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A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo mercantil (c.1750 – c.1800) Alexandre Vieira Ribeiro Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Doutor em História Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio Rio de Janeiro Maio/2009

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A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de

escravos, grupo mercantil (c.1750 – c.1800)

Alexandre Vieira Ribeiro

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

História Social, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do

titulo de Doutor em História

Orientador: Antônio Carlos Jucá de

Sampaio

Rio de Janeiro

Maio/2009

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A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de

escravos, grupo mercantil (c.1750 – c.1800)

Alexandre Vieira Ribeiro

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A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil (c.1750 – c.1800)

Alexandre Vieira Ribeiro

Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História

Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor

em História Social.

Aprovada por:

_________________________________________________

Presidente, Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ)

________________________________________

Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso (UFRJ)

_________________________________________

Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (UFF)

_________________________________________

Prof. Dr. Carla Maria Carvalho Almeida (UFJF)

_________________________________________

Prof. Dr. Roberto Guedes Ferreira (UFRRJ)

Rio de Janeiro

Maio/2009

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Ficha Catalográfica

RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil (c.1750 – c.1800)/ Alexandre Vieira Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. xiii, 256f.: il; 31 cm. Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio Tese (Doutorado) – UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. Referências Bibliográficas: ff. 234-45. 1 – Brasil. 2 – Colônia. 3 – Bahia. 4 – Estrutura econômica. 5 – Grupo mercantil. I –Ribeiro, Alexandre Vieira. II – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Social. III – Título: A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil (c.1750 – c.1800)

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq que financiou o início da pesquisa e a CAPES que financiou o último ano

deste estudo.

Ao professor doutor Antônio Carlos Jucá de Sampaio pela paciência, confiança e

generosidade de sua orientação, contribuindo sempre com sugestões e críticas pertinentes

ao trabalho, fundamentais no desenvolvimento e no término da tese.

Aos professores doutores João Fragoso, Carlos Gabriel, Carla Almeida e Roberto

Guedes pela disponibilidade em compor a banca de avaliação deste trabalho.

Agradeço ainda ao professor João Fragoso, por ter me possibilitado adentrar no

ambiente de pesquisa acadêmica, quando ainda iniciava meus estudos na graduação de

história no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, bem como suas valiosas

apreciações a respeito deste trabalho durante o exame de qualificação.

Do mesmo modo, agradeço ao professor Carlos Gabriel por sempre se mostrar

solicito, pelas inúmeras indicações bibliográficas e sugestões importantes não só emitidas

quando da qualificação deste trabalho, mas sempre que solicitado por mim, que

contribuíram sobremaneira para o bom desenrolar deste estudo.

Ao amigo Carlos Kelmer Mathias, com quem pude sempre travar um diálogo

proveitoso na elaboração da tese, além de generosamente ter me concedido informações

documentais.

A Roberto Guedes, Rodrigo Amaral e demais colegas de ofício que compõem o

grupo de discussão ART, que sempre me incentivaram, muitas vezes contribuindo com

dicas importantes para o bom desenrolar da minha pesquisa.

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Ao meu amigo Daniel Barros Domingues da Silva, que mesmo a distância se fez

presente sempre que requisitado ao longo do caminhar deste estudo.

Aos meus amigos Samantha Quadrat, Leandro Malavota, Claudiane Torres, Denise

Ribeiro, Heloísa Gesteira, que me proporcionaram momentos de extrema felicidade nesses

últimos quatro anos e que sempre foram grandes incentivadores desse trabalho.

A Juliana Beatriz, por ter estado sempre ao meu lado, mesmo nas horas mais

difíceis, por me proporcionar momentos de descontração e diversão nestes últimos tempos.

Por fim, a minha mãe, Eliana Vieira Ribeiro e meu pai, César A. da Fonseca

Ribeiro ao carinho e amor incondicionais, fundamentais nesta minha trajetória.

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RESUMO

Esse estudo está focado na análise dos padrões de investimentos e formas de transmissão

de propriedades rurais, urbanas e mercantis na cidade de Salvador, bem como do sistema

de crédito disponível na cidade, na segunda metade do século XVIII. Buscamos, desta

forma, analisar o comportamento dos diversos agentes sociais residentes na cidade. Como

pano de fundo, trabalhamos a paisagem sócio-econômica da capital baiana desde sua

fundação até o limiar do século XIX, com destaque para a atividade comercial,

notadamente do tráfico de escravos, mecanismo fundamental para a reprodução física do

escravo na colônia e acumulação de capital. A renda obtida na atividade mercantil era

direcionada para diversos setores, mostrando o grau de complexidade atingido pela

sociedade soteropolitana. No mundo colonial, riqueza e prestígio eram requisitos

fundamentais para a obtenção de respeitabilidade e status, assim, num segundo momento,

procuramos analisar trajetórias individuas de alguns dos mais proeminentes homens de

negócio, em sua maioria traficantes de escravos, estabelecidos na cidade de Salvador na

segunda metade do Setecentos.

Palavras-chave: Salvador, século XVIII, tráfico de escravos, mercado, crédito, prestígio.

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ABSTRACT

This dissertation analyzes the patterns of investment and forms of transmission of rural,

urban and mercantile properties in Salvador, Bahia, as well as the credit system available

in the city during the second half of the eighteenth century. It traces the behavior of several

social agents resident in Salvador, providing the socio-economic landscape of the city

since its foundation to the beginning of the nineteenth century, and focusing on its

commercial activity, notably the slave trade, the principal means for the reproduction of

the slave population and the accumulation of capital in Salvador. The revenue produced by

the mercantile activity was directed to several economic activities, showing the

sophistication achieved by the city’s society. In the colonial world, wealth and prestige

were prerequisites for individuals to achieve respect and status. As a consequence, this

dissertation also traced the individual trajectories of some of the most prominent

merchants, many of them notorious slave traders, established in Salvador during the second

half of the eighteenth century.

Keywords: Salvador, eighteenth century, slave trade, market, credit, prestige.

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Sumário

Relação dos quadros, gráficos e anexos ..........................................3

Abreviaturas.....................................................................................7

Introdução.........................................................................................8

Capítulo 1 - Aspectos sócio-econômicos da cidade de Salvador....23

A cidade de Salvador.......................................................................................24

A população de Salvador................................................................................31

Açúcar, tabaco e farinha.................................................................................37

O tráfico transatlântico de escravo.................................................................55

Capítulo 2 - O mercado de compra e venda dos bens rurais, urbanos

e comerciais.....................................................................................78

Capítulo 3 – Crédito e empréstimos..............................................113

As escrituras públicas de crédito em Salvador.............................................120

Concentração dos empréstimos.....................................................................152

Capítulo 4 – Formas de aquisição e transmissão de bens e

Riquezas........................................................................................ 158

Bens rurais....................................................................................................159

Bens urbanos.................................................................................................175

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Capítulo 5 - Enobrecimento numa sociedade de Antigo Regime:

traficantes de escravos na Bahia, algumas trajetórias pessoais.....185

Preconceito sobre o comércio e os comerciantes.........................................187

As sociedades mercantis e o tráfico de escravos..........................................191

Escolhas matrimoniais.....................................................................................198

A conquista de honrarias..............................................................................207

Ser membro de uma irmandade.....................................................................218

Acesso a postos da governança local............................................................220

O investimento em terras...............................................................................225

Ocupação de postos de ordenança................................................................226

Considerações Finais.....................................................................231

Fontes e Bibliografias....................................................................234

Anexos..... .....................................................................................246

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Relação de quadros

Quadro 1.1 - Quadro 1.1 – Freguesias urbanas de Salvador, 1801.................27

Quadro 1.2 – Freguesias suburbanas de Salvador, 1801.................................28

Quadro 1.3 – População de Salvador, 1706 – 1805........................................34

Quadro 1.4 – Estimativas do volume de escravos desembarcados na Bahia,

1681-1855........................................................................................................61

Quadro 1.5 – Volume do comércio de escravos na Bahia, 1582-1851...........63

Quadro 1.6: Movimento de negreiros e volume de escravos desembarcados na Bahia, 1581-1700............................................................................................65

Quadro 1.7 – Percentual de escravos desembarcados em Salvador distribuídos

pelas regiões da partida do navio, c.1560-1851..............................................66

Quadro 1.8 – Origem africana dos escravos desembarcados na Bahia, c.1580-

1850 (% de escravos desembarcados).............................................................69

Quadro 2.1 – Participação percentual dos diversos tipos de vendas no valor

total transacionado na cidade de Salvador entre 1751 e 1880.........................80

Quadro 2.2 – Valor médio dos bens arrolados nas escrituras de compra e

venda em Salvador, 1751-1800.......................................................................91

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Quadro 2.3 - Participação das atividades econômicas (%) nos inventários

post-mortem de Salvador, 1760-1800.............................................................94

Quadro 2.4 - Categoria Social presente na maior faixa de fortuna (10%)

observada nos inventários baianos, 1760-1808.............................................106

Quadro 2.5 – Participação dos homens de negócios na compra de bens rurais,

1751-1800......................................................................................................109

Quadro 3.1 - Participação do crédito frente ao percentual de vendas e do valor

total transacionado na cidade de Salvador, entre 1751 e 1800......................121

Quadro 3.2 – Tipos de credores em Salvador, 1751-

1800.............................123

Quadro 3.3 – Instituições fornecedoras de crédito no mercado de Salvador,

1751-1800......................................................................................................126

Quadro 3.4 – Soma total dos empréstimos efetuados pela Santa Casa de

Misericórdia de Salvador por década, 1751-1800.........................................128

Quadro 3.5 – Participação de cada grupo de credores no sistema de crédito em

Salvador, 1751-1800.....................................................................................135

Quadro 3.6 – Concentração total dos empréstimos nos 10% maiores, 1750-

1800...............................................................................................................152

.

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Quadro 3.7 – Concentração total dos empréstimos nos 50% menores, 1750-

1800................................................................................................................15

2.

Quadro 4.1 – Formas de aquisição dos bens rurais vendidos em Salvador,

1751-1800......................................................................................................160

Quadro 4.2 - Formas de aquisição dos bens rurais vendidos no termo de Vila

do Carmo, capitania de Minas Gerais, 1711-1756........................................167

Quadro 4.3 – Formas de aquisição dos bens urbanos vendidos em Salvador,

1751-1800......................................................................................................175

Quadro 4.4 - Formas de aquisição dos bens urbanos vendidos no termo de

Vila do Carmo, capitania de Minas Gerais, 1711-1756................................178

Quadro 4.5 – Formas de aquisição dos bens comerciais e embarcações

vendidas em Salvador, 1751-1800................................................................181

Relação de gráficos

Gráfico 1.1: Médias qüinqüenais de entradas estimadas de escravos africanos

na Bahia, (1582-1855).....................................................................................71

Gráfico 2.1 – Média dos valores dos bens urbanos, Salvador, 1751-1800.....84

Gráfico 2.2 – Médias qüinqüenais dos índices de preços, Salvador,

1741-69............................................................................................................86

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Gráfico 2.3 – Bens adquiridos pelos homens de negócios de Salvador, 1751-

1800...............................................................................................................108

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Abreviaturas

ACSM = Arquivo da Casa Setecentista de Marina

AHMS = Arquivo Histórico Municipal de Salvador

AHU = Arquivo Histórico Ultramarino

APEB = Arquivo Público do Estado da Bahia

BNRJ = Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

CA= Castro Almeida

ECV = Escritura de compra e venda

IHGB = Instituto Histórico Geográfico Brasileiro

LN = Livro de notas

N. E. = Número de escrituras

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INTRODUÇÃO

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Já há algum tempo, a praça mercantil de Salvador tem sido objeto de nossas

investigações. No mestrado a analise recaiu sobre o perfil e o comportamento do tráfico

de escravos baiano entre 1680 a 1830. No doutorado expandimos a análise, focando o

estudo nas características sócio-econômicas de Salvador na segunda metade do século

XVIII. Nesse momento, o nosso interesse foi entender a dinâmica desenvolvida nas formas

de aquisição e transmissão de bens, e a compreensão de como se processava o sistema de

crédito. Buscamos analisar as esferas de atuação dos principais atores sociais, verificando o

peso da participação de cada grupo nas mutações surgidas nessa sociedade pré-industrial.

Elegemos como grupo principal a ser seguido os homens de negócio, pois estes a partir do

último quarto do Setecentos, passaram a ter destaque na complexa estrutura da vida

colonial.

A noção-chave a ordenar o presente trabalho é a de economia pré-industrial (ou

arcaica), desenvolvida por Karl Polanyi quando do estudo do processo de formação da

economia de mercado no século XIX. Para tal autor, a partir da Revolução Industrial a

propagação das máquinas e das fábricas especializadas tornou necessária a produção de

uma grande quantidade de mercadorias, visando compensar os custos. Além disso,

demandava-se igualmente altos graus de realização dos produtos resultantes, não sendo

facultada a interrupção da produção por falta de matérias-primas. Logo, todos os fatores

envolvidos no processo produtivo deveriam estar à venda em quantidades tais, de forma a

possibilitar a sua aquisição por parte de qualquer pessoa disposta a por eles pagar. Por

certo, em se tratando de uma sociedade agrária, tais condições foram sendo criadas

gradualmente, implicando numa transformação da motivação da ação. Da subsistência,

passou a ser o lucro o norteador das ações dos membros da nova sociedade.1

1 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 59-60.

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Em uma economia industrial, todas as trocas estariam relacionadas a negociações

monetárias. As rendas, por seu turno, derivariam de algum tipo de venda (realização),

incluindo-se aí as necessárias ao provimento de subsistência de cada indivíduo. Isto

caracterizaria, portanto, a formação de um Sistema de Mercado. Ademais, para o perfeito

funcionamento do sistema seria preciso a não interferência de qualquer agente externo ao

mesmo. Por meio do binômio procura/oferta os preços se auto-regulariam. Em última

análise, neste tipo de mercado a esfera econômica estaria separada da esfera sócio-

política.2

Nas sociedades ainda não sujeitas ao Sistema de Mercado, ao contrário, a economia

estaria atrelada às relações sociais. O lucro não as moveria prioritariamente, e os

indivíduos agiriam de modo a proteger a sua situação, o seu patrimônio e as suas

exigências sociais. Os bens materiais não seriam tomados como valores estritamente

econômicos. Antes se encaixariam em processos de produção e circulação atrelados a

determinados interesses sociais, seja de prestígio, seja de subsistência. Logo, o sistema

econômico estaria determinado por motivações “não-econômicas”,3 traduzidas em

paradigmas tais como dotes, alianças políticas, relações de parentesco, de compadrio, etc.4

Além disso, por não possuírem mecanismos de auto-regulação econômica, o homem (o seu

trabalho) e a natureza (matéria-prima) não seriam visto como mercadorias imersas em um

contínuo comprar e vender. Em suma, no quadro esboçado por Polanyi a venda da força de

trabalho não era considerada condição para que os indivíduos provessem a sua

subsistência, caracterizando uma frágil divisão social do trabalho. Isto implicava em uma

baixa circulação de numerário e bens, redundando numa fraca liquidez (crédito) nesta

organização econômica. Além disso, por serem bastante influenciadas por redes de

2 Ibidem, pp.59-62. 3 Ibidem, p. 65. Cf. também, a este respeito, as observações THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. 4 Cf. KULA, Witold. Teoria econômica do sistema feudal. Lisboa: Ed. Presença, 1979.

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relações sociais, e não somente por condições de mercado, em tais economias os

investimentos e o excedente se direcionavam a manutenção de uma hierarquia social em

princípio desigual.5

Discípulo de Polanyi, Giovanni Levi buscou conceituar melhor a noção de redes de

relações sociais a partir do estudo do mercado de terras em Santena, uma comunidade

camponesa do Piemonte do século XVII. De acordo a ele, ali as relações de sociabilidade

podiam ser entendidas como estratégias dos indivíduos, que não se esgotavam em uma

racionalidade visando o lucro: estavam, antes, ligadas à busca da constituição e controle do

mundo natural e social.6 Dessa forma, as flutuações dos preços da terra deveriam ser

apreendidas em um contexto no qual compradores e vendedores uniam-se por laços

parentais, de vizinhança, de clientelismo e, mesmo, de dependência pessoal, ligações estas

a determinar o valor das propriedades negociadas.7 A idéia de estratégia, e com ela a de

negociação/conflito, é fundamental como instrumento de análise das sociedades coloniais

lusas.8 Por estarmos trabalhando com uma sociedade regida pelos valores e práticas

arcaizantes, o dom9 adquire aqui toda sua importância. Nessas sociedades os mecanismos

de distribuição do poder eram caracterizados pela formação de “redes clientelares” e pelas

5 Fernand Braudel aponta que em sociedades preocupadas com a manutenção de suas hierarquias, como a européia entre os séculos XV-XVIII, nem sempre os excedentes econômicos tinham uma direção produtiva, sendo estes, de modo recorrente, aplicados no sentido de adquirir status social. Exemplo disso seriam os comerciantes atacadistas que, após acumularem grandes fortunas, compraram terras visando a promoção social, muito embora esse tipo de investimento não lhes fornecesse o mesmo montante de capitais que as atividades comerciais. Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo – séculos XV-XVIII. Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp.125-128 e 215-218(Volume 2). 6 Sobre as idéias de estratégias, Levi foi influenciado pelas idéias do antropólogo Fredrik Barth. Para este as ações individuais estavam calcadas em escolhas e cálculos. Os recursos que cada indivíduo possuía para tomar suas decisões estavam atrelados a sua cultura, a sua percepção de mundo. Porém, cabe ressaltar que os conhecimentos, as experiências e as orientações de cada sujeito variavam, por exemplo, devido a sua posição social, do mesmo modo que eram diferenciados os resultados obtidos, muitas vezes não sendo àqueles esperados, Cf. BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. 7 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte no século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.131-172. 8 As estratégias não se referem somente à nobreza ou aos grandes comerciantes. As negociações ocorriam nos diferentes segmentos das sociedades pré-industriais. Daí ser fundamental apreender os dons e os contra-dons que entrelaçavam os diversos agentes sociais. Sobre dom e contradom cf. GODELIER, Maurice. O enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 9 Cf. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974; GODELIER, op. cit., 2001.

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trocas de favores entre os indivíduos, baseada na “economia moral do dom”. O

Funcionamento desta economia do dom, assentava-se em três valores básicos : dar, receber

e restituir, tríade que regia a natureza das relações sociais e por conseguinte, das relações

de poder. Como não podia deixar de ser, as trocas regidas por tal sistema eram

profundamente desiguais. Tal prática foi bastante exercida no âmbito do Império português

através do acesso dos súditos a cargos da governança e pela concessão de honras e mercês

aos mesmos, prática bastante difundida entre os principais homens de negócio de Salvador.

A concessão de mercês tinha início com o rei e ia sendo transmitida a pessoas de menor

hierarquia de forma a reproduzir o poder e hierarquizar os sujeitos, inserindo-os em

relações de favor e dependência. 10 A economia política de privilégios deve ser trabalhada

no âmbito da negociação entre poder local e poder central, entre as redes pessoais e

institucionais de poder.11

Durante e após a constituição da sociedade colonial, as elites utilizaram diferentes

estratégias – dentre as quais políticas de alianças, sistemas de mercês e luta pelos cargos de

governança - para se manterem no topo da hierarquia econômica e administrativa da

colônia. As ligações existentes entre os funcionários régios e as elites locais evidenciavam

“ganhos” e “perdas” para ambos os lados. Todavia ao estabelecerem tais ligações, esses

indivíduos podavam a possibilidade de realizarem outras, requerendo, por parte deles, um

alto grau de refinamento na escolha de qual rede clientelar iriam se aliar. Dentre as

estratégias utilizadas pelas elites, a política de aliança foi amplamente empregada, como,

10 HESPANHA, Antônio Manuel & XAVIER, Ângela B. “As redes clientelares”. In: HESPANHA, Antônio Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editora Estampa, 1998, pp. 340-2. 11 Levi aponta que as escolhas individuais estavam baseadas na política de prestígio. Segundo ele, as sociedades pré-industriais eram assimétricas e desiguais, contudo um camponês poderia usar sua dependência frente a um senhor como cálculo econômico. Cf. LEVI, Giovanni. Centro e periferia di uno stato assoluto: tre saggi su Piemònte e Liguria in età moderna. Rosenberg & Sellier, s/d. Transpondo a teoria de Levi para a América portuguesa podemos supor que havia trocas desiguais entre senhor e escravo, onde ambos saíam ganhando. Do mesmo modo é de se supor que os colonos mantivessem com a administração régia na colônia esse sistema de trocas.

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por exemplo, as constituídas no século XVIII via matrimônio entre os grandes

comerciantes de Salvador e a elite agrária da Bahia.12

De posse de alguns desses conceitos, Fragoso e Florentino, em estudo sobre o Rio

de Janeiro (c. 1790-c. 1840), assumem que a reprodução social se dava a partir de um

mercado colonial atlântico de natureza não-capitalista. A produção da mão-de-obra escrava

no continente africano ocorria por meio de mecanismos não-econômicos, fundados na

violência, implicando, pois, na apropriação social do trabalho alheio. Tal fato explica o

baixo preço dos cativos. Ao trabalho escravo, soma-se a existência de uma grande

variedade de formas de produção não-capitalista no interior da colônia, como a peonagem

e o campesinato, que garantiam uma oferta elástica de alimentos e insumos básicos a baixo

custo, além do fator terra, livre por definição.13 Portanto, as principais variáveis para se

entender o mercado atlântico colonial, são: o homem (escravo), alimentos e terras livres.

Associando semelhante contexto à estratégia metropolitana, voltada para a apropriação do

resultado final da economia colonial através do lucro sobre a alienação (comércio), os

autores desvelam a pré-condição para o surgimento e posterior consolidação hegemônica

do capital mercantil da Colônia no âmbito do mundo atlântico.14

Eis as noções (economia pré-industrial, redes de relações sociais/estratégias, e

sistema atlântico) que nos ajudarão a apreender aspectos sócio-econômicos bem como a

atuação de agentes sociais na cidade de Salvador na segunda metade do século XVIII.

No período abordado neste trabalho, Salvador deixou de ser o centro administrativo

do Brasil, com a mudança da capital para o Rio de Janeiro. Porém, a cidade portuária ainda

exercia um papel fundamental para a economia da América lusa. Seu porto era o segundo

em volume de desembarques de cativos africanos em terras brasileiras o que dava a cidade

12 FLORY, & SMITH, op. cit., 1978, pp. 576-7. Segundo Levi, o casamento era uma excelente oportunidade para as escolhas individuais. LEVI, op. cit., s/d. 13 FRAGOSO e FLORENTINO, op. cit., 1998, p.28. 14 Ibidem, p. 28-29.

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um caráter dinâmico no que tange ao fluxo comercial. Desta maneira, a capital baiana foi

um pólo que atraiu uma gama de homens ávidos a investirem nas atividades mercantis.

Muitos dos quais acabaram se enriquecendo e galgando um status diferenciado.

A história de Salvador tem sido apresentada sob diversas visões e discursos, como

registro de viajantes, narrativas com descrições de fatos ocorridos na cidade e ser entorno,

descrições pormenorizadas elaboradas por cronistas coevos e trabalhos acadêmicos que

sistematizaram o conhecimento a cerca da primeira capital do Brasil. Muitos desses

estudos se concentram nos séculos XIX e XX, períodos que ultrapassam nosso tema de

pesquisa. Cabe a nós destacar alguns autores que contribuíram sobremaneira na

compreensão da história dessa região durante a época colonial.

Um primeiro grupo de relatos históricos é formado por narrativas de fatos e

acontecimentos eventuais, sem possuirem necessariamente uma interligação. Essas

descrições não se propunham a escrever uma história integral de Salvador.15

Sebastião da Rocha Pitta16 passou a tratar em seus textos com mais detalhamentos

aspectos da cidade de Salvador. Em trabalho publicado no ano de 1730, analisou com

acuidade aspectos da “cidade da Bahia”, abordando particularidades de sua construção e

organização político-administrativa. Para tanto, estabeleceu uma análise cronológica dos

governos e governantes, bem como de seus respectivos feitos na Bahia do período colonial

José Antônio Caldas em seu trabalho descritivo de Salvador, escrito no ano de

1759, expõe os aspectos da urbe de maneira simples e encadeada, sem a preocupação de

analisar as diferentes características existentes na cidade. Nesse sentido, o autor retrata

15 GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província de Santa Cruz. São Paulo: Melhoramentos, 1971; SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ Editora da Usp, 1971; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo/Brasília: Melhoramentos/INL, 1975; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo/Brasília: Editora Nacional/INL, 1978. 16 PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.

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características política, administrativa, econômica, jurídica e religiosa, apenas utilizando-se

de referências nominais e quantitativas, sem demonstrar a dinâmica que envolvia essas

diversas categorias sociais.17

Luís dos Santos Vilhena foi quem melhor descreveu e representou a cidade de

Salvador do Setecentos. Disposto em vinte e quatro cartas, Vilhena abordou todos os

aspectos sócio-econômicos, político-administrativos que compunham a paisagem

soteropolitana. Em seus relatos, Salvador é concebida como uma unidade orgânica, um

verdadeiro mosaico urbano onde havia a interligação de aspectos, políticos, econômicos,

institucionais, geográficos, sociais, demográficos, culturais e religiosos.18

Há alguns relatos de viajantes estrangeiros,19 pouco preocupados em esmiuçar o

cotidiano da capital baiana. Debruçavam-se suas narrativas sobre aspectos que

consideravam pitorescos ou que lhes despertasse o interesse. Decorrentes de uma

percepção individual, muitas descrições de viajantes expunham impressões pessoais sobre

a cidade portuária, fazendo comentários, sobre espaço geográfico, construções, meios de

defesa, atividades econômicas, hábitos e costumes da população. Desprovidas de uma

análise aprofundada, resultavam em apenas comentários genéricos, de baixo conteúdo

qualitativo e reflexivo, quase sempre eivados por considerações depreciativas sobre a

sociedade como o emitido por le sieur Gentil de la Barbinais sobre a presença de escravos

na cidade de Salvador,

(...) todos os anos chegam mais de 25.000 [escravos] na Baía de Todos os

Santos, e contam-se mais de 1.500 a cidade de São Salvador (...) Esses

17 CALDAS, Antônio José. Notícia geral desta capitania da Bahia desde o descobrimento até o seu presente ano de 1759. Rio de Janeiro: IHGB, 1946. 18 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 3 vols., 1969. 19 FROGER, François. Relations du Voyage de M. de Gennes au detroit de Magellan, fait em 1695, 1696 et 1697 aux Cotes d’Afrique, Detroit de Magellan, Brésil, Cayenne e Isle Antilles. Paris: Michel Brunet, 1968; FRÉZIER, Amedée François. Rélation du Voyage de la mer au sud des Côtes du Chili, duPerou et du Brésil, faite pendant lês années 1712, 1713 2 1714, par M. Frézier, ingénieur ordinaire du Roy. Paris: P. Berger, 1967; DAMPIER, William. Voyages. Amestredã: (1a. edição 1705); LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1969 (1a. Edição 1805).

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escravos fazem muitas confusões nas cidades, e apesar de serem

rigorosamente castigados, acontece diariamente alguma nova desordem.

São ladrões, traidores e capazes dos maiores crimes. (...) O Brasil é apenas

um antro de ladrões e assassinos; nele não se vê nenhuma subordinação,

nenhuma obediência; o artesão com sua adaga e espada insulta o homem

honesto e o trata de igual, porque são iguais na cor do rosto (...)20

A fundação da cidade de Salvador foi tema de muitos estudos. Um desses trabalhos

é elaborado por Teodoro Sampaio. Em sua obra, Sampaio, traçou um painel geográfico da

capitania da Bahia antes da constituição de sua capital no ano de 1549. Em sua abordagem

privilegiou as características formativas da sociedade urbana, como os corpos político-

administrativo e religioso, além de apontar o perfil dos primeiros colonos.21

Outros autores focaram também seus estudos na fundação de Salvador, como Pedro

Calmon e Edison Carneiro. O primeiro enfatiza fundamentalmente os aspectos político-

institucionais, uma vez que sua preocupação era demarcar a fundação da cidade de

Salvador a partir de um contexto onde se buscava a centralização política-administrativa do

território colonial. Não há análise sobre os agentes sociais nem mesmo de características

sócio-econômicas locais.22

Já Edison Carneiro percebeu a fundação da cidade como instrumento indispensável

no apoio político-administrativo da coroa portuguesa em terras americanas. Assim

procurou abordar as complexidades envolvidas na construção de uma cidade, partindo dos

desenhos propostos para delimitar a urbe e de suas características mais específicas,

20 BARBINAIS. “Voyages” apud VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 85. 21 SAMPAIO, Teodoro. História da Fundação da cidade de Salvador. Salvador: Tipografia Beneditina, 1949. 22 CALMON, Pedro. História da fundação da Bahia. Salvador: Museu do Estado, 1949.

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focando a atuação do trabalho diário de seus habitantes e o resultado produtivo dessas

atividades. Carneiro aponta que Salvador extrapolou a função para qual tinha sido criada.

De mero suporte para facilitar a colonização a uma das cidades mais importantes da

América e do império português.23

Walter Pinho, percorreu um caminho distinto. Seu estudo focaliza os séculos XVI e

XVII. A cidade foi entendida de uma maneira generalizante, sem, no entanto,

contextualizá-la no âmbito do Império português. Não houve preocupação por parte desse

autor em abordar os aspectos sócio-econômicos, nem a dinâmica interna do centro

urbano.24

Thales de Azevedo em Povoamento da cidade de Salvador aborda o crescimento

demográfico incentivou o surgimento de múltiplas funções e atividades que provocaram o

dinamismo da cidade de Salvador ao longo dos séculos XVII e XX.25

Affonso Ruy priorizou em seu estudo a evolução e o papel desempenhado pelas

instituições política-administrativa desde do período colonial até o republicano.26 Dentro

desse viés, recentemente, Avante Sousa elaborou seu trabalho, tendo como foco central a

compreensão dos mecanismos de funcionamento do poder local, notadamente a Câmara

Municipal, enfatizando sua composição social, suas atribuições e capacidade de

intervenção na organização dos diversas atividades econômicas na urbe.27

Ainda no aspecto sobre história institucional de Salvador, devemos destacar o

clássico trabalho de Russell-Wood. A análise de seu estudo recaiu sobre uma das mais

23 CARNEIRO, Edison. A fundação da cidade de Salvador, 1549: uma reconstituição histórica; A conquista da Amazônia. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1980. 24 PINHO, Walter. História Social da cidade do Salvador (1549-1650). Salvador: Beneditina, 1968. 25 AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade de Salvador. Salvador: Itapuã, 1969. 26 RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. 27 SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2003. Tese (doutorado).

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importantes e respeitadas instituições da Bahia colonial: a Santa Casa de Misericórdia. O

período por ele analisado abrande todo o século XVII e primeira metade do XVIII.28

Embora o foco de seus trabalhos tenha sido o século XIX, Kátia Mattoso nos

fornece poderosos mecanismos de análise para compreendermos a centúria anterior,

principalmente questões relativas aos aspectos sócio-econômicos, estratificação e

hierarquias sociais da cidade de Salvador.29

Sobre a riqueza e o desenvolvimento de atividades agrícolas nos subúrbios de

Salvador e áreas do Recôncavo baiano, destaca-se o trabalho de Stuart Schwartz. O foco

deste trabalho recaiu sobre a constituição das grandes e médias propriedades inseridas na

estrutura agro-exportadora açucareira, bem como a atuação dos diversos agentes sociais

envolvidos com a produção do açúcar, como o plantador de cana, o senhor de engenho, o

comerciante e os escravos.30 Dentro dessa temática insere-se também o trabalho de Vera

Ferlini, no qual foram analisadas as diversas relações sócio-econômicas desenvolvidas na

sociedade açucareira.31

As relações entre categorias sociais distintas no período colonial em Salvador,

foram o tema trabalhado por Rae Flory.32 Assim, a autora buscou analisar a constituição

dessas ligações desenvolvidas entre plantadores, senhores de engenhos, comerciantes e

artesãos, bem como a constituição do mercado local.

28 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. da UnB, 1981 29 MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo/Salvador: HUCITEC/Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978 & Da revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador: Corrupio, 2004 30 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. 31 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003. 32 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Austin, The University of Texas, 1978, tese (doutorado).

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No que tange seu aspecto comercial, destacam-se os trabalhos de José Roberto do

Amaral Lapa e Pierre Verger. No primeiro, o enfoque recai sobre o comércio marítimo no

âmbito do Império português. Lapa procurou destacar a importância do porto de Salvador e

seu papel nos primeiros séculos de colonização, enfatizando primordialmente sua

localização estratégica.33 Já Pierre Verger, em estudo de grande fôlego, apontou a relações

intrínsecas entre a praça mercantil de Salvador e a região da baía do Benin, localizada na

África Ocidental, constituídas pela realização do tráfico transatlântico de escravos, que ao

longo de toda a sua duração proporcionou um “fluxo e refluxo” entre sujeitos das duas

margens do Atlântico.34

David Smith buscou analisar a atuação dos comerciantes da praça de Salvador. Para

tanto sua investigação se deu a partir da comparação dos agentes mercantis da capital

baiana com os estabelecidos na cidade de Lisboa, ao longo do século XVII.35

A classe e a atividade mercantil de Salvador também se tornou objeto de estudos no

trabalho de Catherine Lugar. Em sua pesquisa, Lugar procurou esmiuçar as diversas

formas de comércio desenvolvidas em Salvador, desde a quitandeira de rua, passando pelas

lojas de varejo, até as grandes negociações marítimas. Da mesma maneira, buscou traçar

um perfil dos indivíduos que atuavam na carreira mercantil.36

John Norman Kennedy buscou analisar a formação e a constituição social da elite

local. Em seu estudo percebemos que para além dos agentes proprietários de grandes

posses de terra, havia elementos do grupo mercantil, militar e da governança que faziam

parte do denominado grupo formador da elite de Salvador. Seus signos de distinção não só

33 LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Hucitec, 2000. 34 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987. 35 SMITH, David G. The mercantile class of Portugal and Brazil in the Seventeenth Century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and bahia. 1620-1690. Austin: The University of Texas, tese (doutorado) - 1975. 36 LUGAR, Catherine. The merchant community of Salvador, Bahia, 1780-1830. New York: State University of New York at Stony Brook, 1980, tese (doutorado).

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passavam pela riqueza que possuíam, como também pelo prestígio e status que adquiriam

ao longo de suas vidas.37

Dentro dessa temática relacionada à riqueza, temos o estudo de Maria José Rapassi

Mascarenhas. Trabalhando com inventários post-mortem, a autora analisou a estrutura

social na qual estava embutida a riqueza. Da mesma forma, buscou apontar como esta

mesma riqueza se manifestava na sociedade soteropolitana entre os anos de 1760-1808.38

Nossa tentativa, portanto, ao iniciar essa pesquisa foi de alargar os conhecimentos

até aqui elencados. Buscamos iluminar os dispositivos e agentes que punham em

funcionamento o mercado na cidade de Salvador, na segunda metade do século XVIII.

Nesse sentido, elegemos um corpo documental principal que pouco tinha sido trabalhado:

as escrituras públicas dos dois ofícios de notas que existiam na época na cidade de

Salvador.39 Rae Flory trabalhou com essa documentação entre os séculos XVII e XVIII,

mas precisamente entre 1698 e 1715. Esse corpus documental encontra-se arquivado no

Arquivo Público do Estado da Bahia, em condições precárias. Daí a nossa dificuldade em

fazer um levantamento sistemático de todo o período desde o ano de 1751 até 1800. De

todo modo, foi possível arrolar uma grande quantidade de informação, cuja análise será

trabalhada ao longo da tese.

Assim, no capítulo 1 buscamos apontar os principais aspectos sócio-econômicos da

cidade desde de sua fundação até o fim do século XVIII, focando nossa abordagem nos

últimos cinqüenta anos do Setecentos. Dentre as diversas atividades econômicas, buscamos

destacar a produção açucareira, fumageira e da farinha de mandioca, bem como o comércio

negreiro, fundamental para o entendimento da dinâmica social na cidade de Salvador.

37 KENNEDY, John Norman. “Bahian Elites, 1750-1822”. In: Hispanic American Historical Review, 53 (3), 1973, pp. 415-39 38 MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais – elite riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 1998 39 APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139).

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Nesta parte do capítulo, trabalhamos de forma intensiva com as informações armazenadas

no bando de dados The Transatlantic Slave Trade.40

No segundo capítulo, o enfoque recai sobre os padrões de investimentos da

sociedade baiana, verificando o peso dos diversos setores na economia da cidade. Para

tanto, foram utilizadas as escrituras públicas de compra e venda. Buscamos fazer uma

análise comparativa com outras regiões e períodos, bem como a confrontação entre as

informações notariais e aquelas arroladas nos inventários post-mortem para uma melhor

compreensão do perfil do mercado local.

Além do padrão de investimento, foi analisado o perfil do mercado de crédito em

Salvador. Esse foi o tema abordado no terceiro capítulo. Utilizamos para isso as escrituras

públicas de empréstimos e os dados apontados nos inventários baianos. Assim, pudemos

verificar o peso das instituições coloniais e dos agentes privados no desenvolvimento do

sistema creditício. Também aqui buscamos fazer comparações com perfis encontrados em

outras áreas de características pré-industriais.

No capítulo quatro buscamos mostrar os mecanismo de acumulação de bens que se

davam fora do mercado. Mas uma vez trabalhamos principalmente com as escrituras

públicas, focando a análise nos documentos de doação e dote, bem como no sistema de

transmissão de heranças.

Por fim, o último capítulo é uma tentativa de seguir as trajetórias de alguns homens

de negócio, principalmente aqueles que atuavam no comércio de escravo, mostrando suas

origens, estratégias pessoais e resultados obtidos ao longo de suas carreiras, que passaram

a ter atuação preponderante na praça mercantil de Salvador no último quarto do século

XVIII. Apontamos e analisamos mecanismos de ascensão social e a inserção na elite

40ELTIS, David; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo & BEHRENDT, Stephen. The Transatlantic Slave Trade: a Dataset on-line. www.slavevoyages.org

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baiana. Nesta parte do trabalho, foram utilizadas fundamentalmente fontes qualitativas de

caráter biográfico, além de documentos administrativos e uma farta bibliografia.

Mesmo tendo um caráter claramente monográfico, delimitado pela análise de

documentação específica, o trabalho que ora se inicia tem como objetivo contribuir para

um melhor entendimento das estruturas sócio-econômicas na Bahia colonial,

principalmente da segunda metade do Setecentos.

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CAPÍTULO I

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Aspectos sócio-econômicos da cidade de Salvador

A expansão marítima possibilitou ao Estado português a constituição de um vasto

império. A princípio, as conquistas do ultramar nada mais eram do que algumas feitorias

comerciais alocadas no litoral das novas posses territoriais. Posteriormente, passou a uma

política de divisão das terras em capitanias, prática bastante difundida na América e nas

ilhas atlânticas. A incursão de corsários e piratas de outras nações européias, bem como o

baixo aproveitamento econômico fez com que a Coroa portuguesa percebe-se a

necessidade de tomar posse de fato das novas áreas, a partir da construção de estruturas

administrativas e mercantis mais complexas. Nesse sentido, devemos entender a criação de

vilas e cidades, como a de Salvador, no ano de 1549.

A cidade de Salvador foi fundada um ano após a instituição do governo geral em

terras brasileiras para ser sua sede. Anteriormente, poucos núcleos urbanos tinham sido

criados na América portuguesa, a maioria por vontade dos próprios donatários das

capitanias, tais como: São Vicente (1532), Porto Seguro (1535), Olinda (1537), Ilhéus

(1536) e Santo Amaro (1538). Ainda na segunda metade do século XVI, foram criadas as

cidades do Rio de Janeiro (1565), Filipéia de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa

(1584) e São Cristóvão de Sergipe (1590) e as vilas de Piratininga, atual São Paulo (1554),

Camamu, Boipeba e Cairu, na capitania da Bahia, todas no ano de 1565.41

Ao longo dos séculos XVII e mais fortemente no XVIII, essas novas organizações

político-administrativas foram se consolidando e expandindo-se em solo brasileiro. Vários

núcleos urbanos foram erguidos não só como incentivo a um dinamismo econômico, mas

também atrelados ao desejo de agrupar populações dispersas e de facilitar a cobranças de

41 SILVA, Sílvio Bandeira de Mello e et. al. Urbanização e metropolização no Estado da Bahia: evolução e dinâmica. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1989, pp. 43-53.

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tributos por parte da Coroa. Assim foram construídas Belém do Pará (1616), São Luís do

Maranhão (1639), Vila Rica (1711) e Vila Boa de Goiás (1726).

As cidades e vilas coloniais da América portuguesa foram instituídas a partir de um

modelo metropolitano. Em quase tudo se assemelhavam aos núcleos urbanos de Portugal,

como na forma do traçado urbanístico e nos propósitos de suas funções, principalmente

naquelas de caráter comercial, como as de Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Recife,

Belém.

A cidade de Salvador

Em 1534, o rei de Portugal decide colonizar o Brasil, a partir do sistema de

capitanias hereditárias, modalidade já utilizada nas ilhas do Atlântico. Dividida a América

lusa em 15 capitanias, coube a Francisco Pereira Coutinho a colonização da Bahia, papel

que passou a desempenhar em 1536, ano de sua chegada.42

Na redistribuição de terras recebidas da Coroa, o donatário Pereira Coutinho

contemplou não apenas seus companheiros de viagem como também o antigo morador da

terra, o Caramuru, português de nome Diogo Álvares que habitava as terras baianas há

pelos menos 20 anos. Caramuru recebeu as sesmarias das terras que ocupava, legalizando-

se assim, dentro de uma nova estrutura, uma posse que, até então, tinha sido aceita pela

população autóctone.43

Pereira Coutinho não obteve sucesso na tentativa de colonizar as novas terras. Dez

anos após sua chegada, abandonou suas posses, em decorrência dos desentendimentos

entre os indígenas e seus homens que causaram mortes e destruição de bens de ambos os

lados.

42 MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo/Salvador: HUCITEC/Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978, p. 91. 43 Idem.

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Os conflitos não ocorriam apenas entre os portugueses e os gentios da terra.

Disputas eram travadas entre os próprios colonos, representadas, por exemplo, na revolta

incitada pelo padre Bezerra contra o donatário Pereira Coutinho. Para escapar da fúria

ensandecida da população, Pereira Coutinho buscou refúgio na vizinha capitania de Porto

Seguro e de lá nunca mais saiu.44

No final da década de 1540, a região voltava à estaca zero. Após a fuga de Pereira

Coutinho, o incipiente núcleo de povoamento fora destruído por navios franceses.

Restaram apenas ruínas queimadas e cerca de 50 pessoas de origem européia que passaram

a contar com a proteção de Caramuru e seus índios. Foi esse o cenário encontrado quando,

em 1549, forças metropolitanas lideradas por Tomé de Souza aportaram na baía de Todos

os Santos para estabelecer o governo geral. Esses remanescentes passaram a dar apoio aos

recém-chegados.45

Na época de sua criação, para ser sede do governo geral do Brasil, Salvador foi

descrita por cronistas coevos e por estudiosos de diferentes épocas como sendo uma cidade

constituída de ruas estreitas, um espaço com muitas fortificações, representando a

preocupação da Coroa portuguesa com a defesa do território.46 Na parte alta, localizava-se

o centro político-administrativo, como os prédios do governador, Palácio do Bispo, da Real

Fazenda, Câmara, cadeia e casas pertencentes aos moradores. Evidentemente, tratava-se de

construções bastante precárias, uma vez que os materiais utilizados nas edificações eram

de taipa. Defronte ao mar, localizavam-se pesados canhões prontos para salvaguardar a

44 CALMON, Pedro. História da fundação da Bahia. Salvador: Museu do Estado da Bahia, 1949, p. 95. 45 MATTOSO, op. cit., 1978, p. 92. 46 SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ Editora da Usp, 1971; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo/Brasília: Melhoramentos/INL, 1975; GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província de Santa Cruz. São Paulo: Melhoramentos, 1971; SAMPAIO, Teodoro. História da Fundação da cidade de Salvador. Salvador: Tipografia Beneditina, 1949; CARNEIRO, Edison. A fundação da cidade de Salvador, 1549: uma reconstituição histórica; A conquista da Amazônia. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1980; CALMON, op. cit., 1949; AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade de Salvador. Salvador: Itapuã, 1969.

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cidade. Na parte baixa, localizava-se o porto e no seu entorno toda a vida comercial da

cidade com os seus armazéns, trapiches e lojas que vendiam produtos de diversas

naturezas, vindos de todos os cantos do império. A ligação entre as duas partes da cidade

se dava pelas ladeiras e pelo guindaste dos Padres, no colégio dos Jesuítas, por onde

subiam e desciam mercadorias.47 Segundo o viajante Froger, que esteve em Salvador no

ano de 1696, pelo fato da cidade ser dividida entre uma parte alta e baixa, “(...) os carros lá

são impraticáveis, os escravos substituem os cavalos, e transportam de um lugar para outro

as mais pesadas mercadorias; é também por essa mesma razão que é muito comum o uso

do palanquim”.48

Criada como cidade, Salvador recebeu um termo de grandes dimensões e foi dotada

de um rossio. O termo da cidade representava o território sobre o qual se exercia o poder

municipal. Já o rossio era uma parte do termo demarcado junto ao núcleo urbano que era

utilizado para a pastagem de animais domésticos e para a coleta de lenha, fundamental nos

afazeres caseiros da época. Segundo Kátia Mattoso, o termo da cidade de Salvador, tal

como havia sido delimitado no século XVI, não sofreu nenhuma modificação até meados

do século XIX.49

Segundo dados apontados por Luís dos Santos Vilhena, em 1801, a cidade de

Salvador estava dividida em dez freguesias urbanas e nove suburbanas, como verificamos

nos quadros a seguir:

47 MATTOSO, op. cit., 1978, p. 95. 48 FROGER. “Relations du Voyage de M. de Gennes au detroit de Magellan, fait em 1695, 1696 et 1697” apud VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 80. 49 MATTOSO, op. cit., 1978, p. 116.

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Quadro 1.1 – Freguesia urbanas de Salvador, 1801

Freguesias Ano de fundação

Sé 1552

Nossa Senhora da Vitória 1561

Conceição da Praia 1623

Santo Antônio Além do Carmo 1646

Santana do Sacramento 1679

São Pedro, o Velho 1679

Santíssimo Sacramento da Rua do Passo 1718

Nossa Senhora das Brotas 1718

Santíssimo Sacramento do Pilar 1720

Nossa Senhora da Penha 1760

Fonte: VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, vol.

2, 1969, pp. 460-1.

Quadro 1.2 – Freguesia suburbanas de Salvador, 1801

Freguesias Ano de fundação

São Bartolomeu de Pirajá 1608

Nossa Senhora do Ó do Paripe 1608

São Miguel de Cotegipe 1608

Santo Amaro da Ipitanga 1608

Nossa Senhora da Encarnação do Passé 1608

Nossa Senhora da Piedade de Matoim 1609

Senhor do Bonfim da Mata Séc. XVIII

Santa Vera Cruz de Itaparica Séc. XVIII

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Santo Amaro de Itaparica Séc. XVIII

São Pedro do Sauípe da Torre Séc. XVIII

Fonte: VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, vol.

2, 1969, pp. 460-1.

Ao longo da primeira metade do século XVII, Salvador se expandiu para além de

suas fronteiras originais. Foram fundadas entre os anos de 1608 e 1609 novas freguesias

urbanas, como observamos no quadro 1.2. A freguesia de Nossa Senhora da Conceição da

Praia passou a se destacar entre as demais devido ao aumento de seu papel comercial,

atrelada à exportação e importação, bem como da instalação da indústria de construção

naval.50 De acordo com o relato do viajante Le Gentil de la Barbinais, que permaneceu em

Salvador entre novembro de 1717 e fevereiro de 1718, as embarcações construídas nesta

cidade eram “equipadas com muito menos despesas do que na Europa: o país fornece toda

a madeira em abundância e a melhor que se possa desejar para a construção de navios, não

somente para os mastros mais ainda as popas, forrações, curvas lemes, etc. É uma madeira

incorruptível.”51 Essa atividade industrial se desenvolveu rapidamente, tornando-se uma

das mais importante de todo o reino no século XVIII. Segundo relatos de Vilhena, de 1801,

o arsenal existente na Bahia era o “mais regular que a América portuguesa conserva para

ocorrer às precisões da Marinha não só real, como mercantil, tanto nacional, como

estrangeira, que neste porto entra necessitada de socorro.”52

Ao longo do século XVIII, a cidade continuou a se expandir. Novas edificações

foram erguidas, ruas foram traçadas, mas a configuração original foi preservada. O centro-

administrativo permaneceu na praça do Palácio. O espaço religioso e cultural no Terreiro

50 LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 60. 51 BARBINAIS. “Voyages” apud VERGER, op. cit., 1987, p. 84. 52 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, Vol. 1, 1969, p. 499.

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de Jesus e no Cruzeiro de São Francisco. Foi melhorada e aperfeiçoada a ligação entre as

cidades alta e baixa, com a construção de novas ladeiras. A cidade se ampliava para além

das Portas do Carmo, onde se estendia a freguesia de Santo Antônio. Na direção das Portas

de São Bento, o traçado urbano atingia o forte de São Pedro, com a demarcação de novas

vias. A cidade baixa que antes se restringia a apenas uma rua, onde se localizavam

trapiches, armazéns e casas comerciais, passou por uma remodelação, com aterros,

tornando possível a ocupação residencial e a intensificação da atividade comercial.53

O aumento populacional e a expansão geográfica da urbe fizeram com que a

Câmara Municipal pusesse em prática, a partir da edição de posturas, algumas normas e

mecanismos que garantissem a urbanização da cidade em aspectos pouco ou nunca

observados pela municipalidade. Assim, foram consertados e construídos fontes de água,

calçamento, alinhamento de ruas, pontes, praças e casas.54

Mesmo passando por uma série de mudanças e de aperfeiçoamentos na malha

urbana, Salvador não conseguiu se manter como o centro político da América portuguesa.

No ano de 1763, a sede administrativa do governo geral foi transferida para o Rio de

Janeiro. Essa reorientação político-administrativa decorreu da necessidade de se garantir a

segurança e o controle de espaços populosos e economicamente estratégicos para o

Império, como as áreas de exploração mineral nas Gerais e as de fronteiras na estremadura

da América, região de conflitos acirrados com os espanhóis. Devido à sua privilegiada

posição estratégica, o Rio de Janeiro poderia desempenhar bem a função de sede colonial.

Para além do fator geográfico, há muito o porto carioca se tornara a porta principal da

saída de mercadorias produzidas no centro-sul do Brasil e de entrada de produtos vindos

das mais diversas partes do reino, transformando-se na principal praça mercantil da

53 SOUSA, Avante Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2003. Tese (doutorado), p. 58. 54 Ibidem, p. 59.

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América lusa, no que Antônio Carlos Jucá de Sampaio bem denominou a “encruzilhada

comercial do Atlântico Sul português.”55

No decorrer do século XVIII, novas categorias sociais surgiram na cidade. Dentre

elas, destacou-se os homens de negócio que, a partir da concentração de recursos

financeiros, econômicos, sociais e políticos, passaram a ter um maior peso no cotidiano da

urbe. Assim, no alvorecer do século XIX, Salvador mantinha suas características e

importância no contexto colonial, cidade portuária que servia de entreposto de mercadorias

vindas de diversas partes do império.

A população de Salvador

Mesmo com seu crescimento demográfico, Salvador conservou suas características

físico-urbanísticas adquiridas ao longo do período colonial. Mas qual o tamanho real dessa

população?

Essa pergunta é de difícil resposta devido à precariedade de fontes que atestam o

número de habitantes na América portuguesa. Na época de sua fundação, estima-se que

viviam na cidade de Salvador cerca de 1.500 pessoas. Podemos considerá-la bem povoada

dentro dos padrões vigentes, uma vez que estava no mesmo patamar de núcleos urbanos

importantes do reino, como Guimarães, Setúbal, Lagos e Beja, cujas populações no

período giravam em torno de 1.000 a 1.6000 indivíduos.56 Segundo dados apontados por

Fernão Cardim, alguns anos depois, a população aumentou consideravelmente. Em 1583, a

cidade contava com três mil portugueses, oito mil índios cristianizados e entre três e quatro

mil escravos africanos.57

55 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 – c .1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 56 SAMPAIO, op. cit., 1949, pp. 178, 199. 57 CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo/Brasília: Editora Nacional/INL, 1978, p. 175.

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Ao longo do século XVII, a cidade foi se desenvolvendo vinculada à produção e ao

comércio de açúcar. Novos prédios foram erguidos, ruas traçadas. Com medo de novas

invasões estrangeiras, como a que ocorreu na década de 1620, quando holandeses

ocuparam a sede político-administriva da América portuguesa, construíram-se sete novos

fortes em pontos estratégicos da cidade. Ao final do Seiscentos, calcula-se que viviam na

cidade cerca de 20 mil pessoas, enquanto que no Rio de Janeiro habitavam menos de 12

mil indivíduos.58 Segundo relato do capitão William Dampier, que esteve na Bahia no ano

de 1699, a maioria dos habitantes de Salvador era composta por escravos.59

Na primeira metade do século XVIII, houve uma forte expansão demográfica na

cidade. Novas áreas passaram a ser ocupadas. Contudo, não houve mudanças significativas

do núcleo original. A população aumentara consideravelmente. Estima-se que de 21 mil

habitantes em 1706, saltara para 40 mil, em 1759. Em toda a capitania da Bahia viveriam

cerca de 100 mil pessoas em meados do século.60

Por volta da década de 1770, surgem os primeiros dados que possibilitam estimar o

tamanho e a distribuição da população de todo o Brasil colonial. Esse material é fruto de

listas que foram elaboradas por comandantes de milícias locais e padres de paróquias, por

ordem da Coroa, cujo objetivo era determinar o número de homens capazes de usar armas

e estimar o total de possíveis pagadores de impostos. Preocupavam-se, portanto, com a

idade e sexo dos indivíduos. Nesses registros foram excluídas as crianças abaixo dos sete

anos, como também subestimaram o número de indígenas que se encontravam fora do

limite da autoridade portuguesa.

Os mapas das paróquias eram enviados aos funcionários das comarcas, os quais,

por sua vez, endereçavam os relatórios de maneira condensada para seus superiores que

58 SOUSA, op. cit., 2003, p. 57. 59 DAMPIER, William. “Voyages” apud VERGER, op. cit., 1987, p. 83. 60 SOUSA, op. cit., 2003, pp. 57-8.

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enviavam anualmente em forma de tabela para Lisboa. Contudo, segundo D. Alden, com

exceção da capitania de São Paulo, raramente esses registros foram remetidos com

regularidade. De todo modo, o mencionado autor conseguiu estabelecer estimativas da

população para as diversas áreas da América lusa, principalmente para os anos de 1776 e

1800. Conforme apontam seus dados, durante o século XVIII, em que pese o processo de

migração para as áreas mineradoras e de pastoreio no oeste e sul do Brasil, o grosso da

população (78,8% em 1776 e 73,4% em 1800) se concentrava em torno dos principais

portos e no interior das capitanias costeiras, especialmente nos tradicionais centros de

exportação de gêneros agrícolas: Paraíba, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro.61

Evidentemente, o processo de urbanização avançava com velocidade diferente nas

diversas partes do Brasil. Calcula-se que, no final da década de 1770, o número médio de

habitantes das 36 vilas da capitania do Rio de Janeiro, excluindo-se a capital, era de apenas

1.625. Em 1780, a cidade do Rio de Janeiro contava com 38.707 habitantes. No mesmo

ano a capitania da Bahia possuía 193.598 pessoas, sendo que dessas, 170.489 viviam na

capital, em seus subúrbios mais próximos e nas oito vilas que a cercavam na baía de Todos

os Santos.62 Cabe ressaltar, que as estimativas são baixas, uma vez que não foram

contabilizadas crianças menores de sete anos, em alguns casos também, os escravos.

B. J. Barickman, nos fornece estimativas da população da cidade de Salvador, ao

longo do século XVIII, que compilamos no quadro 1.3. Por volta da metade da década de

1770, a capital baiana possuía uma população maior que qualquer outra cidade no

continente, excetuando Filadélfia que na época contava com 40 mil pessoas.63 Desta forma,

Salvador constituía-se num dos mais importante núcleos urbanos da América lusa no

Setecentos. Contudo, é importante apontar que, ao longo da segunda metade do século

61 ALDEN, op. cit., p. 328-31. 62 Ibidem, p. 531. 63 Ibidem, p. 533.

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XVIII, ocorreu um decréscimo progressivo da população. Talvez a explicação para este

fenômeno tenha sido a transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro, em 1763,

que teria acarretado um processo de esvaziamento da cidade, que parece ter perdurado até

a virada do Setecentos para o Oitocentos. De todo modo, ao longo do século XVIII,

Salvador manteve o posto de cidade mais populosa do Brasil, posto que seria perdido para

o Rio de Janeiro, entre os anos de 1808-22.

Quadro 1.3 – População de Salvador, 1706 - 1805

Ano População

1706 21 601

1755 37 453

1757a 34 442

1757a 37 323

1759 40 263

1768 40 922

1775 33 635

1780 39 209

1805 45 600

Fonte: BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano – açúcar, fumo mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 98. a. Resultados de dois censos, ambos realizados em 1757.

Nos censos elaborados a partir de 1776, não havia a obrigatoriedade de apontar a

cor das pessoas, nem ao menos a origem. Entretanto, alguns governadores exigiam essa

informação. Esse levantamento foi feito principalmente nas capitanias onde havia um

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grande número de cativos. Mormente, a distinção era feita em quatro categorias: brancos;

pardos; pretos; e índios. Alguns outros relatórios apenas faziam a diferenciação social entre

homens livres e escravos. Pelo fato da escravidão indígena ter sido abolida oficialmente em

1750 (embora não na prática), todos os escravos numerados deviam ser considerados

africanos ou crioulos. Infelizmente, esses dados só são encontrados para a Bahia no ano de

1810, quando o ministro do Interior mandou elaborar censos nas principais capitanias, nos

quais foram incluídas as categorias anteriormente mencionadas. Esses dados foram

reunidos e resultaram num relatório enviado pelo lorde Strangford, ministro inglês

estabelecido no Rio de Janeiro, para seu governo. Como demonstra o material censitário,

cerca de dois terços da população do Brasil na época eram compostos de negros e mulatos.

No caso da Bahia, cerca de 78,6% eram negros ou mulatos, 19,8%, brancos e 1,5%, índios.

A população escrava representava 47% e os livres de cor eram 31,6%.64

Segundo M. L. Marcílio, a reprodução entre os escravos negros no Brasil era de

modo geral baixa, “a mais baixa de todos os setores da sociedade em todos os tempos”.65

Alguns fatores contribuíam para essa assertiva, quais sejam: o baixo valor do preço do

escravo importado, as precárias condições de vida dos cativos, a baixa taxa de feminilidade

nos plantéis. Além desses fatores, como mencionado anteriormente, apostar na criação de

uma criança escrava por doze ou quatorze anos até esta atingir a idade de trabalho seria um

investimento arriscado O custo e os riscos muitas vezes eram superiores ao preço de

mercado de um escravo adulto. Desta maneira, a alta taxa da população de cor percebida

em Salvador é debitária do tráfico internacional de escravos. A escravidão era uma

instituição disseminada por toda a sociedade. O capitão Dampier em viagem à Bahia

64 Ibidem, p. 535. 65 MARCÍLIO, Maria Luísa. “A população do Brasil colonial”. In: BETHELL, Leslie (org.). América Latina Colonial. Vol.2, São Paulo: Edusp, s/d, p. 329.

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relatou que “à exceção das pessoas da mais baixa classe, não há quase habitantes que não

tenham aqui escravos em casa.”66

A composição da sociedade soteropolitana colonial era complexa, longe de haver

uma dicotomia entre senhores e escravos. Em fins do século XVIII, Luís dos Santos

Vilhena, dividiu a sociedade em várias corporações (magistrados; financistas; clero;

militares; comerciantes), povo nobre e mecânico; e escravos.67

István Jancsó desdobrou os componentes sociais apontados por Vilhena.. Segundo

Jancsó, o corpo de funcionários é formado por altos membros da administração civil, como

Governador, Chanceler, Ouvidor Geral do Crime, Ouvidor Geral do Civil, Tesoureiro

Geral. Um segundo segmento é constituído pelo Juiz da Coroa da Fazenda, Guarda-mor e

Distribuidor do Tribunal da Relação, Escrivão dos Agravos e Apelações. Num terceiro

grupo situam-se os funcionário da administração real subalternos. A distinção entre esses

indivíduos se dava pelos rendimentos anuais obtidos com salário e emolumentos. Já os

comerciantes se dividiam entre aqueles que faziam o comércio a distância e aqueles locais.

Os militares eram diferenciados pelas disparidades de ganhos, riqueza e prestígio que

possuíam. O povo nobre era em sua maioria formado por grandes lavradores, senhores de

engenho e se situavam no topo da hierarquia social da colônia. O povo mecânico era

composto por uma variedade de mestre de artes mecânica, tais como, ourives, alfaiates,

pedreiros, escultores, etc. O corpo eclesiástico era constituído por uma miríade de

indivíduos, que se distinguiam entre si pela condição econômica e prestígio de foro

especial da justiça. Por fim os escravos, que representavam cerca de 30% da população da

capitania e 18% do contingente urbano de Salvador.68

66 DAMPIER, William. “Voyages” apud VERGER, op. cit., 1987, p. 82 67 VILHENA, op. cit., 1978, pp. 55-7. 68 JANCSÓN, István. Na Bahia, contra o Império – história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo/ Salvador: Hucitec/UFBA, 1996, pp. 77-86.

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Açúcar, tabaco e farinha

Desde o início da colonização iniciada em meados do século XVI, a economia da

Capitania da Bahia estava baseada na produção e venda de açúcar para o mercado externo,

sendo o seu Recôncavo a região mais significativa. Se no início, a fundação da cidade de

Salvador estava atrelada a um papel político-administrativo visando à ocupação da colônia,

em meados do século XVIII, notamos sua importância no que tange ao desempenho

econômico desse núcleo urbano. Segundo Thales de Azevedo, com desenvolvimento da

exportação de produtos como açúcar, tabaco, algodão, couro e madeira, a cidade viu a

emersão de uma nova categoria social, como os homens de negócio, atrelados ao aumento

da atividade mercantil da cidade.69 O porto de Salvador servia como um entreposto de todo

tipo de mercadoria trocada no âmbito do império português, sendo o açúcar o de maior

destaque.

Produzido no Recôncavo da Baía de Todos os Santos, em áreas do termo de

Salvador como Pirajá, Matoim, Cotegipe, Itaparica e Paripe, de vilas como São Francisco

do Conde, Santo Amaro, Cachoeira, Maragogipe e Muritiba, e de outras regiões como

Ilhéus, Porto Seguro e Sergipe, o açúcar chegava ao porto da capital e era remetido para a

Europa.70

Por quase um século, foi o nativo a principal fonte de braços para impulsionar os

engenhos produtores de açúcar nas regiões mencionadas. Até a década de 1560, eram

poucos os cativos oriundos da África que trabalhavam na Bahia. A transição da mão-de-

obra indígena para a africana está atrelada à percepção positiva dos portugueses sobre o

trabalho destes. Essa familiaridade do colono luso era caudatária da experiência do cativo

áfrico na Península Ibérica e ilhas atlânticas como trabalhador doméstico, artesão urbano e

69 AZEVEDO, op. cit., 1969, p. 167. 70 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 90-3.

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escravo especializado. Muitos já dominavam as técnicas do fabrico do açúcar, habilidade

desenvolvida nas ilhas da Madeira e de São Tomé. Além disso, muitos desses escravos

inicialmente provinham da África Ocidental, onde eram comuns trabalhos na agricultura,

com o gado e ferro, úteis na lavoura açucareira.

Para além da visão positiva do trabalho africano, a população autóctone estava

sendo devastada por epidemias devido ao contato microbiano com as levas de imigrantes

do Velho Mundo. Ao colapso demográfico soma-se a resistência dos jesuítas que

pressionavam a Coroa para pôr fim à escravização dos índios. Em 1570, foi promulgada a

primeira lei contra a escravidão indígena. Posteriormente, mais duas foram editadas, em

1595 e 1609. Embora não tendo eliminado o trabalho dos nativos na América portuguesa, a

legislação em conjunção a grande mortandade do povo indígena, tornou ainda mais

atraente aos olhos dos portugueses a opção pelo elemento africano.

Contudo, a transição do trabalho indígena para o africano se deu de forma lenta e só

se consolidou em meados do século XVII. O padre Manoel Soares estimou que na Bahia

no ano de 1587, cerca de 60% dos cativos eram índios.71 Dados levantados por Schwartz

para o engenho Sergipe apontam o crescimento gradual da utilização do braço áfrico. Em

1572, apenas 7% dos 280 escravos adultos eram africanos. Já no ano de 1591, essa

população representava 37% dos 103 indivíduos. Em 1638, dos 81 escravos que havia no

engenho, todos eram originários da África ou eram crioulos.72

O século XVII pode ser caracterizado como o período em que o colono na América

portuguesa fez a opção definitiva pela mão-de-obra africana, em que pese à diferença de

quase um triplo no preço do escravo proveniente da África em relação ao indígena. A

economia baiana, mesmo tendo problemas com a política fiscal e comercial portuguesa,

71 GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 100. 72 SCHWARTZ, op. cit., 1995, p. 68.

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teve um desempenho relativamente bom durante o século XVII, com os preços do açúcar

altos o bastante para permitirem que os lucros dos senhores de engenho pudessem

compensar os custos com a compra de escravos, tarefa da qual o Estado português se

eximia de qualquer responsabilidade e que era item primordial nas despesas dos produtores

de açúcar.

Logo os agricultores ficaram dependentes do fluxo do tráfico negreiro para

recompor a população escrava, visto que fora negligenciado o crescimento vegetativo da

população cativa, seja pelo desequilíbrio sexual entre os escravos (cerca de dois homens

para cada mulher), seja pela alta taxa de mortalidade de crianças e adolescentes. Tais

diferenças foram sempre acentuadas pela tendência do comércio transatlântico de africanos

favorecer os homens em relação às mulheres e os adultos em relação às crianças. Apostar

na criação de uma criança escrava por doze ou quatorze anos até esta atingir a idade de

trabalho seria um investimento arriscado para os agricultores baianos.

Na década de 1680, ocorreu uma drástica baixa no preço do açúcar brasileiro,

enquanto os custos se elevavam. Esse fato estava relacionado ao surgimento de colônias

produtoras de açúcar localizadas nas Antilhas ocupadas por franceses, ingleses e,

principalmente, holandeses. Destes locais os europeus passaram a suprir seu mercado

interno, reduzindo a participação do açúcar brasileiro em suas praças comerciais. Se na

década de 1630, cerca de 80% desse produto comerciado em Londres era de origem

brasileira, por volta de 1670, essa participação caiu para 40%, chegando, ao ano de 1690, a

apenas 10%.73 Com o fomento da fabricação açucareira em escala mundial, os produtores

brasileiros foram perdendo a sua capacidade de lidar com a queda do preço desse artigo no

mercado internacional.

73 Ibidem, p. 162.

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Com o crescimento da produção de açúcar nas Antilhas, aumentou-se nesta região a

demanda por mão-de-obra escrava. Com efeito, o novo mercado para o braço africano

tendeu a elevar o preço do cativo tanto na África quanto na revenda no Brasil, espremendo

ainda mais os lucros dos plantadores. O valor do escravo, que já era alto devido à procura

das ilhas caribenhas, tornou-se exorbitante em decorrência da necessidade de braços nas

recém-descobertas zonas mineradoras brasileiras.

Apesar da elevação no preço de compra, a descoberta do ouro pelos paulistas, no

interior da América portuguesa, região hoje conhecida como Minas Gerais, ocorrida por

volta de 1690, gerou um aumento na demanda por escravos no Brasil, propiciando o

imediato incremento dos desembarques de africanos através do porto de Salvador.

Os negociantes da Bahia, desde o início da mineração, perceberam a oportunidade

de grandes lucros, uma vez que nas regiões mineradoras o preço do cativo era bem superior

ao de Salvador e à área do Recôncavo baiano. Além disso, recebiam em ouro pela venda

dos escravos, enquanto os senhores de engenho da Bahia pagavam a esses traficantes com

açúcar, muitas vezes comprometendo a safra seguinte.74 Os senhores de engenho passaram

a queixar-se da falta de mão-de-obra. A Coroa resolveu intervir delimitando o número de

escravos que podiam ser remetidos para as áreas mineradoras com o alvará de 1701.75

Logo esta legislação mostrou-se ineficiente. Muitos baianos, principalmente os

comerciantes negreiros, argumentavam que alguns escravos não serviam para trabalhar na

lavoura e deveriam ser disponíveis para a venda às minas. Mais forte que o temor da lei era

a ganância dos comerciantes baianos em lucrar com as lavras de ouro.

Embora existisse terra em abundância tornava-se escasso o elemento reprodutor da

empresa açucareira, o escravo. No ano de 1702, foram enviados para Portugal 507.609

74 Ibidem, p. 166. 75 APEB, coleção manuscritos., Ordens Régias de 20-1-1701. Este alvará estipulou que os paulistas só podiam adquirir duzentos cativos de Angola por ano no porto do Rio de Janeiro.

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arrobas de açúcar baiano, sendo de 249 produtores diferentes dos quais se calcula que 100

fossem lavradores não proprietários de moendas.76 A Bahia remeteu anualmente para o

reino 507.500 arrobas de açúcares produzidos em 146 engenhos, segundo cálculos feitos

por Antonil, ao final do primeiro decênio do século XVIII.77 Em 1720, a produção caiu

para cerca de 420.000 arrobas. Portanto, podemos sugerir que o tráfico baiano procurava

desviar a oferta de escravos para as regiões mineradoras em expansão, em detrimento da

empresa açucareira nordestina.

Os escravos da Bahia eram redirecionados para a região aurífera das Gerais

costeando o rio São Francisco e o rio das Velhas, percorrendo uma distância de

aproximadamente 200 léguas (c. 1.200 km). Pelo menos até a segunda década do século

XVIII, foram os traficantes baianos os principais fornecedores de trabalhadores escravos

para as minas. Tal fato mudou com a abertura do “caminho novo”. Se, percorrendo o

“caminho velho”, que ligava o Rio de Janeiro à região mineradora via Paraty, gastava-se de

43 a 99 dias, dependendo do número de paradas, a partir da abertura do novo caminho, na

década de 1710, o percurso de 80 léguas (c.480 km), passa a ser feito em doze ou até dez

dias.78 Uma crônica da época relata que o recém-descoberto caminho foi importante para

que o Rio de Janeiro se destacasse no comércio com as minas em detrimento da antiga

comunicação por terra, que era realizada com grandes dificuldades, a partir da Bahia de

Todos os Santos.79 Apesar de não mais representar o mercado preferencial e estratégico da

reposição de cativos, atividade que o Rio de Janeiro passou a desempenhar a partir da

76 Ibidem, p. 149. 77 ANTONIL, André João, Cultura e opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, p.140. Segundo Antonil, foram exportados para Portugal 14.000 caixas de açúcar. 78 ANTONIL, op. cit., 1976, p. 184-7. 79 PARSCAU, Guillaume François. “A invasão francesa de 1711”. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (Org.). Outras visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p.135.

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terceira década do século XVIII, a Bahia exerceu um papel complementar para o

atendimento da demanda na região das Gerais.

O ano de 1750 é marcante para o estudo da sociedade colonial brasileira por se

tratar do momento em que a produção aurífera atinge seu auge.80 Durante toda a segunda

metade do século XVIII, houve uma reacomodação devido ao decréscimo da atividade

mineradora em direção à agricultura, fonte tradicional de riqueza na América lusa. No

litoral, o resultado dessa reorientação foi uma retomada da prosperidade, calcada na

expansão da produção de alguns gêneros básicos tradicionais, como açúcar e fumo, assim

como no desenvolvimento de novos produtos de exportação, quais sejam: algodão, arroz,

cacau, café e anil. Esse fortalecimento agrícola desenvolveu-se mediante a recuperação de

mercados importantes, principalmente na Europa, e o trabalho escravo, mormente de

africanos, sem, no entanto, ter ocorrido o aperfeiçoamento de técnicas agrícolas.

Alguns estudiosos apontam que, entre 1750-1770, a América lusa passava por um

período de decadência econômica, gerada principalmente pelo declínio da mineração

refletida na diminuição das rendas da Coroa portuguesa provenientes do Brasil, bem como,

pela queda da exportação de açúcar da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro para a Europa

devido aos baixos preços no velho continente, e do declínio da lavoura fumageira, por

causa das dificuldades encontradas no comércio de escravos na Costa da Mina. Além

disso, as exportações de cacau na Amazônia estavam sendo prejudicadas pela escassez de

mão-de-obra indígena, pela dificuldade de transporte e pelo baixo preço do produto. Para

esses mesmo autores, a recuperação se inicia por volta de 1780 como o “renascimento

agrícola”, principalmente nas regiões ligadas ao litoral. Esse ressurgimento seria uma

resposta de vários fatores, como as medidas adotadas por Pombal e seus sucessores;

desenvolvimento da indústria algodoeira na Inglaterra e França; o desaparecimento de 80 PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1979, p. 114.

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importantes fornecedores de açúcar no Caribe (notadamente, a ilha de Saint-Domingue); e

o recrudescimento das hostilidades franco-inglesas, que acabaram por relegar suas colônias

ao segundo plano.81

Acreditamos que ao invés de “ressurgimento” da agricultura, que nos passa a falsa

idéia de desaparecimento anterior, defendemos que teria ocorrido nesse período um

fortalecimento de atividades rurais devido à reacomodação da economia e principalmente

ao incremento do tráfico negreiro.

O aumento de mão-de-obra escrava disponível possibilitou a expansão da atividade

agrícola na Bahia. Agora não havia mais a concorrência forte das regiões mineradoras.

Contudo, levas de cativos recém-chegados continuaram a ser remetidos para as regiões

interioranas da América lusa. Entre 1739-1759, a Bahia enviou aproximadamente 2.100

cativos por ano para a capitania mineira, enquanto o Rio de Janeiro foi responsável pela

remessa de cerca de 3.900 cativos.82 Na década de 1760, foram enviados para Minas

Gerais cerca de 60% dos escravos despachados em Salvador (cerca de 920 por ano),

fazendo de Minas o destino preferencial dessas remessas.83 Contudo, ao analisar os dados

dos despachos conjugados ao tráfico internacional, verificamos que houve um decréscimo

na demanda mineira por braços africanos. Dos escravos novos que chegavam à Bahia,

entre 1728 e 1748, período de grande produtividade mineral, calcula-se que 40% tenham

sido redirecionados para as Minas.84 Já entre os anos de 1760-70 houve uma queda

significativa nesses números. Apenas 18% dos novos que chegaram a Salvador foram

81 Cf. ALDEN, Dauril. “O Período final do Brasil Colônia: 1750-1808”. In: BETHELL, Leslie (org.). América Latina Colonial. Vol.2, São Paulo: Edusp, s/d; SCHWARTZ, op. cit., 1995. 82 GOULART, op. cit., p. 170. 83 Sobre a redistribuição de escravos a partir da praça de Salvador cf. RIBEIRO, Alexandre V. “O comércio de escravos e a elite baiana no período colonial” In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos de Jucá; ALMEIDA, Carla Maria (orgs.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 311-35. 84 GOULART, op. cit., 1975, p. 165.

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remetidos para a região das Gerais, uma média anual de 882 escravos.85 A diminuição

desse fluxo para as lavras mineiras estava atrelada à redução da produção de minérios.

Muitos desses escravos não eram remetidos apenas para a mineração, ma, também, para

atividades econômicas majoritariamente voltadas para o mercado interno, constituído de

pequenos e médios senhores.86 Assim, apesar do declínio da prospecção mineral, o

desempenho da economia mineira, ao longo do século XVIII, fez com que ela

permanecesse como um dos grandes pólos de demanda por africanos.87

O movimento de despachos de escravos da Bahia para outras regiões, que não a das

Gerais, aponta para a diversificação da economia colonial. Surgiram novas áreas que se

converteram em abastecedoras do mercado interno. É certo que as exportações brasileiras

caíram cerca de 60% entre 1760 e 1776, mas o desempenho do tráfico atlântico, nas

últimas décadas do século XVIII, como veremos adiante, indica que à crise da mineração

não se seguiu a decadência generalizada da região sudeste, sugerindo a realocação dos

fatores de produção.

A redução no fluxo de cativos do porto de Salvador para regiões de mineração

possibilitou uma maior oferta de mão-de-obra nas áreas próximas à capital baiana,

favorecendo dessa maneira, o fomento da atividade agrícola na região. Dados levantados

por B. J. Barickman mostram que as unidades produtivas de açúcar na Bahia aumentaram

nesse período. Se no ano de 1755 contavam-se 172 engenhos na capitania, em 1795, esse

85 RIBEIRO, op. cit., 2005, cap. 4 86 Sobre a mudança das atividades econômicas em Minas Gerais no final do século XVIII e início do XIX ver MARTINS, Roberto. “Minas Gerais, século XIX: tráfico e o apego à escravidão numa economia não-exportadora”. In: Estudos Econômicos, 13 (1), São Paulo: FIPE, 1983. 87 A segunda região que mais recebia escravos da Bahia era a Capitania de Goiás. Aproximadamente 13% dos escravos despachados de Salvador destinavam-se para esta região. Em vilas, fazendas e veios de Goiás e Mato Grosso, entre fins do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX os escravos provenientes da África Ocidental eram maioria entre os africanos. Ver KARASCH, Mary. “Central Africans in Central Brazil, 1780-1835”. In: HAYWOOD, Linda M. Central Africans and cultural transformations in the American diaspora. New York/Cambridge: Cambridge University Press, 2002, passim.

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número atingiu 353, pulando para 400 três anos mais tarde.88 No final do século, a zona

açucareira estendia-se por cerca de 16 léguas a norte e a nordeste do porto de Salvador.89

Com isso, a exportação anual de açúcar, que na década de 1770 foi estimada em 10 mil

caixas por ano (aproximadamente 440 mil arrobas), se elevaria no decênio seguinte para

cerca de 480 mil arrobas anuais, chegando, no final de década de 1790, a uma média de

11,5 mil caixas de quarenta arrobas (cerca de 760 mil arrobas por ano).90 Segundo

apontamentos feitos por D. Alden, entre 1757 e 1798, as exportações de açúcar baiano

subiram cerca de 55%. Como aproximadamente 10% do açúcar produzido na Bahia eram

consumidos localmente, a produção anual parece ter aumentado, entre 1759 e o início do

século XIX, de 360 mil arrobas para algo em torno de 880 mil, o que representa um ganho

de 69%.91

Um fator importante nessa mudança foi a ascensão de Pombal que permitiu à

América portuguesa experimentar reformas que objetivavam o fortalecimento da economia

colonial. Durante o período pombalino (1750-1777), o sistema de frotas também foi

abolido (1765), medida bem aceita por toda a comunidade mercantil de Salvador, pois

intentava estimular o comércio colonial com os mercados exteriores. Procurou-se

implementar também uma reforma tributária, com a eliminação ou redução de várias taxas

– em 1776 os valores dos fretes foram reduzidos, visando à diminuição dos custos para os

senhores de engenho e o incentivo das trocas.

Além das medidas pombalinas, contribuiu positivamente para o bom desempenho

da produção e exportação de açúcar baiano a revolta de escravos na ilha de Saint

88 BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano – açúcar, fumo mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 74-5. No ano de 1755 os dados englobam 126 engenhos na Bahia e 46 no Sergipe; em 1795, 221 engenhos eram da Bahia e 132 do Sergipe; em 1799, 260 eram baianos e 140 sergipanos. 89 ALDEN, op. cit., p. 557. 90 BARICKMAN, op. cit, 203, p. 346; ALDEN, op. cit., pp. 557-9; SCHWARTZ, op. cit., 1995. 91 ALDEN, op. cit., p. 558.

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Domingues, em 1791. Essa colônia francesa nas Antilhas era a maior produtora de açúcar

do mundo. Durante aproximadamente uma década, travou-se nesta ilha uma intensa guerra

que resultou na independência do Haiti. A produção de açúcar local foi praticamente

eliminada. Em face desse acontecimento, os baianos herdaram um imenso mercado

consumidor, fortalecendo sua indústria açucareira. Com o preço do escravo em baixa,

tornou-se possível comprar um maior número de cativos e, conseqüentemente, expandir a

produção açucareira.

Mas não só do açúcar vivia a economia da Bahia. A capitania era responsável por

mais de 90% do fumo brasileiro comerciado para Europa, África e para o restante do

Brasil. Cerca de um terço da produção era consumida pelo mercado interno. O fumo de

rolo antes de ser exportado era armazenado em Salvador num único depósito, onde

funcionários da Mesa de Inspeção o examinavam e aferiam sua qualidade. Os rolos de

primeira e segunda qualidade eram selecionados e exportados para Portugal. O melhor

fumo em folha era reservado para ser enviado a Goa. Menos da metade da produção anual

era reputado de boa qualidade para atender ao mercado europeu e de Goa. O que sobrava

era considerado refugo. A lavoura fumageira não teria como sobreviver se tivesse que

desperdiçar sempre mais da metade da sua produção. Contudo, esse refugo ou o fumo de

terceira qualidade tinha um amplo mercado no Brasil e, principalmente, era fundamental

para o comércio de escravos feito pelos baianos na região da Costa da Mina. Enrolado em

melaço puro, o fumo destinado à África tornava-se adocicado. Esta forma de confeccionar

os rolos dava um aroma especial e o tornava muito apreciado pelos africanos da África

Ocidental.92

Plantações de tabaco espalhavam-se por diversas partes do entorno de Salvador,

chegando até mesmo em localidades do agreste baiano como São José das Itapororocas

92 BARICKMAN, op. cit., 2003, p. 64; VERGER, op. cit., 1987, p. 21.

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(atual Feira de Santana), Ipirá, São Gonçalo dos Campos, Inhambupe, Pedrão e Água

Fria.93 De todo modo, o local privilegiado para o cultivo do tabaco era a área do recôncavo

baiano, mais precisamente na vila de Cachoeira, distante 14 léguas da cidade de Salvador.

Desde 1640, já se praticava nessa localidade o cultivo comercial do fumo. Segundo B. J.

Barickman, a concentração dessa cultura em Cachoeira era estimulada pelo tipo de solo

arenoso e leve encontrado na região.94 De acordo com Schwartz, por volta de 1697, havia

em Cachoeira quatro armazéns, nos quais se guardava o fumo que era transportado em

pequenas embarcações até Salvador, de onde seguiam para diversas partes do Império.95

Cálculos de contemporâneos apontaram que havia nessa área aproximadamente 1.500

fazendas de tabaco responsáveis por uma produção de 35 mil rolos por ano. As

exportações anuais de fumo baiano parecem ter alcançado cerca de 320 mil arrobas no

período de 1750-66 e na década de 1780 chegou a 615 mil, conforme dados levantados por

D. Alden. É possível que, na década de 1790, tenha ocorrido o auge da produção de tabaco

na Bahia. Decerto, foi no último decênio do século XVIII que os preços atingiram o

patamar mais elevado do século, em média quase o dobro do início da década de 1750. 96

Os aumentos do preço do tabaco baiano e das exportações estão atrelados ao

crescente fluxo de embarcações que partiam de Salvador para resgatar escravos na Costa

da Mina. Na década de 1750 partiram para a região ocidental do continente africano em

média, 10 navios por ano. Já no último decênio dos Setecentos, zarparam em média, 18

embarcações anuais, todas com grandes carregamentos de rolos de tabaco.97 Embora, tenha

aumentado a remessa de fumo para a África, o nível estimado das exportações na década

de 1790 foi acentuadamente inferior (cerca de 452 mil arrobas) ao observado para a década

93 MATTOSO, op. cit., 1978, p. 26; SCHWARTZ, op. cit., 1995, p. 85. 94 BARICKMAN, op. cit, 2003, p. 42. 95 SCHWARTZ, op. cit., 1995, p. 85. 96 ALDEN, op. cit., pp. 562-4. 97 Sobre o movimento de navios negreiros partindo de Salvador cf. RIBEIRO, op. cit. 2005, anexo 3.

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de 1780 (615 mil).98 De todo modo, o fumo desempenhou papel preponderante para o

desenvolvimento da economia baiana, uma vez que era o item principal utilizado pelos

comerciantes negreiros de Salvador na negociação com os régulos africanos no litoral da

Costa da Mina, principal região fornecedora de escravos para a Bahia.

O açúcar e o fumo estavam longe de serem os únicos produtos que moldavam a

paisagem social e econômica da cidade de Salvador e do seu entorno. Gêneros de primeira

necessidade tinham amplo espaço de produção na região. Servindo não só para a

subsistência da população local como também na complementação da economia de

exportação, a mandioca, utilizada no fabrico de farinha, destaca-se como sendo a lavoura

de subsistência mais cultivada nas terras vizinhas da capital baiana.

A maior parte da produção de farinha nos séculos XVII e XVIII provinha da vila de

Camamu, na capitania de Ilhéus. Esta e outras vilas da redondeza eram visitadas por

contrabandistas de diversas partes da colônia que abasteciam suas embarcações de farinha

para ser revendida no Rio de Janeiro, em Pernambuco, em São Vicente e demais portos

coloniais. Na segunda metade dos Setecentos, café também passou a ser remetido de

Camamu para Salvador, enquanto a vila de Cairú passou a enviar farinha, café e arroz.99

Embora tivesse disponível uma vasta gama de alimentos, a dieta trivial do baiano

resumia-se a um pequeno número de itens, no qual se destaca a farinha de mandioca. Rica

em amido, a farinha garantia aos habitantes uma alimentação repleta em calorias. Decerto,

os baianos comiam outros gêneros ricos em carboidratos e que eram produzidos localmente

como o inhame, o aipim (conhecido como mandioca-mansa) e a batata-doce. De maneira

diminuta, o pão feito com farinha de trigo importada complementava a dieta do baiano. Era

mais comum observá-lo, segundo crônicas de época, nas mesas dos moradores mais

abastados da cidade, geralmente de imigrantes portugueses. Certamente, havia também um 98 ALDEN, op, cit., p. 564. 99 AHU, CA, Bahia, docs. 18.296; 18.315.

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grande consumo de arroz, feijão e milho, mas seu papel na alimentação cotidiana era

secundário se comparado ao da farinha de mandioca.100 De acordo com os dados

levantados por B. J. Barickman, entre 1785-1850, o arroz, o feijão e o milho correspondem

apenas a 12% de todos os gêneros que entraram no celeiro público de Salvador, sendo o

restante (88%) representado pela farinha. O consumo diário de farinha na cidade era de

567 gramas por pessoa. Essa era a porção distribuída aos presos pobres da cadeia, aos

soldados aquartelados e aos escravos empregados no celeiro público de Salvador. 101 Os

escravos nas fazendas e nas roças deviam consumir uma parcela ainda maior de farinha,

por ser tratar junto com a carne-seca, do alimento básico nas áreas rurais. Sem dúvida, a

farinha desempenhou papel fundamental na dieta comum dos habitantes de Salvador e de

sua periferia.

Presente tanto nas mesas dos ricos quanto na dos pobres e nas cuias dos escravos, a

farinha de mandioca possuía um mercado local potencialmente grande. Provavelmente,

devido ao tamanho da população urbana da capital baiana e de vilas vizinhas, a produção

da farinha era quase que totalmente vendida localmente na segunda metade do século

XVIII.

Obviamente, não só de farinha viviam os habitantes de Salvador no século XVIII,

embora fosse um item indispensável na dieta da população baiana. Segundo relatos de

época, a boa localização atrelada ao clima permitia o abastecimento da cidade durante todo

o ano de uma variedade de víveres, com abundantes tipos de hortaliças e frutas tropicais. O

fato de estar de frente ao mar tornava acessível a seus habitantes mariscos e carne de

baleia. Pelo porto chegavam o dendê da África ocidental; a carne-seca era importada do sul

do Brasil ou da região do Rio da Prata; alho, azeite de oliva, vinho, queijo, manteiga,

bacalhau e farinha de trigo vinham da Europa. 100 VILHENA, op. cit., 1969, pp. 159, 200. 101 BARICKMAN, op. cit., 2003, p. 91.

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Do sul da Bahia, nas regiões de Caravelas e Rio das Contas também havia produção

de farinha de mandioca. Já em Belmonte, Canavieiras e Uma, na capitania de Porto

Seguro, a lavoura de arroz se destacava. Sua produção embora não fosse grande, era

direcionada para Salvador.102 Embora se utilizasse mão-de-obra escrava nessas culturas, o

que predominava era o trabalho familiar.103

Dos sertões mais distantes eram enviadas grandes levas de reses que asseguravam,

mesmo que, de forma irregular, o abastecimento de carne verde para a cidade de

Salvador.104 O gado não só servia de alimento, mas também era utilizado como força

motriz no sistema manufatureiro dos engenhos. Segundo Thales de Azevedo, as primeiras

cabeças de gado chegaram à Bahia vindas de São Vicente, provavelmente antes da

instalação do Governo Geral. Ainda no século XVI, começou-se de forma incipiente as

primeiras criações ao redor de Salvador, em propriedades de Garcia d’Ávila em Itapagipe,

Itapuã e Tatuapara.105 Mais tarde se expandiram sertão adentro, onde havia vastos campos

e proximidade de fontes d’água, como rios e lagos. Nesse sentido, o vale do rio São

Francisco tornou-se o local por excelência dos currais baianos.106

Outras áreas, como as fumageiras e as mineradoras eram abastecidas pela pecuária.

Consumia-se uma grande quantidade de couro para se embalar os rolos de tabaco, que

depois eram exportado. Além de ser vendido no exterior, o couro era bastante consumido

na colônia. Era utilizado para a fabricação de surrões para o armazenamento de açúcar e

outros produtos.107 Consumia-se uma grande quantidade de couro para se embalar os rolos

de tabaco, que depois eram exportados, além de servir como alimento. A carne também

102 BNRJ, sessão ms, II, 34,6,21. 103 SCHWWARTZ, op. cit., 1995, p. 86. 104 VILHENA, op. cit., 1969, pp. 57, 61, 126-7, 130; MATTOSO, op. cit., 1978, p. 53-4; 255-7; 301; BARICKMAN, op. cit, 2003, p. 90. 105 AZEVEDO, op. cit., 1969, pp. 320-1. 106 ANTONIL, op. cit., 976, p. 199; AZEVEDO, op. cit., 1969, pp. 321-3. 107SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil 1500-1820. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978, p. 168.

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passara a ser bastante consumida pelos moradores da cidade, das vilas, engenhos e

fazendas do entorno de Salvador e do sertão.108

Para a boa consecução da pecuária na região, foi constituída uma rede de serviços

que envolvia diferentes agentes sociais, como o criador, o negociante e o consumidor. Foi

preciso abrir novos caminhos e estradas que ligavam o sertão ao litoral. Os currais, os

diversos açougues e os curtumes de Salvador estavam todos sob administração da Câmara

Municipal, que garantia a regularidade do fornecimento do produto e a lucratividade do

comércio.109

A feira de Capuame, distante cinco léguas de Salvador, era o principal mercado de

gado da Bahia no século XVIII. Além da capital, abastecia a região do Recôncavo. Estima-

se que a média anual de gado comercializado, entre os anos de 1791 e 1811, era maior que

18 mil cabeças. De todo modo, havia muitas queixas dos soteropolitanos relacionadas à

falta do produto nos açougues da cidade.110

Assim como a pecuária, a mineração possibilitou a abertura de vários caminhos que

se interligavam dentro e fora da capitania e tinham um ponto comum: a cidade de

Salvador. Os dois núcleos importantes de mineração na Bahia foram Rio das Contas e

Jacobina, localizados na região da Chapada Diamantina. Até meados do século XVIII, nas

minas existentes nessas áreas foram produzidas quantidades consideráveis de ouro. Assim

como os veios auríferos das Gerais, essas localidades demandavam constantemente o envio

de escravos, necessidade suprida pelo porto de Salvador que anualmente remetia levas de

africanos para fazer a prospecção dos metais.111

108 AZEVEDO, op. cit., 1969, pp. 175; 201. 109 SOUSA, op. cit., 2003, p. 67. 110 Idem. 111 Sobre a remessa de escravos partindo do porto de Salvador para as diversas praças mercantis da América portuguesa, cf. RIBEIRO, op. cit., 2007.

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As estradas abertas na Bahia em função da mineração facilitaram a circulação de

mercadorias e pessoas entre as diversas regiões econômicas da capitania. Produtos vindos

dessas áreas chegavam a Salvador de onde eram exportados para as diversas partes do

Império. Entre esses gêneros destacavam-se o açúcar, fumo, couro, aguardente, melaço,

arroz, algodão, cacau, café, madeira e óleo de baleia.112

Do exterior chegavam a Salvador gêneros manufaturados vindos do Reino, como

armamentos, pólvora, tecidos, louças, ferramentas, azeite de oliva, queijo, manteiga,

vinagre, vinho, farinha de trigo, chumbo, alcatrão.113 Da Índia tecidos e especiarias.114 Da

África, marfim, cera e escravos.

Além das transações mercantis internacionais, Salvador se destacava também no

comércio de cabotagem ao longo do litoral e do interior da América lusa. Calcula-se que

anualmente quarenta navios ligavam o porto soteropolitano ao carioca, levando tabaco,

escravos e tecidos da Índia e trazendo farinha, milho feijão, arroz e toucinho. No século

XVIII, intensificou-se o comércio entre a Bahia e a capitania do Rio Grande de São Pedro,

que utilizava entre quarenta e cinqüenta navios115, transportando roupas, tecidos, sal,

açúcar, doces e escravos116 para serem trocados por farinha de trigo, couro, queijos, velas,

milho, sebo e, principalmente, carne seca e salgada, indispensável na dieta dos escravos.117

O Rio Grande ocupou a posição de fornecedor de charque para a Bahia

desempenhado, até o final do século XVII, pela capitania do Ceará que perdeu seu posto

devido às constantes secas. De todo modo, da região cearense continuaram sendo enviados

112 AHU, CA, Bahia, docs. 2320; 2321; 9724; 9725; 9730; 9731;13037; 13038; 13039; 13144; 13145; 13146; 113 AHUM, CA, Bahia, docs. 18296; 18298; 18299; 18300; 18301; 18302; 18305; 18306; 18307; 18308; 18309; 18310; 18312; 18313; 18315; 114 Sobre o comércio da Bahia com a Índia cf. LAPA, op. cit., 2000. 115 AHU, CA, Bahia, docs. 20521-26. 116 Sobre o comércio de escravos entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, cf. RIBEIRO, op. cit., 2007. 117 VILHENA, op. cit., 1969, p. 57.

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para Salvador diversos gêneros como farinha, couro e algodão, comercializados por

chumbo, breu, ferragens, tecidos brancos e coloridos.118

A Bahia mantinha também ligações comerciais com outras regiões do centro-sul do

Brasil. Para São Paulo, além de escravos, partiam navios carregados com tecidos, roupas e

objetos de prata que eram trocados por farinha de trigo, milho, toucinho e uma variedade

de legumes. Para a região do rio da Prata, eram remetidos escravos, tabaco, tecidos,

ferragens, madeira e de lá se importava principalmente prata e peças de couro.119

Com regiões próximas como Sergipe e Alagoas, Salvador mantinha relações

comerciais, a partir de revenda de mercadorias vindas do Reino, adquirindo em troca,

farinha, feijão, arroz, legumes, porcos e galinhas. Gêneros alimentícios, como arroz e

legumes, eram os itens principais remetidos do Espírito Santo. Já com comarcas da própria

capitania, a capital baiana importava madeira, cacau, farinha, arroz e café de Ilhéus;

garoupas e farinha de Porto Seguro.120

O comércio feito entre a Bahia e a capitania de Minas Gerais envolvia fazendas

brancas e de cor, armas, ferragens, pólvora, chumbo, chapéus, e diversas quinquilharias.

Mais eram os escravos que tornavam volumosas as transações entre o porto de Salvador e

as regiões mineradoras das Gerais. Desta localidade, partiam o ouro e pedras preciosas que

ornavam as igrejas baianas e enfeitavam as mulheres da capital.

A pesca desempenhava um papel importante no comércio local. As zonas

pesqueiras onde se encontravam as maiores colônias de pescadores ficavam na baía de

Todos os Santos e em Porto Seguro. Desta comarca chegavam cada semana em Salvador

mais de dez embarcações carregadas de garoupas e meros salgados. Já na águas da baía de

Todos os Santos os pescadores se especializaram na caça à baleia que consistia, até o ano

118 Ibidem, p. 58. 119 Idem; sobre as remessas de escravos da Bahia para a Colônia do Sacramento cf. RIBEIRO, op. cit., 2007. 120 VILHENA, op. cit., 1969, p. 58.

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de 1798, em monopólio real. Esta atividade envolvia diversos setores e pessoas,

responsáveis não só pela pesca como também pela fabricação do óleo, usado na

iluminação. A pesca da baleia e a extração de seu azeite tornaram-se proeminentes na

Bahia, durante o governo de Diogo Botelho (1602-8), sob o comando de Pedro Urecha que

trouxe de Biscaia barcos e pessoas experientes no ofício.121 Tal atividade foi facilitada e

consolidada devido à grande presença de baleias que sobejavam na águas da baía de Todos

os Santos.122

A atividade pesqueira, em pequena escala, era amplamente realizada por quase

todos os moradores que viviam à margem da baía, tendo em vista o mar ser bastante

piscoso. Era uma forma de garantir o alimento para a sobrevivência da família. O

excedente era vendido pelas ruas de Salvador. Até chegar à mesa do consumidor final, o

pescado passava nas mãos de diversas pessoas, em sua maioria mulheres negras

conhecidas como ganhadeiras, o que acabava por elevar o preço da mercadoria e tornava

seu consumo arriscado devido o tempo de exposição em altas temperaturas.123

O tráfico transatlântico de escravo

Muitos cronistas relataram a importância da atividade comercial de Salvador,

demonstrando que, para além de uma dinâmica político-administraviva, a cidade

desenvolveu-se atrelada à atividade mercantil. No início do século XIX, o viajante Thomas

Lindley descrevia que o comércio na cidade era “espantoso”. Observou que mais de

oitocentas lanchas e sumacas contribuíam no transporte de mercadoria para a capital,

121 SOUSA, op. cit., 2003, p. 76. 122 SOUSA, op. cit., 1971, p. 139. 123 VILHENA, op. cit., 1969, pp. 126-7.

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interligada a diversas cidades banhadas pela baía de Todos os Santos, a vilas distantes, a

Europa, Ásia e África.124

A proeminência do comércio em Salvador foi facilitada devido à localização

estratégica do porto de Salvador, do ponto de vista náutico e militar. As águas calmas da

baía de Todos os Santos tornaram-se um lugar privilegiado para as intensas transações

comerciais. Por esta razão, foi considerado por fontes coevas como “o porto do Brasil”,

durante o século XVII. Papel que Amaral Lapa designou, talvez exageradamente, como

uma espécie de pulmão por onde respirava a colônia.125

De fato, a atividade mercantil era disseminada entre os habitantes soteropolitanos.

Em 1723, o vice-rei do Brasil, Vasco César de Menezes, afirmou que eram poucos os

moradores que não faziam algum tipo de comércio, fosse pequeno ou grande, internamente

ou externamente à colônia.126

Dentre os diversos tipos de comércio desenvolvidos em Salvador, o de maior

envergadura era o tráfico transatlântico de escravos, não só pelos valores envolvidos como

também por se tratar do mecanismo principal de viabilização da própria sociedade

colonial, visto que era a partir do comércio internacional de africanos que os colonos

adquiriam a força de trabalho indispensável na organização econômica colonial. Nesse

fluxo mercantil, além da carga humana, eram negociados panos da Costa, cera, tabaco,

ouro, azeite de palma, canela, sabão. Mas, sem dúvida, o foco estava no comércio de

africanos. O valor envolvido nas importações de produtos africanos, no ano de 1798, girou

em torno de 720:000$000, sendo que, aproximadamente 92% desse total, se referiam a

transações com escravos.127

124 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1969 (1a. Edição 1805), p. 171. 125 LAPA, op. cit., 2000, pp. 1-2. 126 APEB, provisões, v. 56, p. 127. 127 VILHENA, op. cit., 1978, p. 61.

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O comércio de escravos brasileiro começou em meados do século XVI e

compreendia a maior parte de todo o tráfico atlântico de escravos realizado no período.

Provavelmente os primeiros cativos africanos teriam desembarcado na América lusa na

primeira metade do Quinhentos com a chegada dos primeiros colonos portugueses, uma

vez que no Reino já se importava braço africano desde meados do século XV.128

Não se sabe exatamente o ano que ocorreu o primeiro desembarque de africanos na

América portuguesa. Affonso E. Taunay apontou que os primeiros escravos áfricos vieram

para o Brasil com Martim Afonso de Sousa em 1525, apenas alguns anos antes de ele se

apossar da Capitania de São Vicente, tornando-se um dos primeiros produtores de açúcar.

Todavia, há pouco fundamento histórico para isso. Embora existam relatos de cativos

africanos trabalhando em engenhos de açúcar quando de suas fundações, Martim Afonso

de Sousa não chegou à América lusa antes de 1530, pois, neste ano, navegava pelo litoral

buscando um local para se estabelecer. O visconde de Paiva Manso e Pedro Calmon

sugeriram que o primeiro navio negreiro teria chegado ao Brasil em 1516, vindo de

Angola, mas esta opinião também carece de fundamentação histórica, pois em 1516 a costa

angolana ainda era um território pouco conhecido dos portugueses para que eles tivessem

carregado escravos de lá diretamente para o outro lado do oceano.129 No início do

comércio transatlântico de escravos, os africanos eram levados do litoral da África para a

Europa onde eles trocavam de embarcação para fazer a travessia oceânica para as

Américas.130 Além do mais, neste período, o arquipélago de São Tomé e Príncipe, na baía

de Biafra, era um destino muito mais atraente para os navios negreiros vindos de Angola

128 TENREIRO, Francisco. A ilha de São Tomé. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar (Memórias, 24, 2.º série), 1961, p. 72. 129 Essas hipóteses foram resumidas em GOULART, op. cit., 1975, pp. 95-9. 130 ALMEIDA, António de Mendes, “The Foundations of the System: A Reassessment of the Slave Trade to the Spanish Americas in the Sixteenth and Seventeenth Centuries”. In: ELTIS, David; RICHARDSON, David. (Orgs.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven: Yale University Press, 2008.

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do que o Brasil, visto que a indústria de açúcar das ilhas tinha se expandido e ainda

serviam como um porto de parada para reabastecimento das embarcações da rota das

Índias Orientais.131

Affonso de E. Taunay sugere que o primeiro desembarque de escravos africanos na

América portuguesa teria ocorrido na Bahia em 1538, com a chegada de Jorge Lopes

Bixorda, arrendatário do comércio de pau-brasil, inaugurando desta forma o tráfico

transatlântico.132 Já Gabriel Soares de Sousa menciona que o tráfico para a Bahia teria se

iniciado após 1549, quando Tomé de Sousa estabeleceu o Governo Geral do Brasil em

Salvador. De acordo com seus apontamentos, há indícios de que em 1550 a Coroa

portuguesa enviou uma “partida” de africanos para nova cidade de São Salvador. Contudo,

tanto na referência de Taunay, quanto na de Soares de Souza, permanece a dúvida se esses

cativos teriam vindo diretamente da África ou de Portugal.

Como mencionado anteriormente, a indústria açucareira na América portuguesa se

expandiu baseada na força braçal do gentio da terra, embora os colonizadores desejassem

escravos africanos. Para os anos de 1539, 1542 e 1555 há cartas para a Coroa de Duarte

Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, requisitando autorização para a importar

cativos africanos. Em 1545, Pedro de Góes e Martin Ferreira, colonos em Paraíba do Sul,

na região sudeste, também demandavam por escravos africanos. Entretanto, a Coroa tratou

dessas questões apenas em 1559, expedindo um alvará ao governador de São Tomé no qual

tornava-se lícito que todo proprietário de engenho, munido com uma licença emitida pelo

governador do Brasil, pudesse comprar até 120 escravos na região do Congo.133 Esta

131 TENREIRO, Francisco. A ilha de São Tomé. Lisboa: s/d, 1961, p. 72. 132 TAUNAY, Affonso de E. “Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil colonial”. In: Anais do Terceiro Congresso de História Nacional - terceiro volume. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)/Imprensa Nacional, 1941, p. 533. 133 GOULART, op. cit., 1975, pp. 95-9. Cf. também CARDOSO, Gerald. Negro Slavery in the Sugar Plantations of Veracruz and Pernambuco, 1550-1680. Washington D.C, s/d, 1983, pp. 75-6. Agradeço a Daniel Domingues da Silva por esta referência.

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permanece sendo a referência mais antiga sobre o comércio de escravos direto entre África

e América portuguesa e sugere que, embora africanos pudessem ter estado presentes no

Brasil desde o início da colonização, o comércio brasileiro de escravos começou como uma

atividade privada, estimulada pelos primeiros colonos, orientada para o fornecimento de

mão-de-obra, regulada pelo Estado português e calcada numa experiência de cem anos.

A partir do banco de dados The Transatlantic Slave Trade134 conseguimos capturar

apenas sete registros de viagens, datados da segunda metade do século XVI, ligando o

Brasil à África.135 Quatro destas levaram escravos para regiões do nordeste brasileiro, duas

para o sudeste e uma para uma região não especificada. Todas embarcaram escravos no

litoral africano do atlântico sul, com as mais antigas embarcando escravos em São Tomé,

como sugerido pelo alvará real. Três viagens foram patrocinadas por comerciantes

portugueses e três por mercadores holandeses que também transportavam uma grande

quantidade de açúcar brasileiro para os mercados europeus.136 Uma das viagens não tem

nenhuma informação sobre a nacionalidade nem o nome do patrocinador, enquanto as

restantes parecem terem sido efetuadas por particulares. Os comerciantes portugueses

financiaram as viagens mais antigas, em 1574, 1575 e 1582, importando 341 escravos para

Pernambuco e Bahia. As viagens dos negociantes holandeses ocorreram todas no ano de

1597, mas não há registro do número de escravos por eles importados e apenas duas

indicações da região do desembarque dos escravos, ambas no sudeste do Brasil.

Obviamente, estas sete viagens não são representativas do comércio de escravos no Brasil

no século XVI. Por ora, comparada com as evidências históricas disponíveis, elas

134 Doravante Voyages. 135ELTIS, David; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo & BEHRENDT, Stephen. The Trans-Atlantic Slave Trade: a Dataset on-line. www.slavevoyages.org ; cf. viagens de números 1137, 11593, 11594, 40788, 40789, 4952 e 98835. 136 SCHWARTZ, Stuart “A Commonwealth within Itself: the Early Brazilian Sugar Industry, 1550-1670” In: SCHWARTZ, Stuart (ed.). Tropical Babylons: Sugar and the Making of the Atlantic World, 1450-1680. Chapel Hill: s/d, 2004, p. 166.

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confirmam muito dos padrões posteriores desenvolvidos no tráfico de escravos do Brasil,

como uma atividade privada no atlântico sul, orientada para o fornecimento de mão-de-

obra.

Em diversos estudos podemos encontrar estimativas para o volume do tráfico

baiano de escravos. Viana Filho calculou em vinte mil o número de africanos que entraram

na Bahia no século XVI e duzentos e cinco mil no século seguinte.137 Um outro cálculo

para o século XVII é fornecido por Maurício Goulart. Segundo este autor, dois mil

africanos foram importados anualmente pelo porto de Salvador na primeira metade do

Setecentos.138 Goulart sugere que esta média tenha sido ligeiramente superior para os anos

seguintes até a descoberta dos primeiros veios auríferos na década de 1690, quando

ocorreu um crescimento vertiginoso do tráfico baiano. Em estudo recente, David Eltis

estimou em quinze mil africanos aportando na Bahia ao longo do século XVI e

aproximadamente cento e oitenta mil no século XVII.139

Para o século XVIII e primeira metade do XIX, foram construídas várias séries

baseadas em documentação coeva. O quadro 1.4 nos informa os números obtidos por

diversos estudiosos do assunto. Observando o referido quadro, notamos diferenças nos

valores encontrados em cada coluna. Isso se justifica pelo tipo de material utilizado por

cada historiador. Muitas vezes houve a junção de informações contidas em documentação

seriada com fontes de caráter qualitativo, como relatórios comerciais, cartas

administrativas, além do acréscimo de informações contidas em outros estudos. Cabe

ressaltar que as estimativas de Pierre Verger estão calcadas exclusivamente no comércio

baiano com os portos da África Ocidental.

137 VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 158. 138 GOULART, op. cit., 1975, p. 113. 139 ELTIS, David. “The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade: A Reassessment.” In: The William and Mary Quarterly, vol. 58, Issue 1, 2001, p. 36.

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Quadro 1.4 – Estimativas do volume de escravos desembarcados na Bahia, 1681-1855

Ano Alden (por

Schwartz)

Viana Filho

Goulart Verger Verger (por Manning)

Eltis Santos Ribeiro

1681-90 17 200 17 747 13 344 1691-1700

60 800 55 687 43 089

1701-10 70 000 86 400 76 868 53 303 1711-20 70 000 67 200 85 993 67 240 1721-30 66 256 14 250 a 63 400 69 451 53 207 1731-40 47 520 47 500 49 000 32 712 38 517 1741-50 46 016 41 468 b 39 200 39 160 46 795 1751-60 63 500 38 416 24 615 c 34 400 33 913 36 421 1761-70 29 500 41 446 19 267 c 36 000 43 852 50 522 1771-80 31 500 29 816 15 554 c 30 000 34 506 47 032 57 435 1781-90 24 000 20 233 12 234 c 32 700 34 918 50 933 56 796

1791-1800

39 000 63 850 62 301 40 842 b 53 100 59 689 74 524 69 406

1801-10 65 708 54 900 38 339 d 72 900 87 635 74 151 72 262 1811-20 50 975 55 000 55 352 59 000 70 700 71 951 1821-30 70 247 55 000 72 066 51 800 71 600 75 529 1831-40 120 000 55 000 1 675 e 54 800 32 500 1841-50 120 000 63 046 63 000 66 100 1851-55 785 e 1 900

OBS: a. dados para três anos; b. dados para nove anos; c. dados para seis anos; d. dados para oito anos; e. dado para apenas um ano. Fontes: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 283; VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, pp. 155 e 157; GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, pp. 215, 216 e 272; VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, pp. 661-3; MANNING, Patrick. “The slave trade in the Bight of Benin, 1640-1890”. In: GEREMY, Henry A. & HOGENDORN, Jan S. (eds.). The uncommon market. Essays in the economic history of the Atlantic slave trade. New York, 1979, pp. 136-8; ELTIS, David. “The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade: A Reassessment.” In: The William and Mary Quarterly, vol. 58, Issue 1, 2001, p. 36; SANTOS, Corcino Medeiros dos. “A Bahia no comércio português da Costa da Mina e a concordância estrangeira”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil – colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 236-7; RIBEIRO, Alexandre. O tráfico de escravos e a Praça mercantil de Salvador (c. 1680-c. 1830). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005 - dissertação (mestrado), anexo 2, pp. 114-8.

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O banco de dados Voyages, entretanto, oferece estimativa fundamentada em

extensos arquivos documentais como também em bibliografias sobre o tema. Estes dados

foram construídos a partir de numa metodologia desenvolvida em 1969 por Philip Curtin e

comumente encontrada em vários estudos sobre o comércio de escravos.140

Essencialmente, ela utiliza as séries mais completas de número de escravos transportados

por cada nação européia disponíveis em arquivos ou em materiais publicados, ajustando-os

esses números cronológica e geograficamente. O banco de dados Voyages é uma

ferramenta importante para nos auxiliar com esses números, uma vez que ele foi

inteiramente construído sobre registros de viagens negreiras. Em 1930, por exemplo,

Pandiá Calógeras calculou baseado no censo de 1820 que o volume de africanos chegados

ao Brasil seria de 13,5 milhões. Roberto Simonsen e Maurício Goulart decresceram essa

estimativa consideravelmente, para aproximadamente 3,5 milhões, na década de 1940.

Simonsen baseou sua avaliação em cálculos feitos sobre a quantidade de mão-de-obra

necessária para produzir cada item da pauta de exportação brasileira e também sobre a

demanda de trabalhadores domésticos. Já Goulart, apoiou-se nos diversos censos regionais

e em relatórios sobre exportação e importação de escravos da África para o Brasil. Curtin

obteve resultado similar aos apontados por Simonsen e Goulart, estimando o número de

escravos desembarcados no Brasil em 3,6 milhões. Agora, o banco de dados Voyages

estima esse volume em 4,9 milhões, algo próximo ao indicado por Arthur Ramos (5

milhões) e, posteriormente, por Luís Viana Filho (4,3 milhões), em seu estudo baseado no

comércio de escravos na Bahia.141

140 CURTIN, Philip D. The Atlantic slave trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969. 141 FRAQUELLI, Jane Elizabeth Aita. “Métodos Usados para Avaliar o Volume do Tráfico de Africanos para o Brasil,” In: Revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 5 (1977), pp. 305-318. Ver também Curtin, p. 267 e o banco de dados www.slavevoyages.org.

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A partir do banco de dados Voyages, montamos o quadro 1.5. Estima-se que

1.349.724 escravos africanos foram importados na Bahia desde o século XVI até 1850.142

Esta cifra representa cerca de um terço de todo contingente africano desembarcado no

Brasil durante a vigência do comércio negreiro transatlântico. É importante frisar que o

Brasil foi o principal destino para os africanos que cruzaram o Atlântico, recebendo quase

40% de todos os escravos desembarcados no continente americano.

Quadro 1.5 – Volume do comércio de escravos na Bahia, 1582-1851

Ano # de escravos Ano # de escravos Ano # de escravos

1582-1700 106 066 1751-60 75 833 1811-20 113 376

1701-10 85 719 1761-70 66 751 1821-30 99 437

1711-20 109 283 1771-80 73 267 1831-40 12 142

1721-30 106 962 1781-90 76 539 1841-51 64 329

1731-40 89 985 1791-1800 93 259

1741-50 87 694 1801-10 89 066 TOTAL 1 349 724

Fonte: ELTIS, David; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo & BEHRENDT, Stephen. The Trans-Atlantic Slave Trade: a Dataset on-line. (doravante www.slavevoyages.org )

A primeira viagem com escravos para a Bahia registrada no banco de dados

Voyages ocorreu no ano de 1582, período em que se dava a transmutação da mão-de-obra

indígena para a africana na lavoura açucareira baiana e momento no qual o comércio

negreiro ainda não havia se consolidado. O século XVII permanece como um dos mais

obscuros períodos do comércio transatlântico de escravos para a Bahia, uma vez que

poucos registros foram descobertos ou preservados. As estimativas para as duas centúrias

142 Viana Filho em estudo pretérito se aproximou destes números. Segundo este autor, um milhão e trezentos mil escravos teriam entrado na Bahia durante todo o período do tráfico cf. VIANA FILHO, op. cit., p. 159.

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seguintes são mais completas. Um número maior de registros de viagens resistiu ao tempo

e pode ser coletado em arquivos no Brasil, Portugal e África, tendo sido extensivamente

incorporados no banco de dados Voyages. Para além disso, pesquisadores publicaram uma

quantidade considerável de material nos quais fornecem não apenas o número de escravos

desembarcados em uma dada região por período determinado, mas também documentos e

registros de navegações apontando os totais anuais de escravos importados, jornais da

época, principalmente no século XIX, e séries de licenças para navegar à África

concedidas nos Setecentos e Oitocentos pela administração da Bahia, depositadas em

arquivos do nordeste do Brasil e Rio de Janeiro.143

A partir de meados do século XVII, quando da transmutação do trabalho servil

indígena para o africano verificamos que o fluxo de navios que ligavam as duas margens

do Atlântico se intensificou, como podemos verificar no quadro 1.6. Essa elevação da

participação de embarcações envolvidas no comércio transatlântico de cativos na Bahia

acarretou um crescimento no número de desembarque de gentios da África no porto de

Salvador. É preciso ressaltar, mais uma vez, que existem lacunas há serem preenchidas

sobre o tráfico baiano no Seiscentos, principalmente entre os anos de 1600 a 1675.

143 Algumas dessas fontes estão disponíveis no Arquivo Histórico Municipal de Salvador, como os documentos de relativos as inspeções de saúde feitas a bordo dos recém-chegados navios negreiros por funcionários da Câmara Municipal, cf. códices 178.1 e 182.1; Os jornais são vários, mas para a Bahia ver especialmente A Idade d’Ouro no Brasil arquivado na BNRJ; As licenças para navegar saindo da Bahia estão localizadas no ANRJ, códice 141 (17 vols.) e no APEB, códices 439, 440, 443, 449, 456 e 626-3.

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Quadro 1.6: Movimento de negreiros e volume de escravos desembarcados na Bahia,

1581-1700

Ano Navios # escravos desembarcados

1581-85 1 166

1606-10 1 356

1611-15 1 361

1646-50 6 2 134

1651-55 4 1 423

1661-65 4 1 428

1671-75 5 1 771

1676-80 13 4 626

1681-85 16 5 532

1686-90 33 11 734

1691-95 66 23 515

1696-1700 151 53 012

Fonte: www.slavevoyages.org

Vários comerciantes passaram a atuar nessa atividade, fundamentalmente a partir

do final do século XVII, pois vislumbravam grandes lucros devido à descoberta dos

primeiros veios auríferos no interior da América portuguesa que gerariam uma demanda

contínua por mão-de-obra. Desta forma, verificamos um brusco aumento no número de

desembarque de escravos no porto de Salvador, principal responsável pelo fornecimento de

trabalhadores para as regiões de prospecção mineral durante as três primeiras décadas de

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atividade, papel que, a partir do final da década de 1720, passou a ser desempenhado pelo

porto do Rio de Janeiro.144

Quadro 1.7 – Percentual de escravos desembarcados em Salvador distribuídos pelas

regiões pelas regiões da partida do navio, c.1560-1851

Região de partida dos navios Região de

desembarque

Amazônia Bahia Pernambuco Sudeste

do Brasil Portugal Outros

Total

Bahia 0 96,0 0,6 2,0 1,2 0,2 100

Fonte: www.slavevoyages.org

O comércio de escravos para o Brasil era feito por navios à vela, sendo, portanto,

influenciados pelos ventos e correntes marítimas do Atlântico. O quadro 1.7 nos mostra as

principais regiões de partida dos navios negreiros que desembarcavam escravos africanos

na Bahia. Basicamente, as expedições eram feitas no sistema bilateral, no qual o navio saia

da América, embarcava escravos no continente africano e retornava para a América. Cerca

de 96% das embarcações atuavam nesse sistema.145 Este foi um padrão característico do

Atlântico sul e se distinguia da maioria das empresas de outras nacionalidades que atuavam

144 Sobre a concorrência entre Bahia e Rio de Janeiro para atender o mercado consumidor mineiro de escravos cf. RIBEIRO, Alexandre V. O tráfico de escravos e a Praça mercantil de Salvador (c. 1680-c. 1830). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005 - dissertação (mestrado), cap. 1. 145 Nos portos do Pará e Maranhão prevalecia o sistema triangular. Cerca de 80% de todos os cativos introduzidos nestas localidades chegaram em navios saídos da Europa. Já Pernambuco operava no sistema bilateral como a Bahia. Cerca de 85% dos escravos que desembarcaram em Pernambuco chegaram em navios que haviam partido da própria capitania. Cf. RIBEIRO, Alexandre V. & SILVA, Daniel Domingues da. “Amazônia e Nordeste do Brasil no comércio transatlântico de escravos: um recenseamento do tráfico brasileiro ao norte do Rio de Janeiro”. Texto apresentado no V Colóquio Internacional Trabalho Forçado Africano – Brasil, 120 anos da abolição. Salvador, 2008.

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no comércio transatlântico de escravos, principalmente as que operavam no Atlântico

norte.146

O sistema de navegação refletia a orientação dos ventos e correntes marítimas do

oceano Atlântico. Havia dois movimentos que determinavam as rotas transatlânticas do

comércio de escravos. No Atlântico norte, os ventos e as correntes marítimas

movimentam-se no sentido horário o que forçava os navios que partiam da Europa para o

Caribe a descer primeiro em direção à Linha do Equador e depois navegar para o norte. No

Atlântico sul, ocorre o inverso, pois os ventos e a correntes marítimas fazem um

movimento no sentido anti-horário. Navios navegando do Brasil para a África tinham

primeiro que seguir a corrente marítima brasileira rumo ao sul para cruzar o oceano e

tomar a corrente de Benguela para navegar para o norte ao longo da costa africana. A

divisão das duas partes do oceano é feita pelas águas calmas na região do Equador, as

quais tendem a diminuir a velocidade dos navios à vela.

Ventos e correntes marítimas também permitiram a formação de conecções entre

algumas regiões americanas com regiões específicas na África. O comércio de escravos

brasileiro importou cativos de cinco amplas regiões africanas: Senegâmbia, Costa da Mina,

baía de Biafra, África Centro-Ocidental e Sudeste Africano. A Senegâmbia compreendia a

costa entre os rios Senegal e Gâmbia e foi uma das primeiras regiões a fornecer escravos

ao tráfico transatlântico. No litoral da Senegâmbia, os navios luso-brasileiros embarcavam

escravos nos portos de Cachéu e Bissau e em mercados próximos estabelecidos na região

de Serra Leoa, nas ilhas de Cabo Verde e Bijagós.

A Costa da Mina era o maior território costeiro envolvido no comércio de escravos.

Compreendia a área entre as atuais Libéria e Nigéria. Nessa região, os capitães portugueses

146 Sobre a instituição do comércio bilateral no Atlântico Sul cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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e brasileiros faziam majoritariamente o comércio na baía do Benin. Já a Baía de Biafra

corresponde à região entre aos atuais Nigéria e Camarões, onde os traficantes ingleses

tiveram grande atuação. Porém, essa localidade também forneceu escravos em grande

quantidade para os comerciantes brasileiros.

A região Centro-Ocidental estava entre as primeiras grandes fornecedoras de

cativos para o Brasil. Compreendia a área atual que vai do Gabão até o sul de Angola, onde

havia a forte presença de comerciantes luso-brasileiros.

Finalmente, a última região da África a se engajar no comércio de escravos

brasileiro foi o sudeste africano, o qual corresponde principalmente a atual costa de

Moçambique. A rota que conduzia ao sudeste africano era a mais longa de todas

envolvidas na atividade negreira e foi considerada apenas como uma alternativa às demais

fontes de escravos, exceção feita para as ilhas francesas situadas no oceano Índico.

Algumas regiões africanas mantinham relações estreitas com específicas áreas na

América portuguesa. Amazônia,147 por exemplo, comercializou especialmente com

Senegâmbia por quase toda a vigência do tráfico brasileiro. A Senegâmbia estava mais

próxima da Amazônia do que outras regiões africanas e convenientemente localizada para

se engajar no sistema triangular entre Portugal, África e Amazônia. Embora a Senegâmbia

tenha sido uma das primeiras fontes de escravos no comércio transatlântico, ela pouco

atuou no início dessa atividade na Bahia. O comércio de escravos começou como uma

atividade bem desenvolvida em meados do século XVI e, desde então, a região Centro-

Ocidental africana foi a principal fonte abastecedora de cativos, principalmente para as

capitanias produtoras de açúcar do nordeste, como Bahia e Pernambuco. Esse padrão

permaneceu até fins do século XVII, quando um surto de varíola na região de Angola

147 Aqui Amazônia compreende a região onde se localizavam os portos de Belém do Pará e São Luís do Maranhão.

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obrigou os navios baianos e pernambucanos a buscar uma nova fonte alternativa de

escravos: a Costa da Mina.

Quadro 1.8 – Origem africana dos escravos desembarcados na Bahia,

c.1580-1850 (% de escravos desembarcados)

Regiões Costeiras Africanas

Períodos Senegâmbia Costa da

Mina

Baía de

Biafra

África

Centro-

Ocidental

Sudeste

Africano

1580-1600 - - - 100 -

1601-1625 - - - 100 -

1626-1650 18,7 - 6,3 75,0 -

1651-1675 - - - 92,9 7,1

1676-1700 - 72,7 11,2 15,3 0,7

1701-1725 0,9 80,4 9,3 9,0 0,4

1726-1750 1,2 56,2 7,5 35,0 -

1751-1775 0,3 59,1 2,6 37,2 0,7

1776-1800 - 61,8 4,4 33,5 0,3

1801-1825 0,3 51,3 9,2 35,2 3,9

1826-1850 1,7 30,5 4,4 62,4 1,0

Fonte: www.slavevoyages.org

O quadro 1.8 nos fornece, em períodos de 25 anos, a contribuição de cada região

africana para a Bahia por percentagem de escravos desembarcados. Nele podemos observar

a mudança de rota ocorrida no comércio de escravos da Bahia, direcionadas para a região

da Costa da Mina, nas últimas décadas do século XVII. Os baianos tinham algumas

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vantagens em relação aos demais comerciantes brasileiros para atuar nesta região africana,

como, por exemplo, o tabaco enrolado no melaço, muito apreciado pelos chefes africanos

dessa localidade e o ouro contrabandeado da região de Minas Gerais.148

Nos primeiros vinte e cinco anos do Setecentos, a Costa da Mina forneceu cerca de

80% de todo o escravo desembarcado em Salvador. Mas, a partir de meados da década de

1720, os principais portos de resgate de cativos localizados na Costa da Mina (Ajudá,

Popó, Jaquin), passaram a ser atacados pelo reino do Daomé que iniciara sua expansão do

interior do continente para o litoral ainda nos primeiros anos do século XVIII. As guerras

locais desarticularam as redes mercantis que abasteciam a costa africana com levas de

escravos vindas do interior. Alguns dos mais importantes embarcadouros da região foram

destruídos, como Jaquin. Muitos correspondentes de comerciantes baianos foram presos,

escravizados ou assassinados. A estrutura comercial estabelecida há anos fora

desarticulada. Foi um período danoso para o comércio negreiro da Bahia.149

Com a impossibilidade de atuar nos portos tradicionais, a solução encontrada por

alguns comerciantes foi negociar em outras áreas africanas. Como a região do Congo-

Angola era dominada por mercadores cariocas, restou aos baianos a opção de se

direcionarem mais para ao sul, especificamente no porto de Benguela. Assim, percebemos

o aumento percentual dessa localidade na participação do comércio negreiro baiano. De

todo modo, por ser uma região nova, onde não havia vínculos comerciais preexistentes, as

negociações nessa área não foram tão frutíferas, como àquelas outrora realizadas na Costa

da Mina. Não à toa verificamos no gráfico 1.1 um período longo de decréscimo do fluxo de

148 VERGER, op. cit., 1987, pp. 19-31. 149 Sobre os conflitos na região africana da Costa da Mina cf. VERGER, op. cit., 1987; LAW, Robin. The Slave Coast of West Africa, 1550-1750. Oxford: Oxford University Press, 1991; MANNING, Patrick. Slavery, colonialism and economic growth in Dahomey, 1640-1960. Cambridge: Cambridge University Press, African Studies Series # 30, 2004; RIBEIRO, “The Trans-Atlantic Slave Trade to Bahia (1582-1851)”. In: ELTIS, David & RICHARDSON, David. (Orgs.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven: Yale University Press, 2008, pp. 130-154.

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africanos que desembarcavam na cidade de Salvador, o qual se inicia na década de 1720 e

perdura até a década de 1780, atingindo seu menor nível na década de 1760.

Gráfico 1.1: Médias qüinqüenais de entradas estimadas de escravos africanos na Bahia,

1582-1855

1

3

5

7

9

11

13

15

1676-1

680

1686-1

690

1696-1

700

1706-1

710

1716-1

720

1726-1

730

1736-1

740

1746-1

750

1756-1

760

1766-1

770

1776-1

780

1786-1

790

1796-1

800

1806-1

810

1816-1

820

1826-1

830

1836-1

840

1846-1

850

De

sm

ba

rqu

es d

e e

scra

vo

s p

or

mil

Fonte: www.slavevoyages.org

A recuperação iniciou-se na década seguinte, calcada na reorientação do comércio a

partir da abertura de novos portos para o trato negreiro no litoral da África Ocidental. Com

o fechamento das antigas praças litorâneas de embarque de escravos na Costa da Mina e

diante de resultados inexpressivos obtidos na região de Benguela, os negociantes baianos

passaram a comercializar em portos mais a leste, na baía do Benin, tais como: Onim (atual

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cidade nigeriana de Lagos), Porto Novo e Badagri. Desta forma, como observamos no

gráfico 1.1, o tráfico baiano de escravos foi revigorado, atingindo, a partir de então, novos

patamares, parecidos com aqueles das primeiras décadas do Setecentos. Não obstante, o

fortalecimento do comércio negreiro estimulou, como já mencionado, o desenvolvimento

da produção no setor agrário da América portuguesa, nas últimas décadas do século XVIII,

principalmente na região de Salvador e seu Recôncavo.

No século XIX, a demanda por escravos da Bahia passou a se alimentar não apenas

da economia, mas igualmente da política. Houve pressão por parte dos ingleses pelo fim do

tráfico de escravos desde a primeira década do século. Várias embarcações baianas foram

apreendidas pela marinha britânica no litoral africano. Tais pressões resultaram em 1815,

na assinatura de um tratado entre Portugal e Inglaterra, que aboliu o comércio de escravos

em portos africanos ao norte da Linha do Equador.150

À medida que o abolicionismo expandia-se pelo Atlântico, ele minava alguns

aspectos básicos do tráfico de escravos para a Bahia. Restringiu o acesso às fontes de

escravos com a proibição do comércio ao norte da Linha do Equador, em 1815. Assim,

muitas das regiões africanas fornecedoras de escravos passaram a estar fora do limite para

o comércio legal. Senegâmbia, Costa da Mina e Baía de Biafra estão localizadas ao norte

do Equador. A Costa da Mina em particular, como observamos no quadro 1.8 era a maior

fonte de escravos para a cidade de Salvador.

Comerciantes de escravos em toda a América reagiram contra a expansão do

abolicionismo. Para eles, a abolição violava leis naturais e estava sendo politicamente

imposta pelo poder da marinha britânica. Os traficantes baianos, por essa razão, também

tentaram quebrar a expansão do abolicionismo. Eles, primeiro, buscaram importar escravos

de regiões africanas localizadas no Atlântico sul. O quadro 1.8 nos mostra que a 150 BETHELL, Leslie. The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1869. Cambridge: University Press, 1970, capítulos 1 e 2.

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importação de cativos oriundos da África Centro-Ocidental cresceu mais no século XIX,

como também o Sudeste Africano passou a ser mais visitado. Esta região já havia

abastecido alguns negreiros brasileiros com poucos escravos em períodos anteriores, mas

surgiu como uma importante fornecedora de cativos apenas no século XIX. Moçambique

forneceu alguns escravos para a Bahia no século XVII devido à ocupação de holandeses na

região de Angola, mas, no século XIX, tornou-se a fonte complementar da demanda de

braços africanos para todas as regiões do Brasil.

Embora ilegal, os traficantes continuaram navegando para as regiões situadas ao

norte do Equador. O quadro 1.8 mostra também que a Bahia ainda estava engajada

fortemente no comércio de escravos da Costa da Mina, apesar da presença dos cruzadores

britânicos nesta região. Os traficantes baianos também criaram mecanismos para frustrar a

interdição de se comerciar escravos na África Ocidental. Muitos partiam com passaportes

falsos para ir comprar africanos em Molembo ou Cabinda, mas, na verdade, se dirigiam

para os portos de Ajudá, Lagos, Porto Novo e Badagri. O que comprova tal subterfúgio é

que das 54 embarcações capturadas na baía do Benin e julgadas em Serra Leoa, entre 1822

e 1830, 40 tinham passaportes emitidos para Molembo, na região Congo-Angola.151 Um

grande número de capitães de navios, carregados ou não com escravos, quando pegos pela

marinha britânica, justificavam a sua presença acima da Linha do Equador mostrando a

permissão que tinham para transitar pela rota de Molembo, na qual “sempre” incluía uma

escala estratégica nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Com isso, muitos acabavam burlando

a proibição aproveitando-se para se dirigir aos antigos portos abastecedores de escravos na

África Ocidental. Assim fez o comandante do navio Estrela que tinha permissão para tocar

151 VERGER, op. cit., 1987, p. 407.

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nas ditas Ilhas a caminho de Molembo. Porém, acabou capturado quando carregava sua

embarcação com escravos que acabara de adquirir no porto de Badagri, em 1822.152

Alguns comerciantes tiveram o requinte de providenciar dois passaportes para a

mesma embarcação, um destinado à região de Molembo ou Cabinda para comerciar

escravos e outro para a Costa da Mina, objetivando o comércio de produtos legais. É o caso

de Anacleto José Barbosa, proprietário dos brigues Leal Portuense e “Furão”. Ambas as

licenças foram retiradas em 18 de julho de 1829. O primeiro navio, que nunca saiu de

Salvador, tinha licença para o comércio legal de azeite de palma na Costa da Mina. Já o

suposto “Furão”, apelido do Leal Portuense, voltou em 06 de novembro de 1829, a

princípio de Cabinda com 568 escravos.153 Na verdade, o comandante levou consigo as

duas licenças dadas ao mesmo navio para se assegurar que se fosse vistoriado em águas

proibidas escaparia ileso, mostrando a licença que lhe garantia estar na região para fazer o

comércio legal de óleo de palma. A segunda licença (a de resgatar escravos em Cabinda),

era necessária para entrar em Salvador com o carregamento de escravos comprados na

Costa da Mina. O plano só não funcionava quando a embarcação era vistoriada no retorno

à América ainda em águas do hemisfério norte. Nesses casos, o navio, a carga e a

tripulação eram arrastados pela marinha inglesa até Serra Leoa, Rio de Janeiro ou Londres

onde ocorria o julgamento do comandante da expedição por um tribunal misto anglo-

português.154 Invariavelmente, o capitão acabava condenado, a embarcação apreendida e os

africanos libertados. Havia apelação por parte do governo brasileiro em favor da

absolvição do comandante que era quase sempre negada. Pierre Verger conseguiu, a partir

da documentação produzida com esses julgamentos, constituir vinte e cinco combinações

com os nomes verdadeiros e os apelidos usados pelos donos das embarcações para driblar

152 www.slavevoyages.org 153 www.slavevoyages.org 154 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil(1800-1850). Campinas: Ed. da Unicamp, 2000, p. 98.

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o Tratado de 1815.155 Além do uso dessas artimanhas, os comerciantes de escravos

buscaram modernizar suas embarcações, empregando navios a vapor no comércio de

escravos transatlântico a fim de escapar do cerco britânico.

Assim, mesmo nos anos subseqüentes ao Tratado de 1815, o tráfico baiano

manteve-se com vigor, como observamos no gráfico 1.1. Apenas entre 1822-24, devido às

lutas travadas na Bahia pela Independência do Brasi,l houve danos ao comércio

transatlântico de escravos. Em 1822, assistiu-se também a Inglaterra condicionar a

legitimação internacional do novo país à abolição do tráfico e um tratado foi finalmente

assinado em 23 de novembro de 1826. De acordo com o artigo primeiro, ao fim de três

anos, contados a partir da ratificação do documento pelo governo inglês, o comércio

negreiro seria considerado ilegal para todos os súditos do imperador brasileiro. Mesmo

com a proibição do tráfico, levas de africanos continuavam a desembarcar em Salvador,

após 1830. Esses desembarques clandestinos continuaram a ocorrer com bastante

freqüência entre 1830-1850, sob a complacência das autoridades locais, nas ilhas de

Itaparica e dos Frades e na praia de Itapuã. O número estimado de escravo importado na

Bahia nesse período é de 75.872.156 De forma geral, pairava a idéia de que a prosperidade

do Brasil ainda era depende do tráfico de africanos. Ao mesmo tempo em que crescia a

repressão, os negreiros baianos aumentavam a capacidade de ludibriá-la, como Joaquim

Pereira Marinho e José de Cerqueira Lima, dois dos maiores contrabandistas de escravos

desta época.157

Em fins dos anos 40 no século XIX a situação mudou. Pressões pelo fim do tráfico

negreiro partem desta vez do próprio Brasil. Parece que as sucessivas humilhações

impostas pela repressão inglesa, ao longo dos anos, estavam resultando numa mudança de

155 VERGER, op. cit., 1987, pp. 440-4. 156 www.slavevoyages.org 157 XIMENES, Cristina Ferreira Lyrio. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia, 1828-1887. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1999. Dissertação (mestrado).

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pensamento acerca do comércio negreiro. Outro fator, e talvez mais decisivo na forma de

encarar a importação de africanos, foi as muitas revoltas ocorridas no Brasil,

particularmente na Bahia, na primeira metade do século XIX. Muitos temiam que

ocorresse no Brasil o que se passou no Haiti no início dos Oitocentos. Desta forma, em

1850, a Lei Eusébio de Queirós, pôs fim ao comércio transatlântico de escravos nos portos

brasileiros.158

Construída para abrigar a sede do poder político-administrativo da colônia, a cidade

de Salvador se destacou pelas suas atividades mercantis. Eram diversos os produtos

comercializados no porto. As conecções mercantis ligavam a capital da colônia a diversas

partes do Império localizadas na Europa, Ásia, África ou interior da América portuguesa.

Na segunda metade do século XVIII, observamos que a capitania da Bahia vivia

um desenvolvimento no setor agrícola, calcado na produção de itens voltados para o

mercado externo, como açúcar e para o atendimento da subsistência como as lavouras de

mandioca, onde se produzia a farinha, gênero fundamental na dieta da população da cidade

e do meio rural. Essa atividade dependia sobre maneira do braço escravo importado do

continente africano. Cativos que eram negociados por ouro vindo das Gerais e rolos de

tabaco produzidos em roças, fazendas e sítios localizados no entorno de Salvador.

A população de Salvador, centro urbano mais populoso da América portuguesa no

Setecentos, era em sua maioria composta por pessoas de cor, decorrência do peso do

tráfico transatlântico de escravos que anualmente fazia chegar ao porto soteropolitano

grandes levas de africanos. Salvador recebeu cerca de um terço do volume total de

desembarque de cativos áfricos efetuadas na América portuguesa, mostrando o peso dessa

praça mercantil no comércio internacional de escravos.

158 Sobre o debate a cerca do fim do tráfico de escravos no Brasil cf. RODRIGUES, op. cit., 2000.

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O trato negreiro estruturado de forma bilateral pôs em contato regiões das duas

margens do Atlântico. Do lado africano, se destacavam a Costa da Mina pelo importante

papel desempenhado como principal fornecedora de escravos, a partir de fins do século

XVII, e a presença constante da oferta de cativos da região Congo-Angola.

Essa característica diversificada do tráfico baiano garantiu não apenas o suprimento

da demanda por mão-de-obra, mas, também, devido às diferentes origens dos africanos

desembarcados, vindo de vários recantos africanos, matizou a população soteropolitana.

Muitos estudiosos tendem a ver o Rio de Janeiro como o centro do comércio de escravos e

conseqüentemente a fonte de diversidade étnica no Brasil. Entretanto, o centro de tal

diversidade nas origens dos escravos concentra-se, de fato, nas regiões ao norte do Rio,

principalmente na Bahia que recebeu, ao longo dos séculos, grandes levas de cativos

vindos da Costa da Mina e da região Congo-Angola.

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CAPÍTULO II

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O mercado de compra e venda dos bens rurais, urbanos e comerciais

A proposta desse capítulo é apontar os padrões de investimentos da sociedade de

Salvador entre os anos de 1750 e 1800. Para tanto, utilizaremos as escrituras públicas

referentes aos dois ofícios que existiam neste período na cidade. Essa documentação se

encontra depositada no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). A catalogação não

foi feita por ofícios, mas sim por nome de tabelião o que nos impossibilita saber de qual

cartório provém cada livro analisado. Infelizmente, devido ao grau de degradação no qual

se encontram esses livros de notas, muitos registros ficaram impossibilitados de serem

trabalhados. De todo modo, ainda consideramos esse material de fundamental importância,

pois abrange todo o período da pesquisa.

Sabemos que a análise a seguir não busca apontar a verdade numérica no que tange

à compra e venda da sociedade soteropolitana colonial. Isso ocorre não só pelo fato de não

termos conseguido levantar toda a documentação notarial devido ao já mencionado estado

de degradação ou pela perda do material ao longo dos anos, mas também por acreditarmos

que nem tudo que foi transacionado no período histórico foi registrado. Como nos foi

alertado por Antônio Carlos Sampaio, baseado nas Ordenações Filipinas, apenas os bens de

raiz com valor acima de 4$000 e os móveis acima de 60$000 tinham que ser registrados

em escrituras públicas.159 Além disso, é possível que muitas transações envolvendo bens de

maior monta não tivessem sido registrados pelo simples motivo de envolverem pessoas que

confiassem umas nas outras, como por exemplo, a venda de uma propriedade de pai para

filho. Assim sendo, o que buscamos é mostrar com as escrituras a representatividade de

alguns padrões de investimentos feitos pela sociedade da época. Além disso, ao longo da

159 SAMPAIO, Antônio C. J. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 54.

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tese poderemos confrontar os números apurados nas escrituras com outros, obtidos em

fontes de natureza diversa, o que nos possibilitará uma maior acuidade com os dados e

maior refinamento de nossas análises.

Há uma variedade de escrituras públicas, compondo um conjunto extremamente

heterogêneo. Tal diferenciação nos permite abordar diversos aspectos da vida cotidiana dos

habitantes de Salvador. Alguns exemplos dessa farta documentação são as procurações,

escrituras de doação de patrimônio, fiança, confissões de dívidas, formação de sociedade,

de alforrias, compra e venda, empréstimos. Nessa parte do trabalho, nos limitaremos as de

“compra e venda”. Já as de empréstimos serão analisadas no capítulo 3, enquanto as de

doação no capítulo 4.

Desta forma, procurei levantar as escrituras de “compra e venda” (geralmente

intituladas “venda e quitação”) qualquer que fosse o objeto transacionado. Após a

constituição de um banco de dados com tais informações, busquei separar esse material em

cinco categorias diferentes: negócios rurais, negócios urbanos, negócios comerciais,

embarcações e outros.160

Após a coleta do material e a imersão no banco de dados, buscamos agrupar as

informações por décadas para uma melhor análise. Cabe mais uma vez lembrar que

estamos cientes de que as diversas formas de investimentos de uma sociedade colonial e,

por conseguinte, de sua reprodução não passam apenas no mercado. Existem outros

mecanismos que abordaremos em um capítulo posterior.

160 Foram extremamente pequenos os casos que classificamos como outros, como por exemplo, todo tipo de objetos, escravos e pequenas manufaturas.

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88

Quadro 2.1 – Participação percentual dos diversos tipos de vendas no valor total transacionado na cidade de Salvador entre 1751 e 1800 por

décadas (em mil-réis)

Negócios rurais Negócios urbanos Negócios comerciais Embarcações Outras vendas Valor total nos

negócios de compra e venda

Empréstimos Período

Valor N.E valor N.E Valor N.E valor N.E valor N.E valor N.E Valor N.E 1751-60 136:537$681 82 92:044$044 116 13:750$820 17 7:650$000 6 249:981$725 221 216:141$678 75 % 54,6 37,1 36,8 52,5 5,5 7,7 3,1 2,7 100 100 86,5 33,9 1761-70 70:271$079 69 49:727$990 127 37:964$000 14 6:400$000 10 107$290 1 164:470$359 220 79:569$291 91 % 42,7 31,4 30,2 57,7 23,1 6,4 3,9 4,5 0,6 0,4 100 100 48,4 41,4 1771-80 147:634$899 129 77:927$300 184 13:689$753 33 21:070$000 19 1:308$000 9 261:629$952 374 159:155$612 195 % 56,4 34,5 29,8 49,2 5,2 8,8 8,0 5,1 0,5 2,4 100 100 60,8 52,1 1781-90 103:822$146 121 126:248$115 191 46:503$073 63 17:212$200 20 3:411$115 13 297:196$649 408 205:202$486 185 % 34,9 29,6 42,5 46,8 15,6 15,4 5,8 4,9 1,1 3,2 100 100 69,0 45,4 1791-1800 154:657$007 169 171:581$011 258 102:100$022 96 32:364$980 32 5:113$865 15 465:816$885 570 303:622$507 237 % 33,2 29,6 36,8 45,3 21,9 16,8 6,9 5,6 1,1 2,6 100 100 65,2 41,6

Obs.: N.E = número de escrituras

Fonte: Anexo 1.

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246

Se os inventários post-mortem funcionam como “fotografias” marcando um

instante da vida de um indivíduo, as escrituras funcionam como um “filme”. Sua análise

permite ver o mesmo indivíduo atuando em diversos momentos ao longo de sua existência.

Além disso, elas refletem as estruturas da sociedade e suas conjunturas econômicas. De

início, elaboramos a quadro 2.1 a partir de 1804 escrituras de “compra e venda” e 793

escrituras de “empréstimos”.

De forma geral, em Salvador os bens arrolados na documentação de venda e

quitação, eram do setor rural ou de prédios urbanos, tendo esse último um peso maior no

número de escrituras (49,1% do total). Para todos os períodos, os negócios envolvendo

bens urbanos são majoritários. O que pode explicar o peso da quantidade de transações

envolvendo negócios urbanos é o fato de estarmos trabalhando com uma área urbana (a

documentação analisada neste capítulo foi produzida nos dois cartórios que se encontram

no perímetro urbano de Salvador).

As escrituras envolvendo bens agrários giravam em torno de 30% do total. Mesmo

tendo uma participação inferior no total da escrituras, nas décadas de 1750, 1760 e 1770, o

valor transacionado envolvendo bens rurais foi majoritário. Esses dados são derivados não

só do maior valor dos bens agrários frente aos demais como também refletem a expansão

da produção agrícola pela qual passava a capitania da Bahia no período analisado, como

foi abordado no capítulo 1. A partir da década de 1780, notamos um decréscimo na

proporção dos recursos investidos nesses bens. Contudo, eles continuaram a drenar cerca

de 30% do capital alocado nas negociações de compra e venda no mercado soteropolitano.

Por seu turno, situação diferente é percebida quando analisamos os bens urbanos.

Como dito anteriormente, embora fossem majoritários em números de escrituras para todos

os períodos, isso não reflete no montante negociado. Somente nas duas últimas décadas do

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século XVIII, os valores envolvendo negócios urbanos tornaram-se mais representativos

do que os rurais.

Um dado que nos chama atenção é o decréscimo dos valores dos negócios urbanos

ao longo dos anos. Se entre 1751-60 chegaram a representar 36,8% de todo o montante

negociado, no período de 1771-80 esse percentual cai para 29,8%, isso sem ter ocorrido

um decréscimo percentual significativo de escrituras envolvendo esse tipo de bens, que

poderia explicar tamanha queda do volume transacionado. Na década de 1751-60, cerca de

52,5% das escrituras envolviam bens urbanos. No decênio seguinte essa participação

aumentou para 57,7%, entretanto a representatividade dos recursos caiu de 36,8% para

30,2%. A explicação para esse decréscimo dos recursos alocados no mercado de compra e

venda de bens rurais reside no preço dos imóveis da cidade de Salvador.

De maneira geral, os bens urbanos caracterizavam-se por dois tipos de habitação: o

sobrado e a casa térrea. Segundo, Nestor Reis Filho, além das dimensões, a diferença

principal estava no tipo de piso, assoalho no sobrado e “chão batido” na casa térrea. Assim,

definiam-se as relações entre os tipos de habitações e estratos sociais. Os pisos térreos dos

sobrados, também de terra batida, quando não eram usados como lojas, destinavam-se aos

animais, escravos ou permaneciam vazios, mas nunca eram utilizados pelo proprietário e

sua família.161

Na paisagem baiana, o mais comum era a presença de casas térreas. Havia também

as “casas nobres”. Diferente dos sobrados que eram estreitos e fundos, permitindo a

abertura de poucas janelas, a casa nobre, geralmente situadas nas cercanias do centro da

urbe, eram mais elegantes, possuíam um espaço maior , apresentando, assim um número

maior de janela e um maior espaço interior refletindo numa maior comodidade. As casas

mais ricas preservavam a intimidade, com salas e espaços definidos para as mulheres,

161 REIS FILHO, Nestor G. Quadro de arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1997, p.28.

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hóspedes e escravos. Existiam também aposentos destinados às orações, repouso, lazer,

alimentação, etc.162

Dos inventários post-mortem da cidade de Salvador elaborados entre 1760 e 1808,

arrolados por Maria José Rapassi Mascarenhas, em cerca de 50% continham casas

próprias, em chãos próprios ou foreiros. Essa representatividade se fazia em todas as faixas

de fortuna. Muitos inventariados eram proprietários de uma ou mais casas de aluguel.163

Vejamos o gráfico 2.1. Nele, podemos visualizar o preço médio dos bens urbanos

arrolados nas escrituras públicas. Foi possível avaliar o preço de 876 imóveis, entre

sobrados (266) e casas térreas (570). Salta aos olhos a desvalorização que ocorreu no valor

das casas, cerca de 40% nos primeiros trinta anos da nossa amostragem, corroborando com

a informação obtida no quadro 2.1 sobre o decréscimo percentual do montante total

envolvendo as transações dos bens urbanos. A partir de 1780, notamos uma melhora nos

preços das casas, período no qual aumentaram percentualmente os investimentos nos bens

urbanos. Já os sobrados tiveram uma queda de 10% na década de 1760. Por volta de 1775

os valores desses imóveis voltaram a subir recuperando as perdas dos anos anteriores. Ao

que parece a diminuição dos valores dos imóveis deveu-se a fatores conjunturais.

A desvalorização dos imóveis urbanos pode estar atrelada à mudança da sede do

vice-reinado para a cidade do Rio de Janeiro, em 1763, acarretando um esvaziamento

populacional de Salvador. Isso foi verificado em dados apontados no quadro 1.3 do

capítulo 1. Calcula-se que no ano de 1768, o tamanho da população fosse de 40 922

pessoas. Esse contingente decresceu, atingindo em 1775 o número de 33 635 habitantes.

No final da década teria ocorrido uma recuperação populacional, quando se estima que no

ano de 1780 a capital baiana contava com 39 209 pessoas. Apesar dessa recuperação, essas

162 ALGRANTI, Leila. “Famílias e vida doméstica.” In: NOVAIS, Fernando & SOUZA, Laura de Mello e (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 101-103. 163 MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais – elite riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 1998,p. 163.

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estimativas nos mostram uma queda substancial no ritmo de crescimento populacional da

cidade de Salvador na segunda metade do século XVIII. Conseqüentemente, teria ocorrido

uma maior oferta de moradia frente à demanda pouco crescente.

Gráfico 2.1 – Média dos valores dos bens urbanos, Salvador,

1751-1800 (em mil réis)

0

100000

200000

300000

400000

500000

600000

700000

800000

900000

1000000

1100000

1200000

1751-60 1761-70 1771-80 1781-90 1791-1800

sobrado casa

Fonte: Anexo 2.

Além disso, verificamos no capítulo 1 que a década de 1760 representou um mau

momento da economia de Salvador, exemplificado pela queda no nível do comércio,

principalmente do tráfico negreiro. Essa atividade era fundamental, visto que era a forma

primordial da reprodução física do cativo na América portuguesa. A revenda de escravos

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250

recém desembarcados para as diversas áreas da América lusa gerava capital que adentrava

na cidade e fomentava o seu mercado. Nesse caso destacava-se o pagamento em ouro feito

pelos donos de lavras em áreas do interior da própria capitania da Bahia, de Minas Gerais,

Goiás e Mato Grosso, regiões que continuavam a ser abastecidas de cativos por

comerciantes baianos.164 Assim, o declínio do comércio de escravos acarretou um menor

volume de recursos a serem investidos na cidade. Nesse sentido, na década de 1760, o

volume de dinheiro aplicado nas negociações caiu em todos os setores, assim como no

número de escrituras, com exceção das transações envolvendo bens comerciais, cuja

representatividade saltou de 5,5 para 23,1 %. Na verdade, esses números são fruto de uma

grande negociação envolvendo a venda de um trapiche no ano de 1769, por 30:000$000

efetuada pelo alcaide-mor da cidade, José Pires de Carvalho e Albuquerque e sua esposa,

Isabel Joaquina de Aragão, ao capitão e homem de negócio, Teodósio Gonçalves da Silva e

sua mulher, Ana Luíza de Queirós e Silva.165 De todo modo, como as demais categorias,

houve também um decréscimo na participação de escrituras envolvendo bens mercantis na

década de 1760.

De forma geral, os preços na cidade de Salvador permaneceram estáveis entre os

anos de 1750-80. Ainda na década de 1770, alguns produtos tiveram seus valores

aumentados devido ao desenvolvimento econômico, mas nada que causasse uma

diferenciação brutal em comparação aos preços verificados na metade dos Setecentos. A

arrancada vai ocorrer conforme aponta Kátia Mattoso em meados da década de 1780, com

o considerável aumento no preço do açúcar.166 Entre 1750-73, segundo a autora, a curva do

164 Sobre o comércio de escravos da Bahia para as demais regiões da América portuguesa, cf. RIBEIRO, Alexandre V. “O comércio de escravos e a elite baiana no período colonial” In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos de Jucá; ALMEIDA, Carla Maria (orgs.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 311-35. 165 APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 110, p. 39. 166 MATTOSO, Kátia. “Conjuntura e sociedade no Brasil no final do século XVIII: preços e salários às vésperas da Revolução dos Alfaiates, Bahia, 1798”. In: MATTOSO, Kátia. Da revolução dos Alfaiates à

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preço desse produto mostra-se como uma linha horizontal, apesar de ligeiras altas em 1756

e 1762.167

Dados levantados por D. Alden também nos mostram certa estabilidade do preço do

açúcar no período considerado. A média da arroba entre os anos de 1751-55 foi de 1$386.

No lustro seguinte houve um pequeno aumento acarretando um preço médio anual de

1$583. Entre 1761-65, o valor médio voltou a diminuir (1$423), atingindo 1$327 anuais

entre 1766-68.168

Gráfico 2.2 – Médias qüinqüenais dos índices de preços, Salvador, 1741-69

0

30

60

90

120

150

1541

-45

1746

-50

1751

-55

1756

-60

1761

-65

1766

-69

açúcar

carne de vaca

farinha demandioca

galinhas

azeite de oliva

Fonte: ALDEN, Dauril. “Los movimentos de precios em Brasil antes, durante y después del auge del oro, con referencia especial al mercado de Salvador, 1670-1769”. In: JOHNSON, Lyman & TANDETER, Enrique (orgs.). Economías coloniales – precios e salarios en America Latina, siglo XVIII. México: Fundo de Cultura Econômica, 1992, pp. 405-6.

riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador: Corrupio, 2004, p. 43. 167 Ibidem, p. 36. 168 ALDEN, Dauril. “Los movimentos de precios em Brasil antes, durante y después Del auge Del oro, con referencia especial al mercado de Salvador, 1670-1769”. In: JOHNSON, Lyman & TANDETER, Enrique (orgs.). Economías coloniales – precios e salarios en America Latina, siglo XVIII. México: Fundo de Cultura Econômica, 1992, p. 376.

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Para além do açúcar, D. Alden estipulou o índice de preços para outros gêneros

comercializados na cidade de Salvador no período de 1710-1769, como azeite de oliva,

carne de boi, galinha e farinha de mandioca. Com tais informações, foi possível elaborar o

gráfico 2.2 estabelecendo médias qüinqüenais Nos limitamos a trabalhar com os dados

referentes aos anos de 1741 a 1769 (último ano com valores disponíveis).

A partir do gráfico 2.2, observamos que os preços mantiveram-se estáveis com

tendências de quedas no último qüinqüênio, exceção ao azeite de oliva, artigo importado

de Portugal, que oscilou bastante durante todo o período, tendendo à alta no período final

da amostra. O preço deste produto em Salvador estava atrelado aos registrados em Lisboa e

no Porto. Essas últimas altas refletem as insuficiências do abastecimento devido aos

embarques irregulares nos portos portugueses, situação que foi agravada com o terremoto

na cidade de Lisboa no ano de 1755. Depois desse evento, os preços subiram

constantemente, mantendo-se altos até o final do período.169

O preço da carne de boi no mercado de Salvador subiu até a década de 1730 e

posteriormente permaneceu estável, exceto em anos de seca. A carência desse tipo de

alimento verificada no início do século XVIII se dissipou com a permissão de se criar gado

dentro da faixa de 40km do litoral baiano. Mas sem dúvida, foi do interior do nordeste,

principalmente da capitania do Piauí, bem como do desenvolvimento gradual da atividade

pecuária nas antigas áreas de mineração que garantiram ao mercado de Salvador preços

estáveis a partir de meados do século.170 Por volta do ano de 1772, inicia-se um período de

alta, ainda que de forma gradual, que se acelerou no ano de 1792 com a diminuição da

entrada de reses no mercado de Salvador. Segundo dados de K. Mattoso, no ano de 1791

foram levadas ao abatedouro da capital baiana 21 044 cabeças de gado. No ano seguinte

esse número despencou para 15 698, voltando a se recuperar apenas na virada do século. 169 ALDEN, op. cit., 1992, pp. 396-7; MATTOSO, op. cit., 2004, p. 37. 170 ALDEN, op. cit., 1992, pp. 382-3.

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Segundo Luís dos Santos Vilhena, essa era uma prática deliberada dos monopolistas que

especulavam como o preço da carne bovina.171 A política utilizada pelos fornecedores

diminuindo por conta própria a entrega de mercadoria objetivando o aumento dos lucros,

atrelada a uma onda de seca que atingiu a região entre 1790-3, seriam os motivos pela

elevação do preço da carne nos últimos anos dos Setecentos.172

A carne de galinha que fazia parte da dieta dos enfermos foi sempre mais cara do

que a carne bovina ao longo de todo o século XVIII. Segundo D. Alden, uma galinha

adulta pesando 900g valia de dez a vinte vezes mais que o mesmo peso de carne bovina.173

Os preços das aves permaneceram altos até 1730, quando começaram a baixar. Segundo o

gráfico 2.2, a carne de galinha manteve uma tendência de queda ao longo do período

analisado.

Um outro item fundamental na dieta do povo baiano era a farinha de mandioca,

como mencionamos no capítulo 1. Depois da escassez do produto, verificada na virada do

século XVII para o XVIII, o preço da farinha manteve em constante alta até a década de

1730. Já em meados do Setecentos encontrava-se em queda, resultado do desenvolvimento

de lavouras de mandioca por diversas áreas vizinhas a cidade de Salvador, mais

notadamente nas vilas do Recôncavo, conseguindo desta forma, atender a demanda

crescente no mercado baiano.174 Segundo dados apontados por B. J. Barickman, após 1770,

o preço da farinha continuou estável na Bahia. O preço médio do alqueire de farinha

comercializado em Salvador na década de 1850 não era mais alto em termos reais do que o

verificado para a década de 1780.175

171 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, vol. 1, 1969, p. 128. 172 MATTOSO, op. cit., 2004, pp. 39-40. 173 ALDEN, op. cit., 1992, p. 384. 174 ALDEN, op. cit., 1992, pp. 385-90; MATTOSO, op. cit., 2004, pp. 40-2; Sobre a cultura de mandioca e o fabrico da farinha no Recôncavo baiano cf. BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano – açúcar, fumo mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 175 BARICKMAN, op. cit., 2003, p. 159.

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De maneira geral, os índices de preços tanto dos itens produzidos internamente

quanto dos vindo do exterior tiveram um comportamento semelhante até o terremoto de

Lisboa. Depois de 1755, os produtos importados passaram a ter uma tendência de alta

enquanto que os produtos locais um viés de baixa. Em alguns casos mantiveram seus

índices até adiantados do século XIX.

Tão importante quanto os gêneros alimentícios para verificar a dinâmica do

mercado de Salvador é o valor do escravo. Em vários momentos houve aumento no preço

do cativo. Segundo Antonil, o valor de um escravo adulto em Salvador em 1704 era de

89$000. Oito anos depois era avaliado em 114$000.176 Nas décadas de 1720 e 1730, os

escravos eram vendidos por cerca de 3,3 vezes mais do que os que se vendiam na cidade de

Salvador na década de 1690.177 Essa alta era reflexo da carência de braços que se sentia na

cidade devido à alta demanda das regiões mineradoras. Com a diminuição da

produtividade mineral, os preços dos escravos caíram na Bahia. Dados levantados por D.

Alden mostram que no ano de 1738 um escravo era negociado por 200$000. Já em 1743, o

valor de um cativo era de 120$000, caindo para 100$000 no ano de 1756, voltando a subir

para 163$000 em 1769. A partir da década de 1770, com o aumento do comércio baiano na

Costa da Mina, o preço do escravo manteve-se estável até o início das pressões inglesas

para por fim ao tráfico transatlântico de escravos, nas primeiras décadas do século XIX.178

De maneira geral, os preços negociados na praça de Salvador a partir de meados do

século XVIII, mostravam uma certa estabilidade, não sendo caracterizado nenhum grande

surto “inflacionário”. Somente nos últimos anos dos Setecentos verificamos tendências de

alta, como a do açúcar e a da carne bovina. Portanto, o padrão observado na venda de casas

parece estar em conformidade com a estabilidade encontrada nos preços dos itens mais

176 ANTONIL, André João Cultura e opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, p. 272-3. 177 ALDEN, op. cit., 1992, pp. 377-8. 178 Ibidem, p. 378; BARICKMAN, op. cit., 2003, pp. 231-5; VERGER, op. cit., 1987.

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importantes do cotidiano do soteropolitano, parecendo ser um fator conjuntural a queda

verificada na década de 1760.

Antônio Carlos Sampaio trabalhou com as escrituras públicas dos cartórios do 1o. e

2o. ofícios de notas da cidade do Rio de Janeiro entre 1650-1750. Em suas análises,

Sampaio verificou comportamento parecido ao que observamos para a sociedade de

Salvador, até fins da década de 1770, qual seja: o forte peso dos valores das transações

envolvendo negócios rurais, embora não fossem predominantes em número de escrituras,

exceção feita à década de 1690, momento no qual representaram mais que a soma de todos

os outros negócios. Do mesmo modo, o autor chama atenção para o número significativo

de escrituras de bens urbanos, conquanto representassem uma fração pequena frente ao

total dos valores negociados. Para Sampaio, o peso do montante envolvido na aquisição de

bens rurais devia-se ao fato destes bens possuírem valores mais elevados do que aqueles

encontrados na urbe. Era no setor rural que se encontravam os bens de maior valor

agregado, como os engenhos.179

Tal percepção também é válida para o caso de Salvador. No ano de 1779, por

exemplo, Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco e sua mulher venderam um engenho com

todas as suas benfeitorias e escravos pela quantia de 30:000$000 a João Vilela de

Carvalho, homem de negócio da praça de Salvador.180 Por outro lado, nesse mesmo ano, a

soma de todos os bens urbanos negociados foi de 9:622$885, valor três vezes inferior a

negociação do engenho.181 O bem urbano de maior valor negociado em 1779 foi uma

morada de casa de sobrado vendida por Inocêncio José da Costa, capitão e homem de

negócio, a Antônio da Costa, cirurgião-mor da cidade, pela quantia de 1:700$000.182 Com

179 SAMPAIO, op. cit., 2003, p. 74. 180 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 120, p. 326v. 181 Conferir anexo 1. 182 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 120, p. 334v.

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o montante pago pelo engenho era possível comprar dezessete sobrados parecidos ao que o

capitão Inocêncio vendeu.

Quadro 2.2 – Valor médio dos bens arrolados nas escrituras de compra e venda em

Salvador, 1751-1800

Bens Média Mínimo Máximo

Sobrado (266) 745$000 66$000 3:300$000

Casa térrea

(610)

291$780 22$000 1:000$000

Engenho (29) 9:186$144 2:800$000 31:000$000

Fazendas de

cana (38)

3:586$800 800$000 9:900$000

Fazenda de

Gado (43)

2:450$000 200$000 8:800$000

Roças (45) 370$000 70$000 1:021$000

Fonte: APEB, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139). OBS: 1- valores em mil réis 2 - os números em parênteses referem-se a quantidade de bens avaliados nas escrituras.

O quadro 2.2 nos mostra dados relativos aos preços médios dos imóveis

transacionados em Salvador. Analisando o período como um todo, os valores de

negociação dos engenhos chegaram a variar no mínimo de 2:800$000 a um máximo de

31:000$000, sendo de 9:186$000 a média dos preços baseados na transação de vinte e

nove engenhos, incluídos terras, benfeitorias e escravos. Numa amostragem de trinta e oito

fazendas de cana observamos que o valor máximo de 9:900$000 e mínimo de 800$000,

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com média 3:586$800. Já as fazendas de gado bovino e cavalar tinham preços variando de

200$000 a 8:800$000, com valor médio de 2:450$000, verificado nas negociações de

quarenta e três fazendas. A comparação desses valores com os de sobrados e casas nos

permite constatar o peso e a quantia necessária para o investimento em bens rurais.

O valor da terra produtiva variava conforme o tipo de solo, de cultivo e localização.

Além disso, devia se levar em consideração também as benfeitorias e a existência de

equipamentos capazes de beneficiar o produto colhido. Era o caso dos engenhos, que por

estarem aptos a realizar a fabricação do açúcar. Segundo o quadro 2.4, um engenho valia

aproximadamente doze sobrados ou trinta e duas casas térreas. Não podia ser diferente,

pois ao contrário dos imóveis urbanos, os bens rurais tinham características produtivas,

compondo-se de moradia, terras para a plantação ou criação de animais, escravos,

ferramentas e, no caso dos engenhos, fábrica para a produção de açúcar. Cabe mais uma

vez ressaltar, que nesse momento a Bahia experimentava um desenvolvimento nas suas

atividades agrícolas, com o aumento da produção de açúcar, fumo e farinha, por exemplo,

como observado no capítulo 1.

Entre 1684-1725, período anterior ao analisado no quadro 2.2, Rae Flory constatou

que o valor de um engenho sem escravos variava de 1:400$000 a 33:300$000, sendo de

15:200$000 a média dos preços.183 Ainda segundo a autora, o gasto se elevava quando se

contabilizava o custo da mão-de-obra escrava. Calculando a necessidade de pelo menos

trinta homens para executar as tarefas cotidianas de um engenho, o valor médio subiria

para 20:000$000, superior, portanto ao período analisado neste trabalho. Infelizmente,

Flory não calculou os valores relativos aos bens localizados na urbe, o que nos impede de

fazer uma comparação temporal com dados apontados na quadro 2.4.

183 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. The University of Texas at Austin, PH.D teses, 1978, pp. 63-4.

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Schwartz calculou em seu estudo que os engenhos da Bahia variavam de um valor

mínimo de 10:620$000, em 1741 a 37:409$000, em 1816, sendo sempre o valor da terra

superior a soma dos escravos. Maria José Mascarenhas, verificou a partir dos inventários

post-mortem que a variação no valor dos engenhos era de 8:242$100 em 1762 a

30:406$000, em 1804. Apenas em um engenho inventariado o valor total da escravaria se

sobrepunha ao da terra. Assim, confirma-se que a terra cultivada era mais valiosa do que a

escravaria.184

Analisando o quadro 2.1 notamos o quanto importante era o investimento em bens

rurais. Mesmo com a queda verificada a partir da década de 1780, cerca de um terço dos

recursos continuavam a ser direcionados para o setor agrário. Grande parte do capital

acumulado em atividades mercantis era redirecionada para a agricultura.

A partir dos dados coletados em 178 inventários entre 1760 e 1800, por Maria José

Mascarenhas, montamos o quadro 2.3 que mostra o padrão de investimento dos indivíduos

na praça de Salvador.

Neste quadro verificamos que o setor de crédito era hegemônico, concentrando

entre 51,4 a 24,4% da riqueza dos baianos. O perfil disseminado do crédito nos inventários

soteropolitanos será analisado no capítulo seguinte. Por ora, observamos o investimento

nos demais setores. Logo abaixo do crédito, verificamos a forte presença do setor rural,

que representava entre 18,8 a 39,1% das aplicações. Essa informação corrobora o padrão

encontrado nas escrituras públicas de compra e venda, qual seja: a transferência de boa

parte do capital mercantil para o setor agrário.

184 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 118.

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Quadro 2.3 – Participação das atividades econômicas (%) nos inventários post-

mortem de Salvador, 1760-1800

Anos Inventários Montemor Dívidas

ativas

Escravos Bens

rurais

Bens

urbanos

Embarcações Prata

1761-

70

38 187:313$938 43,0 20,9 18,8 14,3 1,2 0,1

1771-

80

15 71:026$034 25,7 25,6 37,7 6,1 3,4 1,4

1781-

90

47 181:186$053 51,4 15,9 29,3 1,3 0,6 1,4

1791-

1800

78 490:427$785 24,4 17,3 39,1 17,4 0,5 1,3

Fonte: MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais – elite riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 1998, anexo 1.

Numa sociedade de Antigo Regime, o investimento em terra era um mecanismo

fundamental para a obtenção de status e prestígio social. Assim, acreditamos que embora

houvesse um crescimento do setor comercial em Salvador a partir de meados do século

XVIII, não havia uma distinção muito clara entre a elite mercantil e agrária da cidade. Tal

diferenciação se fez presente a partir do último quarto do século. Assim, entendemos a

atuação do grande comerciante Custódio Ferreira Dias, dono da maior fortuna

inventariada. Seu montemor foi avaliado em 304:156$594 sendo que 101:640$000 estava

atrelado a atividades rurais, posse de engenhos, roça e fazendas de gado. Outros

120:000$000 correspondia a sua dívida ativa, demonstrando sua participação como

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usurário, e 18:000$000 referentes a propriedades urbanas e comerciais, como lojas, casas e

armazéns.185

Outro homem de negócio que possuía investimentos em bens agrários era Manoel

Pereira de Andrade. Sua fortuna foi avaliada em 193:975$000. Aproximadamente

49:000$000 ou um quarto de sua riqueza estavam vinculados ao setor agrário, como a

posse de dois engenhos e uma fazenda de gado. Possuía 24:000$000 em escravos,

provavelmente, trabalhadores de suas propriedades rurais. Cerca de 27:700$000 referia-se

a bens urbanos e mercantis, como casas, lojas e embarcações. Assim como Custódio

Ferreira Dias, atuava como usurário. Possuía aproximadamente 41:000$000 em dívidas

ativas.186 Os perfis desses indivíduos mostram a diversificação dos investimentos ao longo

da vida, principalmente vinculados ao setor agrário, como terras, engenhos, fazendas e

plantéis de escravos.

Em quase todos os inventários encontramos a posse de terras, expressadas em

engenho, fazendas de cana ou gado, sítios ou roças. Assim como verificado nas escrituras

públicas, os bens rurais de maior valor eram os engenhos. Estes por sua vez estavam

sempre atrelados às fazendas de cana. Muitos proprietários plantadores de cana não

possuíam a moenda para beneficiar sua produção, por isso dependiam de um engenho. Este

por sua vez dependia de um grande número de lavradores de cana-de-açúcar para se manter

em funcionamento. Rae Flory calculou que para cada engenho havia a vinculação de

quinze plantadores de cana, que forneciam grande parte da colheita que era moída,

diminuindo, desta maneira, os gastos do senhor de engenho com plantações e escravaria.

As maiores fazendas de cana eram bem parecidas com os engenhos, obviamente sem a

moenda.187 Segundo Schwartz, na segunda metade do século XVIII, havia entre setecentos

185 APEB, judiciário Inventário de Custódia Ferreira Dias, 1801,4/1741/221/5. 186 APEB, judiciário Inventário de Manoel Pereira de Andrade, 1793, 4/594/2063/7. 187 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants,

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e oitocentos plantadores de cana no Recôncavo baiano.188 No Rio de Janeiro, em que pese

a o papel primordial dos engenhos no setor agrário, na segunda metade do século XVII, era

praticamente inexistente as fazendas de cana. Segundo Antônio Carlos J. de Sampaio, a

explicação para esse fato reside nas características específicas dos arrendamentos de

“partido de cana” feitos no Rio de Janeiro.189

Na Bahia, os lavradores de cana situados no interior de um engenho, eram

obrigados a entregar metade do açúcar produzido a partir da sua cana, e mais um terço ou

um quarto da parte que lhe cabia como pagamento pelo uso da terra.190 Muitos senhores de

engenho obtinham uma renda mediante arrendamento de parte de suas terras, visto que

desde o início do século XVII, toda a área canavieira do Recôncavo estava apropriada.

Sendo assim, as únicas formas de se ter acesso a terra era pela compra ou arrendamento.

Muitos proprietários, ao invés de receber em cana, preferiam que o pagamento pelo

arrendamento fosse feito em dinheiro. Tal prática, tornou-se uma importante fonte de renda

para a elite agrária colonial, de acordo a Francisco Carlos Teixeira da Silva.191

Segundo Rae Flory, a posse de bens vinculados à produção açucareira na Bahia era

bastante instável. Fazendas e engenhos trocavam de donos com muita freqüência. Isso

ocorria devido ao grau de endividamento dos senhores de engenho. Cerca de 60% desses

senhores eram imigrantes ou filhos de imigrantes portugueses, caracterizando uma

reciclagem continua no interior da elite agrária. Essa mudança de proprietário ocorria a

partir da constituição de laços matrimoniais entre membros do setor comercial com filhas

and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Austin, The University of Texas, 1978, tese (doutorado), p. 31. 188 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1995,p. 177-8. 189 SAMPAIO, op. cit., 2001, p. 106. 190 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003, pp. 171-7. 191 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História, UFF, Niterói, 1990, cf. cap. 8.

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de senhores de engenho ou pela aquisição via mercado. Desta forma, muitos homens de

negócio com o capital acumulado na atividade mercantil se aproveitavam para comprar

parte ou a totalidade de um engenho ou fazenda de cana, tornando assim novos senhores de

engenho.192

Além de unidades açucareiras, havia fazendas de gado no setor agrário baiano.

Dados computados de inventários por Maria José Mascarenhas mostram a presença de

vinte e cinco fazendas de gado, sendo que destas, vinte e quatro eram exclusivamente

bovinas enquanto uma era mista, pois além da criação de gado, plantava-se tabaco. O tipo

de gado criado nessas propriedades era vacum e cavalar. Praticamente em todos os

inventários, o valor do gado era superior ao da terra, que estavam quase todas localizadas

no sertão baiano e áreas interioranas de outras capitanias nordestinas.193

Um outro tipo de propriedade rural bastante comum nas escrituras de compra e

venda de Salvador era a roça. Em geral esse termo significava a cultura e não a

propriedade da terra. Segundo M. J. Mascarenhas a maior parte desses cultivadores não era

proprietária da terra. Plantavam em roças de chão foreiros, pagando foros anuais ou

sazonais aos donos da terra. Nos inventários analisados pela autora, verificou-se a

existência de mais de setenta famílias donas de roças, situadas em sua maioria no entorno

de Salvador.194

As roças de Salvador se distinguiam quanto à produção de alimentos de

subsistência e quanto à produção voltada para a venda no mercado local. Muitas dessas

unidades produziam mais de uma variedade de culturas. Associava-se principalmente a

mandioca com gado, mandioca com frutas, mandioca com milho, mandioca com coqueiro,

192 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Austin, The University of Texas, 1978, tese (doutorado)pp. 83-4; 97. 193 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 130. 194 Ibidem, p. 133.

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dendezeiro com frutas variadas.195 A mesma diferenciação foi observada por Alice

Canabrava em relação à pequena propriedade existente em São Paulo do século XVIII.

Havia a lavoura voltada ao abastecimento de autoconsumo e as que eram de subsistência,

cujo excedente agrícola era vendido nas regiões próximas.196

De todo modo, em que pese o fato de em quase todos os inventários baianos

aparecerem a posse de alguma propriedade do setor rural, segundo dados apontados no

quadro 2.1, houve um decréscimo significativo das cifras relacionadas a aquisição de bens

rurais. Se na década de 1750 essas transações respondiam por cerca de 55% de todo o

montante, no último decênio do século esse percentual cai para 33%. De todo modo, é

ainda um percentual bastante significativo, representando um terço dos investimentos

efetuados na praça de Salvador.

Voltemos ao quadro 2.1. Com a recuperação do tráfico negreiro a partir da década

de 1770, como verificamos no capítulo 1, a atividade comercial ganhou novo impulso.

Desta forma, notamos o aumento das negociações envolvendo bens mercantis, que passam

a demandar mais investimentos. Assim recursos que até então eram direcionados

majoritariamente para o setor rural, passam a ser alocados em atividades comerciais, como

a aquisição de lojas, armazéns e embarcações.

No início de nossa amostragem, a representatividade dos bens comerciais nas

escrituras era de 7,7% referentes a 13:750$820 ou 5,5% de todo o montante transacionado

no mercado de compra e venda. Já na última década do século, cerca de 17% das escrituras

referiam-se a negociações de bens comerciais, respondendo por 22% da soma total dos

valores alocados no mercado de compra e venda o que significava a quantia de

102:100$022.

195 Ibidem, p. 134. 196 CANABRAVA, Alice “Decadência e riqueza”. In: Revista de História. São Paulo: v. 50, n. 100, 1974. pp. 360-3

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Os bens envolvidos nessas transações eram majoritariamente lojas, mas havia

também trapiches, armazéns, etc. Do número total de inventários levantados por Maria

José Mascarenhas, encontrou-se trinta e quatro propriedades de lojas abertas, sete donos de

armazéns e cinco de trapiches. Vendiam-se vários tipos de artigos nas lojas, como pano de

linho, de lã, estopa, bretanha, holanda, aninhagem, chapéus, fechaduras de portas, lenços,

papel, linha, enxadas, pregos, machados, cetim, seda, panos de algodão da terra, cobre,

tabuleiros, e outras mercadorias.197

O crescimento das negociações desse tipo de bens estava fortemente atrelado ao

fortalecimento do capital mercantil na cidade de Salvador na segunda metade do

Setecentos, principalmente a partir de meados da década de 1770. Um outro dado

corrobora essa análise: a negociação de embarcações. Entre 1751 e 1760, o valor referente

às compra e venda de embarcações foi 7:650$000, somatório encontrado em apenas 2,7%

(seis) das escrituras. Já na última década, essa representatividade subiu para 5,6% (trinta e

duas) atingindo a cifra de 32:364$980 ou cerca de 7% do montante total. Juntos, bens

comerciais e embarcações passaram a somar quase 30% de todo o montante negociado em

Salvador entre 1791-1800, um acréscimo considerável, se compararmos à década de 1750,

quando a soma dessas duas categorias significava apenas 8,6% de todo o valor negociado

no mercado de compra e venda.

Nos inventários baianos encontramos uma variedade de embarcações bem como do

valor estipulado para cada tipo. Nas escrituras públicas de compra e venda, encontramos o

valor mínimo de 100$00 para uma alvarenga e o máximo de 4:800$000 para uma sumaca.

A média do valor das embarcações negociadas na documentação notarial era de

aproximadamente de 1:800$000. Nos inventários baianos há registros de navios avaliados

em 20:000$000, até uma simples alvarenga de 70$000. Ambas as embarcações eram de

197 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 145.

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propriedade da rica comerciante Maria Joaquina de Barros.198 A maioria dos armadores

possuía ou era sócia de embarcações na faixa de 2:000$000 para baixo.199

Outro fator que ratifica o fortalecimento do capital mercantil na praça de Salvador é

o aumento da participação do crédito no dia a dia da população, após uma queda brusca na

década de 1760, período no qual a atividade comercial passava por dificuldades. No

quadro 2.1, observamos que a cada dez anos o percentual do montante disponibilizado para

empréstimo aumentou frente ao volume total de recursos alocados no mercado

soteropolitano. Depois de atingir o menor nível, 48,4% entre 1761-70, começou no decênio

seguinte uma forte recuperação, atingindo a cifra de 303:622$507 ou cerca de 65,2% do

que fora usado no mercado de compra e venda. A disponibilidade de maior acesso ao

crédito está diretamente associada ao aumento da participação dos agentes mercantis na

sociedade. Como veremos no capítulo seguinte, no Antigo Regime, via de regra, eram os

indivíduos atuantes nas atividades comerciais que controlavam o sistema de crédito. Logo,

o aumento dos empréstimos em Salvador é caudatário do robustecimento da classe

mercantil na cidade.

Para além do incremento das negociações envolvendo bens urbanos, mercantis,

embarcações e do volume de empréstimos, percebemos ainda no quadro 2.1 um aumento

na participação da categoria “outros”, para o qual não há um registro na primeira década de

nossa amostragem e na seguinte aparece apenas uma vez.

Essa categoria compreendia todo tipo de objetos, escravos e até mesmo

manufaturas, como a fábrica de sinos vendida junto com o escravo crioulo de nome Luís,

mestre da dita fábrica, no ano de 1793, por Manoel da Silva Teixeira a Antônio José, que

pagou a quantia de 419$584.200

198 APEB, Judiciário, Inventário de Maria Joaquina de Barros, 1808,8/3299/3. 199 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 147. 200 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 133, p. 6v.

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Na colônia as atividades manufatureiras reduziam-se a pequenas indústrias

estimuladas a atender as necessidades locais. O alvará de D. Maria I, de 1785, interditava o

surgimento de fábricas na América portuguesa e determinava o fechamento das existentes.

O viajante Lindley constatou que teria iniciado uma fundição de bronze para canhões que

não teria deixado vestígios. Só eram permitidas a fabricação de couros e certas bugigangas.

Segundo relatos do viajante, um tecelão que tentara abrir uma tecelagem de algodão na

Bahia, fora preso e enviado para a Europa, tendo seu maquinário todo destruído.201

Chega a ser surpreendente, portanto, a venda de uma fábrica de sinos. De forma

geral, eram apenas permitidas manufaturas que beneficiavam o couro, o algodão, a

indústria naval, fábricas de velas, de óleos de baleia, de costuras, olarias e serrarias.

Segundo dados apontados por Maria José Mascarenhas, a partir da análise dos inventários,

todos essas indústrias aparecem na documentação, sendo a mais comum o beneficiamento

de algodão presente em oito inventários, seguido pela fabricação de cera/vela, observada

em quatro inventários, curtume em três, olaria, construção civil e costura em dois, serraria,

estaleiro e fábrica de azeite de baleia em um.202

Assim, a partir dos dados apresentados no quadro 2.1 percebemos o quanto

complexa estava se tornando a sociedade soteropolitana, refletindo na diversificação dos

investimentos com o passar dos anos. Essa matização das aplicações caracterizava o

fortalecimento do capital mercantil na cidade de Salvador, verificada a partir da década de

1770.

A trajetória do mercado de compra e venda verificado na cidade de Salvador na

segunda metade do século XVIII, é similar a observada por Antônio Carlos Jucá de

Sampaio, na praça do Rio de Janeiro, entre 1650 e 1750. Ainda no século XVII, percebe-se

201 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1969 (1a. Edição 1805), p. 173. 202 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 150.

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um forte investimento no setor agrário presentes nas escrituras públicas de compra e venda.

De acordo com Antônio Carlos Sampaio, mesmo sendo uma importante praça portuária, o

capital mercantil da cidade carioca era pouco desenvolvido no Seiscentos. Desta maneira,

grande parte das rendas obtidas no comércio era direcionada para a agricultura. Essa forte

transferência de recursos marcava uma forte característica da sociedade fluminense, qual

seja: não havia ainda uma clara distinção entre a elite mercantil e agrária. Esse padrão pode

também ser verificado seguindo a trajetória de alguns indivíduos, que se destacavam na

atividade mercantil e se transformavam em membros da elite agrária local, muitos através

da aquisição de engenhos, como Salvador Correia de Sá e José Gomes da Silva. Para

Sampaio, esse comportamento estava atrelado a busca por status e reconhecimento social,

visto que no topo da hierarquia social colonial, em termos de prestígio localizava-se a elite

agrária. Assim, muitos que conseguiam acumular capital nas atividades mercantis

procuravam investir em terra (notadamente engenhos) para fazer parte da elite.203 Essa

busca por reconhecimento social e prestígio também foi observada na biografia dos

principais homens de negócios baianos, em sua maioria traficantes de escravos, na segunda

metade do século XVIII, questão que será abordada no capítulo 5.

O padrão de investimento verificado no Rio de Janeiro do Seiscentos perdurou até

os primeiros anos do século seguinte, caracterizando uma baixa capacidade de acumulação

mercantil dessa sociedade. De acordo com Sampaio, no século XVII, predominava a forma

“de acumulação senhorial, baseada num conjunto de práticas que envolvem tanto as

atividades mercantis quanto a ocupação de cargos públicos e uniões políticas entre as

diversas famílias da elite local.”204

O quadro se modificou com o avançar do século XVIII. Os negócios rurais que

antes eram destaque, passaram a perder peso relativo, embora continuassem com o maior 203 SAMPAIO, op. cit., 2001, pp. 76-8. 204Ibidem, p. 78.

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valor médio dos bens negociados. A razão para essa perda da participação dos bens rurais

nas transações de compra e venda é a expansão da população urbana na cidade carioca que

provocou um aumento na demanda por imóveis na urbe e por conseguinte elevou o valor

dos mesmos. Uma segunda razão foi o fortalecimento do capital mercantil na praça do Rio

de Janeiro, refletindo, por exemplo no aumento da participação nas escrituras de vendas de

embarcações, bem como dos valores negociados.205 Essa mudança é verificada na mudança

de direção dos investimentos realizados pela sociedade fluminense. O peso dos recursos

das transações envolvendo bens rurais cai para um terço. Na década de 1740, pela primeira

vez, o valor relativo às negociações de bens urbanos superou os negócios agrários. Todas

as vendas não-rurais têm sua participação aumentada, como embarcações e outras vendas.

Como analisando anteriormente, essa mudança do padrão de investimento verificado no

Rio de Janeiro ao longo da primeira metade do século XVIII, ocorreu em Salvador apenas

em meados da segunda metade do Setecentos.

João Fragoso analisou para os anos de 1800 a 1816 as escrituras de compra e venda

também na praça carioca. Em seu estudo podemos verificar a consolidação do padrão de

investimento que começou a ser traçado ainda na primeira metade do Setecentos, qual seja:

o fortalecimento dos investimentos atrelados a atividade mercantil, como a aquisição bens

comerciais e embarcações frente ao decréscimo da alocação de recursos no setor rural.

Somado as negociações de navios, as transações envolvendo bens mercantis tornaram-se

hegemônicas na sociedade carioca. As quantias direcionadas para esse tipo de negócio, em

quase todos os anos, correspondem a pelo menos o dobro dos valores médios encontrados

no setor agrário, o que significa que, embora as atividades mercantis não gerassem valor à

205 Ibidem, pp. 84-5

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produção social, tinham uma cotação de mercado superior à produção agrícola, esta sim

responsável pela reprodução da sociedade.206

De início, esses dados podem indicar uma contradição, pois afinal trata-se de uma

economia regulada e reiterada quase que exclusivamente pela produção agrícola. Seria

necessário, portanto, um alto e contínuo investimento nesta área. Contudo, Fragoso

percebe que essa economia assentada em agricultura extensiva dependia da incorporação

de mais terras e homens sem a necessidade de um desenvolvimento técnico da lavoura.

Estas condições, segundo o autor, eram satisfeitas no espaço colonial a preços reduzidos,

devido à presença de três condições fundamentais: fronteira agrícola aberta; oferta elástica

de mão-de-obra; produção de alimentos a preços baixos. Desta maneira, a conjugação

desses fatores facultava a reiteração desta sociedade. Conseqüentemente, o fato de se poder

manter as atividades agrícolas com baixo investimento, abria a possibilidade para o desvio

de capital para outras atividades não atreladas a geração de riqueza.207 Assim, no início do

século XIX, foi possível que na praça mercantil do Rio de Janeiro ocorresse uma distinção

clara entre o grupo mercantil e a elite agrária. Isso não significava que os membros do

grupo mercantil não investissem em terras. Mas apenas quando o faziam, era em menor

proporção ao aporte de recursos verificados para outros setores como urbanos/comerciais e

embarcações. Estes sim passaram a ser o foco dos investimentos do capital mercantil no

Rio de Janeiro.

Frente a esses dados do Rio de Janeiro do início do século XIX, a economia da

cidade de Salvador na segunda metade do XVIII possuía uma capacidade menor para gerar

riqueza via atividade comercial. Contudo, o cenário começou a se modificar a partir de

meados da década de 1770. Como analisado anteriormente, os investimentos dessa

206 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 337. 207 Ibidem, pp. 340-1.

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sociedade tornaram-se mais diversificados no último quarto do século, por conseguinte

houve uma redução percentual nos investimentos em bens agrários. Essa transformação no

padrão do mercado soteropolitano estava atrelada ao desenvolvimento e fortalecimento da

classe mercantil.

A partir dos dados coletados por Maria José Mascarenhas nos inventários baianos

pudemos elaborar o quadro 2.4 que nos mostra os grupos sociais que se encontravam entre

os 10% maiores inventariados de Salvador entre os anos de 1760-1808. Esse conjunto era

formado por trinta e dois indivíduos, cujos montemores variavam de 304:165$000 a

19:573$810. Observando o quadro 2.4 verificamos o peso do grupo mercantil no acumulo

de riqueza. Dos trinta e dois indivíduos arrolados nos inventários como sendo os

possuidores de maior fortuna, quatorze eram homens com atividade mercantil,

apresentando-se assim, como o grupo dominante. Em sua maioria eram negociantes

internacionais, atuando principalmente como traficantes de escravos. Em seguida aparecem

os senhores de engenho, como oito representantes. A categoria que unia as duas atividades

anteriores corresponde a quatro sujeitos, o mesmo número de fazendeiros da amostragem.

Quadro 2.4 – Categoria Social presente na maior faixa de fortuna (10%) observada

nos inventários baianos, 1760-1808

Ocupação Quantidade

Comerciantes 14

Senhores de engenho 9

Comerciantes/senhores de engenho 4

Fazendeiros 4

Outros 2

Fonte: MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais – elite riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 1998, anexo 1.

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Devemos ressaltar que a elaboração desses inventários concentrou-se

principalmente entre os anos de 1791-1808, sendo que nove foram feitos na última década

do século XVIII, enquanto dezesseis, foram constituídos já na primeira década do

Oitocentos. Desta forma, essa amostragem já reflete a transformação pela qual passava a

cidade de Salvador desde o início do último quarto do Setecentos, como o incremento da

atividade e a preponderância do grupo mercantil.

Segundo David Smith e Rae Flory durante o século XVII e na primeira metade do

XVIII, não havia na Bahia uma dicotomia entre os agentes dos setores rurais e

comerciais.208 O capital mercantil ainda não era forte o suficiente para fazer frente ao

poder agrário, sendo a classe mercantil pouco desenvolvida. Antônio Carlos Sampaio

acredita que esse era o motivo da diferença entre o padrão percebido por ele no mercado

carioca pré-1700 e por Fragoso já no início do século XIX. E mais, esse mesmo autor

acredita que parte das rendas obtidas no comércio era transferida para o setor rural e vice-

versa. Múltiplos investimentos feitos quase simultaneamente impediam que uma elite

mercantil se destacasse do setor agrário no Rio de Janeiro pré-1700.209

Contudo, no caso baiano esse perfil parece ter se alterado no último quarto do

século XVIII, com o incremento da atividade mercantil e o desenvolvimento de um grupo

capaz de ter uma atuação intensiva na economia soteropolitana. O surgimento de um forte

grupo mercantil não significa o início de um confronto com o grupo rural. Muitos homens

de negócio continuavam a fazer pesados investimentos no setor agrário, como uma

estratégia na obtenção de prestígio e status. Nesse sentido, o foco de seus investimentos era

208 FLORY, Rae & SMITH, David Grant. “Bahian Merchants and Planters in the Seventeenth and Early Eighteenth Centuries”. In: Hispanic American Historical Review, 58 (4), 1978. 209 SAMPAIO, op. cit., 203, pp. 75-6.

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direcionado a aquisição de engenhos de açúcar, denotando uma preocupação desses

indivíduos de galgar respeitabilidade social.210

Voltando às escrituras de compra e venda, foi possível levantar os bens adquiridos

pelos homens de negócio e elaborar o gráfico 2.3. Cabe aqui um comentário sobre a

documentação notarial. Em muitas escrituras esses indivíduos eram identificados como

“homens de negócio residentes nessa praça”, uma clara distinção desses sujeitos a

comunidade mercantil da cidade. É assim que aparece no ano de 1764, Joaquim José

Gomes, descrito como “homem de negócio dessa praça de Salvador” quando compra um

sobrado de Félix Xavier Roquete, no valor de 600$000.211 Já quando se tratava de um

mercador, a designação na fonte era a seguinte: “mercador e morador desta cidade”, como

foi descrito Vicente de Oliveira Batista, quando comprou no ano de 1784, uma morada de

casas térreas de Clemente José da Silva, ao custo de 290$000.212 Antônio Carlos Sampaio

também verificou que essa designação ocorria nas escrituras públicas do Rio de Janeiro

desde o século XVII.213

Devemos ressaltar que não se trata de todo o universo de bens comprados por esses

indivíduos uma vez que, mesmo com o cruzamento de fontes não foi possível estabelecer a

categoria profissional de todos os compradores presentes na documentação. Da mesma

forma, acreditamos que algumas compras envolvendo homens de negócios possam não ter

sido capturadas pelas fontes notariais.

210 Sobre o comportamento na busca por prestígio social desses homens de negócio cf. capítulo 5. 211 APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 105, p. 214v. 212 APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 124, p. 291. 213 SAMPAIO, op. cit., 2001, p. 80.

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Gráfico 2.3 – Bens adquiridos pelos homens de negócio de Salvador, 1751-1800

32,1

30,3

18,3

18,90,4

Rurais

Urbanos

Comerciais

Embarcações

outros

Fonte: APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139).

Assim, a partir de dados constantes na documentação notarial, cruzados com outros

materiais investigativos, conseguimos montar o gráfico 2.3. Nossa amostragem refere-se a

cento e noventa e sete compras efetuadas pelos homens de negócios. Observamos no

gráfico 2.3 que a representatividade dos bens comerciais era de 18,3% e o de embarcações

18,9%, caracterizando assim a aplicação em negócios comerciais. De todo modo, na

segunda metade do século XVIII, parte da renda oriunda do setor mercantil ainda era

alocada no setor agrário, cerca de 30%, o que nos faz acreditar que, alguns homens de

negócios da Bahia, no limiar do século XIX, ainda tinham como estratégia à aquisição de

bens rurais como forma de obtenção de prestígio ou como opção de investimento para

diversificar seus negócios. Desta forma, aparecem figuras híbridas como Custódio Ferreira

Dias e Manoel Pereira de Andrade, considerados por nós como sendo comerciantes/senhor

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de engenho, uma vez que, embora tivessem atuação no trato de longa distância, não se

eximiram de comprar grande propriedades rurais como engenhos.

Quadro 2.5 – Participação dos homens de negócios de Salvador na compra de bens

rurais, 1751-1800

Valor total 612:922$812

Valor H.N. (a) 96:228$881

% 15,7

Total de compras 570

Total H.N. (b) 49

% 8,6

Fonte: APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139). OBS: (a) – valor das compras feitas pelos homens de negócios; (b) – número de compras feitas pelos homens de negócios.

O quadro 2.5 nos mostra o peso dos investimentos dos homens de negócios no setor

rural. Nela fica bem marcado o montante aplicado por esses homens no agro baiano.

Embora tivessem participação de apenas 8,6% das compras envolvendo bens rurais, a

quantia relativa a essas transações representava 15,7% de todo o capital transacionado

nessas aquisições. Tal volume de negócio pode ser explicado como uma estratégia própria

deste grupo, pois o investimento em terras e engenhos era tido como um mecanismo para a

obtenção de status nesta sociedade. Muitos acabavam transferindo o controle dessas

propriedades para seus filhos, adicionando prestígio à sua família, enquanto o negociante

continuava a exercer sua atividade mercantil de onde obtinha rendas vultosas.

Assim, encontramos no ano de 1771, Frutuoso Antônio de Mesquita, homem de

negócio da praça de Salvador adquirindo um engenho, pela quantia de 8:000$000, de

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Leonor Sena da França Corte Real.214 Compra mais vultosa fez João da Silva Mourinho, no

ano de 1788 ao comprar por 29:000$000, um engenho com todas as suas benfeitorias, de

Antônio Francisco da Cruz Brandão.215

Não só engenho era adquirido pelos homens de negócio no setor rural. No ano de

1772, Francisco Bernardes do Vale, comprou uma fazenda de gado vacum e cavalar por

2:019$800, de João da Silva de Almeida Pereira.216 Já Bernardo da Rocha e Sousa

adquiriu, no ano de 1779, uma fazenda de cana de Francisco do Amaral, pelo valor de

800$000.217

No Rio de Janeiro era pequena a participação dos homens de negócio na aquisição

de engenhos. Contudo, se faziam presente na compra de outras propriedades rurais.

Segundo Antônio Carlos Sampaio, na primeira metade do século XVIII, a um grande

investimento dos homens de negócio cariocas na compra de unidades produtoras de

alimentos. Sozinhos, responderam por mais de um quinto das compras, sendo o valor

aplicado por eles bem superior a média geral (46,5%).218

Como verificamos no gráfico 2.4, as opções dos homens de negócio eram bastante

variadas no que tange a seus investimentos. Alguns, como Luís Gomes Coelho, atuavam

em atividades rentistas, comprando imóveis urbanos para alugar. No ano de 1755, Luís G.

Coelho aparece nas escrituras adquirindo um sobrado de Francisco Almeida Viana ao custo

de 987$340.219 Doze anos depois, o mesmo comerciante comprou duas moradas de casas

térreas de pedra e cal, a primeira da viúva de Diogo Pereira da Silva, dona Clara das

Neves, ao valor de 140$000, a segunda do capitão Francisco Xavier de Castilho, por

214 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 114, p. 170v. 215 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 128, p. 77v 216 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 114, p. 303. 217 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 120, p. 232. 218 SAMPAIO, op. cit., 2001, p. 127. 219 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 97, p. 77.

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180$000.220 Por fim, no ano de 1774, Luís Gomes efetua mais duas compras de sobrados,

um a Silvestre André Torres, ao custo de 700$000 e o outro de Tomé de Jesus da Silva

pelo valor de 180$000.221

Muitas vezes o capital para a compra dos bens era obtido mediante empréstimos

realizados na praça de Salvador. Foi assim que o capitão Pedro Ferreira de Souza

conseguiu amealhar a quantia necessária para efetuar a compra desejada. No ano de 1755,

o capitão conseguiu junto à Irmandade do Santíssimo Sacramento da cidade de Salvador

um empréstimo de 150$000.222 Com esta quantia, acrescida de dinheiro previamente

acumulado, Pedro Ferreira pode comprar no mesmo ano, do alferes Sebastião de Araújo

Góes um sobrado pelo valor de 300$000.223 Já o homem de negócios João de Oliveira

Braga precisou recorrer ao Convento de Nossa Senhora das Almas da cidade de Salvador

após comprar um engenho cujo valor foi 8:500$000.224 Junto à instituição religiosa

conseguiu o crédito de 400$000.225 Provavelmente, esse capital serviria para dar o impulso

inicial a produtividade do engenho uma vez que eram altas as despesas para se colocar e

manter em produtividade um engenho de açúcar.

O que buscamos apontar nesse capítulo foi a representatividade dos padrões de

investimentos na sociedade baiana colonial. A partir das escrituras públicas de compra e

venda, verificamos que houve um decréscimo do peso dos negócios rurais. Se até a década

de 1760 esse tipo de investimento se sobrepunha aos demais, a partir do último quarto do

século XVIII, sua participação declinou, embora continuasse a representar cerca de 30%

220 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 109, pp. 19v e 54. 221 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 115, pp. 175 e 261v. 222 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 106, p. 28v. 223 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 97, p. 99. 224 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 118, p. 110v 225 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 118, p. 280v.

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dos recursos alocados no mercado de compra e venda. Desta forma, a aplicação de recursos

no setor agrário era um traço estrutural dessa sociedade.

Conjugado a queda da participação dos bens agrários, verificamos um incremento

nos demais setores, como urbanos, comercial, de embarcações, bem como um aumento de

quantia disponibilizada a crédito frente ao montante total aplicado no mercado. Esta

mudança estava atrelada ao desenvolvimento e consolidação do grupo mercantil a partir de

meados da década de 1770. Assim, observamos na cidade de Salvador o início de uma

transformação verificada na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII.

De todo modo, os homens de negócio, que faziam parte da elite comercial, buscavam a

diversificação de seus investimentos. Se grande parte das rendas obtidas nas negociações

era direcionada para o setor mercantil, também o era para o setor rural. A posse de um

engenho provocava a transmutação de um indivíduo que ganhava prestígio e status,

qualidades fundamentais numa sociedade de Antigo Regime. Assim atestamos que ao

contrário de ser uma sociedade monolítica, a Salvador da época colonial passava por

mudanças, principalmente no que tange ao seu mercado. Vejamos como se comportou o

sistema creditício na cidade ao longo da segunda metade do século XVIII.

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CAPÍTULO III

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Crédito e empréstimos

No capítulo anterior procuramos observar as transformações pelas quais passou a

economia da cidade de Salvador na segunda metade do século XVIII, a partir do mercado

de compra e venda de bens rurais, urbanos e mercantis . Para tanto, utilizamos as escrituras

públicas como fonte. Neste capítulo que se inicia, continuaremos traçando o perfil do

mercado da capital baiana, tentando buscar uma visão mais geral dessa sociedade, a partir

da análise do sistema de crédito.

Mais uma vez alertamos para a limitação da documentação utilizada na elaboração

dessa análise. De forma alguma queremos que esses dados obtidos das escrituras públicas e

inventários post-mortem tornem-se retratos fidedignos da história. Muitos empréstimos

eram efetuados de maneira informal no dia a dia da sociedade colonial, tornando

impossível sua captura por meio das escrituras públicas. O que desejamos é apenas apontar

a representatividade dos padrões de investimentos da sociedade colonial na Bahia.

É recorrente na historiografia a idéia de que havia a escassez de moedas tanto na colônia

quanto na metrópole. Segundo Stuart Schwartz,

A própria metrópole freqüentemente sofria com a carência de moeda metálica e,

após o século XVI, dependeu do fornecimento espanhol de prata da América.

Quando esse fornecimento começou a minguar, em meados do século XVII,

ocorreu uma grave escassez monetária. No Brasil, a situação foi ainda mais difícil.

Embora no século XVI ainda não houvesse na colônia uma casa da moeda, o

acesso à prata peruana era conseguido por contrabando com Buenos Aires. Esse

fluxo sofreu interrupção na década de 1620 e estancou-se na de 1640. (...) Em

1670, o governador-geral, em resposta à pressão local, escreveu à Coroa que este

“país está sendo perdido por falta de dinheiro”.226

226 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial1550-1835. São

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Para solucionar o problema, criou-se em 1698, no Rio de Janeiro a primeira Casa da

Moeda na colônia. Dezesseis anos depois, foi criada uma em Salvador. Ambas

funcionaram ininterruptamente de 1734 a 1808. Contudo, a questão não foi resolvida.

Segundo Jobson Arruda, os meios de pagamentos não se expandiram no nível desejado,

apesar da grande produção aurífera e da expansão dos negócios coloniais ao longo do

século XVIII, chegando mesmo a rarear a moeda em finais do Setecentos.227

A escassez de numerários foi verificada também pelo cronista Ambrósio Brandônio

no início do século XVII. Segundo este autor, a falta de moedas generalizou pela colônia a

prática do escambo, utilizando-se principalmente o açúcar como moeda de troca. Ainda

conforme relatos de Barndônio, para pagamentos de serviços realizados no Reino, bastava

que o colono enviasse “um caixão de assucar”.228

A escassez de moedas na colônia foi verificada por Maria José Rapassi

Mascarenhas em seu estudo sobre a riqueza na cidade de Salvador na segunda metade do

século XVIII. Segundo dados levantados pela autora, na maioria dos inventários post-

mortem arrolados entre 1760 e 1808, havia falta de moedas. Mesmo nos inventariados mais

proeminentes, eram pequenos os valores referentes ao dinheiro líquido, tornando-se

comum o pagamento das dívidas com produtos ou bens de famílias.229 De acordo com o

relato do viajante Thomas Lindley, no início do século XIX, o escambo ainda era a moeda

pela qual realizava-se o comércio no Brasil.230

Maria José Mascarenhas encontrou em alguns inventários referências a pagamentos

em espécie como açúcar, tabaco, tecidos, escravos e até mesmo imóveis. Caso parecido

Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 178. 227 ARRUDA, J. Jobson. “A circulação, as finanças e as flutuações econômicas.” In: SERRÃO, Joel (org.). Nova história da expansão portuguesa. Lisboa: Estampa,, vol. III, 1986, p. 190. 228 BRANDÔNIO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1930, p. 57. 229 MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais – elite e riqueza em Salvado, 1760-1808. Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História Econômica, USP, São Paulo, 1998, p. 184. 230 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1969 (1a. Edição 1805), p. 151.

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encontramos na venda de uma fazenda de cana com suas benfeitorias efetuada por José

Antônio Viana e sua mulher, para Manoel Pinto Cardoso. Este realizou parte do pagamento

com uma morada de casas térreas e um sobrado.231

Ainda em seu estudo, Mascarenhas observa que embora faltassem moedas nos

inventários, era comum a presença de objetos de prata e ouro. Desta maneira, a explicação

de Schwartz não confere, uma vez que para este autor a escassez de moedas estaria atrelada

á ausência de metais preciosos na colônia. Poucos eram os indivíduos que não tinham

qualquer peça de prata em sua casa, pois este metal por possuir um valor considerável,

estimulava o entesouramento, além de ser um símbolo de prestígio e status social.232

A ausência de moedas também foi percebida nos inventários do Rio de Janeiro

levantados por João Fragoso. A participação de moeda sonante era ínfima. Para os anos de

1797-99 correspondia a 4,4% do valor total dos bens arrolados. Em 1820, 3,4% e em 1840,

1,0%. Essa representatividade sobre para 7,1% em 1860.233

Voltamos ao paradoxo: como explicar a ausência de moedas numa sociedade onde

eram comuns utensílios de prata, por exemplo? A explicação para esta questão reside na

idéia de circulação social da moeda, concentrada nas mãos dos setores mercantis da

sociedade. Este perfil também foi observado por Roggiero Romano nas sociedades da

América espanhola. Segundo este autor, a carência de moedas de prata, ouro e cobre era

provocada pelos comerciantes que controlavam a liquidez da economia.234

Nesse sentido, o crédito vai desempenhar papel fundamental nas sociedades de

Antigo Regime, como forma de dirimir o problema ocasionado pela pequena circulação de

231 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 116, p. 195. 232 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 184. 233 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 308. 234 ROMANO, Roggiero. “Fundamentos del funcionamiento del sistema económico colonial”. In: BONILLA, Heraclio (org.). El sistema colonial en la América española. Barcelona: Editorial Crítica, 1991, passim.

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moeda. De forma geral, nas sociedades pré-industriais o acesso ao dinheiro se dava

comumente via comerciantes, uma vez que eram eles que conseguiam de maneira rápida

fazer a rotação do capital e por conseguinte, detinham a liquidez do sistema.235 Com isso,

não é errôneo afirmar que era uma pequena elite mercantil que detinha o controle do fluxo

monetário nessas sociedades.

É o que observamos nos dados levantados por Mascarenhas nos inventários post-

mortem de Salvador. Poucos inventariados possuíam “dinheiro de contado”. Os valores

mais altos desses bens pertenciam sempre aos comerciantes, que variava de cinco contos

de réis a dez mil réis, estes últimos referentes aos pequenos comerciantes.236 Tal fato

demonstra a baixa liquidez da economia colonial, fruto da escassez de dinheiro e da

concentração do numerário nas mãos do grupo mercantil. Desta forma, o acesso ao crédito

em suas diversas formas era crucial para os distintos setores que compunham a sociedade

colonial, uma vez que era pequena a participação do dinheiro sonante no cotidiano das

pessoas.

Para além da baixa circulação de moeda e da concentração do numerário nas mãos

de comerciantes, outros fatores atuavam para estimular o mercado de crédito. Segundo

Antônio Carlos Sampaio, o caráter agrário da economia colonial fomentava o mercado de

crédito. A principal característica do mercado agrário era o descompasso entre o ciclo

agrícola, que era anual, e as necessidades que se fazia presentes no dia a dia das pessoas

como insumos e alimentos. O descompasso era compensando pelo sistema de contas-

correntes, no qual os comerciantes adiantavam para os produtores os artigos necessários

para a sua manutenção em troca das safras vindouras.237

235 FRAGOSO & FLORENTINO, O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, passim. 236 MASCARENHAS, op. cit., 1998, anexo 1. 237 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. “O mercado carioca de crédito: da acumulação senhorial á acumulação mercantil (1650 – 1750)”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n. 9, 2002, p. 2.

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283

Além disso, havia também o fator mão-de-obra que era obtida exclusivamente no

mercado. Isso acabava gerando um endividamento dos setores rurais frente aos mercantis.

Nesse sentido, essa relação significava a transferência antecipada de parte do sobretrabalho

a ser produzido pelo escravo para o comerciante responsável pela sua venda, o que acabava

por reduzir a capacidade de acumulação do senhor e contribuindo ainda mais para sua

dependência e endividamento frente ao grupo comercial.238

De todo modo, não só senhores de escravos ou proprietários de terras recorriam ao crédito,

mas também pequenos e grandes comerciantes, militares, funcionários da Coroa, viúvas,

etc., como abordaremos mais adiante. De forma geral, essa prática era disseminada nas

sociedades de Antigo Regime. Foi o que observou Peter Spufford ao analisar os inventários

da região de Kent, na Inglaterra, entre os anos de 1568 a 1740. Ele encontrou dívidas

passivas em 81% dos 13.586 inventários levantados, com uma média de três dívidas por

inventário.239

Recorria-se ao crédito quando os lucros obtidos numa atividade não eram

suficientes para cobrir os custos, quando se necessitava de capital para expandir um

empreendimento, para se iniciar uma unidade produtiva ou qualquer outra atividade

econômica e até mesmo para comprar bens que expusessem sua privilegiada condição

social. Desta forma, buscava-se crédito para quase tudo, da aplicação na produção à

compra de objetos de uso pessoal e manutenção de status e prestígio.

A historiadora Maria Manuela Ferreira da Rocha a partir da análise de dívidas

ativas e passivas encontradas nos inventários post-mortem de Lisboa, entre 1780 e 1830,

verificou que a maior parte dos gêneros que circulavam entre a metrópole e os portos

238 Ibidem, pp. 2-3. 239 SPUFFORD, Peter. “Les liens du crédit au village dans l’Angleterre du XVIIe siècle.” In: Annales: histoire, sciences sociales. Paris: Armand Colin, 49e année, n.6, 1994, p. 1359-73.

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284

brasileiros foram comercializados de acordo a um sistema de compensação.240 Os

comerciantes lisboetas enviavam os produtos para seus agentes comerciais ou sócios na

colônia e estes remetiam para a metrópole mercadorias brasileiras. O valor da transação era

contabilizado em contas-correntes dos dois lados do Atlântico, mas este não era pago.

Somente quando da abertura dos inventários portugueses dos homens de negócio, fazia-se

a apuração de todas as dívidas ativas e passivas. Essa era uma prática usada comumente no

período, baseada nas relações pessoais de confiança e honra.

João Fragoso e Manolo Florentino perceberam que as relações comerciais

envolvendo negociantes do Rio de Janeiro e de Portugal criaram uma cadeia de

adiantamento e endividamento, tornando-se padrão nas atividades mercantis de longas

distâncias dos homens de negócios, fossem portugueses, brasileiros ou até mesmo ingleses.

Estes homens de grosso trato também atuavam na concessão de empréstimo ou

adiantamento de mercadorias para outros comerciantes que atuavam nas demais partes da

do Império português.241

Também no tráfico de escravos, essa cadeia de endividamento se fazia presente.

Manolo Florentino verificou que o processo do tráfico de escravo do interior africano à

venda aos colonos na América se dava a partir do adiantamento das mercadorias.

Comerciantes angolanos adiantavam fazendas, aguardente, tabaco, pólvora e armas aos

sertanejos que se dirigiam ao interior. Por sua vez, essas mercadorias tinham sido

conseguidas antes pelos negociantes citadinos com os capitães dos navios negreiros,

endividando-se assim, frente ao capital traficante.242

A cadeia de adiantamento e endividamento foi bastante utilizada ao longo de todo o

240 ROCHA, Maria Manuela Ferreira. Crédito privado num contexto urbano, Lisboa 1770-1830. Florença, tese (doutorado) - Departamento de História e Civilização do Instituto Universitário Europeu, 1996, passim. 241 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit., 2001, pp. 206-7. 242 FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras,1997, pp. 133-4.

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período colonial pelos homens de negócio. Um expoente dessa atividade foi Francisco

Pinheiro, comerciante português que possuía ramificações em diversas partes do Império

lusitano. Francisco Pinheiro vendia a crédito todo o tipo de mercadoria, desde escravos

obtidos majoritariamente na Costa da Mina,243 passando por bebidas, alimentos e tecidos.

Segundo Maria Bárbara Levy, os juros cobrados nas vendas a prazo por Francisco Pinheiro

na região de Minas Gerais chegavam a ser de 8 a 12% ao ano. Como aponta Levy, esse alto

percentual dos juros era justificado pelo fato de haver grandes possibilidades de o credor

sumir pelo sertão adentro ou pelos portos, esquivando-se assim de saldar suas dívidas.244

Ainda no universo mineiro, Cláudia Coimbra do Espírito Santo analisou as ações de almas

como práticas creditícias em Vila Rica no século XVIII. De acordo com a autora, o crédito

era obtido mediante juramento da alma. 245 Num contexto impregnado pelo catolicismo,

onde a vida se pautava pela salvação pessoal e pelo medo do inferno, o empenho da

palavra servia como instrumento fiador do crédito. Ao jurar, o mutuário utilizava-se da

confiança que a sociedade depositava em sua pessoa. O juramento em falso em uma ação

de alma, que significava o não cumprimento da palavra empenhada poderia significar a

danação da alma, o que gerava uma forte pressão social e íntima. A não execução de uma

ação desse tipo acarretava a má fama pública, repercutindo na perda do crédito. Sem

crédito na praça, o indivíduo não precisaria morrer para experimentar a danação de sua

alma.

As escrituras pública de crédito em Salvador

243 Sobre a participação de Francisco Pinheiro no comércio de escravos na Costa da Mina, ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. “O fidalgo-mercador: Francisco Pinheiro e o ‘Negócio da carne humana’, 1707-1715”. In: SOARES, Mariza Carvalho (org.). Rotas Atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: edUFF, 2007, pp. 35-64. 244 LEVY, Maria Bárbara. História financeira do Brasil colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979, p. 94. 245 ESPÍRITO SANTO, Cláudia Coimbra do. “Comprar, vender, emprestar, trocar, anotar... empenhar: práticas creditícias no cotidiano do Antigo Regime”. In: VARELLA, Flávia Florentino; MATA, Sérgio Ricardo da & ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Anais do I Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade. Mariana: UFOP, 2007, p. 10.

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No início da ocupação territorial da América portuguesa no século XVI, segundo

Stuart Schwartz, boa parte do crédito disponível no mercado baiano provinha de

investidores estrangeiros, como de holandeses, italianos ou metropolitanos. Já a partir do

século seguinte parece que esse padrão tornou-se menos importante, se não

desaparecido.246 Novos mecanismos de fornecimento de crédito foram instituídos, sendo

uma das mais utilizadas as escrituras de empréstimos registradas nos cartórios da cidade de

Salvador.

De maneira geral, dentre outras informações, nessas escrituras é possível detectar os

envolvidos na transação como o credor e o devedor; valor do dinheiro disponibilizado a

crédito e os juros embutidos; a data da efetivação do empréstimo; as garantias dadas pelo

mutuário. Com a análise dessa documentação traçaremos o padrão do sistema creditício na

praça mercantil de Salvador na segunda metade do século XVIII.

Comecemos nossa investigação observando os valores e percentuais de

empréstimos frente às escrituras de compra e venda presentes no quadro 3.1. A

comparação entre os dois modelos de escrituras é uma tentativa de perceber o peso que os

empréstimos possuíam nessa sociedade. Primeiramente, o que notamos é uma forte

presença do crédito na praça de Salvador. De maneira geral, o percentual de escrituras de

empréstimos girava em torno de 30% do total de escrituras encontrado na cidade. Contudo,

a representatividade do volume de empréstimo frente ao total transacionado na cidade era

maior. Algo em torno de 40% do fluxo de dinheiro de Salvador estava atrelado ao crédito.

246 SCHWARTZ, op. cit., 1995, p. 179.

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Quadro 3.1 - Participação do crédito frente ao percentual de vendas e do valor total

transacionado na cidade de Salvador, entre 1751 e 1800 (em mil réis)

Transações de compra

e venda

Empréstimos Total Anos

Valor N.E. Valor N.E. Valor N.E.

1751-60 249:981$725 221 216:141$678 75 466:123$403 296

% 53,6 74,6 46,4 25,4 100 100

1761-70 164:470$359 220 79:569$291 91 244:039$650 311

% 67,4 70,7 32,6 29,3 100 100

1771-80 261:629$952 374 159:145$612 195 420:775$564 569

% 62,2 65,7 37,8 34,3 100 100

1781-90 297:196$649 408 205:202$486 185 502:399$135 593

% 59,1 68,8 40,9 31,2 100 100

1791-1800 465:816$885 570 303:622$507 237 769:439$392 807

% 60,5 70,6 39,5 29,4 100 100

Fonte: Fonte: APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139)

Embora fosse bastante significativo o percentual de numerário vinculado ao sistema

creditício, esse montante nunca foi maior do que a totalidade das transações de compra e

venda. Cabe ressaltar que o bom desempenho do mercado de compra e venda estava

atrelado vigorosamente a uma boa estrutura de fornecimento de crédito na sociedade. Em

muitas aquisições efetivadas que encontramos nas escrituras soteropolitanas notamos a

forte presença do papel desempenhado pelos empréstimos. Era a partir da sua obtenção que

muitos compradores conseguiam gerar capital para efetuar o pagamento do bem adquirido.

Nesse sentido, encontramos no ano de 1755, o capitão Pedro Ferreira de Souza comprando

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do alferes Sebastião de Araújo Góes um sobrado pelo valor de 300$000.247 Para tanto,

realizou um empréstimo no valor de 150$000, também em 1755, junto à Irmandade do

Santíssimo Sacramento da cidade de Salvador.248 Com esta quantia, acrescida de dinheiro

previamente acumulado, Pedro Ferreira pode efetuar a compra desejada. Já o homem de

negócios Frutuoso Antônio de Mesquita precisou recorrer ao Convento de Nossa Senhora

das Almas da cidade de Salvador após comprar um engenho cujo valor foi 8:000$000.249

Junto à instituição religiosa conseguiu o crédito de 400$000.250 Provavelmente, esse capital

serviria para dar o impulso inicial à produção do empreendimento uma vez que eram altas

as despesas para se colocar e manter em atividade um engenho de açúcar. Muitas vendas

de bens eram feitas com pagamentos a prazo, o que também caracteriza uma forma de

concessão de crédito.

A participação mais expressiva dos empréstimos ocorreu entre os anos de 1751-60,

quando chegou a representar quase a metade de todo o dinheiro que circulou na cidade e

quase o mesmo percentual do volume envolvidos no mercado de compra e venda. Já a

menor participação do crédito ocorreu no decênio seguinte. Como já abordado

anteriormente, essa foi uma década atípica, momento no qual Salvador deixou de ser a sede

política da colônia e quando a cidade enfrentava uma crise numa das suas principais

atividade econômica, o tráfico de escravos, acarretando uma série de conseqüências que se

refletem na baixa oferta de dinheiro para empréstimo. Em períodos de crise econômica,

como o vivenciado por Salvador na década de 1760, há uma retração do crédito,

principalmente, se os principais agentes provedores estivessem em crise também, como era

o caso dos comerciantes e da Santa Casa de Misericórdia.

247 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 97, p. 99. 248 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 106, p. 28v. 249 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 114, p. 170v 250 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 114, p. 180v.

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Quadro 3.2 – Tipos de credores em Salvador, 1751-1800 (valores em mil réis)

Credores

Instituições Privado Total

Anos N.E Valor % N.E Valor % N.E Valor %

1751-60 57 162:106$258 76,0 18 54:035$420 24,0 75 216:141$678 100

1761-70 43 35:965$319 45,2 48 43:603$972 54,8 91 79:569$291 100

1771-80 40 32:465$500 20,4 155 126:679$112 79,6 195 159:144$612 100

1781-90 35 20:896$381 10,2 150 182:740$905 89,8 185 204:866$486 100

1791-

1800

23 9:267$764 3,1 224 294:354$743 96,9 247 303:622$507 100

Fonte: APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139)

Analisando com mais acuidade os dados encontrados nas escrituras de

empréstimos, notamos que em meados do século XVIII, parte considerável desse capital

era disponibilizada por instituições coloniais como o Juízo de órfãos, as Ordens Terceiras,

Irmandades e a Santa Casa de Misericórdia. O quadro 3.2 nos indica o tipo de credores

atuantes na praça de Salvador entre os anos de 1750-1800. A forte presença das

instituições no mercado de crédito ocorreu, sobretudo na década de 1750, período no qual

foram responsáveis por 76,0% do montante total transacionado. Já nos decênios seguintes

houve uma queda brusca na participação das instituições frente ao peso do volume total de

empréstimos efetuados. Entre 1761-70, esse valor atinge 45,2. Na década seguinte, 20,4%.

Entre 1781-90 o percentual caiu para 10,2 e 3,1 na última década do Setecentos. A

diminuição da participação das instituições como credoras pode estar relacionado à crise de

caixa pela qual algumas passaram como também, ao processo de fortalecimento do grupo

mercantil que começou a atuar com mais força no mercado de crédito baiano na segunda

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metade do século XVIII. De todo modo, apesar da diminuição da participação no mercado

de crédito, as instituições baianas foram responsáveis pelo empréstimo de

aproximadamente um terço do montante ofertado a juros, aparecendo em cerca de um

quarto das escrituras públicas.

Esse padrão mostra-se um pouco inferior ao verificado para os anos iniciais do

século XVIII. Rae Flory estudou o acesso ao crédito de 1698 a 1715, período no qual o

sistema de empréstimo de numerários era bastante difuso na sociedade baiana. Segundo os

dados analisados pela autora, os empréstimos concedidos pelas instituições representavam

45% do volume total, sendo a Santa Casa de Misericórdia responsável por

aproximadamente 60% da quantia do crédito institucional e um quarto do montante total de

trezentas escrituras analisadas por ela.251

O dinheiro obtido pela Santa Casa vinha, em geral, de doações testamentárias em

troca, por exemplo, de um determinado número de missas que deveria ser realizado em

prol da alma do doador. Mas eram comuns também doações em vida. Esse montante

adquirido era repassado a terceiros na forma de empréstimos a juros, que variavam de 5% a

6,25% ao ano. Os mutuários favorecidos pela Santa Casa eram aqueles que de alguma

forma tinham ligação estreita com a Instituição, como os confrades e membros do conselho

diretivo. Membros da elite baiana estavam regularmente representados nas listas de

devedores da Santa Casa.252 O status e a condição social do mutuário eram atributos

importantes para se conseguir vantagens na hora de efetuar o empréstimo, como a obtenção

de uma quantia alta, juros inferiores ao da praça, prazos maiores para a quitação. Muitas

vezes, o devedor acabava por pagar apenas os juros, jamais quitando a dívida. Obviamente,

251 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese (doutorado) - The University of Texas at Austin, 1978, p.73. 252 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. da UnB, 1981, passim.

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este desleixo com a cobrança dos empréstimos ao longo dos anos, fruto da aproximação

entre mutuário e credor, acarretou dificuldades financeiras às instituições credoras. Talvez

resida neste ponto um dos motivos da queda brusca do peso das fontes institucionais de

crédito a partir da década de 1760.

Muitas dessas instituições devido à crise de meados do século, tiveram dificuldades

em resgatar os empréstimos concedidos. Muitos mutuários se viram em apuros para solver

suas dívidas com as instituições. Assim, criou-se um círculo vicioso, no qual sem os

pagamentos dos empréstimos efetuados, as instituições baianas viram diminuir seus

recursos para serem aplicados no sistema creditício, reduzindo, portanto a oferta de

dinheiro. No caso dos particulares isso não ocorreria porque mesmo que alguns sofressem

esse tipo de problema seriam facilmente substituídos por outros. É importante sublinhar

que se considerarmos somente os particulares os valores emprestados são crescentes ao

longo de toda a segunda metade do século. Isso tem a ver com os agentes envolvidos no

sistema de crédito da cidade, o qual analisaremos mais adiante.

Na Bahia da segunda metade do século XVIII, como já observamos, as instituições

foram perdendo espaço no papel de credor ao longo dos anos. De todo modo, se tomarmos

o período como um todo, veremos que aproximadamente 30% do montante

disponibilizados ao crédito foram ofertados por esses institutos, contabilizados em 198

escrituras.

Rae Flory observou que, no início do século XVIII, além da Santa Casa, havia

outras instituições de caráter religioso que disponibilizavam dinheiro a crédito em Salvador

como o Convento de Santa Teresa, que logo depois da Misericórdia, foi a segunda fonte

institucional que mais emprestou dinheiro, 3,6% do total. Seguida a este, aparece um outro

convento, o de Santa Clara do Desterro (3,2%), a Ordem Terceira de São Francisco (2,3%),

Ordem Terceira do Carmo (1,9%), Irmandade do Santíssimo Sacramento (1,7), Irmandade

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de Santo Antônio e Conceição (1,6%) e por fim, a Irmandade de São Pedro dos Clérigos

(1,3%).

Quadro 3.3 – Instituições fornecedoras de crédito no mercado de Salvador,

1751-1800 (em mil réis)

Instituição Credora Valor %

Santa Casa de Misericórdia 90:027$990 34,8

Ordem Terceira do Carmo 19:402$584 7,5

Ordem Terceira de São Francisco 8:278$000 3,2

Irmandade de São Pedro dos Clérigos 7:500$000 2,9

Convento de Santa Teresa 7:200$000 2,8

Mosteiro de São Bento 3:800$000 2,4

Convento de Santa Clara do Desterro 6:200$000 2,3

Juízo de Órfãos 5:691$424 2,2

Irmandade do Santíssimo Sacramento 3:363$114 1,3

Outros/indeterminado 105:032$655 40,6

Total institucional 260:701$122 100,0

Fonte: APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139).

No quadro 3.3 podemos observar o peso relativo de cada um deles na segunda

metade do século XVIII. A Santa Casa de Misericórdia aparece com uma participação de

34,8%, maior do que o período analisado por Rae Flory. A Ordem Terceira do Carmo

aumentou sua participação no sistema de crédito, sendo responsável pela oferta de 7,5% do

dinheiro institucional. Outras instituições baianas continuavam envolvidas no mercado de

crédito, como as Irmandades de São Pedro dos Clérigos, do Santíssimo Sacramento, a

Ordem Terceira de São Francisco, o Convento de Santa Teresa e o Mosteiro de São Bento.

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293

Este último, no ano de 1660, obteve um sexto de sua renda com a cobrança de juros sobre

empréstimos. 253 O Convento de Santa Clara do Desterro era também uma dessas

instituições. Acumulava capital cobrando dotes no momento da inserção de uma noviça e

por meio de legado. 254 Tais quantias depois eram redirecionadas ao mercado na forma de

crédito. Tal como a Santa Casa, o Desterro concedia créditos a mutuários escolhidos, com

juros inferiores aos cobrados na praça. Mesmo com todas as facilidades não foram poucas

às vezes em que tanto a Misericórdia quanto o Desterro tiveram dificuldades para receber o

que havia sido emprestado ou mesmo os juros cobrados sobre a quantia. Segundo Russell-

Wodd, isso ocorria porque as regras sobre as garantias dos empréstimos não eram

seguidas. Por diversas vezes essas instituições tiveram que entrar na justiça para reaver o

valor emprestado, resultando, em muitos casos, na perda do valor disponibilizado a

crédito.255 Muitos devedores buscavam ser eleitos para a Mesa da Santa Casa, pois

descobriram que desta maneira conseguiriam ocultar suas dificuldades no pagamento de

suas dívidas junto à instituição.256

A novidade observada em nossos dados é a presença do Juízo de Órfãos como fonte

de crédito institucional. Diferente das demais, essa instituição não tinha um caráter

religioso. Flory não achou nenhum registro dessa instituição como fonte de empréstimo

entre os anos de 1698-1715. O dinheiro disponibilizado pelo Juízo de Órfãos provinha de

heranças dos órfãos, conseguidos de forma geral, a partir da arrematação de seus bens em

praça pública.

De todo modo, tal qual o período trabalhado por Flory, a Santa Casa se destaca

como sendo a principal instituição fornecedora de crédito da Bahia, responsável por 34,8%

253 SCHWARTZ, op. cit., 1995, p. 180. 254 Sobre os mecanismo para a inserção no convento de Santa Clara do Desterro cf. SOEIRO, Susan A. “The social and economic role of the convent: women and nuns in Colonial Bahia, 1677-1800”. In: Hispanic America History Review (HAHR), 1974. 255 RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p.83; SOEIRO, op. cit., 1974, passim. 256 RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 82.

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do montante institucional ou 10% do volume total de empréstimos. Como já foi apontado,

esse dinheiro entrava na Misericórdia via doações de terras, prédios urbanos, dívidas

ativas, muitas vezes no momento da morte de um indivíduo. Desta maneira, essa

instituição propiciava que o capital anteriormente paralisado, voltasse a circular na

economia. Era um mecanismo eficaz para fazer circular o capital numa economia onde

havia escassez de numerários.

Quadro 3.4 – Soma total dos empréstimos efetuados pela Santa Casa de

Misericórdia de Salvador por década, 1751-1800 (em mil réis)

Santa Casa de Misericórdia

1751-60 1761-70 1771-80 1781-90 1791-1800

56:927$872 15:878$928 10:690$488 5:530$000 1:000$600

Fonte: APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139).

Analisando mais detalhadamente nossas fontes, observamos que essa

representatividade da Santa Casa ocorreu ao longo do século XVIII, embora seu peso tenha

caído constantemente com o passar dos anos, como podemos observar no quadro 3.4. O

volume de empréstimo efetuado entre os anos de 1761-70 foi aproximadamente de um

quarto daquele ofertado na década anterior. A tendência de queda na participação da Santa

Casa mantevesse constante, chegando a emprestar apenas 1:000$600, na última década do

século XVIII, uma participação ínfima para aquela que até meados dos Setecentos

representava a principal fonte provedora de dinheiro a risco no mercado creditício de

Salvador.

Esses exemplos de crédito institucionais foram mecanismos de produção de capital

criados pelas sociedades coloniais para fazer frente à escassez de numerário, típico de

economias pré-industriais. Em ambos os casos, como para todos os outros relativos às

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instituições, a origem do dinheiro não estava, ao menos de forma direta, atrelada à

atividade mercantil. Era no momento da morte de alguns indivíduos que parte dos bens

acumulados ao longo de uma vida era transferido para instituições religiosas ou laicas,

como no caso do Juízo de Órfãos. Esses bens eram transformados em capital e repassados

para outras pessoas interessadas em crédito. Esse mecanismo foi bastante eficiente para por

em circulação uma riqueza que em parte ou no todo já se encontrava fora do mercado.257

No que tange ao papel desempenhado pelas instituições na praça do Rio de Janeiro,

notamos algumas diferenças em comparação com a praça de Salvador. A participação da

Santa Casa como instituição credora, por exemplo, foi praticamente inexpressiva na cidade

carioca. Não foi encontrado nenhum empréstimo feito pela Misericórdia entre os anos de

1650-80. No século XVIII, a Santa Casa respondeu por 3,4% dos valores transacionados.

Ainda assim, bastante limitado se comparado com os números encontrados para a Bahia

durante o mesmo período.258

Segundo dados apontados por Antônio Carlos Sampaio, entre 1650-1700, o Juízo

de Órfãos destacou-se como instituição credora. Segundo o autor, essa instituição era a

principal fonte de recursos da economia carioca, estando presente em quase um quarto de

todas as escrituras de empréstimos, representando aproximadamente um terço do montante

transacionado no período.259

A partir da primeira metade do século XVIII, esse quadro sofre alterações. Embora

ainda apareça como agente credor na década de 1710, o Juízo de Órfãos desaparece das

escrituras no decênio seguinte, tornando insignificante sua participação no mercado de

crédito nos anos posteriores.260 Sampaio entende que essa mudança estava atrelada ao peso

257 SAMPAIO, op. cit., 2002, pp. 8-9. 258 SAMPAIO, Antônio C. J. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 195. 259 Ibidem, p. 193. 260 Ibidem, p. 194.

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crescente que vinha ganhando a atividade mercantil do Rio de Janeiro. Tal

desenvolvimento possibilitou o surgimento de novas fontes de empréstimos, notadamente

os homens de negócios.

Não só no âmbito da América portuguesa se deu a participação das instituições no

sistema creditício. Na América hispânica, houve forte participação institucional,

principalmente de caráter religioso, como fonte de capital. Assim como suas congêneres

brasileiras, os recursos dessas instituições provinham quase que em sua totalidade de

doações testamentárias. Estas sociedades coloniais também buscavam criar mecanismos

próprios para a circulação de capital numa tentativa de resolver a falta de numerário em

suas economias.261

Analisando o crédito na sociedade da Nova Espanha, Linda Greenow observou que

vários signos monetários foram usados como moedas devido à escassez de numerário. Esse

mecanismo conviveu ao lado de diversos instrumentos de crédito, como a cessão e o

endosso de dívidas, compensação de contas, etc. Segundo Greenow, estes recursos

permitiram suprir a falta de liquidez, aumentar o capital circulante e reservar as moedas e

os metais preciosos para as atividades onde as expectativas de ganhos eram mais

promissoras.262

Greenow analisou os protocolos notariais da Cidade do México no século XVI onde

percebeu que as operações creditícias foram a segunda prática mais recorrente nas fontes

compulsadas, estando atrás somente das escrituras de representação. Como não havia

instituições oficiais fornecedoras de crédito, tal prática ficou a cargo das instituições

eclesiásticas, dos comerciantes e de pessoas que se encarregavam da arrecadação de

261 SAMPAIO, op. cit., 2002, p. 9. 262 GREENOW, Linda. “El credito em Nueva España” In: Hispanic American Historical Review, 81, 1, 2001, p. 133.

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297

impostos. Com o passar dos anos, esses grupos foram ganhando posição dominante na

concessão de crédito.263

Parte do ganhos auferidos pela prática do crédito era reinvestida pelos comerciantes

na aquisição de cargos públicos, tanto na administração quanto no recolhimento de

impostos. A participação na administração colonial consolidou a esfera de atuação e o

poder da elite mercantil mexicana.264

Segundo John Kicza, as rendas obtidas pelos comerciantes da Cidade do México

eram usadas para a ampliação de suas atividades comerciais, para o investimento em outro

campo da economia e, principalmente, para pagar as importações de produtos europeus e

asiáticos.265 Ainda de acordo com o autor, junto com os comerciantes, as instituições

eclesiásticas, como mosteiros, conventos e irmandades religiosas, foram se tornando as

principais fontes de financiamento da economia colonial, sendo uma das mais destacadas a

irmandade de Nuestra Señora de Aránzazu.266

A participação das instituições de caráter religioso como fontes poderosas de

crédito se deu em outras áreas da América hispânica. Os que mais se beneficiavam desse

sistema eram indivíduos da elite local, por possuírem acesso privilegiado e condições

favoráveis para quitar suas dívidas. Kathryn Burns mostra a importância para as famílias

de Cuzco no século XVII em ter uma ou mais filhas fazendo parte de conventos, como

ocorria na Bahia, em relação ao Convento de Santa Clara do Desterro, por exemplo.267 Ter

um membro da família dentro de um mosteiro e, principalmente, se estiver ocupando um

263 Ibidem, p. 134. 264 Ibidem, p. 138. 265 KICZA, John. Empresários coloniales – famílias y negócios em la ciudad de México durante los borbones. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, pp. 71-2. 266 Ibidem, p. 76. 267 BURNS, Kathryn. “Nuns, Kurakas and credit: the spiritual economy of seventeenth-century Cuzco” In: Colonial Latin Americab Review. Oxford: Carfax, v.6, n.2, 1997.

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cargo de direção, tornava mais fácil o acesso ao crédito como também facilitava as formas

de pagamento.268

Segundo João Fragoso, este desempenho das instituições aponta para uma relativa

autonomia da economia colonial frente aos grupos mercantis metropolitanos.269 Assim,

podemos afirmar que as instituições desempenharam um papel fundamental concernente à

circulação de capital no âmbito colonial até o início do século XVIII no Rio de Janeiro e

meados da mesma centúria em Salvador, quando os homens de negócio ainda tinham uma

participação incipiente nos mercados locais, incapazes ainda de controlar o sistema de

crédito bem como a própria liquidez da economia.

A queda da participação das instituições como fontes de crédito no âmbito colonial

está atrelada ao desenvolvimento do grupo mercantil. No Rio de Janeiro, a transformação

no perfil do sistema creditício ocorreu nos primeiro anos do século XVIII. Já na Bahia, a

consolidação dos negociantes como controladores da circulação de numerários se verificou

ao longo da segunda metade do Setecentos.

Segundo dados apontados por Antônio Carlos Sampaio, entre 1711-20, os homens

de negócio cariocas foram responsáveis por 21,4% do valor total oferecido a juros. Nas

décadas seguintes, esse percentual passou a ser de 46,2%, 58,1% e 42,4%, para os períodos

de 1721-30, 1731-40 e 1741-50, respectivamente.270 Para Sampaio, o crescente aumento da

participação de agentes vinculados ao comércio no sistema de crédito demonstra a

268 Cabe ressaltar que no Peru ao longo do século XVII, não só as instituições religiosas tinham participação no mercado de crédito. Segundo Margarita Suárez, o papel dessas instituições tem sido supradimensionado, deixando-se de lado as funções exercidas pelos mercadores e banqueiros. Desde finais do século XVI alguns mercadores de Lima começaram a receber depósitos e praticar operações creditícias em suas casas mercantis que adquiriram o título de bancos públicos com o passar do tempo. Assim segundo Suárez, a partir da primeira metade do século XVII, junto com a Igreja, os mercadores passaram a controlar o sistema de crédito no vice-reinado do Peru. Ver, SUÁREZ, Margarita. Desafios transatlânticos – mercadores, banqueros y el estado em el Peru virreinal, 1600-1700. Lima: PUC-Peru, Fondo de Cultura Econômica e Instituto Francés de Estúdios Andinos, 2001, pp. 23-4. 269 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 270 SAMPAIO, op. cit., 2003, pp. 190-1.

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transformação pela qual passava a economia carioca, qual seja, a distinção de homens

ligados somente às atividades mercantis daqueles atrelados às atividades agrárias. No

século XVII, não havia ainda uma esfera mercantil distinta das demais atividades

econômicas no Rio de Janeiro. Havia uma forte ligação entre a acumulação mercantil e a

atividade agrária, sendo que esta absorvia grande quantidade do capital obtido pelo

mercado. Desta maneira, até a última década do século XVII não havia uma elite mercantil

strito sensu que se distinguisse totalmente da elite agrária.271 Já na centúria seguinte, é

perceptível a distinção entre senhores de engenho e homens de negócio. Enquanto os

primeiros passam a se destacar como fornecedores de crédito, os segundos passam a ter

uma participação praticamente nula como fonte de numerários, passando a aparecer apenas

como devedores. A atuação dos senhores de engenho como credores, segundo Sampaio se

dá apenas em ocasiões muito específicas, ligadas a empréstimos de parentes ou

relacionados a dívidas antigas.272

No caso baiano, os dados de R. Flory mostram que os homens de negócio foram

responsáveis por aproximadamente um quarto do montante de dinheiro disponibilizado ao

crédito entre 1690-1715, representando a segunda fonte mais ativa de capital, vindo logo

atrás das instituições. Outros profissionais residentes em Salvador e também atuantes como

credores foram os clérigos, advogados, alguns militares e oficiais régios, representando

12,5%. Até mesmo alguns senhores de engenho emprestavam dinheiro, correspondendo a

7,3% do montante transacionado.273 Uma grande variedade de credores possibilitava um

contínuo acesso ao crédito. Assim, um indivíduo que necessitasse de crédito

constantemente poderia dirigir-se a uma fonte alternativa quando um provedor tornava-se

esgotado.

271 SAMPAIO, op. cit., 2002, p. 12. 272 Idem. 273 FLORY, op. cit., 1978, pp. 72-4.

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Dentro dessa perspectiva, Flory observou que havia uma forte dependência de

produtores agrários com uma grande variedade de credores. Muitos senhores de engenho

hipotecavam suas propriedades como garantia de pagamento dos empréstimos efetuados

com até doze diferentes credores institucionais ou privados.274

Para o período de 1751-1800 contabilizamos 569 escrituras de empréstimos cujos

credores eram pessoas físicas. Isso representa 78,5% de todo o montante disponibilizado a

crédito nas escrituras coletadas. Montamos o quadro 3.5 distribuindo o volume de crédito

por cada grupo social. O universo de pessoas envolvidas no sistema de capital a risco era

bastante variado. É possível apontar que entre os credores físicos havia advogados,

militares, proprietários rurais, religiosos, agentes da governança e comerciantes.

Infelizmente, não conseguimos levantar a atividade desempenhada para todos os

indivíduos relatados como credores nas escrituras. De todo modo, o que podemos

apreender diante desses dados é que havia uma oferta variada de fontes de financiamento

na sociedade baiana colonial e uma autonomia relativa frente aos grupos metropolitanos.

274 Ibidem, p. 74.

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301

Quadro 3.5 – Participação de cada grupo de credores no sistema de crédito em

Salvador, 1751-1800 (em mil réis)

N.E Credores Valor

transacionado

% frente ao

volume

privado

% frente ao

volume total¹

192 Homens de

negócio

399:224$377 56,8 44,6

130 Comerciantes-

senhores de

engenho

188:300$860 34,1 26,8

71 Profissionais

citadinos²

22:378$048 3,2 2,5

46 Senhores de

engenho

7:160$975 1,1 0,8

41 Militares 4:475$609 0,6 0,5

89 Indeterminado 29:509$836 4,2 3,3

569 Total 702:615$152 100 78,5

Fonte: Fonte: APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139). Obs: 1 – O valor total de crédito transacionado no período foi 895:121$922. 2 – Neste grupamento incluímos: advogados, religiosos, agentes da governança, etc.

Ainda observando o quadro 3.5 percebemos que o grupo mercantil aparece em

aproximadamente 34% das escrituras totalizando cerca de 45% dos fundos totais

disponibilizados na praça. Se considerarmos apenas os empréstimos oferecidos por pessoas

físicas descartando os desconhecidos, os homens de negócio aparecem como responsáveis

por cerca de 57% do total.

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302

Em comparação com dados levantados por Flory, fica evidenciado que ao

considerarmos toda a segunda metade do século XVIII houve um aumento na participação

dos homens de negócio no sistema de crédito de Salvador e conseqüentemente um

decréscimo das instituições como agentes ativos. Fato este percebido nos dados apontados

no quadro 3.2, onde fica perceptível que essa mudança no padrão foi se desenrolando ao

longo das últimas décadas dos Setecentos.

A inversão do perfil do tipo de credor em Salvador ocorreu justamente na década de

1760, período no qual a economia da cidade passava por dificuldades, como já alertamos

anteriormente. Com a redução do volume de dinheiro disponibilizado a crédito, a

participação de agentes privados tornou-se mais importante do que à institucional. Muitos

desses agentes deviam estar de alguma maneira envolvidos com atividades mercantis,

como o comércio de escravos. Por isso, mesmo se tornando majoritário frente aos

empréstimos institucionais, o volume total de dinheiro emprestado nessa década caiu em

relação ao decênio anterior.

Analisando isoladamente a década de 1770, verificamos que 32,6% do volume de

capital disponibilizado foram feitos por homens de negócio, enquanto este mesmo grupo

foi responsável por apenas 15,8% do montante total na década de 1750. Esses dados

evidenciam que estava ocorrendo um incremento na importância dos agentes mercantis na

participação do sistema de crédito. No final do século XVIII, a participação dos

comerciantes como agentes ativos de empréstimos tornou-se mais importante do que havia

sido até então. Isso ocorreu devido ao declínio financeiro de algumas instituições

fornecedoras de crédito como a Santa Casa de Misericórdia, bem como da consolidação de

algumas carreiras mercantis distintas de outras atividades. A mudança pela qual passava o

mercado de Salvador nesse momento, foi aquele vivenciado pela praça carioca no início

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303

dos Setecentos. A circulação de numerários e o controle da liquidez da economia

soteropolitana passavam para as mãos dos comerciantes com o findar do século XVIII.

A partir de alguns inventários baianos constituídos no período por nós estudado,

podemos observar que as maiores fontes de crédito provinham dos comerciantes,

principalmente daqueles que se dedicavam ao comércio de longa distância. Uma das

maiores fortunas inventariadas, 234:981$000, pertencia a Maria Joaquina de Barros,

correspondendo esse valor a soma total dos bens e dívidas ativas.275 Comerciante de

escravos, Maria Joaquina era dona de três embarcações, um navio grande no valor de

20:000$000, um brigue avaliado em 3:200$000 e uma alvarenga de 70$000. Além do

comércio de escravos africanos, possuía uma loja de tecidos e várias casas de aluguel.

Embora fosse dona de vários bens, sua fortuna estava mesmo atrelada ao crédito. Cerca de

84% de seu montemor (aproximadamente 194:000$000) era constituído por dívidas ativas,

como dinheiro emprestado e valores de mercadorias a receber. Com tamanho valor a

receber, Maria Joaquina de Barros aparecia como a maior credora da praça de Salvador em

sua época.

Já abordado por nós no capítulo anterior, o segundo maior credor que encontramos

nos inventário foi Custódio Ferreira Dias, que era o possuidor da maior fortuna pessoal de

Salvador, avaliada em 304:165$000, sendo cerca de 40% ou 120:695$000 constituído de

dívidas ativas.276 Atuava no comércio de longa distância, também como traficante de

escravos. Na capital baiana possuía uma loja aberta, dois armazéns e um trapiche. Mas não

só da atividade mercantil vivia Custódio. Ele era dono de quatro engenhos e uma grande

escravaria, uma das maiores de Salvador, sendo um personagem emblemático da sociedade

soteropolitana da época. Custódio Ferreira Dias se enquadra na categoria de comerciante-

senhor de engenho que foi responsável pela oferta de 34% do crédito privado ou de 275 APEB, judiciário Inventário de Maria Joaquina de Barros, 1808, 8/3299/3. 276 APEB, judiciário Inventário de Custódia Dias Ferreira, 1801,4/1741/221/5.

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aproximadamente de 27% do volume total de dinheiro disponibilizado para empréstimos

em Salvador, como apontado no quadro 3.5.

Esse grupo de homens com atividades bifurcadas entre o rural e o comercial ainda

era muito forte em Salvador em finais do século XVIII, bem como ainda o foram por boa

parte do século XIX. Embora houvesse um incremento de indivíduos que atuassem apenas

no setor mercantil, havia ainda aqueles que por estratégia de vida direcionavam grande

parte de seus rendimentos obtidos via comércio para atividades agrárias, pois percebiam na

carreira mercantil um mecanismo eficiente para angariar capital que pudesse ser investido

em atividades agrícolas. Outros misturavam suas atividades como forma de obter status e

prestígio. Muitos queriam legar para seus descendentes um modo de vida que os afastasse

da atividade mercantil, associando-se desta forma a um estilo de vida ligado a posse de

terra. Como observou Antonil:

O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser

servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser homem de

cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quando

proporcionalmente se estimam os títulos entre fidalgos do Reino.277

Sendo assim, era comum a existência de outros indivíduos com o mesmo perfil e

comportamento verificado no inventário de Custódio Ferreira Dias que aspiravam galgar a

partir da aquisição de propriedades rurais o status de “nobreza” que esse tipo de bem

oferecia.

É o caso de Manoel Pereira de Andrade, dono da quarta maior fortuna inventariada

e quinto maior credor particular. Seu montemor foi avaliado em 193:975$000, sendo cerca

de 21% ou 41:372$000 referentes à dívida ativas.278 Sua fortuna era composta por dois

engenhos, uma fazenda de gado, um alambique, uma loja aberta, um trapiche com

277 ANTONIL, André João Cultura e opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, p. 75. 278 APEB, judiciário Inventário de Manoel Pereira de Andrade, 1793, 4/594/2063/7.

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equipamentos de descaroçar e prensar algodão, um barco grande e duas lanchas, uma

grande e outra pequena. Também atuava no comércio de escravos africanos, fazendo

negociações em portos da África. Assim, como Custódio Ferreira Dias, Manoel Pereira de

Andrade era comerciante e ao mesmo tempo senhor de engenho e ainda administrador do

real donativo do açúcar e tabaco.279

O casal Maria Pereira Rangel e João Ribeiro da Silva aparecem como os terceiros

maiores credores privados de Salvador. Sua fortuna foi estimada em 77:120$000.280 Sua

dívida ativa de dinheiro emprestado e de valor de mercadorias a receber era de

aproximadamente 50:000$000 ou cerca de 65% do montemor. Atuavam no comércio de

longa distância, mantendo ligações com as cidades do Porto e de Lisboa, bem como com

portos africanos, onde faziam o comércio de escravos. Praticavam também comércio com

regiões do interior da América portuguesa como Piauí, Minas Gerais, Goiás, Cuiabá e

Sergipe, atuando no fornecimento de escravos e outros mercadorias para essas regiões.

O quarto maior credor encontrado nos inventário foi Antônio Nunes Leitão, com

uma fortuna avaliada em 44:000$000.281 Sua dívida ativa correspondia a impressionante

94% de sua fortuna, cerca de 41:500$000. Apenas conseguimos extrair a informação de

que o inventariado era sargento-mor, devido à precariedade do estado de conservação de

seu inventário.282 Assim sendo, Antônio Nunes Leitão exemplifica o papel desempenhado

pelos militares como fornecedores de crédito em Salvador. Eles aparecem em quarenta e

uma escrituras como credores, responsáveis por 0,6% do dinheiro privado emprestado,

como observamos no quadro 3.5.

Para além da participação dos comerciantes nos fundos disponibilizados a crédito

mediante escrituras, eles eram responsáveis também por outros mecanismos de

279 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 190. 280 APEB, judiciário Inventário de Maria Pereira Rangel e João Ribeiro da Silva, 1790, 4/1760/2230/4. 281 APEB, judiciário Inventário de Antônio Nunes Leitão, 1768, 4/1592/2061/9. 282 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 190.

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fornecimento de capital. Na ausência de numerário, os comerciantes podiam fornecer

empréstimos sob outras formas que não fosse a monetária. De acordo com Schwartz, os

senhores de engenho constantemente se viam em necessidade para aquisição de material

operacional como mão-de-obra, ferramentas e equipamentos.283 Cabia aos comerciantes o

fornecimento de tais mercadorias a base de crédito. Nessas condições eram mantidas

contas abertas nas quais os senhores de engenhos e proprietários rurais se abasteciam de

mercadorias e produtos muitas vezes importados, como escravos africanos, com a

promessa do ajuste de contas ao final da safra. Em muitas ocasiões o pagamento do débito

se dava mediante sacas de açúcar a um preço abaixo do mercado. Ainda segundo Schwartz,

esse tipo de negociação foi imprescindível para a capitalização da indústria açucareira na

Bahia.284

O crédito era fundamental para a manutenção e sobrevivência de uma propriedade

rural devido aos gastos constantes e à baixa lucratividade. De 1698 a 1715, senhores de

engenho, plantadores de cana e de tabaco absorveram respectivamente 35,0%, 16,8% e

9,8% do volume total do capital disponibilizado na praça baiana.285 Isso significava que

mais da metade do dinheiro a risco era direcionado para a área rural, mais do que isso, para

a produção dos dois principais artigos da pauta de exportação baiana, o açúcar e o fumo.

Tal fato era decorrência da baixa lucratividade da atividade agrária o que acarretava em

endividamentos crônicos.

Embora aparecessem nas escrituras como responsáveis por aproximadamente 1%

do dinheiro emprestado, como foi apontado no quadro 3.5, os senhores de engenhos se

notabilizaram mais por serem tomadores de empréstimos. Contudo, eles também acabavam

desempenhando o papel de credores como um mecanismo de controlar subordinados

283 SCHWARTZ, op. cit., 1999, p. 182. 284 Idem. 285 FLORY, op. cit., 1978, p. 75.

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envolvidos na indústria açucareira. De acordo com Schwartz, um procedimento comum era

o senhor de engenho conceder financiamento a um lavrador de cana, que em troca se

comprometia a moer seu produto no engenho credor.286 Ainda segundo o mesmo autor,

diante da falta de moedas, geralmente os senhores de engenho concediam crédito na forma

de escravos, equipamentos ou terras, com objetivo de obter a cana cativa. Assim, esses

senhores conseguiam mesmo sem dinheiro em caixa fornecer empréstimos e obter a

matéria-prima necessária para o bom funcionamento de seu engenho.287 Essa estrutura de

crédito para além de gerar um forte vínculo e laços de dependência entre senhores de

engenho e plantadores de cana, ajudou a manter a hierarquia da elite açucareira baiana.

O senhor de engenho José Pires de Carvalho e Albuquerque, inventariado em 1808

e dono da terceira maior fortuna encontrada nos inventários, 200:937$000, foi um dos

senhores de engenho fornecedores de crédito. Possuía três engenhos, três fazendas de gado,

duas de cana. Sua dívida ativa girava em torno de 26:000$000, o que fazia dele o maior

credor entre os senhores de engenho. Tinha a receber mercadorias comprometidas pelos

devedores no momento da elaboração do empréstimo. Contudo, sua dívida passiva era de

25:082$488, cerca de 12,5% de seu montemor, o que o colocava na terceira posição como

maior devedor.288

Já Luís Carlos da Silva Pina de Melo, inventariado no ano de 1789, aparece como o

segundo maior credor entre os senhores de engenho, com dívida ativa de 8:200$000,

equivalendo a 5,5% de seu montemor, avaliado em 147:521$000. Contudo sua dívida

passiva era de aproximadamente 40:000$000 ou 27,1% de sua fortuna, o que o colocava no

topo dos maiores devedores entre os senhores de engenho.289

286 SCHWARTZ, op. cit., 1999, p. 183. 287 Ibidem, p. 184. 288 MASCARENHAS, op. cit., 1998, pp. 188-93. 289 Ibidem, pp. 188-92.

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O terceiro maior credor dentro desse grupo social foi Sebastião Gago da Câmera,

inventariado em 1762, com montemor de cerca de 63:000$000, sendo aproximadamente

8:000$000 ou 12,2% referentes a dívidas ativas. Era dono de quatro engenhos, alambique,

fazenda, uma casa e lojas alugadas. Sua dívida passiva era pequena se comparada à ativa,

apenas 1:900$000 ou 3% de sua riqueza.290

Antônio Marinho de Andrade, inventariado no ano de 1802, foi o quarto maior

credor entre os senhores de engenho. Possuía uma fortuna avaliada em aproximadamente

71:000$000, constituída por um engenho, uma olaria e uma casa de farinhas. Sua dívida

ativa era de 5:323$000 ou 7,5% de sua fortuna. Embora tenha atuado como credor,

Antônio Marinho de Andrade não nega seu perfil de senhor de engenho atrelado ao crédito

como devedor. Sua dívida passiva representava 54% de seu montemor ou cerca de

38:000$000, representando a segunda maior dívida passiva encontrada nos inventários.291

Havia também aqueles que tinham uma dívida maior do que a soma total de sua

riqueza, como o caso de Antônio da Costa, que era senhor de engenho, cirurgião-mor e

boticário. Inventariado em 1779, sua fortuna foi avaliada em 15:324$000, mas sua dívida

passiva era de 20:823$000.292 Antônio da Costa é exemplo de proprietário de terra que se

endividou para iniciar seu empreendimento. Sua dívida foi feita com o intuito de comprar

seu engenho, que no momento de elaboração do inventário ainda não tinha sido totalmente

quitada.

Assim, analisando os inventários baianos percebemos que os possuidores de dívidas

ativas mais altas estavam, de algum modo, atrelados à atividade mercantil, mesmo que

esses credores não estivessem desvinculados da atividade agrária, como nos casos de

Custódio Ferreira Dias e Manoel Pereira de Andrade. Já os maiores devedores se

290 Idem. 291 Idem. 292 Ibidem, p. 193.

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encontravam no grupo dos senhores de engenho. A analise dos inventários evidencia que

nas mãos do grupo mercantil estava a liquidez da economia de Salvador, logo, tornaram-se

a fonte principal do crédito, dinheiro este fundamental para os senhores de engenhos que

constantemente recorriam aos empréstimos para tocar seus empreendimentos. Desta

maneira, formou-se uma relação intrínseca entre proprietários rurais e comerciantes.

Devemos salientar também que além de transações financeiras, as relações de

créditos muitas vezes podiam estar atreladas a relações sociais de outra natureza como a

formação de alianças. Um homem de negócio ao fazer um empréstimo para um senhor de

engenho, por exemplo, estaria objetivando a aproximação das famílias. Desta relação

surgiriam laços mais fortes como a constituição de matrimônios. Enfim, em sociedades

pré-industrias, as relações de crédito podiam abarcar igualmente relações financeiras e

sociais. Talvez essa seja a explicação para que mesmo tendo dificuldade para tocar seus

negócios, alguns senhores de engenho tenham atuando como credores, mesmo sendo

grande tomadores de empréstimos, como nos casos apontados anteriormente. Era uma

forma de garantir a subordinação de proprietários menores, mantendo, desta forma, a

hierarquia social no setor agrário.

Os dados baianos coincidem com os levantados por Antônio Carlos Sampaio para o

Rio de Janeiro na segunda metade do século XVII, quando os senhores de engenho eram os

grandes devedores. Eles foram responsáveis por adquirir cerca de dois terços de toda

dívida passiva na década de 1680. A participação desse grupo social diminuiu no século

XVIII, pois neste momento surgiram novos atores dispostos ao endividamento, como

lavradores, artesãos e comerciantes, reduzindo assim o espaço e o dinheiro disponível aos

senhores de engenho. Além disso, neste momento estava ocorrendo uma crise no setor

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310

açucareiro fluminense que impôs a retirada desses indivíduos do mercado de capital a

risco.293

A garantia para o recebimento desses empréstimos na maioria das vezes era bens

imóveis como casas, sobrados, engenhos, fazendas, terras e canaviais. Muitas vezes um

mesmo bem acabava sendo empenhado em mais de um empréstimo, o que gerava muitas

dificuldades na hora da cobrança dos credores.294 Os senhores de engenhos envoltos a

dívidas intermináveis utilizavam-se de algumas leis como as de 1663, que impediam as

penhoras de escravos e equipamentos dos lavradores e senhores de engenhos,295 e 1723 que

impediam o confisco total de um engenho. Isso acarretava disputas judiciais que

perduravam por anos. Em alguns casos, os engenhos eram levados a leilão para saldar as

dívidas. O problema nessas situações era que os lances dados estavam muito aquém do

valor real das propriedades, devido à baixa disponibilidade de dinheiro em caixa. Os

credores tinham que se contentar nessas situações com promessas de pagamento parcial ao

fim de cada safra. Nesse sentido, os credores se sujeitavam a uma espera adicional para ter

parte de seu capital de volta.296

Como garantia de pagamento, muitos acabavam hipotecando seus bens, como

verificamos por exemplo na escritura pública de 1766 em que José de Sousa Pereira tomou

empréstimo a Joaquim José Gomes no valor de 500$000 e deu como garantia a hipoteca de

uma morada de casas de sobrado avaliadas em 1:100$000.297 Ao longo de toda a segunda

metade do século XVIII hipotecar bens era a principal forma de avalizar que o empréstimo

seria pago.

293 SAMPAIO, op. cit., 2003, pp. 199-201. 294 SCHWARTZ, op. cit., 1999, p. 179. 295 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003, p. 282. 296 SCHWARTZ, op. cit., 1999, p. 182. 297 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 107, p. 238.

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311

Em estudo sobre o sistema de crédito no Termo de Vila do Carmo, em Minas

Gerais, na primeira metade do século XVIII, Carlos Kelmer Mathias, observou que os

plantéis de escravos eram as principais garantias para a quitação das dívidas. Analisando

inventários post-mortem, Mathias verificou que as dívidas passivas eram superiores as

comparadas às ativas, o que poderia acarretar o não pagamento dos débitos. Contudo, o

autor observou que os cativos presentes na documentação seriam a garantia necessária para

saldar as dívidas, uma vez que a soma do valor do plantel superava o montante das

obrigações de empréstimos. Assim, nas palavras de Mathias, “em um contexto em que a

terra era barata e as dívidas ativas de baixo valor, o escravo surgia como o bem mais

valioso no qual investir, pois, dentre outros fatores, constituía-se na principal via de acesso

ao crédito [assim] o escravo se metamorfoseava em crédito.”298

Segundo Maria José Mascarenhas, as hipotecas continuaram sendo bastante usadas

no final do Setecentos e início da centúria seguinte, como observou a partir da análise dos

inventários post-mortem.299 Vários tipos de bens eram hipotecados. Desde bens imóveis,

como terra fazendas e engenhos a escravos. Havia também hipotecas de peças de prata e

até mesmo um simples par de brincos de ouro.300

Sabe-se que as dívidas e os juros contraídos e não pagos em vida eram quitados

durante o processo de abertura do inventário post-mortem e da partilha dos bens. Fazia-se

um leilão dos bens em praça pública pelo preço de avaliação ou com acréscimo de alguns

mil réis ao valor atribuído pelos avaliadores. Era comum ocorrer o seqüestro de bens, para

298 MATHIAS, Carlos L. Kelmer. “Considerações acerca do movimento do crédito no termo de Vila do Carmo, 1713-1756”. In: VARELLA, Flávia Florentino; MATA, Sérgio Ricardo da & ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.) Anais do I Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade. Mariana: EdUFOP, 2007, pp. 1-4. 299 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 203. 300 Analisando a sociedade da Nova Espanha, John Kicza observou que como regra geral as garantias para empréstimos exigidos por instituições eclesiásticas ou particulares, era a propriedade rural, como fazendas com suas terras cultivadas. Aqueles que não pudessem adquirir pela compra uma propriedade rural, deveria faze-lo mediante casamento com alguém cuja família fosse dona de propriedades agrárias. Ver KICZA, op. cit., 1986, pp. 34-5.

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garantir a sobrevivência dos herdeiros quando estes fossem ainda menores e para o

pagamento da própria dívida constante nos inventários. Nesse sentido, o processo de

abertura de um inventário tornava-se um acontecimento que propiciava a circulação de

numerários ou de bens com valor de moeda, aumentando a possibilidade de novos

empréstimos.

Numa sociedade em que era pequena a liquidez devido à baixa circulação de

moeda, o momento da abertura de um inventário e de sua partilha era bastante aguardado

como um tempo de pagamento, de saldar os débitos e de prestação de contas. Débitos ou

parte deles eram quitados e credores recebiam seu dinheiro. As pessoas que deviam aos

herdeiros do inventariado tinham que pagar suas dívidas, para que o montemor da partilha

fosse composto, para posteriormente ser dividido entre os legatários.

Desta forma, o crédito se tornava uma boa fonte de investimento. Como

observamos nas escrituras públicas de Salvador, o dinheiro era disponibilizado a juros, o

que acarretava um rendimento através da cobrança dos mesmos para os credores. Assim, a

prática da usura foi bastante disseminada na colônia.

De forma geral, em Salvador, cobrava-se juros de 5 a 6,25% ao ano.301 Na Europa,

segundo Valentim Prada, os juros giravam em torno de 6,6 a 10% durante a primeira

metade do século XVI, recuando para 6% em épocas posteriores.302 Portanto, os juros

cobrados na praça de Salvador apresentavam-se no padrão europeu.

Como observamos anteriormente os proprietários rurais foram os maiores

tomadores de empréstimos. Contudo, havia uma gama variada de pessoas dispostas a pedir

empréstimos, como militares, religiosos, desembargadores, oficiais régios, homens de

301 Segundo Schwartz, as restrições da Igreja à usura restringiam a cobrança de juros a 6,25% ao ano. Esta permaneceu nesse patamar até 1757, quando foi baixada para 5% numa tentativa de atender a demanda dos senhores de engenho que constantemente reclamavam da elevada taxa de juros. Ver SCHWARTZ, op. cit., 1999, p. 179. 302 PRADA, Valentim. História econômica mundial. Das origens à revolução Industrial. Porto: Livraria Civilização Editora, 1972, p. 323.

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313

negócios. Estes últimos não apresentavam dívidas tão altas quanto os senhores de

engenhos, mas também faziam dívidas.

É o caso de Maria Joaquina de Barros, a maior credora individual encontrada nos

inventários. O fato de ela possuir 84% de seu montemor atrelado à dívida ativa não a

eximia de possuir dívidas passivas. Grande comerciante, atuando em diversos ramos,

Maria Joaquina possuía um saldo devedor de 25:393$000.303

Entre os comerciantes-senhores de engenho, encontramos grandes devedores

também, como o já mencionado Manoel Pereira de Andrade, possuidor da segunda maior

dívida passiva encontrada nos inventários, cerca de 36:000$000 ou 18,5% de seu

montemor.304 Atuando em ramos diversificados como comércio de longa distância,

produção agrícola e arrematação de contratos de dízimos, era natural que Manoel fizesse

uso intensivo do crédito para desenvolver seus empreendimentos. Para Mascarenhas, que

analisou também o referido inventário, a dívida de Manoel Pereira de Andrade deve se

referir aos donativos não pagos à Fazenda real, uma vez que era comum encontrar casos de

arrematadores de dízimos reais com dívidas altas.305

Analisando um total de trezentos e vinte e dois inventários da cidade de Salvador,

Mascarenhas observou que quanto maior a faixa de valor da fortuna, mais débito

existia.306 Esse tipo de transação encontrava-se em todos os níveis de riqueza, desde aquele

que possuía centenas de contos de réis aos que tinham apenas dezenas de mil réis. Em

linhas gerais, quem se encontrava no nível de riqueza de até 2:000$000 era credor.307 O

acesso ao crédito, desta forma, era uma prática extremamente usual em sociedades pré-

industriais, comum em todos os níveis sócio-econômicos.

303 APEB, judiciário Inventário de Maria Joaquina de Barros, 1808,8/3299/3. 304 APEB, judiciário Inventário de Manoel Pereira de Andrade, 1793, 4/594/2063/7. 305 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 194. 306 Idem. 307 Ibidem, p. 191.

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314

Ainda segundo dados levantados por Mascarenhas, os comerciantes tendiam tanto

quanto os senhores de engenho a buscar crédito, sendo o percentual de devedores de ambos

os grupos sociais bastante próximos. A diferença reside nos valores de dinheiro obtido,

sendo sempre superior no caso dos senhores de engenho.308

Rae Flory ao analisar os dados das escrituras de 1698 a 1715, observou que o

percentual de senhores de engenho que recorria ao crédito era bem maior que o do

comerciante, cerca de 34% contra 17,4%.309 O aumento dos comerciantes no acesso ao

crédito se deu justamente no momento em que essa categoria também se consolidava na

cidade de Salvador.

Dos inventários analisados por Mascarenhas, apenas em quatorze os montemores

eram inferiores às dívidas passivas dos inventariados. Entre esses havia indivíduos

presentes nas mais diversas categorias sociais e níveis de riqueza, como um dono de

engenho, um administrador do contrato dos dízimos, artesãos, pescadores de baleia e

fabricante de azeite, e até mesmo comerciantes, fossem pequenos, médios ou grandes.310

Era o caso de Francisco José da Silva Freire. Inventariado em 1800, o comerciante de

escravos, dono de loja aberta de tecido e outras mercadorias, possuía uma fortuna avaliada

em 34:077$000, sendo sua dívida passiva estipulada em 53:725$000.311

De todo modo, a maioria dos inventariados levantada por Mascarenhas possuía

débitos menores que a soma de todos os seus bens arrolados nos inventários. Isso mostra

que a situação das dívidas em Salvador não chegou a representar um problema, pois os

débitos eram contornáveis na medida em que a soma de capital presente na fortuna dos

baianos na segunda metade do século XVIII era suficiente para efetuar o pagamento dos

empréstimos efetuados

308 Ibidem, pp. 194-5. 309 FLORY, op, cit., 1978, p. 75. 310 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 195 311 Ibidem, p. 193.

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Observando as escrituras de crédito, nos chama atenção o número expressivo de

mulheres que captaram empréstimos. Aproximadamente 25% das escrituras tinham

mulheres como mutuários o que totalizava cerca de 13% do crédito disponibilizado. Em

sua maioria eram viúvas, como Teresa Ferreira de Sousa, viúva do mestre-de-campo

Caetano Lopes Vilasboas, que tomou junto ao Convento de Santa Clara do Desterro, no

ano de 1769, a quantia de 1:600$000 a juros de 5% ao ano.312 Com a morte do cônjuge,

essas mulheres se viam em situação de penúria, tendo que muitas vezes recorrer aos

credores para sobreviver. Algumas delas, como dona Inácia de Araújo Pereira, recorriam

aos usurários apenas em último caso. Viúva do coronel Garcia de Ávila Pereira, ela se viu

imersa em dívidas. Começou a se desfazer de seus bens em 1755, com a venda de um sítio.

Ao longo dos anos, foram vendidos mais seis sítios e duas fazendas, arrecadando um

volume de 3:522$000. Ao que tudo indica, essa quantia não foi suficiente para resolver

seus problemas financeiros, pois em 1772 no ano que vendeu três sítios, dona Inácia

recorreu às irmãs do Convento de Nossa Senhora do Carmo e pegou emprestados

1:707$336. Não há registros da cobrança de juros. Talvez as irmãs tenham se solidarizado

com a situação de penúria na qual se encontrava dona Inácia.313 Mas é provável também

que a importância e a projeção social de dona Inácia, pertencente a uma das famílias mais

poderosas e antigas da Bahia, justifiquem a não-cobrança de juros por parte das irmãs do

Convento de Nossa Senhora do Carmo.

Muitas mulheres recorriam ao crédito não apenas para suprir suas necessidades de

subsistência, mas sim para manter sua vida luxuosa. O gasto com vestuários, jóias, prataria,

mobílias, casa nobre eram bastante dispendiosos. Esses bens eram necessários para se

manter um padrão de vida, para marcar a distinção social, o prestígio e o status tão

312 APEB, Judiciário, livros de notas do 1., 2. e 3. ofícios de Salvador, livro 110, p. 89. 313 APEB, Judiciário, livros de notas do 1., 2. e 3. ofícios de Salvador, livro 114, p. 424v.

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importantes numa sociedade de Antigo Regime, como bem nos alerta Norbert Elias.

Segundo este autor,

Numa sociedade em cada manifestação pessoal tem um valor socialmente

representativo, os esforços em busca de prestígio e ostentação por parte das

camadas mais altas constituem uma necessidade de que não se pode fugir. Trata-se

de um instrumento indispensável à auto-afirmação social, especialmente quando

[...] todos os participantes estão envolvidos numa batalha ou competição por status

e prestígio.314

Nas sociedades de Antigo Regime, ter crédito na praça significava possuir prestígio

social. Numa sociedade onde era escassa a moeda, tornava-se vital a presença do crédito.

Ninguém conseguiria ser verdadeiramente rico sem possuir dívidas e créditos. Como

alertado anteriormente, esse padrão se refletia em todos os níveis de riqueza e grupos

sociais. Segundo o viajante Lindley, no início dos Oitocentos, no Brasil, uns concediam

créditos aos outros em larga escala, demonstrando o quando estava disseminado na

sociedade tal prática.315 Tal percepção foi bem resumida nas palavras de Alice Canabrava,

[o acesso ao crédito] como instituição completamente aceita, a

excepcionalidade das cobranças judiciais, a anuência quanto à elevada soma

de capital financeiro investida em títulos de crédito de valor duvidoso, os

‘papéis que nunca se hão de arrecadar’, são práticas consagradas que põe

em relevo o consenso quanto ao sustento do padrão da aparência de que

deviam desfrutar várias camadas da hierarquia social.316

Se por um lado era grande a procura por empréstimo por parte das pessoas físicas,

de outro foi insignificante a participação das instituições coloniais como mutuárias,

314 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 83. 315 LINDLEY, op. cit., 1969, pp. 172-3. 316 CANABRAVA, Alice “Decadência e riqueza”. In: Revista de História. São Paulo: v. 50, n. 100, 1974, p. 358.

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situação diferente do que foi observado quando analisamos os tipo de credores. Apenas 18

registros de empréstimos foram feitos para instituições, todas religiosas. O montante

envolvido nessas transações representou 1,6% da quantia total disponibilizada a crédito no

período estudado. Curiosamente, dois desses empréstimos foram feitos por outras

instituições religiosas, a saber: no ano de 1751 a Irmandade das Santas Almas emprestou a

juros de 5% ao ano a quantia de 1:000$000 a Irmandade do Santíssimo Sacramento da

Conceição da Praia; também no ano de 1751, outro empréstimo foi efetuado pela

Irmandade do Santíssimo Sacramento para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

Pretos da quantia de 200$000 a juros de 6,25% ao ano.317

Flory também percebeu uma pequena representatividade das instituições atuando

como devedoras. Seus dados indicam que apenas 1,1% da soma total do dinheiro a risco

foi captado por essas instituições.318 Ao que parece, os mecanismos utilizados por essas

organizações para se financiarem se situavam fora do mercado, como doações individuais,

dotes, e na maioria das vezes mediante recebimento de herança.

Concentração dos empréstimos

Vejamos agora o grau de concentração desses empréstimos. Para tanto, elaboramos

os quadros 3.6 e 3.7 que nos indicam os 10% maiores valores fornecidos a crédito nas

escrituras e os 50% menores, respectivamente. Optamos por fazer a comparação

verificando o peso de cada uma dessas porcentagens nos decênios.

317 APEB, Judiciário, livros de notas do 1., 2. e 3. ofícios de Salvador, livro 90, pp. 153; 244. 318 FLORY, op. cit., 1978, p. 75.

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Quadro 3.6 – Concentração total dos empréstimos nos 10% maiores, 1750-1800

NE % Valor %

1751-60 8 10,7 131:414$140 60,8

1761-70 9 9,9 27:928$821 35,1

1771-80 19 9,7 66:682$011 41,9

1781-90 19 10,3 76:983$117 42,8

1791-1800 24 9,7 129:039$565 42,5

OBS: valores em mil réis Fonte: Apêndice 1.

Quadro 3.7 – Concentração total dos empréstimos nos 50% menores, 1750-1800

NE % Valor %

1751-60 37 49,3 18:155$902 8,4

1761-70 46 50,5 14:640$749 18,4

1771-80 98 50,0 24:030$987 15,1

1781-90 91 49,2 32:196$210 17,8

1791-1800 123 49,8 53:437$561 17,6

OBS: valores em mil réis Fonte: Apêndice 1.

A primeira conclusão que tiramos ao observar os quadros 3.6 e 3.7 é o alto grau de

concentração no mercado de crédito da cidade de Salvador. Nos cinco períodos, os

empréstimos mais vultosos foram sempre muito superiores ao de menor volume. Esta

diferença torna-se significativa devido ao fato dos maiores aportes representarem um

quinto do total dos menores. Na década de 1751-60 essa diferença mostrou-se mais

expressiva, quando os 10% mais altos empréstimos representaram uma fatia de 60,8% do

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319

montante total, enquanto os 50% menores juntos contabilizaram apenas 8,3%, uma

diferença superior a 700%. Há uma explicação para essa altíssima concentração expressa

nesse período. No ano de 1760, um convento religioso emprestou ao Provedor da

Alfândega da Bahia, Rodrigo da Costa de Almeida, a exorbitante quantia de

77:130$000.319 Esse empréstimo sozinho demonstra o alto grau de concentração desse

sistema. Tal monta significou 31% de todo o capital posto ao crédito nesta década. A

média dos empréstimos nesse período era de aproximadamente 2:900$000. O valor tomado

pelo Provedor, portanto, excedeu em mais de vinte e três vezes a média. Se fizermos os

cálculos sem esse registro teríamos a seguinte situação: os oito maiores empréstimos

(10,8% do total) somariam 64:284$140, o que representaria 43,1% do montante posto a

crédito na década. Já o peso das 50% menores (vinte e três escrituras) somaria 27:928$821

representando 18,7% do montante. Ainda que essa diferença fosse de mais de 200%, esses

valores parecem mais próximos da normalidade do sistema de crédito em Salvador.

Nos períodos seguintes as taxas dos maiores continuam muito superiores aos

montantes dos menores. Entre 1761-70 essa diferença era superior a 100%,mais de 300%

para os anos de 1771-80 e superiores a 200% nas duas últimas décadas do século XVIII.

Tal grau de concentração mostra que eram poucos aqueles que tinham acesso a quantias

vultosas no mercado de crédito baiano. O que pode explicar tal fato é que dos 10% maiores

empréstimos efetuados para todo o período (setenta e nove no total), vinte e oito foram

realizados por instituições como a Misericórdia e o Desterro. Embora um número variado

de pessoas recorresse a essas instituições, eram poucos aqueles que efetivamente

conseguiam uma quantidade significativa de numerário. Para tanto, era necessário possuir

status e prestígios, muitas vezes ter vínculos com essas instituições, como, por exemplo,

319 APEB, Judiciário, livros de notas do 1., 2. e 3. ofícios de Salvador, livro 103, p. 115v.

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ser um membro da Santa Casa de Misericórdia ou possuir um parente feminino

pertencendo ao Convento de Santa Clara do Desterro.

Ao observarmos os valores médios notamos que a concentração tendia a

permanecer. As médias aproximadas dos maiores empréstimos nas décadas de 1750, 1760,

1770, 1780 e 1790 eram respectivamente 16:400$000 (8:000$000, se não considerarmos o

empréstimo feito ao Provedor da alfândega da Bahia), 3:100$000, 3:500$000, 4:000$000 e

5:400$000. Já as médias dos volumes dos menores eram de 490$000, 318$000, 245$000,

353$000 e 434$000. Ao que parece, o aumento no número de créditos expedido na cidade

de Salvador estava atrelado a uma maior pulverização das quantias, mas não significou

uma melhor redistribuição do dinheiro. Pelo contrário, um número pequeno de escrituras

continuou a concentrar uma grande quantidade maior dinheiro.

Talvez a explicação para este panorama esteja na saída ao longo da segunda metade

do século XVIII das grandes instituições credoras, encarregadas de vultosos fundos

colocados a risco. Elas foram responsáveis como já mencionado anteriormente por

aproximadamente um terço do montante disponibilizado para empréstimos referentes a

25% das escrituras públicas no período de 1751-1800, sendo que essa participação caiu de

76,0% nos anos de 1750 para 2,4% na década de 1790. Neste momento, a opção de

investimento passou a se direcionar para um número menor de empréstimos a pessoas de

confiança, que oferecessem menos riscos na hora de quitar seus débitos. Parece ser uma

estratégia para garantir com mais segurança o retorno do montante. Por seu turno, esses

dados acarretaram numa maior atuação dos credores físicos. São eles que passam a atuar

na pulverização do crédito em substituição ao papel até então exercido pelas instituições.

Isso indica uma mudança pela qual estava passando o mercado baiano, como o crescimento

e fortalecimento dos homens de negócio e a tomada por parte desses da liquidez da

economia.

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321

Mas não só na Bahia essa concentração se fazia presente. Dados trabalhados por

Antônio Carlos Sampaio apontam perfil similar no sistema de crédito da praça do Rio de

Janeiro.320 Ao comparar a segunda metade do século XVII com a primeira do século

XVIII, o autor percebe que houve um aumento no grau de concentração. Se no primeiro

período os 10% maiores empréstimos significavam 35,3% do valor transacionado e os 50%

menores correspondiam a 21,8%, nas décadas posteriores, os montantes dos maiores

passou a ser de 44,4% e dos menores de 13,7%.321 Sampaio aponta a saída do sistema no

século XVIII do principal credor do Seiscentos, o Juízo de Órfãos, que atuava como um

dispersor dos valores de pequeno e médio porte, o que é bem diferente do que acontece na

Bahia, onde as instituições fazem os maiores empréstimos. Conjugado a este dado ocorreu

o incremento da participação de agentes vinculados aos negócios mercantis. Nos

Setecentos, a elite comercial passou a ser responsável não só pela concentração dos valores

totais dos empréstimos como também por aqueles de maior monta.322 Isso demonstra a

capacidade dessa nova elite de mobilizar e disponibilizar grande somas de numerários.

O que buscamos apontar nesse capítulo é a representatividade dos padrões do

sistema de crédito na sociedade baiana colonial. A partir da análise das escrituras públicas

de empréstimos, verificamos o papel fundamental das instituições coloniais como credoras

ao longo do século XVIII, principalmente até a década de 1760, com destaque particular

para a Santa Casa de Misericórdia, responsável pelos empréstimos de vultosas quantias. Ao

que parece, a dependência frente a essas instituições se por um lado demonstra uma

fragilidade do capital mercantil local, ainda não sendo capaz de controlar o mercado de

320 SAMPAIO, op. cit., 2003, p. 204. 321 Idem, p. 205. 322 Segundo Sampaio, dos 38 maiores empréstimos da primeira metade dos Setecentos, 20 (52,6%) tinham como credores homens de negócios, responsáveis por 60,5% do valor toal. Cf. SAMPAIO, op. cit., 2003, p. 205.

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322

crédito e, por conseguinte, a sua liquidez, por outro demonstra autonomia desta economia

em relação aos grupos mercantis metropolitanos.

De todo modo, mudanças significativas ocorreram na segunda metade dos Setecentos.

Percebemos a queda na participação das instituições e o incremento da atuação de agentes

físicos, fundamentalmente os ligados às atividades comerciais. Logo, os homens de

negócios envolvidos com comércio de longa distância passaram a controlar o sistema

creditício de Salvador, isso porque esses agentes sociais, ao terem o controle da liquidez da

economia, puderam disponibilizar para toda a sociedade capital em forma de crédito. O

mecanismo de empréstimos de numerários ou mercadorias foi fundamental para a

manutenção de diversos empreendimentos rurais, carentes em sua maioria de capital de

giro, indispensável para a boa consecução dos negócios.

Nesse sentido, os senhores de engenhos aparecem como o grupo principal quando

analisamos os devedores nas escrituras públicas e inventários post-mortem. Assim, laços

estreitos foram firmados entre agentes mercantis e proprietários rurais, uma vez que os

primeiros tornaram-se os principais fornecedores de crédito para os segundos. Com isso

não é errôneo afirmar que boa parte dos capitais envolvidos na produção açucareira

pertencia aos comerciantes. Não seria possível o bom desenvolvimento da atividade da

produção do açúcar sem os créditos oferecidos pelos comerciantes para o estabelecimento

e manutenção dos engenhos, o fornecimento de instalações para o embarque das

mercadorias, bem como a organização do comércio.

Observamos também que para além do papel de tomadores de empréstimos, os senhores de

engenhos aparecem nas fontes documentais como eventuais credores, principalmente

direcionado aos plantadores de cana. Isso fazia parte da estratégia de terem esses pequenos

proprietários rurais subordinados a sua pessoa, mantendo assim a hierarquia rural sem

alterações, onde os senhores de engenho se manteriam no topo.

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323

Portanto, o crédito desempenhava diferentes papéis numa sociedade de Antigo Regime.

Sua principal função, sem dúvida, era gerar capital para por em funcionamento atividades

econômicas, vinculada, desta forma, a escassez de moedas existentes em sociedades pré-

industriais. Mas não podemos deixar de salientar que o acesso ao crédito estava interligado

à questão referente ao prestígio social.

Muitas das dívidas passivas adquiridas pelos indivíduos visavam atender a uma

necessidade relacionada ao modo de vida luxuosa. Numa sociedade com características e

valores fidalgos, os gastos suntuosos se faziam necessários. Desta maneira, era

imprescindível ter acesso ao crédito, para se poder atender as exigências de gastos que

marcassem a posição prestigiosa do indivíduo. Daí a grande difusão do crédito pela

sociedade colonial, averiguada não só nas escrituras públicas como também nos

inventários em todas as faixas de fortuna, sendo as dívidas mais vultosas encontradas entre

as maiores fortunas. Ter crédito e contrair grandes dívidas numa sociedade de Antigo

Regime, como a de Salvador da segunda metade do século XVIII, era uma clara

demonstração de riqueza e prestígio social.

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324

CAPÍTULO IV

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325

Formas de aquisição e transmissão de bens e riquezas

O caminho que estamos trilhando ao longo desse trabalho está calcado na análise

do mercado de compra e venda, bem como do sistema creditício da cidade de Salvador.

Obviamente, essa opção se deve em grande medida ao tipo de material utilizado na

pesquisa de caráter notarial, baseada nas escrituras públicas entre os anos de 1751-1800.

Contudo, como nos alerta Antônio Carlos Sampaio, numa economia de

características pré-capitalistas o mercado está longe de possuir todas as explicações. Como

já observado anteriormente, nas transações de mercado perpassam relações sociais tais

como parentesco, alianças, compadrios, etc. que envolvem muitas vezes compradores e

vendedores; credores e devedores. Desta maneira, muitos dos bens obtidos nessas

sociedades se davam fora do mercado.323

O objetivo, portanto, deste capítulo é apontar e analisar as formas mercantis e não-

mercantis de acumulação e reprodução social, destacando a importância de tais práticas no

estudo da sociedade de Salvador ao longo da segunda metade dos Setecentos. O foco se

dará na análise da transformação desses mecanismos de acumulação.

Como ponto de partida, analisaremos as diversas maneiras de aquisição dos bens

rurais na segunda metade do século XVIII, que estavam sendo disponibilizados no

mercado de compra e venda. Posteriormente faremos o mesmo tipo de análise dos bens

urbanos e comerciais. O objetivo é aferir o peso relativo do mercado e de outras formas de

aquisição desses bens. Para tanto, utilizaremos as escrituras públicas notariasi dos dois

cartórios de Salvador.

323 SAMPAIO, Antônio C. J. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 273.

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326

A opção por esse corpo documental se dá pelo fato de ser apenas a partir desse tipo

de documentação que conseguiremos obter informações sobre a forma de aquisição de uma

quantidade significativa de bens, embora pareça contraditório utilizarmos justamente uma

documentação típica de mercado. Desta maneira, torna-se possível a partir do

levantamento dos dados nas escrituras de compra e venda fazer uma análise sobre os

mecanismos não-mercantis de acumulação, uma vez que poderemos absorver de que modo

os vendedores haviam adquirido seus bens transacionados.

Um outro questionamento passível de ser feito alude ao fato da amostra trabalhada

neste capítulo referir-se apenas ao universo de propriedades urbanas, rurais e comerciais

que estiveram no mercado no período analisado, não sendo, portanto, a totalidade daquelas

existentes em Salvador em cada momento. Contudo, devido ao caráter das informações

presentes nas escrituras, bem como a inexistência de melhor material documental que

pudesse nos fornecer uma representatividade mais precisa do conjunto de propriedades,

optamos por explorar esses dados. De todo modo, não negamos a distorção que pode haver

em tais números agregados. Mas acreditamos poder dirimi-la através da análise num

período de cinqüenta anos.

Aquisição de bens rurais

Começamos a examinar os dados referentes à aquisição de bens rurais. Para tanto,

elaboramos o quadro 4.1. O período de 1750 a 1800 foi dividido em décadas, pois

acreditamos ser melhor para visualizar e analisar tais dados.

Encontramos nas escrituras quatro modalidades de aquisição das propriedades, a saber:

compra, herança, dote e doação. A primeira informação que nos salta aos olhos é a

participação das aquisições por compra no decorrer dos anos. Esse era o principal

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327

mecanismo durante o período colonial de se conseguir um bem mediante mercado. Se nas

primeiras duas décadas da nossa série (1751-60, 1761-70) esse tipo de aquisição não

representava a principal forma de acesso às propriedades rurais (37,5% e 46,3%

respectivamente), tal quadro foi se alterando, tornando- majoritária ao longo dos decênios

seguintes.

Quadro 4.1 – Formas de aquisição dos bens rurais vendidos em Salvador, 1751-1800

Formas

de

aquisição

Arrematação/compra Herança Dote Doação Total

Anos N % N % N % N % N %

1751-60 27 37,5 36 50,0 3 4,2 6 8,3 72 100

1761-70 23 42,6 28 51,8 1 1,8 2 3,7 54 100

1771-80 56 54,4 51 49,5 2 1,9 4 3,9 103 100

1781-90 77 51,3 67 44,7 1 0,7 5 3,3 150 100

1791-

1800

106 51,2 92 44,4 1 0,5 7 3,4 207 100

Fonte: Anexo 3

Esta mudança no perfil das aquisições dos bens rurais pode estar atrelada às

transformações pelas quais vinha passando a cidade de Salvador ao longo da segunda

metade do século XVIII, com uma maior monetarização da economia e o aumento da

participação de agentes mercantis nos negócios da cidade, como observamos no mercado

de compra e venda e no sistema creditício. Desta forma, a transferência de bens rurais

mediante o mercado cresceu em importância.

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328

Já a participação da herança no acesso às propriedades rurais apresentou ligeira

queda ao longo do tempo. Nos primeiros três decênios sua participação oscilou em torno

de 50%. Já nas duas últimas décadas sua representatividade atingiu a média de 44%.

Contudo, na década de 1760, a transmissão de bens do setor agrário através do legado

familiar atingiu sua maior marca, 51,8. Cabe aqui uma análise, pois foi justamente nesse

período que a cidade de Salvador conheceu sua pior situação econômica, marcada pelo

menor nível do comércio de escravos de africanos, atividade de suma importância para

fazer girar a economia da capital baiana. Não à toa, os níveis de compra e venda, como

também de crédito se mostraram extremamente retraídos nesses anos. Tais fatos refletiram-

se nos preços de venda dos bens negociados no período. Atrelado a isso, Salvador deixou

de ser o centro político da colônia, acarretando um esvaziamento econômico e

populacional nos anos seguintes. Não é de se estranhar, portanto, que num momento de

fragilidade econômica, o acesso às propriedades rurais tenha se dado majoritariamente pelo

legado familiar, seja pela falta de interesse em vender um bem a preços baixos, seja pela

falta de moedas circulando na economia. Cabe ainda ressaltar que foi este o último período

no qual a participação das aquisições conseguidas mediante herança aparecem como forma

principal de obtenção dos bens. Após a década de 1760, essa forma de transmissão de

propriedade tornou-se secundária na cidade de Salvador sem, no entanto, ver diminuída sua

participação de imediato.

Em estudo realizado para a cidade do Rio de Janeiro, englobando o período de

1650-1750, Antônio Carlos Sampaio percebeu que a participação das heranças era

inversamente proporcional à participação das aquisições mediante arrematação/compra. A

partir da década de 1730, o peso das propriedades herdadas em relação ao total tendeu a

cair, mas segundo o autor, não dá para afirmar se essa era uma transformação definitiva ou

apenas uma situação conjuntural, uma vez que ele encerrou sua análise na década de 1750.

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329

Ao longo dos cem anos examinados pelo autor, as aquisições por herança representaram

cerca de um terço do total das propriedades rurais colocadas à venda.324

Em áreas de recente ocupação era de se esperar que poucas ou nenhuma aquisição

de terras ocorresse via herança. Foi o que observou Helen Osório em estudo sobre a

capitania do Rio Grande de São Pedro. No ano de 1784, 18,2% do acesso a terra se deu

pelas formas interpessoais e não-monetarizadas, geralmente de caráter parental. Entre esse

mecanismo, destaca-se a herança, que representou apenas 5% dos casos. Mas de todo

modo, como bem nos chama atenção a autora, tratava-se de uma novidade na maneira de

se obter a terra nessa região.325

Para o Rio de Janeiro, Antônio Carlos Sampaio encontrou algumas aquisições por

meio de sesmarias, fato não observado nas escrituras de Salvador.326 A obtenção de uma

propriedade mediante o sistema de sesmarias era bastante comum no início da colonização

ou ocupação inicial de novas regiões, o que definitivamente não se aplica ao caso de

Salvador e seu entorno, visto que a ocupação dessa região tinha se dado praticamente

duzentos anos antes do inicio de nossa análise. Desta maneira, no findar do processo de

ocupação territorial, findava-se também a concessão de sesmarias. Além disso, muitas

dessas novas posses eram colocadas à venda logo após sua obtenção, reduzindo, assim, sua

importância no sistema agrário. Com isso, foi possível criar um mercado de terras como

também outras formas de acesso a esses bens.

A ocupação de novos solos se dava de forma geral através da distribuição de

sesmarias. É possível observar pelos dados do Rio de Janeiro um crescimento desse tipo de

aquisição se compararmos a segunda metade do século XVII com a primeira do século

XVIII. A explicação para tal aumento está na ocupação de novas terras, principalmente

324 Ibidem, p. 277. 325 OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América – estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: ed. UFRGS, 2007, p. 91. 326 SAMPAIO, op. cit., p. 279.

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330

próximas ao Caminho Novo, segundo afirma Sampaio.327 De acordo a este mesmo autor, a

pouca expressividade ou nenhuma participação das sesmarias no acesso às propriedades

está atrelada também ao fato de que boa parte das concessões de sesmarias a partir do

século XVII no Rio de Janeiro destinaram-se às ordens religiosas, que optavam por possuir

imensas propriedades de onde podiam retirar seu sustento. Desta forma, eram raras as

propriedades desse tipo que retornavam ao mercado.328

Vale também ressaltar que as sesmarias funcionavam como mecanismos para a

formação patrimonial. Por isso, muitas delas eram legadas aos herdeiros da família do

sesmeiro original, tornando-se quase impossível a sua detecção nas escrituras públicas. De

todo modo, acreditamos serem inexistentes ou quase, a aquisição por meio de sesmarias de

propriedades rurais em Salvador após 1750 , dado o caráter consolidado de ocupação

territorial da região.

Nos dados relativos à capitania do Rio Grande dos Setecentos trabalhados por

Helen Osório, observamos a forma de aquisição primária de terras. Segundo a autora, as

propriedades conquistadas mediante sesmaria representavam 7,1% do total. Predominavam

as datas na região correspondendo a cerca de 29%. Uma outra modalidade bastante comum

foi o “despacho do governador”, representando aproximadamente 22% das apropriações

primárias de terra. Esse era um tipo de despacho estatal que concedia terra. Dependendo do

tamanho da mesma era necessário requerer junto ao vice-rei a carta de sesmaria. Se

somarmos esse volume aos referentes às datas e as sesmarias, veremos que esses tipos de

mecanismos não-mercantis englobavam 59% do total na forma de obtenção inicial da terra,

enquanto àquelas obtidas por arrematação, compra ou arrendamento eram inexpressivas,

tendo aparecido apenas um caso (0,1%).329

327 Ibidem, p. 280. 328 Idem. 329 OSÓRIO, op. cit., pp. 88-9.

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331

Ao analisar a posse no ano de 1784, Helen Osório percebeu uma mudança

substancial nas aquisições de terras comparadas ao período inicial. As terras apropriadas de

forma legal sancionadas por representantes do Estado (sesmaria, data e despacho)

passaram a representar um terço do total, enquanto cresceu em importância o peso das

compras e arrematações, que significavam 34,8%. Poderia parecer um paradoxo esses

dados por imaginarmos que o Rio Grande ainda era uma região de fronteira aberta em fins

do século XVIII. Mas é a própria autora que soluciona a questão, uma vez que,

(...) a fronteira agrícola não é uma situação dada, não é uma característica inerente

a qualquer território, mas produto da ação humana. A fronteira abre após a

conquista, após a eliminação do risco, do inimigo ou da transposição de barreiras

físicas, geográficas. (...) A localização da fronteira ou os limites de sua expansão

também são dados pelas qualidades do solo e meios de transporte. Logo, a

delimitação da fronteira também ocorre em função do que se pode, ou se quer,

cultivar ou criar e comercializar.330

Nesse sentido, quando a fronteira está fechada, com as terras monopolizadas, aos

pretendentes à posse da terra resta apenas se submeter a gastos monetários para comprarem

ou ocuparem, sob a forma de arrendamento, algum terreno pretendido.

Helen Osório também observou o caráter especulativo de muitas aquisições de terra

sancionadas pelo Estado, como sesmarias e despachos. Muitas propriedades eram vendidas

no mercado logo após sua obtenção. Segundo dados levantados pela autora, dos quarenta e

nove despachos concedidos entre 1780 e 1781, vinte e três já tinham sido vendidos em

1784.331 Fato este já observado por Francisco Carlos Teixeira da Silva para o Rio de

Janeiro e Bahia. De acordo a esse autor, algumas propriedades recebidas em sesmarias

eram vendidas logo após a sua concessão sem nunca antes terem sido cultivadas. Para

330 Ibidem, p. 92. 331 Ibidem, p. 96.

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332

Teixeira da Silva, esse era um ingrediente mercantil, especulativo, típico de sociedades de

Antigo Regime.332

Uma outra ausência percebida em nossos dados é a da posse como forma de

obtenção de propriedades. Tal fato foi verificado também por Antônio Carlos Sampaio em

seu estudo sobre o Rio de Janeiro. O autor encontrou apenas uma referência de aquisição

mediante posse para todo o período de 1650-1750. A situação se inverte completamente

quando observamos dados para o século XIX, momento no qual a posse era a forma mais

comum no acesso e expansão de propriedades, principalmente, se considerarmos o período

entre 1822 – quando ocorre o fim do sistema de sesmarias - e a assinatura da Lei de Terras,

em 1850.333

Dados referentes a áreas do Rio Grande apontam que apenas 12,5% da totalidade

das aquisições das propriedades rurais num primeiro momento tinham ocorrido por meio

da posse, segundo nos aponta Helen Osório. Contudo, a essas posses declaradas a autora

agregou os casos não informados, que significavam a não apresentação de qualquer

documento comprobatório da propriedade da terra. Assim, do conjunto das terras, 41% do

total não possuíam título algum ou sanção legal. Esse percentual no ano de 1784, atingiu o

patamar de 15%, o que caracteriza um grande declínio desse tipo de mecanismo para

aquisição de bens rurais.334

Já regiões de Minas Gerais do século XVIII apresentam um perfil diferenciado

tanto do observado em Salvador, quanto no Rio de Janeiro e na capitania do Rio Grande.

Conforme aponta Angelo Carrara, ao longo do Setecentos a forma mais usual de aquisição

de propriedade rural era a posse. A explicação de tal fato reside, segundo o autor, na

332 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História, UFF, Niterói, 1990, p. 33. 333 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, capítulo 4. 334 OSÓRIO, op. cit., pp. 91-3.

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333

constante necessidade do sistema agrário mineiro de se expandir ocupando novas áreas,

para atender uma demanda contínua por terras, demanda esta de pessoas que vinham de

outras regiões da América portuguesa buscando um chão para trabalhar.335

Curiosamente, nas escrituras públicas para o termo de Vila do Carmo na comarca

de Vila Rica, em Minas Gerais no período de 1711 a 1756, em nenhuma transação

envolvendo propriedades rurais foi encontrada aquisição mediante posse. Como podemos

observar no quadro 4.2 a forma mais usual de aquisição de bens rurais era a arrematação

ou compra, representando 83,7% da totalidade das propriedades postas à venda.336 O que

pode explicar a diferença nos números encontrados nas escrituras de Vila do Carmo com

os dados apontados por Carrara é o tipo diferenciado de documentação analisada. Carrara

não trabalhou com livros de notas, onde se torna quase impossível menção a aquisição de

posse, uma vez que não era uma prática legalizada e de difícil comprovação devido à

ausência de documentação que confirmasse a titulação da terra. Muitas vezes ocorria de o

proprietário requerer sesmaria para legalizar uma terra conquistada mediante posse, para

que assim pudesse por seu bem à venda. Além disso, na primeira metade do século XVIII,

as quatro comarcas que constituíam a capitania de Minas Gerais possuíam muitas

diferenças entre si, o que dificulta o estabelecimento de um padrão único para toda a

região.

Quadro 4.2 - Formas de aquisição dos bens rurais vendidos no termo de Vila do Carmo,

capitania de Minas Gerais, 1711-1756337

335 CARRARA, Ângelo. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese (doutorado) – curso Pós-Graduação em História, UFRJ, Rio de Janeiro, 1997, pp. 138-41. 336 Os dados apresentados no quadro 4.2 referem-se apenas as escrituras em que foi possível encontrar informação sobre a forma que o bem foi adquirido, não contemplando, portanto, o conjunto total das escrituras de bens rurais dos livros de notas. 337 Agradeço a generosidade de Carlos Kelmer Mathias por ter me cedido as informações para a elaboração deste quadro.

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334

Formas de

aquisição

Arremataçã

o/ compra

Herança Dote Doação Sesmaria “Haver

fabricado”

Outros Total

N % N % N % N % N % N % N % N %

1711-56 420 83,7 1 0,2 4 0,8 3 0,6 17 3,4 54 10,7 3 0,6 502 100

Fonte: ACSM, LN. 01-80

De todo modo, em nossa amostra, é possível que o silêncio das fontes em relação

ao sistema de posse esteja atrelado não só ao fato da região de Salvador localizar-se numa

área de fronteira quase fechada, mas também ao costume de no Brasil colonial serem feitas

diversas transações de compra e venda via escrituras particulares, mesmo relacionadas a

valores superiores aos permitidos nas Ordenações Filipinas, como nos alerta Antônio

Carlos Sampaio.338 Desta forma, é possível que tenha nos escapado aquisições de terras

acessadas mediante posse.

Essas propriedades deveriam ser transacionadas em escrituras particulares devido à

ausência de um título legal que afiançasse o pertencimento da terra. Da mesma maneira,

não é impossível que muitas das transações de terras existente nas escrituras no qual não

encontramos informação sobre sua aquisição tenha se dado mediante sistema de posse. Isso

era fruto da inexistência de qualquer titulação referendando o domínio da propriedade.

Também por isso, ressaltamos que os dados por nós trabalhados apenas apontam uma

imagem parcial do mercado de bens rurais.

Os dotes e as doações têm importância relativa entre a aquisição dos bens rurais na

cidade de Salvador. De todo modo, apesar de pequena a participação desses dois itens, eles

aparecem ao longo de todo o período de análise, o que caracteriza tais práticas como

estratégias na transmissão e acumulação de bens da sociedade.

338 SAMPAIO, op. cit., p. 278.

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335

O dote procurava garantir ao novo casal meios necessários para o início de uma

nova etapa de vida. Muitas vezes o dote englobava em seu valor parte da herança a ser

recebida para quem era dotado. Encontramos um exemplo desse tipo de dote no ano de

1769. Maria Isabel Pereira recebeu de sua mãe, Bernardina de Jesus Maria José, viúva de

Antônio José Pereira, um dote que incluía terras com cabeças de bois e três escravos, além

de um enxoval, que, segundo a documentação, somados o valor de cada item

corresponderia à parte que cabia à nubente da herança de seu pai.339

Essa aproximação entre o dote e a herança também foi percebida por Sampaio em

sua análise sobre a sociedade fluminense. Segundo o mesmo autor, o dote nem sempre

representava a antecipação do pagamento da herança, mas podia confundir-se em parte

com o pagamento da própria.340

A participação percentual do dote de bens rurais, como observamos no quadro 4.1,

tende a se reduzir com o passar dos anos no século XVIII. Se em meados do século XVIII,

correspondia a cerca de 4%, em finais do mesmo século passa a representar menos de 1%,

chegando mesmo em alguns anos a “desaparecer”. Cabe lembrar que bens urbanos também

eram oferecidos em dote, análise que faremos mais adiante, mas no caso de Salvador, eram

bem menos expressivos do que em relação aos bens rurais.

A análise do quadro 4.2, referente à região do termo de Vila do Carmo, em Minas

Gerais, demonstra também a pequena participação do dote como forma de aquisição das

propriedades colocada à venda na primeira metade do século XVIII. Como em Salvador, o

dote na região mineira de Vila do Carmo possuía uma diminuta importância entre as

diversas possibilidades para aqueles que buscavam adquirir uma propriedade rural. Uma

explicação para essa pequena participação da prática do dote nas escrituras de compra e

venda é que por estar destinado à formação de patrimônio, o dote acabasse por ser herdado 339 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 107, p. 145v. 340 SAMPAIO, op. cit., p. 282.

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336

pelos filhos dos dotados, não aparecendo, portanto, no mercado de compra e venda. Assim,

a maior parte das propriedades rurais conquistadas mediante dote estaria fora do mercado.

Porém, não acreditamos ser essa a razão para a diminuta presença de dotes na

documentação. Devemos levar em consideração também que na segunda metade do século

XVIII, período no qual focamos nossa análise, os dotes mais do que servir como meio para

acumulação de patrimônio, tinham a função de fornecer aos recém casados uma

oportunidade para iniciar uma nova unidade familiar, preparada para os percalços que por

ventura poderiam aparecer. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da atividade mercantil

pela qual vinha passando a cidade de Salvador, mostrava-se oportuna para a ascensão

social, não sendo forçoso a obrigatoriedade de se dotar filhas com grande quantidade de

bens, principalmente, aqueles de caráter produtivo. Além disso, seria natural por estarmos

trabalhando com cartórios situadas numa área urbana, que o número de dotes envolvendo

bens rurais fosse pequeno. Contudo, o peso de dotes envolvendo bens urbanos é menor do

que os rurais como já apontamos anteriormente.

Dados levantados por Sampaio para o Rio de Janeiro entre 1650-1750 mostram

uma participação mais robusta da prática do dote presente nas escrituras de compra e venda

de bens rurais se comparada aos dados de Salvador e Vila do Carmo. De todo modo, em

sua análise o dote aparece apenas como a terceira forma mais comum de se obter um bem

rural, estando atrás da arrematação/compra e da herança. Esse tipo de transmissão de

propriedade alcançou apenas nos anos de 1661-1690 o nível de 10%.341 Como aponta

Sampaio, o dote não era um elemento fundamental na estratégia de acumulação,

desempenhando um papel menor principalmente frente a outras formas de aquisição, como

por exemplo, a partilha de herança.342

341 Ibidem, p. 281. 342 Ibidem, p. 282.

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337

É importante ressaltar que o dote possuía importância que variava de acordo com a

região e época considerados. Nesse aspecto há que se destacar o estudo de Muriel Nazzari,

que analisou a prática do dote em São Paulo de 1600 a 1900 e suas transformações sofridas

ao longo do tempo. Segundo a autora, no início do século XVII, nenhuma filha de

proprietários ia para o casamento sem uma contribuição em bens para o sustento do novo

casal. Quase todas as nubentes recebiam um dote. Aquelas que se casavam sem dote

provavelmente já eram órfãs de algum dos genitores, portanto levavam consigo sua

herança. Já em meados do século XVIII, 9% das famílias que possuíam propriedade

deixavam que suas filhas se casassem sem um dote e sem herança. Eram geralmente

descendentes de pequenos proprietários. Um século depois, aproximadamente três quarto

das noivas iam para o casamento de mãos abanando, sem nenhuma contribuição para o

sustento inicial de sua nova família. Esse declínio, de acordo como Muriel Nazzari se deu

em todos os estratos sociais, pois metade das famílias mais ricas deixou que suas filhas se

casassem sem dote. Mesmo as famílias que concediam dotes, não o faziam para todas as

filhas.343 Tais dados caracterizam a queda da importância do dote na sociedade colonial

localizada no meio rural. É de se imaginar que essa perda de importância do dote tenha

ocorrido de forma mais acentuada nos meios urbanos, como a cidade de Salvador ou

mesmo nas áreas de exploração auríferas de Minas Gerais.

Na região do Rio Grande, Helen Osório encontrou um pequeno percentual de dotes

nas formas de aquisição das propriedades listadas no ano de 1784, cerca de 3%, com

quarenta e oito casos levantados. Na sua maioria, os dotados eram criadores. Isso segundo

a autora, está ligado ao fato de que eles faziam parte dos grupos das famílias mais antigas

343 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, pp. 263-64.

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338

da região. Da mesma forma, foram os criadores que também mais utilizaram o sistema de

sesmarias e de outras formas interpessoais, como herança para ter acesso a terras.344

De forma geral, nos dotes rurais de Salvador encontramos terras e ferramentas,

além de objetos para a casa que entendemos se tratar do enxoval. Mas em todos os dotes

rurais há o item escravo. É o que observamos por exemplo no dote feito por João Ferreira

Lisboa e sua esposa, à sua filha Joana, no ano de 1755. Foram entregues à nubente 10

escravos, 10 braças de terras com ferramentas e cabeças de boi e enxoval.345 É importante

destacar que receber escravos no dote significava a possibilidade de lucrar duplamente,

pois além de servirem como mão-de-obra, podiam também ser vendidos gerando renda ao

novo casal em formação.

No caso fluminense, é grande a presença de escravos como um dos itens dos dotes

(incluindo rurais e urbanos). No período de 1650-1700, cerca de 60% dos dotes contavam

com escravos em sua composição. No século seguinte, essa participação dos cativos caiu

para perto de 40%.346 Na capitania de São Paulo, a presença de escravos nos dotes era

muito mais expressiva do que no Rio de Janeiro. Segundo dados apontados por Muriel

Nazzari, no século XVII, dos vinte dotes levantados em dezenove havia a presença de

cativos (95% dos casos). No Setecentos, esse percentual continuou alto, pois dos quarenta

e um dotes apurados em trinta e três havia escravos, representando uma taxa de 80%.347 O

grande peso da quantidade de cativos envolvidos nos dotes paulistas está atrelado ao perfil

rural da sociedade abordada onde o escravo era um item fundamental na reprodução e

acumulação de riqueza.

Outra forma de transferência não-mercantil de bens era a doação. No caso de

Salvador, as doações rurais eram muito mais significativas que os dotes. No primeiro

344 OSÓRIO, op. cit., pp. 93, 98-9. 345 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 96, p. 178. 346 SAMPAIO, op. cit., p. 287. 347 NAZZARRI, op. cit.,pp. 199.

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339

período de nossa amostragem (1751-60) esse tipo de aquisição representou 8,3% do total,

como podemos observar no quadro 4.1. No findar do século, houve até mesmo um

incremento do número de doações, embora seu peso relativo tenha declinado frente aos

demais tipos de aquisições.

De maneira geral, as doações eram livres de obrigação (quando não se estipulava

nenhuma cláusula para recebimento da benesse) ou com obrigatoriedades (quando existia

uma contrapartida para o recebimento do bem). Em nosso levantamento, encontramos

apenas informação sobre a doação da propriedade, sem no entanto haver menção se houve

alguma contrapartida ou não, como no caso de Manoel Álvares do Couto que doou para

seu filho sete braças de terras no ano de 1754.348

Doações como a feita por José Cardoso de Morais no ano de 1760 a sua sobrinha,

Ana Teresa de Morais de 10 braças de terras e dois escravos assemelham-se muito a um

dote.349 O que o difere é que esse tipo de benesse não estava atrelado a um contrato de

casamento específico. De todo modo, a doação deixa clara que o doador pretendia ajudar

no futuro dote de sua sobrinha.

Outra semelhança entre as doações e os dotes é a grande quantidade de genros

agraciados. No ano de 1762 temos a informação de que Pedro de Miranda vendia um sítio,

sendo que parte dele havia sido obtido anteriormente por doação de seus sogros.350

No caso do Rio de Janeiro, as doações possuíam um caráter familiar. Um quarto

das doações ocorria entre irmãos. Tais números redefiniam a distribuição da riqueza no

interior das famílias, bens esses que em sua maioria eram herdados ou por herdar.351

Segundo Antônio Carlos Sampaio, “o importante nessas escrituras é que além de

‘corrigir’o caráter igualitário do sistema de herança, concentrando os bens a serem

348 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 93, p. 185. 349 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 102, p. 236. 350 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 104, p. 200. 351 SAMPAIO, op. cit., p. 294.

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340

transmitidos num número menor de herdeiros, ele ainda estabelecia uma diferenciação

final entre os próprios beneficiados.”352 Não à toa, Sampaio anotou que os doadores em sua

maioria eram homens, geralmente solteiros e religiosos. Ao doar parte ou a totalidade de

seus bens herdados ou que haveria de herdar, o irmão doador evitava que houvesse uma

fragmentação do patrimônio da família e ao mesmo tempo garantia que os bens ficassem

com aqueles que teriam condição de reproduzi-la. Essa era uma estratégia comumente

usada para diminuir o número de herdeiros e evitar a dispersão do patrimônio da família.

Do mesmo modo, deve ser entendida a doação de tios para sobrinhos, que visava a

manutenção em família dos bens conquistados ao longo do tempo.353

No caso de Salvador, encontramos uma variedade maior no perfil do doador, mas

também casos como o padronizado no Rio de Janeiro. Temos o caso de José Miguel do

Espírito Santo, religioso que doou a seu irmão Pedro Luís uma fazenda com bois e

escravos, em 1750 e que o mesmo Pedro colocou à venda no ano de 1759.354 Situação

parecida a de Luís de Souza Lima que recebeu de seu irmão, o religioso Antônio de Souza

Lima, oito braças de terra no ano de 1753.355 Desta forma, nos parece nítida a opção por

manter nas mãos de alguns indivíduos o patrimônio da família, evitando que o mesmo se

fragmentasse. Contudo, os poucos casos capturados nas escrituras, mostram que pelo

menos para essas famílias, essa estratégia fracassou, pois foram bens que se encontravam

posteriormente disponibilizados no mercado.

Aquisição de bens urbanos

Passemos agora para a análise da forma de aquisição dos bens urbanos na cidade de

Salvador. Para tanto, montamos o quadro 4.3. Numa primeira comparação com as

aquisições das propriedades rurais, notamos um peso muito mais significativo da compra

352 Ibidem, p. 295. 353 Ibidem, pp. 295-6. 354 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 103, p. 145v. 355 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 93, p. 19.

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341

como mecanismo de acesso aos bens. Essa participação majoritária do mercado nas

aquisições urbanas foi observada ao longo do nosso período de estudo, fruto de um

processo pelo qual a cidade vinha passando desde meados do século XVIII: o aumento da

mercantilização da economia. Contudo, nas duas primeiras décadas de nossa análise, o

acesso aos bens urbanos se deu de forma semelhante à aquisição de bens rurais, uma

participação majoritária do legado familiar gente a arrematação/compra.

Quadro 4.3 – formas de aquisição dos bens urbanos vendidos em Salvador, 1751-1800

Formas

de

aquisição

Arrematação/compra Herança Dote Doação Total

N % N % N % N % N %

1751-60 41 41,4 51 51,5 1 1,0 6 6,1 99 100

1761-70 45 46,4 50 51,5 1 1,0 1 1,0 97 100

1771-80 85 54,1 68 43,3 1 0,6 3 1,9 157 100

1781-90 76 53,1 66 46,1 1 0,7 143 100

1791-

1800

133 59,6 86 38,6 4 1,8 223 100

Fonte: Anexo 4.

Notamos ao analisar o quadro 4.3 que as aquisições mediante compra foram se

tornando majoritárias nas três últimas décadas do século XVIII. Tal fato encontraria

explicação em uma maior participação do mercado na vida social da população de

Salvador. Em contrapartida, o peso percentual das heranças como forma de se ter acesso às

propriedades urbanas caíram na medida em que aumentava a atuação de aquisição via

mercado. O último decênio é bastante ilustrativo nessa mudança que ocorreu no cenário

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342

soteropolitano. Cerca de 60% de todos os bens adquiridos foram feitos mediante transações

comerciais.

Nesse sentido, a dinâmica de obtenção de bens urbanos se processou de forma

ligeiramente diferente daquela observada para o meio rural. Sua mudança se deu de

maneira mais rápida e intensa. Curiosamente, nas duas amostragens o percentual da

atuação do mercado como meio de se ter acesso aos bens no período inicial (1751-60)

eram parecidos, representando cerca de 40% da totalidade. Esse percentual vai aumentar

em ambas as esferas. Na década de 1771-1780, observamos que a aquisição via mercado

era praticamente a mesma, girando em torno de 54%. A partir deste período as aquisições

via mercado intensificaram-se mais no meio urbano do que no rural. Na última década do

século XVIII, enquanto no meio urbano o acesso via mercado aos bens correspondia a

cerca de 60%, no meio rural essa cifra era de aproximadamente 51%. Isso demonstra que o

setor urbano conseguiu se recuperar de maneira mais rápida da crise enfrentada em anos

anteriores.

Essa transformação ocorrida nos últimos trinta anos do século XVIII pode ser

explicada pelo maior dinamismo da cidade de Salvador no que tange a um maior

desenvolvimento de suas relações comerciais. E aqui é preciso novamente ressaltar o papel

desempenhado pelo tráfico de escravos africanos, que foi revigorado a partir dos anos de

1770, com aberturas de novas rotas e portos no continente africano. Salvador nessa época

passou a receber um contingente de cativos nunca antes observado em período anterior.

Obviamente, isso irá gerar um maior dinamismo de sua economia com o aumento do fluxo

de capital na cidade.

Atrelado a isso, podemos sugerir que a aquisição desses bens urbanos via mercado

passa a ser parte da estratégia das famílias como forma de acumular capital. Notamos isso

pela diminuição percentual das formas não-mercantis de acesso a essas propriedades. O

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343

dote tem participação quase insignificante, não tendo sido encontrado registro algum dessa

modalidade após a década de 1770. Já as doações, embora ainda apareçam

esporadicamente ao longo do período estudado, viram seu peso representativo cair de

aproximadamente 6% dos primeiros dez anos da amostragem, para 2% no último decênio

do século XVIII.

Ao mesmo tempo em que percebemos uma maior participação dos bens urbanos

comprados, notamos uma queda na proporção dos herdados, marcando um caráter mais

volátil desse tipo de propriedade. Ao longo de sua existência, qualquer tipo de bem, fosse

rural, urbano ou comercial, seria legado para algum herdeiro. Nesse sentido, um

incremento na proporção de aquisição via mercado sobre as heranças caracteriza uma

circulação mais rápida desses bens, uma vez que ocorre uma menor dependência do ciclo

de vida do proprietário na transmissão das propriedades.

Uma outra característica na forma de aquisição dos bens urbanos é a

impossibilidade de haver posses ou sesmarias, uma vez que nesse período a urbe de

Salvador encontrava-se totalmente ocupada, com suas referentes titulações. De todo modo,

isso não marca uma distinção com as aquisições rurais de Salvador, pois como

mencionamos anteriormente, não encontramos nenhum registro de posse de bem alcançado

mediante sesmaria ou posse. A menção a ausências desse tipo de mecanismo de

transmissão nos serve para reafirmar o caráter mercantil das propriedades localizadas na

urbe soteropolitana.

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344

Quadro 4.4 - Formas de aquisição dos bens urbanos vendidos no termo de Vila do Carmo,

capitania de Minas Gerais, 1711-1756

Formas de

aquisição

Arrematação

/compra

Herança Dote Doação “Haver

fabricado”

Outros Total

N % N % N % N % N % N % N %

1711-56 299 83,5 4 1,1 1 0,3 3 0,8 50 14,0 1 0,2 358 100

Fonte: ACSM, LN. 01-80

Dados relativos ao termo de Vila do Carmo, em Minas Gerais na primeira metade

do século XVIII mostram o papel primordial do mecanismo de aquisição via mercado

como forma de se ter acesso às propriedades urbanas, como podemos observar no quadro

4.4. Aproximadamente 84% das aquisições se deram mediante arrematação/compra e

apenas 1% via herança. Não é de esse estranhar o peso considerável do mercado na forma

de aquisição dessas propriedades por se tratar de uma região bastante dinâmica, fruto

principalmente da principal atividade econômica da região, qual seja: a mineração.

Do mesmo modo, por se tratar de uma região de ocupação ainda recente no período

analisado, pouco mais de 50 anos, nos parece que o sistema de herança ainda estaria por

ser implementado na localidade. Curiosamente, não há registros de bens urbanos obtidos

por sesmarias ou posses. Diferentes de outras áreas de ocupação mais antiga, como Rio de

Janeiro e Salvador, onde esse tipo de aquisição encontrava-se virtualmente bloqueado pelo

simples fato de toda a territorialidades dessas urbes já se encontrarem ocupadas com suas

respectivas titulações. Mas no caso de regiões mineiras que ainda estavam sendo

desbravadas seria factível que encontrássemos esses tipos de aquisições não-mercantis.

Talvez o que possa explicar tal situação seja a natureza dos bens vendidos: casas, sobrados

e lojas. Não há registro de venda de terrenos, pois, como o bem vendido era o imóvel já

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345

construído, o vendedor declarava apenas que havia adquirido o referido bem, e não o

terreno.

Isso fica melhor explicitado se observarmos que o a segunda maior freqüência

urbana nas formas de aquisição era “haver fabricado”. Essa categoria significa que um

sujeito poderia ter adquirido o terreno por sesmaria, onde teria construído um imóvel com

seus escravos. Como a venda era do imóvel, e não do terreno onde fora erguido, o

vendedor declarava “haver fabricado” o dito bem. Desta forma, em meio urbano, tanto de

sociedades já consolidadas como as recém estabelecidas, não aparecem nas fontes notarias

os registros de sesmarias quando da transação de propriedades.

Na análise feita por Sampaio, para o Rio de Janeiro, encontramos bastantes

semelhanças com o que ocorria no cenário baiano. A primeira delas é o incremento que

verificamos ao longo do tempo na forma de aquisição de bens urbanos mediante o mercado

em comparação ao acesso de propriedades rurais, que tendeu a se manter estável. O

mercado tornou-se preponderante no acesso aos bens urbanos no século XVIII. Segundo

esse autor, essa transformação é reflexo do dinamismo urbano fruto da participação da

cidade do Rio de Janeiro nos eixos mercantis do Império português.356 Dinamismo esse

percebido em Salvador apenas nas últimas décadas do Setecentos.

Tal como em Salvador, o peso dos bens urbanos herdados diminui no Rio de

Janeiro. A representatividade dos legados era de um terço no século XVII. Cai para um

quarto na primeira metade do século seguinte. Tal fato marca mais cedo na sociedade

fluminense em comparação com a soteropolitana a maior volatilidade das propriedades

localizadas na urbe.357

A preponderância das aquisições via mercado no que tange aos bens urbanos no

Rio de Janeiro estava atrelado ao desenvolvimento do setor mercantil na sociedade 356 SAMPAIO, op. cit., p. 284. 357 Ibidem, pp. 274-5.

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346

fluminense, apontado por Sampaio, desde fins do século XVII. O espaço urbano fornecia

as melhores condições para que o capital mercantil se reproduzisse, através da aquisição ou

construção de propriedades voltadas ao comércio, como lojas, armazéns, trapiches, etc. Ao

fazer uso da estratégia de aquisição via mercado, os negociantes ampliavam o grau de

mercantilização da sociedade de maneira geral, aplicando ai seus recursos obtidos em seus

negócios imperiais. Com isso, o crescimento da urbe carioca estaria condicionado desde

então pelos movimentos e conjunturas do setor mercantil.358

Tal perspectiva também é observada na cidade de Salvador, principalmente quando

analisamos as aquisições de bens de caráter comercial e embarcações. Quase a totalidade

dos bens que conseguimos apurar a forma pela qual haviam sido adquiridos se deu via

mercado, através da arrematação ou compra, conforme podemos observar no quadro 4.5.

Esses dados reafirmam o caráter mercantil dessas propriedades, bem como mostra que com

o avançar do século XVIII, a cidade de Salvador foi se tornando cada vez mais dinâmica

no que tange a sua mercantilização. Prova disso, segundo abordado anteriormente, é o

aumento das transações envolvendo bens de natureza comercial, como lojas, trapiches e

embarcações verificadas principalmente a partir da década de 1770.

Quadro 4.5 – Formas de aquisição dos bens comerciais e embarcações vendidas em

Salvador, 1751-1800

Arrematação/compra Herança Doação Total

N % N % N % N %

1751-

1800

133 93,7 6 4,2 3 2,1 142 100

Fonte: Anexo 5

358 Ibidem, pp. 284-5.

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347

Os mecanismos de acesso não-mercantis a bens de caráter comercial praticamente

são irrelevantes dentro do conjunto total de aquisições. De todo modo, ainda encontramos

para todo o período seis legados e três doações. Todas as heranças foram deixadas por

comerciantes para seus filhos numa aposta de manter o negócio em mãos familiares, que

nesses casos, posteriormente se mostrou equivocada. Por encontrarmos poucos bens

comerciais sendo vendidos oriundos de herança, acreditamos que a estratégia de legar para

seus descendentes a boa consecução dos negócios familiares tenha surtido efeito, pois

senão, seria possível de se imaginar que um número maior de bens mercantis recebidos em

partilhas acabasse por retornar ao mercado para serem postos à venda, o que

definitivamente não aconteceu na cidade de Salvador.

Segundo Catherine Lugar, era comum que o principal membro de uma empresa

mercantil de caráter familiar sem filho deixasse seu legado para os seus sobrinhos,

tomando o cuidado para que a posse dos bens não caísse nas mãos dos cunhados. Temia-se

que os bens da família fossem apropriados por outros indivíduos que desvirtuassem os

negócios familiares. Assim, essa preocupação que estranhos pudessem se apropriar da

riqueza acabavam por tornar explícito a vontade do inventariado, como no caso do

comerciante Francisco Martins da Costa, que foi bem explícito ao excluir os seus cunhados

de qualquer parte relativas a administração do legado, garantindo diretamente a seus

sobrinhos o cuidado com o mesmo.359

De todo modo, encontramos seis exceções a essa estratégia, qual seja, a de

disponibilizar no mercado um bem que representasse um negócio familiar. Isso aconteceu,

por exemplo com José do Barbosa Leal que no ano de 1777 pôs à venda uma loja que

359 LUGAR, Catherine. The merchant community of Salvador, Bahia, 1780-1830. New York: State University of New York at Stony Brook, 1980, tese (doutorado), p. 231.

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348

havia herdado de seu pai. 360 Vários motivos poderiam ter motivado essa conduta de se

desfazer de um patrimônio comercial de família. Entre eles, a necessidade de gerar capital

devido a endividamentos ou para aplicar a renda obtida com a venda da propriedade em

outro negócio mais vantajoso. Outro motivo poderia ser a redivisão do bem adquirido na

partilha, como no caso dos irmãos Antônio da Costa Lima e João da Costa Lima que

venderam a loja herdada de seu pai Caetano Lima, no ano de 1783, no valor de 300$000,

para posterior divisão do rendimento.361

Havia também o motivo que estava atrelado à vocação, exemplificada na venda de

uma loja com sobrados por 800$000, que o padre Manoel Gonçalves de Moraes efetuou no

ano de 1787, propriedade que havia sido herdada de seu pai.362 É possível imaginar

simplesmente que se desfazer de um bem comercial poderia estar atrelado à falta de

interesse em se manter no ramo comercial.

Quanto às doações, são irrisórios os números disponíveis. Acreditamos que devido

ao seu caráter de ajuda inicial para a constituição de uma unidade produtiva, as doações

não fizessem sentido dentro do mundo urbano e conseqüentemente comercial. Embora

tenhamos encontrado um número maior de doações envolvendo casas e sobrados do que

bens comerciais, percebemos que não houve uma alteração na quantidade de bens doados

ao longo da segunda metade do século XVIII, mas sim um decréscimo da participação

relativa dessa modalidade de aquisição como verificamos no quadro 4.3. De todo modo,

dentro da perspectiva de doações que funcionavam como uma espécie de dote, sem haver

um contrato matrimonial em jogo ou como uma estratégia de evitar a fragmentação do

patrimônio da família é que vislumbramos as doações de bens na urbe de Salvador. Parece

ter sido esse o intento de José da Silva Cruz e sua esposa, que doaram para sua filha

360 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 118, p. 205. 361 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 124, p.127. 362 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 127, p. 22.

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349

Vitória Maria de Jesus e seu falecido marido, uma morada de casas de pedra e cal e que no

ano de 1791 era colocado á venda pela referida viúva.363

O que podemos verificar na análise da forma de aquisição de bens de caráter rural,

urbano e mercantil postos a venda é que houve uma modificação com o caminhar do

século XVIII. Se em meados do setecentos havia uma predominância nas formas não-

mercantis de acesso a essas propriedades, como os mecanismos de herança, dote e doações,

com o passar dos anos tal quadro foi se modificando. Tal fato estaria coadunando à própria

mudança pela qual passava a sociedade soteropolitana, com o incremento de sua atividade

mercantil, exemplificada na expansão do comércio de escravos africanos. Desta maneira,

as escolhas e estratégias passaram a se pautar cada vez mais pelas conjunturas do mercado.

Não à toa, o peso das aquisições que se davam mediante arrematação e compra

suplantaram a soma de todas as demais tanto no que se refere aos bens rurais como aos

bens urbanos, sem falar na quase totalidade dos bens comerciais e embarcações. Ao

caminhar para um novo século, a cidade de Salvador se mercantilizava rapidamente,

mesmo os bens de natureza rural estavam destinados a passar pelo mercado, tornando-se

junto com os bens da urbe em instrumento fundamental na acumulação de capital.

Dentro desse novo panorama, devemos relembrar K. Polanyi, para o qual a

economia em mercados pré-industriais está inserida no conjunto das relações sociais.364 No

entanto, o que os dados trabalhados nesse capítulo nos apontam é que o mercado passou a

desempenhar cada vez mais um papel fundamental na reprodução de hierarquias sociais

com o findar do século XVIII. Nesse sentido, os aspectos sócio-econômicos passam a ser

cada vez mais levados em consideração nas estratégias dos diversos grupos sociais.

363 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o.e 2o. ofícios de Salvador, livro 131, p. 62. 364 Sobre uma melhor análise de Polanyi, cf. Introdução.

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350

CAPÍTULO V

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351

Enobrecimento numa sociedade de Antigo Regime: traficantes de

escravos na Bahia, algumas trajetórias pessoais

Nos capítulos anteriores, vimos o aumento da atuação do grupo mercantil na cidade

de Salvador, ao longo da segunda metade do século XVIII, verificado, principalmente, na

maior participação desses agentes mercantis nas transações econômicas que pautavam o

dia-a-dia da cidade. Bem sucedidos em suas carreiras, os negociantes direcionavam sua

riqueza para a aquisição de bens rurais, urbanos e comercias, bem como passaram a

exercer uma posição fundamental no sistema de crédito.

Após terem suas carreiras consolidadas e refletindo na constituição de grandes

fortunas, muitos agentes mercantis buscavam o reconhecimento e o prestígio social. Numa

sociedade de Antigo Regime, determinados mecanismos estavam disponíveis para que eles

alcançassem tal intento. Assim, buscaremos mostrar, neste capítulo, como na colônia foi

possível a membros da elite comercial vencer o preconceito contra sua atividade,

conquistar respeitabilidade social e, em muitos casos, status de nobre. Para tanto,

apontaremos o perfil, as escolhas e estratégias365 utilizadas por esses indivíduos, seguindo

suas trajetórias de vida, principalmente, daqueles que atuavam no tráfico de escravos

baiano, uma vez que esta atividade era inerente a vida profissional dos grandes negociantes

de Salvador.

No âmbito da sociedade baiana colonial a atividade mercantil desempenhou um

papel-chave nas relações sociais. Quase todos os habitantes livres da cidade de Salvador se

365 Aqui tomo como base as considerações do antropólogo Fredrik Barth, para quem as ações individuais estavam assentadas em escolhas e cálculos. Os recursos que cada indivíduo possuía para tomar suas decisões estavam atrelados a sua cultura, a sua percepção de mundo. Obviamente não se trata de uma racionalidade ilimitada, na qual o indivíduo conhece todos os aspectos do mundo que o cerca. Cabe ressaltar também que os conhecimentos, as experiências e as orientações de cada sujeito variavam, do mesmo modo que eram diferenciados os resultados obtidos, muitas vezes não sendo àqueles esperados (Cf. BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000).

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352

dedicavam a alguma forma de comércio, fosse os de miudezas nas ruas da cidade; em

bancas de quitutes, de frutas e legumes; voltado para o mercado interno ou externo; de

lojas ou tabernas. Havia, assim, uma grande variedade entre os diversos tipos de

comerciantes, sendo que a principal distinção feita pelos contemporâneos era entre os

mercadores de loja e os grandes negociantes que, no século XVIII, passaram a ser

denominados “homens de negócio”. Os primeiros dedicavam-se ao comércio varejista,

feito em lojas na cidade de Salvador, e eram conhecidos como “mercadores de loja aberta”,

pois atuavam diretamente nas vendas dos produtos. Já os homens de negócio

invariavelmente estavam engajados no trato atlântico, aquele por atacado e de longa

distância, direcionado para o Reino, África e Ásia, interligando, desta forma, o porto de

Salvador com diversas partes do Império português.366

Muitos desses negociantes desempenhavam importante papel em outras atividades

mercantis como na redistribuição de mercadorias paras a diversas praças regionais da

América lusa, arrematação de contratos, empréstimos para os agricultores, pequenos

comerciantes e proprietários rurais. Alguns destes homens eram também possuidores de

loja de varejo, mas diferentemente dos mercadores de loja aberta, nomeavam assistentes,

geralmente sobrinhos, que desempenhavam a função de vendedor.

Preconceito sobre o comércio e os comerciantes

366 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, Vol. 1, 1969; FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Austin, The University of Texas, 1978, tese (doutorado), p. 218; MATTOSO, Kátia. “Bahia opulenta: uma capital portuguesa no Novo Mundo (1549 – 1763)”. In: MATTOSO, Kátia. Da revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador: Corrupio, 2004, p. 292.

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353

Diversos estudos historiográficos já abordaram a idéia de preconceito que recaía

sobre o comércio e o grupo mercantil no Império português. A maioria desses trabalhos

teve como base a obra de Charles Boxer, na qual é destacada a existência de um forte

preconceito contra os comerciantes na sociedade portuguesa. De acordo com Boxer, essa

visão negativa originou-se dentro de uma perspectiva de hierarquia cristã medieval que

situava o mercador num nível inferior aos das sete “artes mecânicas” (camponeses,

caçadores, soldados, marinheiros, médicos, tecelões e ferreiros). Desta maneira, os agentes

mercantis não se encontravam nem no topo do grupo de trabalhadores mecânicos.367

David Smith, em seu estudo sobre a classe mercantil de Portugal e Brasil do século

XVII, entende que, mesmo com poder econômico, os comerciantes portugueses

permaneciam sem direitos políticos e socialmente eram desprezados. Para atenuar esse

paradoxo entre poderio econômico e menosprezo social, a Coroa portuguesa agia

mantendo a separação entre cristão-novos e cristão-velhos, além de garantir a alguns

indivíduos o enobrecimento. Essa possibilidade de ascensão social era dada apenas àqueles

que fossem bem-sucedidos em sua carreira mercantil. Assim, segundo Smith, o Estado

português ao permitir promoção social de parte da elite mercantil, atuava no

enfraquecimento da coesão desse grupo social e subordinava seus membros mais

proeminentes a uma estrutura social tradicional.368

Dentro dessa perspectiva abordada por Smith, Carl Hanson, situou os comerciantes

num estágio intermediário da classificação social, entre “as classes privilegiadas” e o

“resto da população”. Apesar de apontar a existência de um preconceito generalizado

contra os mercadores na sociedade lusitana, ele percebe a possibilidade de enobrecimento

367 BOXER, Charles. O império marítimo português, 1415 – 1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 311. 368 SMITH, David G. The mercantile class of Portugal and Brazil in the Seventeenth Century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and bahia. 1620-1690. Austin: The University of Texas, tese (doutorado) - 1975, pp. 178-80.

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por parte daqueles mais diligentes e bem relacionados socialmente. Para Hanson, o

preconceito não impedia a ascensão social individual, mas, sim, do conjunto do grupo

mercantil.369

Para Joaquim Romero Magalhães, o mercador não estava num estágio

intermediário como apontado por Hanson, mas, sim, num estágio transitório entre

“mecânico” e fidalgo. Magalhães não se refere a todo o grupo mercantil, mas apenas

aqueles que se destacavam em sua atividade, que tinham possibilidade de adquirir bens

simbólicos e pudessem desempenhar um comportamento que remetessem a um estilo de

vida nobre.370

Antônio Carlos Jucá de Sampaio critica essa visão hegemônica de uma elite

mercantil subordinada tanto política quanto socialmente, atrelado a um forte preconceito

existente na sociedade portuguesa. Segundo Sampaio, o problema não está na existência ou

não da visão negativa sobre os mercadores, mas no caráter geral desse preconceito e no seu

vínculo com a subordinação do grupo mercantil no interior da sociedade lusa. A explicação

para tais opiniões residiria na idéia de travamento pelo qual passou o grupo mercantil,

impedido, assim, de seguir seu caminho natural, de se constituir em classe, tornando-se

uma alternativa viável ao poder da nobreza.371 Ainda nas palavras de Sampaio, “essa visão

[hegemônica na historiografia] traz em si uma concepção clara, marcada por uma forte

tautologia, de qual seria o papel dessa ‘burguesia’: destruir o Antigo Regime e fazer a

Revolução Industrial.”372

Em discordância a essa visão tautológica, Jorge Pedreira, em seu estudo sobre os

homens de negócio na cidade de Lisboa, entre 1755-1822, percebeu que os bem-sucedidos

369 HANSON, Carl. Apud SAMPAIO, op. cit., 2006, p. 78. 370 MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A sociedade”. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997, v.3, p. 409. 371 SAMPAIO, op. cit., 2006, pp. 79-81. 372 Ibidem, pp. 81-2.

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eram aqueles que tinham a possibilidade concreta de se enobrecer, de ver diminuída a

distância que os separava da nobreza titulada. Para este autor, o fato de se tornarem nobres

não significava trair-se, mas, sim, de se inserir no grupo que, de fato, controlava a

sociedade portuguesa do período.373 Desta maneira, esses homens não tinham o desejo de

em conjunto tomar as rédeas da sociedade e impor um novo modo de vida de caráter

burguês em contraposição àquele de caráter aristocrático.374

Nos estudos referentes ao Brasil colonial, alguns historiadores buscaram destacar a

existência de um forte preconceito contra o comércio e o grupo mercantil. Um dos

expoentes dessa visão é Laima Mesgravis que defendia a idéia de uma sociedade colonial

fortemente hierarquizada na qual tornava-se impossível à ascensão do grupo mercantil, fato

que teria perdurado, até mesmo após a Independência.375

Alguns estudos mostram que a existência de preconceito em relação à atividade

comercial e ao grupo mercantil não foi um impedimento para a ascensão social dos homens

de negócio no âmbito colonial. Segundo Rae Flory, o comércio foi a principal forma de

promoção social na Bahia.376 Contribui para isso, também, o fato de não haver uma

distinção muito clara entre elite agrária e mercantil.

373 PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio na praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822) – diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995. Tese (doutorado) , p. 98. 374 Em outras sociedades de Antigo Regime encontramos comportamentos parecidos. Segundo David Hancock, membros da elite comercial inglesa buscavam adquirir hábitos aristocráticos a fim de garantirem respeitabilidade e adquirir status. Um dos mecanismos utilizados por esses indivíduos era a compra de imponentes moradias com imensos jardins e obras de artes. Cf.: HANCOCK, David. Citizens of the world – London merchants and the integration of the British Atlantic community, 1735 – 1785. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, cap(s): 9 e 10. Essa também era a postura desempenhada pelos comerciantes na América hispânica, como o grupo mercantil da Cidade do México, estudo por John Kicza. Segundo este autor, membros da elite comercial mexicana usaram diversas estratégias com o objetivo de ganharem prestígio e status, tais como formação de aliança com membros da elite local a partir de matrimônios, alianças com a governança local mediante fornecimento de crédito e compra de postos governamentais; inserção nas instituições de caridade; acesso de familiares às principais instituições religiosas; e compra de bens agrários, principalmente de terras cultiváveis. Cf.: KICZA, John. Empresários coloniales – famílias y negócios em la ciudad de México durante los borbones. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, cap VII. 375 MESGRAVIS, Laima. Apud SAMPAIO, op. cit., 2006, p. 84. 376 FLORY, op. cit., 1978, p. 256-8.

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No Rio de Janeiro do século XVII, o preconceito, se havia contra o comércio ou o

grupo mercantil, não era explícito. Segundo Sampaio, isso acontecia pelo fato dos

comerciantes não representarem uma ameaça à nobreza da terra, uma vez que os bem-

sucedidos eram assimilados pelos nobres locais ou apenas excluídos das decisões políticas.

O preconceito torna-se presente quando os homens de negócio crescem em número e

adquirem uma capacidade de acumulação de riqueza maior do que as das melhores

famílias da terra, tornado-se assim uma verdadeira ameaça ao poder tradicional local.377

Desta forma, se existia uma visão negativa sobre o comércio e o grupo mercantil na

América portuguesa, devemos situá-la no espaço e no tempo. De todo modo, o preconceito

não tornou impossível que membros dessa mesma categoria social galgassem posições

sociais superiores. Nesse sentido, devemos entender as estratégias usadas pelos homens de

negócio na busca para se diferenciar dos demais mercadores.

Segundo Jorge Pedreira, houve uma progressiva distinção entre o comércio por

atacado e o retalhista em Portugal. No século XVIII, essa diferenciação entre mercador e

homens de negócio tornou-se mais marcante. Quanto mais se aproximava da nobreza, mais

os homens de negócio se distinguiam dos ofícios mecânicos e dos pequenos

comerciantes.378 Assim, esta era uma forma de distinção em relação aos demais

comerciantes que tinham contra si a idéia pejorativa do “defeito mecânico”, qual seja, a de

que usavam suas próprias mãos para ganhar seu próprio sustento. Essa diferenciação,

elaborada entre os homens de negócio e os demais mercadores, converteu-se num fator

importante na estratégia de enobrecimento dos primeiros. Ser homem de negócio

significava estar atrelado à “arte mercantil”, e não mais ao exercício mecânico diário do

377 SAMPAIO, op. cit., 2006, p. 91. 378 PEDREIRA, op. cit., 1995, pp. 65-71.

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comércio. Desta maneira, uma provável origem mecânica poderia ser perdoada desde que

passassem a viver à “lei da nobreza”.379

As sociedades mercantis e o tráfico de escravos

Não havia uma homogeneidade mesmo entre os mais destacados mercadores que

atuavam no comércio por atacado e de longa distância. Em seu estudo Jorge Pedreira

percebeu também uma hierarquização entre esses indivíduos. Embora a profissão de

negociante fosse aberta a qualquer um que possuísse talento para os negócios e um cabedal

mínimo para investir, havia certas atividades que não estavam disponíveis a todos, como o

comércio por atacado. Diversos fatores como redes de correspondentes, acesso ao crédito e

operações de financiamento do Estado, sociedades, heranças sociais, relações familiares e

profissionais determinavam aqueles que executariam seus negócios sem resultados

expressivos daqueles que se alojariam no alto da hierarquia, sendo considerados a elite

mercantil. Mesmo após atingir o topo, era necessário continuar a fazer uso desses

instrumentos, pois não era fácil manter-se entre os melhores.380 A vida mercantil

definitivamente não era um mar de navegação tranqüila.

Na Bahia, tal proposição é verdadeira no caso do comércio transatlântico de

escravos. Embora muitos negociantes participassem do trato negreiro, atraídos pela alta

rentabilidade, poucos dominavam os conhecimentos específicos para uma execução

satisfatória dos negócios. A natureza empresarial do tráfico transatlântico de escravos na

praça de Salvador era bastante seletiva – cerca de 10% das empresas que mais fizeram

viagens à África foram responsáveis por aproximadamente 40% do total de viagens. Tal

monopolização era decorrente da grande necessidade de alto investimento inicial para se

379 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Comércio, riqueza e nobreza: elites mercantis e hierarquização social no Antigo Regime português.” In: FRAGOSO, João et al. (orgs.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006, p. 90. 380 PEDREIRA, op. cit., 1995, p. 150.

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aventurar numa expedição de longa jornada, pois essas empreitadas envolviam uma série

de riscos tais como pirataria, mortes, naufrágios, etc, que redundavam sempre em grandes

prejuízos para os administradores do negócio.381

Afora a necessidade de grande cabedal, era importante que os negociantes de

escravos mantivessem relações sociais que favorecessem suas atividades, como a

participação em sociedades, por exemplo. Entre 1678 e 1815, das 2.277 expedições saídas

de Salvador para o resgate de escravos no continente africano, 448 (cerca de um quinto)

eram constituídas por parcerias.382 Um tipo bastante comum era a sociedade binária entre

um sócio que ficava no local sede dos negócios e um que embarca no navio e tomava a

frente das negociações,383 como a desenvolvida pelos homens de negócio e os capitães de

negreiros encarregados das expedições à África. Geralmente tal sociedade era acertada

para apenas uma viagem e serviam para dividir os custos empreendidos entre os diversos

sócios envolvidos, reduzindo o montante com o qual cada um deveria contribuir. Atitude

conservadora dos homens de negócio que é melhor apreendida quando notamos que a

sociedade era também uma forma de se minimizar possíveis perdas, caso o negócio não

saísse como o planejado.

Por todo o Império português, os mercadores buscavam também se associar a

homens que estavam estabelecidos em diversos portos de comércio atuando como

correspondentes. É o caso de Francisco Pinheiro Neto que mantinha uma verdadeira rede

de comissários pelas principais regiões da América lusa e portos africanos.384 Seu irmão,

381 Sobre o grau de concentração nos negócios negreiros transoceânicos na praça de Salvador cf. RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador (c. 1680 – c. 1830). Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) – UFRJ, 2005, capítulo 3. 382 ELTIS, David & RICHARDSON, David. Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. www.slavevoyages.org 383 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII. Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Volume 2), p. 383. 384 DONOVAN, William. Commercial enterprise and Luso-Brasilian society during the Brazilian gold rush: the mercantile house of Francisco Pinheiro and the Lisbon to Brazil trade, 1695-1750. Baltimore: The Johns

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359

Antônio Pinheiro Neto era o responsável pelos negócios no Rio de Janeiro. Em Salvador,

Francisco Pinheiro contava com o apoio de Baltazar Álvares de Araújo. Além dessas duas

praças, possuía correspondentes em Angola, Minas, Pernambuco e em outras regiões da

América lusa.385

Segundo Leonor Freire Costa, a constituição de agências de sociedades era inerente

ao comércio no Atlântico no século XVIII. Devido às longas distâncias a serem

percorridas, que agravavam os custos e tornava imprescindível a acuidade da informação,

estavam disponíveis modelos de agenciamento que podiam ser o de transmitir a um único

indivíduo múltiplas competências mediante uma procuração delegando plenos poderes ou

estabelecendo uma sociedade comandita. Na base da relação entre esses indivíduos estava

a confiança recíproca. A fé no outro e o conhecimento pessoal entre as partes envolvidas

tornavam-se assim indispensáveis ao bom andamento dos negócios mercantis.386

Muitos homens de negócios baianos possuíam correspondentes nos portos de

embarque de escravos no continente africano, como José Narciso Soares que tinha como

sócio, em Quilimane, João Bonifácio Alves da Silva e Manoel José de Magalhães, cujo

correspondente era Francisco José Luís Vieira, estabelecido em Angola.387 No porto de

Benguela, a partir de 1730, os investimentos e atuações de comerciantes brasileiros

começaram a suplantar os do reino. Tal preponderância foi alcançada devido à

disponibilidade dos brasileiros em comercializar tecidos indianos – artigo bastante

apreciado pelo povo de Benguela - e a oferta de créditos feita por seus comissários.388

Exemplo de baiano que possuía familiaridade no trato de escravos em Benguela foi José de

Hopkins University, 1990, tese (doutorado), p. 93. 385 LISANTI FILHO, Luís. Negócios Coloniais (uma correspondência comercial do século XVIII). Brasília / São Paulo: Ministério da Fazenda / Visão Editorial, 1973, 5 volumes. 386 COSTA, Leonor Freire. “Entre o açúcar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII).” In: FRAGOSO et al., op. cit., 2006, p. 101. 387 BNRJ, Idade d’Ouro do Brasil – BA. 388 FERREIRA, Roquinaldo. Transforming atlantic slaving: trade, warfare and territorial control in Angola, 1650-1800. Los Angeles, 2003. Doutoramento - University of California, p. 112-20.

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360

Assunção Melo.389

Na maioria das vezes, esses representantes mercantis eram exilados políticos ou

criminosos ou tinham atuado como tripulantes de negreiros. Muitos desses correspondentes

tornaram-se comerciantes bem-sucedidos, atingindo postos na governança colonial na

África e constituindo uma vasta rede mercantil, como o mulato Joaquim José de Andrade e

Souza Meneses que constituiu sociedades no Rio de Janeiro e Lisboa. A maior parte desses

homens retornou à América, estabelecendo-se como homens de negócios, atuando com o

auxílio de suas conexões africanas.390

Para além de sociedades com portos de além-mar, os negociantes de Salvador

formaram também associações com traficantes de outras praças mercantis no Brasil, como

João Ferreira Guedes, sócio de José Soares, comerciante do Recife; José Antônio

Rodrigues Viana, sócio da família carioca Ferreira dos Santos; e José Ricardo da Silva que

era sócio da família Velho da Silva, também do Rio de Janeiro. As duas famílias cariocas

estavam entre as mais especializadas no trato negreiro.391

Além de facilitar as trocas mercantis, a estratégia de manter correspondente em

diversos portos dava aos grandes homens de negócio a primazia da detenção da

informação, fator crucial para o bom desenvolvimento de uma carreira de comerciante, em

época de esparsa e lenta circulação de notícias.392 O privilégio da informação possibilitava

aos negociantes saber antecipadamente as necessidades que se faziam em cada região e

direcionar o produto certo a ser vendido.

Embora fosse extremamente custoso, o produto gerado pelo comércio de escravos

era altamente rentável. O traficante baiano lucrava do lado africano por se apropriar

389 Ibidem, pp. 127-8. 390 Ibidem, pp. 129-31. 391 BNRJ, Idade d’Ouro do Brasil – BA; FLORENTINO Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 243. 392 BRADEUL, op. cit., 1996, p. 353.

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socialmente do trabalho alheio, uma vez que a produção da mão-de-obra escrava na África

ocorria por meio de mecanismos não-econômicos, fundados na violência. Na outra

margem do Atlântico ganhava sobre a crescente demanda, cada vez mais ávida e disposta a

pagar um alto preço pelo cativo. Em meados do século XVIII, enquanto na costa da África

o cativo era resgatado por 6$000 a 12$000, seu valor no mercado de Salvador muitas vezes

ultrapassava 100$000.393 Desta forma, a venda de um carregamento médio de navio (230

escravos) poderia gerar algo em torno de 23:000$000.

A diversificação dos negócios era uma marca dos agentes comerciais. Por atuarem

em um mercado instável e com poucas opções,394 podemos sugerir que os traficantes

buscavam investir de forma a mais diversificada possível, para garantir segurança às suas

aplicações e diminuir os riscos, operando por exemplo no sistema de crédito, como

verificamos no capítulo 3. Grande parte dos traficantes atlânticos participava também do

mercado de redistribuição de cativos, muitas vezes remetendo grandes levas de homens

para as diversas praças econômicas da América portuguesa. Entre os traficantes

responsáveis pelo envio dessas remessas de escravos para áreas interioranas encontramos

Pedro Gomes Caldeira que também participava da esfera transatlântica.

Em agosto de 1761, Gomes Caldeira mandou para Minas Gerais 100 cativos novos

e, em julho de 1763, outros 118.395 É possível aventar a hipótese de serem escravos recém-

desembarcados de um de seus navios, uma vez que este homem de negócio, desde a década

de 1730, já atuava no comércio negreiro. Começou como mestre de navios que percorriam

a rota Bahia-Costa da Mina. Em meados do século XVIII, ocupou o cargo de tesoureiro da

393 BNRJ, Anais – 1906; cf. também a discussão sobre o preço dos escravos feita no capítulo 2. 394 Trabalhamos com a idéia de mercado pré-industrial apreendida em Karl Polanyi para analisar a sociedade escravista colonial. Segundo este autor, nas sociedades pré-industriais a venda da força de trabalho não era considerada condição para que os indivíduos provessem a sua subsistência, caracterizando uma frágil divisão social do trabalho. Isto implicava em uma baixa circulação de numerário e bens, redundando numa fraca liquidez (crédito) nesta organização econômica, o que reduziria a opção de investimentos. Cf. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 59-65. 395 APEB, códice 249.

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362

Casa da Moeda da Bahia.396 No ano de 1755, o encontramos como senhorio de seu próprio

navio.397 Não há dúvidas de que fora favorecido pela atuação numa atividade altamente

rentável, o tráfico internacional de escravos. Mas nos parece, sobretudo, que o traficante

não se deu por satisfeito. Após se firmar como proprietário de embarcações, procurou

ampliar seu leque de possibilidades atuando também na terceira perna do tráfico, passando

a fazer grandes remessas de cativos para a região das Gerais. Pedro Gomes Caldeira sabia

que ao dispor grande quantidade de escravos para as Minas e demais localidades tinha

junto com os outros grandes fornecedores o controle da reprodução física do sistema

escravista na colônia, tornando dependentes os pequenos mercadores e negociantes dos

centros receptores.

Outra vantagem para os homens de negócios que atuavam no comércio de africanos

ocorria quando se transacionava com os agentes nos portos coloniais ou na própria África

que, ávidos por fecharem os negócios rapidamente, para aumentar a velocidade de seu giro

de capital, viam-se frente aos únicos agentes coloniais de quem podiam receber com garantia

de liquidez. Isto conferia aos negreiros uma nova condição, permitindo-lhes redefinir as suas

relações tanto com o mercado interno quanto com o internacional. Podemos postular,

portanto, que, em um contexto de hegemonia do capital mercantil, o capital traficante

abarcava o topo da própria elite comerciante da América portuguesa.

A historiadora Catherine Lugar constituiu duas listagens para os anos de 1788 e

1798, contendo em cada uma vinte nomes dos maiores comerciantes de Salvador que

pagaram taxas de importação na alfândega da cidade. Na primeira listagem, um quinto dos

comerciantes eram traficantes de escravos. Já no ano de 1798, oito dos vintes comerciantes

arrolados eram negreiros, sendo que três ocupavam a lista nas primeiras colocações,

396 AHU, Bahia, docs. 8055. 397 www.slavevoyages.org

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363

explicitando o lugar destes comerciantes de almas no interior da elite mercantil, o topo.398

Desta maneira, o tráfico negreiro destacava-se como sendo uma atividade importante no

enriquecimento de membros do grupo mercantil baiano. Contudo, como abordado

anteriormente, esses indivíduos buscavam o respeito social, o distanciamento dos demais

membros do grupo e a aproximação com um estilo de vida ligado à nobreza.

Uma lista elabora em 1757 por José Antônio Caldas relaciona 120 “homens de

negócio, mercadores, traficantes e todas as mais pessoas que na cidade da Bahia vivem de

alguns gêneros...”.399 O cruzamento desses nomes com a documentação existente para o

período e com o banco de dados Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database400

permitiu constatar que no mínimo 59 desses homens estavam envolvidos no comércio

transatlântico de cativos. Seguindo a trajetória de alguns desses traficantes arrolados nesta

listagem, perceberemos algumas estratégias utilizadas no acúmulo de riqueza e prestígio

social no período colonial.

Escolhas matrimoniais

Como mencionado no início deste capítulo, o grupo mercantil de Salvador era composto

por indivíduos que atuavam nas mais variadas formas de comércio, desde o vendedor de

quitutes até o grande traficante de escravos. Dados levantados por David Smith e Rae

Flory apontam que esta comunidade entre os anos de 1680 e 1740 era composta de 83% de

portugueses (110 homens), e 6% brasileiros (8 homens). Dos portugueses, cerca de 73%

provinham da região do Entre Douro e Minho, norte de Portugal, região pobre onde

398 LUGAR, Catherine. The merchant community of Salvador, Bahia, 1780-1830. Stony Brook, 1980. Doutoramento - State University of New York, pp. 165-9. 399 CALDAS, Antônio José. Notícia geral desta capitania da Bahia desde o descobrimento até o seu presente ano de 1759. Rio de Janeiro: IHGB, 1946, pp. 317-21. 400 www.slavevoyages.org

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364

sobrava gente e faltava terra.401 A maioria dos portugueses que emigrava para a Bahia

tinha um histórico familiar de trabalho na lavoura.402 Muito provavelmente este padrão

geral se repetia entre os maiores comerciantes atlânticos de escravos. Segundo Flory,

embora o comércio com a África fosse menos dependente das finanças e conexões do

reino, os traficantes de cativos escolhiam seus sucessores entre imigrantes portugueses, na

maioria dos casos um parente.403

Os dados referentes à origem dos homens de negócio e mercadores baianos,

mostram que era pouco comum filhos de negociantes estabelecidos na Bahia seguirem a

carreira do pai. O grupo mercantil, nesse sentido, estava sendo constantemente renovado a

partir da inserção de novos membros, muitos dos quais vindos de fora da colônia. Isso

ocorria apesar de um filho de comerciante contar com enormes vantagens quando decidia

seguir a mesma carreira de seu pai, devido à acumulação prévia de capital, aos

conhecimentos adquiridos sobre as práticas mercantis e pela constituição de redes sociais

preestabelecidas.

Ao que parece a carreira de um grande comerciante iniciava-se como auxiliar ou

caixeiro de alguma casa comercial importante, fosse na sede ou nas demais áreas do

Império português. Entre os homens de negócio que atuavam na praça de Lisboa de 1755 a

401 Do restante 4% (5) provinham das ilhas atlânticas e 7% (9) de outras nações européias. Cf. FLORY, Rae & SMITH, David Grant. “Bahian Merchants and Planters in the Seventeenth and Early Eighteenth Centuries”. In: Hispanic American Historical Review, 58 (4), 1978, p. 575. 402 Smith aponta que no século XVII, na Bahia, o imigrante português que se estabelecia como mercador era oriundo do norte de Portugal cujo pai era agricultor. Esta emigração teria sido gerada pela possibilidade que muitos vislumbravam de ocupar as vastas terras disponíveis na Bahia, onde poderiam obter rapidamente o sucesso almejado. Contudo, nos parece que esta hipótese não faz sentido, uma vez que estes homens ao chegarem à Bahia, se estabeleciam na cidade e passavam a atuar na atividade mercantil e não na atividade agrária. Acreditamos, portanto, que o fator primordial de dispersão da população norte portuguesa seria a extrema pobreza e a falta de opções para se manter na região. Cf. SMITH, op. cit., 1975, pp. 286-7. Júnia Furtado observou que os comerciantes que se estabeleciam em Minas Gerais no século XVIII provinham também do norte de Portugal, principalmente das províncias do Minho e Douro. Chegavam solteiros às Gerais. Não possuíam vínculos familiares na nova terra. Na sua maioria, eram descendentes de cristãos-novos e, por já estarem habituados, buscavam no comércio uma maneira rápida de enriquecimento. Cf. FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 275. 403 FLORY, op. cit., 1978, p. 228.

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1822, aproximadamente 40% teriam iniciado sua trajetória mercantil em outras regiões de

Portugal ou mesmo no Brasil, ilhas atlânticas, Ásia ou África. Antes de se lançarem no

ultramar, atuavam transitoriamente em um algum tipo de ofício mecânico, como

caixeiro.404 Geralmente, aprendiam a “arte de mercadejar” com algum parente ou

comerciante experiente de sua relação.

A maioria desses mercadores chegava solteira à Bahia. Buscavam constituir

matrimônio com moças residentes na cidade de Salvador ou na área do Recôncavo Baiano.

Rae Flory e David Smith levantaram o local de nascimento de 101 esposas de homens de

negócios e comerciantes da cidade de Salvador, entre os anos de 1680 a 1740, e

constataram que aproximadamente 90% delas eram mulheres nascidas na Bahia. Foi

possível apontar a profissão de 56 pais dessa moças, sendo 18 homens de negócios e 22

senhores de terra.405 Tais números indicam as opções preferenciais dos negociantes por

filhas da elite local no momento de constituir matrimônio, fossem da elite mercantil ou da

elite agrária.406

A formação de alianças entre os setores mercantil e agrário na Bahia via casamento

indica um mútuo interesse social e econômico, contrapondo a idéia de rivalidade política

existente entre esses dois grupos.407 Membros da elite local viam nessas alianças a

possibilidade de usufruir os conhecimentos e conexões dos homens de negócio bem como

do capital mercantil. Para os negociantes, significava a garantia de respeitabilidade social e

a constituição de laços familiares, o que devia ser de fundamental importância para os

portugueses recém-chegados.408 Segundo David Smith, não havia uma atmosfera de

404 PEDREIRA, op. cit., 1995, pp. 218-21. 405 FLORY & SMITH, op. cit., 1978, pp. 576-8. 406 Este padrão de matrimônio também foi verificado por Peter Burke na sociedade de Veneza do século XVII, onde os comerciantes buscavam constituir casamento com membros da aristocracia local. Cf. BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São Paulo: Brasiliense, 1991, passim. 407 Sobre as idéias de conflitos entre os grupos rurais e mercantis cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. da UnB, 1981. 408 FLORY & SMITH, op. cit., 1978, p. 577; KENNEDY, John Norman. “Bahian Elites, 1750-1822”. In:

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rivalidade entre os setores da elite agrária e os grandes homens de negócio, mas, sim, de

cooperação.409

No caso do Rio de Janeiro, o perfil dos sogros dos negociantes é semelhante.

Segundo dados apontados por Sampaio, cerca de um quarto eram homens de negócio

enquanto senhores de engenhos/nobres da terra representavam aproximadamente um terço.

Em relação aos homens de negócio, o percentual caracteriza uma endogamia de grupo que

fica mais latente quando são coadunados os demais grupos de comerciantes: contratadores,

mercadores e trapicheiros. O percentual nesse caso sobe para 50%. Assim, num conjunto

de 40 matrimônios onde foi possível determinar o sogro dos homens de negócios, 20

tinham origem mercantil e 14 na elite agrária.410

A manutenção de uma empresa comercial familiar estava ligada ao futuro dos

herdeiros. Como observado anteriormente, em Salvador não era comum a transmissão dos

negócios mercantis para um filho, tendo em vista que a maioria dos negociantes provinha

de fora. Desta forma, o cálculo matrimonial relativo a seus filhos legava aos homens de

negócio duas escolhas a serem feitas: o afastamento da atividade mercantil na sua segunda

geração ou sua continuidade através da incorporação de homens de negócios como genro.

Assim, era bastante comum a endogamia no grupo mercantil. Filhas de homens de

negócio casavam-se com comerciantes, mesmo que esses ainda não estivessem no topo de

sua carreira. Desta forma, garantia-se a perpetuação da família nas atividades comerciais,

mesmo que os filhos homens optassem por um novo estilo de vida. O matrimônio

endogâmico também possibilitava a constituição de laços e redes entre diferentes famílias

envolvidas no comércio.

Hispanic American Historical Review, 53 (3), 1973, p. 419. 409 SMITH, op. cit.,1975, pp. 391; 402. 410 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos.” In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla. (orgs.). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 243-4.

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Vejamos agora os caminhos escolhidos por dois dos mais bem sucedidos traficantes

de escravos da Bahia, exemplos dos padrões matrimoniais apontados anteriormente: os

Pedro Rodrigues Bandeira (pai e filho). O primeiro descendente dessa família a se

estabelecer na Bahia foi o comerciante português nascido em Viana do Castelo (Minho) no

ano de 1709, Pedro Rodrigues Bandeira (“o pai”, falecido em Salvador no ano de 1778),

possuidor de várias embarcações que faziam comércio para cidades da Europa, Ásia e

África. Pedro R. Bandeira aparece na listagem elaborada por José Antônio Caldas como

um dos “homens de negócio estabelecidos na Bahia que possuía maior inteligência nos

preceitos mercantis e capacidade para freqüentar o comércio”.411 Provavelmente, Pedro

chegou à Bahia ainda na primeira metade do século XVIII.

No início da década de 1760, casou-se com a viúva Dona Ana Maria de Jesus

Magalhães Correia Lisboa, nascida na cidade de Cachoeira no Recôncavo Baiano em 1730,

filha do abastado proprietário de terras e dos Ofícios de Tabelião e Escrivão dos Órfãos,

coronel Lourenço Correia Lisboa com Dona Maria dos Santos Magalhães.412 Deste

casamento, Pedro Rodrigues Bandeira teve quatro filhos: Joaquina Josefa de Santana

Bandeira (1763), Clara Caetana do Sacramento Bandeira (1764), Maria da Encarnação

Bandeira (1766) e Pedro Rodrigues Bandeira (1767).

Pedro R. Bandeira ocupou os cargos de Ofício de Meirinho da Comarca da parte sul

da Bahia, Ofício de Porteiro e Corregedor de Folhas da Relação da Bahia, Ofício de

escrivão dos órfãos da Câmara e Donativos da Vila de São Francisco do Sergipe do Conde,

Contador Geral da Fazenda da Bahia. Foi capitão do Regimento dos Úteis em Salvador e

membro da Ordem Terceira de São Francisco e Irmão da Santa Casa de Misericórdia.413

411 CALDAS, op. cit., 1946, p. 317. 412 BULCÃO SOBRINHO Antônio de Aragão. Famílias bahianas. Salvador: Imprensa Oficial, v. 3, 1946, pp. 3-4. 413 BULCÃO SOBRINHO, op. cit., 1946, p. 3; LUGAR, op. cit., 1980, p. 236; AHU, Bahia, docs. 8904; 9240; 9250; 10225.

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Os matrimônios de suas filhas enquadram-se no padrão de alianças verificado entre

os filhos de comerciantes baianos. A primogênita, Dona Joaquina casou-se no ano de 1782

com o comerciante português nascido no Douro, Custódio Ferreira Dias, traficante de

escravo e caixeiro de Pedro Rodrigues Bandeira. Sua segunda filha, Clara Caetana do

Sacramento Bandeira constituiu núpcias em 1795 com 1.º Barão do Rio das Contas,

Francisco Vicente Viana, filho do também traficante português e recolhedor de tributos

rurais Frutuoso Vicente Viana com Dona Teresa de Jesus Gonçalves da Costa. Ainda

jovem, Francisco Vicente Viana foi enviado para Coimbra onde terminou seus estudos no

ano de 1773. De volta à Bahia, foi indicado no ano de 1775 para o cargo de Juiz de Órfãos

e, posteriormente, no ano de 1779, alçado ao posto de Ouvidor da Comarca baiana.414 Já a

terceira filha, Maria da Encarnação permaneceu solteira assim como o quarto e único filho,

Pedro Rodrigues Bandeira.415 O casamento de Clara Caetana possibilitou a seu pai, Pedro

Rodrigues Bandeira, a formação de uma aliança com Frutuoso Vicente Viana também

considerado como um “dos homens de negócio da Bahia que possuíam maior inteligência

para as atividades mercantis”.416

Embora não tenha constituído matrimônio, Pedro Rodrigues Bandeira (o filho)

conseguiu, ao longo de sua vida, amealhar uma fortuna. Era considerado um dos homens

mais ricos e influentes do Brasil, no início do século XIX. Foi um dos maiores

exportadores de fumo e aguardente, muito em função de sua atividade como traficante de

africanos. Também possuía embarcações que faziam o comércio para a Europa e Ásia. Foi

414 KENNEDY, op. cit., 1973, p. 423; BULCÃO SOBRINHO, op. cit., 1945 e 1946, pp. 98-100 e p. 29; AHU, Bahia, docs. 12857; 13284. 415 BULCÃO SOBRINHO, op. cit., 1946, p. 30. 416 CALDAS, op. cit., 1946, p. 317. Frutuoso Vicente Viana nasceu na cidade de Viana do Castelo, no Minho, no ano de 1711. Foi o primeiro da família a fixar residência na Bahia, no ano de 1725 com 14 anos de idade. Em 1750, casou-se com Teresa de Jesus Gonçalves da Costa, nascida na cidade de Braga, no Minho. Frutuoso faleceu em Salvador no ano de 1787, tendo sido em vida familiar do Santo Ofício, capitão do regimento dos úteis e vereador do Senado da Câmara, proprietários de prédios urbanos e de navios, que faziam o comércio marítimo com praças européias e asiáticas. Tornou-se um rico negociante, proprietário de engenhos de açúcar no atual município de São Francisco do Conde. Cf. BULCÃO SOBRINHO, Antônio de Aragão. Famílias bahianas. Salvador: Imprensa Oficial, v. 1, 1945, p. 97.

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proprietário de diversos prédios em Salvador, de seis engenhos de açúcar (Vitória, Buraco,

Pilar, Moinho, Conceição e Subaré) nas vilas de Cachoeira e Santo Amaro no Recôncavo

Baiano e de grandes fazendas de criação de gado no sertão. Devido à sua vultosa fortuna,

foi um dos homens mais respeitados de seu tempo, sendo um grande provedor da Fazenda

Real e de diversas Instituições de caridade existentes na Bahia. Exerceu o cargo de

Tesoureiro da Fazenda Real, de Diretor da Casa da Moeda e foi membro do Conselho

Geral da Província da Bahia, entre 1828-34. Foi também Deputado representando a Bahia

nas “Cortes Gerais” em Lisboa, no ano de 1821. Como seu pai, foi membro da Santa Casa

de Misericórdia na Bahia, tornando-se seu Provedor em 1826. Foi condecorado com o

título de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real e Comendador da Ordem de Cristo.417 Faleceu em

Salvador aos 68 anos, em 1835, solteiro e sem filhos, deixando uma verdadeira fortuna

como herança.418

Os casamentos das filhas de Pedro Rodrigues Bandeira indicam assim a opção pela

endogamia mercantil, uma vez que uma delas constituiu matrimônio com um homem de

negócio e outra com um filho de um proeminente negociante. Esse tipo de matrimônio era

bastante comum entre os filhos de comerciantes baianos. Desta forma, Pedro Rodrigues

Bandeira garantiu a manutenção de seus empreendimentos com a incorporação de genros

negociantes. É bem provável que esse tipo de opção matrimonial tenha se tornando

preponderante frente àquele estabelecido com membros da elite agrária na cidade de

Salvador, uma vez que com o desenrolar do século XVIII, a elite do grupo mercantil

passou a desempenhar um papel mais importante, destacando-se e, por conseguinte,

417 As comendas foram mais disputadas do que os hábitos, pois eram propriedades territoriais com rendimentos que variavam de 49$000 a 1:000$000 de réis. Na colônia, apenas heróis de guerra foram dignos de merecer tamanha honraria. Somente com a chegada da família real em 1808, a comenda se tornou difundida entre os coloniais. Cf. SILVA, op. cit., 2005, p. 99. 418 BULCÃO SOBRINHO, op. cit., 1946, pp. 30-2; LUGAR, op. cit., 1980, p. 236.

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distanciando-se da elite agrária. Contudo, acreditamos que esse deslocamento de interesse

entre esses dois agrupamentos só se tenha consolidado no século XIX.

Susan Sokolow observou também que prevalecia a endogamia nas escolhas

matrimoniais do grupo mercantil de Buenos Aires, no século XVIII. Segundo a autora, a

estratégia utilizada pelos comerciantes portenhos era a de se casar com as filhas dos mais

antigos e bem situados negociantes, como uma estratégia para fortalecer os laços pessoais.

O parentesco matrifocal era importante para alimentar a coesão do grupo e consolidar a

comunidade mercantil. Dos 77 novos comerciantes (homens que não apareciam numa

listagem anterior constituída em 1778) arrolados na cidade em 1801, 53 estavam ligados

familiarmente como filhos, genros, cunhados ou sobrinhos, a comerciantes já

estabelecidos. A endogamia funcionava também como uma forma de atrair novos homens

e perpetuar a posição social e econômica de sua família por intermédio da linha feminina,

uma vez que o sistema de transmissão de bens dos comerciantes portenhos acabava por

fragmentar toda a riqueza amealhada ao longo de uma carreira profissional. Por isso,

tornou-se difícil que um filho equiparasse seu pai na sucessão de seus negócios, muitas

vezes decaindo e tendo que recomeçar a acumular bens.419

O perfil de casamentos endogâmicos foi verificado também por John Kicza em seu

estudo sobre a Cidade do México colonial, como sendo o mais usual entre membros do

grupo mercantil. Um grande número de filhos e sobrinhos dos comerciantes casava-se com

indivíduos pertencentes a outras famílias poderosas de negociantes. Assim, nas

corporações dos comerciantes era possível encontrar familiares ligados por laços

consangüíneos ou matrimoniais atuando no controle do poder.420 Desta forma, lutavam em

419 SOKOLOW, Susan. “Marriage, birth and inheritance: the merchants of Eighteen-Century Buenos Aires”. In: Hispanic American Historical Review, 60 (3), 1980. 420 KICZA, op. cit., 1986, pp. 171-8.

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conjunto por seus interesses num formidável agrupamento político que tinha como base a

família.

Havia ainda a opção pelo não casamento. Muitos pais direcionavam seus filhos para

mosteiros ou conventos, com o intuito de obter vantagens tendo a inserção de um membro

familiar numa determinada ordem religiosa. Para além disso, haveria um outro motivo: não

ver a fortuna da família dispersada. Por isso, nessa época, era muito comum a presença de

padres e freiras pertencentes às famílias dos homens de negócio. Ao morrem ou mesmo em

vida deixavam a parte que lhes cabia da herança para seus sobrinhos. Nesta perspectiva

deve ser entendido o caso da filha solteira de Pedro Rodrigues Bandeira, bem como de seu

único filho que, ao morrer, deixou para seus sobrinhos uma das maiores fortunas já

acumuladas na cidade de Salvador.

Homens de negócio solteiros não eram incomuns nas famílias mercantis.

Historicamente, esses homens foram descritos como sovinas, prisioneiros de seus

negócios, indiferentes aos prazeres e distrações da vida, apenas interessados em acumular

cada vez mais riqueza. Foi assim, que o viajante inglês Thomas Lindley retratou o

envelhecido Antônio de Oliveira e seu estabelecimento de comércio na Bahia, no início do

século XIX.421 A opção pelo celibato está relacionada ao cálculo econômico estipulado

pela família. Esses homens acumulavam capitais, resultado da poupança de toda uma vida

e adquiriam conhecimentos mercantis. Assim, conscientemente podiam transmitir essa

fortuna pessoal e o talento para mercadejar para jovens parentes, freqüentemente sobrinhos

que serviam a eles como aprendizes e assistentes. Se tivessem se casado, a riqueza

acumulada se desintegraria quando da partilha de seu montemor.

Para além do caso de Pedro Rodrigues Bandeira, a outros que ilustram bem essa

situação na Bahia como a carreira de Domingos da Costa Braga. Natural da cidade de 421 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1969 (1a. Edição 1805), pp. 148-9.

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Braga, Domingos era descendente de uma importante família de negociantes estabelecida

em Salvador. Antes dele, vieram do reino tios, primos e irmãos. Recém-chegado no Brasil,

trabalhou como auxiliar nos negócios de seus familiares. Aos poucos, inseriu-se no trato

negreiro, amparado por laços de parentesco, tornando-se um dos mais bem-sucedidos e

ricos homens de negócio de Salvador, no século XVIII.422 Ao morrer, no ano de 1793,

deixou como herdeiro de seus bens e da administração de seus negócios, seu sobrinho,

João de Oliveira Braga, de apenas 16 anos de idade, a quem já havia ensinado

conhecimentos básicos sobre a prática de comerciar.423

Essa preocupação em legar a herança e a administração dos negócios familiares aos

sobrinhos, mesmo quando esses fossem tão jovens, estava ligado ao desejo dos

testamentários de ver continuado o trabalho desenvolvido em vida. A escolha dos herdeiros

nesse sentido era proposital, a fim de encorajá-los à inserção nos mundos do negócio.

A conquista de honrarias

A atuação no comércio de escravos possibilitou a muitos homens de negócio uma

grande mobilidade geográfica e social, como observado na trajetória dos Rodrigues

Bandeira. O fato de estar no topo do grupo mercantil não era suficiente para muitos desses

negociantes. Ao longo de suas bem-sucedidas carreiras, os comerciantes de escravos

buscaram o reconhecimento da sociedade, vivendo “à lei da nobreza”, almejando títulos

honoríficos, galgando o status de nobre colonial. Segundo Nizza da Silva, ser nobre na

colônia significava a obtenção de honras pelo foro de fidalgo da Casa Real, hábitos de

422 KENNEDY, op. cit., 1973, pp. 421-2; RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953, pp. 364-5.; AHU, Bahia, docs. 1777; 8806; 9625; 423 APEB, Judiciário, inventário de Domingos da Costa Braga, 1793, 04/1575/2044/02; AHU, Bahia, doc. 8.875.

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ordens militares, instituição de morgados, ocupação de cargos nas Câmaras ou postos da

oficialidade das ordenanças.424

Esse foi o caminho trilhado por Agostinho Gomes, também citado na lista elaborada

por José Antônio Caldas como um dos mais respeitados negociantes da praça de Salvador.425

Natural da província de Traz-os-Montes, filho de pais lavradores, partiu para Salvador, após

uma temporada em Lisboa exercendo o cargo de caixeiro na casa de um comerciante. Na

Bahia, foi também caixeiro e estabeleceu-se com uma loja que, posteriormente, entregou aos

cuidados de seus empregados. Passou a se dedicar ao comércio de escravos na rota Bahia-

Costa da Mina. Após alguns anos em terras baianas, constituiu núpcias com Isabel Maria

Maciel. Mais tarde, atuou como moedeiro da Casa da Moeda na Bahia. Na década de 1760,

recebeu o hábito da Ordem de Cristo. Nesta altura da vida, Agostinho Gomes já era familiar

do Santo Ofício. Em 1765, foi admitido como membro da Santa Casa de Misericórdia. No

ano de sua morte, 1793, Agostinho Gomes ostentava os títulos de cavaleiro professo da

Ordem de Cristo e familiar do Santo Ofício, suficientes para lhe dar áurea de nobre.426

A partir da descrição da trajetória de Agostinho Gomes, devemos apontar algumas

considerações sobre a forma de se obter os hábitos das ordens militares e o prestígio

proporcionado pela posse dos mesmos, que perfaziam um número de três: Ordem de Avis,

Ordem de Santiago e a mais prestigiosa, Ordem de Cristo. De acordo com Nizza da Silva,

os hábitos das ordens militares eram as mercês mais pedidas e concedidas na colônia e na

metrópole. Cabia ao rei conceder tal distinção. Os pedidos dos coloniais, antes de

chegarem ao rei, passavam pelo crivo do Conselho Ultramarino. Se o monarca concedesse

424 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p. 132. Para uma melhor compreensão sobre as Ordens Militares cf. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honras, mercês e venalidades em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001. 425 CALDAS, op. cit., 1946, p. 317. 426 ALVES, Marieta. “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII, na Bahia”. In: Revista de História de São Paulo, São Paulo, n.º 86, 1971, pp. 475-6; SILVA, op. cit., 2005, pp. 184-5; BARROS, Francisco Borges de. Novos documentos para a História Colonial. Salvador, s/d; AHU, Bahia, docs. 12054 e 12190.

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a benesse, o processo era encaminhado para a Mesa da Consciência e Ordens, onde eram

ouvidas diversas pessoas que testemunhavam sobre o modo de vida do solicitante, bem

como sobre seus ascendentes.427 Às vezes, esses autos se arrastavam por muitos anos,

principalmente quando os interrogatórios constituídos ao longo do processo indicavam

uma ou duas questões a serem reparadas face às rígidas regras. Nesses casos, as

habilitações só eram aprovadas caso houvesse a dispensa desses impedimentos, o que não

era fácil de ocorrer. Assim, muitos acabavam desistindo ou morriam antes de verem

aprovadas suas solicitações.428

As exigências eram grandes para aqueles que buscavam a conquista de uma Ordem

Militar. Os candidatos ao recebimento do hábito deviam ser nobres, fidalgos, cavaleiros ou

escudeiros, ter o sangue “limpo”, sem mácula, nem qualquer tipo de impedimento por

defeito mecânico ou de qualidade, não ser herege e nem ter cometido crime de lesa-

majestade, sendo casado, saber se a mulher não se opunha à sua entrada na Ordem

Militar.429 Como sabemos, se fossem seguidas à risca as regras, muito dificilmente um

traficante de escravo estabelecido na colônia, oriundo de uma região pobre de Portugal e

filho de pais lavradores receberia tal mercê. Para alcançar o título almejado teria que contar

com a boa vontade do rei na concessão de dispensa de algum impedimento.

Alguns homens de negócio foram agraciados com esta benevolência real. Em

períodos de guerra, havia mais tolerância com os defeitos de qualidades dos solicitantes.

No século XVII, há exemplos de índios condecorados com hábitos das ordens militares por

terem lutado ao lado dos portugueses. De todo modo, ser aceito como um membro destas

ordens era, por vezes, mais difícil do que ser fidalgo da Casa Real, pois como verificamos

nas palavras de Nizza da Silva, “enquanto o ser fidalgo da Casa Real dependia apenas da

427 SILVA, op. cit., 2005, pp. 98-9. 428 OLIVAL, op. cit., 2001, p. 164. 429 Idem.

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vontade do rei, para receber os hábitos das ordens militares era preciso passar por toda uma

engrenagem com suas regras próprias que, no século XVII, permaneciam ainda muito

rígidas.”430 Somente em meados do século XVIII foram afrouxadas as normas para a

obtenção do hábito em uma ordem militar, como a revogação em 1773 do item “limpeza

do sangue” para se entrar na Ordem de Cristo, medida que estava atrelada ao fim da

distinção entre cristãos-velhos e novos determinada por Pombal no mesmo ano.431

Ser cavaleiro significava ter o privilégio isenção do pagamento de impostos como

também a possibilidade de um julgamento privativo.432 Essas prerrogativas de Justiça e

Fazenda tornaram-se o desejo de muitos homens de negócio por toda a colônia, não só

como uma forma de distinção social, mas, também, para a boa consecução de seus

empreendimentos. Com a ascensão de Pombal, muitos homens de negócio puderam atingir

o objetivo de se nobilitar, pois a carreira passou a ser valorizada, tornando-a compatível

com a idéia de nobreza. Exemplo da mudança de postura pode ser percebida com o

estabelecimento das companhias de comércio do Grão-Pará e Maranhão e Pernambuco e

Paraíba, para as quais o governo português procurou atrair acionistas garantindo aos

mesmos que a atuação em uma companhia seria um excelente mecanismo de se obter a

nobreza adquirida, ao invés de ser algo desonroso, estando, inclusive, os acionistas

originários capacitados a receber os hábitos das ordens militares.

Nesta mesma época, as relações comerciais da Bahia com a Costa da Mina

passavam por dificuldades. Os principais traficantes baianos sentiram-se prejudicados pela

liberdade do comércio com a região concedida pelo decreto real de 30 de março de 1756.

No ano seguinte, doze dos principais homens de negócios de Salvador, membros da Mesa

do Bem Comum, assinaram um projeto de criação de uma companhia de comércio, que

430 SILVA, op. cit., 2005, p. 106. 431 Ibidem, p. 100. 432 Ibidem, p. 103.

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seria chamada de Companhia Geral da Guiné, entre eles encontramos Luís Coelho Ferreira

(almejava o cargo de Provedor), Joaquim Inácio da Cruz (seria o vice-Provedor), Antônio

Cardoso dos Santos, Manoel Álvares de Carvalho, Frutuoso Vicente Viana (na época, era

deputado da Mesa de Inspeção), Francisco Xavier de Almeida (Inspetor da Mesa de

Inspeção).433

Segundo a proposta apresentada pelos negociantes, esta companhia teria a

exclusividade do comércio com todos os portos da Costa da Mina, sendo vedada a

presença de navios do Rio de Janeiro, permitindo apenas alguns de Pernambuco. Os navios

baianos teriam também a permissão de ir traficar em outros portos da costa africana, como

Angola e Moçambique. Propunham também a construção de um novo forte na região da

Costa da Mina para a defesa de ataques dos rivais europeus e do descalabro dos africanos.

Parece-nos que a proposta de uma companhia de comércio estaria também vinculada a uma

reação de alguns comerciantes baianos ao aumento de importância dos negociantes da

praça carioca.

O estatuto desta companhia fora inspirado nos já existentes, como a do Grão-Pará

e Maranhão. Tal como era assegurado na companhia do Norte, os homens de negócios

baianos buscavam garantir acesso ao status de nobreza para os acionistas. Aos olhos do

governo português, o pleito dos traficantes de Salvador pareceu um despautério, uma vez

que, em 1743, eles haviam rejeitado uma proposta da Coroa para a criação de uma

companhia de comércio para por ordem nos descaminhos do trato negreiro. Além disso, as

insistentes críticas à liberdade do comércio, advindas com o decreto de 1756, não foram

bem vistas pelo Primeiro Ministro. A resposta de Lisboa foi dura, bloqueando a criação da

companhia. Além disso, a Coroa pôs fim a Mesa do Bem Comum dos Homens de

Negócios da Bahia, o que ocorreu em todas as áreas do Império, passando a ser a Mesa de

433 AHU, CA, Bahia, doc. 2804.

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Inspeção a única encarregada de resolver questões relativas à atividade mercantil,

resolução que contrariava os interesses dos comerciantes baianos.434

O impedimento de criação de uma companhia de comércio retardou, mas não

impossibilitou que os principais homens de negócios da Bahia tivessem acesso aos hábitos

das ordens militares. É o que verificamos seguindo a trajetória de Antônio Cardoso dos

Santos, tido como um dos homens de negócio mais ricos, possuidor de inteligência acerca

dos preceitos mercantis e capacidade para freqüentar o comércio. Era dono na cidade de

Salvador de casa de comércio na conformidade dos grandes negociantes.435 Foi um dos

grandes traficantes a requerer frente à Coroa, no ano de 1757, o estabelecimento de uma

companhia mercantil na Bahia.

Português, natural da província do Minho, filho legítimo do lavrador Pedro

Domingues e de Antônia Francisca, Antônio Cardoso dos Santos emigrou para a Bahia na

primeira metade do século XVIII. Relatos de contemporâneos atestam a sua presença em

solo baiano no ano de 1739. Trabalhou na companhia de um tio e, depois, foi caixeiro da

casa comercial de José Francisco da Cruz Alagoa, amealhando cabedal para se inserir no

comércio transatlântico de africanos. Seus navios foram responsáveis por diversas viagens

à África para o resgate de escravos. Formou sociedade com dois outros ricos comerciantes

de cativos, Clemente José da Costa e Frutuoso Vicente Viana, que juntos, no ano de 1768,

arremataram o contrato dos dízimos reais por 125 mil cruzados.

Era natural que Antônio Cardoso dos Santos ambicionasse o reconhecimento social.

No ano de 1766, pleiteou e conseguiu o hábito da Ordem de Cristo. Sua trajetória de

sucesso não se encerra aqui. No ano de 1767, ele estava à frente dos desígnios da Ordem

Terceira de São Francisco e, em 1771, alçou ao posto de Provedor da Santa Casa de

434 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, pp. 101-8 e 119-20; SILVA, op. cit., 2005, pp. 179-80; AHU, CA, Bahia, docs. 2804, 2805. 435 CALDAS, op. cit, 1946, pp. 316-7.

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Misericórdia (nesta época o escrivão da Santa Casa era o seu sócio Frutuoso Vicente

Viana). Além dessas honrarias, ocupou os cargos de Tesoureiro Geral da Capitania da

Bahia e o de tenente-coronel do Regimento dos Úteis,436 no ano de 1781. Casou-se tarde,

na década de 1770, quando se aproximava dos 60 anos de idade, enquanto sua noiva, Ana

Joaquina de São Miguel tinha apenas 19 anos. Ela era filha do traficante de escravos

Francisco Barroso Marinho de Castro e de Ana Quitéria do Nascimento que, quando se viu

viúva, tomou as rédeas dos negócios da família, tornando-se uma ativa comerciante de

cativos africanos. Antônio Cardoso dos Santos morreu em 1786, na Bahia. Teve dois filhos

com Ana Joaquina, Pedro Antônio (1779-1818) e Ana (1783-1817).437

A aquisição de prestígio e riqueza por parte desses homens de negócio não

significava qualquer preconceito dos mesmos em relação às suas atividades. O

“enobrecimento” conquistado com a Ordem Militar não afastou Antônio Cardoso dos

Santos dos negócios negreiros. Até um ano antes de sua morte, verificamos que navios de

sua propriedade continuavam zarpando para o continente africano.438 A opção deste

armador pode evidenciar que as honras e títulos recebidos traziam respeito e

reconhecimento para aqueles que atuavam outrora numa atividade não muito bem vista,

embora a denominação de homem de negócio já o associasse ao domínio da “arte

mercantil”, ao invés das atividades comerciais “vis” do dia-a-dia. Mesmo após sua morte,

coube a jovem viúva, dona Ana Joaquina, seguindo o exemplo de sua mãe, cuidar dos

negócios do falecido marido.439 Mãe e filha estavam entre os poucos exemplos de mulheres

viúvas que se encontravam atuantes na elite mercantil baiana.

436 O Regimento da Gente Escolhida e Útil ao Estado (Regimento dos Úteis) foi instituído em 1774, pelo governador Manuel da Cunha Menezes. Tratava-se de uma tropa urbana composta pelos principais comerciantes de Salvador. O posto de comando era o de Tenente-coronel. Cf. VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, Vol. 1, 1969, pp. 244-7. 437 KENNEDY, op. cit., 1973, p. 421; SILVA, op. cit., 2005, p. 186; AHU, CA, Bahia, docs. 2804, 2805., www.slavevoyages.org 438 www.slavevoyages.org 439 Idem.

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Em 1799, Ana Joaquina constituiu novas núpcias, dessa vez com um oficial do

regimento de artilharia local, José Inácio Accioli Vasconcelos Brandão.440 Com o

casamento, José Inácio tomou a frente dos negócios empreendidos por Ana Joaquina. Em

seguida sua filha Ana, casou-se com Felisberto Caldeira Brant Pontes, nascido em

Mariana, Minas Gerais, pertencente a uma das melhores famílias mineira. Caldeira Brant

era tenente-coronel de infantaria, Inspetor Geral das Tropas e, posteriormente, ganhou o

título de marquês de Barbacena.441

Já o filho primogênito de Antônio Cardoso dos Santos, Pedro Antônio, herdou de

seu pai as prerrogativas oficiais e soube tirar proveito do casamento de sua irmã. Em

conjunto com seu cunhado, o futuro marquês de Barbacena e com o expoente negociante,

Pedro Rodrigues Bandeira, atuou em vários projetos, como a introdução em seus engenhos

na ilha de Itaparica dos primeiros moinhos a vapor e o serviço de navegação a vapor pelo

rio Paraguaçu. Ao morrer, Pedro Antônio não havia tido um filho legítimo. Toda sua

fortuna de 30:000$000 foi dividida entre a Santa Casa de Misericórdia e um crioulinho

chamado Rodozinho. Pelo fato de ainda ser criança, sua mãe, uma mulher negra,

resguardou a herança do menino.442

Para aqueles impossibilitados de serem habilitados pelas ordens militares, o

caminho era pleitear e se contentar com um título de menor prestígio, como o de familiar

do Santo Ofício que não era visto como sinal de nobreza, diferente do pertencimento a uma

das três ordens militares. Aos que solicitavam tal honra, era necessária a prova da pureza

de sangue, embora a Inquisição (instituição que outorgava a nomeação) não se preocupasse

com os antecedentes “mecânicos”. Uma condição importante para ser agraciado com a

familiatura era possuir um grande cabedal, pois havia altos gastos com deslocamento para

440 José Inácio Accioli Vasconcelos Brandão nasceu em Sergipe no ano de 1751, filho do capitão José Barros Pimentel e sobrinho do Vigário Geral da Arquidiocese Baiana. Cf. LUGAR, op. cit, 1980, p. 238. 441 LUGAR, op. cit., 1980, p. 238. 442 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 139, p. 375v.

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as diligências exigidas pela ocupação do cargo.443 Esta exigência era perfeitamente

atendida pelos ricos homens de negócio. Para estes, tornar-se membro do Santo Ofício

significava um atestado de virtuosidade de seu sangue, afastando o estigma de cristão-novo

de sua família. Era um passo importante para posteriormente se obter honrarias maiores

que lhe conferisse o status de nobre. Na América portuguesa, entre 1570 a 1820, foram

concedidas 3.114 habilitações de familiares, dos quais mais da metade (1.813) foram para

homens de negócio, sendo que no período de 1721-1770, quando os membros do grupo

mercantil galgavam por reconhecimento social, eles foram agraciados com 1.114 dos 1.687

ofertados.444

Um desses títulos foi obtido por David de Oliveira Lopes, um dos maiores homens

de negócio da praça mercantil de Salvador. Natural da Comarca de Guimarães, norte de

Portugal, comerciava com a metrópole e diversos portos do continente africano.445 Com

Luís Coelho Ferreira, de quem foi sócio, montou uma expedição para o resgate de escravos

nos distantes portos de Moçambique, no ano de 1760.446 A estratégia de David de Oliveira

Lopes para conseguir sua nobilitação parece ter seguido o percurso apontado no parágrafo

anterior. Após ser reconhecido como familiar do Santo Ofício, tornou-se cavaleiro da

Ordem de Cristo. No ano de 1771, teve seu pedido aceito para se tornar membro da Santa

Casa de Misericórdia. Estava também incluído no Regimento dos Úteis quando da sua

constituição, em 1774.

Tal como seu par, Antônio Cardoso dos Santos, David de Oliveira Lopes se

manteve atuante no trato de africanos até pouco antes de sua morte, ocorrida em 1782.447

Sem dúvida, a obtenção do título de cavaleiro em uma dessas ordens era uma das formas

443 SILVA, op. cit., 2005, pp. 159-61. 444 Ibidem, pp.163-5. 445 CALDAS, op. cit., 1946, pp. 317-21; www.slavevoyages.org 446 www.slavevoyages.org 447 ALVES, Marieta. “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII, na Bahia”. In: Revista de História de São Paulo, São Paulo, n.º 81, 1970, p. 182.

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de nobilitação mais almejadas pelos homens de negócios, mas isso não significava o

abandono do modo de vida mercantil.

Alguns traficantes tinham que se contentar com apenas o título de familiar do Santo

Ofício, como no caso de Teodósio Gonçalves da Silva, que Catherine Lugar classificou

como sendo um típico “mercador benfeitor sem filho”.448 Português, natural da província do

Minho, nascido em 1725,449 era filho de pais lavradores, donos de suas próprias terras.450

Emigrou para a Bahia ainda na primeira metade do século XVIII, se inserindo na atividade

mercantil. Dez anos depois sua chegada, tornou-se administrador do trapiche de açúcar

chamado Julião, de propriedade do expoente comerciante e traficante de escravos, Simão

Pinto de Queiroz, português oriundo da região do Douro.451 Casou-se, em 1760, com Ana de

Sousa Queiroz e Silva, filha do seu patrão. Em sociedade com seu irmão, José Gonçalves da

Silva, e sobrinho, Antônio Dias de Castro Mascarenhas, constituíram uma grande fortuna

com o comércio para Portugal, Ásia, África e de cabotagem na América portuguesa, sendo

proprietário de seis navios, um engenho em Jaguaripe, propriedades urbanas e destilaria na

cidade de Salvador.452

Seu sobrinho soube se aproveitar das relações desenvolvidas previamente por ele,

pois constituiu matrimônio, casando-se com outra filha de Simão Pinto Queirós, Maria

Vitória de Jesus. Quando da morte de Simão Pinto Queirós, Antônio Dias Mascarenhas

herdou o trapiche Julião e Gonçalves da Silva adquiriu o trapiche vizinho, Barnabé.453

448 Catherine Lugar estipulou três categorias de comerciantes existentes em Salvador entre 1780 e 1830: o mercador benfeitor sem filhos; o comerciante-senhor de engenhos; o comerciante solteiro. Acreditamos não ser uma boa divisão para marcar os diversos perfis de mercador porque muitos deles podiam ser enquadrados nas três categorias mencionadas, como, por exemplo, Pedro Rodrigues Bandeira, filho. Cf. LUGAR, op. cit., 1980, pp. 226-47. 449 BARROS, op. cit., s/d, passim. 450 SILVA, op. cit., 2005, p. 185. 451 AHU, Bahia, docs. 4.467, 4.468, 5522, 5523, 5551. 452 AHU, Bahia, docs. 11651; 11652; 11653; 11654; 11792; 11793; 11794; KENNEDY, op. cit., 1973, p. 420. 453 APEB, Judiciário, livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador, livro 106, p. 65.

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Familiar do Santo Ofício desde 1753, Teodósio Gonçalves da Silva foi nomeado

mestre-de-campo no ano de 1796. Mas seu desejo era o de conseguir um hábito de ordem

militar. Prerrogativas não lhe faltavam. Em busca de seu sonho, chegou a ocupar o cargo de

Provedor da Santa Casa de Misericórdia na Bahia.454 Por volta de 1782, ele e sua esposa

tinham uma fortuna calculada em cerca de 212:000$000. Sem filhos, começaram a se

desfazer de sua riqueza. Só a Misericórdia recebeu de doação aproximadamente

48:000$000.455 Para seu sobrinho legou bens no valor de 105:000$000.456 O rico traficante

morreu no ano de 1803, sem ver o seu desejo de tornar-se membro de uma ordem militar

realizado. Sua esposa, D. Ana de Sousa Queirós e Silva, faleceu um ano depois.457

Ser membro de uma irmandade

Como já observado em alguns exemplos anteriores, para além da nomeação do

título de familiar do Santo Ofício e cavaleiro de uma Ordem Militar a inserção em

associações de irmandades e ordens religiosas era mais um caminho a ser seguido para se

obter status na sociedade colonial baiana. A mais prestigiosa dessas instituições foi a Santa

Casa de Misericórdia, fundada na Bahia, em meados do século XVI.458 Para David Smith,

a entrada de homens de negócios na Santa Casa se deu desde o século XVII, contrapondo-

se ao estudo de Russel-Wood que defende que esse movimento se iniciou apenas no início

do século XVIII, quando os comerciantes baianos começaram a suplantar as riquezas dos

proprietários rurais.459 Segundo Smith, entre 1663 e 1685, 33 dos 223 homens admitidos na

classe superior da Misericórdia eram homens de negócio.460 Corroborando esta tese, Rae

454 BARROS, op. cit., s/d. 455 LUGAR, op. cit., 1980, p. 243. 456 APEB, judiciário Inventário do casal Teodósio Gonçaves Dias e Ana de Sousa Queirós, 1804. 457 ALVES, Marieta. “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII, na Bahia”. In: Revista de História de São Paulo, São Paulo, n.º 70, 1967, pp. 542-3. 458 Sobre a história da Santa Casa de Misericórdia na Bahia cf. RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981. 459 SMITH, op. cit., 1975, pp. 386-7; RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981. 460 Idem.

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Flory aponta que entre 1673 e 1700, pelo menos 54 dos 324 homens admitidos como

irmãos de alta posição eram negociantes.461 Na primeira metade do Setecentos, aferimos

que dos 34 Provedores da Santa Casa que foram eleitos, pelo menos sete destes homens

eram traficantes de escravos.462 Já entre os anos de 1780 e 1800, Catherine Lugar

contabilizou ser negociantes 27% dos irmãos de alta posição e os de menor envergadura, a

presença de mercadores correspondia a 61% do total.463

A importância desempenhada pelos homens de negócio na cidade de Salvador, por

volta de meados do século XVIII, ganhava cada vez mais relevo. Assim, preteridos de ter

acesso as mais prestigiosas irmandades coloniais, resolveram eles próprios criar a sua

própria confraria: a de Santo Antônio da Barra.464 Segundo Catherine Lugar, a maioria de

seus membros estava engajada no tráfico de escravos na Costa da Mina.465

Havia também as instituições religiosas responsáveis pelo acolhimento de mulheres

oriundas de prestigiosas famílias. Alguns mercadores, na impossibilidade de arrumar bons

casamentos para suas filhas recorriam ao convento de Santa Clara do Desterro em

Salvador, primeiro convento fundado na América portuguesa, em 1677. Para lá, eram

enviadas as filhas das melhores famílias baianas. Ao pleitear uma vaga, o pai tinha que

contribuir com um vultoso dote, provar a idade da filha, que a mesma era batizada e tinha

“sangue puro”.466 Ter o “sangue puro ou limpo” significava não ter nenhum resquício da

presença de judeu, mouro ou negro na sua ascendência familiar. A maior preocupação das

autoridades era com os cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo).

461 FLORY, op. cit., 1978, p. 262. 462 São eles: Pedro Barbosa Leal (1703; 1704), José de Araújo Rocha (1716), Antônio Ferrão Castelo Branco (1718), Antônio Gonçalves da Rocha (1725), Francisco Lopes Vilas Boas (1726), André Marques (1739, 1749), Custódio da Silva Guimarães (1743); RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, pp. 115 e 295-8; www.slavevoyages.org 463 LUGAR, op. cit., 1980, p. 225. 464 RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 50 465 LUGAR, op. cit., 1980, p. 222. 466 SOEIRO, Susan. “The Social and economic role of convent: women and nuns in Colonial Bahia, 1677-1800”. In: Hispanic American Historical Review(HAHR), 1974, p. 214.

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Embora tivessem um peso menor na comunidade dos homens de negócio em

comparação com a cidade de Lisboa, os cristãos-novos também desempenharam um

importante papel econômico na sociedade baiana.467 A esses homens era vedada a

possibilidade de ser membro da Santa Casa de Misericórdia ou de ter algum familiar como

parte do Desterro. Ser aceito por uma irmandade religiosa, como a Santa Casa ou o

Desterro, era a chance de provar que o sangue de sua família era imaculado. Porém, nos

parece que muitos comerciantes cristãos-novos podem ter pertencido a essas irmandades

devido às dificuldades da época de se comprovar a “pureza do sangue” de uma pessoa,

como nos alerta David Smith.468 De todo modo, não sendo aceito na Misericórdia, o

cristão-novo poderia optar por entrar na Ordem Terceira dos Carmelitas, onde não havia a

necessidade de provar que o sangue de sua família estava “limpo”. Não nos surpreende,

portanto, que devido à ausência de comprovação, os comerciantes compunham a maior

parcela dos membros da Ordem Terceira das Carmelitas, desde o século XVII.469

Acesso a postos da governança local

Outra forma de se alcançar reconhecimento social e privilégios se dava mediante a

ocupação de postos em órgãos da governança colonial, como os cargos da Câmara

Municipal. Exercer um dos principais ofícios camaristas significava ascensão ao status de

nobreza ou, pelos menos, da afirmação da condição de nobre. Sendo assim, segundo Maria

467 FLORY & SMITH, op. cit., 1978, pp. 585-6. 468 Segundo este autor não havia na época colonial uma metodologia confiável e eficiente para determinar a ascendência judaica de um sujeito. A fonte mais utilizada pelos contemporâneos era o pertencimento à Santa Casa de Misericórdia, que comprovaria o sangue imaculado do indivíduo. De todo modo, mesmo após ser aceito pela Misericórdia, sobre alguns ainda pairavam dúvidas acerca de sua ascendência, principalmente sobre os homens de negócio, por possuírem uma associação pretérita com o povo judeu. A principal estratégia utilizada por esses homens era deixar fortunas de herança para a Santa Casa quando de sua morte. Desta forma, acreditavam que dissipariam qualquer resto de dúvida que ainda persistissem sobre a pureza do sangue de sua família. Cf. SMITH, op. cit., 1975, p. 281; 388. 469 Ibidem, pp. 389-90. Sobre a atividade profissional dos irmãos das Ordens Terceiras de Salvador cf. MARTINEZ, Socorro Targino. Ordens Terceiras: ideologia e arquitetura. Salvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 1979, dissertação (mestrado), pp. 125-30.

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Fernanda Bicalho, a participação da administração local via Câmara foi um dos mais

concorridos mecanismos de nobilitação, pois fornecia diversas prerrogativas políticas.470

Para além do reconhecimento social, propiciava aos ocupantes vantagens financeiras com o

recebimento de emolumentos.

A Câmara era a principal instância local de decisão. Suas competências abrangiam

as atividades sócio-econômicas e a gestão da vida cotidiana. Entre suas funções

preponderantes estavam a de fiscalizar, disciplinar, regular, orientar e, em alguns casos,

penalizar, todas outorgadas aos seus ocupantes.471 Os preços também eram estipulados pela

Câmara, assunto que era de extremo interesse dos comerciantes.

Se, por um lado, era grande a abrangência de atuação da Câmara, por outro, eram

poucos aqueles que tinham competência para exercer tais funções. Segundo Avanete

Sousa, no século XVIII, o poder local em Salvador encontrava-se nas mãos de um seleto

grupo de indivíduos, destacados por suas origens nobiliárquicas, por sua situação social,

riqueza e ascendência familiar. Essas pessoas eram identificadas como principais da terra,

monopolizando as instituições políticas locais, configurando uma elite camarária que

ocupava os cargos públicos da municipalidade, criando obstáculos e dificultando, assim, a

inserção de outros segmentos sociais ao poder de decisão sobre a coisa pública.472

Até o ano de 1740, os ocupantes desses cargos camarários eram oriundos do setor

agrário. A partir desta data, a configuração do estatuto social desses oficiais sofreu

alterações, devido à ordem real de D. João V que possibilitou aos homens de negócio fazer

parte das listas eleitorais, concorrendo para o posto de conselheiros municipais, tornando-

470 BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império.” In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima; (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 207. 471 SOUSA, Avante Pereira. “Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o Senado da Câmara da Bahia (século XVIII).” In: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 318. 472 SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2003, tese (doutorado), p. 348

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os capazes de desempenhar cargos públicos.473 Sem dúvida, a Coroa com essa medida

procurava atrair para junto de si, homens possuidores de extensos cabedais.

Essa medida rapidamente se refletiu no perfil dos homens que tinham acesso aos

cargos da Câmara. Analisando o século XVIII, como um todo, do ponto de vista das

origens econômico-sociais, Avanete Sousa verificou que havia uma certa heterogeneidade

na constituição da nobreza camarária, sobressaindo-se componentes ligados às atividades

agrárias (cerca de 50%), seguidos por agentes mercantis (aproximadamente 20%),

burocráticos e por aqueles que enquadramos como sendo comerciantes-senhores de

engenho, o que reafirma a idéia de que ainda não havia uma distinção clara entre essas

duas categorias sociais. Embora pertencentes a diferentes segmentos da sociedade, os

oficiais da Câmara formavam um grupo composto por indivíduos que detinham condições

privilegiadas concernente a aspectos econômicos, morais e sócio-culturais.474 A seguir,

temos alguns exemplos que apontam o desempenho de comerciantes de escravos nestes

cargos.

Luís Coelho Ferreira, Familiar do Santo Ofício, foi um dos negociantes mais

atuantes tanto no comércio atlântico de escravos quanto na sua redistribuição para as áreas

mineradoras da América portuguesa. Era também tido por José Antônio Caldas como um

dos “(...) homens de negócios em que na cidade da Bahia se considera maior inteligência

nos preceitos mercantis, e capacidade para freqüentar o comércio (...)”.475 Como já

mencionado anteriormente, em 1757, Luís Coelho Ferreira em conjunto com outros 11

traficantes reivindicou a criação na Bahia de uma companhia de comércio para resgatar

escravos na Costa da Mina, proposta essa que se mostrou infrutífera. Entre 1760-70, Luís

473 RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 50. 474 SOUSA, op. cit., 2005, p. 319. 475 CALDAS, op. cit., 1946.

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remeteu para as Gerais e Goiás 17 levas de escravos.476 Atuou como procurador da

Câmara em duas oportunidades, em 1748 e em 1767. Na década de 1760, arrematou por 16

mil cruzados (6:400$000) a hereditariedade do cargo de Guarda-mor da Alfândega da

Bahia. Como mestre-de-campo foi comandante de um dos terços auxiliares na cidade de

Salvador. Próximo ao ano de seu falecimento (1784), fez um requerimento à Coroa

portuguesa solicitando a renúncia do cargo de Guarda-mor em prol de seu filho, Luís

Coelho Ferreira do Vale Faria, então Desembargador da Relação da Bahia. Este cargo

permaneceu em poder da família até 1799, quando o, então, vereador do Senado da

Câmara de Salvador, Luís Coelho Ferreira do Vale Faria, renunciou ao posto devido a

compromissos com outras atividades administrativas.477 Já a filha de Luís Coelho Ferreira,

Luísa Francisca Severim, casou-se, em 1769, com Antônio Moniz Barreto de Sousa e

Aragão, sargento-mor, fidalgo cavaleiro da Casa Real e membro de uma das principais

famílias baianas ligadas à terra, os Moniz Barreto,478 marcando a relação que existia entre

componentes da elite mercantil com os da agrária.

Assim como Luís Coelho Ferreira, outros traficantes atuaram em cargos

administrativos como Clemente José da Costa, natural de Lisboa, que antecedeu o próprio

Luís no cargo de Guarda-mor, arrematado no ano de 1757 por um período de três anos ao

custo de 750$000.479 Este traficante, que fora membro da Mesa do Bem Comum extinta em

1757, recebeu a honra de pertencer à família do Santo Ofício. Ocupou outros cargos de

prestígio como os de Ministro da Ordem Terceira de São Francisco (1768) e de Provedor

476 APEB, Códice 249; www.slavevoyages.org 477 KENNEDY, op. cit., 1973, p. 421; AHU, Bahia, docs. 6530; 11537; 13054; 13641; 13673; 13792; 15011. 478 JABOATÃO, Fr. Antônio de S. Maria (adaptado por Afonso Costa). Genealogia baiana ou o catálogo genealógico de Fr. Antônio de S. Maria Jaboatão, adaptado e desenvolvido por Afonso Costa. RIHGB, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, vol. 191, abril-junho 1946, p. 39. 479 AHU, Bahia, doc. 10229.

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388

da Santa Casa (1772).480 No trato negreiro, constituiu sociedade com grandes homens de

negócio, como Antônio Cardoso dos Santos e Frutuoso Vicente Viana.

Trajetória parecida teve seu irmão, Inocêncio José da Costa, também natural de

Lisboa. Especialista no tráfico atlântico foi procurador da administração do tabaco na

Bahia.481 Familiar do Santo Ofício, Inocêncio ocupou também os prestigiosos cargos de

Provedor da Santa Casa de Misericórdia, em 1782, tendo sido reeleito em duas

oportunidades, e de Prior da Ordem Terceira do Carmo, sagrando-se benemérito. Os

irmãos Inocêncio e Clemente José da Costa foram nomeados como membros do

Regimento dos Úteis no ano de sua fundação em 1774 juntamente com os principais

homens de negócios da Bahia. Nesta listagem constavam também os nomes de Pedro

Rodrigues Bandeira (pai), Luís Coelho Ferreira, David de Oliveira Lopes, Antônio

Cardoso dos Santos e Manuel do Ó Freire. Em 1796, Inocêncio José da Costa foi agraciado

pela rainha D. Maria com o título de tenente-coronel do Regimento dos Úteis.482

Ao acompanhar a trajetória de alguns homens de negócio, podemos sugerir que a

ligação entre os traficantes e a governança colonial visava a atender não só os interesses do

grupo mercantil, como também da elite administrativa, da qual faziam parte muitos

comerciantes. Os mercadores de escravos, devido à alta rentabilidade de seus

empreendimentos, podiam oferecer aos membros da governança em Salvador,

oportunidades de negócios e vultosos empréstimos, muitos dos quais nunca saldados. Ao

mesmo tempo, essas conexões garantiam ao mercador proteção aos seus negócios, muitas

vezes sendo favorecido em disputas comerciais, isenção de pagamento de algumas taxas e,

até mesmo, tolerância de atividades ilegais como o contrabando de ouro para a África.

480 ALVES Marieta. “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII, na Bahia”. In: Revista de História de São Paulo, São Paulo, n.º 67, 1969, p. 98. 481 KENNEDY, op. cit., 1973, p. 421; www.slavevoyages.org 482 AHU, Bahia, docs. 14436, 14564.

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389

Cabe ressaltar mais uma vez que tanto as alianças com a elite agrária quanto com a elite

administrativa visavam ao prestígio e ao reconhecimento social desses homens de negócio.

O investimento em terras

O investimento em bens rurais foi também bastante difundido entre os homens de

negócios, como mostramos no capítulo 2. Cerca de 30 % dos investimentos dos

comerciantes eram direcionados para aquisição de bens agrários. Embora tenham

participado em apenas 8,6% das transações, o montante aplicado por eles no agro

representou 15,7% do total.483 Eram propriedades focadas na plantação de cana-de-açúcar

e tabaco na área do Recôncavo Baiano e em fazendas de criação de gado no sertão. Nestas

fazendas produziam o fumo e a aguardente indispensáveis no comércio em portos

africanos.

A posse de bens rurais tinha outra finalidade econômica. Servia também para

garantir o pagamento de empréstimos efetuados na praça. Esse artifício foi observado por

John Kicza na Cidade do México colonial. Aqueles que possuíssem uma propriedade rural

com suas benfeitorias tinham mais facilidade em obter crédito.484

Mesmo aplicando capital em propriedades rurais, os traficantes permaneciam

focados em sua carreira mercantil, devido à alta rentabilidade do comércio de africanos.

Muitas vezes eram os filhos desses mercadores que comandavam os negócios da família no

meio rural. Essa era uma estratégia na qual os maiores homens de negócio baianos

utilizavam para desviar seus filhos das práticas mercantis, estabelecendo-os como senhores

de terras em áreas próximas a cidade de Salvador, adicionando status e prestígio a suas

famílias.485

483 Cf. capítulo 2. 484 KICZA, op. cit., 1986, pp. 34-5. 485 KENNEDY, op. cit., 1973, pp. 423-4; FLORY & SMITH, op. cit., 1978, pp. 576-82. Fernand Braudel

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Foi o que fez o capitão e homem de negócio Bernardo da Rocha e Sousa. No ano de

1779, comprou de Francisco do Amaral pela quantia de 800$000 uma fazenda de plantar

cana numa freguesia rural de Salvador.486 A posse de terras não significava o abandono da

carreira mercantil. Contudo, era uma tentativa de direcionar sua família para atividades

outras que acarretassem prestígio ao seu sobrenome.

Segundo Alice Canabrava, na colônia sem terra ninguém era considerado de fato

“rico”. Assim, na fortuna de muitos homens de negócio, em sua maior parte mobiliária,

existia um grande percentual de componentes agrários, uma vez que a posse da terra era

base indispensável para o prestígio social.487 Não por acaso, havia uma disseminação nos

inventários baianos da posse de propriedades rurais.488

Tornar-se um proprietário de terras poderia ser o primeiro passo para se transformar

num senhor de engenho. Essa busca por um novo estilo de vida estava ligada às aspirações

de uma sociedade fundada em valores aristocráticos e nos ideais de fidalguia, prestígio,

honra e privilégios. Desta forma, buscavam na aquisição de bens rurais a realização desses

valores, um status de nobreza que ela oferecia.

aponta que em sociedades preocupadas com a manutenção de hierarquia excludentes, como a européia entre os séculos XV-XVIII, nem sempre os excedentes econômicos tinham uma direção produtiva, sendo estes, de modo recorrente, aplicados no sentido de adquirir status social. Exemplo disso seriam os comerciantes atacadistas que, após acumularem grandes fortunas, compraram terras visando a promoção social, muito embora esse tipo de investimento não lhes fornecesse o mesmo montante de capitais que as atividades comerciais. Cf. BRAUDEL, op. cit., 1996, pp.125-128 e 215-218. 486 APEB, Judiciário, livros de notas do 1., 2. e 3. ofícios de Salvador, livro 120, p. 232. 487 CANABRAVA, Alice “Decadência e riqueza”. In: Revista de História. São Paulo: v. 50, n. 100, 1974. pp. 365-6. 488 MASCARENHAS, op. cit., 1998, p. 121.

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Ocupação de postos de ordenança

Uma outra estratégia no acúmulo de prestígio e reconhecimento social por parte dos

comerciantes era a obtenção de altos postos no Regimento das Companhias de Ordenança,

como pudemos observar nos diversos exemplos de carreiras citadas anteriormente. Muitos

desses homens buscavam as patentes de capitão, sargento-mor e tenente-coronel (a patente

mais alta) das forças regulares organizadas nas paróquias e distritos de Salvador. Já na

década de 1680, quatro dos oito postos de capitão da cidade de Salvador eram ocupados

por homens de negócios. Entre os anos de 1718-1720, 63 indivíduos preencheram o posto

de capitão de companhias sendo que mais de um terço eram comerciantes. Muitos foram

posteriormente alçados ao posto de sargento-mor. Este é o caso do negreiro Bernabé

Cardoso Pereira Ribeiro que ganhou o título de capitão de companhia no ano de 1716 e o

de sargento-mor, em 1721.489 Em Pernambuco, tal como na Bahia, os negociantes

vislumbravam o reconhecimento social ocupando um dos postos da Ordenança, constituído

de pessoas idôneas e capazes.490

Em meados do século XVIII, foram instituídos os terços de auxiliares, sendo que o

posto de mestre-de-campo (similar ao de um coronel) era o de maior prestígio e também o

mais cobiçado, pois tinha como primazia o controle de tropas de um terço. Um mestre-de-

campo poderia eventualmente substituir um governador de Capitania por um determinado

período. Ser possuidor de um desses títulos não era necessariamente indicativo de façanhas

militares, mas, sim, de prestígio e poder. Isso era mais evidente nas localidades para além

da cidade, onde um oficial militar poderia representar a única autoridade institucional. Até

1709, os postos das ordenanças eram controlados pelas famílias mais tradicionais, uma vez

que eram as câmaras, compostas em sua maioria pela aristocracia agrária, as responsáveis

pelas indicações. Tal panorama começou a mudar com a crescente inserção de homens de 489 SMITH & FLORY, op. cit., 1978, pp. 587-8. 490 SILVA, op. cit., 2005, p. 153.

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negócio nos cargos camarários. Em 1709, o processo de indicação foi alterado. A partir

desta data, as câmaras junto com o ouvidor da comarca teriam que indicar três nomes ao

rei que escolheria, baseado em consultas ao Conselho de Guerra, o nome mais apropriado.

A nomeação do título de maior prestígio dos terços de auxiliares, o de mestre-de-campo,

também ocorria a partir de uma lista tríplice indicada pelo governador da província. Após

uma consulta ao Conselho Ultramarino, o monarca fazia sua escolha. Ao longo do século

XVIII e primeiras décadas do século XIX, pelo menos dez comerciantes de escravos

tiveram a honra de atingir tal posto. 491

É claro que nem todos os traficantes de escravos tornaram-se homens poderosos

com vultosas fortunas, possuidores de prestígio e merecedores de respeitabilidade por parte

da sociedade baiana colonial. Muitos negociantes tiveram insucessos nas suas investidas

comerciais devido ao risco inerente ao tráfico de escravos – mortes, fugas, raptos, etc.

Outros, talvez por escolha, ou uso de uma estratégia que se mostrou equivocada não

puderam desempenhar um papel de destaque na vida político-social na Bahia.492

Manoel do Ó Freire, português natural de Lisboa, é um exemplo típico de um

homem de negócio da Bahia que vivenciou altos e baixos na sua vida social. Devido à

fortuna acumulada e as relações empreendidas a partir do tráfico de escravo, Manoel do Ó

Freire fora admitido como irmão da Santa Casa de Misericórdia no ano de 1776. Foi

listado juntamente com outros importantes homens de negócios como sendo possuidor de

grande inteligência para atividades mercantis.493 Mantinha negócios com Portugal e África.

Contudo, sua sorte mudou com o apresamento de um de seus navios no litoral da Costa da

491 São eles: Antônio Cardoso dos Santos, Antônio de Almeida Viana, Inácio Antunes Guimarães, Inocêncio José da Costa, José Inácio Aviaivoli Vasconcelos Brandão, José Pinheiro de Queirós, Luís Coelho Ferreira, Pedro Barbosa Leal, Teodósio Gonçalves da Silva e Teodósio Gonçalves Dias. Cf. www.slavevoyages.org 492 Mais uma vez me apoio nas análises do atropólogo Fredrik Barth sobre as opções de escolhas individuais. Cf. BARTH, op .cit., 2000. 493 CALDAS, op. cit., 1946, p. 317.

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Mina, que lhe gerou vultosos prejuízos.494 Manoel procurou reverter sua situação cobrando

de seus devedores dívidas antigas. No ano de 1785, confiscou o engenho Boca do Rio,

localizado na paróquia do Paripe, em Salvador. Não foi a primeira tentativa de arresto por

parte do comerciante. Anteriormente suas tentativas foram impedidas pelo governador

baseado nas leis de 1663 e 1723, que vedava a execução da hipoteca quando estava em

jogo um engenho. Manoel do Ó Freire conseguiu executar a dívida porque seu mutuário

deixou de pagar as prestações anuais. Contudo, o caso não se encerrou. O devedor entrou

na justiça e a disputa se desenrolou por mais de nove anos. Durante todo o tempo o

engenho permaneceu inativo.495 Quando finalmente ganhou a causa, Manoel do Ó Freire se

encontrava em total estado de penúria, sem dinheiro para investir na manutenção do

engenho. Sua situação econômica em 1800 (ano de sua morte) era descrita como precária

por contemporâneos.496

A partir da análise das trajetórias pessoais de alguns traficantes de escravos,

verificamos a grande mobilidade geográfica e social possibilitada pela inserção no grupo

mercantil de Salvador. Nesta cidade, são inúmeros os casos bem sucedidos de traficantes,

na sua maioria portugueses oriundos de uma região pobre, no norte de Portugal, que

conseguiram se estabelecer, enriquecer e galgar respeitabilidade social, inserindo-se no

interior da elite baiana, durante o período colonial, muitas vezes atingindo status de nobre.

Esta mobilidade social se deveu ao caráter da economia colonial onde predominava um

regime compulsório de produção, caracterizado pela debilidade da circulação monetária

que reduzia as opções de investimento, restringindo a riqueza a um pequeno número de

494 www.slavevoyages.org 495 AHU, Bahia, doc 25395. 496 BARROS, op. cit..; CALDAS, op. cit., 1946.

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agentes econômicos que detinham liquidez suficiente para por em funcionamento os

mecanismos econômicos para além de esferas locais, motivo pelo qual a circulação de

mercadorias a longa distância surgia como o grande mecanismo de acumulação da época,

em especial o tráfico de africanos.

Ao se diferenciar dos demais comerciantes, os homens de negócio passaram ser

bem visto pela sociedade, não mais como indivíduos ligados a uma atividade mecânica,

mas, sim, como aqueles que dominam a “arte mercantil”. Puderam, desta forma, fazer

alguns cálculos econômicos que lhes garantissem uma projeção social com o intuito de se

aproximar e até mesmo se inserir entre a elite local. A busca por prestígio e status social

guiou a carreira de muitos dos comerciantes de escravos baianos, utilizando-se para isso

diversos mecanismos de enobrecimento que estavam disponíveis. Nem sempre foram bem-

sucedidos. Havia o elemento imponderável, uma vez que, esses homens de negócio não

dominavam racionalmente todos os aspectos do mundo que o cercava. O fracasso era uma

possibilidade factível.

Assim, não queremos aqui defender que todos os comerciantes de escravos na

Bahia colonial obtiveram sucesso almejado, mas apenas indicar que a estes homens,

principalmente aos maiores traficantes, possuidores de grandes fortunas, foi possível

buscar ao longo de suas vidas, a partir de cálculos e instrumentos disponibilizados pela

sociedade de Antigo Regime, prestígio e a respeitabilidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Em um período de cinqüenta anos pudemos verificar as transformações pelas quais

passou a cidade de Salvador. Assim, diferente do que alguns clássicos costumam apontar, a

época colonial não era estática.497 Muitas foram as alterações observadas na sociedade

baiana por nós analisada, rompendo com a idéia de que a história colonial foi homogênea

durante todo o tempo.

Essa percepção de mudança fica mais evidente quando confrontamos os aspectos

por nós apontados e analisados com àqueles trabalhados por Rae Flory.498 A autora

concentrou sua análise na cidade de Salvador no momento de transição entre os séculos

XVII e XVIII. Contudo, exceção feita a um aumento da atuação dos homens de negócio,

Flory não apontou modificações pelas quais passava a sociedade colonial da época. Assim,

trabalhou, as últimas décadas do Seiscentos e as primeiras do Setecentos como um bloco

uniforme. A partir de nossa análise, verificamos que foram muitas as modificações

percebidas nessa sociedade, não só do fortalecimento dos homens de negócio, mas também

do aumento do capital mercantil nas diversas funções sócio-econômicas da cidade; da

mutação do perfil do sistema de crédito; do crescimento do mercado como veículo

primordial no acesso aos bens; nas transformações verificadas no agro, com a expansão da

lavoura açucareira e de outras culturas como o tabaco e a mandioca, caudatários da

ampliação do tráfico internacional de africanos. Observamos também a entrada de muitos

agentes mercantis no setor rural mediante aquisição de terras pelo mercado. Aqui cabe

observar que Vera Ferlini em seu estudo sobre as conjunturas pela qual passava o agro

baiano, termina sua análise sem perceber grandes alterações, como se a “sociedade do

497 NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1983; PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977. 498 FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar platers, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Austin, The University of Texas, 1978, tese (doutorado).

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açúcar” do início do século XVII fosse igual àquela verificada na segunda metade do

século XVIII.499

Em nosso trabalho, como mencionado anteriormente, várias foram as mudanças

observadas no período analisado. Elas refletem sobretudo o desenvolvimento da atividade

comercial e o fortalecimento do grupo mercantil na atuação sócio-econômica da cidade.

Não é de se estranhar, pois, que esses indivíduos buscassem com mais vigor a inserção no

interior da elite colonial e dela passassem a fazer parte.

A que se ressaltar o papel desempenhado pelo porto de Salvador, importante elo de

conecções mercantis que interligavam a capital da colônia a diversas partes do Império

localizadas na Europa, Ásia, África ou interior da América portuguesa. Nesse sentido

ressaltamos a atuação primordial do comércio de escravos africanos. O tráfico negreiro

estruturado de forma bilateral pôs em contato regiões das duas margens do Atlântico. Pelo

oceano, chegavam a Salvador escravos oriundos de vários recantos do continente africano,

que eram posteriormente redistribuídos para diversas regiões da América lusitana,

transformando e matizando a paisagem humana no Brasil. Do mesmo modo, tornou-se um

mecanismo fundamental no fluxo de recursos para a capital baiana.

O fortalecimento da atividade comercial bem como as atuações do grupo mercantil

tornaram-se preponderante no último quarto do século XVIII. Assim, os homens de

negócio envolvidos com comércio de longa distância passaram a controlar o sistema

creditício de Salvador, isso porque esses agentes sociais, ao terem o controle da liquidez da

economia, puderam disponibilizar para toda a sociedade capital em forma de crédito,

ocupando um espaço antes reservado as instituições coloniais.

Ao caminhar para um novo século, a cidade de Salvador se mercantilizava

rapidamente. Em meados do Setecentos havia uma predominância nas formas não- 499 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003

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mercantis de acesso às propriedades, padrão que foi modificado com o incremento da

atividade comercial. O acesso aos bens passa a ser feitos majoritariamente pelo mercado.

Desta forma, o peso das aquisições que se davam mediante arrematação e compra

suplantaram a soma de todas as demais tanto no que se refere aos bens rurais como aos

bens urbanos, sem falar na quase totalidade dos bens comerciais e embarcações. Mesmo os

bens de natureza rural estavam destinados a passar pelo mercado, tornando-se junto com os

bens da urbe em instrumento fundamental na acumulação de capital. Assim, as escolhas e

estratégias de reprodução de hierarquias sociais passaram a se pautar cada vez mais pelas

conjunturas mercantis.

Nesse sentido, a prevalência do capital mercantil modificou o mercado de compra e

venda de bens, ganhando destaque àqueles associados à urbe e ao comércio. Embora, tenha

sua representatividade diminuída, o investimento no setor agrário não desapareceu,

atraindo cerca de um terço dos investimentos, marcando dessa maneira um traço estrutural

da sociedade. Essa era uma característica dos homens de negócio, qual seja: a busca pela

diversificação de seus investimentos e nela, ainda que de forma menos expressiva residia a

opção por bens agrários. Assim, no fim do Setecentos, ao falarmos de elite colonial em

Salvador, devemos observar que estamos lidando com um grupo cada vez mais

heterogêneo, com um grande contingente de indivíduos originários da atividade mercantil.

No findar do século XVIII a sociedade soteropolitana não se reconheceria mais

como aquela de meados do mesmo século. Havia mudado. Tornara-se mais dinâmica.

Fruto principalmente do desenvolvimento mercantil e do aumento da participação dos

homens de negócio estabelecidos em Salvador.

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FONTES E

BIBLIOGRAFIA

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400

1. Fontes

1.1. Primárias Manuscritas

Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)

Licenças para navegar, códices 439, 440, 443, 449, 456 e 626-3

Códice 249

Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador

(livros 90, 91, 92, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110,

111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128,

129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139).

Inventário post-mortem Antônio Nunes Leitão, 1768, 4/1592/2061/9.

Custódia Ferreira Dias, 1801,4/1741/221/5.

Domingos da Costa Braga, 1793, 04/1575/2044/02.

Manoel Pereira de Andrade, 1793, 4/594/2063/7.

Maria Joaquina de Barros, 1808,8/3299/3.

Maria Pereira Rangel e João Ribeiro da Silva, 1790, 4/1760/2230/4.

Teodósio Gonçaves Dias e Ana de Sousa Queirós, 1804.

Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AHMS)

Livros de visita da saúde (códices 178.1 e 182.1.)

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)

Coleção Castro Almeida – Bahia

Docs.: 1777; 2084, 2085, 2320; 2321; 4467, 4468, 5522, 5523, 5551, 6530; 8055, 8806; 8875, 8904; 9240; 9250; 9625, 9724; 9725; 9730; 9731, 10225, 10229, 11651; 11652; 11653; 11654; 11792; 11793; 11794, 11537; 12054; 12190, 12857; 13284;13054; 13037; 13038; 13039; 13144; 13145; 13146, 13641; 13673; 13792; 14436, 14564, 15011, 18296; 18315; 18296; 18298; 18299; 18300; 18301; 18302; 18305; 18306; 18307; 18308; 18309; 18310; 18312; 18313; 18315; 20521, 20522, 20523, 20524, 20525, 20526, 25395 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ)

Licenças para navegar, códice 141 (17 vols.)

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ)

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401

“Discurso preliminar. Histórico, Introdutivo, com natureza de descrição econômica da

Comarca e Cidade da Bahia”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional, 1906, pp. 281-348.

Documentos Históricos – volumes 25, 28, 29, 30, 31, 56, 57, 58, 59, 60 , 61 e 62. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional, s/d.

Idade d’Ouro do Brasil

1.2. Fonte digital

ELTIS, David; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo & BEHRENDT, Stephen. The Trans-Atlantic Slave Trade: a Dataset on-line. www.slavevoyages.org

1.3. Fontes Primárias Impressas

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ANEXOS

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246

Anexo 1 – Participação percentual dos diversos tipos de vendas no valor total transacionado na cidade de Salvador entre 1751 e 1780 por ano (em mil-réis)

Negócios rurais Negócios

urbanos Negócios comerciais

Embarcações Outras vendas Valor total Empréstimos Ano

Valor N.E valor N.E Valor N.E valor N.E valor N.E valor N.E valor N.E 1751 5:579$860 7 6:660$000 9 3:880$000 4 16:119$860 20 5:600$000 7 % 34,6 35,0 41,3 45,0 24,1 20,0 100 100 34,7 36,4 1752 1:190$000 3 2:240$000 7 800$000 1 850$000 1 5:080$000 12 14:918$321 9 % 23,4 25,0 44,1 58,3 15,7 8,3 16,7 8,3 100 100 293,6 75,0 1753 2:774$096 7 3:790$000 7 6:564$096 14 8:750$000 3 % 42,3 50,0 57,7 50,0 100 100 133,3 25,0 1754 5:599$000 7 8:785$000 8 14:384$000 15 18:525$804 6 % 38,9 46,7 61,1 53,3 100 100 128,8 40,0 1755 12:988$000 9 8:552$340 10 21:540$340 19 8:568$000 7 % 60,3 47,4 39,7 52,6 100 100 39,8 36,8 1756 3:380$000 6 4:987$000 11 1:162$420 2 9:529$420 19 30:377$349 7 % 35,5 31,6 52,3 57,9 12,2 10,5 100 100 318,8 38,5 1757 15:781$019 7 17:861$020 20 1:100$000 2 1:500$000 1 36:242$039 30 20:092$204 9 % 43,5 23,3 49,3 66,7 3,0 6,7 4,1 3,3 100 100 55,4 31,2 1758 7:169$920 10 3:080$080 5 10:250$000 15 1:380$000 5 % 70,7 66,7 29,3 33,3 100 100 13,5 33,3 1759 17:410$416 9 18:997$212 20 3:208$400 6 2:600$000 2 42:216$028 37 3:600$000 5 % 41,2 24,3 45,0 54,0 7,6 16,2 6,1 5,4 100 100 8,5 14,3 1760 64:665$370 17 17:091$392 19 3:600$000 2 2:700$000 2 88:056$762 40 104:330$000 17 % 73,4 42,5 19,4 47,5 4,1 5,0 3,1 5,0 100 100 118,5 42,9 1761 9:777$736 11 8:317$161 15 994$000 2 1:200$000 2 20:288$897 30 14:040$000 13 % 48,2 36,7 41,0 50 4,9 6,7 5,9 6,7 100 100 69,2 43,3 1762 13:452$685 14 3:011$263 15 550$000 1 900$000 2 17:913$948 32 9:694$469 3 % 75,0 43,7 16,9 46,9 3,1 3,1 5,0 6,2 100 100 54,4 9,4 1763 3:086$165 3 4:809$787 15 550$000 1 1:000$000 1 9:445$952 20 6:500$000 7

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% 32,7 15,0 50,9 75,0 5,8 5,0 10,6 5,0 100 100 68,8 35,0 1764 4:663$353 3 6:914$497 8 800$000 1 12:377$850 12 9:050$000 12 % 37,7 25,0 55,9 66,7 6,5 8,3 100 100 73,1 100 1765 5:574$720 3 1:989$120 8 580$000 1 8:143$840 12 17:324$436 21 % 68,4 25,0 24,4 66,7 7,1 8,3 100 100 212,7 175,0 1766 3:900$000 2 2:710$000 8 6:610$000 10 4:650$000 5 % 59,0 20,0 41,0 80,0 100 100 70,3 50,0 1767 7:771$364 14 5:570$442 13 900$000 1 14:241$806 28 4:679$066 8 % 54,6 50,0 39,1 46,4 6,3 3,3 100 100 32,8 28,6 1768 4:526$739 3 2:195$694 9 800$000 1 7:522$433 13 2:700$000 3 % 60,2 23,1 29,2 69,2 10,6 7,7 100 100 35,9 23,1 1769 9:997$357 11 7:496$036 17 31:870$000 4 700$000 1 50:063$393 34 7:970$410 14 % 20,0 32,3 15,0 50,0 63,6 11,8 1,4 2,9 100 100 15,9 41,2 1770 7:520$960 5 6:713$990 19 1:720$000 3 1:800$000 3 107$290 1 17:862$240 31 2:960$910 5 % 42,1 16,1 37,6 61,3 9,6 9,7 10,1 9,7 0,6 3,2 100 100 16,6 16,1 1771 25:645$506 18 12:779$868 15 1:700$000 2 2:400$000 2 360$000 3 42:885$374 40 16:109$509 19 % 59,8 45,0 29,8 35,0 4,0 5,0 5,6 5,0 0,8 7,5 100 100 37,6 47,5 1772 8:028$160 15 6:489$830 25 1:500$000 4 16:017$990 44 8:085$260 15 % 50,1 34,1 40,5 56,8 9,4 9,1 100 100 50,5 34,1 1773 12:538$224 12 9:847$836 19 1:200$000 3 1:800$000 1 25:386$060 35 21:091$664 34 % 49,4 34,3 38,8 54,3 4,7 8,6 7,1 2,8 100 100 83,1 100 1774 4:223$834 10 5:686$415 24 980$000 3 1:720$000 3 12:610$249 40 12:224$426 17 % 33,5 25,0 45,1 60,0 7,8 7,5 13,6 7,5 100 100 96,9 42,5 1775 2:822$342 7 3:195$967 10 1:044$327 2 2:100$000 3 9:162$636 20 21:183$503 20 % 30,8 35,0 34,9 50,0 11,4 10,0 22,9 15,0 100 100 231,2 100 1776 3:678$440 5 1:663$600 5 980$766 2 2:200$000 2 8:522$806 14 10:988$324 15 % 43,1 35,7 19,5 35,7 11,5 14,3 25,8 14,3 100 100 128,9 107,1 1777 1:867$884 4 5:410$423 8 875$642 2 1:050$000 1 9:203$949 15 15:098$724 17 % 20,3 26,7 58,8 53,3 9,5 13,3 11,4 6,7 100 100 164,0 113,3 1778 4:905$221 15 9:657$154 20 1:322$110 5 3:000$000 3 298$000 3 19:182$485 43 14:298$420 20 % 25,6 34,9 50,4 46,5 6,9 11,6 15,6 7,0 1,5 7,0 100 100 74,5 46,5

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1779 74:119$132 24 9:733$437 28 1:080$000 1 4:800$000 1 89:732$605 54 20:410$455 18 % 82,6 44,4 10,8 51,8 1,2 1,8 5,3 1,8 100 100 22,7 33,3 1780 9:806$156 19 13:462$770 30 3:006$908 9 2:000$000 3 650$000 3 29:925$834 64 19:655$327 20 % 32,8 29,7 45,0 46,9 10,0 14,1 6,7 4,7 2,1 4,7 100 100 65,7 31,2 1781 10:511$568 15 17:038$394 27 4:400$000 9 2:100$000 4 700$000 2 35:749$962 57 25:335$388 22 % 29,4 26,3 47,6 47,4 12,3 15,8 5,8 7,0 1,9 3,5 100 100 70,9 38,6 1782 10:379$910 19 16:429$925 25 4:550$630 6 2:200$000 2 150$965 1 33:711$430 53 22:438$987 25 % 30,8 35,8 48,7 47,2 13,5 11,3 6,5 3,8 0,4 1,9 100 100 66,6 47,2 1783 9:833$500 14 14:420$472 19 3:932$000 6 1:800$000 2 29:985$972 41 20:412$655 19 % 32,8 34,1 48,1 46,3 13,1 14,6 6,0 4,9 100 100 68,1 46,3 1784 8:778$682 12 11:581$640 17 3:800$000 5 900$000 1 549$830 2 25:610$152 37 19:549$888 16 % 34,3 32,4 45,2 45,9 14,8 13,5 3,5 2,7 2,1 5,4 100 100 76,3 43,2 1785 15:086$801 11 11:496$275 16 5:237$555 6 1:120$000 1 32:940$631 34 16:432$281 13 % 45,8 32,3 34,9 47,0 15,9 17,6 3,4 2,9 100 100 49,9 38,2 1786 8:258$873 7 7:087$687 11 3:202$270 5 750$000 1 898$230 3 20:197$060 27 10:513$830 12 % 40,9 25,9 35,1 40,7 15,8 18,5 3,7 3,7 4,4 11,1 100 100 52,0 44,4 1787 10:766$852 8 11:380$507 18 3:918$300 6 1:850$000 2 27:915$660 34 18:726$623 20 % 38,6 23,5 40,8 52,9 14,0 17,6 6,6 5,9 100 100 67,1 58,8 1788 9:714$027 10 13:988$804 18 4:260$754 7 1:692$200 2 562$320 3 30:218$120 40 23:685$755 20 % 32,1 25,0 46,3 45,0 14,1 17,5 5,6 5,0 1,8 7,5 100 100 78,4 50,0 1789 13:028$203 12 8:772$647 20 5:672$648 7 1:800$000 3 29:273$498 42 24:430$980 19 % 44,5 28,6 30,0 47,6 19,3 16,7 6,1 7,1 100 100 83,4 45,2 1790 7:463$730 13 14:051$764 20 7:528$916 6 3:000$000 2 549$770 2 32:594$180 43 23:676$099 19 % 22,9 30,2 43,1 46,5 23,1 13,9 9,2 4,6 1,7 4,6 100 100 72,6 44,2 1791 9:730$883 20 7:183$874 23 9:422$560 9 5:550$380 4 780$000 2 32:667$697 58 30:730$443 23 % 29,8 34,5 22,0 39,6 28,8 15,5 17,0 6,9 2,4 3,4 100 100 94,1 39,6 1792 10:738$677 16 22:079$076 29 6:680$933 8 1:200$000 2 300$000 2 40:998$686 60 27:988$022 22 % 26,2 26,7 53,8 48,3 16,3 13,3 2,9 3,3 0,7 3,3 100 100 68,3 36,7 1793 14:454$531 19 19:424$239 25 6:856$980 9 1:400$000 2 734$900 3 42:870$650 58 24:876$292 20 % 33,7 32,7 45,3 43,1 16,0 15,1 3,3 3,4 1,7 5,2 100 100 58,0 34,5 1794 15:324$593 16 15:939$333 30 9:222$409 10 3:430$000 3 43:916$335 59 34:653$298 28

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% 34,9 27,1 36,3 50,8 21,0 16,9 7,8 5,1 100 100 78,9 47,4 1795 15:990$486 18 8:890$327 22 12:042$710 8 2:980$000 3 39:903$523 51 32:760$109 27 % 40,1 35,3 22,3 43,1 30,2 15,7 7,4 5,9 100 100 82,1 52,9 1796 11:137$303 12 15:676$094 24 8:987$886 10 3:100$000 3 980$545 3 39:881$828 52 25:655$831 23 % 27,9 23,1 39,3 46,1 22,5 19,2 7,8 5,8 2,4 5,8 100 100 64,3 44,2 1797 19:930$293 19 16:311$664 24 11:870$400 12 7:560$800 6 55:673$157 61 38:672$219 29 % 35,8 31,1 29,3 39,3 21,3 19,7 13,6 9,8 100 100 69,5 47,5 1798 19:143$906 17 18:060$999 27 11:350$387 10 2:060$800 2 1:000$000 1 51:616$092 57 26:781$741 25 % 37,1 29,8 35,0 47,4 22,0 17,5 4,0 3,5 1,9 1,7 100 100 51,9 43,8 1799 18:551$761 18 25:682$405 28 14:382$147 9 1:813$000 3 60:429$313 59 27:701$800 24 % 30,7 30,5 42,5 47,4 23,8 15,2 3,0 5,1 100 100 45,8 40,7 1800 19:654$574 14 22:333$000 26 11:283$610 11 3:270$000 4 1:318$420 4 57:859$992 59 33:802$752 26 % 34,0 23,7 38,6 44,1 19,5 18,6 5,6 6,8 2,3 6,8 100 100 58,4 44,1 Fonte: APEB, judiciário, Livros de notas do 1o. e 2o. ofícios de Salvador (livros 90 a 139).

Obs.: 1 - N.E = número de escrituras

2 – O número de escrituras refere-se àquele que conseguimos levantar e já analisadas a partir do banco de dados.

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Anexo 2 - Valor médio dos bens arrolados nas escrituras de compra e venda em Salvador por qüinqüênios, 1751-80

Período 1751-60 1761-70 1771-80 1781-90 1791-

1800

Valor

mínimo

Valor

máximo

sobrado 695$670 620$512 730$120 765$002 913$724 66$000 3:300$000

casa 357$043 234$657 218$910 259$190 389$112 22$000 1:000$000

Sobrado

com loja

850$000 723$500 680:700 998$350 1:060$152 108$000 2:9800$000

Embarcação 956$250 426$667 842$800 860$610 924$714 70$000 4:800$000

Engenho 5:200$000 5:400$980 5:760$400 7:090$000 7:479$340 2:800$000 31:000$000

Fazenda 1:000$400 901$325 780$750 690$000 702$030 150$000 3:400$000

Fazenda

cana

6:200$000 6:564$000 6:780$000 6:890$000 6:500$000 800$000 9:900$000

Fazenda de

gado

815$666 1:530$390 2:000$000 2:350$000 3:102$490 200$000 8:800$000

Roça 450$000 375$000 325$000 409$000 401$800 70$000 1:021$000

Sitio 400$333 520$000 457$090 487$890 489$230 40$000 800$000

Sitio de

gado

520$000 555$000 510$900 534$400 550$900 150$000 1:680$000

Terra 256$490 348$200 210$600 259$000 289$908 11$000 1:150$000

Fonte: A mesma do anexo 1.

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251

Anexo 3 - Formas de aquisição dos bens rurais vendidos na cidade de Salvador entre 1750-1800

Formas de aquisição

Arrematação/compra

Herança Dote Doação Total

N % N % N N % N % 1751 2 33,3 3 50 1 16,7 6 100 1752 1 50 1 50 2 100 1753 2 33,3 3 50 1 16,7 6 100 1754 2 40 2 40 1 20 5 100 1755 2 28,6 3 42,8 1 14,3 1 14,3 7 100 1756 1 25 3 75 4 100 1757 2 33,3 4 66,7 6 100 1758 3 37,5 4 50 1 22,5 8 100 1759 6 46,1 6 46,1 1 7,8 13 100 1760 6 42,8 7 50 1 7,1 14 100 1761 4 50 3 37,5 1 12,5 8 100 1762 4 40 5 50 1 10 10 100 1763 2 66,7 1 33,3 3 100 1764 1 25 3 75 4 100 1765 1 50 1 50 2 100 1766 2 100 2 100 1767 3 37,5 4 50 1 12,5 8 100 1768 1 33,3 2 66,7 3 100 1769 5 45,4 5 45,4 1 9,2 11 100 1770 2 50 2 50 4 100 1771 10 52,6 8 42,1 1 5,3 19 100 1772 6 50 5 41,7 1 33,3 12 100 1773 5 45,4 4 36,7 1 9,1 11 100 1774 3 42,8 4 51,2 7 100 1775 4 66,7 2 33,3 6 100 1776 1 50 1 50 2 100 1777 1 33,3 2 66,7 3 100 1778 8 66,7 4 33,3 12 100 1779 11 50 10 45,5 1 4,5 22 100 1780 9 45 10 50 1 5 20 100 1781 9 50 7 38,9 1 5,6 18 100 1782 12 60 8 40 20 100 1783 8 50 7 43,7 1 6,3 16 100 1784 6 46,1 7 53,8 13 100 1785 7 53,8 5 38,5 1 7,7 13 100 1786 6 75 2 25 8 100 1787 6 50 5 41,7 1 8,3 12 100 1788 5 41,6 7 58,3 12 100 1789 11 55 9 45 20 100 1790 11 57,9 8 42,1 19 100 1791 12 52,2 11 47,8 23 100 1792 10 45,4 10 45,4 1 4,5 1 4,5 22 100 1793 13 61,9 8 38,1 21 100

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252

1794 14 63,6 7 31,8 1 4,5 22 100 1795 10 55,5 8 44,4 18 100 1796 6 50,0 6 50,0 12 100 1797 16 69,6 6 26,1 1 4,3 23 100 1798 13 52,0 11 44,0 1 4,0 25 100 1799 15 71,4 6 28,6 21 100 1800 12 60,0 8 40,0 20 100

Fonte: as mesmas do anexo 1.

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253

Anexo 4 - Formas de aquisição dos bens urbanos vendidos na cidade de Salvador entre 1750-1800

Formas

de Aquisição

Arrematação/Compra Herança Dote Doação Total

N % N % N % N % N % 1751 3 42,8 4 57,1 7 100 1752 2 28,6 3 42,8 2 28,6 7 100 1753 3 42,8 2 28,6 2 28,6 7 100 1754 2 40,0 3 60,0 5 100 1755 3 33,3 6 66,7 9 100 1756 4 36,4 6 54,5 1 9,1 11 100 1757 8 47,0 8 47,0 1 5,9 17 100 1758 1 33,3 2 66,7 3 100 1759 7 38,9 10 55,6 1 5,6 18 100 1760 8 53,3 7 46,7 15 100 1761 5 38,5 8 61,5 13 100 1762 5 45,4 6 54,5 11 100 1763 4 33,3 8 66,7 12 100 1764 1 50,0 1 50,0 2 100 1765 1 20,0 3 60,0 1 20 5 100 1766 4 80,0 1 20,0 5 100 1767 7 70,0 3 30,0 10 100 1768 3 37,5 5 62,5 8 100 1769 6 40,0 8 53,3 1 6,7 15 100 1770 9 56,2 7 43,8 16 100 1771 6 60,0 4 40,0 10 100 1772 10 41,7 14 58,3 24 100 1773 7 46,7 7 46,7 1 6,7 15 100 1774 10 45,4 11 50,0 1 4,5 22 100 1775 6 75,0 2 25,0 8 100 1776 3 60,0 2 40,0 5 100 1777 4 57,1 2 28,6 1 14,3 7 100 1778 9 50,0 8 44,4 1 5,6 18 100 1779 15 60,0 10 40,0 25 100 1780 15 65,2 8 34,8 23 100 1781 8 36,4 13 59,1 1 4,5 22 100 1782 13 59,1 9 40,9 22 100 1783 7 43,7 9 56,3 16 100 1784 8 57,1 6 42,9 14 100 1785 7 63,6 4 36,4 11 100 1786 3 50 3 50 6 100 1787 6 54,5 5 45,5 11 100 1788 7 58,3 5 41,7 12 100 1789 8 57,1 6 42,3 14 100 1790 9 60 6 40 15 100 1791 15 68,2 6 27,3 1 4,5 22 100 1792 11 50 11 50 22 100

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254

1793 13 61,9 8 38,1 21 100 1794 15 60 9 36 1 4 25 100 1795 11 55 9 45 20 100 1796 13 59,1 9 40,9 22 100 1797 13 56,5 9 39,1 1 4,4 23 100 1798 14 63,6 8 36,4 1 4,5 22 100 1799 15 62,5 9 37,5 24 100 1800 13 61,9 8 38,1 21 100

Fonte: as mesmas do anexo 1

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255

Anexo 5 - Formas de aquisição dos bens comerciais e embarcações vendidos na cidade de Salvador entre 1750-1800

Formas

de Aquisição

Arrematação/Compra Herança Dote Doação Total

N % N % N % N % N % 1751 1 100 1 100 1752 100 1753 100 1754 100 1755 100 1756 100 1757 1 100 1 100 1758 100 1759 5 100 5 100 1760 2 100 2 100 1761 2 100 2 100 1762 2 100 2 100 1763 1 100 1 100 1764 1 100 1 100 1765 100 1766 100 1767 100 1768 100 1769 2 100 2 100 1770 4 100 4 100 1771 2 100 3 100 1772 2 66,7 1 33,3 3 100 1773 2 100 2 100 1774 3 100 3 100 1775 1 100 1 100 1776 2 100 2 100 1777 1 50,0 1 50,0 2 100 1778 5 100 5 100 1779 100 1780 5 100 5 100 1781 6 100 6 100 1782 3 100 3 100 1783 3 50,0 1 16,7 4 100 1784 2 100 2 100 1785 5 71,4 1 14,3 1 14,3 7 100 1786 4 100 4 100 1787 4 80,0 1 20,0 5 100 1788 5 100 5 100 1789 5 100 6 100 1790 3 100 4 100 1791 4 100 4 100 1792 3 75,0 1 25,0 4 100

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256

1793 4 100 6 100 1794 7 100 7 100 1795 5 100 5 100 1796 5 100 5 100 1797 4 80,0 1 20,0 5 100 1798 5 100 5 100 1799 5 83,3 1 16,7 6 100 1800 5 100 5 100

Fonte: as mesmas do anexo 1

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