elementos que, segundo pde constatar, produzem a humilhao: a coisificao e a ausncia de reciprocidade.

    O processo de coisificao consiste em negar ao outro o fato de ser um homem entre os homens, em se recusar a consider-lo como um ser humano, em trat-lo como um objeto, como uma ferramenta a ser usada, que se pega quando preciso e se larga quando no serve mais (Gaulejac, 2006, p. 74).

    Tal aspecto ntida e textualmente identificado junto aos serventes na seguinte fala:

    O pior trabalho que existe na construo civil se joga na mo do servente. E quando ele s vezes no d resultado, quando ele s vezes no chegou no nvel que o encarregado queria, simplesmente ele descartado (servente, Andr).

    Na ausncia de reciprocidade, prossegue o autor,

    [...] a relao de poder , portanto, naturalizada e torna-se intangvel: um se considera como sujeito e o outro como um objeto, um selvagem, uma mquina ou um brbaro. O primeiro tem a seu lado o direito, a cultura, a legitimidade e espera do segundo o dever, o silncio, a resignao. A dominao consiste em considerar que o outro no seu semelhante, que no tem as mesmas capacidades nem os mesmos direitos nem as mesmas atitudes e que estas diferenas justificam sua condio inferior. A no reciprocidade a negao de que o outro possa chegar condio de sujeito. o contrrio da alteridade, ou seja, o reconhecimento de que o outro pode ser meu semelhante, sejam quais forem as diferenas objetivas e subjetivas que nos separam. A reciprocidade no implica obrigatoriamente igualdade e, a fortiori, ausncia de diferena. Implica o reconhecimento de uma virtualidade, a possibilidade de que o outro possa exercer o poder, atingir a cidadania, ser sujeito de direito... da mesma forma que todo mundo. Quando o outro coisificado, tratado como objeto, e lhe negada a possibilidade de ter uma vida social como qualquer cidado, cria-se uma situao de violncia e excluso (Gaulejac, 2006, p. 74).

    Atribuio de tarefas e assdio psicossocial

    Essa forma de manifestao ofensiva de relaes de poder verificada nos ambientes de trabalho que promove a corroso da autoimagem do funcionrio vem sendo contemporaneamente tipificada como Assdio Moral. O termo legalmente definido no Brasil como

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    [...] todo tipo de ao, gesto ou palavra que atinja, pela repetio, a autoestima e a segurana de um indivduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competncia, implicando em dano ao ambiente de trabalho, evoluo da carreira profissional ou estabilidade do vnculo empregatcio do funcionrio [...] (Lei 13.288, de 10/01/2002, art. 1 apud Vieira, 2008, p. 98),

    por lei sancionada em mbito municipal (So Paulo/SP), sendo o agente do delito passvel de responsabilizao penal. No nos resta dvida de que a categoria dos serventes alvo frequente de assdio no trabalho; os relatos j citados ratificam essa clareza. Chama-nos especial ateno a questo das ameaas e perseguies dirigidas aos funcionrios para os quais a gesto da obra deseja o desligamento, mas igualmente evitar as despesas trabalhistas. Dada a incipincia ou mesmo inexistncia de mtodos estabelecidos de seleo na contratao e de capacitao/treinamento dos operrios, uma das razes que propiciam a elevada rotatividade (turn-over) na construo civil, essa uma situao nada incomum.

    Uma coisa que eu reparei, , vo supor, existe ali aquele tubulo pra furar. Ali existe ali 40 cm de gua. Aquela gua ali j foi... durante trs semanas t ali. Por mais que a empresa te fornece o equipamento adequado, ele seleciona aquelas pessoas, porque tem algumas pessoas que tm coragem de falar assim: eu no vou fazer isso. [...] eles preferem s vezes pegar aquela pessoa que tem menor conhecimento, que, digamos assim, no sabe se relacionar muito bem em palavras, e coloca ali e chega at s vezes at a ameaar a pessoa. , se voc no fizer isso aqui pra mim, pra mim voc no serve; ou voc faz, ou ento voc t dispensado. Ou, ocorre muito tambm na rea do servente, o que estava se colocando aqui, a discriminao verbal. Mau tratamento, mau tratamento. Ou voc faz como eu quero ou ento pra mim voc no serve. (...) Olha, o Fulano no serve, ento eu vou colocar o Fulano s naquele setor de trabalho pior possvel. Eu vou caar um meio de arrumar uma advertncia, vou caar um meio de dar uma punio pro Fulano, porque ele pra mim ele no serve. Eu j notei isso. Eu j presenciei isso. S que eu nunca quis falar pra no magoar a pessoa e tambm pra no criar maior atrito, c entendeu, no setor de trabalho (servente, Andr).

    Ns mesmos presenciamos e escutamos dos prprios engenheiros diferentes estratgias por eles utilizadas para provocar o pedido de demisso por parte do funcionrio indesejado. Uma delas atribuir-lhe a tarefa de ficar parado, sem atividade, sentado em um cmodo pequeno, quente, sob telha de amianto, durante todo o expediente. Essa atitude carinhosamente denominada colocar o peo na solitria. Mas a criatividade em um canteiro de obras vai muito alm.

    , nesse perodo que eu t na construtora, o pior que eu j achei foi l no Ed. W. L, que o Fulano (nome do encarregado), eu no sei se o elevador quebrou, o que que aconteceu, entendeu [...] se o elevador quebrou, o que que foi [...], a o (encarregado) me chamou, eu e o Beltrano (outro servente), ele pediu pra gente lev aquelas pedras de granito8 at l em cima (18 andares). [...] No foi dado equipamento de segurana pra gente poder usar adequado. Terceira coisa, tava uma cobrana danada por causa dessas pedras, entendeu, ento eu, particularmente, eu no gostei, eu no agradei [...]. Porque levava um risco grande da pedra quebrar com voc, machucar quem tava juntamente com voc e, alm desse risco tambm, , de uma certa maneira, voc at deslocar a sua coluna. A, nessa hora, como se diz, o encarregado, a realidade, eu no mandei fazer isso no. Porque ele sabe que ele vai ser cobrado, ele sabe que a empresa vai ter que preencher uma CAT9 de acidente de trabalho, entendeu. A ele sabe que o engenheiro vai vim em cima dele, entendeu, a o encarregado: no, eu no mandei fazer isso no. Quer dizer, h duas controvrsia, quando ele quer que oc faz o servio, entendeu, c faz, tudo bem, mas quando acontece algum acidente, acontece alguma coisa, de jeito nenhum, pedi no. Ento uma coisa que acontece muito que eu j notei. Na minha opinio, dos piores foi esse. Eu fiz, no recusei o

    8 As pedras mencionadas (granito moonlight) apresentavam dimenso de 85 x 95 x 2 centmetros e pesavam cerca de 70 quilos cada uma.

    9 Comunicao de Acidente do Trabalho, CAT.

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    trabalho, que a minha obrigao, no meu posto de trabalho, entendeu. Porm eu no corri, no me estressei, como ele desceu vrias vezes a escada, t pesado a, Andr? Nem resposta eu dei (servente, Andr).

    Se por um lado, conforme apontam Vieira (2008) e Lima (apud Vieira, 2008), a emergncia do termo Assdio Moral se fez importante por denunciar e colocar em evidncia de forma conceitual as implicaes nocivas para a sade fsica e mental do trabalhador promovidas em meio a relaes de trabalho degradantes, por outro se nota que prevalecem em torno do tema anlises superficiais e psicologizantes. Em geral, essas anlises apontam o assdio como o produto de um choque entre personalidades, no qual o assediador quase sempre qualificado como perverso e o assediado como uma vtima indefesa (Lima apud Vieira, 2008). Trata-se de uma perspectiva reducionista e enviesada, que desconsidera os contextos de trabalho e suas exigncias como fatores essenciais para a compreenso do problema (Lima apud Vieira, 2008). O foco de uma anlise pertinente deve se assentar na articulao sujeito/organizao do trabalho, e no nas caractersticas pessoais do 'assediador' ou do 'assediado', vistas de forma isolada (Lima apud Vieira, 2008, p. 16). Em outras palavras, o trabalho e os contextos scio-histrico, econmico e poltico que o atravessam no podem ser considerados como meras contingncias da manifestao do assdio.

    Sendo os conflitos, portanto, engendrados no e pelo trabalho, em nosso prprio estudo sobre os serventes afirmamos filiao noo de Assdio Psicossocial, tal qual discutida por Vieira (2008). Dessa forma, entendemos que os oficiais, os encarregados, os mestres de obras, bem como os engenheiros, ao lado dos serventes, so tambm trabalhadores, cidados, sujeitos sociais e, dentro das caractersticas peculiares que distinguem suas respectivas categorias, agem sustentados (e pressionados) por um contexto scio-histrico que os atravessa. No ltimo relato citado, por exemplo, uma anlise ergonmica da atividade do encarregado, piv do conflito em questo (a atribuio ao servente da tarefa de carregar pedras grandes e pesadas subindo e descendo 18 andares, e o uso da autoridade e poder para faz-lo), certamente indicaria um contexto de significativa presso vivenciado pelo assediador [que tava uma cobrana danada por causa dessas pedras]. Mediante uma viso assumidamente superficial, arriscaramo-nos a dizer que, na luta por lugares (Gaulejac, 2001), assim agindo ele busca defender, com as armas que entende dispor, o lugar conquistado na hierarquia de trabalho (e as melhorias nas condies de vida e na autoimagem por este proporcionado). Se no so colocados em anlise a organizao do trabalho, os valores da organizao que orientam as condutas dos gestores e, ampliando a viso, os valores e ditames socioeconmicos que caracterizam o contexto maior em que essa organizao busca se inserir de forma competitiva, as tentativas de entendimento dos conflitos no trabalho no tm meios de escapar ao vis psicologizante. Ser sempre mais simples e cmodo embora ineficaz responsabilizar (e punir) os indivduos isoladamente em lugar de se investir nas transformaes em que todos os envolvidos possam ter oportunidade de opinar e participar. Fechando essa reflexo, por sua importncia fundamental, convidamos a colaborao de Yves Schwartz:

    Se no se faz um esforo de ir ver de perto como cada um no apenas se submete entre aspas , mas vive e tenta recriar sua situao de trabalho, se no se faz esse esforo, ento interpreta-se, julga-se e diagnostica-se no lugar das prprias pessoas e isso no pode produzir resultados positivos (Schwartz et al., 2007a, p. 26).

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    Enfraquecimento do coletivo e estratgias de resistncia a questo poltica

    Conforme enfatizado sob diferentes ngulos, o discurso que prevalece acerca dos serventes desqualificador e discriminatrio. Nossa investigao demonstrou que tal discurso contradiz o real, isto , a complexidade presente na atividade e o seu importante papel no processo produtivo. Se, por um lado, mostra-se necessrio compreender o contexto no qual ele forjado e os atores direta e indiretamente envolvidos, por outro no se pode prescindir de avaliar seus efeitos, no apenas no nvel individual, mas tambm no social e poltico. Colocando a questo de outra forma, a que(m) serve a desqualificao do trabalho do servente?

    Porque se todo mundo contra um s, hm... jamais c vai ser algum na vida. Porque a gente s alguma coisa se todo mundo ajuntar. igual uma formiguinha carregando um tanto das coisas. s assim que a gente sobe na vida. Porque ningum sobe na vida sozinho. Pra algum ser alguma coisa na vida aqui tem que ter uma outra pessoa que j t no nvel mais alto, que mostra interesse, e a gente tambm mostrar interesse, n, pra ajudar a gente. Qualquer pessoa no mundo. A vida essa (servente, Edson).

    Pode-se dizer que a profisso de servente democrtica, isto , acolhe a (quase) todos.10 Nesse sentido, ela exerce importante funo social, sendo a atividade veculo de insero do sujeito marginalizado11 no grupo social economicamente ativo e (com maior efeito) produtivo. No obstante, uma vez cruzada a fronteira (excluso total / incluso relativa), importa manuteno do status quo que esses sujeitos recm-chegados base produtiva da achatada pirmide socioeconmica interrompam a (ou bem prximo da) a sua mobilidade social. Acima deles h toda uma intricada estratificao, em cuja ascenso mostra-se tarefa herclea e, para alguns nveis, lotrica. Assim, conforme apontado no relato, necessrio ao servente o estabelecimento de algum tipo de coalizo para viabilizar a melhoria das condies de vida e trabalho. Tal coalizo pode se dar pela via da organizao coletiva [a gente s alguma coisa se todo mundo ajuntar] (lgica da luta pelo direito xito compartilhado, aparentemente improvvel e a longo prazo) ou pela via hierrquica [Pra algum ser alguma coisa na vida aqui tem que ter uma outra pessoa que j t no nvel mais alto, [...] n, pra ajudar a gente] (lgica da ajuda, do favorecimento xito individual, mais tangvel e a mdio prazo).

    Identificamos aqui uma funo importante da desvalorizao da categoria dos operrios, de uma maneira geral (pees) e, de forma mais especfica e incisiva, dos serventes/ajudantes (oreias-secas), que correspondem ao maior contingente. Uma vez estabelecida a naturalizao dessa desvalorizao e, alm dela, sua internalizao por parte dos serventes, promove-se o esvaziamento da atividade como profisso e, atravs disso, o aniquilamento da categoria como organizao coletiva. Tal situao apresenta um desconcertante (e envolvente) desafio s Clnicas do Trabalho, em especial Clnica da Atividade de Yves Clot. Tal abordagem aposta na defesa e orgulho da profisso atravs da qualidade do trabalho, da beleza do gesto bem feito, da coisa bem pensada, da coisa alcanada, como a melhor forma de resistncia contra as condies de trabalho inaceitveis, bem como a melhor garantia da sade do trabalhador. Como disciplina clnica, ela visa restituir o poder do sujeito sobre a situao, utilizando o coletivo como recurso para o desenvolvimento da subjetividade individual.12 Mas como agir quando se consegue esvaziar a profisso como tal, promovendo no o orgulho, mas a vergonha quanto ao pertencimento categoria? Segundo Paugam (2008), esse tipo de cenrio favorvel ao estabelecimento de uma situao de

    10 Importa destacar que falamos em profisso a partir do conceito de mtier trabalhado pela Ergologia e o desenvolvimento de competncias na experincia cotidiana de trabalho que constitui o mtier (Schwartz & Durrive, 2009).

    11 Ver Santos (2010).

    12 Salientamos que o coletivo remete aqui profisso como histria comum, herana coletiva do pensar e do saber sobre o trabalho, e no organizao de classe, ainda que essa possa se valer daquele.

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  • A condio de servente na construo civil

    isolamento, na qual o sujeito procura dissimular a inferioridade de seu status no meio em que vive e manter relaes distantes com todos os que se encontram na mesma situao. Falando dos pobres de maneira geral, o autor afirma que a humilhao os impede de aprofundar qualquer sentimento de pertinncia a uma classe social (Paugam, 2008, p. 66), promovendo o enfraquecimento e at a ruptura dos vnculos sociais, ou seja, o fechamento do indivduo sobre si mesmo.

    Percebemos assim que a desvalorizao da profisso do servente parece atender, no menos que a outros motivos, a uma funo de controle social (Barros, 2009), de manuteno da subalternidade e subservincia, isto , a manuteno do status quo nas relaes de poder estabelecidas entre uma classe socioeconmica numericamente minoritria sobre uma massa produtiva. A reproduo dessa estratificao descrita de forma simples e clara pelo carpinteiro construtor de Braslia:

    Porque o engenheiro estudou, n, gastou muito dinheiro pra estud. E o trabaiad, o que gastou? Num gastou nada. A sina do trabaiad trabaiad toda a vida... O engenheiro, porque tem possibilidade, filho dum dout, estudou muito, gastou muito dinheiro, uma formatura no brinquedo. Quem trabaiad? Que formatura o trabaiad tem? Num tem nada. A formatura do trabaiad como a classificao dele. A formatura do carpinteiro o martelo e o serrote, a formatura do pedrero a colher e o prumo, a formatura do servente a p e o carrinho (carpinteiro Joo apud Sousa, 1983, p. 123).

    A resignao e a subservincia dos trabalhadores como iniciativas de defesa encontram, entretanto, seus prprios limites diante das situaes cotidianas de conflito promovidas pela vivncia da explorao, humilhao e sentimento de impotncia. Nesse sentido, ainda que de forma individual, frgil e isolada, observam-se no canteiro atitudes de autodefesa e resistncia perante as situaes vividas. Alguns optam pelo enfrentamento direto, feito s claras, determinando certos limites dos quais no abrem mo para a execuo das atividades delegadas, como a reao do servente convocado a carregar as pedras de granito por 18 andares, conforme relatamos.

    Esse tipo de atitude, contudo, expe o trabalhador a uma srie de riscos referentes s retaliaes mencionadas, dirigidas a todos aqueles que, de alguma forma, questionam abertamente a autoridade (e a arbitrariedade) dos seus superiores hierrquicos. Assim, os trabalhadores desenvolvem outras modalidades de resistncia, em um embate menos direto. Vejamos o exemplo do bem mandado:

    [...] uma pessoa bem mandada, se oc falar com ele: eu quero que oc busca l em baixo pra mim dez litros d'gua, ele desce tranquilo, vem com os dez litro d'gua e pe pra voc, entendeu? Esse o bem mandado, no meu ponto de vista, pelo que eu vi aqui na construo civil, entendeu? Ento, quer dizer, ele s faz aquilo que o pedreiro pede. [...] Quer dizer, a diferena entre o bem mandado praquele que procura ser ativo naquilo que vai fazer, entendeu, eficaz, essa a no meu ponto de vista (servente, Andr).

    Ento, tem cara, igual ontem eu tava trabalhando com o irmo dele, ento tudo c tem que ficar pedindo o cara. Faz isso, busca aquela pedra ali pra mim, pega essa pea. Ento eu acho que isso atrasa a gente, atrapalha a gente, c entendeu? (pedreiro, Helbert).

    Uma vez que a boa interao e eficincia produtiva entre oficiais e serventes dependem significativamente de sua atitude de antecipao, uma forma de resistncia que apresenta impacto considervel a obedincia estrita ao prescrito.13 Se ao servente delegada a tarefa de acatar e cumprir ordens, exatamente isso que alguns fazem, de forma literal, prejudicando assim a agilidade na cadncia do processo produtivo. No sendo devidamente reconhecidos

    13 Com efeito, tendo em vista a irredutvel defasagem entre o prescrito e o real (Duraffourg et al., 2007, pp. 68-69), que sempre convoca o trabalhador a fazer uso de si e gerir essa distncia (Schwartz et al., 2007b, p. 192), a obedincia estrita ao prescrito uma poderosa e conhecida estratgia de resistncia dos trabalhadores.

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    nem respeitados como profissionais e como sujeitos, assim como desiludidos com a possibilidade de ascenso profissional/social, os trabalhadores respondem com certa ironia, acatando prontamente e realizando at mesmo de forma bem feita as tarefas atribudas, mas sem demonstrar interesse ou envolvimento com as metas estipuladas pela organizao. Parecem defender sua integridade pessoal recusando vestir a camisa da empresa, tratando com indiferena aqueles que assim tambm os tratam.

    Porque, aquela histria, eu vou ficar dando murro em ponta de faca se eu sou um bom funcionrio, se eu desponto naquilo que me pede pra fazer tudo, c acha que eu como servente eu vou ficar dando murro em ponta de faca, vamos dizer assim, ditado popular, sendo que eu no t sendo reconhecido, sendo que eu no t tendo nenhuma benfeitoria em prol da minha pessoa? Claro que no (servente, Andr).

    Um pouco mais explcito em sua resistncia do que o bem mandado o servente n -cego ou morcego:

    O servente n-cego esse, por exemplo, c t fazendo, vo supor que voc t trabalhando numa alvenaria. Falta material, a [...] ele pe massa e no pe tijolo, quando tem tijolo ele traz uma massa dura. A c tem que ficar falando com ele: ou, traz uma massa pra colocar nessa massa aqui (pedreiro, Jos de Ftima).

    [...] tem uns que sai, deixa o pedreiro sozinho, a, na hora que o pedreiro vai precis dele ele no t perto do pedreiro. A o que que acontece? O pedreiro fica com raiva, a chama o encarregado e fala: , esse servente aqui no serve pra mim, ele tinha que ficar perto de mim, pra o que eu precisar ele t me servindo, mas ele no t. (...) Suponhamo, igual, no caso, se ele tiver em cima do andaime, entendeu. Ele no pode descer ali embaixo pra fazer outra coisa. A o servente vai e some, vai e some pra l e esquece do pedreiro. Ento, por isso, nesse negcio de morcego por causa disso. O servente ele no faz nada, a ele esconde l, a pronto. Eles arruma essa encrenca a, o pedreiro fica com raiva por causa disso (servente, Nil).

    esse que o n-cego, s vez ele chegava, talvez vai pra um lugar, a ele fica escondido l, talvez ele at dorme, ele caa um lugar l e fala: ah, o caixote (de massa) t cheio mesmo, ento ele vai dormir (servente, Nil).

    Via de regra, o atrito produzido nessa relao de conflito estabelecida entre trabalhadores e empresa caracteriza-se como mais um dos aspectos mantenedores da alta rotatividade no setor. O servente trabalha, resiste/reage, demitido, lana mo do Fundo de Garantia (FGTS) e do Seguro Desemprego, entra em uma nova empresa, trabalha, resiste/reage, demitido, e assim perpetua-se o ciclo.

    O cara no pode desistir de nada, n. Se uma porta fecha, tem dez, vinte pra abrir pro outro. O cara tem sempre que lutar, n. Num pode deixar... [...] C tem que lutar, na vida tem que lutar (servente, Edson).

    Outras formas de reao por ns observadas encontram meios mais agressivos para se externar. Algumas se do atravs de atos annimos, como o de passar fezes pela parede do banheiro, danificar equipamentos e/ou servios j realizados, promover situaes de grave risco (como lanar um bloco de tijolo do alto do poo do elevador), furtar objetos de uso coletivo (torneiras, chuveiros) ou privado (ferramentas, equipamentos e objetos de colegas). Outras vezes o anonimato no pode ser mantido. Isso se d quando a reao vem tona de forma explosiva, por meio de agresses fsicas (geralmente entre colegas) e/ou de ameaas verbais (por vezes dirigidas aos encarregados e mestres).14 Finalmente, o lcool, a religio e a identificao

    14 A agressividade reativa, tanto fsica quanto verbal, certamente no se apresenta apenas no ambiente do trabalho. Alguns relatos nos indicam que ela se manifesta, provavelmente com frequncia ainda maior, tambm no ambiente domstico, projetada nos familiares (principalmente esposa e filhos).

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    (moral) com o prprio trabalho se apresentam como formas alternativas de lidar com o sentimento de impotncia e excluso.

    [...] engraado: a pessoa ficando meio de fogo, tudo pra ele t bom. Ento, s vez, a pessoa t meio invocado, meio pensativo, ento ele parava de pensar um bocado nas coisas, parece que as coisa ficava mais fcil. A pessoa, tando bbada, no importava no (servente Joo, apud Silva, 2006, p. 131)

    [...] eles (os superiores hierrquicos) os mais forte, eles sabem o que que melhor pra eles, pra gente, n. Mas Deus t no controle (servente, Ivan).

    Se oc trabalha muito, n, eles fala que a gente puxa-saco. Mas no porque puxa-saco. Se oc saiu de casa pra ir trabalhar, c tem que trabalhar, u. Se c quer ficar toa, c tem que ficar em casa, no no? T certo ou t errado? Puxa-saco aquele que chega, chega e entrega a pessoa. Fulano de tal t parado ali. No , no? T certo ou t errado? aquele que o puxa-saco. Se oc t trabalhando, oc no puxa-saco, no, c t trabalhando, que sua obrigao, uai, fazendo sua obrigao. o que acontece comigo. Sempre uns fica chamando eu de puxa-saco. Mas no sou puxa-saco, no, uai. Sa de casa pra ir trabalhar, vou trabalhar. N no? (pedreiro, Pedro).

    Nota-se, portanto, que a abertura e o acolhimento quase irrestritos oferecidos pela profisso de servente ao cidado brasileiro que no apresenta (ou quase no apresenta) grau de escolaridade, experincia e/ou qualificao especfica desempenham importante papel de incluso produtiva desses sujeitos no tecido social. Esse ingresso, entretanto, parece atender mais s necessidades e interesses econmicos do que a um projeto civilizatrio de universalizao da incluso social atravs da oferta de trabalho digno, seguro, com oportunidades de desenvolvimento da qualificao e justa distribuio das riquezas auferidas. Trata-se, logo vemos, no de um passaporte para a cidadania democrtica, mas de um passe, uma permisso participao parcial e conveniente, caracterizada pela delimitao restrita da mobilidade social da classe trabalhadora. Esse acolhimento carrega consigo, portanto, um profundo cinismo, caracterizando uma comunicao de duplo vnculo15. Sob o enquadramento desse contexto sociopoltico, a desqualificao da profisso de servente mostra-se como eficiente mecanismo ideolgico de manuteno do status quo e evitao de conflitos e confrontos sociais.

    Na legitimao da excluso, necessrio encontrar uma vtima expiatria sobre quem descarregar o pecado de marginalizao, ou quase genocdio, de milhes. Essa vtima o prprio excludo. O culpado no um sistema, baseado em relaes excludentes, que faz milhes de pobres. No existe, dentro da ideologia liberal, espao para o social. Por isso o ser humano definido como um indivduo, isto , algum que um, mas no tem nada a ver com os outros. O ser humano, pensado sempre fora da relao, o nico responsvel pelo seu xito ou seu fracasso. Legitima-se quem vence, degrada-se o vencido, o excludo (Guareschi, 2008, p. 154).

    Impotentes para realizar isoladamente o efetivo enfrentamento da realidade posta, parecem restar queles marcados pela condio servente limitadas e ineficazes manifestaes de resistncia que, em geral, acabam por reforar a representao depreciativa que deles feita por parte de outros profissionais, principalmente aqueles de nvel gerencial, representao explicitada em expresses como: veja como so animalescos esses pees, espalham fezes nas paredes, no tm crebro, no pensam, apenas conseguem executar estritamente o que lhes ordenado, so preguiosos, no gostam de trabalhar, tm que ser vigiados a todo momento, pois basta uma rpida distrao e j esto morcegando.

    15 Duplo vnculo: termo cunhado pelo antroplogo ingls naturalizado norte-americano Gregory Bateson. Trata-se de uma situao que se estabelece quando uma pessoa se v diante de mensagens simultneas de aceitao e rejeio. O fato de tais mensagens serem simultneas e contraditrias faz com que quem as recebe fique confuso (Mariotti, 1995).

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    Consideraes finais

    Iniciamos nosso trabalho indicando o lugar em que ele se assenta: no incmodo gerado pela percepo do no lugar atribudo ao servente da construo civil seja como profissional, seja como sujeito e os efeitos (objetivos e subjetivos) dessa condio. Ao nos lanarmos investigao, percebemos que a desqualificao dos serventes traduz um erro, to antigo quanto contemporneo. Paralelamente aos dados e observaes do setor relativos s (penosas) condies de trabalho e de (in)segurana a que so submetidos esses trabalhadores, a contradio presente na anlise que fazem os oficiais sobre a atividade do servente o que melhor evidencia o equvoco e alimenta o incmodo. Encontramos a um marcante paradoxo entre o discurso dos pedreiros quando falam do servente no senso comum (aquele que no sabe fazer nada) e o discurso desses mesmos pedreiros quando falam do servente tendo no foco de anlise o trabalho real (sem o servente o pedreiro no faz nada, isto , faz, mas muito menos). A reflexo dos serventes sobre o prprio trabalho tambm evidenciou alguns dos mltiplos saberes e competncias investidos em suas atividades, situao antagnica ao fato de, amide, eles mesmos introjetarem e reproduzirem a representao desqualificadora do senso comum sobre o ofcio que exercem. Tais observaes nos fazem perceber que a noo equivocada acerca da atividade do servente na construo civil mostra-se nociva tanto aos sujeitos submetidos a essa condio quanto prpria organizao do trabalho, que subestima o impacto da participao daqueles no processo produtivo.

    O estudo apontou que o desenvolvimento tecnolgico em muito favoreceu o avano do setor, inclusive no que se refere s condies de trabalho. Entretanto, percebe-se que essa evoluo no foi acompanhada pelo desejvel desenvolvimento das relaes de gesto, da organizao do trabalho e pelo investimento no desenvolvimento dos prprios sujeitos que habitam esse campo produtivo e colaboram com sua fora de trabalho. Destacamos aqui uma das constataes conclusivas, feita luz do estudo realizado: em plena entrada do sculo XXI, parece-nos contradio tica e moralmente insustentvel a coexistncia dos mais sofisticados mecanismos de produo de conhecimento e de riquezas e a sujeio de seres humanos a relaes/situaes de vida e trabalho humilhantes e/ou degradantes, como verificado na construo civil, em especial, junto categoria dos serventes. Em uma poca na qual sustentabilidade e responsabilidade socioambiental so palavras de ordem, proclamadas aos quatro ventos pelos discursos desenvolvimentistas, ousamos denunciar como hipcrita e ideolgica toda e qualquer iniciativa que, sob esse selo, se proponha a mitigar ou reparar os danos provocados pela explorao e a excluso sem avaliar, crtica e honestamente, como seus promotores contribuem para a gnese do problema em questo. Melhoria das condies de vida de trabalhadores sem a melhoria das suas condies de trabalho? Melhoria das condies de trabalho sem a aproximao in loco da realizao desse trabalho e sem o envolvimento e respeito ao ponto de vista dos trabalhadores? Sob inspirao e orientao de erglogos e ergonomistas, isso no nos parece iniciativa eficaz.

    Nossa segunda constatao: ainda que sob a lgica reinante e linear da produtividade mxima e da idolatria ao lucro, a negligncia de investimentos focados no desenvolvimento humano, nos contextos de trabalho, mostra-se contraproducente. A Ergologia e a Ergonomia demonstram que, mesmo dispondo da mais avanada tecnologia, a atividade industriosa no pode, em tempo algum, prescindir da ao (gesto) humana, visto ser o meio sempre infiel e que as defasagens entre o prescrito e o real demandam gerenciamento. Reconhecido como indispensvel produo, o homem, por sua vez, no deve ser tratado como mquina, recurso destitudo de sua humanidade, sob o risco de se pr a perder a referida implicao (quando no a sade) dos trabalhadores e, como consequncia, a produtividade, a qualidade e, finalmente, o lucro almejado. Nesse contexto, observa-se a ineficcia das modernas iniciativas motivacionais dirigidas aos trabalhadores, que, se por um lado compreenderam a impossibilidade de fragmentao e mecanizao plena do agir humano, via de regra, so

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    elaboradas sem a devida considerao das situaes reais de trabalho, bem como do ponto de vista de seus protagonistas.

    No contexto especfico do trabalho dos serventes na construo civil, notamos ser amplamente subestimado o papel dos saberes e competncias desses atores no processo produtivo, principalmente aqueles relativos ao trabalho de cooperao e assistncia junto aos oficiais. Alimentada por essa subvalorizao, flagrante a negligncia de investimentos nas reas de formao tcnica e de gesto/organizao do trabalho das equipes. Entendemos que o campo mostra-se frtil para o desenvolvimento de outros estudos que venham demonstrar de forma mais precisa quanto a incompetncia (das organizaes) em termos humanos (Lima, 1996) prejudica a eficincia e a produtividade no setor.

    Nossa terceira constatao: estando o mercado sujeito lgica imperativa do lucro, a organizao da sociabilidade humana no pode ser por ele livremente regulada. Tal ponderao no caracteriza um mero discurso ideolgico, como podem alertar as recentes crises econmicas mundiais. Ainda dentro do sistema hegemnico, imprescindvel que o Estado assuma seu papel regulador, fiscalizador, e implemente polticas pblicas que permitam um mnimo de sustentabilidade a esse sistema que, por natureza, voraz e autofgico.16 Sem a correta ao e regulao do Estado na indstria da construo civil, por exemplo, organizaes que, agindo de forma isolada, se disponham a verdadeiramente investir em segurana, em melhorias das condies de trabalho, na qualificao profissional e em uma distribuio mais justa das riquezas produzidas, em curto prazo, se mostraro pouco competitivas, nada atraentes ao olhar dos investidores, sendo, assim, alijadas do mercado.

    Finalmente, nossa considerao crtica sobre os valores e atitudes que caracterizam o modelo socioeconmico globalmente hegemnico na contemporaneidade. Apresentamo-la luz de um questionamento em particular, cuja apreciao consideramos pertinente: na dialtica relao entre o Ser (caracterizado pela autonomia, liberdade e responsabilidade tica dos sujeitos) e o Poder (caracterizado pelo acmulo de capital e consequente influncia e controle social), quem se mostra senhor e quem se mostra escravo na contemporaneidade? Ainda nesse sentido, levando-se em considerao que todos nos encontramos envolvidos capital, patres, empregados, desempregados , mesmo que sob condies materiais de existncia substancialmente distintas, quem aliena e quem alienado? Scrates, o filsofo, defendeu famosa tese segundo a qual ningum faz o mal voluntariamente, mas por ignorncia, pois a sabedoria e a virtude so inseparveis. O poeta canta que a felicidade mora ao lado (na relao) e quem no tolo pode ver.17 Como realizar a passagem da velha (e atual) ordem social s novas construes do trabalho no mundo permanece desafiante enigma. Os concretos limites socioambientais impostos, em mbito global, pelo modelo vigente, so quem nos interpelam, conferindo clima de certa urgncia ao contexto poltico das iniciativas, dos embates e dos debates (Decifra-me ou devoro-te!). Uma vez que a resposta ao enigma j foi ensaiada (o Homem), talvez, ainda que paream por demais imprecisos ou abstratos, os investimentos no desenvolvimento da conscincia humana (presena atenta; sabedoria; virtude; transcendncia do ego) venham se mostrar vias concretas que sirvam de pavimento referida passagem.

    16 Para uma didtica sntese a respeito da insustentabilidade do sistema linear de extrao, produo, consumo, acumulao e despejo, vide o vdeo The story of stuff (A histria das coisas), de Annie Leonard, um curto, polmico e envolvente documentrio sobre o ciclo de vida dos bens de consumo: http://www.youtube.com/ watch?v=3c88_Z0FF4k

    17 Beto Guedes e Ronaldo Bastos na cano O sal da terra.

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    Endereo para correspondncia

    [email protected], [email protected]

    Recebido em: 14/10/2010Revisado em: 23/05/2011

    Aprovado em: 11/06/2011

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