a cessão de créditos; reflexões sobre a causalidade na transmissão de bens no direito brasileiro...

22
133 INTRODUÇÃO O direito das obrigações até não muito tempo atrás era identificado como um ramo do direito privado cujas estruturas e funções seriam um tanto quanto estáticas em face da dinâmica da economia. Este prejulgamento da disciplina foi apontado por vários pensadores modernos do direito. Giorgi Giorgi, para representar esta linha de reflexão, utiliza-se de Bélime que, em sua Filosofia do direito, escreveu que “elles sont demeurées (les obligations) comme des colomnes inébranlables de jurisprudence, autor de queles se railient tout les principes”. 1 Eugène Gaudemet evidencia essa impressão de imutabilidade ou, pelo menos, de estabilidade preponderante das relações jurídicas obrigacionais, pela assimetria entre o direito das obrigações e o meio social, quando o regramento correspondente é A CESSÃO DE CRÉDITOS: REFLEXÕES SOBRE A CAUSALIDADE NA TRANSMISSÃO DE BENS NO DIREITO BRASILEIRO Rodrigo Xavier Leonardo* RESUMO: Inicia-se ente ensaio por uma reflexão do direito das obrigações em sua estrutura e função, perspectivado a partir da lógica formal e do direito natural e, posteriormente, por uma crítica às concepções tradicionais do direito das obrigações. Aproxima-se, a partir de então, do tema por intermédio de uma reflexão sobre o discurso histórico e a cessão de créditos, objetivando demonstrar como a transmissibilidade de créditos, nalguma medida, projeta escolhas fundamentais do direito das obrigações. Neste diapasão, a seguir, analisa-se o crédito como valor para compreender as justificativas de sua transmissibilidade nos tempos modernos. Por fim, procura-se analisar a cessão de créditos no direito brasileiro, investigando sua natureza jurídica e, sobretudo, questionando sobre a sua abstratividade ou causalidade. * Professor Substituto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da UFPR. Bacharel em Direito pela UFPR. Mestre e Doutorando em Direito pela USP. Advogado. 1 BÉLIME. Philosophie du droit. V.IV. Apud GIORGI, J. Teoría de las obligaciones en el derecho moderno. v.VI. Madrid: Hijos de Reus, 1911, p.71.

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  • 133

    INTRODUO

    O direito das obrigaes at no muito

    tempo atrs era identificado como um ramo

    do direito privado cujas estruturas e funes

    seriam um tanto quanto estticas em face da

    dinmica da economia.

    Este prejulgamento da disciplina foi

    apontado por vrios pensadores modernos

    do direito. Giorgi Giorgi, para representar

    esta linha de reflexo, utiliza-se de Blime

    que, em sua Filosofia do direito, escreveu

    que elles sont demeures (les obligations)

    comme des colomnes inbranlables de

    jurisprudence, autor de queles se railient

    tout les principes.1

    Eugne Gaudemet evidencia essa

    impresso de imutabilidade ou, pelo menos,

    de estabilidade preponderante das relaes

    jurdicas obrigacionais, pela assimetria

    entre o direito das obrigaes e o meio social,

    quando o regramento correspondente

    A CESSO DE CRDITOS: REFLEXES SOBRE A CAUSALIDADE

    NA TRANSMISSO DE BENS NO DIREITO BRASILEIRO

    Rodrigo Xavier Leonardo*

    RESUMO: Inicia-se ente ensaio por uma reflexo do direito das obrigaes em sua estrutura

    e funo, perspectivado a partir da lgica formal e do direito natural e, posteriormente, por

    uma crtica s concepes tradicionais do direito das obrigaes. Aproxima-se, a partir de

    ento, do tema por intermdio de uma reflexo sobre o discurso histrico e a cesso de

    crditos, objetivando demonstrar como a transmissibilidade de crditos, nalguma medida,

    projeta escolhas fundamentais do direito das obrigaes. Neste diapaso, a seguir, analisa-se

    o crdito como valor para compreender as justificativas de sua transmissibilidade nos tempos

    modernos. Por fim, procura-se analisar a cesso de crditos no direito brasileiro, investigando

    sua natureza jurdica e, sobretudo, questionando sobre a sua abstratividade ou causalidade.

    * Professor Substituto do Departamento deDireito Civil e Processual Civil da UFPR. Bacharelem Direito pela UFPR. Mestre e Doutorando emDireito pela USP. Advogado.

    1 BLIME. Philosophie du droit. V.IV. ApudGIORGI, J. Teora de las obligaciones en el derechomoderno. v.VI. Madrid: Hijos de Reus, 1911, p.71.

  • 134

    comparado com o direito das coisas e o

    direito de famlia.2

    O direito das coisas seria intimamente

    vinculado organizao poltica e social de

    cada sociedade; o direito de famlia, por sua

    vez, estaria vinculado diretamente aos

    aspectos mais ntimos da constituio moral

    de uma nao e, por essa razo, passaria quase

    imediatamente a refletir as mudanas de cada

    tempo, em cada lugar.

    O direito das obrigaes, todavia,

    permaneceria cristalizado pela lgica formal

    e por princpios da justia natural, pois, na

    expresso de Gaudemet: Quelle influence

    des conceptions de cet ordre pourraient elles

    avoir sur les droits dun vendeur, crancier

    du prix?.3 Isto ressaltaria, ainda, na aparente

    maior facilidade dos processos de unificao

    dos princpios do direito das obrigaes,

    aproximadamente proposto pelo Unidroit,

    dentre outros projetos em andamento,

    direcionados uniformizao e at mesmo

    unificao dos contratos.

    importante destacar, no entanto, que

    Giorgi e Gaudemet, autores do sculo XX, a

    despeito de reconhecer esse prejulgamento

    quanto a uma imutabilidade do direito das

    obrigaes, no poupam crticas a essa leitura

    da realidade.4 Estariam eles certos?

    Ao refletirmos sobre a cesso de crdito e

    a assuno de dvida considerados como

    os principais fenmenos concernentes

    transmissibilidades nas obrigaes , podemos

    realmente encontrar muito mais do que uma

    simples tcnica para circulao do crdito.

    Podemos encontrar um autntico mecanismo

    para gerao de riquezas. E aqui, talvez, seja

    possvel confrontar a tese da imutabilidade

    do direito das obrigaes mediante uma

    investigao de um dos seus principais

    institutos: a cesso de crditos.

    Depara-se, neste tema, com um dos mais

    antigos conflitos entre o conceitualismo

    jurdico e as exigncias da realidade. Por essa

    razo, por intermdio dessa parte do direito

    das obrigaes, pode-se refletir sobre o todo

    da disciplina e, porque no dizer, do prprio

    direito privado.

    1 O DISCURSO HISTRICO E A

    REFLEXO SOBRE A CESSO

    DE CRDITOS

    O tema da transmissibilidade nas

    obrigaes encontra-se de tal maneira

    vinculado noo jurdica de obrigao que

    2 GAUDEMET, . Thorie genrale des obligations.Paris: Sirey, 1965, p.10.

    3 GAUDEMET, Thorie genrale des obligations,p.10.

    4 Para Gaudemet (...) si le droit des obligationsest moins intimement li que les autres lvolutionpolitique et morale, il est intimement li une autrevolution, politique et morale, il est intimement li une autre volution, plus lente, mais tout aussi relle,et singulirement acclre depuis un sicle, levolutioncommerciale ou, plus gnralement, lvolutionconomique (GAUDEMET, Thorie genrale des

    obligations, p.10). Giorgi, a seu tempo, identifica notema da transmissibilidade nas posies jurdicasobrigacionais um sinal de falsidade do prejulgamentoquanto a imutabilidade neste ramo do direito privado:(...) cuando Blime ensalzaba la inmutabilidad de lateora de las obligaciones, no pensaba, seguramente, enel maravilloso desenvolvimiento que, con lento peroincesante progreso, ha sufrido la transmisin de loscrditos, ni en la enorme distancia que lo mismo en elorden terico que en el prctico separa las antiguas ypoco expeditas formas de transmisin de la sencilla yexpedita transmisin de los ttulos la orden y alportador, las manifestaciones ms tiles del genioeconmico en el campo de las obligaciones (GIORGI,J. Teora de las obligaciones en el derecho moderno.v.VI. Madrid: Hijos de Reus, 1911, p.71).

  • 135

    se mostra difcil traar os correspondentes

    lineamentos histricos pertinentes a um sem

    falar do outro.

    Para evitar adentrar fatigosa discusso

    sobre a noo jurdica de obrigao,5 prope-se

    partir de seu elemento mais reluzente: o

    vnculo jurdico.

    A prpria palavra obrigao conduziria

    idia de vnculo. Obrigao, atenta

    Josserand,6 provm do latim ob + ligatio. Da

    o elemento vnculo ser eternizado na clssica

    definio encontrada nas Instituies de

    Justiniano: obligatio est juris vinculum,

    quo necessitate adstringimur alicujus

    solvendae rei.

    H unissonncia entre os autores romanistas,

    partindo das fontes que lhe so acessveis,

    que em direito romano essa ligao ou vnculo

    caracterizava-se por ser personalssimo,

    inexistindo um mecanismo de direito material

    para a sucesso singular de crditos e de

    dvidas.7 A pessoa do credor e a pessoa do

    devedor eram essenciais para a manuteno

    do vnculo obrigacional,8 de modo que

    qualquer alterao desse elemento pessoal,

    seja no plo ativo, seja no plo passivo, na

    relao jurdica, implicaria a alterao da

    prpria relao jurdica.9

    Mas por qual razo o Direito Romano

    to afeito s solues prticas ao invs

    do conceitualismo , teria negado to

    veementemente as vantagens negociais

    decorrentes da circulao de crditos e

    de dvidas?

    Para alm da simples explicao do

    fenmeno pelos efeitos dele decorrentes e

    sem descuidar dalgumas precaues

    metodolgicas para a reflexo crtica por

    intermdio do discurso da histria do

    5 Procuramos desenvolver consideraes sobreeste tema noutra oportunidade, LEONARDO, R. X.Direito das obrigaes: em busca de elementoscaracterizadores para compreenso do livro I da parteespecial do Cdigo Civil.In: CANEZIN, C. C. (Org.).Arte jurdica: Biblioteca cientfica do programa de

    ps-graduao em Direito Civil e Processo Civil daUniversidade Estadual de Londrina. v.I. Curitiba:Juru, 2005, p.277.

    6 JOSSERAND, L. Cours de droit civil positiffranais. v.II. 12.ed. Pais: Sirey, 1933, p.2.

    7 Para Guido Astuti: Il principio romano dellaintransmissibilit delle obbligazioni si ricollega allastruttura tipica dellactio in personam , e allaconcezione originaria dellobligatio, come vincoloessenzialmente personale, caratterizzato dallacostrizione giuridica soggettiva del debitore perladempimento della prestazione, configurato comeatto volontario e direttamente incoercibile: neconsegue che, pur dopo lintroduzione dellaresponsabilit e soddisfazione patrimoniale, e la

    conseguente transformazione dellobligatio ancoranel pensiero della giurisprudenza classica i soggettidel rapporto obbligatorio sono immutabili, e di regolai diritti di credito non sono transferibili da persona apersona, a titolo particolare (ASTUTI, G. Cessione(storia). In: Enciclopedia del diritto. t.VI. Milano:Giuffr, ano, p.806). Max Kaser, por sua vez, explicaque: a transmisso do crdito por uma pessoa aoutra (subsistindo a obrigao) no era permitidaaos Romanos por mudana de credor, porque emRoma os direitos (subjectivos), ao menos osderivados de um crdito, estavam vinculados ao seutitular e no eram transmissveis a outrem porsucesso individual (KASER, M. Direito privadoromano. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1999, p.304).

    8 Para Tobeas, se pensaba que es de interspara el acreedor tener un deudor ms solvente yhonrado que otro, y no es indiferente al deudortener un acreedor ms compasivo, menos rigurosoque otro (TOBEAS, J. C. Derecho civil espaol,comn y foral. 8.ed. t.III. Madrid: Editorial Reus,1954, p.234).

    9 GIORGI, J. Teora de las obligaciones en elderecho moderno. v.VI. Madrid: Hijos de Reus,1911, p.71.

  • 136

    direito,10 enumeram-se algumas razes para

    esse personalismo obrigacional. Em primeiro

    lugar, as prprias origens mais primitivas do

    vnculo obrigacional seriam mgico-

    religiosas, justificando-se o vnculo entre

    pessoas por uma concepo mstica, tal como

    a idia de punio divina contra aqueles que

    no respeitassem os efeitos prprios aos ritos

    de ligao verbalizados sob os olhos da

    divindade protetora e castigadora.11

    A explicao parece encontrar fundamentos

    antropolgicos numa lgica de reciprocidade

    verificvel, segundo Rodolfo Sacco, nas

    sociedades mais primitivas.12

    Em direito romano, a noo de vnculo

    implicava atamento material da pessoa do

    devedor, que poderia sofrer a execuo

    pessoal, mediante a sujeio escravido

    ou at a prpria morte, nos casos de

    descumprimento.13 Por essa razo, do lado

    passivo, no parecia possvel substituir a

    pessoa do devedor, permitindo-se que uma10 Parte-se, aqui, da advertncia metodolgia de

    Ricardo Marcelo Fonseca que critica a re-construodos institutos de direito privado pela histria dodireito mediante uma seqncia linear: De fato, oestudo linear da histria (e de modo particular dahistria do direito), que amontoa tudo o que j passounuma superposio harmnica e coerente de institutosjurdicos atravs do tempo, acaba impondo umalgica ao passado que em verdade lhe estranha, aomesmo tempo em que lana sobre a poca pretritaas questes, preocupaes, valoraes e ansiedadesque pertencem ao presente (e ao cientista que produztal tipo de conhecimento) (FONSECA, R. M.Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito dedireito sujeio jurdica. So Paulo: Editora LTr,2002, p.26). Neste sentido, tambm Srgio Said Stautcritica o historicismo no direito: Essa maneiratradicional e positivista de entender o passado ea Histria do Direito, chamada de historiciosmo,causam geralmente duas graves distores (...) opassado utilizado simplesmente para justificar opresente. a lgica do presente que preside e seapropria de toda a investigao do passado; soestabelecidas conexes diretas entre presente epassado que no permitem visualizar as suasdescontinuidades (STAUT, S. S. Algumas precauesmetodolgicas para o estudo do direito civil. Artejurdica: Biblioteca cientfica do programa de ps-

    graduao em Direito Civil e Processo Civil daUniversidade Estadual de Londrina. v.I. Curitiba:Juru, 2005, p.306).

    11 Lune met en avant des considrationsmagico-religieuses, qui auraient jou un grand rledans une socit encore o rgneraientla violence et la peur. Cest ainsi que P. Huvelinsuggrait, pour expliquer lorigine d lobligation,une premire phase magico-religieuse. Un procd

    mystrieux dassujettissement serait dabbordapparu. Ce quil tait, on lignore. Puis serait intervenuelide dune vengeance divine contre celui qui nerespectait pas son engagement. Ici encore les formesde cette vengeance, ses manifestations restent danslobscurit. Finalement, on serait pass du lienmagico-religieux au lien juridique (GAUDEMET, J.Naissance dune notion juridique. Les dbuts de l dans le droit de la Rome antique. In:Archives de philosophie du droit: LObbligation.Paris: Dalloz, 2000, p.27).

    12 Lhome sacrifie au Dieu, Dieu assure saprotection lhomme. Le survivant rend le culte aumort, le mort donne son assistance au survivant. Lagriculteur excute ses prestations en faveur de laterre, celle-ci lui donnera ses fruits. Dans les socitsafricaines subsahariennes traditionnelles, la prestationtributaire est spontane, mais elle se croise aveclattribution de terres faite par le chef. Lanalyseanthropologique nous fait voir une rciprocitsemblable dans la vengeance et jusque dans la guerre(SACCO, R. la recherche de lorigine delobligation. In: Archives de philosophie du droit:LObbligation. Paris: Dalloz, 2000, p.36).

    13 Segn el derecho antiguo el deudorresponda del cumplimiento de sus obligaciones enprimer lugar con su persona, aunque no fueraexclusivamente. Si no poda satisfacer al acreedor lacantidad por la que hubiera sido condenado y no sele exima de la obligacin de pagar, su suerte era elser vendido como esclavo, y quiz la muerte, quepoda darle el acreedor (JRS, P.; KUNKEL, W.Derecho privado romano. Trad. L. Pietro Castro.Barcelona: Labor, 1937, p.329).

  • 137

    terceira pessoa, alheia relao, ficasse afinal

    exposta a to graves males no caso de

    descumprimento; tampouco se mostrava

    conveniente a facilidade na substituio do

    credor, que poderia resultar na troca de uma

    pessoa mais clemente por outra mais rigorosa.

    Ademais, conforme explicao de Menezes

    Leito, o formalismo na constituio das

    obrigaes resultava na necessidade da

    repetio de frmulas rituais solenes pr-

    fixadas para qualquer alterao subjetiva na

    relao obrigacional.14

    Sob essas circunstncias, duas solues

    surgiram para se alcanar o efeito prtico da

    transmisso de crditos e de dvidas em

    direito romano: em primeiro lugar a novao

    e, posteriormente, a transposio processual

    mediante mandatum in rem suam .15

    Ambas apresentavam muitos inconvenientes.

    A novao, por intermdio da extino da

    relao jurdico-obrigacional originria pela

    constituio de uma nova, conduzia a uma

    desfavorvel e inevitvel extino das

    garantias, sem contar a limitao prtica

    concernente exigncia do consentimento

    da contraparte que, invariavelmente, poderia

    negociar, em benefcio prprio e exclusivo,

    essa aceitao.16

    O mandatum in rem suam surge como uma

    soluo processual adaptada ao processo

    formular. O titular do crdito outorgava a

    um terceiro poderes de representao em

    causa prpria para, mediante o exerccio de

    uma actio, este pudesse acionar o crdito,

    satisfazendo-se com o produto da cobrana.17

    A soluo tambm comportava graves

    incovenientes, pois, pelo menos at a

    concluso da litis contestatio, o outorgante

    tinha possibilidade de revogar o mandato e,

    credor que era, podia at mesmo extinguir o

    crdito transigir ou remitir a dvida, tudo isso

    sem contar com a possibilidade de buscar a

    condenao do devedor. Se o outorgante

    falecia, por sua vez, ou se falecia o outorgado,

    extinguia-se o mandato.18

    Para superar estas limitaes, entre o

    perodo clssico e ps-clssico do direito

    romano, conferiu-se ao outorgado a chamada

    14 MENEZES LEITO, L. M. T. Cesso de crditos.Coimbra: Almedina, 2005, p.25.

    15 PONTES DE MIRANDA. Tratado de DireitoPrivado. t.XXIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p.248.

    16 MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.26.

    17 Astuti esclarece que Secondo le norme dellaprocedura formulare, il cessionario-mandatarioagiva alieno nomine, assumendo lintentio dallapersona del titolare del diritto, e chiedendo lacondemnatio a proprio favore (Gai. 4, 86 ) (ASTUTI,Cessione (storia), p.807. Menezes Leito, por suavez, explica que No direito romano, a solicitaode representao processual como cognitor ouprocurator tinha natureza abstracta, ainda que a elaestivesse naturalmente subjacente uma relao demandato. O cedente poderia assim, para efeitos dacobrana do crdito, transmitir ao cessionrios osmeios processuais que lhe cabiam contra o devedor,sob a forma de uma actio mandata, referindo osromanos que neste caso o credor praestabat,mandabat ou cedebat actionem ao seu substituto.Este esquema permitia ao cedente (como mandante)encarregar o cessionrio (como mandatrio) de cobraro crdito pessoalmente (mandatum ad agendum),caso em que este intentartia a aco nomine alieno,assumindo a intentio do cedente, mas obteria umacondenao a seu prprio favor, enquanto representanteprocessual. Nesse caso, normalmente o cedente teriacontra o cessionrio, enquanto seu mandatrio, umaactio mandati para obter a entrega do valor dacobrana. No entanto, o cedente perderia essa aco,caso autorizasse o mandatrio a guardar para si oresultado da cobrana (mandatum in rem suam)(MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.26-27).

    18 PONTES DE MIRANDA, Tratado de DireitoPrivado. t.XXIII, p.248.

  • 138

    actio utilis19 para que esse pudesse acionar

    o crdito em nome prprio.

    Mantinha-se, todavia, uma fragilidade:

    o credor originrio no perdia a ao direta

    para satisfao do mesmo crdito.

    Esta possibilidade foi afastada apenas

    quando se admitiu a denuntiatio do devedor,

    mediante a qual este deixaria de obter a

    liberao na hiptese de pagamento ao credor

    originrio (cedente).20 interessante notar

    que, segundo Biondo Biondi, se por um lado

    a actio utilis afastou a operao de cesso da

    figura da representao, por outros, foram

    criados para ela uma srie de outras restries

    visando proibir especulaes ilcitas por

    intermdio da cesso.21

    A transmissibilidade das obrigaes tomou

    diferentes caminhos no direito bizantino e no

    direito romano vulgar do Ocidente. Enquanto

    no primeiro, com a extino do conceito de

    actio utilis, mediante a simples denuntiatio

    j se operaria a cesso de crdito,22 na parte

    19 Guido Astuti elucida que Un ulteriore edecisivo passo vene compiuto col riconoscimentodi unactio utilis al cessionario, che in tal guisa fulegittimato ad agire non pi come mandatario delcedente, ma a nome proprio: cos finalmente lacessione pot acquistare efficacia diretta ed autonomafisionomia, sottraendo lqacquirente di un creditoallincertezza che prima gli derivava dalla posizionedi procuratos in rem suam. controverso entro qualilimiti questo rimedio sia stato attuato nellet classica(ASTUTI, Cessione (storia), p.807).

    20 MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.30.Explica Pontes de Miranda que: (...) o outorgadopodia impedir que o devedor pagasse, com eficcialiberatria, ao outorgante, desde que houvesse adenuntiatio do que se passou. Chegou-se quase concepo da cesso de crdito, que construodo direito comum. A notificao segundo o art.1.069 do Cdigo Civil tem razes na denuntiatio dostextos de Alexandre Severo e de Gordiano, mas aeficcia, hoje, eficcia da cesso, estendida aoterceiro; no direito romano ps-clssico, apenas eraeficcia do mandato em causa prpria, ou doexerccio da ao til (PONTES DE MIRANDA,Tratado de Direito Privado. t.XXIII., p.249). Paraalguns autores, com a actio utilis, teria ocorrido umaverdadeira aceitao indireta da cesso de crdito.Nesse sentido, cf. GIORGI, Teora de las obligacionesen el derecho moderno, p.73). Segundo Astuti, nodireito justinianeo, com a introduo da actio utilislistituto acquista una fisionomia nuova: mentrenel diritto classico ignorato il transferimento delleobbligazioni, e il cessionario acquista solo la facoltdi esercitare un credito altrui, nel diritto giustianeolantico principio sostanzialmente travolto, esostituito da quello della transferibilit dei crediti.Non sembra esatto dire che lobbligazione sussistenei confronti del creditore originario, mentre ilcessionario acquista solo unazione contro il debitore,

    n che lactio utilis contine (come gi sostiennelEisele), una finta delegazione: nel sistemagiustinianeo non v ormai difficolt ad ammettere

    (Ferrini) (ASTUTI, Cessione (storia), p.808). Emsentido contrrio, Pontes de Miranda assevera que:A ao no era a do outorgante, que se transferisse.Era ao atribuda ao outorgado, em lugar do objetoda obrigao; e no por transferncia da obrigao,ou do dbito. s vezes os textos parecem permitirque at a se v, mas em verdade s se trata de maneirasinexatas de expresso (PONTES DE MIRANDA,Tratado de Direito Privado, t.XXIII, p.249).

    21 Nas palavras de Biondo Biondi: Quando sigeneralizza il sistema dellactio utilis e la cessione sistacca dalla rappresentanza, per ragioni politico-sociali si vieta la cessione di taluni crediti o a favoredi talune persone Costantino (CI. 8,36,2) e Giustiniano(CI. 2,13,2) vietano la cessione in potentiorem, cio apersone di rango sociale pi elevato e potenti, perescludere ogni possibile vessazione verso il debitore.Giustiniano (Nov. 75,5) proibisce la cessione al tutoredei crediti verso il pupillo (BIONDI, Biondo, DirittoRomano, p.346).

    22 Diz o autor: Efectivamente, a sucessivaconcesso das actiones utiles ao adquirente do crditoleva a que, aps a extino daquele conceito, asituao do cessionrio pudesse ser vista como titularde um verdadeiro direito sobre o devedor, ocorrendoassim uma efectiva transmisso do crdito, de que adenuntiatio passa a ser considerada como um simplesanncio, que produzia que o devedor deixasse de ficarliberado com o pagamento do cedente (MENEZESLEITO, Cesso de crditos, p.31).

  • 139

    ocidental do Imprio, manteve-se a soluo

    processual de transmisso mediante o mandato

    in rem suam, sem nem mesmo contar com a

    actio utilis.

    Tampouco se verifica alguma sofisticao

    da transmisso de crditos no direito antigo

    dos povos germnicos. Pode-se dizer que,

    pelo contrrio, at pelo menos o fim da

    Idade Mdia, a transmisso de crdito foi

    dificultada, voltando a prevalecer a idia

    de intransmissibilidade.23

    A escola dos glosadores e dos comentaristas

    ou ps-glosadores fixou-se nos traos de

    intransmissibilidade das obrigaes em direito

    romano, surgindo neste perodo brocados

    como o de que os crditos aderem aos ossos

    (nomina ossibus inhaerent) comparando sua

    relao como a da lepra ao prprio corpo (ejus

    ossibus adhaeret ut lepra cuti).24

    Neste perodo, todavia, adiciona-se mais

    um argumento intransmissibilidade: o fato

    dos crditos no serem susceptveis de posse,

    impossibilitando-se, por esta razo, a traditio,

    considerada como o negcio necessrio para

    a transmisso de bens corpreos.25

    Os primeiros sinais de uma verdadeira

    transmisso de crdito surgem a partir

    do sculo XIII, em decorrncia de construes

    do direito costumeiro francs e das

    concepes humanistas.

    Ao que tudo indica, tomando por base a

    reflexo crtica de alguns historiadores do

    direito, a verdadeira alterao nessa matria

    no se deu por intermdio de construes

    doutrinrias, mas pelas necessidades

    concretas advindas do desenvolvimento das

    trocas comerciais ao longo da expanso do

    imprio romano e mesmo aps a sua ciso.26

    Por mais que uma determinada concepo

    de obrigao personalssima eventualmente23 Menezes Leito sintetiza que a posio que

    actualmente parece prevalecer , no entanto, a de queo antigo Direito Germnico no admitiria a transmissodos crditos, tendo esta apenas surgido no fim daIdade Mdia nos Direitos das cidades alems, comoMagdeburg e Breslau, apresentando-se vriosfundamentos para essa posio. Para Mitteis/Lieberich, os crditos seriam vistos no antigo direitogermnico como tendo fonte delitual, o que levavaa que no pudessem ser transmitidos, j que apenaso lesado poderia reclamar do lesante a indemnizaoque sua pessoa era devida (...) Apenas numa faseposterior, em que o crdito passou a ser reconhecidocomo elemento activo do patrimnio que se passoua admitir a faculdade de o credor o transmitir,inicialmente com o consentimento do devedor, paradepois no fim da Idade Mdia, os direitos das cidadespassaram a reconhecer a transmisso, normalmentemediante o registro no livro da cidade (MENEZESLEITO, Cesso de crditos, p.31).

    24 Nas palavras de Lacerda de Almeida: a parda transformao do conceito fundamental daobrigao em Direito Romano, uma escravido dodevedor divida, divida to ligada com elle, topessoal, to inseparavel delle devedor, que chegaram

    os medievaes a comparal-a lepra adherente aocorpo do leproso e que se lhe no pode arrancarnem tirar sem o proprio corpo: ejus ossibus adhaeretut lepra cuti (LARCEDA DE ALMEIDA. Dos effeitosdas obrigaes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934,p.361).

    25 MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.47.

    26 Neste sentido, Astuti, partindo de Ferrini,observa que a consagrao da actio utilis tem origemem prticas comerciais anteriores a Justiniano: IlFerrini, pur rilevando queste alterazioni, ritennetuttavia che esse confermassero una prassi preesistente,per cui lactio utilis sarebbe stata accordata, gi primadi Giustiniano, in alcune ipotesi di cessione di crediti(ASTUTI, Cessione (storia), p.808). Max Kaser, porsua vez, aponta que mesmo no direito romano psclssico, no perodo do dito direito romano vulgar,a matria da cesso de crditos teria progredido: Smuito esporadicamente a vulgarizao alcanouprogressos materiais (como na representao atravsde pessoas livres e na cesso de direitos de crdito)(KASER, Direito Privado Romano, p.27).

  • 140

    tivesse predominncia e resistncia (pelo

    menos at o sculo XIII!) isto no impedia

    que mecanismos de transmisso de crdito

    no fossem criados pelas necessidades

    prticas de cada poca.

    2 O CRDITO COMO VALOR E

    SUA TRANSMISSIBILIDADE NOS

    TEMPOS MODERNOS

    A sustentao terica para a cesso de

    crditos vem a se estabelecer com os

    pensadores jusnaturalistas que reconhecem

    no crdito um bem integrante do patrimnio

    do credor passvel de circulao como as

    outras riquezas que ao seu lado figuram.

    Menezes Leito explica que

    A doutrina jusnaturalista trouxe uma concepodiferente da cesso de crditos, na medida emque, ao representar a obrigao como umaalienao da liberdade do devedor em benefciodo credor, veio simultaneamente qualificar odireito de crdito como um direito de domniosobre uma aco de outrem. Esta concepolevou ao reconhecimento de que o direitode crdito constituiria, semelhana dapropriedade sobre coisas corpreas, umelemento do patrimnio do credor, que poderiaser assim transmissvel como qualquer outracomponente patrimonial.27

    A percepo do crdito como um

    elemento integrante do patrimnio do

    indivduo promove o suporte necessrio para

    a justificao da livre cedibilidade:

    GROTIUS, apesar de, inspirado nas Institutasde GAIUS, classificar os direitos em direitosdas pessoas (Livro I), direitos reais (Livro II) edireitos pessoais (Livro III), vem admitir queos direitos reais possam ter por objecto coisasincorpreas, as quais define como as que

    consistem em direitos. Entre esses direitosincluir-se-ia o direito de crdito, estabelecendoGROTIUS uma distino entre o direito sobrea coisa (beheering, jus in re) e o direito coisa(inschuld, jus ad rem) que identifica com odireito de crdito (...) Assim, GROTIUS, prevexpressamente que as res incorporales podemser objecto de compra e venda, fazendoreferncia expressa venda de direitos decrdito, mas no a solvncia do devedor.28

    O posicionamento do crdito como um

    elemento do patrimnio importou numa

    aproximao entre crdito e propriedade

    enquanto bens passveis de livre disposio.

    O fato dessa recomposio conceitual ocorrer

    no pensamento jusracionalista no

    aleatrio. Trata-se de mais um sinal da ciso

    entre pessoas e bens, tal como observou Jos

    Antnio Peres Gediel, com a ampliao

    da noo de bens para alm daquilo que

    material: Segundo j preconizava o

    jusracionalismo cristo, no final da Idade

    Mdia, o homem, por sua descendncia

    divina, gozava de autonomia terrena e

    respondia, individualmente, perante o

    Criador, no se confundindo, assim, com o

    mundo da physis, o qual poderia, inclusive,

    ingressar na esfera do poder humano, sob a

    forma de propriedade.29

    27 MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.129.

    28 MENEZES LEITO, Cesso de crditos, p.131.

    29 GEDIEL, J. A. P. Tecnocincia, dissociao epatrimonializao jurdica do corpo humano. In:FACHIN, L. E. (Coord.). Repensando fundamentosdo Direito Civil Basileio contemporneo. 2. tiragem.Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.61. Sobre estemomento histrico, esclarece Adriana EspndolaCorra: No nominalismo, o domnio que a pessoaexerce sobre si e sobre as coisas do mundo, aocontrrio do pensamento tomista, no tem suaorigem em uma ordem racional divina, mas navoluntas. Para Guilherme DOccam, a naturezadivina age livremente, com base na voluntas divina,independentemente da razo. O homem, sendo

  • 141

    Nestas circunstncias, faltava apenas

    relativizar a eficcia multicentenria da tradio

    na transmisso da propriedade para se alcanar

    a livre disposio deste elemento patrimonial.

    Segundo Menezes Leito, o salto foi

    dado por Pufendorf:

    A doutrina de GROTIUS vem a ser seguidapor Pufendorf (1632-1694) para quem apropriedade, consistindo na atribuio de umbem a outra pessoa com excluso de todas asoutras, pode ter por objecto no apenas as coisascorpreas, mas antes qualquer bem que por siou justamente com outro possa ser de utilidadepara o ser humano. Essencial apenas que obem possa ser colocado na esfera de umapessoa e subtrado propriedade e conseqenteesfera de vontade de outrem (...).Assim, PUFENDORF refere-se no captulorelativo transmisso da propriedade em termosidnticos transmisso de coisas e de direitos,sustentando igualmente que, ao contrrio do quesucedia no Direito Civil, no jusnaturalismo aentrega material da coisa (tradio) no necessria transmisso da propriedade, umavez que esta seria uma qualitas moralis, umapura categoria jurdica, que deve ser separada dodomnio fctico sobre o objecto. A posse seriaassim em relao propriedade apenas umcomplemento, uma pura execuo emprica deuma qualitas moralis j existente, a propriedade.Mas, dado que a propriedade como qualitasmoralis no poderia depender de circunstnciasfsicas, produzindo efeitos de direito ergaomnes, apenas o contrato, sendo tambmuma qualitas moralis, poderia operar a sua

    transmisso, sendo dispensvel a tradio, salvopara quem integre a posse no conceito depropriedade. PUFENDORF chega assim concluso de que a transmisso da propriedadetanto abrange coisas como direitos (translatioiurium atque rerum), admitindo assim umasucesso singular nos crditos, na medida emque estes, como objecto de propriedade,poderiam ser transmitidos por contrato.30

    Estava lanada a base para a fixao

    da cesso de crdito na etapa da primeira

    codificao. Pelo menos dois aspectos

    no pensamento de Pufendorf merecem

    ateno especial.

    Em primeiro lugar, sobressai o

    redimensionamento da relao entre posse

    e propriedade e a importncia dessa

    nova construo para uma mitigao da

    importncia da tradio para a transmisso

    de riquezas. Encontra-se neste ponto a

    justificao filosfica para a posterior

    construo conceitual no direito francs de

    que o contrato, em linha de princpio, por si

    s apto a transferir a propriedade.

    Ora, a propriedade como qualitas moralis

    independe da relao ftica com a coisa. Esta

    concepo, por sua vez, acaba sendo

    projetada na concepo subjetivista da posse

    como pressuposto indispensvel para a

    eficcia real do contrato em ordenamentos

    jurdicos como o francs, o italiano, o

    portugus, dentre outros.

    Verifica-se tambm, neste momento

    histrico, uma alterao de perspectiva sobre

    o fenmeno obrigacional, que deixa de ser

    preso aos ossos da pessoa para ser expressado

    mediante um componente patrimonial.

    Deixa-se o ser para resolver o problema no ter,

    imagem e semelhana de Deus, reproduz a voluntasdivina na sua vontade e exerce no mundo suapotestas absoluta. Esses poderes e a liberdade deagir decorrem do dominium que a pessoa tem sobresi e sobre as coisas do mundo, do que se extrai umavinculao entre a liberdade e a relao de dominiumentre a persona e a res (CORRA, A. E. Consentimentodo paciente e dever de informar do mdico: os limites

    da autonomia corporal. Dissertao de Mestradoorientada pelo Prof. Dr. Jos Antnio Peres Gediel,2002, p.41-42).

    30 MENEZES LEITO, Cesso de crditos,p.132-134.

  • 142

    numa questo meramente de titularidade,

    disponibilidade e responsabilidade patrimonial.

    O crdito absorvido pelo discurso abstrato e

    generalizante da propriedade, conforme

    reflexo crtica de Erolths Cortiano Jr.,

    apontando para uma potencializao extrema

    das possibilidades de circulao. Neste

    sentido, o crdito torna-se uma mercadoria.31

    Esta transposio conceitual fica clara em

    Collin & Capitant que definem o crdito como

    um valor, tornando a pessoalidade do credor

    e do devedor dispensvel na relao jurdica.32

    Na era segunda codificao, mormente

    com o Cdigo Civil alemo, adota-se uma

    soluo diversa. O direito alemo marcado

    por uma rgida separao entre os planos

    obrigacional e real33 postulando, por

    conseqncia, solues diferentes para a

    transmisso das coisas e direitos.

    Christoph Krampe entende que,

    substancialmente, neste ponto resplandece

    a diferena da noo de bem jurdico no

    ordenamento francs em face do alemo, pois,

    enquanto para os franceses bem jurdico ne

    signifie pas seulement lobjet, mais aussi le

    droit sur cet objet, o pensamento jurdico

    alemo ne connat pas de proprit dune

    crance. Il ny a proprit quenvers des

    choses, et ce quest une chose se trouve dfini

    dans le code civil allemand (article 90),

    comme suit: .34

    Esta diferena essencial na teoria dos

    bens e de sua transmissibilidade no direito

    francs perante o direito alemo ter

    reflexos profundos. No que diz respeito ao

    direito alemo, vigora a estrita separao de

    planos, de modo que o negcio jurdico de

    constituio da relao jurdica obrigacional

    diverso e incomunicvel com o negcio

    jurdico de transmisso.

    Sobre o sistema alemo, falou suscintamente

    em aula Alcides Tomasetti Jr.:

    Na Alemanha, h um procedimento negocial quetem de ser rigorosamente seguido para que ocorraa aquisio inter vivos da propriedade imobiliriapelo registro. Todo este procedimento foi umtanto artificialmente criado por ocasio daelaborao do BGB, cuja artificiosidade foi

    31 Na abstrao do modelo proprietrio, o objetodo direito de propriedade tambm no se concretiza.Ou, por outras palavras, o sistema conceitual nopermite que a noema faa referncia e especificaoa determinado e conceto bem. O modelo proprietriodeve ser universal e atemporal; deve permitir que aapopriao de todo e qualquer bem se subsuma aopreceito fundamentador do direito de propriedade.A abstrao do objeto da propriedade imprescindvelem um sistema baseado na lgica do mercado, ondetudo tem de ser passvel de entrar em circulao.Todas as coisas devem reduzir-se ento a um mnimocomum, que a mercadoria. Onde importa o valorde troca e no o valor de uso, tudo se equivale. Parafazer tudo se equivaler, a norma abre mo de conceituara propriedade a partir da coisa apropriada(CORTIANO JR, E. O discurso jurdico da propriedadee suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.124).

    32 La personnalit du dbiteur et celle ducrancier se sont de plus en plus limines du rapportde droit. Lobligation, soit au point de vue actif, soitau point de vue passif, na plus t considre quepar son rsultat, cest--dire comme un lment delactif ou du passif du patrimoine, comme une valeur,aussi rationnellement transmissible que les autresvaleurs, que les droits rels et, notamment, quela proprit (COLLIN, A.; CAPITANT, H. Couslmentaire de Droit Civil Franais. avec le concoursde M. Julliot de la Morandire. t.II. 8.ed. Paris:Dalloz, 1935, p.355).

    33 Sobre o assunto, no Brasil, cf. COUTO E SILVA,C. V. A obrigao como processo. So Paulo:Bushatsky, 1976

    34 KRAMPE, C. Obligation comme bien: Droitfranais et allemand. In: Archives de philosophie dudroit: Lobbligation. Paris: Dalloz, 2000, p.206.

  • 143

    motivo de polmica e de tentativas de reforma,vez que o leigo no conseguiria penetrar nacomplexidade do sistema alemo de transmissoda propriedade imobiliria.Para o leigo, tanto no Brasil, quanto naAlemanha, quem compra dono.Imaginemos o contrato de compra e venda nocampo das obrigaes. Sua eficcia tpica acriao da relao jurdica de compra e venda,na qual incumbe ao vendedor transferir apropriedade da coisa (frise-se, no transfere,promete transfeir), contra o dever do compradorde efetuar a prestao do preo. Este o ncleodo contrato de compra e venda.Aps o contrato obrigacional, os alemes falamem acordo de transmisso (Einigung) e nocontrato de direito das coisas. O significadode Einigung acordo de transmisso.

    Seguindo as explicaes de Alcides

    Tomasetti Jr o sistema alemo de transmisso

    da propriedade e, com ele, a rgida separao

    entre o plano obrigacional e real poderia ser

    sinteticamente descrito da seguinte maneira:

    Na Alemanha distinguem-se quatro fasespara a transmisso da propriedade imobiliria(Auflassung):O negcio jurdico contratual (Grundgeschft) negcio basal e opera apenas no campo dodireito das obrigaes, cuja sua eficciapredominante, mas no esgotante, est na criaoda relao jurdica de compra e venda, gerandopara o vendedor o dever em sentido estrito (isto, um dever comportamental) de transferir acoisa, e para o comprador, o dever em sentidoestrito de transferir o numerrio. Havendoconsentimento sobre a troca da coisa pelo preo,temos o negcio devidamente aperfeioado noplano obrigacional.Acordo de transmisso. (Einigung, que Pontesde Miranda traduz como negcio juri-real).Os alemes, sob a influncia de Savigny,perceberam contratos cujos efeitos no seexpandiam somente no campo do direito dasobrigaes mas tambm no campo do direitodas coisas. A Einigung est no campo do direitodas coisas, de modo que na Alemanha podehaver compra e venda perfeita, sem que tenha

    sido acordada a transmisso da coisa vendida;Eintragungsbeweillung (insero, na traduoliteral; do consentimento para o registro): negcio jurdico unilateral, que operaexclusivamente no campo do direito das coisase, cujo contedo vem dado pelo consentimentopara uma nova aquisio constituda medianteo registro. Assim, na Alemanha, pode-secomprar e vender, e no acordar sobre atransmisso; pode-se acordar para comprar evender, e desde logo vender e transmitir, emmomento simultneo ou posterior, mas semprepelo intermdio de dois diversos negciosjurdicos de formao bilateral, isto , o contratode venda e compra e o acordo de transmisso.Eintragung: Esta palavra desgina o ato deregistro, semelhante ao exerccio da chamadajurisdio voluntria;A transmisso imobiliria na Alemanha,portanto, envolve trs negcios jurdicos dedireito privado (os trs primeiros) e um atojurdico de direito pblico estatal.35

    A mesma abstratividade que se interpe

    entre o Grundgeschft e a Einigung (negcio

    jurdico bilateral ou verdadeiro contrato de

    direito das coisas: Dinglichervertrag), que

    marcaria a separao entre o plano obrigacional

    e o plano real seria verificvel, em direito

    alemo, na cesso de crdito, pela diferena

    funcional (e abstratividade) entre o negcio

    jurdico de base que causal e propicia o

    fundamento da disposio patrimonial

    efetuada mediante o negcio transmissivo

    subseqente ou contemporneo e o negcio

    de transmisso do crdito.

    Esta duplicidade de negcios, em direito

    alemo, encontra, dentre outros autores, esta

    explicao de Karl Larenz:

    35 TOMASETTI JR., A. Fundamentos do direitodos contratos. So Paulo, 1999, 130p. (Anotaesbrevemente revistas pelo docente no decurso dedisciplina ministrada em nvel de ps-graduao naFaculdade de Direito da Universidade de So Paulo).

  • 144

    Los denominados negocios dispositivos decrditos tienem carcter abstracto segn elsistema del BGB, es decir, su validez en derechoes independiente de su causa juridica. Estaltima radica, generalmente, en un negocioobligacional que precede al acto dispositivo ocoincide con l . Un crdito puede, p.ej., sercedido por medio de un contrato de compraventa(...) o de donacin, y tambin como medio decumplimiento de una obligacin o en conceptode dacin en pago. Por consiguiente, la cesincomo negocio dispositivo ha de diferenciarseconceptualmente del negocio bsico obligacionaly de otras estipulaciones jurdicas causales,aunque ambos, como casi siempre suele ocurrir,coincidan temporalmente y en la conciencia delos interessados.36

    Esta diferenciao e, sobretudo, a

    abstratificao do negcio jurdico de

    transmisso do crdito em face do negcio

    jurdico bsico e causal entre o negcio jurdico

    de base e o negcio jurdico de transmisso

    no reconhecida noutros ordenamentos

    jurdicos ainda quando a transmisso da

    propriedade se opera por efeito do contrato.37

    Nestas circunstncias, cabe investigar

    qual o modelo mais apropriado para

    compreender a transmissibilidade de crditos

    e dbitos no direito positivo brasileiro.

    36 LARENZ, K. Derecho de obligaciones. t.I. trad.Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista deDerecho Privado, 1958, p.447. No mesmo sentido, aexplicao de Ennecerus-Lehman: el contenido deeste contrato es la transmisin del derecho de credito.Por tanto, la cesin no ha de confundirse con elcontrato por el cual se asume una obligacin de ceder,por ejemplo, la venta del crdito. Verdad es que confrecuencia la cesin va unida externamente a estenegocio bsico (e incluso en la venta del crdito vaimplcito, por regla general, un contrato tcito decesin), pero, aunque as sea, la cesin es un contratoabstracto; el convenio sobre el fin no forma parte, enmodo alguno, del contrato de cesin (ENNECCERUS-LEHMANN. Derecho de obligaciones. In: ENNECCERUS-KIPP-WOLFF. Tratado de derecho civil. trad. Blas PrezGonzlez y Jos Alguer. t.II. Barcelona: Bosch,1954, p.382).

    37 No direito portugus, cite-se Menezes Leito:No nosso sistema jurdico, o negcio que serve debase cesso sempre causal, pelo que a cesso de

    crditos no constitui entre ns uma forma detransmisso abstracta do crdito (MENEZES LEITO,Cesso de crditos, p.132-134) e Antunes Varela:(...) fcil verificar que nenhuma razo existe, emface do sistema jurdico portugus, para se considerara cesso de crditos como um negcio abstracto(VARELA, A. Das obrigaes em geral. t.II. 7.ed.Coimbra: Almedina, 1999, p.299). No direitoespanhol, l-se em nota de rodap na obra de CastnTobeas que (...) como quiera que la traditio debetener una iusta causa, tambin la cesin debe basarseen una causa, ya que sin ella sera estril, y como lacesin puede ser voluntaria y necesaria, segn derivede una convencin libre de las partes o seacoactivamente impuesta por la ley, su causa ser enesta ltima el precepto legal mismo y en aqulla unnegocio jurdico que podr ser ya un acto a ttulogratuito (donacin), ya un acto a ttulo oneroso(compraventa, permuta), tanto la constitucin deuna relacin obligatoria cuanto la resolucin de unarelacin preexistente (pago) (TOBEAS, Derechocivil espaol, comn y foral, p.243). Em direitoitaliano, Panuccio adverte que Vi sono dei casi (e lacessione fra questi) in cui lo schema negoziale econtrattuale in s considerato non sufficiente adeterminare gli effetti e deve essere integrato in unoschema pi ampio che dia rilievo al sistema di interessigiuridici, cio alla causa poer cui l`atto si compie.Perch la cessione possa operare giuridicamente lalegge richiede espressamente (art. 1260 c.c) un titolooneroso o gratuito capace di fondare il transferimento.Per ci la cessione in quanto tale uno schemaincompleto di negozio che va integrato per operaregiuridicamente con un titolo oneroso o gratuito(PANUCCIO, V. Cessione dei crediti. In: Enciclopediadel diritto. t.VI. Milano: Giuffr, p.850). No mesmosentido, Umberto Breccia: Per orientarsi tra ledivergenti teorie, opportuno precisare che lacessione resta neutra, con riguardo al fondamentogiustificativo, soltanto in quanto effetto legale, ma ilsingolo accordo rivolto alla cessione, una voltastipulato, valido purch abbia una causa, perqunto questultima possa assumere caratteri diversiin relazione al contenuto della singola operazionecontrattuale (BRECCIA, U. Le obbligazioni. Milano:Giuffr, 1991, p.779).

  • 145

    3 A CESSO DE CRDITOS NO

    DIREITO BRASILEIRO

    Lacerda de Almeida, tomando por base

    o direito civil brasileiro anterior nossa

    primeira codificao, escreveu: o pensamento

    moderno no intuito da mobilizao das

    riquezas, tende a materializar, a corporificar

    os direitos e obrigaes equiparando-os no

    modo de transferncia s cousas mobiliarias.38

    Com efeito, no direito brasileiro, desde

    o Cdigo Civil de 1916, a cesso de crdito

    expressamente prevista e, mesmo antes

    dele, reconhecida pela doutrina e pela

    jurisprudncia.39

    A doutrina brasileira, com raras porm

    honrosas excees, pouco problematizou a

    cesso de crdito, chegando, quando muito,

    a afirmar que se trataria, simplesmente, de

    mais um tipo contratual.40

    J.M. Carvalho de Mendona intuiu a

    impossibilidade de limitar a cesso de crdito

    a um contrato tpico, ao escrever que: A cesso

    pode ter por causa qualquer dos meios de

    transmitir a propriedade; na frase de um

    jurisconsulto, ela simpatiza com todos os

    meios de transmisso da propriedade.41

    Carvalho Santos, do mesmo modo, notou

    bem que A cesso dos crditos , pela

    sua ndole, um instituto que serve para

    fins diversos .42

    Antes destes autores, Lacerda de Almeida

    expressara o entendimento de que no fenmeno

    da cesso de crdito seria possvel identificar

    dois atos distintos: (a) a transferncia do crdito

    (cesso propriamente dita) e (b) o contrato

    que lhe d causa:

    Cesso a transferncia que o credor faz aterceiro de seu direito contra o devedor. Nadamais alm disso. Mas esta transferncia,como a tradio, nada significa, um actovasio: nunquam nuda traditio trasnfertdominium sed ita si aliqua causa precedat per

    quam dominium transferatur.(...) como a tradio a cesso de creditossuppe um contracto que a explique e essecontracto , em regra, o de compra e venda.43

    A explicao rigorosa dessa duplicao

    de negcios (negcio jurdico de base e negcio

    jurdico de transmisso) foi apresentada, em

    direito brasileiro, originalmente por Pontes

    de Miranda:

    A cesso de crdito negcio jurdico bilateralde transmisso de crdito entre o credor eoutrem. base dle pode haver negciojurdico, porm a cesso de crdito independedle, ou da sua existncia. A manifestao de

    41 CARVALHO DE MENDONA, M. I. Doutrinae prtica das obrigaes. 4.ed. aumentada eatualizada por Jos de Aguiar Dias. Rio de Janeiro:Forense, 1956, p.97.

    42 CARVALHO SANTOS, J. M. Cdigo civilbrasileiro interpretado. 3.ed. v.XIV. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 1945, p.320.

    43 LARCEDA DE ALMEIDA, Dos effeitos dasobrigaes, p.364-365.

    38 LACERDA DE ALMEIDA, F. P. Obrigaes.Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1897, p.452.

    39 Clvis Bevilaqua, ao tratar do art. 1.065 doCdigo Civil de 1916 diz sobre o direito anterior codificao: Semelhante a norma, ainda que nodevidamente expresso o preceito (BEVILAQUA, C.Cdigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. 10.ed.v.IV. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955, p.181).

    40 Sobre a cesso de crditos como contrato,posiciona-se Silvio de Salvo Venosa: a naturezacontratual do negcio patente. um contratosimplesmente consensual, mas por vezes a necessidadeobrigar o escrito particular ou a forma pblica(VENOSA, S. S. Direito Civil: teoria geral dasobrigaes e teoria geral dos contratos. v.II. 3.ed.So Paulo: Atlas, 2002, p.334).

  • 146

    vontade elemento de acordo de transmisso, eesse acordo semelhante ao acordo de transmissoda propriedade imobiliria ou mobiliria, operaa transmisso sem precisar de qualquer outroelemento (e.g., na transferncia da propriedadeimobiliria, o registro; na transferncia dapropriedade mobiliria, a tradio, ou outro ato,inclusive registro.).44

    A percepo da dualidade entre o negcio

    jurdico que d base cesso (que pode ser

    um negcio jurdico ou outro ato jurdico) e

    o efeito de transmisso (o negcio jurdico

    de cesso de crdito propriamente dito) como

    adimplemento do negcio jurdico basal

    absolutamente indispensvel para que este

    instituto possa servir aos fins diversos,

    outrora simplesmente percebidos por

    Carvalho Santos, sem mais reflexes.

    Da o equvoco grave e crasso de limitar

    a cesso de crdito a um mero tipo contratual,

    sobretudo em um tipo contratual fechado.

    A cesso de crdito pode ter por base um

    contrato oneroso, sendo que, neste caso,

    efetivamente existe uma proximidade com o

    contrato de compra e venda.

    A base, todavia, pode ser diversa da

    compra e venda. possvel ceder um crdito

    por intermdio de um contrato de doao

    (cujo adimplemento importe na transferncia

    gratuita de crdito, art. 295, in fine, CC 2002).

    Do mesmo modo, a cesso de crdito

    pode ter por base um negcio jurdico de

    adimplemento, como a dao em pagamento

    (art.358, CC 2002), ou um negcio jurdico

    unilateral como a promessa de recompensa

    (art. 854, CC 2002); um contrato de cesso

    fiduciria de crditos em garantia (como,

    v.g., na Lei do SFI, Lei n. 9.514/97), ou um

    contrato de cesso de um conjunto de crditos

    futuros, internacionalmente conhecido como

    contrato de factoring.

    Para que a cesso de crdito possa ser

    realizada enquanto adimplemento de to

    diferentes negcios de base que o legislador

    enunciou um tipo geral, sem todavia fixar

    uma causa tpica correspectiva. L-se no art.

    286 do CC 2002, pura e simplesmente, que

    O credor pode ceder o seu crdito, se a isso

    no se opuser a natureza da obrigao, a

    lei, ou a conveno com o devedor, sem

    qualquer remisso ao negcio de base que

    tem de dar causa transmisso.

    No mbito do direito positivo portugus,

    Antunes Varela expe um esclarecimento

    que se aplica integralmente ao direito

    brasileiro: A cesso tem, por conseguinte, a

    sua causa, varivel de caso para caso, que o

    artigo 577 intencionalmente omite ao definir

    a figura, por querer introduzir na noo legal

    apenas as notas comuns a todas as espcies

    geradoras do fenmeno da transmisso

    de crdito.45

    Cabe investigar a relao que se estabelece

    entre o negcio jurdico de base e o negcio

    jurdico de cesso de crditos, em sentido

    prprio e estrito, perquirindo a abstratividade

    ou causalidade dessa relao.

    4 ABSTRATIVIDADE E CAUSALIDADE

    NA CESSO DE CRDITO

    O debate a respeito da abstratividade ou

    da causalidade no negcio de cesso de crdito

    enfrentado pela quase totalidade da doutrina

    estrangeira pesquisada a respeito.

    44 PONTES DE MIRANDA, Tratado de DireitoPrivado t.XXIII, p.268. 45 VARELA, Das obrigaes em geral, p.299.

  • 147

    Em perspectiva interna, os dados so

    alarmantes. Poucos autores brasileiros

    chegam sequer a mencionar o problema,

    muito provavelmente desatentos por causa

    da restrio da cesso de crditos a um mero

    contrato obrigacional ao lado dos demais.

    O problema coloca-se nos seguintes termos.

    No tpico precedente fixou-se o entendimento

    de que a cesso de crdito, entendida como

    negcio jurdico de transmisso, tem causa,

    subjacente ou sobrejacente, varivel. Da

    Pontes de Miranda referir-se a ela como um

    acordo de transferncia.46

    Cabe responder se entre o negcio jurdico

    basal (compra e venda, doao, dao em

    pagamento, factoring, por exemplo) e a cesso

    de crdito, como acordo de transferncia, h

    causalidade ou verdadeira abstrao causal.

    Antunes Varelas destrina o problema nos

    seguintes termos:

    Diz-se abstracto o negcio cuja validade no prejudicada pelas faltas ou defeitos inerentes relao jurdica fundamental que lhe servede base. Na fixao do seu regime jurdicoabstrai-se da causa negotti.A emisso e o endosso da letra de cmbio (oudos ttulos ordem, no geral) constituemnegcios abstractos, no domnio das chamadasrelaes mediatas, porque nem o aceitante, nemo endossado, podem opor ao portador (mediato)do ttulo os vcios inerentes ao contrato (relaosubstancial) que serviu de base ao aceite ou aoendosso. Certos negcios de transmisso dedireitos reais so considerados no direitogermnico como negcios abstractos, porque

    os vcios ligados relao fundamental

    (compra, doao, troca, constituio de

    sociedade, etc.) podem obrigar o adquirente

    a restituir, nas relaes entre as partes, mas

    no do lugar ao efeito real prprio da

    nulidade ou da anulao.47

    Ao se falar em abstratividade da cesso

    de crditos, portanto, h que se fixar, em

    primeiro lugar, em que sentido se utiliza a

    expresso: se abstrato por causas variveis

    (insuscetvel de ser limitado a uma causa

    eficente) ou abstrato no sentido de descolado

    quanto a sua existncia, validade e eficcia

    em face do negcio que lhe subjacente,

    sobrejacente, ou justajacente segundo a

    terminologia de Pontes de Miranda.

    A questo aqui proposta diz respeito ao

    segundo sentido.

    Como foi visto, em direito comparado

    existem basicamente duas correntes: a

    corrente alem, que defende a abstratividade

    da cesso de crdito em relao ao negcio

    subjacente, sobrejacente ou justajacente e

    as demais correntes europias que sustentam

    a causalidade entre o negcio de base e o

    negcio de transmisso.

    Na pequena e seleta parcela da doutrina

    nacional que enfrentou o assunto encontram-se

    os dois posicionamentos.

    Pontes de Miranda defende a abstratividade

    da cesso de crditos:

    Trata-se de negcio jurdico abstrato, porm

    no contrato de direito das coisas (juri-real,

    dinglicher Vertrg). vlida e eficaz a cesso,

    ainda que a causa no exista, seja ilcita, ou no

    se realize. Se houve cesso, sem causa, e o

    cessionrio se enriqueceu injustificadamente,

    46 O acordo de transferncia do crdito temcompleto o seu suporte fctico com as manifestaesde vontade do credor e do terceiro. A notificao apenas para a eficcia no que toca ao devedor, quese supe no conhecer o que se passou a respeito dasua dvida (PONTES DE MIRANDA, Tratado deDireito Privado t.XXIII, p.268). 47 VARELA, Das obrigaes em geral, p.299.

  • 148

    pode o cedente pedir a repetio: o crdito volta;mas, enquanto no passa em julgado a sentena,

    o crdito pertence ao cessionrio.A cesso de crdito negcio jurdico abstrato.Porque a cesso abstrata, em si, no pode sernula por ilicitude de objeto. Se o negcio jurdicosubjacente nulo, cabe a repetio.(...) O negcio jurdico de cesso bilateral,

    abstrato, acrdo de transmisso, que independedo negcio jurdico subjacente, ou sobrejacente(cesso de crdito para servir de garantia anegcio jurdico de outrem, ou do prpriocedente). O efeito translativo, a imediatatransferncia do crdito ao cessionrio,

    independente do fim que se colimou, cedendo-se o crdito. Vale, e eficaz, a transferncia,ainda que se venha a decretar a nulidade, ou aanulao ou a ineifccia do negcio jurdicosubjacente, ou sobrejacente.48

    Outros juristas ptrios defendem uma

    inafastvel relao de causalidade entre o

    negcio jurdico de base e o acordo de

    transmisso do crdito, ainda que sem a clareza

    observada em Pontes de Miranda.

    Orlando Gomes, v.g., posiciona-se

    expressamente pela causalidade, ainda que

    no oferea ao leitor explicao sobre o porqu

    de sua opinio.49 Serpa Lopes identifica a

    duplicidade entre o negcio jurdico de base

    e o negcio jurdico de transmisso sem

    explicar, todavia, se h causalidade ou

    abstratividade entre eles.50

    Para encontrar uma soluo apropriada

    ao direito brasileiro, mostra-se necessrio ir

    alm dos lindes das regras especficas sobre

    a cesso de crdito. Isto porque a abstratividade

    ou a causalidade entre o negcio de base e o

    negcio de transmisso diz respeito ao sistema

    de transmisso de riquezas como um todo.

    No se verifica no direito privado brasileiro

    uma rgida separao entre o plano das

    obrigaes e o plano do direito das coisas.

    Tampouco justificvel uma rgida separao

    entre o negcio jurdico de base e o negcio

    jurdico de transmisso de crdito o que logo

    se verifica pela ponderao genrica

    dalgumas estruturas insertas no Cdigo Civil.

    48 PONTES DE MIRANDA, Tratado de DireitoPrivado t.XXIII, p.269-270. Caio Mario da SilvaPereira, ainda que no explicitamente, parece adotara tese da abstratividade mediante remisso ao direitoalemo: Segundo o conceito hodierno, a cessode crdito tratada como negcio jurdico abstrato(Larenz, von Tuhr), que se completa independentementeda indagao de sua causa. Pode-se, entre ns, defini-la como negcio jurdico em virtude do qual o credortransfere a outrem a sua qualidade creditria, comtodos os acessrios e garantias, salvo disposio emcontrrio. Tanto pode ser esta a venda como a doao.At mesmo a deixa testamentria. Em qualquer caso, sempre distinta do negcio jurdico que a originou(SILVA PEREIRA, C. M. Instituies de Direito Civil.v.II. 20.ed. Revista e atualizada por Luiz Roldo deFreitas Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 2003,p.363-64).

    49 No direito alemo, a cesso de crdito contrato abstrato. No se confunde com o negciobsico, que pode ser, por exemplo, uma venda, ouuma doao. Conseqentemente, a validade dacesso no est condicionada desse negcio, vistocomo lhe no serve de causa. Entre ns negciocausal (GOMES, O. Obrigaes. 8.ed. Rio de Janeiro:Forense, 1986, p.246). Noutra oportunidade, o autordestacou que Como se sabe, a cesso de crditopode ter diversas causas, dentre as quais so maiscomuns: a venditionis causa, a donandi causa e asolvendi causa (GOMES, O. Cesso de crdito:caracterizao. In: Novssimas questes de DireitoCivil. So Paulo: Saraiva, 1984, p.88).

    50 (...) a cesso de crdito um negciojurdico no criador de obrigaes, seno detransmisso. Por essa transmisso o credor originrio substitudo pelo adquirente do crdito, enquantoeste permanece objetivamente inalterado, comoinalterada, subjetivamente, a posio do devedorcomo tal (SERPA LOPES, M. M. Curso de DireitoCivil. v.II. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p.519).

  • 149

    Para tanto, chama-se a ateno para os

    seguintes argumentos. Ao tratar das regras

    gerais do cumprimento das obrigaes, o

    Cdigo Civil, no art. 307 enuncia que s

    ter eficcia o pagamento que importar

    transmisso da propriedade quando feito

    por quem possa alienar o objeto em que

    ele consistiu.

    No mesmo Cdigo, a disciplina da dao

    em pagamento, segundo o art. 358, assim

    estabelece: Se for ttulo de crdito a coisa

    dada em pagamento, a transferncia importar

    em cesso. O artigo seguinte determina: Se

    o credor for evicto da coisa recebida em

    pagamento, restabelecer-se- a obrigao

    primitiva, ficando sem efeito a quitao dada,

    ressalvados os direitos de terceiros.

    Ao tratar do pagamento indevido, por sua

    vez, o art. 880 prescreve fica isento de

    restituir pagamento indevido aquele que,

    recebendo-o como parte de dvida verdadeira,

    inutilizou o ttulo, deixou prescrever a

    pretenso ou abriu mo das garantias que

    asseguravam seu direito; mas aquele que

    pagou dispe de ao regressiva contra o

    verdadeiro devedor e seu fiador.

    Ainda que no exista regra especfica

    sobre a abstratificao ou a causalidade da

    transmisso de crdito em relao ao negcio

    que lhe d base e, mesmo considerando que

    as regras citadas mencionam coisas e no

    crditos, pode-se perceber que, em geral, os

    negcios jurdicos transmissivos so causais

    no direito brasileiro. Esta uma firme

    tendncia do sistema.51

    Propugnar pela abstratividade da cesso

    de crditos conduziria a solues insustentveis

    sob a perspectiva do direito brasileiro.

    Suponhamos uma doao de crditos do

    cnjuge adltero ao seu cmplice (negcio

    de base), seguido da efetiva cesso

    (normalmente feita em momento simultneo,

    mas no necessariamente).

    Pela tese da abstratividade, a despeito do

    negcio de doao ser anulvel (art. 550 do

    Cdigo Civil), a transmisso do crdito seria

    perfeita e inatingvel, dada a incomunicabilidade

    entre as causas.

    Do mesmo modo, a dao em pagamento,

    seguida da transferncia do crdito, mesmo

    quando feita por pessoa absoluta incapaz,

    propiciaria o pagamento eficaz do cessionrio

    e a inatacabilidade da operao negocial de

    adimplemento por parte do representante do

    devedor cedido.

    Por fim, o cessionrio de crditos de um

    insolvente poderia receber o pagamento do

    devedor cedido, sem que esta operao de

    transferncia pudesse ser anulada por fraude

    contra credores.

    Mas por qual razo a abstratividade da

    cesso de crdito conduz a essas situaes?

    A cesso de crdito no gera efeitos

    simplesmente obrigacionais. Trata-se de

    negcio jurdico dispositivo, justificado pelo

    exerccio eficaz do poder de disposio que,

    51 Cite-se, neste sentido, reflexo anloga feitano direito italiano: Era principio tradizionale che lacessione dovesse avere una iusta causa, e chepertanto fosse nula una cessio facta sine causa, o ex

    falsa causa, o generaliter ex omni causa ex quatitulus quo facta fuit annullatur, vel ex simulatione,

    ex metu, ex defectu insinuationis, ecc. Analogamentealla tradizionale concezione dellacquisto derivativodella propriet, legata alla distinzione tra la causa (otitolo), e il modo di acquisto, anche rispetto allacessione si era affermata fin dal tempo dei glossatoribolognesi, come abbiamo visto, lesigenza diidentificare, oltre alla causa, un atto di cessione(ASTUTI, Cessione (storia), p.820).

  • 150

    como regra geral (salvo expressas previses

    restritivas), diz respeito disponibilidade

    de todos atinge dos os bens integrantes

    do patrimnio.52

    Nos negcios jurdicos de disposio, a

    causalidade mostra-se elemento indispensvel

    para a tutela da segurana do trnsito de

    riquezas. Ainda que se verifique uma separao

    entre o negcio jurdico (causal) e o negcio

    jurdico de adimplemento (abstratificado, de

    transmisso, de disposio), esta separao

    h que ser necessariamente relativizada pelo

    princpio jurdico da causalidade segundo

    o qual est norteada a transferncia de bens

    (latissimo sensu) no direito privado positivo.

    Ainda que a propsito da relao entre o

    negcio jurdico obrigacional e o negcio

    jurdico de direito das coisas em matria de

    transmisso de bens imveis, parece oportuna

    a citao do pensamento de Clvis do Couto

    e Silva:

    Em sistema de separao relativa, a declaraode vontade que d contedo ao negciodispositivo pode ser considerada como co-declarada no negcio obrigacional antecedente. que na vontade de criar obrigaes, insere-senaturalmente a vontade de adimplir o prometido.No fora, assim, o negcio jurdico no teria ascondies mnimas de seriedade que o Direito

    exige. Da, porque, quando algum vende algo,demonstra, tambm, nesse preciso momento,vontade de adimplir o prometido.Essa vontade de adimplir inseparvel, no planopsicolgico, da vontade de criar obrigaes.Faltaria seriedade vontade criadora do dever,se, ao mesmo tempo, no se desejasse adimpliro prometido. Esta inseparabilidade de vontades,entretanto, s existe, como tal, no planopsicolgico. No palno jurdico, bifurca-se essavontade unitria, a fim de encher negciosjurdicos de dimenses diferentes: o obrigacionale o de adimplemento, ou de direito das coisas.53

    A causalidade aqui defendida, portanto,

    apresenta-se como uma decorrncia do princpio

    tico de que os vnculos obrigacionais devem

    ser dotados de seriedade. No necessrio

    recorrer ao voluntarismo tal como expresso

    no pensamento de Couto e Silva , mas aos

    valores que, objetivamente, iluminam o

    sistema de disposio.

    Na medida em que o negcio jurdico de

    disposio voltado diretamente diminuio

    do ativo patrimonial de quem dispe para

    propiciar o aumento patrimonial de quem

    recebe, a causalidade deve ser a regra e no a

    exceo, sobretudo pela razo de que o

    Cdigo em vigor explicita no sistema uma

    linha geral de vedao ao enriquecimento

    sem causa, nos termos do art. 884: Aquele

    que, sem justa causa, se enriquecer custa

    de outrem, ser obrigado a restituir o

    indevidamente auferido, feita a atualizao

    dos valores monetrios.

    Procura-se justificar a abstratividade

    da cesso de crdito, por fim, pela razo de

    que o devedor no cientificado da cesso,

    que paga ao cedente em vez de pagar ao

    52 Neste sentido, conforme explicao de KarlLarenz Por disposicin entendemos aqu todonegocio jurdico por el que el titular de un derechomodifica la extensin del mismo o su contenido, o como ocurre en los gravmenes ambos a la vez. Elpoder de disposicin se ofrece a la doctrina jurdicaactual como una parte integrante normal de tododerecho patrimonial que siempre corresponde altitular del derecho, salvo que excepcionalmente estprivado de l por un precepto legal o por disposicinjudicial, p.ej., en la apertura de un concurso deacreedores (LARENZ, Derecho de obligaciones,p.445).

    53 COUTO E SILVA, A obrigao como processo,p.57.

  • 151

    cessionrio obtm a liberao, nos termos do

    art. 292 do Cdigo Civil Brasileiro.

    O argumento no convence. O que se

    tutela, neste caso, a boa-f do devedor

    cedido, o qual ,segundo as circunstncias

    concretas do caso, efetua um pagamento

    putativo que, em geral, nos termos do art.

    309 do Cdigo Civil eficaz.

    Mesmo sem se concordar com um certo

    exagero ao indicar deveres de conduta

    especialssimos ao devedor cedido, a reflexo

    de Antunes Varela parece muito bem ajustada:

    Tem-se dito, no entanto, que so irrelevantespara o devedor (debitor cessus) os vcios docontrato de cesso: se for notificado da cesso,ou dela tiver conhecimento por outra via, e pagara dvida ao cessionrio, o pagamento efectuadopelo debitor cessus conservar a sua validade eeficcia, ainda que a cesso venhaposteriormente a ser declarada nula ou anulada.Duas observaes cumpre, no entanto, registrara propsito do tratamento concedido nesseaspecto situao do devedor.Em primeiro lugar, no o simples facto de ocrdito ter sido cedido a terceiro que isenta odebitor cessus do dever (de agir de boa f) queo n.2 do artigo 762 impe a ambos os sujeitosda obrigao. E no recto cumprimento dessedever incumbe-lhe averiguar da existncia e davalidade da cesso, no aceitando como boaqualquer informao irresponsvel queacidentalmente chegue ao seu conhecimento oua afirmao de qualquer pretenso cessionrio(do crdito). De contrrio, arriscar-se- a termesmo que cumprir segunda vez.Se, depois de se ter devidamente esclarecido,sobretudo junto do cedente, acerca da existnciae da validade da cesso, o devedor cumprirjunto do cessionrio, o pagamento no perder,na verdade, a sua validade e eficcia, pelo factode o contrato de cesso vir mais tarde a serdeclarado nulo ou anulado.Porm, conjugando esta soluo com assolues aplicveis aos dois aspectos dacesso primeiramente analisados, a conclusolgica a extrair dessa apreciao global, quanto

    ao regime do pagamento feito ao cedenteantes da notificao ou aceitao da cesso, que se trata apenas de proteger o pagamento(do devedor de boa f) ao credor aparentee no de considerar a cesso como umnegcio abstracto.54

    Anote-se, como argumento final pela

    causalidade, o artigo 182 do Cdigo Civil:

    Anulado o negcio jurdico, restituir-se-o

    as partes ao estado em que antes dele se

    achavam, e, no sendo possvel restitu-las,

    sero indenizadas com o equivalente.

    Se o negcio jurdico dispositivo (subjacente,

    sobrejacente ou justajacente) vier a ser

    anulado ou nulificado a regra a restituio

    ao estado em que antes dele se achavam, o

    que aponta decisivamente para a causalidade

    da operao.

    CONSIDERAES FINAIS

    Dentre os diversos temas do direito

    das obrigaes, a cesso de crdito conjuga

    uma srie de escolhas, provenientes de

    polticas legislativas consolidadas, que

    permitem refletir sobre todo o sistema de

    direito privado, mormente no que pertine

    disposio patrimonial.

    Esta via, no entanto, de mo dupla.

    A compreenso da cesso de crdito no

    pode ser minimamente alcanada pela

    simples reflexo sobre os doze artigos (art.

    286-298) que tratam da matria no Cdigo

    Civil. preciso partir do sistema para se

    compreender esta parte do direito civil

    que, por sua vez, conforme pretendemos

    demonstrar, encontra-se impregnada por uma

    determinada e especfica lgica de disposio

    54 VARELA, Das obrigaes em geral, p.301-302.

  • 152

    patrimonial. Da ser altamente injustificvel

    tratar a cesso de crditos, pura e simplesmente,

    a partir das escolhas encontradas em direito

    comparado, ignorando as graves diferenas

    que existem entre os sistemas.

    O Cdigo Civil de 2002 trata da cesso

    de crdito, ao lado da assuno de dvidas,

    no ttulo II do Livro Do Direito das

    Obrigaes. Trata-se de escolha acertada que

    aponta para a diferena entre o negcio

    jurdico basal e a cesso de crditos como

    negcio jurdico de adimplemento.55

    Ademais, o posicionamento sistemtico da

    transmisso de crditos ao lado da matria

    tratada no ttulo III, concernente ao

    adimplemento e extino das obrigaes,

    promove uma facilitao para compreenso

    da transmisso das obrigaes segundo a

    metodologia da relao jurdica obrigacional

    como processo, propugnada, em direito

    nacional, por Clvis do Couto e Silva.56

    Se, na histria do direito, pode-se perceber

    um penoso movimento de impessoalizao

    das relaes obrigacionais e reificao do

    crdito como pressupostos para construo

    terica da cesso de crdito (ao que tudo

    indicada, nascida das prticas comerciais

    revelia da conceituao pessoalista da

    relao obrigacional), contemporaneamente,

    outro movimento firma-se cada vez mais.

    A cesso de crditos, contemporaneamente,

    passa a representar muito mais do que um

    sofisticado mecanismo de transmisso de

    riquezas. Pode-se identificar muitas vezes, por

    intermdio da cesso de crditos (bem como

    da assuno de dvidas e da cesso da posio

    contratual), autnticas operaes de criao

    de riquezas ampliando consideravelmente

    a funo prtico-social deste tradicional

    instituto.57 As operaes de factoring

    representam um exemplo eloqente.

    Tudo isto justifica uma que este tradicional

    tema do direito das obrigaes seja revisitado.

    O presente estudo, nessa perspectiva,

    prope-se servir como provocao para tanto.

    55 Segundo Orlando Gomes: os alemesdistinguem, na cesso de crdito, dois aspectos, ofato e o efeito, ensinando que, conforme o ngulovisual do observador, ela se apresenta ou como oantecedente jurdico da transferncia do direito docredor ou como a conseqncia do ato translativo.O direito brasileiro considerou a cesso de crditosob o aspecto dos efeitos, colocando-a coerentementena parte geral das obrigaes e no no ttulo doscontratos (...) (GOMES, Novssimas questes deDireito Civil, p.82).

    56 Judith Martins-Costa vai mais longe. Para estaautora, a noo de obrigao como processo teriasido reconhecida pelo direito legislado, referindo-seao Cdigo Civil de 2002, sobretudo no que diz respeito sua estrutura (MARTINS-COSTA, J. Comentrios aonovo cdigo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.1.Com o devido respeito a esse posicionamento, noacreditamos que a ressistematizao da mobilidadenas obrigaes e das demais matrias seja suficientepara se concluir por uma adoo legislativa da noode relao jurdica obrigacional como processo, at

    mesmo porque o fenmeno obrigacional inaugurado no Cdigo Civil 2002 a partir dasmodalidades das obrigaes, mantendo sinais de umaperspectiva estrutural esttica da relao obrigacionaldiversa da perspectiva dinmica proposta por Clvisdo Couto e Silva.

    57 Neste sentido, Judith Martins-Costa esclareceque: No mbito das relaes obrigacionais avultam,como exemplos deste crescente fenmeno, certoscontratos que no servem mais apenas para fazercircular as coisas, mas, tout court, para faz-las, e emespecial para criar produtos financeiros (MARTINS-COSTA, Comentrios ao novo cdigo civil, p.5).

  • 153

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