a concepção semiótica da retórica e a formação do tropo religioso

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  • 7/23/2019 A Concepo Semitica Da Retrica e a Formao Do Tropo Religioso

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    A concepo semitica da retrica

    e a formao do tropo religioso

    Regiane Miranda de Oliveira Nakagawa1

    ResumoEste artigo visa a discutir os principais preceitos que envolvem a compreenso semiticada retrica, tal como ela foi formulada pelo semioticista Iuri Ltman, situando-a nocontexto mais amplo da obra do autor. Com isso, objetiva-se elucidar o espao semiticode relaes que envolve as prticas retricas, como tambm indicar as possibilidadesde estudo que tal perspectiva coloca para o entendimento dos mais variados textosculturais, em especial os religiosos. Para isso, buscaremos explicitar a constituio dotropo retrico num texto cultural muito especco: a cerimnia realizada na Igreja deNossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos, localizada no Pelourinho, em Salvador.Palavras-chave:

    Retrica. Semiosfera. Tropo. Memria

    The semiotic conception of the rethoric and the formationof the religious trope

    AbstractThis article aims to discuss the main precepts involved in the semiotics understanding ofrhetoric as formulated by the semioticist Iuri Ltman, within the broader context of theauthors work. By doing so, the goal is to elucidate the semiotic space of relationshipsinvolving rhetorical practices, as well as to indicate the possibilities of study that pla-

    ces such a perspective to the understanding of various cultural texts, in particular, thereligious one. For this purpose, we will clarify the constitution of the rhetorical tropein a very specic cultural text: the ceremony held in the Church of Nossa Senhora doRosrio dos Homens Pretos, in Pelourinho, Salvador.Keywords:Rhetoric. Semiosphere. Trope. Memory

    1 Graduada em Comunicao Social pela Unesp, doutora em Comunicao e Semi-tica pela PUC-SP e ps-doutora em Cincias da Comunicao pela ECA-USP.Professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (Cecult)da UFRB. E-mail: [email protected] Lattes: .

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    Estudos de Religio, v. 29, n. 1 35-53 jan.-jun. 2015 ISSN Impresso: 0103-801X Eletrnico: 2176-1078

    DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-1078/er.v29n1p35-53

    La concepcin semitica de la retrica y la formacin deltropo religioso

    ResumenEste artculo discute los principales preceptos involucrados en la comprensin semiticade la retrica, formulada por el semioticista Iuri Ltman, situndola en el contexto msamplio de la obra del autor. Eso con el objetivo de elucidar el espacio semitico derelaciones que involucran prcticas retricas; tambin indicar las posibilidades de estudioque tal perspectiva propone para la comprensin de los ms variados textos culturales, enespecial, los religiosos. Para eso se busca explicitar la constitucin del tropo retricoen un texto cultural muy especco: la ceremonia realizada en la Iglesia Nossa Senhorado Rosrio dos Homens Pretos, localizada en el Pelourinho, en Salvador.

    Palabras clave: Retrica. Semisfera. Tropo. Memoria

    IntroduoHistoricamente, a retrica quase sempre foi concebida no sentido mais

    geral de uma arte, ou, ainda, de uma tcnica voltada a orientar o exerccioargumentativo verbal, seja oral, seja escrito, com o intuito de persuadir umou mais interlocutores de dada ideia. Assim entendida, coube techn retorikestabelecer uma sistematizao para o processo construtivo do discurso, doqual decorre a diviso do sistema retrico em cinco partes: a inventio, res-

    ponsvel pela seleo dos argumentos com base naquilo que verossmil adeterminado auditrio; a dispositio, que prev a disposio lgica das partesconstitutivas dos enunciados; a elocutio, relativa escolha das palavras maisadequadas com o objetivo de tornar o discurso correto e agradvel; aactio, referente performance; e a memria,concernente capacidade mnem-nica do orador.

    De acordo com Barthes (2001, p. 49), as duas ltimas partes foram pau-latinamente obliteradas medida que o objeto de estudo da retrica deixoude ser unicamente o discurso oral e passou a centrar-se essencialmente noverbal escrito. Ainda segundo o autor (2001, p. 49), a caracterizao comotechnfez com que, ao longo da histria, fosse imputado retrica um fun-cionamento quase maqumico, de modo que qualquer ideia seria passvelde ser modelada e transformada num discurso coeso e aprazvel, desde quefossem seguidos os preceitos estabelecidos por cada uma das partes consti-tutivas da tcnica.

    Alm de Barthes, no foram poucos os autores (ECO, 1971; PEREL-MAN, 2004, 2005; REBOUL, 2004) que igualmente reconheceram o vis

    prescritivo que a retrica adquiriu historicamente. Em parte, isso justicapor que ela alterna momentos de destaque, renascimento e decadncia. Aose constituir por um receiturio de frmulas prontas, passveis de ser me-

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    ramente aplicadas, a retrica torna-se uma cincia estril que, at mesmo,esvazia a prpria complexidade que envolve o devir das prticas suasrias.

    Por outro lado, quando busca apreender a complexidade implicada nessasprticas e sua relao com diferentes esferas culturais, novas possibilidadesde compreenso so passveis de ser formuladas.

    O semioticista Iuri Ltman, um dos principais representantes da Esco-la de Trtu-Moscou, tambm no se furtou a esse debate. Embora poucostenham sido os textos em que o autor se dedicou ao tema, isso no com-promete a profundidade das questes que apresentou sobre a importnciada retrica para entender o funcionamento dos textos na cultura. Para ele,a retrica no se circunscreve unicamente a uma tcnica, tampouco seu

    objeto se limita a ser to somente o discurso verbal, seja oral, seja escrito.Essa compreenso do semioticista retoma a concepo de retrica comometalinguagem (BARTHES, 2001, p. 5), e por essa razo reconhece que oseu estudo abarca a correlao entre a linguagem objeto e a metalinguagempropriamente dita ou, ainda, entre as prticas suasrias e a retrica que visaa apreend-las. Como a primeira est sempre em transformao, logo, noh como sua metalinguagem manter-se inaltervel.

    Isso pode ser constatado quando o autor indica que a retrica abrangetanto o estudo do texto aberto (LOTMAN, 1996, p. 119), voltado ao en-

    tendimento do processo de gerao de novas mensagens na cultura, quantoo do texto fechado, cujo foco a caracterizao potica do arranjo sg-nico. Ao situar o processo de gerao de novos textos como um dos focosda abordagem retrica (ou seja: o devir da sua linguagem-objeto), Ltmaninsere a discusso na mesma linha de raciocnio que pautou toda a sua obra,isto , a perspectiva epistemolgica de estudo da cultura vinculada semio-sfera. Portanto, qualquer tentativa de entendimento da retrica denida porLtman deve, necessariamente, circunscrev-la no mbito do espao de re-

    laes edicado entre diferentes sistemas culturais.Assim, neste artigo, buscaremos apontar os mecanismos que envolvemtal abordagem retrica, situando-a no contexto mais amplo da obra do autor.Com isso, objetivamos elucidar a maneira pela qual as prticas retricas soconstrudas por meio das relaes estabelecidas entre diferentes sistemas cul-turais, como tambm indicar as possibilidades de estudo que tal perspectivacoloca para o entendimento da ao exercida pelos mais variados textos queconstroem o devir da cultura.

    Para elucidar esse processo, tomaremos por base um texto cultural muito

    especco: a cerimnia que ocorre todas as teras e domingos na Igreja deNossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos, localizada no Pelourinho,em Salvador. Tal escolha, por sua vez, no foi aleatria. Ela se deve, essen-

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    cialmente, a dois fatores: primeiro,o objeto vai ao encontro da prpria com-preenso de Ltman acerca do vis retrico que envolve o funcionamento

    dos textos culturais relacionados aos sistemas religiosos (ainda que eles nosejam os nicos); segundo, essa cerimnia distingue-se, fundamentalmente,pela heterogeneidade sgnica, resultante do dilogo edicado entre o cato-licismo e o candombl, do qual decorre a coliso de linguagens e sentidosabsolutamente diversos. Desse modo, seguiremos um percurso analtico quevai de um enfoque mais abrangente a outro mais especco para examinartanto as bases que aliceram a compreenso semitica da retrica quantoos mecanismos que envolvem a constituio e a ao exercida pelos textosretoricamente articulados na cultura.

    A dimenso sistmica do tropoA semiosfera envolve o espao de relaes edicado pela correlao

    estabelecida entre os mais variados sistemas que constroem e geram o devirda cultura. Para os semioticistas (1978), todo sistema modelizante tambmum sistema de linguagem em constante devir. No mbito do pensamentosemitico, modelizar implica lidar com a construo de modelos dinmicosgerados por meio das trocas que os sistemas estabelecem entre si. por meiodesse movimento ininterrupto que se torna possvel apreender o princpio

    poliglota (LOTMAN, 1996, p. 78) que distingue a cultura, capaz de conferirestruturalidade s linguagens.

    Os textos culturais so fruto dos intercmbios que os sistemas estabe-lecem entre si. na materialidade dessas mensagens que se pode captar acontnua ressignicao das linguagens que compem a cultura. Por isso, adupla codicao encontra-se na base do conceito de texto, o que tambmpermite vislumbrar a razo pela qual todo texto se caracteriza pela hetero-geneidade semitica, dada a diversidade de cdigos que o inscrevem.

    Como a semiosfera supe o continuum semitico resultante das trocasinstitudas entre as mais variadas esferas sgnicas, logo, ela no pode serentendida como a mera soma de textos, cdigos e sistemas. So as relaesinstitudas entre diferentes formaes sgnicas que redenem, continuamente,o espao semitico. por isso que a fronteira (LOTMAN, 1990, p. 136) con-siste num mecanismo essencial para o funcionamento da semiosfera, pois, pormeio dela, possvel identicar o processo tradutrio entre distintas esferas,como tambm o que se altera e o que persiste no mbito das linguagens edos cdigos colocados em relao.

    Nota-se, assim, que a semiosfera jamais poderia constituir-se num a priorique determina, de antemo, uma regularidade para as relaes que os sistemasestabelecem entre si e para a gerao de novos textos. Dessa forma, falar

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    da perspectiva epistemolgica de estudo da cultura vinculada semiosferarequer considerar no apenas o contnuo devir dos signos, mas, sobretudo, a

    relao que uma esfera estabelece com outra, de modo que uma linguagem,um cdigo ou um texto cultural nunca poderiam ser estudados isoladamente,sem que fossem considerados os vnculos que eles estabelecem com outrosextratos da cultura.

    esse raciocnio que nos permite apreender a razo pela qual Ltmansitua seu estudo da retrica no mbito da potica. Antes de tudo, cumpreressaltar que tal correlao recorrente dentre os estudiosos sobre o tema,dada a importncia que a elocutioe o estudo das guras e/ou tropos, emespecial a metfora e a metonmia, adquiriram no mbito da retrica. Po-

    rm, o ponto de vista colocado pelo semioticista no se confunde com acompreenso corrente acerca das guras.

    Segundo Barthes (2001, p. 94-95), desde a Antiguidade a compreensodas guras/tropos envolve a crena na existncia de dois planos de lin -guagem: um prprio, relativo ao signicado primariamente atribudo a umapalavra, e outro gurado, referente substituio de uma unidade semnticapor outra. Com isso, as palavras seriam transportadas, desviadas, afastadaspara longe do seu habitat normal, familiar (BARTHES, 2001, p. 95), adqui-rindo assim novos signicados. Por sua vez, tais desvios seriam objeto de

    estudo de uma parte muito especca da elocutio, a electio.Como, para Ltman, o texto no se restringe apenas ao verbal, logo,

    sua potica jamais poderia reportar-se apenas palavra. Em consequncia,tais desvios no podem ser entendidos pela simples troca de um sema poroutro, circunscrita ao campo de uma nica linguagem, mas devem ser pensa -dos no mbito dos processos tradutrios rmados entre diferentes sistemasculturais. Para o autor, o carter retrico-semitico de qualquer texto culturaltende a tornar-se mais acentuado quanto mais ele se constitui por meio da

    intraduzibilidade estabelecida entre diferentes sistemas. Longe de ser enten-dida pela mera impossibilidade de criao de vnculos, tal intraduzibilidadereporta-se aos processos tradutrios pautados pela ausncia de algn algo-ritmo dado de antemano a partir de algn otro mensaje (LOTMAN, 1996,p. 65) que permita determinar, previamente, um parmetro para a translaoentre um sistema e outro. Com isso, so estabelecidas equivalncias entre ostraos distintivos de diferentes cdigos, de modo que algumas alternativas soselecionadas em detrimento de outras. Em consequncia, h a edicaode um arranjo textual absolutamente inusitado.

    So esses processos de intraduzibilidade que, segundo Ltman, ca-racterizam a constituio do tropo. Para ele, o tropo nasce, necessariamen-te, da juno entre linguagens esencialmente imposibles de yustaponer

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    (LOTMAN, 1996, p. 129), da mesma forma que coloca em interao universossemnticos completamente diversos que, fora de uma situacin retrica

    (LOTMAN, 1996, p. 131), nunca poderiam ser postos em relao. Em outraspalavras, no h como considerar a formao do tropo fora do espao derelaes continuamente construdo pelas trocas institudas entre diferentessistemas de linguagens.

    por isso que, pelo vis da semiosfera, o tropo, sob nenhuma condi-o, poderia ser considerado um mero ornamento sobreposto linguagem,realizado com o objetivo de torn-la mais aprazvel. Para Ltman, o tropoconstitui a prpria esencia del pensamiento creador (LOTMAN, 1996, p.121), responsvel pela criao de textos essencialmente inusitados. E, tendo

    em vista o papel que exerce no dinamismo da cultura, sua ao no poderestringir-se unicamente ao mbito da palavra, uma vez que qualquer sistemamodelizante pode apresentar uma ordenao retrica singular.

    Para corroborar esse ponto de vista, Ltman (1996, p. 123) cita os estudosrealizados por Roman Jakobson acerca da funo cultural desempenhada pelametfora e pela metonmia, visto que, segundo o linguista, uma e outra tambmexercem importante funo matricial em distintos sistemas culturais, tais comoo cinema e a pintura. Desse modo, pode-se dizer que o objetivo do tropo

    no consiste en decir con ayuda de una determinada sustitucin semntica lo que tam-bin se puede decir sin su ayuda, sino en expresar un contenido tal, en transmitir una

    informacin tal, que no puede ser transmitida de otro modo. En ambos casos (tanto en

    el de la metfora como en el de la metonimia), entre el signicado recto y el traslaticio

    no existe una relacin de correspondencia recprocamente unvoca, sino que se establece

    solamente una equivalencia aproximada. (LOTMAN, 1996, p.126)

    Tal funcionamento ainda pode ser mais bem explicitado quando se

    considera que o tropo consiste igualmente numa analogia, cuja ao no podeprescindir do espao semitico. Toda analogia uma sntese, resultanteda relao estabelecida entre, no mnimo, duas esferas culturais, j que elapressupe a combinao entre imagens, muitas vezes, absolutamente dspares,de modo a fazer que a parte de uma coexista com a parte de outra e deperceber, voluntariamente ou no, a ligao de suas estruturas (VALRY,1998, p. 23). Por meio dessa denio, nota-se que, no processo de variaras imagens, possvel apreender no apenas a diversidade e/ou intraduzi-bilidade daquilo que foi diretamente relacionado na constituio do tropo e,

    sobretudo, daquilo que no foi aproximado, uma vez que, num texto retrico,a diversidade constitutiva dos sistemas colocados em conexo no pode serdesconsiderada do espao de relaes edicado pelo novo arranjo sgnico.

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    Alm do mais, como apenas uma qualidade daquilo que foi posto emrelao se encontra materializada no texto analgico, este no passvel de

    originar uma explicao precisa sobre algo, visto que nada arma a respeitode determinado objeto. Por isso, uma das formas de apreender o devir daanalogia seria por meio daquilo que Valry denominou como lgica dacontinuidade (1998, p. 43), ou seja, a capacidade de uma analogia para ge-rar outra analogia, que gera outra e, assim, sucessivamente. Como um textoassim organizado refratrio a uma decomposio em unidades discretas,a interao que se estabelece entre uma analogia e outra no se reduz aelementos simples, porque, entre elas, se instala um continuum ininterrupto.Desse modo, nesse processo, a constatao antes de tudo experimentada,

    quase sem pensamento (VALRY, 1998, p. 33), e, portanto, tal apreenso imune a um carter identitrio que lhe possa ser atribudo com o m dearmar, de forma taxativa, o signicado de uma analogia.

    justamente esse continuumque evidencia a plurivocalidade semnticaa qual distingue o funcionamento dos textos retricos na cultura e a ao queeles exercem nela. Dessa forma, o espao de relaes que o tropo capaz dearticular explicita de que maneira os sentidos so fabricados pelas relaesedicadas entre diferentes esferas da cultura. Anal, como Ltman arma,isoladamente, um texto nada capaz de produzir (1996, p. 71).

    Ainda que a compreenso da retrica pelo semioticista tenha comofoco a potica e no, propriamente, a questo relativa argumentao , possvel levantar algumas suposies quanto s possibilidades de entendi-mento do processo suasrio quando visto pelo vis do espao semitico edo continuum edicado pelo tropo. Para tal, novamente, preciso retomar ocontexto mais amplo da obra do autor.

    Levando-se em conta o carter no antropocntrico que caracteriza oponto de vista semitico, Ltman indica que a cultura dotada de um

    intelecto prprio, e, como nenhuma forma de pensamento autossuciente,apenas pelo intercmbio entre diferentes esferas a inteligncia se manifestacomo tal. Para explicitar esse processo, Ltman (1996, p. 45) toma por baseo funcionamento da conscincia habitual humana, pelo qual se observa acorrelao de duas tendncias completamente opostas e contrrias, delimitadaspelas linguagens distintivas dos dois hemisfrios que compem o crebrohumano. O hemisfrio esquerdo tende a priorizar as relaes lineares, lgicase racionais, pautadas essencialmente pela sensibilidade ao visual; o direito,por sua vez, distingue-se pela sensibilidade ao acstico e pela dimenso in-

    tegradora vinculada a ele.Longe de serem estveis e regulares, os intercmbios entre os dois socontinuamente redenidos, de modo que a atividade simultnea de ambos

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    pode originar uma inibio recproca, geradora, por sua vez, de uma ciertaregularidad de la consciencia (LOTMAN, 1996, p. 48), e, por outro lado, a

    desconexomomentnea, em conjunto com o trabalho intenso da lingua-gem de um dos hemisfrios, tende a favorecer e incitar a ao da outra parte.Em virtude da dupla codicao, o texto cultural entendido como

    um importante dispositivo pensante (LOTMAN, 1998, p. 15), pelo qual sepode apreender a ao inteligente da cultura, capaz de traduzir informaoem linguagem. esse processo que nos permite vislumbrar por que, paraLtman, a linguagem no se limita a ser um mero canal de transporte ouuma representao de algo distinto dela prpria, uma vez que por meiodos signos que os diferentes sistemas que formam a cultura ganham ma-

    terialidade. Alm disso, como d corpo a uma ao intelectiva, todo textocultural envolve, necessariamente, uma dimenso cognitiva, edicada pelasrelaes comunicativas e pelo continuum que o arranjo sgnico, intrinsecamente, capaz de suscitar.

    No mbito do tropo, nota-se que ele tende a incitar uma modalidade deraciocnio muito singular, pautada, essencialmente, pela similitude estabelecidaentre diferentes formas de ordenao, capaz de fazer surgir a elaborao deinferncias sobre a constituio de novas possibilidades vinculativas. Nessecaso, opera-se em conformidade com o raciocnio abdutivo, tal como ele foi

    denido por Charles Sanders Peirce. Por meio desse raciocnio, possvelapenas formular hipteses acerca de dada questo, suscitadas por meio desituaes em que

    nos deparamos com uma circunstncia curiosa, capaz de ser explicada pela suposio

    de que se trata de caso particular de certa regra geral, adotando-se, em funo disso,

    a suposio. Ou quando vericamos que sob certos aspectos dois objetos mostram

    forte semelhana e inferimos que se assemelham fortemente um ao outro sob aspectos

    diversos. (PEIRCE, 1975, p. 150)

    Como bem apontam Machado (2011) e Perelman (2004), no h comodissociar raciocnio e argumentao, uma vez que todo argumento est am-parado numa forma especca de pensamento. E, da mesma forma que osjuzos podem adquirir diferentes conguraes, o mesmo vlido para osargumentos. Segundo Peirce (1975, p. 151), a hiptese consiste num tipofraco de argumento, extremamente falvel e, consequentemente, incapaz deconduzir o juzo a uma concluso. Porm, pode-se dizer que justamente na

    impreciso que reside o vigor do raciocnio abdutivo, uma vez que ele notoma por base crenas consolidadas, mas dvidas que servem de ponto departida para vericaes e experimentaes posteriores.

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    Por sua vez, Perelman (2005, p. 424) sustenta que o valor argumen-tativo da analogia reside justamente na similitude estabelecida no apenas

    entre objetos, mas nas relaes edicadas entre diferentes estruturalidades.Isso delega ao argumento analgico a fora probatria que justica a razode ser de uma hiptese, formulada com base em diferentes fenmenos quemantm, entre si, algum trao em comum.

    Dessa forma, o tropo seria capaz de salientar o carter intelectivo eresponsivo que envolve o exerccio argumentativo calcado na elaborao desuposies, sobretudo se considerarmos que o efeito retrico de um textono se circunscreve apenas persuaso, mas pode ser hermenutico, po-tico ou cognitivo, da mesma forma que pode advir da interao dialtica

    entre o grau percebido e o conjunto difuso chamado de grau concebido(KLINKENBERG, 2003, p. 207) que, por sua vez, distingue a plurivocali-dade semntica da analogia. Nesse sentido, a dimenso cognitiva e intelec-tiva do tropo e da analogia, caracterizada pelo raciocnio abdutivo, tambmenvolve uma esfera argumentativa, provocada pelo exerccio relacional eresponsivo, decorrente da necessidade de perceber a intraduzibilidadeestabelecida entre diferentes sistemas.

    Tal exerccio retrico tambm foi reconhecido por Ltman. Ao indicar aestreita correlao da metfora e da metonmia com o pensamento analgico,

    o autor ressalta o papel exercido por essa forma de raciocnio em diferentesesferas da cultura, a comear pela prpria cincia. No que concerne a esseaspecto, ele assinala:

    La retrica es propria de la consciencia cientca en la misma medida que de la artstica.

    En el domnio de la conciencia cientca se pueden distinguir dos esferas. La primera

    la retrica es el domnio de los acercamientos, las analogias y la modelizacin. Es

    una esfera de proposicin de nuevas ideas, de estabelecimento de postulados e hiptesis

    inesperados, que antes parecan absurdos. La segunda es la esfera lgica. Aqu las ideas

    propuestas son sometidas a comprobacin, se trabajan las conclusiones que se derivan

    de ellas, se eliminan las contradicciones internas en las demostraciones y razonamientos.

    (LOTMAN, 1996, p. 130)

    Nota-se, assim, que o fazer cientco no pode prescindir de dife-rentes espcies de raciocnio e, por consequncia, de variados caminhos deconstruo argumentativa que se fazem necessrios ao longo do processode produo do conhecimento. Essa correlao tambm pode ser entendida

    por meio da distino feita por Perelman (2004, p. 77) entre argumentaolgica e argumentao retrica. A primeira caracteriza-se pelo raciocnioformal, restrito ao mbito de um sistema nico e pautado por premissas

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    preestabelecidas, ao passo que a segunda continuamente construda pelasrelaes institudas entre diferentes instncias, de modo que qualquer ideia

    passvel de ser questionada, visto que o raciocnio no parte de princpiosdeterminados de forma invarivel.A nosso ver, a argumentao retrica explicita o tipo de argumento

    que tende a ser fomentado pela caracterizao analgica do tropo. Anal,da mesma forma que a constituio dessa caracterizao pressupe um in-tercmbio semitico pautado pela diversidade daquilo que foi colocado emrelao, a argumentao retrica envolve incompatibilidades, divergncias eambiguidades, o que impede a constituio de uma armativa unvoca acercade dada questo.

    Como no se constitui numa totalidade, a analogia possibilita a realiza-o de uma srie de prolongamentos (PERELMAN, 2005) que, conformeapontamos, permitem correlacionar fenmenos absolutamente dsparesentre si, mas que, de determinado aspecto, foram aproximados no textoretoricamente articulado. Com isso, potencializa-se o desenvolvimento doraciocnio essencialmente relacional e responsivo, sem o qual a argumentaoretrica no se realiza. Nesse processo, o feito retrico deve ser entendido,essencialmente, pelo devir que caracteriza a lgica da continuidade, tal comodene Valry (1998).

    Dessa maneira, tanto o tropo quanto a argumentao retrica vinculada aele no podem prescindir das relaes edicadas pelo espao semitico que, porsua vez, tambm inclui a ao responsiva daqueles que diretamente esto im-plicados nas prticas retricas, ou seja, o auditrio para o qual uma mensagem direcionada. Ltman tambm possui uma compreenso muito singular desseassunto, que no escapa abordagem semitica. o que veremos a seguir.

    O auditrio e a memria comum

    Em retrica, o auditrio comumente entendido pelo conjunto de ex-pectativas, crenas e valores vinculados ao pblico para o qual uma mensagem direcionada. Essa a base para a denio da imagem do auditrio, ouseja, um pblico abstrato e ideal que recebe uma mensagem. Baseadonesseconhecimento prvio, seria possvel elaborar o discurso com base naquiloque verossmil a um grupo especco, tendo-se o objetivo de persuadi-lo.De certo modo, tal orientao indicaria por que, como arma Aristteles, aretrica uma forma de comunicao (2012, p. XX), visto que qualquerprtica suasria deve, necessariamente, ter diferentes interlocutores.

    Segundo a abordagem semitica, a ideia de auditrio ganha outra carac-terizao. Entend-la requer, antes de tudo, discutir a dimenso pragmticaque envolve o espao de relaes edicado pelos textos culturais. Conforme

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    apontamos anteriormente, um arranjo sgnico somente capaz de produzirsentidos quando entra em relao com outros textos. Para Ltman (1996, p.

    98), o aspecto pragmtico diz respeito, justamente, ao elemento de foraque colocado em relao com o texto, que pode ser tanto outro(s) texto(s)quanto o leitor, tambm entendido como um texto.

    Tal compreenso exige, mais uma vez, retomar a dimenso no antropo-cntrica que caracteriza o funcionamento semitico da cultura. Um leitorultrapassa os limites de ser um mero sujeito decodicador que, dotado doconhecimento necessrio, seria capaz de processar um conjunto de sinais como objetivo de desvelar um signicado que se encontra escondido. Ao contr-rio, ele um ser de linguagem que, obrigatoriamente, se coloca numa relao

    tradutria com os textos produzidos pelos diferentes sistemas da cultura.Essa concepo pode ser mais bem entendida se considerarmos que,

    em conformidade com Marshall McLuhan (2005), toda distenso tecnolgicamovimenta cdigos que, continuamente, modelizam o sistema percepto--cognitivo humano, de modo que qualquer vnculo que algum estabeleacom outros textos culturais j se encontrar mediado por algum tipo de lin-guagem. Tomemos como exemplo a escrita alfabtica. Ao distender o olho,os signos grco-visuais tendem a potencializar formas de compreenso eraciocnio calcadas na linearidade lgico-predicativa que, invariavelmente,

    intervm no modo pelo qual os indivduos apreendem os fenmenos. Comisso, a mediao exercida pela modelizao decorrente da escrita constria realidade textual do leitor que, impreterivelmente, sobrevm na relaotradutria estabelecida com outras modalidades de ordenao.

    Esse entendimento permite redenir aquilo que, comumente, se entendepor esfera comunicativa das prticas retricas, ou seja, uma relao simtricaedicada entre emissor e receptor na qual a imagem do auditrio impli-caria a necessria coincidncia de cdigos entre diferentes interlocutores.

    Em consequncia, tal relao seria caracterizada pelo mero transporte designicados de um ponto a outro.Todavia, o leitor-texto e o espao semitico de relaes jamais po-

    deriam pressupor um vnculo simtrico e unilateral entre diferentes esferas,em virtude da no coincidncia dos cdigos colocados em dilogo. Comoconsequncia, em tempo algum, a relao comunicativa poderia restringir-se mera transmisso inaltervel e unvoca de signicados, pois, na interaoque um texto estabelece com outros, ocorrem desvios e deformaes noprevistos ou controlveis, dos quais irrompem sentidos absolutamente inusi-

    tados. por isso que, para Ltman, a comunicao envolve um processo decomplicacin progresiva (1996, p. 67), uma vez que os vnculos pragm-ticos entre diferentes esferas pressupem irregularidades e tensionamentos

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    que fazem que el texto del comunicado se deforma en el proceso de sudesciframiento por el receptor (LOTMAN, 1996, p. 110). Assim:

    En vez de la frmula el consumidor descifra el texto, es posible una ms exacta: el

    consumidor trata con el texto. Entra en contactos con l. El proceso de desciframiento

    del texto se complica extraordinariamente, pierde su carcter de acontecimiento nito

    que ocurre una sola vez, tornndose ms parecido a los actos, que ya conocemos, de

    trato semitico de un ser humano con otra persona autnoma. (LOTMAN, 1996, p. 82)

    dessa perspectiva que o auditrio deve ser entendido. Longe de serapenas o pblico para o qual uma mensagem simetricamente direcionada

    com o intuito de lev-lo a agir de determinado modo, ele se reporta a um textono qual, segundo Ltman, possvel reconhecer a orientao para um tipode memria (LOTMAN, 1996, p. 111) que compartilhada por um grupo.

    No que tange a esse ponto de vista, cumpre ressaltar que, para os tericosda Escola de Trtu-Moscou, a memria consiste num dispositivo intrnseco aostextos e, consequentemente, cultura. Alm do mais, a esfera mnemnica dacultura no se circunscreve somente ao passado. Aliada a uma memria infor-mativa, responsvel por armazenar e conservar informaes, os textos tambmso dotados de uma memria criativa, capaz de produzir novos arranjos textuais

    (LOTMAN, 1996, p. 158-159). Porm, tal capacidade criadora apenas se fazatuante quando a memria entra em relao com outros textos culturais, ouseja, quando o dispositivo pensante da cultura interage pelo espao semitico.Nessa relao, observa-se por que a diacronia que resultou na congurao deum sistema s pode ser apreendida pelo arranjo sincrnico de um texto, ouseja, no modo pelo qual ele continuamente ressignica os signos mnemnicos.

    Ao denir o auditrio por meio de uma memria comum, pela qual seriapossvel delimitar a imagem do auditrio ou um leitor ideal, Ltman

    acentua a mediao exercida por uma memria textual que abrange o reco-nhecimento do contexto mais amplo da cultura e dos textos partilhados pordeterminado grupo e/ou cultura que, inevitavelmente, intervm no processode edicao de novas mensagens. Isso permite que, mediante os vnculospragmticos, seja possvel ao leitor-texto reconhecer alguns traos, aindaque mnimos, que possibilitem a elaborao do juzo abdutivo acerca do pro -cesso tradutrio que resultou na constituio do novo arranjo sgnico e nosprolongamentos decorrentes desse processo. por essa razo que, conformeapontamos anteriormente, num texto retoricamente articulado todos os textos

    direta ou indiretamente relacionados com a materialidade do arranjo sgnicono podem ser desconsiderados, pois tambm fazem parte de uma memriacomum, a qual, longe de ser estanque, est sempre em expanso.

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    Ao mesmo tempo, a orientao a determinada memria comum permitereconhecer um tipo especco de cultura. Segundo Ltman (1979, p. 35), a

    cultura no pode ser entendida como uma totalidade, visto que constitudapor diferentes sistemas que se caracterizam por formas prprias de ordenao,passveis de serem delineadas pela hierarquia dos seus cdigos constituin-tes. Desse fato resultam ordenaes sistmicas singulares que, igualmente,possuem distintas formas de memria, reconhecveis pela diversidade dosseus vnculos constitutivos. Tal orientao a um tipo de cultura e, por conse-quncia, a um tipo de memria, permite vislumbrar os nexos comunicativose pragmticos que um texto capaz de suscitar.

    Igualmente importante assinalar a ressignicao que essa perspectiva

    apresenta quando a contrapomos concepo de memriaque, segundo enfa-tizamos no incio deste artigo, tem sido paulatinamente obliterada do estudoda retrica. Isso ocorre porque, quando vista da perspectiva da semiosfera,a memria entendida como uma propriedade intelectual inerente ao fun-cionamento dos textos culturais, em vez de subsistir apenas nos sujeitosenvolvidos nas relaes comunicativas.

    Retomando a questo relativa ao tropo retrico, no h como descon-siderar de que maneira sua ordenao envolve, necessariamente, o espaode relaes edicado pela combinao entre a ao exercida pela memria

    comum, a cognio j modelizada por diferentes cdigos culturais e osprocessos de intraduzibilidade estabelecidos entre diferentes sistemas. a correlao entre eles que constri a situao retrica a que se reportaLtman, uma vez que o contexto mais amplo da cultura que oferece ascondies propcias para a edicao de textos culturais retoricamente arti-culados. o que o autor d a entender quando arma que existen pocasculturales orientadas enteramente o en considerable medida a los tropos, loscuales devienen um rasgo distintivo obligatorio de todo discurso artstico, y

    en algunos casos extremos, de todo discurso em general (LOTMAN, 1996,p. 125). Em outras palavras, existem perodos, ou ainda, tipologias de culturaque tendem a fomentar ainda mais o encontro entre sistemas absolutamenteincompatveis, algo que, conforme j foi assinalado, caracteriza o prpriodevir da cultura. Vejamos como esse processo pode ser entendido num textocultural especco, que coloca em relao sistemas religiosos e formas deritualidade completamente distintos entre si.

    O tropo religioso

    Localizada no centro do Pelourinho, na cidade de Salvador (BA), a Igrejade Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos um templo catlico,edicado no sculo XVII, mantido pela Irmandade de Nossa Senhora do

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    Rosrio (Figura 1). A despeito da sua importncia para a histria do centrohistrico dessa cidade, sua notoriedade deve-se tambm s cerimnias re-

    alizadas s teras e aos domingos. Isso decorre de um fato muito peculiar:nela, todos os cantos litrgicos so executados ao som de atabaques, que,como sabido, so utilizados em rituais vinculados ao candombl (Figura 2).

    Figura 1 Fachada da Igreja de Nossa Figura 2 Atabaques utilizados nas cerimnias

    Senhora do Rosrio dos Homens Pretos

    Trata-se de uma singularidade que confere uma dinmica muito prpria liturgia, uma vez que no so raros os momentos em que todos os presentes,inclusive o padre, danam alegremente. O pice ocorre no instante do ofer-trio: dezenas de mulheres (primeiro) e homens da comunidade local entram

    pela nave da igreja e danam enquanto se dirigem ao altar. Os movimentosenvolvem grandes cestos de pes que todos seguram pelas mos e braos;no nal da celebrao, esse alimento distribudo (Figuras 3 e 4).

    Naquele contexto, a importncia da procisso das oferendas pode serdetectada pela sua longa durao, sobretudo quando a comparamos ao breveperodo que normalmente ela ocupa numa cerimnia tradicional. Pode-sedizer que justamente nesse instante que ocorre uma espcie de transe co-letivo, em virtude da sinergia estabelecida entre a percusso dos atabaques,o ritmo dos corpos que adentram a nave e o pblico que assiste cerimnia.

    No so poucas as pesquisas realizadas, sobretudo no mbito da socio-logia e da antropologia, a respeito do sincretismo religioso presente em vrias

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    regies do Brasil, em especial na Bahia, dada a proeminncia que o estadoadquiriu durante o perodo escravocrata. Essa condio sincrtica pode ser

    constatada no apenas na religio, mas em vrias outras esferas culturais. Porsi s, ela j elucida a irrupo de uma situao altamente retrica, que seinclina a favorecer o encontro entre diferentes sistemas culturais. Porm,poucos foram os estudos dedicados dimenso semitica dos textos culturaisque do corpo a esse sincretismo.

    Figura 3 Mulher entrega cesta de pes ao padre Figura 4 Altar com os cestos do ofertrio

    Entendida como um texto cultural, a cerimnia consiste numa sntese

    resultante do intercmbio estabelecido entre diferentes sistemas, a comearpelo catolicismo e pelo candombl. Tal correlao mostra-se mais proemi-nente durante os cnticos, os quais ressignicam, ainda, a dimenso sgnicada missa como um todo e, como consequncia, ampliam os sentidos que ela capaz de produzir na cultura.

    No h como negar o vis prescritivo que comumente rege o funciona-mento dos rituais religiosos. Como enfatiza Lazzarato (2006, p.185), a palavrareligiosa tende a ser extremamente autoritria, visto que exige concordnciaincondicional por parte dos ouvintes, excluindo, assim, a possibilidade de

    questionamento dos dogmas estabelecidos. Por isso, qualquer alterao numtexto religioso propende a fomentar a irrupo de sentidos muitas vezescontrrios aos preceitos vigentes, o que gera profundas controvrsias.

    No caso em questo, tais desvios podem ser delineados quando se buscaretomar os cdigos que orientam a formulao dos cantos em cada um dossistemas colocados em relao. Em especial, para o catolicismo, cantar auma s voz refora a ideia de uma vida comunitria ou unio dos homenscom o intuito de louvar a Deus.

    Como bem enfatiza Wisnik (1989, p. 33-34), o som cantado em

    unssono por um grupo tem o poder de transmitir a ideia de ordenaoe harmonia e, consequentemente, de ausncia de conflitos. Com isso, o

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    cntico sobrepe-se aos rudos desordenadores do mundo em proveito daconstruo de uma unidade, voltada a adorar o senhor. Uma vez que o

    som absorvido como uma totalidade indiferenciada, ou, ainda, como umamassa compacta (LAZZARATO, 2006, p. 185) que ratica a unidade ea crena em torno de um Deus nico, logo, busca-se aplanar qualquer formade alteridade capaz de gerar discordncias ou questionamentos. Disso decorreo vis coercitivo exercido pelos hinos catlicos.

    Ainda segundo Wisnik, o canto litrgico, cuja base est no canto gre-goriano, distingue-se justamente pela supresso de qualquer tipo de rudoou acompanhamento de instrumentos percussivos em proveito da rtmicapuramente frsica a servio da pronunciao melodizada do texto litrgico

    (1985, p. 42). Inaugura-se, assim, o campo da chamada msica tonal, cujofoco passa a ser as alturas meldicas em detrimento do ritmo e da percusso.

    Desse aspecto, a msica tonal contrape-se radicalmente msica modal,em cuja estrutura se opera, continuamente, o embate entre os rudos presentesno mundo e os sons, na tentativa de extrair-se o som puro (WISNIK, 1985, p.39) que est sempre envolto em rumores. O choque e o intercmbio entre ume outro no so suprimidos do som, visto que apenas na relao entre si queambos podem delinear-se. A msica modal traduz, continuamente, o exerccioe a tentativa de converter o rudo em formas sonoras ordenadas, de modo que

    essas msicas no poderiam deixar de ter a presena muito forte das percusses (tam -

    bores, guizos, gongos, pandeiros), que so os testemunhos mais prximos, entre todas

    as famlias de instrumentos, do mundo do rudo. E tambm um mundo de timbres:

    instrumentos que so vozes e vozes que so instrumentos (vozes-tambores, vozes-autas,

    vozes-guizos, vozes-gozo). (WISNIK, 1985, p. 40)

    Pela perspectiva da semitica da cultura, nota-se que tonal e modal se

    referem a cdigos culturais completamente dspares: o foco do primeiro o acordo e a conformidade, ao passo que o segundo traduz, continuamente,o embate e a dissenso. Assim, o reconhecimento do cdigo tonal no cantolitrgico nos oferece alguns traos que distinguem a dimenso comunicativade um ritual catlico.

    Os textos presentes nos cnticos so criados tendo em vista a funoque exercem na liturgia da missa, de maneira que eles no possam contrapor--se a ela ou discorrer sobre temas que no estejam diretamente relacionadosao ritual. O cntico no pode, portanto, adquirir um destaque maior que

    a prpria liturgia, mas deve fazer parte dela. Ainda quando o ritual prev,unicamente, o canto, nota-se que ele se insere na narratividade litrgica e,por isso, apreendido como mais uma parte do culto. Para tal, traduz me-

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    lodicamente as frases do prprio evangelho que, em vez de serem ditas pelosacerdote, so pronunciadas em unssono.

    Alm do mais, durante uma celebrao, o cntico tem a clara funo decriar um ambiente propcio para a orao e o recolhimento, tal como aconteceno momento da eucaristia. No por acaso que os cantos no costumamser acompanhados de instrumentos musicais e, quando o so, utiliza-se oviolo ou um teclado como forma de indicar a sucesso rtmica que deveser seguida por todos ou para delimitar o incio e o trmino do hino. Anal,o ritmo gerado por instrumentos musicais no pode sobrepor-se letra e altura meldica, em razo das funes que exercem na totalidade da liturgia.

    Levando-se em conta os papis que o cdigo tonal desempenha na

    liturgia e nos hinos catlicos, no h como deixar de lado a ressignicaogerada quando esses mesmos cnticos so entoados ao som de atabaques,isto , quando o cdigo modal passa a ser dominante, tal como ocorre nacerimnia da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos. Nose trata de considerar a incluso de instrumentos de percusso um meroadorno com o intuito de tornar a cerimnia mais atraente aos olhos dopblico. Ainda que o ritual cumpra o mesmo roteiro presente em qualquerigreja catlica, sua congurao sgnica e os efeitos de sentidos que produzso completamente distintos quando comparados a uma missa tradicional.

    No candombl, os atabaques tm a funo central de chamar os ori-xs que, depois, so induzidos a danar suas canes tpicas. Se levarmosem conta que, conforme arma Wisnik (1985, p. 40), a percusso faz partedo mundo dos rudos, logo, nota-se como esse chamamento feito porintermdio dos rumores que esto no mundo, ao contrrio do elevar-se aDeus promovido pela unidade do canto litrgico. Nesse caso, efetua-se umaprofunda inverso, pois, em vez de o homem dirigir-se a Deus por meiodo canto unssono e meldico, Deus que deve baixar por meio do rudo.

    Tambm no h como pensar o cdigo modal dissociado da performancecorporal.Como bem arma Tatit (2004, p. 19-20), a relao entre percusso,oralidade e corpo encontra-se na base de constituio do ritual religiosobrasileiro, dada a importncia tnica que os negros e seus rituais exercerame ainda exercem na sonoridade do pas. Mais que isso: a sinergia existenteentre o pulso sonoro caracterstico da percusso com os prprios sons docorpo humano elucida o envolvimento sensrio que potencializado pelamsica modal, uma vez que ela fala diretamente ao corpo. Nesse mecanismo,nota-se, igualmente, a ao modelizante exercida pelo cdigo modal, capaz

    de estabelecer novas estruturalidades na cultura. Logo, no h como o corpomanter-se indiferente ao ritmo, ao contrrio do que acontece com o tonal,que exclui quase por completo qualquer forma de ao sensria.

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    justamente por meio dos traos completamente dspares que compemo cdigo tonal e o modal que podemos apreender a formao do tropo re-

    trico na referida cerimnia. Nela, observa-se o intercmbio de esferas quedesempenham funes completamente distintas, de modo que a intraduzibi-lidade entre elas resulta na edicao de um texto retoricamente articulado,capaz de introduzir novos sentidos ou de promover a indenicin semntica(LOTMAN, 1996, p. 129), sobretudo no sistema catlico.

    Ao promover o encontro entre diferentes sistemas, verica-se, ainda,como o texto em questo aciona uma memria comum caracterstica deum tipo de ordenao em que a religiosidade africana e a ancestralidade docdigo modal so muito presentes. Alm do mais, tendo em vista a posio

    que os espectadores ocupam na cerimnia, uma vez que eles tambm socoautores dela, a memria comum deixa de mostrar-se implicitamente paracolocar-se como um elemento artstico signicativo (LOTMAN, 1996, p.114), j que o leitor-texto constitui parte atuante do prprio arranjo textual.

    Consideraes fnaisAo indicar os principais aspectos que distinguem a retrica formulada

    por Ltman, buscamos apontar as possibilidades de estudo que se abrempara a compreenso dos mais variados sistemas da cultura, a comear pelos

    religiosos. Para tal, conforme enfatizamos ao longo de todo este artigo, nose pode desconsiderar a perspectiva epistemolgica de estudo da culturacolocada pela semiosfera, o que exige, impreterivelmente, o estudo de umsistema em relao com outros.

    Com isso, possvel apreender de que maneira se opera a contnuaressignicao dos sistemas culturais, a edicao de novos textos culturaise, consequentemente, a irrupo de novos sentidos na cultura, muitas vezesno previsveis. A abordagem retrica proposta por Ltman tende a elucidar

    como tais encontros constituem um processo vital para o devir dos sistemas,visto que introduz el grado de indenicin (LOTMAN, 1996, p. 129) deque eles tanto necessitam para se expandirem continuamente. Dessa forma, possvel entender por que, para os semioticistas da cultura, a retrica estna base da cultura, sem a qual ela pereceria.

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