a complexidade da angústia da influência

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  • 7/25/2019 A Complexidade Da Angstia Da Influncia

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    A COMPLEXIDADE DA ANGSTIA DA INFLUNCIA DE HAROLD BLOOM

    Daniel Fraga de Castro1

    A crtica literria norte-americana ainda pouco conhecida pelo pblico

    acadmico brasileiro. Existem, no entanto, autores e pesquisadores que se preocupam

    em seguir caminhos originais aplicando olhares ousados e criativos sobre como

    aproximar-se da literatura. neste contexto que se apresenta uma viso literria

    expressamente mpar: A angstia da influncia de Harold Bloom.

    O livro Angstia da Influncia a obra mais estudada de Harold Bloom. A

    expresso, cunhada por ele, j havia aparecido antes de 1973 no livro The ringers of

    the tower. O conceito tambm j aparecia de modo impreciso em seus primeiros livros

    como Shelleys mythmaking, Visionary company, Blakes Apocalypse e

    Yeats. Bloom foi um audaz defensor da poesia romntica em um perodo em que o

    New Criticismimperava em Yale, seu mbito profissional, o que promoveu uma srie

    de calorosos confrontos. Seu projeto prosseguiu nos livros: Mapa da Desleitura,

    Cabala e Crtica, Poesia e Represso, Agon e Abaixo as verdades sagradas.

    Bloom foi considerado pertencente a um grupo de intelectuais que surgia neste

    perodo: Os desconstrutores de Yale. Juntamente com Geoffrey Hartman, Paul de Man eJ. Hillis Miller apresentou uma viso ao mesmo tempo anti-essencialista e anti-

    formalista da literatura. A partir dos escritos destes autores foi possvel vislumbrar que

    os padres de leitura so manifestaes de obras da tradio romntica, um efeito de

    suas prprias caractersticas retricas articuladas. No romantismo, teoria e leitura

    confundem-se como tema da poesia e os antigos novos crticos resistiam a essa sua

    capacidade de gerar ambiguidades, preocupados com a lgica e a gramtica. Foi por

    essa razo que sua reviravolta hermenutica enfrentou uma srie de oposies nesseperodo.

    Normalmente Bloom entendido como um crtico linear que est preocupado

    em demonstrar as relaes passivas da intertextualidade apresentando o escritor que

    absorve outro escritor anterior formando um cnone de precedncias. Sua recente

    incurso no debate sobre a canonicidade da literatura o fez alvo de crticas de

    pesquisadores mais preocupados com o aspecto social da literatura podendo at mesmo

    tom-lo como um crtico preso em um sistema falologocntrico que privilegia os

    1Bacharel em teatro pela Ufrgs e Mestrando PPG-Letras pela Pucrs

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    velhos autores europeu. (SANTOS, 2000, p. 72) Terry Eagleton apesar de um tom

    profundamente elogioso no chega a aprofundar o alcance das reflexes bloomiana

    (2006, p. 159). A professora Tnia Carvalhal corrobora e exemplifica mais claramente

    esse tipo de viso em seu estudo introdutrio sobre Literatura Comparada:

    certo que sua proposio se autolimita ao montar-se apenas com relao agrandes poetas. Alm disso, no examina a possibilidade de que, naconstruo do poema, coexistam influncias de outra natureza que no a

    potica. Ocupa-se apenas com os caminhos escondidos que vo de poema apoema, analisando somente "the poet in a poet". No h significadosimanentes na poesia.Os aspectos formais dos poemas ficam, nessa perspectiva, relegados. Paraele, tudo se reduz a um conflito de geraes e a uma srie de mecanismos dedefesa que, acionados, regem as relaes intrapoticas. (CARVALHAL,2006, p. 61)

    Essa gama de consideraes no permite ver a complexidade de inter-relaes

    que o pensamento de Harold Bloom contm e pode impedir a aproximao de leitores

    interessados nas relaes de criatividade. Na verdade, sua crtica literria transcende

    meras relaes objetivas e circunstanciais entre escritores, servindo como uma nova

    forma de leitura e apreenso da literaridade enquanto objeto esttico. Neste sentido cabe

    interpret-lo como uma atividade da intertextualidade. Mesmo um autor dos estudos

    culturais como Edward Said pode perceber as qualidades esttico-filosficas de Bloom

    quando escreve a crtica de uma de suas obras:

    Bloom is the most rare of critics. He has what seems to be a totally detailedcommand of English poetry and its scholarship, as well as an intimateacquaintance with the major avant-garde critical theories of the last quartercentury. (He is De Vane Professor of the Humanities at Yale.) Yet for Bloomthis gigantic apparatus, to which he has assimilated Freudian theory and theKabbalistic doctrines of Isaac Luria, a 16th-century Jewish mystic, is no merescholarly baggage. () Bloom's work is not only thoroughgoing revisionism,it is above all else extravagant, overcoming its own discursive limitations andthose of criticism generally, displacing the texture of texts, the terminals oforigins and ends, the barriers between poets, critics, historians and "mere"readers, in order to restore poetry to that magisterial difficulty claimed for it

    by Shelley.(SAID, 2011)2

    2Bloom o mais raro dos crticos. Ele tem o que parece ser um comando totalmente detalhado da poesia

    inglesa e sua sabedoria, bem como um conhecimento ntimo das principais teorias crticas de vanguardado ltimo quarto de sculo. (Ele Professor De Vane das Humanidades na Universidade de Yale.) Noentanto, para Bloom este aparelho gigantesco, a que ele assimilou a teoria freudiana e as doutrinascabalista de Isaac Luria, um mstico judeu do sculo 16, no mera bagagem acadmica. (...) O trabalhode Bloom no apenas o revisionismo profundo, acima de tudo extravagante, superando suas prpriaslimitaes discursivas, e aqueles do criticismo em geral, deslocando a tessitura de textos, os termos de

    origens e fins, as barreiras entre poetas, crticos, historiadores e "meros" leitores, a fim de restaurar poesia a dificuldade magisterial reivindicada por Shelley.

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    Autores como Camille Paglia3 e Graham Allen4da mesma forma j deixaram

    claro que o aporte crtico de Bloom no deve ser encarado como um procedimento

    reducionista sobre a literatura. Seu ponto de vista a afirmao de uma co-existncia

    potica onde o ato de interpretar o foco principal. Sua teoria uma viso originalde

    intertextualidade onde a noo de autoria ganha traos agonsticos e conflituosos em

    relao a leitura. Os plos da relao obra/leitor ocorrem dialeticamente. O conceito que

    permite estabelecer esse tipo de viso a sua noo de influncia.

    Essa palavra vem do latim influere, fluir para dentro. Sua origem assenta-se no

    sentido utilizado pelos astrlogos medievais, isto , a ao dos astros sobre as emoes

    humanas. Um influxo, a entrada de algum elemento em alguma coisa. Tambm pode ser

    entendido como a fuso de poder e autoridade nas relaes que se estabelecem entrediferentes seres. Foi provavelmente sob este aspecto que se configurou a ideia de um

    escritor influenciar outro em uma linha causal de dependncias, onde os antigos formam

    os modernos, como T.S. Eliot, de alguma forma, afirmou no seu ensaio Tradio e o

    talento individual.

    Eliot acreditava que o elemento mais individual de um artista est no aspecto em

    que os poetas mortos afirmam a sua imortalidade. A tradio no seria algo que pudesse

    ser simplesmente herdado, na verdade, toda a criao de uma obra nova estaria inseridaem uma ordem simultnea com as obras precedentes. Assim o passado seria alterado

    pelo presente na mesma medida que o presente seria dirigido pelo passado (Elliot,

    2011).

    No entanto, o crtico norte-americano vai um pouco mais alm das proposies

    do poeta ingls, corroborando em algumas partes, mas no correspondendo

    necessariamente s descries normativas de alguma histria da literatura. Enquanto a

    proposta de Eliot leva a enxergar a influncia como um processo de despersonalizao,Bloom seguir o caminho inverso. Sua grande preocupao sempre foi na formao do

    indivduo. A influncia tem sido, nessa busca, sua grande ideia, o pensamento central

    que percorreu direta e indiretamente todas as suas pesquisas literrias. Como ele mesmo

    afirmou em entrevista para a Folha de So Paulo quando fala da obra de Heidegger:

    Nalgum ponto, em uma ou outra de suas apologias ao tentar explicar otrabalho de sua vida, ele afirma que cada um de ns s capaz de pensar umanica ideia e que, portanto, o que nos cabe pensar essa ideia at o fim. Para

    3Crtica literria feminista norte-americana (1947).4Professor de lngua inglesa da Cork University na Irlanda.

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    Heidegger, essa ideia era o Dasein [o ser]. (...) Mas venho tentando pensar,no curso de uma vida, ou melhor estou condenado a pensar, uma nica ideia,e tentar pens-la, sem conseguir, at o fim e essa ideia a influncia.(NESTROVSKI, 2003, p.316)

    Em seus primeiros escritos, onde a influncia como tema no era explcita,

    trouxe uma noo diferente para o contato com a literatura, pelo menos naquele perodo.

    Bloom oferecia a ideia de ver a literatura como uma viso proftica, ou uma ao da

    imaginao visionria. Essa noo era uma tentativa de afastamento dos arqutipos

    estticos de Northrop Frye5e j apresentava relaes dialticas que constituiriam sua

    noo de influenza. O processo potico seria uma ao onde a imaginao triunfa sobre

    tudo aquilo que dado, principalmente a natureza; h um impulso visionrio lutando

    para alcanar expresso, mas enquanto momento de pura viso no passaria de um

    evanescente flash intuitivo que depois se transformaria em linguagem, uma forma

    petrificada, e por ser uma viso do sublime no possuiria nenhum tipo de referente,

    seno o seu desejo de ser algo mais. (FITE, 1985, p.17)

    Seus estudos nesse perodo so uma tentativa de valorizar novamente o perodo

    romntico e seus maiores poetas. A ideia de Blake de que o homem real a imaginao

    ser fundamental para Bloom. Na verdade a partir da relao de Yeats com Blake que

    sua angstia da influncia comea a tomar um formato mais sofisticado. Yeats pretendia

    realizar uma poesia que corrigisse e ampliasse a obra literria de Blake, como se esteno fosse um poeta completo. O que Blake apresentou como desastre Yeats viu como

    revelao (Idem, p. 49-52)

    A partir da dcada de setenta o autor comea a estabelecer uma teoria da

    poesia. No ser uma teoria do ponto de vista cientfico, mas uma reflexo da poesia

    pela poesia. Atravs da descrio das influncias poticas ele se prope atingir dois

    objetivos que classifica como "corretivos": desmitificar os procedimentos pelos quais

    um poeta ajuda a formar outro poeta; esboar uma teoria, ou seja, uma potica, quecolabore para uma mais adequada prtica crtica.

    A noo de originalidade de Bloom a mesma que aquela apresentada por

    Borges em seu ensaio sobre Kafka, mas com algumas pequenas diferenas. Bloom est

    mais preocupado em apresentar uma teoria potica que d conta dos processos criativos

    dos autores e que permita compreender a crtica literria como um anexo deste mesmo

    5Crtico Canadense (1912 - 1991). Acreditava que haveria imagens e metforas que governariam aestrutura dos textos literrios.

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    processo potico, ao invs de uma filosofia da literatura. Como o prprio Bloom

    assevera:

    Mas a relao entre efebo ou poeta novo e seus precursores no pode serlimpa de polmica e rivalidade nobre como o idealismo esttico deBorges porque a relao em si no limpa. A influncia potica, paramuitos crticos, simplesmente algo que acontece, uma transmisso de ideiase imagens, e o surgimento ou no de angstia no poeta posterior visto comouma questo de temperamento e circunstncia. Mas o efebo jamais poder serado no nascer da aurora. Os originais j existiram e j nomearam as coisas.E o peso, agora, de retirar esses nomes que d impulso s verdadeirasguerras combatidas sob o estandarte da influncia potica, guerras declaradas

    pela perversidade do esprito contra a riqueza acumulada por ele, a riqueza datradio. (Apud NESTROVSKI, 1996, p. 110)

    Essa relao conflituosa aparece j claramente no seu vocabulrio: efebo, o

    poeta jovem e iniciante que chega tarde ao processo literrio e o precursor, que afigura que conduz e forma o poeta jovem e atrasado. Os precursores que so o peso

    insustentvel que os novos artistas devem encarar para estabelecer suas prprias

    criaes.

    O poeta rebela-se contra a necessidade da morte, contra todas as foras que o

    precederam, no sentido romntico, contra a natureza. Opera-se uma busca por um objeto

    impossvel, algo que no poder ser realizado, mas mesmo assim far de tudo para

    realizar. O artista um dipo cego, que no sabia que a esfinge era sua musa.

    (BLOOM, 1991, p. 39) Uma paixo solipsista pela busca dos segredos da musa. Sua

    preocupao a formao da identidade autctone do poeta, mas no como uma

    conscincia cartesiana ou formalista. A identidade s se constri como conflito, ela

    antittica (ou antinatural).

    Para Bloom, o sentido de um texto est sempre entre textos, fazendo com que

    cada texto seja uma figura para o texto maior, entendido aqui como a tradio. O nvel

    de figurao ser qualificado pelas figuras dos movimentos nos textos entre si. Todo

    texto uma leitura de outro texto e essa leitura sempre defensiva, uma desapropriao

    (misprision). (Idem, p. 36)6 Toda leitura no domnio interpotico sempre contra a

    influncia.

    A angstia da influncia no apenas um processo psquico de um autor isolado.

    um processo psquico, social, esttico, cultural e cognitivo que se perfaz nas relaes

    6Harold Bloom retira esse termo da potica shakespeariana. No soneto 87 de Shakespeare a voz lrica d

    adeus a algo muito caro para ser possudo e cujos laos entre ambos j esto todos determinados. A nicamaneira de possuir este objeto valioso desviando-se e o presente deste objeto uma desapropriaocrescente (misprision).

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    poticas. A imaginao s pode se realizar como um enfrentamento constante, do

    contrrio fica paralisada dentro dos conceitos j instalados pela tradio potica. A

    nica sada do poeta o desvio (swerve) destes conceitos. Neste ponto Bloom busca

    confirmao pelas ideias de Nietzsche e Paul Valry tratando o pensamento como

    processo ficcional e assim permitindo que as construes tradicionais possam ser

    absorvidas e reconstrudas. (Idem, p. 112)

    Nestes termos a leitura no passa de um ato tardio, de certa maneira at mesmo

    um ato impossvel. Para engendr-la necessrio imaginao e cognio alm do que

    proposto pela obra literria. Aqui entra outro dos termos de Harold Bloom, ao afirmar

    que no se realizam leituras, mas desleituras (misreadings). Afirmar que a literatura

    influncia afirmar que ela intertextual e que obrigatoriamente leva a um momento de

    interpretao.

    A principal diferena de Bloom para os desconstrutores est na relevncia que

    estes do posio da linguagem como uma forma privilegiada de explicao, ou forma

    de prioridade. Para Bloom essa obsesso moderna no deixa, ela mesma, de ser um

    tropo, ou seja, no deixa de ser uma forma de alterar nomes ou significados. Bloom

    assume a desconstruo dentro de seu prprio mtodo, apenas ressaltando-a como

    insuficiente para a realidade potica. (BLOOM, 1995, p. 175) De qualquer maneira,

    esse acesso desconstruo ocorre mais atravs de Nietzsche do que do prprio

    Derrida. O que importa ficar claro que da (des)leitura destes autores ele props uma

    teoria da influncia que no uma teoria da aluso potica. O que o poema mostra no

    to interessante quanto aquilo que esconde ou deixa de fora.

    A angstia da influncia o temor do poeta de que sua voz no seja sua, otemor constante da usurpao de seu texto pela voz de outros. Contra estaangstia, a teoria de Bloom oferece a cura pela escuta, terapia paradoxalquando foi criada a vinte anos, no ambiente normativo da textualidade, mas

    que se mostra hoje proftica das preocupaes de uma nova gerao, e noapenas por fora de influncia.(Idem, p. 115)

    A noo de influncia aqui exposta transcende a ideia de uma mera apropriao

    passiva entre grandes escritores. Como j se afirmou, a preocupao de Bloom no

    realizar um estudo das fontes, mas uma teoria7do processo potico. Sua crena bsica

    7A teoria a que Bloom se refere no a mesma exposta por Jonathan Culler como questionamento dosenso comum, ou mesmo ... um conjunto de reflexo e escrita cujos limites so excessivamente difceis

    de definir (CULLER. 1999 pg.12)Sua ideia reside em uma expanso do texto potico atravs do textocrtico, enquanto desleitura que proporciona mais desleituras. Logo, a diferena entre crtica e poesia seriaapenas de grau, nunca de natureza.

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    consiste em uma sofisticao das ideias de Percy Shelley em A defense of Poetry,na

    qual h uma valorizao da imaginao sobre os processos racionais-discursivos do

    homem. Nessa viso no haveria poemas, mas apenas uma grande poesia que re-

    escrita permanentemente por todos os poetas. A influncia no gera poesia, ela poesia,

    ela arte.

    A angstia transforma-se em um processo de renovao como um ciclo vital do

    poeta-como poeta. Este ciclo obedece seis estgios que Bloom chama de revisionary

    ratios, ou seja, razes revisionrias mais ou menos arbitrrias que regem a influncia

    entre autores. Estas razes so tambm defesas psquicas e tropos de linguagem,

    mostrando que seu aspecto estrutural fortemente mutante e, portanto, aberto aos mais

    variados tipos de transformao.

    A retrica literria caracteriza-se por uma alterao dos usos ordinrios da

    linguagem. Essa ao acontece atravs das figuras de linguagem, ou tropos, que podem

    ser entendidos como aquele elemento que desvia significados ou gera efeitos especiais

    no rearranjo das palavras. A posio da retrica crescente e chega a ganhar um espao

    no processo lingustico:

    Some theorists have even embraced the paradoxical conclusion that languageis fundamentally figurative and that what we call literal language consists of

    figures whose figurative nature has been forgotten. When we talk ofgrasping a hard problem, for instance, these two expressions becomeliteral through the forgetting of their possible figurality.8(CULLER, 1999, p.70-71)

    A retrica utilizada na crtica literria da contemporaneidade a transformao

    das palavras enquanto tropos. Trata-se do procedimento em que as palavras adquirem

    novos significados pelo seu deslocamento, supresso, inverso ou composio.

    Basicamente, se faz um novo uso da palavra que a distancia da sua utilizao habitual,

    obtendo uma nova variabilidade de sentidos que no existiam antes.Harold Bloom relaciona os tropos com o que chama de razes revisionrias,

    termos tomados emprestado de fontes clssicas e, ao mesmo tempo, revises de usos

    contemporneos9. Clinamen, termo utilizado por Lucrcio para descrever o movimento

    8 Alguns tericos tm at mesmo a concluso paradoxal de que a linguagem fundamentalmentefigurativa e que o que chamamos linguagem literal constitudo por figuras cuja natureza figurativa foiesquecida. Quando falamos de 'agarrar' a 'problema difcil ", por exemplo, estas duas expresses setornam literais atravs do esquecimento de sua possvel figuratividade.9

    Essa configurao no uma construo plenamente Bloomiana, pois foi inspirada em ideias deKenneth Burke e redigidos inicialmente por Paul de Man. Agrande inovao de Bloom ser no sextoestgio: Metalepse.

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    dos tomos, o primeiro estgio, a desleitura propriamente dita, o desvio de um poeta

    sobre um precursor, a base para as outras formas de deslocamento. A figura literria

    relacionada com ele a Ironia, dizer algo, mas com um sentido diferente. O primeiro

    passo , pois, um desvio daquilo que foi apresentado.

    Tessera, palavra ancestral que Bloom toma de Lacan, a complementao do

    precursor na obra do poeta novo. No basta apenas desviar-se da proposta retrica do

    precursor, deve-se acrescentar algo que este no pensou. A figura relacionada a

    sindoque, a parte pelo todo. Como se o poeta efebo mostrasse que algum termo do

    precursor mais amplo do que ele havia imaginado.

    Kenosis o esvaziamento do poeta, um mecanismo de ruptura semelhante s

    compulses de repetio estudadas na psicanlise. O poeta tardio isola-se de tudo para

    afastar a influncia do precursor, do contrrio sentiria a necessidade de repetir o modelo

    herdado. O tropo relacionado a metonmia, a troca do continente pelo contedo. Como

    se tomasse a forma do precursor, mas no obedecesse a seu significado, seu sentido.

    Demonizao (Daemonization), o quarto movimento, um deslocamento em

    forma de contra sublime, um sublime desviante ou at mesmo contrrio ao que o

    precursor props. Seu termo literrio a hiprbole, um exagero desmedido, pois amplia

    a figura anterior, mas no como personalidade. um movimento de individuao do

    poeta efebo, desindividualizando o percursor, transformando-o em desejo, em um

    objeto de fruio para o efebo.

    Askesis o truncamento das habilidades do poeta novo, uma espcie de ascese

    pessoal que permite-lhe interpretar o poeta anterior. Limitando a prpria personalidade a

    ponto de poder trocar de lugar com seu precursor. Sua figura retrica a metfora, a

    troca de significado por uma relao analgica.

    Apophrades o ltimo estgio e traduzido como o retorno dos mortos. A

    apropriao final do poeta anterior pelo posterior, o poeta precursor volta como se fosseum poeta efebo. a figura literria mais complexa, a metalepse, ou transuno, onde o

    antecedente pode ser tomado pelo conseqente e vice-versa. O poeta alcanaria a iluso

    mxima fazendo-se parecer anterior ao poeta que o influenciou.

    O ato de rebelar-se e buscar espao para sua prpria imaginao , portanto, um

    ato de conhecer. Indo alm, pode-se inferir que o conhecimento literrio transforma-se

    em auto-conhecimento, pois toda leitura de uma obra uma construo e criao de si

    mesmo. Neste contexto o encenador deve escapar da influncia do Deus/Naturezaliteratura criando a si mesmo na encenao. O escritor um demiurgo, um criador de

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    universos, que ao encontrar o leitor atravs de sua obra provoca-o a ser ele tambm um

    arquiteto de novos mundos. Neste campo fica clara a associao bloomiana dos tropos

    com os mecanismos de defesa de Freud.

    Os mecanismos de defesa freudianos aparecem como medidas extremas para

    aliviar a tenso que surge quando o ambiente gera ansiedade, dificultando a satisfao

    do desejo. Tais procedimentos psicolgicos caracterizam-se por seu processo

    inconsciente, mas principalmente porque distorcem, falsificam e negam a realidade.

    (Idem, pg.63)

    Para a ironia juntou a reao formativa, onde a pessoa, querendo aliviar

    ansiedades, reage com uma ao contrria aos seus sentimentos. Para a sindoque

    fundiu a reverso, uma mudana ao no direcionamento do desejo. Para a metonmia

    apontou a anulao, o isolamento, a interrupo de um pensamento com os outros, e a

    regresso, onde o ego recua, fugindo do conflito, para um estgio anterior. Na hiprbole

    encontrou a represso, onde se tenta fazer desaparecer os contedos psquicos

    ameaadores. A metfora a defesa da sublimao, a canalizao de desejos para algo

    socialmente aceito. Enquanto a metalepse configura-se com a introjeo, incorporao

    destrutiva de um objeto, e a projeo, atribuio de um impulso a outra pessoa.

    (BLOOM, 1994, pg.12)

    Harold Bloom configurou as razes dentro do princpio de trades dialticas:

    limitao/substituio/representao. Sua inspirao vem da cabala lurinica10 para

    utilizar as ratios apenas como instrumento heurstico. O movimento tridico

    obedeceria um ritmo de contrao, separao e reagregao. Na cabala judaica Deus se

    auto-ocultaria, concentrando-se em si mesmo, para gerar algo diferente de si. Esse

    movimento inicial geraria um segundo, uma catstrofe no sentido de quebra ou ruptura,

    separando o criador da criatura. O terceiro e ltimo movimento um processo salvador

    de restaurao, gerando algo novo, no caso da cabala, o ser humano. Aplicado aoprocesso literrio, o poeta efebo para criar teria de voltar-se sobre si e seu precursor,

    romper o sentido estabelecido no texto e gerar um novo sentido pelo qual o

    dominante.

    A teoria de Bloom, no entanto, tem algo mais importante do que este

    vocabulrio hermtico. Sua preocupao verdadeira a constituio do poeta forte, o

    poeta capaz de sobreviver ao conflito edipiano com a tradio criando para si um lugar

    10Isaac Luria, cabalista renascentista.

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    ao sol e mentir contra o tempo narrando a si mesmo como um incio. Sua teoria mais

    radical do que muitos autores gostariam de acreditar.

    No existe nenhum suporte metafsico por trs do poema, o que faz com que a

    ideia de poema individual desaparea, bem como a prpria ideia de poeta ou leitor. Para

    Bloom s existem intrpretes, sejam de interpretaes prvias ou prprias, mas sempre

    sero atos interpretativos. As relaes entre poetas no ficam adstritas a um espao

    tempo linear e cronolgico, pois, como visto anteriormente, a criatividade no passaria

    de uma illusio, um equvoco proposital do artista ao procurar distanciar-se de algo

    que o cerca e o ameaa, pelo menos em nvel potico.

    O artista escreve uma obra para ser nica e luta contra a possibilidade de ter

    chegado tardiamente ao realizar sua produo. Seu combate no exige que conhea

    outros poetas precursores contra os quais se ope. O ato de desleitura/produo j est

    carregado com as ansiosas necessidades de reviso. Por esta razo pode-se afirmar que

    sua noo de influncia transcende limites espaciais e temporais, o poeta no precisa ter

    lido nenhum poeta precursor para que a angstia da influncia estabelea-se.

    O funcionamento dessa inferncia de sentidos que Bloom defende escora-se na

    sua ideia de gnosticismo. Na sua etimologia, gnose significa conhecimento em oposio

    ignorncia. Termo utilizado para designar a doutrina religiosa do cristianismo antigo.

    Basicamente apoia-se na noo de que as relaes religiosas seriam relaes de um

    conhecimento profundo do homem com a experincia divina. (MARTIN, 2006, p. 15)

    Relacionando com os ensinamentos do filsofo Vico11, Bloom afirma o seguinte:

    O que o gnstico sabe, o que ele conhece, sua prpria subjetividade e nessaautoconscincia procura a liberdade, que chama de salvao, o que

    pragmaticamente parece ser a liberao da angstia de ser influenciado peloDeus judaico, a Lei bblica ou a natureza. Os gnsticos esto prximos, portemperamento, tanto dos primitivos mgicos de Vico quanto dos poetas ps-iluministas; sua luta com as palavras que os separavam de sua prpria palavra

    foi essencialmente a mesmade qualquer criador tardio contra seu precursor.(BLOOM, 1994, p. 22)

    O gnosticismo era uma religio de intelectuais que acreditava no na liberdade

    da alma, mas em uma liberdade do eu, naquilo que existe de divino na prpria

    subjetividade. A gnose aqui levantada no um conhecimento racional como so as

    cincias exatas, mas um conhecimento potico, algo que altera o conhecido e o

    11Giambattista Vico (1668 - 1744) filsofo e historiador italiano que defendia o poder criativo e poticonas religies antigas.

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    conhecedor ao mesmo tempo, uma relao mtua que se constitui em uma unidade.

    (BLOOM, 1983, p. 5)

    As relaes poticas, assim sendo, no so relaes reais, mas relaes

    cognitivas que so ao mesmo tempo textuais e transtextuais. A proposta bloomiana nega

    tanto os diversos tipos de tautologia, que estudam o significado do texto como se fosse

    um texto fechado, e de reducionismos, que estudam o significado do texto em outro

    texto fora dele. O significado de um texto literrio outro texto literrio, criado

    originalmente pela desleitura. Assim, no h interpretao situada entre o texto e o

    significado, mas entre o texto e as suas leituras. A significao passa a ser sempre

    flutuante e se d em uma dinmica de contraposies, onde a leitura impera como um

    processo de superao do que lido. Uma batalha de formas persuasivas que sempre

    elidem o significado, ou parte deste, permitindo que se realizem novos significados.

    O leitor no deve buscar um significado escondido, uma compreenso das

    relaes ocultas na literatura, porque estas no existem. A linguagem uma construo

    arbitrria, e segundo Bloom, dependente da imaginao do ser humano. A imaginao

    a fora autoritria e prioritria sobre a linguagem. No h uma gramtica capaz de

    explicar os escritores, so estes que com suas obras estabelecem as gramticas. Assim,

    cabe ao leitor produzir o sentido com seu poder imaginativo12. Como ele mesmo

    argumenta no livro Como e Porque ler? citando o filsofo transcendentalista Ralph

    Waldo Emerson:

    Recorro, novamente, a Emerson para definir o quarto princpio da leitura:Para ler bem preciso ser inventor. O que, para Emerson, seria leituracriativa foi por mim chamado de leitura equivocada, expresso que levoumeus adversrios a crer que eu sofresse de dislexia. O fracasso, ou o branco,que tais indivduos veem quando se deparam com um poema est em seus

    prprios olhos. Autoconfiana no dom, mas o Renascimento da mente, oque s ocorre aps anos de muita leitura. (BLOOM, 1998, p. 21)

    O poder da desleitura ao mesmo tempo fonte de liberdade e exigncia criativa.

    As anlises do crtico podem ir muito alm das barreiras da poesia. Entrar no jogo da

    angstia da influncia travar uma luta entre anterioridade e posteridade. O leitor deseja

    afastar-se do que l, mesmo que esteja enredado pelo passado.

    A angstia da influncia uma teoria da leitura, metacrtica literria, estratgia

    de literatura comparada, filosofia esttica, intertextualidade potica, psicologia e

    sociologia da arte. Sua complexidade aparece na sua capacidade de estabelecer relaes

    12Talvez seja importante constar que Harold Bloom no defende uma leitura relativista independente deautores. So os autores, com seu poder retrico-cognitivo-esttico que provocam as leituras criativas.

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    entre textos e autores. Bloom defende que so sempre relaes hierrquicas, mas no

    que sejam estveis ou caducas. Sua viso permite uma metamorfose constante, contanto

    que no se perca de vista a luta necessria para a transformao. A literatura vontade

    de potncia e criatividade. Onde houver imaginao haver luta, haver complexidade,

    haver influncia.

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