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YURI CAMELO RIBEIRO
UMA ANÁLISE ESTRUTURAL DA CESSÃO DE CRÉDITOS
Fortaleza
2015
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YURI CAMELO RIBEIRO
UMA ANÁLISE ESTRUTURAL DA CESSÃO DE CRÉDITOS Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade 7 de Setembro, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito. Professor orientador: Dr. Bruno Leonardo Câmara Carrá.
Fortaleza
2015
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A Deus e aos meus pais, Marco e Antônia, por tudo nesta vida.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Marco Aurélio Schramm Ribeiro e Antônia Camelo Maciel,
meus maiores exemplos, em todos os aspectos.
À Kamilla Alcântara, por toda a compreensão e apoio, que provavelmente
fluem de uma fonte inesgotável.
Ao meu primo, Iago Ribeiro, a quem devo minha primeira amizade.
Aos amigos Sidney Melo e Michael Junior, pela demonstração diária do
que significa possuir amigos.
Ao amigo que comigo divide as alegrias e aflições da academia, Rafael
Vieira.
Ao professor Bruno Carrá, agradeço por tudo que me ensinou, guardo
tudo, não só em termos acadêmicos, mas para a vida, inclusive as discussões mais
intensas. Obrigado pela confiança que deposita em mim.
À professora Maria Vital, pela maestria com que exerce a coordenação do
curso de Direito e pelos conselhos sempre prudentes.
Ao professor Nelson Campos, a quem devo minha primeira monitoria, e
que mesmo em um curto espaço de tempo, marcou muito minha trajetória.
Ao professor Marcelo Siqueira, por ter aberto meus olhos ao estudo do
Direito das Obrigações.
Ao professor Daniel Miranda, por ter me apresentado a obra de Pontes de
Miranda.
Ao professor Fillipe Augusto dos Santos Nascimento, por ter sido o melhor
chefe que já tive.
Ao professor Paulo Carvalho, por me ensinar a pensar fora da caixa.
Aos professores Marcel Edvar Simões e Rodrigo Xavier Leonardo, cujas
palavras serviram e continuam a servir de grande inspiração.
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Dubium sapientiae initium. (René Descartes)
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RESUMO
O presente trabalho possui como objetivo realizar uma análise dogmático-estrutural da cessão de crédito. Para tanto, em um primeiro momento, faz-se um estudo histórico sobre a causa no Direito Privado, buscando-se esclarecer o conceito da expressão e a sua relevância para o tráfico jurídico-negocial. Em seguida, realiza-se uma análise comparada dos diferentes sistemas de transmissão da titularidade, com ênfase no sistema franco-italiano, no sistema alemão e no brasileiro. Com o conceito de causa estabelecido, torna-se possível compreender a abstratividade ou a causalidade ínsita a tais sistemas. Sobreleva, em tal momento, para o sistema brasileiro, a teoria da separação relativa entre os planos obrigacional e real, desenvolvida por Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, que, entretanto, não se encontra imune a críticas. Posteriormente, faz-se um estudo sobre a teoria geral da relação jurídica, com foco nos trabalhos desenvolvidos por Marcos Bernardes de Mello, José de Oliveira Ascensão, Giuseppe Lumia, Alcides Tomasetti Jr. e Rafael Vanzella. O desenvolvimento dos três últimos autores é fundamental para o momento seguinte do trabalho, no qual se passa a uma investigação dos aspectos dos contratos de disposição. Suas características são investigadas e elencadas para que, então, seja possível delinear seu conceito e sua natureza jurídica. Por fim, torna-se possível a análise estrutural, sob um enfoque dogmático, da cessão de créditos, ressaltando-se sua importância na circulação e produção de riquezas, além da necessidade de ser tida como um processo complexo. Palavras-chave: Cessão de créditos. Contrato de disposição. Relação jurídica.
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ABSTRACT
The objective of this word is to conduct a dogmatic structural credit assignment analysis. To do so, at first, it is done a historical study on the meanings of the term cause in private law, seeking to enlighten the concept of that expression and its relevance to the legal negotiating traffic. After that, a comparative analisys of different property transmission systems is made, with emphasis on the French, Italian, German and Brazilian systems. Then, it becomes possible to understand the abstractness or causality inherent to such systems. Outweights, in this moment, in the Brazilian system, the theory of relative separation between the obligational and real plans, developed by Clovis Veríssimo do Couto e Silva, which, however, is not immune to criticism. Subsequently, a study on the general theory of legal relation is done, focusing on work developed by Marcos Bernardes de Mello, José de Oliveira Ascensão, Giuseppe Lumia, Alcides Tomasetti Jr. and Rafael Vanzella. The conceptions of the last three authors are essential for understanding the next item of the work, in which the aspects of the executor contracts are made. Its characteristics are investigated and listed, so it is possible to outline its concept and legal nature. Finally, it becomes possible the structural analysis, under a dogmatic approach, to the credit assignment, highlighthing its importance in the circulation and production of wealth, focusing on the need to that institute be seen as a complex process. Keywords: Executory contracts. Cession of credits. Juridic relation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 11
1 O PROBLEMA DA CAUSA NO DIREITO PRIVADO............................ 13
1.1 Do Direito Romano aos pós-glosadores................................................ 13
1.2 No Direito moderno............................................................................... 18
1.2.1 Doutrina francesa ou subjetivista.......................................................... 19
1.2.2 Doutrina italiana ou objetivista.............................................................. 20
1.3 A concepção contemporânea a partir da crítica da noção de causa
da obrigação........................................................................................
22
2 SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO JURÍDICA................... 25
2.1 A unicidade franco-italiana................................................................... 25
2.2 A abstração alemã................................................................................ 28
2.3 O sistema do Direito Patrimonial Privado brasileiro.............................. 32
2.3.1 A concepção de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva............................. 32
2.3.2 A concepção de Pontes de Miranda.................................................... 37
3 TEORIA GERAL DA RELAÇÃO JURÍDICA......................................... 39
3.1 Da esfera jurídica................................................................................. 39
3.2 Da relação jurídica................................................................................ 41
3.2.1 Conforme concepção de Marcos Bernardes de Mello........................... 41
3.2.1.1 Situação jurídica básica........................................................................ 41
3.2.1.2 Situações jurídicas simples ou unissubjetivas...................................... 42
9
3.2.1.3 Situações jurídicas complexas ou intersubjetivas unilaterais................ 43
3.2.1.4 Relação jurídica..................................................................................... 44
3.2.2 Conforme concepção de José de Oliveira Ascensão........................... 47
3.2.3 Interlúdio............................................................................................... 49
3.2.4 Conforme concepção de Giuseppe Lumia (com contribuições de
Alcides Tomasetti Jr. e Rafael Vanzella).............................................
50
4 ASPECTOS GERAIS DO CONTRATO DE DISPOSIÇÃO.................. 55
4.1 Contratos obrigacionais e contratos de disposição.............................. 55
4.2 Características, conceito e natureza jurídica dos contratos de
disposição............................................................................................
56
4.2.1 Características..................................................................................... 56
4.2.1.1 Categoria jurídica que articula os problemas regulados pelo regime
de numerus clausus.............................................................................
56
4.2.1.1.1 Conceito de direito real e direito de crédito.......................................... 57
4.2.1.1.2 Fundamento do numerus clausus dos direitos reais e dos contratos
de disposição........................................................................................
62
4.2.1.1.3 O princípio da separação do direito das obrigações do direito das
coisas...................................................................................................
67
4.2.1.1.4 Considerações..................................................................................... 69
4.2.1.2 Regulador do poder de dispor.............................................................. 70
4.2.2 Conceito e natureza jurídica................................................................. 73
5 DA CESSÃO DE CRÉDITOS................................................................ 75
5.1 Estrutura, existência e natureza jurídica............................................... 77
10
5.2 Requisitos de validade......................................................................... 81
5.2.1 Objeto................................................................................................... 82
5.2.2 Capacidade (e legitimidade) das partes................................................. 83
5.2.3 Forma................................................................................................... 84
5.3 Fatores de eficácia................................................................................ 85
5.4 Figuras especiais ligadas à cessão de créditos..................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 91
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 93
11
INTRODUÇÃO
A circulação de riquezas sempre foi tema apto a ensejar a ação
regulatória do Direito. Desde os romanos até os dias atuais. Entrementes, sabe-se
que os usos e costumes de cada época e local originam normas diferentes.
Em certos momentos, a propriedade imobiliária é o bem mais importante
de determinada sociedade, enquanto em outros, assumem relevância os direitos
creditícios. Ambos são objetos do Direito Patrimonial Privado; isso significa que
antes das diferenças que os peculiarizam, deve ser entendido que existe uma
disciplina comum a regrá-los.
A circulação de riquezas pode ser entendida como um efeito da
transmissão de titularidades e cabe ao Direito Patrimonial Privado tratar sobre o
tráfico jurídico-negocial. Relevante, por conseguinte, descobrir-se que, em dias
atuais, a transmissão de titularidades é fenômeno apto não só a fazer circular bens,
mas também a produzí-los.
O presente trabalho visa, assim, oferecer uma visão complementar sobre
o fenômeno da circulação de riquezas mediante a transmissão de titularidades sob
um enfoque analítico-dogmático. O objetivo específico, aqui, é demonstrar que uma
análise jurídica correta e técnica sobre a questão é imprenscindível para se entender
como circulam os bens patrimonais atualmente.
Apesar da forte carga de lógica jurídica e dogmática proposta, não se
esquece aqui do efeito prático. Busca-se, pois, atestar a imprescindibilidade de tal
análise dogmática, utilizando-se das figuras da relação jurídica e dos contratos de
disposição para que se possa demonstrar como afetam um instituto específico e
que, por excelência, serve à circulação de riquezas, qual seja, a cessão de créditos.
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1 O PROBLEMA DA CAUSA NO DIREITO PRIVADO
O termo “causa” no Direito Privado não é unívoco. Longe disto, pois a
causa pode ser tida como um dos temas a suscitar mais divergência nesse ramo do
Direito, sobretudo em sua vertente patrimonial. Causa do negócio jurídico, causa da
obrigação e causa do contrato são exemplos de maneiras como a expressão pode
ser encontrada. Todavia nem sempre os autores especificam em que sentido a
utilizam.
O presente capítulo, visa, portanto, esclarecer, ainda que de maneira
sucinta, certas questões atinentes ao problema a partir de uma perspectiva histórico-
comparada. Ainda que despiciendo seja, cumpre consignar que o tema é essencial
para a compreensão do restante do trabalho.
1.1 DO DIREITO ROMANO AOS PÓS-GLOSADORES
A divisão dos direitos patrimoniais1 em direitos de crédito e direitos reais
assume extrema importância para a Ciência Jurídica. Os romanos sistematizaram e
diferenciaram esses direitos com muita clareza e exatidão, pois não apenas
estabeleceram as diferenças entre as suas características, mas também definiram
os modos de sua constituição e as ações tendentes a protegê-los (PETIT, 1994).
Dessa forma, segundo o Direito Romano, na situação em que entre duas
pessoas determinadas, um sujeito, possuindo o direito de exigir do outro que preste
algo em seu favor, dirige sua vontade àquele que não o tem, configura-se a
manifestação do que os romanos chamaram de obligationes. Todavia, quando a
vontade é apontada a uma coisa, com a finalidade de impedir que qualquer outra
pessoa intervenha com sua própria vontade no referido objeto, evidencia-se um
direito real (MAYNZ, 1891).
A propriedade sempre foi considerada o direito real por excelência,
existindo de forma plena quando não há qualquer outro direito real limitando-a,
1 Os romanos também tratavam sobre direitos de personalidade, que, no entanto, não se
configuram como merecedores de uma análise mais detalhada no presente estudo. Sobre tais direitos, Maynz (1891 p. 382) leciona que “Les droits peuvente se rapporter ou à l’homme même auquel ils appartiennent, à sa personnalité, ou bien à un objet quelconque vers lequel sa volonté se dirige. On peut donner à la première catégorie le nom de droits personnels, et à la seconde, le nom de droits patrimoniaux.”.
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sendo sua característica principal o poder de excluir de qualquer ingerência alheia a
vontade do titular (CHAMOUN, 1957).
Os romanos classificavam as coisas em mancipi, aquelas consideradas
possuidoras de maior importância e valor econômico para a sociedade agrícola da
Roma antiga, como as servidões de passagem e aqueduto e as ferramentas de
cultivo e de transporte, e nec mancipi, em que se subsumiam todas as outras coisas
que não as primeiras, como o dinheiro e os móveis2.
Os bens mancipi, por sua maior importância econômica, necessitavam,
para que se efetuasse sua transferência, além do consentimento das partes em
alienar, de um negócio formal específico denominado de mancipatio3. Para que esta
produzisse seus efeitos não havia a necessidade de ser válida a relação jurídica que
lhe dera causa, como a compra e venda ou a doação, pois a propriedade adquiria-se
independentemente daquela. Portanto, a mancipatio podia ser considerada, como se
denomina atualmente, um negócio jurídico abstrato (KASER, 1999).
As coisas nec mancipi eram transmitidas de maneira não formal, através
da traditio4, que se constituía na simples entrega da coisa, pelo dono, ao adquirente,
em que aquele possuía a vontade de transferir e este a intenção de adquirir, em
2 Importa frisar que essa classificação foi perdendo, paulatinamente, sua importância, desde
que a “economia romana, despindo suas roupagens agrárias, perdeu os seus alicerces na família para girar em torno do indivíduo, desde que começou a estiolar-se a diferença entre solo itálico e solo provincial, foi desaparecendo a razão de ser da distinção entre res mancipi e res nec mancipi, até que Justiniano a aboliu completamente” (CHAMOUN, 1957, p.219). Ademais, “já no decurso do período clássico e principalmente depois do entrosamento do ius honorarium no ius civile, que reconhecia a validade da transferência de uma res mancipi sem a forma solene, a distinção perdera a importância prática. A ela se lhe ia substituindo a classificação de res mobiles e res immobiles, que os romanos haviam conhecido sòmente em determinadas relações” (CORREIA; SCIASIA, 1949 p. 41).
3 O ritual arcaico da mancipatio exigia “a presença de cinco testemunhas pelo menos, que
têm de ser cidadãos romanos, maiores e convocados para o acto; além disso, intervém um ‘portador da balança’ (libripens). Na presença do alienante e das pessoas já mencionadas, o adquirente agarra com a mão a pessoa ou coisa a adquirir […] e pronuncia a fórmula: hunc ego hominem […] ex iure Quiritum meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra. O adquirente declara que, segundo o ius civile […], o objecto lhe pertence e que deve ser considerado como comprado por ele com este cobre e com esta balança de cobre. Ao mesmo tempo que pronuncia a fórmula, o adquirente bate na balança com uma pequena moeda de cobre (nummus unus) ou com um pedaço de cobre não amoedado (raudusculum), que entrega ao alienante pretii loco” (KASER, 1999, p. 64).
4 Antes da unificação dos bens realizada por Justiniano, servia para “transferir a propriedade
quiritária das res nec mancipi, a propriedade pretoriana das res mancipi, a propriedade peregrina entre os peregrinos e a propriedade provincial dos imóveis provinciais (CHAMOUN, 1957, p. 255). Cumpre frisar que era um modo de aquisição da propriedade decorrente do jus gentium.
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decorrência de uma causa legitima a transferir o domínio. Aplicava-se,
indistintamente, a bens móveis e imóveis.
A traditio era composta por três elementos5, a vontade de alienar e
adquirir, ou elemento subjetivo; a cessão da posse, ou elemento objetivo; e uma
causa jurídica, ou justa causa.
Como ensina Petit (1994), a intenção de alienar e adquirir é um elemento
essencial, sem o qual a tradição não é hábil a transferir a propriedade. Consiste,
simplesmente, como já exposto acima, na vontade do tradens de alienar a
propriedade e na vontade do accipiens de adquiri-la.
A transferência era denominada de real (traditio corporalis) quando ocorria
a entrega do próprio objeto. Porém, se o que se entregava tratava-se de um símbolo
da res, a tradição era chamada de fictícia (traditio ficta). Essa poderia ser longa
manu, quando necessária a simples indicação da coisa, independentemente de um
ato material, e brevi manu, nas situações em que o accipiens já possuía a coisa
(TABOSA, 2003).
Segundo Justo (2006), a iusta causa traditionis pode ser conceituada
como a relação jurídica entre o tradens e o accipiens que o ordenamento reconhece
idônea para justificar a transferência do dominium.
Cumpre frisar que na situação em que o negócio jurídico se cumpre com a
traditio, a justa causa traditionis configura-se como o próprio negócio jurídico, a
exemplo do que ocorre em um contrato de compra e venda. Todavia, quando a
traditio é realizada para cumprir uma obrigação cujo objeto é a transferência de
propriedade de uma coisa, como uma promessa de doação, a justa causa traditionis
apresenta-se como a solutio, ou seja, a prestação para o cumprimento dessa
obrigação (JUSTO, 2006).
Kaser (1999) leciona que durante o período clássico, a traditio6 é causal7,
pois pressupõe uma relação de atribuição válida, como a causa emptionis, donandi,
5 Seguindo a linha de pensamento de Petit (1994, p. 207) não se citou, como condições
necessárias à tradição, a qualidade de proprietário e a capacidade para alienar do tradens, pois “no tienen nada de particular, y se imponen para todos los modos de adquirir”.
6 “A teoria atual da causa, como fundamento ou base do ato jurídico, é o resultado da
generalização de regras isoladas do direito romano, atinentes à traditio.” (SILVA, 2006, p. 44).
7 “Por isso, se a traditio se realizasse julgando o tradens que cumpria uma obligatio que, na
verdade, não existia, a traditio - porque iusta causa é a solutio e não essa obrigação - seria válida e operaria a transferência da propriedade para o accipiens. Apenas o alienante
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dotis, solvendi, credendi. Contudo, durante o período justinianeu, não resta claro se
a aquisição da propriedade continua a depender de uma causa válida, parecendo ao
autor prevalecer a doutrina abstracta, de forma que a vontade de transferir a
propriedade era suficiente para tanto.8
Leciona Justo (2010) que, com o decorrer do tempo, a traditio foi se
inutilizando, de forma que começou daí a base inicial para o princípio da
consensualidade, segundo o qual a propriedade é transferível mediante simples
acordo contratual. Esse princípio informa vários sistemas modernos de transferência
da propriedade, como o Francês e o Italiano.
Dessa forma, percebe-se que os romanos desenvolveram o entendimento
de causa como fundamento da atribuição patrimonial, ao estabelecerem a justa
causa traditionis como requisito da traditio.
No que se refere à causa do negócio jurídico, os romanistas discordam,
inclusive, se aquela constitui um elemento essencial deste. Moreira Alves (2012)
considera que a causa não se configura como elemento essencial, posto que
representa apenas o próprio conteúdo do negócio. Contudo, sob outro ponto de
vista, Justo (2006) dispõe que a causa é elemento essencial e especial dos negócios
jurídicos causais, capaz de diferenciá-los dos negócios jurídicos abstratos, pois
enquanto naqueles a causa é condição de existência, nos últimos a forma a substitui
ou com ela se identifica.
Martínez e Ennes (2009) explicam que o elemento causa parte da
consideração de que um ordenamento jurídico atribui efeitos jurídicos às
manifestacões de vontade dos particulares, ordenando-as e esquematizando-as em
tipos determinados, pois reconhece que alguns fins são socialmente úteis e
merecedores de proteção. Essa concepção é de enorme influência para uma fase do
poderia demandar o adquirente com uma actio in personam (a condictio indebiti), por ter enriquecido o seu património [sic]. Exigia-se, no entanto, a scientia do accipiens, requisito que afastava a transferência da propriedade se o adquirente soubesse que a res não lhe era devida” (JUSTO, 2006, p. 104).
8 Moreira Alves (2012, p. 322) informa que sempre houve, entre os romanistas, um dissenso
quanto ao significado do conceito de iusta causa. Segundo a corrente mais tradicional, aquela seria justamente o negócio jurídico precedente à tradição. Entretanto, de acordo com outros doutrinadores, sobretudo os alemães, a iusta causa seria mera intenção sinalagmática de alienar e adquirir o bem. Não fazendo qualquer distinção entre os períodos clássico e pós-clássico, Petit (1994, p. 208) afirma que “la justa causa no es indispensable para que la tradición transfira la propiedad. Sólo es el hecho que revela la intención de las partes, y la prueba de haber tenido la voluntad de enajenar y de adquirir, que es lo único que separa la tradición traslativa de propriedade, de la nuda traditio”.
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Direito moderno, em que se considera a causa como a função econômico-social do
negócio jurídico.
Portanto, apesar de o Direito Romano não ter elaborado qualquer
sistematização ou conceituação explicíta sobre o que é a causa9, contribuiu para a
sua concepção como fim ou função do negócio jurídico mediante o desenvolvimento
da teoria das condictiones.10
Kaser (1999, p. 271-272) define a condictio como uma “actio in personam
de direito estrito sobre certam pecuniam dari ou aliam certam rem dari, cuja itentio é
redigida de forma abstracta”.11
Destarte, se alguém recebe uma coisa, sem causa idônea para tanto, e
torna-se proprietário, caberia a condictio, posto que se baseia na retenção
injustificada de valores patrimoniais alheios. Logo, “quem atribui algo a outrem,
costuma acordar com ele o fim para que faz a entrega, e este fim - desde que seja
reconhecido pelo direito - justifica que o adquirente possa ficar com o que recebeu”
(KASER, 1999, p. 273). Todavia, se esse fim não se alcançou, o beneficiário não
poderá ficar com o que obteve.12
Os clássicos passaram a reconhecer alguns fatos típicos da retenção sem
causa de coisa alheia que poderiam ser demandados com a condictio específica. A
denominada condictio causa data, causa non secuta ou condictio ob rem contribuiu
para a teoria moderna da causa, em que é considerada a função do negócio jurídico
(SILVA, 2006). Essa condictio referia-se à vinculação à prestação de um acordo,
9Segundo C. M. Bianca (1992, p. 420), “é apenna il caso de ricordare che la nozione della
causa quale elemento costitutivo del contratto é estranea all’esperienza romana”. 10“Ainsi, avec la théorie des condictiones la notion de but s’est introduite dans la technique
juridique romaine.” (CAPITANT, 1923, p. 87). 11[…] a condictio no direito romano clássico não se vinculava, de nenhum modo, ao
enriquecimento sem causa, mas referia-se à possibilidade de exigir-se certa res ou certa pecunia, e isso somente na datio (SILVA, 2006, p. 44). Não obstante, Kaser (1999, p. 271) afirma que “as pretensões modernas por enriquecimento sem causa inspiraram-se no modelo destas condictiones, mas distinguem-se delas por não reclamarem, como as actuais pretensões, apenas o valor ainda existente no património da pessoa enriquecida, mas o valor que na altura recebeu […]”.
12A causa cuja ausência justifica a condictio deve distinguir-se com rigor da causa traditionis
na transmissão. A condictio é aplicável quando a causa é suficiente para justificar a aquisição da propriedade, mas não a retenção da coisa (p. ex., quando uma coisa foi transmitida turpis causa). Prescidindo destes casos, a condictio é aplicável, sobretudo em casos de um ter sem causa jurídica, em que o adquirente se tornou dono em virtude de uma disposição ‘abstracta’ (p. ex., mancipatio, in iure cessio), ou por ter gasto o dinheiro recebido ou o ter misturado com o seu próprio, ou por usucapião da coisa (KASER, 1999, p. 273-274).
18
feito pelas partes, de que quem recebesse a coisa fizesse ou omitisse algo no futuro.
De forma que, se a parte não procedesse com essa conduta, ocorreria a falha do fim
pactuado, e o signatário não teria causa para continuar com o que recebera. Assim,
nesses casos, a expressão ob rem tem a significação de fim. Todavia, as
expressões res e causa passaram a ser usadas de forma indistinta, o que levou à
vinculação de causa à ideia de finalidade.
Em seguida, os canonistas, afastando o formalismo romano, passaram a
considerar que a obrigação nascida de um simples acordo de vontades era um dever
de consciência, pois o devedor que não cumpria com seu compromisso era culpado.
Ripert e Boulanger (1963a, p. 183) lecionam que “era menester averiguar si esse
compromiso era fundado. La respuesta no podía ser dada sino recurriendo al
análisis de la voluntad”. Portanto, fazia-se necessário verificar se as razões para
obrigar-se eram suficientes para que o devedor tivesse em sua consciência a
necessidade de respeitar o acordo firmado. Percebe-se, dessa forma, que a causa,
nesse momento, era analisada sob uma perspectiva subjetiva, o que foi muito
importante para os contratos sinalagmáticos, pois estabeleceu-se a noção de que,
nos contratos assim classificados, a razão da vontade para obrigar-se reside no fato
de a outra parte também se encontrar obrigada a prover uma prestação correlativa
(RIPERT; BOULANGER, 1963a).
Todavia, os pós-glossadores, sob maior influência do Direito Romano, não
compartilhavam o pensamento aqui exposto, pois para eles somente o acordo de
vontades não fundamentava a obrigação, mas sim, a causa. Consideravam que a
causa era “la finalidade que en el espíritu de quien se obliga, el contrato debía
permitir alcanzar” (RIPERT; BOULANGER, 1963a, p. 184). Por tal motivo, era
denominada de causa finalis. Portanto, é possível perceber a tentativa de um retorno
dialético à noção de causa finalidade.
1.2 NO DIREITO MODERNO
O Direito moderno reestruturou a teoria da causa, como leciona Clóvis
Veríssimo do Couto e Silva (2006, p. 48): o “direito moderno reelaborou a teoria da
causa, com os dados do direito romano e medieval. Daí surgiram duas linhas de
pensamento ou duas correntes (objetiva e subjetiva)”.
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1.2.1 Doutrina francesa ou subjetivista
A doutrina francesa passou a estruturar a teoria da causa sob a corrente
subjetiva, sobretudo por intermédio de Domat. Isso se deu por conta de o Código de
Napoleão trazer a causa como requisito do contrato, em seus artigos 1.131, 1.132 e
1.133, mas não proceder a sua conceituação.
Surgiram, àquela época, duas teorias distintas. Uma referindo-se à causa
do Código Civil ou causa intrínseca, que é abstrata e faz parte do contrato, e a outra
discorrendo sobre a causa impulsiva e determinante, móvel individual, que
permanece extrínseco ao contrato (JOSSERAND, 1950).
A causa como móvel intrínseco e abstrato, decorrente da teoria
desenvolvida por Planiol e sistematizada por Domat, relaciona-se ao surgimento da
obrigação e busca responder por que foi formado tal vínculo jurídico. Contudo, como
observa Josserand (1950), um sujeito pode possuir vários móveis, devendo,
portanto, considerar-se como móvel imediato aquele que é decisivo e constitui a
causa de sua obrigação, sendo sempre o mesmo para cada tipo de contrato13.
Enxerga-se a causa como fundamento da obrigação, não do contrato, pois se
encontra em relação direta e imediata com aquela, sendo sua causa próxima.
Ademais, configura-se como um elemento constitutivo do contrato, sendo, por tal
motivo, intrínseca e específica. Disso decorre que, de acordo com o art. 1.131 do
Código de Napoleão, caso a obrigação decorrente de um contrato esteja desprovida
de causa, o contrato será inexistente e não produzirá qualquer efeito.
A teoria da causa como móvel individual trata sobre os motivos. Dessa
forma, defende que os móveis concretos não se configuram como elemento
constitutivo do contrato, posto que lhe são extrínsecos, além de não serem
específicos, mas sim, individuais, resultantes da vontade, podendo, por tal motivo,
existirem vários ao mesmo momento. Caberia ao juiz averiguar o móvel fim.
13A teoria de Domat é composta por três ideias essenciais: “1 En los contratos
sinalagmáticos, la obligación de cada una de las dos partes tiene por causa el compromisso contraído por la otra. Las dos obligaciones se sostienen mutuamente y sirven, como dice Domat, de ‘fundamento’ la una de la otra; 2 En los contratos reales, como en el préstamo, donde no hay más que una obligación, esa obligación nace con la entrega de la cosa. Es la prestación hecha lo que ‘forma’ la obligación y constituye su ‘fundamento’ o su ‘causa’; 3 En los contratos gratuitos, en los que no hay reciprocidade de obligaciones ni prestación anterior, la ‘causa’ de la obligación del donante no puede ser buscada más que en los motivos de la intención liberal, es decir en la razón dominante que ha llevado al autor de la donación a consentirla.” (RIPERT; BOULANGER, 1963, p. 185).
20
Classicamente esses móveis são desprovidos de conteúdo jurídico, contudo a
jurisprudência francesa à época desenvolveu a infame teoria da causa impulsiva e
determinante, onde “los móviles individuales, exteriores al acto, han de tomarse en
consideración y deciden de la validez o de la nulidad de dicho acto, por lo han
determinado, porque han dado a la voluntad de su autor el impulso de donde ha
surgido” (JOSSERAND, 1950 p. 109). Assim, caso o juiz verificasse que esses
móveis eram ilícitos, o contrato seria declarado nulo, apesar de não haver qualquer
vício na causa intrínseca.
Portanto, verifica-se que a doutrina francesa passou a considerar os
motivos do contrato, quando determinantes a sua existência, como passíveis de
exercer influência no mundo jurídico.
1.2.2 Doutrina italiana ou objetivista
A doutrina italiana enxerga a teoria da causa de outra forma. Sob uma
perspectiva mais próxima do direito romano, trata-na de forma mais objetiva.
Inicialmente, faz-se necessário dissertar sobre a causa do negócio jurídico.
Messineo (1971) entende que o ordenamento jurídico outorga, a cada negócio, uma
função econômica e social típica, consistente em meio hábil de modificação de
determinada situação, de forma a possibilitar a obtenção de resultados jurídicos
lícitos em relação às necessidades decorrentes do convívio social. Portanto, nessa
função se encontra a causa, em sentido objetivo, do negócio, servindo como forma
de individualizar determinado negócio frente a outros.
Contudo esse conceito não se revela suficiente, pois em vez de identificar
a causa como elemento do negócio, acaba tratando de todo o negócio jurídico, ou
seja, de seu conteúdo por inteiro e do principal efeito que dele decorre. Dessarte,
nessa situação, a causa é uma noção concreta e funcional do conteúdo de um
negócio, não podendo faltar, pois, caso contrário, não existe o próprio negócio.
Dessa conclusão decorre a possibilidade de o conceito de causa vir a ser aplicável a
qualquer classe de negócio jurídico, inclusive aos de família. Desse modo, percebe-
se que essa definição de causa não agrega um conceito juridicamente tipificado de
determinado negócio jurídico como tratado pelo Direito Positivo, pois não apresenta
nada que não esteja implícito no próprio conceito do negócio (MESSINEO, 1971).
21
Também é possível tratar a causa do negócio como o “resultado jurídico
objetivo que - al sujeto - le es posible conseguir valiéndose del determinado negocio”
(MESSINEO, 1971, p. 370). Contudo, a única diferença desse conceito para o
anterior reside na perspectiva, pois naquele se vê o negócio como um todo,
enquanto neste se foca o resultado, inclusive diverso para cada parte, que podem
obter ao utilizar-se de determinado negócio.
Nos dois conceitos expostos evidencia-se a razão de o participante ter
emitido sua declaração de vontade. Ademais, não se poderia falar em causa ilícita,
pois a causa seria sempre estabelecida pela lei. Dessa forma, o conceito correto de
causa do negócio reside na identificação daquela com a finalidade deste, pois uma
das partes realiza o negócio para obter da outra determinado efeito que satisfaça
seu próprio interesse e, geralmente, vice-versa. Prevalece uma concepção
teleológica de causa do negócio como meio apto a realizar um fim (MESSINEO,
1971).
Assim, obter a finalidade desejada é a razão de ser do negócio jurídico,
ou seja, sua causa. Mas diferentemente da concepção francesa, essa razão de ser é
elemento objetivo, é típica e constante, não variando conforme o sujeito. Essa
característica é essencial para distinguir a causa do mero motivo, elemento
subjetivo.
Portanto, cada negócio possui função e finalidade típica, constituindo
cada finalidade um diferente negócio, agindo como diferenciadora de cada tipo
negocial. O Código Italiano de 1942 adotou esse conceito de causa do negócio
jurídico. Dessa forma, contribui a doutrina italiana para a refutação das críticas
proferidas por aqueles que a julgam inútil, por confundi-la com um conceito subjetivo.
O objetivo contratual pactuado pela vontade das partes só pode se dar
conforme os termos fixados pela causa, ou seja, em respeito ao ordenamento
jurídico, que passa a agir como forma de limitar a autonomia da vontade.
Em tal sentido, salutar é a lição de Cesare Massimo Bianca (1992, p.
420), pois o autor define que “s`intende, allora, l`autonoma considerazione che la
legge riserva alla causa. Il riferimento alla causa impone di intedere l`atto di
autonomia privata nella sua realtá de strumento di finaltá pratiche”.
22
1.3 A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA A PARTIR DA CRÍTICA DA NOÇÃO DE
CAUSA DA OBRIGAÇÃO
Questão diferente envolve causa da obrigação. Segundo Messineo (1952,
p. 116), a causa da obrigação “no es el fin económico-social perseguido con el
contrato (causa obligandi), sino la razón de ser o el fundamento jurídico del deber de
cumplimiento (causa debendi)”. Portanto, a causa da obrigação é averiguada em
momento posterior ao nascimento do negócio jurídico de atribuição patrimonial,
sendo, para o credor, o título justificativo que lastreia o seu direito à prestação,
enquanto para o devedor, constitui a própria razão de ser do cumprimento
(MESSINEO, 1952).
Todavia, já à data de 1948, Messineo (1952) advertiu que o próprio
legislador italiano, com o novo Diploma Civil, não parecia possuir o interesse de
deixar sobreviver a noção de causa da obrigação. Clóvis Veríssimo do Couto e Silva
(1997, p. 68), ao analisar o assunto, reitera essa concepção, justificando que “a
expressão ‘causa da obrigação’ gera uma concepção mecânica do contrato e vai
perdendo a sua razão de ser [...]”.
Pontes de Miranda (1954, p. 78), criticando a noção de causa como causa
da obrigação, explica que “a causa é a função, que o sistema jurídico reconhece a
determinado tipo de ato jurídico, função que o situa no mundo jurídico, traçando-lhe
e precisando-lhe a eficácia. A causa fixa, na vida jurídica, o ato”. Emenda, afirmando
que a causa refere-se à atribuição, pois para cada tipo de atribuição há uma causa e
seria “êrro só se pensar em tipos de contratos [...]. A causa só diz respeito à
atribuição, e a atribuição é a mesma, na compra-e-venda, na troca, na locação e na
transação”.
Em um contrato bilateral deve-se superar o entendimento de que as
obrigações devam ser consideradas como a causa de uma em relação às outras.
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva (1997, p. 68) afirma que “o fim de uma das partes,
enquanto intenção, ordena-se em relação à outra para engendrar o meio ou o
negócio jurídico”.
Nesse sentido, há que se falar no sinalagma, decorrente do princípio da
sub-rogação, que pode ser genético, quando da formação do contrato, ou funcional,
quando de sua execução ou fase dinâmica.
23
O art. 1.092 do Código Civil de 1916 tratou bem sobre o sinalagma
funcional ao estabelecer a exceção non adimpleti contractus ou non rite adimpleti
contratus, pois a “reciprocidade de prestações é da essencia dos contractos
bilateraes” (BEVILAQUA, 1958, p. 258). Ademais, esse conceito explica a
possibilidade de “extinção da dívida em virtude do exercício do direito de resolução”
(PONTES DE MIRANDA, 2012c, p. 414).
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva (1997) explica que no art. 1.092 do
Código Civil de 1916 seria possível visualizar três regras distintas, o princípio da
copontualidade nos contratos bilaterais14, o princípio da pretensão à segurança da
primeira prestação, quando um dos contratantes a tem que executar primeiramente,
além da resolução por inadimplemento, em qualquer caso de sinalagmaticidade15.
Todavia, caso as obrigações sejam enxergadas somente como a causa
uma da outra, existirá uma concepção mecânica do sinalagma. Considera-se, pois,
que nos contratos bilaterais existe uma ordem interna, dinâmica e, por vezes,
variável, que dá azo à dependência das obrigações entre si, lastreada por um fim
pretendido pelos contratantes, em uma relação comutativa que assegura o
pactuado, deixando o contrato de ser encarado apenas sob uma perspectiva parcial,
para ser encarado como um todo (SILVA, 1997).
Portanto, as relações jurídicas obrigacionais devem ser enxergadas como
um processo dinâmico16. Ademais, a causa deve ser tida como a razão justificativa
do contrato, restando superada a noção atomística, privilegiando-se uma concepção
unitária, de maneira que a causa da atribuição patrimonial será a causa do contrato17
(BIANCA, 1992).
14“Corresponde ao tempo da execução das obrigações; elas são executadas
simultaneamente quando não se convenciona o contrário” (SILVA, 1997, p. 69). 15Os dois últimos “dizem respeito à segurança das partes contratantes, que se exprime
através da relação comutativa” (SILVA, 1997, p. 69). 16Na doutrina pátria, coube a Clóvis Veríssimo do Couto e Silva cunhar a noção de
obrigação como processo, particularizando a teoria geral da relação jurídica ao campo do direito das obrigações.
17Em contraposição, Tullio Ascarelli rompe com tal noção. Para o autor, causa do contrato e causa da atribuição são coexistentes e conexas, mas desvinculadas. Segundo ele, o “problema da causa do negócio deve […] ser mantido distinto daquele da causa das atribuições patrimoniais, apesar da conexão” (1999, p. 96). Dessarte, considera a causa como a finalidade prática do contrato, diferentemente da causa da atribuição, que seria uma razão objetiva lícita justificadora da aquisição de um direito subjetivo. Arremata, afirmando que “pode falar-se em abstração e causalidade até com referência a negócios jurídicos que não importam em atribuição patrimonial e a respeito dos quais não se poderia falar em abstração ou causalidade da atribuição patrimonial” (p. 100).
24
25
2 SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DA TITULARIDADE
Após a definição dos conceitos atinentes à causa no Direito Privado e a
realização de uma análise dos aspectos gerais do negócio jurídico de disposição,
torna-se possível compreender, com maior clareza, os diversos sistemas jurídicos de
transmissão das posições jurídicas patrimoniais em direito comparado.
2.1 A UNICIDADE FRANCO-ITALIANA
Conforme lição de Pontes de Miranda (2012b, p. 382), “no sistema jurídico
francês […], o acôrdo, sózinho, tem eficácia real: não se precisa da entrega, do
tradere”. O próprio negócio jurídico obrigacional, no caso, o contrato de compra e
venda, possui eficácia translativa. O autor complementa, afirmando que “no direito
francês […] confundiram-se o contrato de compra-e-venda e o acôrdo de
transmissão: subentende-se acordada a transmissão quando se perfaz o contrato de
compra-e-venda” (MIRANDA, 2012d, p. 140)
O conceito de acordo de transmissão é necessário ao entendimento do
sistema alemão e do sistema brasileiro de transmissão de propriedade e será
oportunamente delimitado quando de suas análises no presente trabalho. Por ora,
faz-se necessário apenas analisar a origem e as peculiaridades do sistema franco-
italiano de transmissão do domínio.
Como já explicitado, no Direito Romano, para que ocorresse a efetiva
transmissão da propriedade, fazia-se necessária a ocorrência da traditio ou da
mancipatio, a depender da natureza da coisa, pois o contrato possuía o condão de
apenas criar a obrigação. Todavia, Ripert e Boulanger (1963b, p. 195) já citavam
que por conta de circunstâncias práticas, os romanos buscaram agilizar o processo
de transferência de propriedade. Nesse momento, surgiram vários exemplos de
transmissão sem tradição real, como a traditio longa manu, traditio breve manu ou
por constituto posesorio.
Os autores afirmam que a antiga prática não inventou nada de novo,
servindo-se tão somente dos vários procedimentos de que o Direito Romano
dispunha para transmitir a propriedade sem a necessidade de um ato real (RIPERT;
BOULANGER, 1963b).
26
Dessarte, o princípio romano passou a subsistir em estado meramente
teórico, pois a tradição, juridicamente, era considerada necessária para transmitir a
propriedade, mas faticamente não possuía mais lugar, de forma que foi
“reemplazada por clausulas del contrato que equivalían a la constitución posesoria
[…] más sencillamente por la cláusula llamada de ‘desaisine-saisine’” (RIPERT;
BOULANGER, 1963b, p. 196).
Assim, alguns dos principais pensadores sobre o assunto, como Grotius e
Puffendorf, concluíram que “si la tradición, acto material, era necesaria para
transmitir la posesión, que es un hecho, la propriedade, que es una cualidade
puramente moral, podía […] pasar de una persona a otra por [...] convenio”
(RIPERT; BOULANGER, 1963b, p. 197).
Logo, o antigo princípio romano quedou diante da prática francesa, que foi
positivada, como regra geral, no artigo 1.13818 do Código de Napoleão.
Tal Código, “seguindo de perto a influência dos autores jusnaturalistas,
teria adotado o consenso, nas figuras contratuais adequadas, como o meio por
excelência para a transmissão da propriedade [...]” (LEONARDO, 2014, p. 261).
Ripert e Boulanger (1963b, p. 210) entendem que essa positivação gerou
grande progresso técnico, porquanto consubstanciou a mais pura afirmação de um
princípio tão caro ao direito obrigacional, a autonomia da vontade, de maneira que
“la voluntad se ha desprendido de las formas que hasta entonces la oprímian”.
O enorme sucesso19 do Code Civil de 1804 gerou replicação do sistema
de transmissão da propriedade por mero consenso em vários países ocidentais.
Apesar disto, o Código Civil francês contribuiu menos para a romanística do que o
Código Civil alemão, pois baseou-se mais nos costumes da época, de maneira que
tentou estabelecer uma tradição própria e mais condizente com as características da
sociedade que tendia a regulamentar. Wieacker (1993) cita como exemplo da
influência do jursracionalismo justamente a transmissão dos bens móveis por meio
do simples consenso.
18Art. 1.138. L'obligation de livrer la chose est parfaite par le seul consentement des parties
contractantes. Elle rend le créancier propriétaire et met la chose à ses risques dès l'instant où elle a dû être livrée, encore que la tradition n'en ait point été faite, à moins que le débiteur ne soit en demeure de la livrer; auquel cas la chose reste aux risques de ce dernier.
19Franz Wieacker (1993) afirma que a história da sua promulgação, vinculada ao espírito da Revolução Francesa, e um sistema e uma estrutura conceitual precisa, rígida e clara foram, dentre outros, os motivos do sucesso do Código.
27
Diante disso, torna-se possível compreender melhor o motivo de o Código
Civil italiano valer-se do consensualismo. Wieacker (1993) explica que o Codice
Civile de 1865 foi elaborado sobre a base do Código Civil francês, de maneira que
aquele também surgiu em um momento de revolução, pois à época ocorria, na Itália,
o movimento de unificação nacional. Apesar disso, a civilística italiana evoluiu em
sentido diferente ao aproximar-se de uma interpretação histórico-romanística, sob
influência da pandectística alemã. Com o Código Civil italiano de 1942, essa
orientação dogmática consolidou-se, sem, todavia, perder-se o vínculo com a
tradição legislativa da unificação nacional.
O autor arremata afirmando:
Então, a ligação do direito civil italiano com a família jurídica francesa é garantida pela comunidade latina e pela consciência política da Revolução Francesa, que se tornou também na primeira revolucão italiana; a sua ligação com a família alemã é mantida pela influência, sempre forte, da ciência pandectística do séc. XIX (WIEACKER, 1993, p. 395).
Dessarte, é possível perceber que o Direito italiano conservou certas
características da civilística racionalista francesa, como o efeito translativo do
consenso. Bem assim dispõe o artigo 1.376 do Codice Civile de 194220.
São pertinentes as considerações de Enzo Roppo (1988, p. 214) sobre o
assunto ao afirmar que o princípio positivado no artigo referido relaciona-se
justamente com “a tendência própria do jusnaturalismo e do iluminismo jurídico de
exaltar o papel da vontade como fonte e força criadora de qualquer efeito jurídico”.
Apesar de o Direito alemão, mediante a pandectística, também
supervalorizar a vontade, fato que se demonstra sobretudo com a criação e
sistematização do negócio jurídico, decidiu-se por não adotar o princípio da
consensualidade, de maneira que prevaleceu a tradição romana e do Direito
germânico comum da necessidade de um ato (ou atos) posterior(es) ao negócio
obrigacional para a efetiva transmissão da titularidade.
20Art. 1.376. Contrato con effeti reali. Nei contratti che hanno per oggetto il trsferimento della
proprietá di una cosa determinata, la costituzione o il trasferimento di un diritto reale ovvero il transferimento de un altro diritto, la proprietá o il diritto si trasmeottono e si acquistano per effetto del consenso delle parti legittimamente manifestato.
28
2.2 A ABSTRAÇÃO ALEMÃ
O Direito alemão estabeleceu uma concepção mais enxuta de causa,
vinculando os conceitos da iusta causa traditionis e da condictio ob causam por meio
“da função objetiva do negócio jurídico, o que ensejou a ligação do ato jurídico
antecedente ao subseqüente” (SILVA, 2006, p. 48). Essa forma de teorização da
causa do negócio jurídico assume grande importância na distinção entre negócios
jurídicos causais e abstratos para aquele Direito, de forma que é muito maior a
incidência desses últimos no sistema alemão, diferentemente de no sistema franco-
italiano, por exemplo. Explica tal fato, sobretudo, a existência do princípio da
abstração entre o negócio obrigacional e o negócio de disposição.
A teoria alemã do negócio jurídico (Rechtsgesfäftslehre) difere da
brasileira, apesar de ser a grande fonte de sua inspiração. No momento, convém
analisar o sistema de classificação dos negócios como elaborado pelos tedescos. O
primeiro critério a ser abordado é extremamente importante, posto que se refere ao
próprio conteúdo da relação jurídica que advém do negócio, que pode ser
obrigacional, real ou de família (DÍAZ, 2015).
Ainda conforme o conteúdo da relação jurídica o negócio pode ser não
patrimonial ou patrimonial, não tendo como fim somente a produção do efeito jurídico
que imediatamente objetiva, diferentemente do que ocorre em uma relação jurídica
de direito de família, por exemplo, na qual “se adopta un niño solo para tenerle como
hijo, se casa uno para constituir la relación matrimonial” (ENNECCERUS; KIPP;
WOLFF, 1943a, p. 77).
Portanto os negócios jurídicos patrimoniais, além de buscarem produzir
seus efeitos imediatos, visam “dar vida mediatamente, al través de ellos, a otras
consecuencias jurídicas que, conforme al ordenamiento jurídico, pueden alcansarze
mediante aquéllos” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p. 77).
Ademais, caso possuam uma atribuição, configurarão um negócio
atribucional (Zuwendungsgeschäft). Conforme o Direito tedesco, atribuição seria
qualquer enriquecimento do patrimônio de outra pessoa (DÍAZ, 2015).
29
Nem toda atribuição necessitará de uma causa21, logo, em tal sentido,
essa pode ser considerada como a “intención dirigida a la consecuencia jurídica
mediata de un negocio de enriquecimento” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a,
p. 77).
Em outros termos, pode-se dizer que é a vontade de um dos sujeitos
dirigida à consequência jurídica de enriquecer o patrimônio do outro22, que não se
baseia em meros motivos factuais, pois visa estabelecer efeito jurídico, constituindo
a vontade o próprio fundamento desse efeito (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF,
1943a).
Todavia, para que esse efeito mediato se produza, faz-se necessário
celebrar um convenio de fin ou convenio causal, consistente em acordo de vontade
entre as partes concordando com a emanação da consequência jurídica buscada, ou
seja, sobre o fim do negócio atribucional (Zweck).
Logo, torna-se possível compreender que o negócio jurídico atribucional é
aquele em que “una de las partes del negocio atribuye algo a la otra; o también, que
ambas partes se realicen recíprocamente una atribución” (DÍAZ, 2015, p. 52).
A relação do chamado convênio causal com o negócio jurídico produtor
do enriquecimento será o fator determinante sobre a causalidade ou abstração do
negócio atribucional. Se o convênio integrar o próprio conteúdo do negócio, o que é
a regra, já que é realizado para obter-se o fim que o próprio possibilita, o negócio
jurídico atribucional será causal, de forma que, se o convênio causal portar algum
vício23, o negócio será nulo. Entretanto, quando o convenio de fin não fizer parte do
conteúdo do negócio será abstrato, e bastará a declaração de enriquecimento do
patrimônio de outrem sem a causa para que esteja completo o conteúdo negocial.
21“Usualmente se distinguen la causa donandi (el negocio debe producir un enriquecimiento
gratuito), la causa credendi (debe obligar a otro a una prestación), la causa solvendi (debe extinguir una deuda; pero son posibles también otras causas, por ejemplo, la causa novandi, la dotis constituendae, condicionis implendae” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p. 78).
22“Por ejemplo, se transmite una cosa para cumplir una obligación o para procurar un enriquecimiento gratuito a quien la recibe; se promete una prestación (por ejemplo, de una cantidade) para obligar de este modo al otro a una contraprestación (por ejemplo, suministro de la mercancía)” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p. 77).
23“Si el convenio causal es impossible, inmoral o ilícito o si las partes no se han puesto de acuerdo sobre la causa, el negocio causal es nulo, por ejemplo, la promesa de una cantidad por razones inmorales o la promesa de una cantidad que el promitente se propone dar en mutuo y la otra parte considera donacion” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p. 78).
30
Assim o negócio jurídico atribucional abstrato possui como característica a
separação do próprio convênio causal (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p.
78).
Dessarte, no sistema tedesco, via de regra os negócios abstratos são
dispositivos que geram enriquecimento a favor de outrem, como a transmissão de
propriedade e os contratos referentes ao estabelecimento, modificação ou extinção
de direitos reais, todavia, alguns negócios obrigacionais também podem ser
desvinculados de sua causa, como a promessa abstrata de dívida e alguns negócios
cambiais. Assim, como já afirmado, esses negócios serão válidos e operarão seus
efeitos patrimoniais ainda que a causa seja ilícita, por exemplo, restando, para
efeitos de reparação, a ação de enriquecimento sem causa.
A abstração do negócio jurídico de disposição resulta de previsões
expressas no Código Civil alemão (BGB), como as do § 92924, por exemplo, que não
erige a causa como requisito da tradição, mas tão somente o acordo e a entrega,
além da existência de regras sobre o enriquecimento sem causa, “cuya misión
capital es la de contrapesar mediante obligaciones una atribución patrimonial cuyo
efecto se ha consumado eficazmente” (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1943a, p.
80).
Todavia, cumpre deixar claro que os negócios jurídicos abstratos integram
uma classificação de negócios jurídicos distinta daquela da qual fazem parte os
negócios de disposição. A primeira classificação decorre da distinção entre negócios
jurídicos pessoais e patrimoniais. Estes podem subdividir-se em negócio que contém
uma atribuição patrimonial (Zuwendungsgeschäft) ou não. Possuindo atribuição
patrimonial, o negócio poderá, enfim, ser classificado como causal ou abstrato.
Como já frisado, a diferença entre ambos reside na existência ou não de uma causa
a justificar a atribuição patrimonial (DÍAZ, 2015).
24§ 929 Einigung und Übergabe. Zur Übertragung des Eigentums an einer beweglichen
Sache ist erforderlich, dass der Eigentümer die Sache dem Erwerber übergibt und beide darüber einig sind, dass das Eigentum übergehen soll. Ist der Erwerber im Besitz der Sache, so genügt die Einigung über den Übergang des Eigentums. [§ 929 Para la transmisión de la propriedade de una cosa mueble se requiere que el propietario la entregue al adquirente y que ambos estén de acuerdo en que la propriedad debe transmitirse. Si el adquirente está en posesión de la cosa, basta el acuerdo sobre la transmisión de la propieda”] (ENNECERUS; KIPP; WOLFF, 1943b, p. 389).
31
Ademais, a classificação de negócios em abstratos ou causais é
intimamente ligada ao princípio da abstração, que “se refiere a la independencia de
la eficacia de los efectos entre ambos negocios” (DÍAZ, 2015, p. 53).
No que se refere à classificação dos negócios jurídicos de disposição, faz
referência à finalidade buscada pelo negócio, integrando-a, além daquele, os
negócios obrigacionais e os de aquisição.
Essa questão é decorrência do princípio da separação (Trennungsprinzip)
entre obrigação e disposição. Conforme Díaz (2015, p. 53), “el princípio de
separación establece que en el tráfico jurídico el negocio obligacional queda
separado de su ejecución o cumplimiento real, o sea, de la disposición”25.
Os negócios jurídicos de disposição mais importantes são aqueles que
visam transmitir um direito, possuindo, portanto, caráter de atribuição patrimonial26,
do qual emana eficácia erga omnes.
Contudo, como já explanado, essa espécie de negócio jurídico possui
como regra caráter abstrato, sendo a atribuição, por conseguinte, abstrata também,
não necessitando de qualquer fundamento jurídico (causa como atribuição
patrimonial) para que produza regularmente seus efeitos (TUHR, 1934).
Segundo Larenz (1978), o direito privado tedesco divide a transferência
da propriedade, como regra, em dois negócios jurídicos, mas no caso de compra e
venda, em três: a) o negócio jurídico obrigacional, que no exemplo tratado é um
negócio de compra e venda, em que os contratantes se obrigam, reciprocamente,
um a transferir a propriedade, e outro a pagar o preço; b) o negócio jurídico de
disposição, do vendedor sobre a propriedade de seu bem, que se efetua por meio de
um contrato com caráter real, denominado de acordo de transmissão, que visa
cumprir a obrigação constituída pelo contrato de compra e venda; e c) o negócio
jurídico de disposição do comprador, por meio do qual este cumpre sua obrigação de
pagar o preço, quando transfere a propriedade sobre a moeda física ao vendedor.
Assim, o sistema de transmissão da titularidade no Direito alemão é
abstrativista, pois o negócio de disposição não necessita de um fim causal
(abstração de seu conteúdo), nem possui sua eficácia condicionada à do negócio
obrigacional (dita como abstração externa).
25“La palabra clave en el principio de separación es desprendimiento, mientras que la
palabra clave en el principio de abstracción es independencia.” (DÍAZ, 2015, p. 54). 26“[…] su efecto jurídico es una modificación de la competencia sobre el respectivo derecho,
y con ello una modificación en la atribuición de bienes jurídicos” (LARENZ, 1978, p. 437).
32
2.3 O SISTEMA DO DIREITO PATRIMONIAL PRIVADO BRASILEIRO
Após a análise comparada de outros sistemas de transmissão da
titularidade, torna-se possível compreender de melhor maneira o sistema brasileiro.
2.3.1 A concepção de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva
De acordo com Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, o sistema brasileiro é
fundamentalmente causalista27, diferindo do alemão por adotar uma separação
relativa entre os planos obrigacional e real, enquanto o último é informado por uma
separação absoluta entre aqueles. Interessante que à época da publicação de “A
obrigação como processo”, o Código Civil vigente ainda era o de 1916, que não se
utilizava da expressão negócio jurídico, como o referido autor informa. Todavia, o
Código Civil de 2002 positivou a doutrina do negócio jurídico, mas continuou a não
adotar o termo “negócio jurídico de disposição” expressamente.
Para o autor, o motivo disso reside no fato de que, para o Direito
brasileiro, a “declaração de vontade que dá conteúdo ao negócio dispositivo
(somente naqueles que visam adimplir uma obrigação) pode ser considerada co-
declarada no negócio obrigacional antecedente” (SILVA, 2006, p. 52). Portanto, não
se faz necessário outro acordo de vontades sobre a transmissão, pois “na vontade
de criar obrigações insere-se naturalmente a vontade de adimplir o prometido” (p.
52).
Por essa razão, o autor considera que o negócio de disposição, no
sistema brasileiro de transmissão da titularidade, deve ser considerado como causal,
já que não é declarado em momento posterior, não se desvinculando do negócio
jurídico obrigacional, levando-se em conta, portanto, que a causa deste afeta aquele,
devido a tal concomitância, restando, assim, o negócio jurídico dispositivo conectado
ao negócio jurídico obrigacional.
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva fundamenta sua teoria, inicialmente,
nos arts. 622 e 933 do Código Civil de 1916:
Art. 622. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não alheia a propriedade. Mas, se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante,
27Desde já ressalte-se que os títulos de crédito constituem exceção a tal regra.
33
adquirir, depois, o domínio, considera-se revalidada a transferência, e operado o efeito da tradição, desde o momento do seu ato.
Parágrafo único. Também não transfere o domínio a tradição, quando tiver por título um ato nulo.
[...]
Art. 933. Só valerá o pagamento, que importar em transmissão da propriedade, quando feito por quem possa alienar o objeto, em que ele consistiu.
Parágrafo único. Se, porém, se der em pagamento coisafungível, não se poderá mais reclamar do credor, que, de boa- fé, a recebeu e consumiu, ainda que o solvente não tivesse o direito de alheá-la.
O direito de alhear não é nada mais que o poder de dispor, que, via de
regra, é inerente ao proprietário, como no Direito alemão. Todavia, como Clóvis
Veríssimo do Couto e Silva (2006, p. 56) já frisava, na falta do poder de disposição,
não “se trata […] de invalidade, mas sim de ineficácia” do pagamento que abranger
transmissão de propriedade. Diante disso, o Código Civil de 2002 adotou tal
entendimento, conforme se depreende da redação do seu art. 307:
Art. 307. Só terá eficácia o pagamento que importar transmissão da propriedade, quando feito por quem possa alienar o objeto em que ele consistiu.
Parágrafo único. Se se der em pagamento coisa fungível, não se poderá mais reclamar do credor que, de boa-fé, a recebeu e consumiu, ainda que o solvente não tivesse o direito de aliená-la.
Assim, faz-se presente mais um argumento que comprova a existência,
no ordenamento jurídico brasileiro, do negócio jurídico de disposição, pois este
possui um requisito especial (poder de disposição) para ser eficaz, além da simples
capacidade, que, como já afirmado, é inerente a todo tipo de negócio jurídico e
refere-se ao plano da validade.
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva criticou o art. 622 do Código Civil de
1916, pois transmitia erroneamente a concepção de que a tradição era o próprio
negócio dispositivo. Contudo, como assinalado, a tradição, nos mesmos moldes do
Direito germânico, é um ato-fato, um ato de execução material que independe da
vontade do tradens. Enquanto o ato de disposição é um negócio jurídico, cuja
efetivação exige a manifestação de vontade, que é codeclarada no momento de
constituição do negócio obrigatório para que, juntamente com outros requisitos,
possa produzir seus efeitos.
34
Ademais, como se sabe, apenas os negócios jurídicos são
condicionáveis, de forma que se a “disposição fosse ato-fato […] não se lhe poderia
condicionar[, resultando n]a impossibilidade de realizar-se venda com reserva de
domínio” (SILVA, 2006, p. 56).
O sistema brasileiro de transmissão da propriedade, segundo o autor,
possui, apesar de relativa, uma separação entre os planos obrigacional e real; logo,
o contrato de compra e venda não pode ser tratado como no sistema franco-italiano,
em que há unicidade entre planos, de maneira que o contrato formado já opera a
transmissão de propriedade, tampouco ser alvo único dos efeitos obrigacionais e
reais, desprezando-se assim o negócio dispositivo integrador, e ignorando-se a
diferença entre os direitos reais e pessoais e o momento da formação e extinção das
obrigações.
Caso se tratasse da última maneira, retornar-se-ia ao Direito comum
alemão e à traditio do Direito Romano, reduzindo-se a transmissão da propriedade
somente ao titulus e ao modus adquirendi, desprezando-se a existência do negócio
jurídico de disposição entre esses (SILVA, 2006).
Para Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, há argumentos bastante sólidos e
convincentes quanto à existência da separação relativa entre os planos obrigacional
e real no sistema brasileiro de transmissão da propriedade, o que reforça a
necessidade de tratamento dogmático sobre a questão.
Um dos argumentos elencados por Couto e Silva (2006, p. 57), bastante
lógico, refere-se ao momento em que se desenvolvem as obrigações genéricas e
alternativas. Essas são definidas no plano obrigacional, logo, caso o negócio jurídico
de disposição não fosse autônomo e estivesse integrado na compra e venda, seria
eficaz, portanto, completo, antes mesmo do momento do adimplemento, o que
causaria contradição, pois ter-se-ia que cumprir a obrigação ainda sem se saber o
objeto da prestação de dar. Uma alternativa seria considerar o contrato de compra e
venda ineficaz no que tange ao adimplemento, por não se ter ainda determinado
esse objeto; contudo, o contrato já teria constituído uma obrigação de dar, o que é
um efeito daquele. Logo, haveria uma inegável contradição, caso se considerasse
que o negócio de disposição integra o próprio contrato de compra e venda. Ademais,
se assim fosse, ter-se-ia que considerar como requisito do contrato de compra e
venda o poder de disposição, que no Direito brasileiro não é requisito para nenhum
35
negócio jurídico obrigacional, mas sim para o adimplemento, plano em que se situa o
negócio jurídico de disposição.
Outro argumento forte reside nas diferenças entre tradição e negócio de
disposição. Como já frisado, o ato-fato é incondicionável, o que impediria a venda
com cláusula de reserva do domínio. Ademais, a tradição não permite a
representação, pois não é negócio jurídico. Como se sabe, o pagamento pode ser
feito ou recebido por representantes. Por fim, o negócio dispositivo pode, por si só,
transmitir a propriedade por meio do constituto possessorio, por exemplo. Portanto,
não se necessita obrigatoriamente da tradição para transferir a propriedade,
tampouco o contrato de compra e venda possui o condão de estabelecer disposição
sobre ela, como no exemplo citado, já que não é seu requisito o poder de
disposição, pois, caso contrário, restaria nulo um contrato de compra e venda feito
pelo non domino, o que não ocorre. Como concluiu Clóvis (2006), se a compra e
venda não possui como requisito o poder de disposição, mas sim o negócio
dispositivo, e o pagamento realiza-se no plano do direito das coisas, o
condicionamento não vai atingir o contrato, que se encontrará perfeito e acabado,
estabelecendo o dever, mas sim o adimplemento; e se a tradição não é passível de
condicionamento, faz-se necessário admitir a existência de um meio termo entre o
negócio jurídico obrigacional e o ato-fato, sendo aquele justamente o negócio
jurídico de disposição.
O negócio jurídico de disposição existente no Direito brasileiro, conforme
demonstrado, é um negócio jurídico causal ao negócio jurídico obrigacional. Dessa
forma, o citado parágrafo único do art. 622 já dispunha que não transfere o domínio
a tradição (rectius negócio jurídico de disposição) quando tiver por título um ato nulo.
Portanto, resta claro que a regra no sistema pátrio de transmissão de propriedade é
a causalidade entre o ato obrigacional e o dispositivo, de forma que os vícios
daquele influirão neste.
Reside em tal característica sua principal diferença do sistema alemão,
em que há a abstração, e mesmo que o título, v.g., um contrato de compra e venda,
seja nulo, caso o negócio jurídico dispositivo seja válido e eficaz, a propriedade
considerar-se-á transferida, restando para o prejudicado apenas a ação de
36
enriquecimento sem causa, que, por conseguinte, faz muito mais sentido e é bem
mais utilizada naquele Direito.28
Por fim, também por influência de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, o
art. 622 do CC/16 também sofreu alterações. Atualmente, a questão é tratada no art.
1.268 do CC/2002, que assim dispõe:
Art. 1268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.
1. Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.
2. Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo.
Dessa forma, é possível perceber que o art. 1.268 trata sobre a alienação
de coisa oferecida ao público ao adquirente de boa-fé. Tal previsão se faz
necessária em decorrência da atual sociedade de consumo em massa, pois cada
vez mais as pessoas contraem obrigações sem conhecer a outra parte.
Couto e Silva já discorria, em 1967, sobre essa realidade. Afirmava que a
determinação do objeto ocorria necessariamente durante o plano obrigacional,
porquanto requisito de eficácia do negócio jurídico dispositivo, de forma que ela se
“realiza no plano obrigacional e constitui fase do desenvolvimento do vínculo em
direção ao adimplemento. Mas o adimplemento, como tal, não pertence à construção
da obrigação, pois é o ato que a extingue” (2006, p. 60).
Todavia, é possível que o sujeito do vínculo obrigacional seja determinado
após o adimplemento, pois “em nossos dias, realizam-se muitos negócios jurídicos
28Fisher (2013) rememora que essa é a regra. Como não poderia deixar de ser, existem
exceções ao princípio da abstração: 1) O negócio jurídico dispositivo pode sujeitar-se à validade do negócio jurídico obrigacional. Nesse caso, impõe-se uma condição resolutiva ao negócio jurídico dispositivo. Apesar de essa possibilidade só caber em caso de bens móveis, não deve ser confundida com a venda com cláusula com reserva de domínio, em que o negócio jurídico dispositivo fica sujeito à condição suspensiva do pagamento integral do preço; 2) quando o mesmo defeito anula tanto o negócio jurídico obrigacional quanto o negócio jurídico dispositivo, o que ocorre nos casos de: a) incapacidade dos sujeitos (Par. 105, BGB); b) engodo fraudulento ou ameaça ilegal (Par. 123, BGB); c) usura (Par. 138, II, BGB); 3) na situação em que as partes concordam que o negócio jurídico obrigacional e o negócio jurídico dispositivo serão um negócio único (Geschäftseinheit), o que é possível, de acordo com o Par. 139 do BGB. Portanto, nesses casos, não caberia a ação de enriquecimento sem causa, mas sim a própria devolução da coisa.
37
em que é totalmente desconhecido o credor, sem que haja, em princípio, qualquer
interesse em determiná-lo” (SILVA, 2006, p. 60).
À época, o principal exemplo restava na venda mecânica, realizada em
máquinas cujos credores são desconhecidos e vice-versa. Todavia, a máquina
aparenta ser o credor, de forma que colocar o dinheiro nesta se equipara ao ato de
pagar a pessoa física daquele.
Outro caso mais atual seria o de vendas on-line. Existem sítios virtuais
que funcionam apenas como vitrine para que diversos vendedores possam expor
suas mercadorias. Um sujeito que se cadastra e expõe uma mercadoria como sua
em um sítio virtual, para que todos possam ver, sem sombra de dúvidas afigura-se
como dono. Portanto, o adquirente de boa-fé passará a ter o domínio sobre a
propriedade, caso aquele vendedor não seja realmente o dono.
Entretanto atualmente tal concepção não está imune à críticas. Como já
tratado neste trabalho, o princípio da separação não se confunde com o da
abstração. O Direito Civil brasileiro adota sim o princípio da separação entre os
negócios jurídicos obrigacionais e os de transmissão, todavia não é necessário
qualificá-la como “relativa”, pois a questão da causalidade entre o negócio jurídico
obrigacional e o de disposição, além da necessidade ou não de este possuir um fim
causal, resta adstrita ao princípio da separação. Portanto, basta afirmar que aqui
não há princípio da abstração, sendo o sistema brasileiro de transmissão da
titularidade puramente causalista.
Ademais, o autor fundamenta sua tese apenas na transmissão da
propriedade, todavia a característica da causalidade ou abstratividade é ínsita a todo
o sistema de transmissão da titularidade (= “propriedade” em sentido amplíssimo).
Rodrigo Xavier Leonardo (2014, p. 268), ao discorrer sobre se tal tese também
aplica-se à cessão de créditos, afirma que “Ainda que se adote a corporeidade do
objeto como um componente fundamental do plano do direito das coisas, o que não
ocorre em relação aos créditos, o fato é que o mesmo tema se repropõe.”.
2.3.2 A concepção de Pontes de Miranda
Impende ressaltar que Pontes de Miranda sempre concebeu o sistema
brasileiro como abstrativista. Ao tratar sobre a transferência dos bens imóveis, o
autor descreve três suportes fácticos distintos - o do negócio jurídico causal, o do
38
acordo de transferência e o ato transcritivo. O primeiro origina o negócio jurídico
consensual, o segundo um negócio jurídico abstrato, e o terceiro é parte do negócio
jurídico de disposição.
A partir daí o autor passa a traçar as relações existentes entre os três,
explicitando, justamente, que o negócio jurídico causal não depende dos outros dois.
Afirma que o primeiro pode ser condicional ou a termo, mas o acordo de transmissão
não, posto que a transmissão não pode ser condicionada ou ter sobre si termo.
Ademais, caso registre o negócio causal, terá efeito apenas de constituir uma
escritura pública.
Entende ainda que se faz necessário impugnar o acordo de transferência
ou a própria transcrição para impedir a transferência. Todavia, caso o negócio
consensual já contenha o acordo de transferência, houve, simultaneamente, a
assunção da obrigação de prestar a coisa e o próprio acordo, mas este não deixará
de ser abstrato e independente do negócio causal.
Ainda atinge a conclusão de que a efetiva transcrição é que provê a
chamada eficácia real ao acordo de transmissão e, por isso, possuirá eficácia ex
nunc. Todavia, caso aquela seja realizada sem o acordo de transferência,
sobrevindo este, não haverá necessidade de nova transcrição (PONTES DE
MIRANDA, 1955).
Portanto, para Pontes de Miranda, não necessariamente o ato de
disposição será codeclarado ao assumir a obrigação, justamente por constituírem
suportes fácticos diferentes, o que favoreceria, para o autor, a abstração do sistema
patrimonial privado brasileiro.
No final das contas, a abstratividade ou causalidade de um sistema acaba
sendo uma decisão política atinente ao favorecimento ou não da facilidade de
circulação do tráfico jurídico-econômico.
39
3 TEORIA GERAL DA RELAÇÃO JURÍDICA
A teoria geral do Direito Privado continua baseada em três principais
construções conceituais da escola pandectística, quais sejam, a teoria da pessoa em
sentido jurídico, a teoria do negócio jurídico e a teoria da relação jurídica. Esta última
consiste em um dos temas mais aptos a gerar discordância quanto ao que significa,
seu conceito, sua estrutura, entre outros aspectos. Todavia, é tema necessário ao
entendimento do presente trabalho, e passa a ser analisado neste momento.
3.1 DA ESFERA JURÍDICA
Para a exata compreensão da questio, faz-se necessário, antes de tudo,
explicitar o conceito de esfera jurídica. A expressão refere-se à noção de conjunto de
direitos que tocam a determinado sujeito.
Marcos Bernardes de Mello (2011, p. 90) apresenta a seguinte definição:
[Esfera jurídica consiste n]Os bens da vida que tocam a determinado
sujeito de direito, consubstanciados no conjunto das situações jurídicas (lato sensu) em que esteja inserido, portanto a totalidade dos direitos, pretensões, ações e exceções, bem assim os deveres e obrigações, que, especificamente, lhe dizem respeito, tenham ou não mensuração econômica, e as qualificações individuais relativas ao status das pessoas, inclusive certos direitos públicos que não se subjetivam, constituem sua esfera jurídica.
De maneira mais sucinta, Marcel Edvar Simões (2011, p. 71) conceitua
esfera jurídica como o “complexo de posições jurídicas subjetivas […] de que é titular
determinada pessoa pela atribuição que faz o ordenamento jurídico pelo simples fato
desta [sic] pessoa ser pessoa”.
A partir dos conceitos apresentados, torna-se fácil notar a amplitude da
expressão, resultando errôneo considerar-se como integrante da esfera jurídica de
alguém apenas o seu patrimônio.
O patrimônio limita-se aos direitos com conteúdo estritamente econômico,
enquanto a esfera jurídica abrange bens da vida com conteúdo meramente moral ou
espiritual29 (MELLO, 2011).
29Marcos Bernardes de Mello (2011) cita como exemplos a liberdade de religião, bem como
o direito de permanecer em praça pública ou dirigir-se à praia.
40
De acordo com Marcel Edvar Simões (2011, p. 71), o “patrimônio se
revela como um setor da esfera jurídica […]. Consiste no conjunto de posições
jurídicas subjetivas […] suscetíveis de valoração econômica e expressão
pecuniária”.
Segundo Marcos Bernardes de Mello (2011), convém conceber os
diferentes objetos de direito em círculos concêntricos, de maneira que o menor deles
representa as coisas materiais, enquanto o que imediatamente o engloba refere-se
também aos bens imateriais. Por conseguinte, o terceiro círculo que engloba os dois
anteriores consubstancia os direitos de crédito, ou seja, uma parte do patrimônio
ativo; e, por fim, o último e maior círculo consistiria em situações jurídicas simples e
em direitos sem estimação econômica.
Interessante a concepção do referido autor, todavia, crê-se que deva ser
compreendida como exemplificativa, pois não necessariamente os direitos
englobarão os outros, de maneira preestabelecida, conforme a ordem aqui
elencada30.
Entende-se, assim, que o conceito de esfera jurídica tem como elementos
essenciais a referência a sujeito de direito específico, bem como à universalidade de
bens da vida que o tocam (MELLO, 2011).
Por fim, cumpre frisar que todo esse complexo de posições jurídicas
subjetivas encontra-se protegido, conforme o princípio da incolumidade das esferas
jurídicas alheias. É a forma dogmática de se tratar a máxima segundo a qual
ninguém pode interferir na esfera jurídica de outrem sem o seu consentimento ou
autorização legal. Por isso o próprio conceito de esfera jurídica deve ser concebido
da maneira mais ampla possível, caso contrário direitos, em um primeiro momento
insuscetíveis de valoração econômica, como a imagem, estariam excluídos de
efetiva proteção jurídica. Isso posto, configura grave imprecisão terminológica excluir
tais direitos do conceito de esfera jurídica (MELLO, 2011).
30“O que é importante é conceber os direitos pessoais como um círculo restrito, dentro dos
direitos não patrimoniais. Nem todos os direitos não patrimoniais são pessoais.” (ASCENSÃO, 2010, p. 20).
41
3.2 DA RELAÇÃO JURÍDICA
Inicia-se a análise da questão atinente à relação jurídica em si conforme a
concepção de diferentes autores.
3.2.1 Conforme concepção de Marcos Bernardes de Mello
A expressão “situação jurídica” pode ser utilizada conforme duas
acepções. A primeira (sentido lato) refere-se a qualquer consequência emanada de
um fato jurídico. A segunda (sentido estrito) diz respeito à categoria eficacial
específica na qual ainda não se formou relação jurídica (MELLO, 2011).
No presente momento, utilizar-se-á o sentido estrito como regra, de
maneira que o sentido lato, quando empregado, será expressamente referido. A
correta compreensão do conceito de situação jurídica é indispensável para se
entender o que se denomina de relação jurídica.
Há diversas espécies de situações jurídicas (lato). Conforme classificação
adotada por Marcos Bernardes de Mello, tem-se:
3.2.1.1 Situação jurídica básica
Apesar de o Direito ser essencialmente intersubjetivo, é possível
identificar categorias eficaciais que não constituem relações jurídicas. O primeiro
caso consiste justamente na situação jurídica básica.
Conforme rememora Marcos Bernardes de Mello (2011, p. 100), “em
geral, a eficácia jurídica específica atribuída ao fato jurídico é irradiada de imediato e
de um só jato”.
Contudo, existem situações nas quais a eficácia própria e final do fato
jurídico nunca é irradiada, seja por conta da sua própria natureza, de vício que
atenta contra sua formação ou ainda não se encontra capaz de produzi-la. Exemplos
são o testamento, enquanto ainda vive o testador, os negócios jurídicos nulos aos
quais a lei não atribui eficácia putativa ou os negócios jurídicos celebrados sob
condição suspensiva que ainda não fora implementada (MELLO, 2011).
42
Como afirmado, os referidos fatos jurídicos estão sujeitos à ineficácia
total31 de seus efeitos finais, o que não impede a produção de outros efeitos que
lhes são próprios, apesar de não finais. Aí está a eficácia de conteúdo mínimo.
No caso do testamento enquanto vivo o testador, por exemplo, a eficácia
mínima é percebida mediante a vinculabilidade gerada por aquele, pois caso não
haja a revogação conforme a forma prevista em lei ou a ocorrência de caducidade, o
espólio ficará sujeito às disposições testamentárias.
Portanto, as denominadas situações jurídicas básicas caracterizam-se por
constituírem a única e mínima eficácia produzida pelo fato jurídico ou a própria base
eficacial sobre a qual é desenvolvida a eficácia final e própria do fato jurídico
(MELLO, 2011).
3.2.1.2 Situações jurídicas simples ou unissubjetivas
Nesta espécie de categoria eficacial, os efeitos do fato jurídico limitam-se
apenas a uma esfera jurídica e o seu conteúdo restringe-se a atribuir ao seu titular
uma qualidade ou qualificação no plano jurídico.
Não prejudica tal classificação a possibilidade de impor, perante terceiros,
a qualificação ou qualidade decorrente do fato jurídico gerador de situação jurídica
simples. O critério da presente categoria “tem por fundamento, tão somente, a
característica de sua referibilidade, direta e imediata, a uma única esfera jurídica”
(MELLO, 2011 p. 105).
Entende-se a qualidade, no mundo jurídico, como uma situação jurídica
atribuída a algum sujeito de direito e protegida por direito subjetivo. Como exemplo,
têm-se a capacidade jurídica e a personalidade de direito, pois a quem a lei as
atribui, há direito a ser pessoa e a ser juridicamente capaz.
31Marcos Bernardes de Mello (2011) realiza precisa distinção entre os diferentes modos de
ineficácia. No que se refere à produção dos efeitos próprios e finais de determinado fato jurídico, aquela pode ser total, caso estes não se produzam. O que não significa, todavia, ineficácia absoluta, considerando-se que os fatos jurídicos, mesmo em tais situações, ainda ingressam no mundo jurídico, produzindo seus efeitos mínimos e próprios, apesar de não finais. Há, aí, ineficácia parcial. Quando o fato jurídico não gera qualquer efeito, há na verdade sua inexistência, constituindo-se a hipótese de ineficácia absoluta. Difere da situação na qual o fato jurídico não produz seus efeitos somente em relação a algum ou alguns sujeitos de direito, em que há ineficácia relativa.
43
A qualificação, todavia, não constitui direito subjetivo, pois é
compreendida tão somente como estado fático (ser solteiro ou louco) ou jurídico (ser
casado ou ser menor) que integra a composição de outros suportes fácticos. O ser
solteiro, por exemplo, integra a qualificação do suporte fáctico do matrimônio, como
elemento complementar referente à própria validade, pois caso fosse casado, não
poderia casar-se, sendo inválido o casamento. Apesar disso, as qualificações são
asseguradas por pretensão ao seu reconhecimento, e caso sejam indevidamente
negadas, aquele pode ser imposto por meio da respectiva ação de direito material
que exsurge (MELLO, 2011, p. 105-108).
Marcos Bernardes de Mello elenca como elementos caracterizantes da
situação jurídica unissubjetiva, a já citada referibilidade a uma única esfera jurídica, a
oponibilidade erga omnes e a impositividade por via judicial (MELLO, 2011, p. 107-
109).
As principais espécies de situação jurídica unissubjetiva são as
capacidades, sendo entendida a jurídica como uma capacidade geral e pressuposta
às outras capacidades, tidas como específicas (e.g. capacidade de agir e
capacidade processual).
3.2.1.3 Situações jurídicas complexas ou intersubjetivas unilaterais
Nesta categoria eficacial também não há a referibilidade a mais de uma
esfera jurídica. Diferencia-se da anterior por possuir, como pressuposto necessário
de existência, a intersubjetividade necessária.
A compreensão torna-se possível mediante a análise de seus exemplos,
que se consubstanciam sobretudo em certos negócios jurídicos unilaterais, como a
oferta, seja revogável ou irrevogável, seja ao público ou não.
No caso de oferta revogável, o ofertante expõe sua esfera jurídica a uma
situação de vinculabilidade. Quando a oferta é irrevogável, ocorre, desde já, a
vinculação do ofertante a sua proposta.
A vinculabilidade sempre é uma situação complexa unilateral, enquanto a
vinculação, por certas vezes, pode tão somente integrar o conteúdo de uma relação
jurídica, como de “direito expectativo decorrente de negócio jurídico enquanto
pendente condição suspensiva” (MELLO, 2011, p. 183).
44
A intersubjetividade reside na necessidade de a oferta ser dirigida ao
alter. Apesar disso, seus efeitos jurídicos limitam-se a apenas uma esfera jurídica,
não chegando a constituir, por si só, uma relação jurídica.
Interessa ressaltar que o destinatário da oferta não possui qualquer dever
de aceitá-la, não se encontrando, assim, a ela vinculado. Todavia, exsurge para ele
direito formativo gerador, pois caso a aceite, e sendo a oferta irrevogável, obrigará o
ofertante a seguir sua proposta, sendo gerada a respectiva relação jurídica.
Assim, no caso da oferta, podem existir duas situações jurídicas
intersubjetivas unilaterais diferentes - a vinculação ou vinculabilidade do ofertante e
o direito formativo gerador do destinatário (MELLO, 2011, p. 184).
3.2.1.4 Relação jurídica
O próprio vocábulo “relação” pressupõe a existência de algo com o que se
possa relacionar. Nada se relaciona sozinho. Portanto, é lógico afirmar que uma
relação jurídica envolve a intersubjetividade entre duas ou mais esferas jurídicas
diferentes.
Constitui relação jurídica “toda relação intersubjetiva sobre a qual a norma
jurídica incidiu, juridicizando-a, bem como aquela que nasce, já dentro do mundo do
direito, como decorrência de fato jurídico” (MELLO, 2011, p. 188).
A relação jurídica material é estruturada de maneira a integrar:
a) sujeito ativo e sujeito passivo;
b) objeto;
c) conteúdo:
c.1) no polo ativo: direito, pretensão, ação e exceção; e
c.2) no polo passivo: dever, obrigação, situação de acionado e situação
de excetuado.
A estrutura da relação jurídica, abstratamente considerada, permite
entrever os quatro princípios que a regem, três essenciais e um eventual.
O primeiro princípio essencial é o da intersubjetividade32. Significa que as
relações jurídicas necessitam de no mínimo dois sujeitos de direitos para que
32José de Oliveira Ascensão (2010) também entende como necessária a intersubjetividade
para haver relação jurídica. Todavia, paradoxalmente, afirma ser possível a existência de direitos sem sujeito. Para tanto, cita o exemplo da sucessão no Direito português,
45
possam existir. Podem ocorrer entre dois sujeitos determinados ou determináveis, ou
entre um sujeito determinado/determinável e o alter, a depender do direito e da
pretensão33 (MELLO, 2011).
O princípio da essencialidade do objeto é o segundo. Os bens da vida,
como regra, podem integrar o suporte fáctico de fatos jurídicos. São insitos ao plano
fáctico. Mas quando são juricizados e passam a integrar a esfera jurídica de um
sujeito de direito, tornam-se objeto de direito34. Assim, “o bem da vida sobre que
recaem direitos e deveres que sejam conteúdo da relação jurídica é objeto da
relação jurídica” (MELLO, 2011, p. 197).
O último princípio essencial consiste na correspectividade de direitos e
deveres. Diz respeito ao conteúdo eficacial das relações jurídicas, de forma que,
para haver relação jurídica, deve haver necessariamente no mínimo um direito
correlato ao seu respectivo dever (MELLO, 2011, p. 199).
Em uma relação jurídica obrigacional, e.g., o credor (sujeito ativo) não
pode possuir direito de crédito sem haver o correspectivo dever de débito do
devedor (sujeito passivo).
O quarto princípio, esse não essencial, é o da coextensão de direito,
pretensão e ação. Também refere-se ao conteúdo da relação jurídica. Encontrava-se
positivado no art. 75 do Código Civil de 1916 (sem correspondente no atual), o qual
justificando que os sucessores só adquirem o direito do sucessor com a aceitação, enquanto a titularidade deste extinguiu-se com a morte. Nesse hiato, os direitos deixados pelo de cujus não se encontrariam na titularidade de ninguém. Todavia, também afirma que os sucessores, ao declararem sua aceitação, são tidos, retroativamente, como titulares desde a abertura da sucessão Ocorre que segundo uma lógica ponteana, tal constatação não é possível, pois ao declararem a situação, há apenas uma confirmação de situação já existente. A eficácia seria ex tunc por justamente decorrer de situação cuja natureza é declaratória e não constitutiva.
33Caso não haja dois sujeitos de direito, não haverá relação jurídica, mas tão somente situação jurídica. Marcos Bernardes de Mello rememora que é preciso distingui-las das hipóteses em que se enxerga somente um sujeito, seja o ativo (como nas relações jurídicas envolvendo direito de propriedade ou direitos de personalidade) ou seja o passivo (nos títulos ao portador e na herança jacente e vacante), pois nesses casos há apenas a indeterminação e não a inexistência do outro sujeito. Assim, não há relação jurídica entre pessoa e coisa, pessoa e lugar, coisa e coisa, ou da pessoa consigo mesma e relação sem sujeito (2011). É lógico concluir que somente o sujeito existente pode ser qualificado, seja como determinável ou indeterminável.
34Marcos Bernardes de Mello rechaça a orientação doutrinária segundo a qual as coisas seriam objetos mediatos das relações jurídicas, enquanto os direitos e as obrigações seriam objetos imediatos, sob o fundamento de que os deveres integram o conteúdo da relação, que recaem justamente sobre coisas, corpóreas ou incorpóreas, e sobre atos humanos, comissivos ou omissivos, que constituem os objetos da relação jurídica (2011).
46
dispunha que a todo direito corresponde uma ação, que o assegura. Não tratava
sobre a ação de Direito Processual, mas sim sobre a ação de Direito Material35.
Marcos Bernardes de Mello (2011) afirma que o antigo Código não tratou
sobre a pretensão pelo motivo de, a sua época, o conceito ainda não se encontrar
devidamente delimitado.
Como não é essencial, sofre exceções, de forma que existem direitos sem
pretensão e ação (e.g. obrigações naturais) e ação sem direito (e. g. habeas corpus
em favor de terceiro).
Por fim, cumpre analisar os componentes do conteúdo da relação jurídica
de Direito Material. Como já elencado, no polo ativo da relação jurídica há o direito, a
pretensão, a ação e, eventualmente, a exceção. No polo passivo há correlato dever,
obrigação, situação de acionado e eventual situação de excetuado.
Marcos Bernardes de Mello oferece exemplo para explicar de maneira
sucinta a diferença entre direito, pretensão e ação: Em uma relação jurídica irradiada
de um contrato de empréstimo, Aurélio emprestou R$ 10.000,00 a César em 10 de
maio, com vencimento para 10 de julho. Ademais, pactuou-se que o sujeito passivo
teria prazo de tolerância de 5 dias, após o vencimento, para pactuar o vencimento,
de forma que não incidiria em mora no respectivo período. Assim, entre 10 de maio e
9 de julho, há o direito de crédito e o seu correspectivo dever (débito). A partir do
vencimento, em 10 de julho, exsurge a pretensão em favor do credor, que pode
exigir a obrigação decorrente do dever do sujeito passivo. A pretensão representa,
portanto, o grau de exigibilidade do direito. Apesar de possuir pretensão, por conta
do pacto de non petendo que dura até o dia 15, o credor ainda não pode impor que o
devedor lhe pague. A impositividade do direito encontra-se presente na ação, que
somente exsurge caso o devedor não cumpra sua obrigação (MELLO, 2011).
Há a exceção36 quando o sujeito passivo da relação jurídica possui direito
que opõe-se a direito, pretensão ou ação do sujeito ativo, de forma a encobrir seus
efeitos. Pode ser suspensiva (e.g. exceção de contrato não cumprido), pois não
encobre definitivamente a pretensão e a ação, mas somente suspende a
exigibilidade e a impositividade, ou pode ser peremptória (e.g. exceção de
35Em regra, a ação de Direito Material constitui o objeto da ação de Direito Processual, ou
seja, a res in iudicio deducta. A última visa efetivar a primeira (MELLO, 2011). 36Marcos Bernardes de Mello elenca a exceção no polo ativo por considerar que seu
exercício decorre de uma atividade e nunca de uma passividade, apesar de reconhecer que é exercida pelo sujeito passivo (2011).
47
prescrição), encobrindo (nunca excluindo) terminativamente a pretensão e a ação
(MELLO, 2011).
3.2.2 Conforme concepção de José de Oliveira Ascensão
Para o autor português, situação jurídica também é categoria amplíssima,
na qual está inserta a de relação jurídica. Ademais, também entende ser possível
compreender a noção mediante dois sentidos. De acordo com o sentido amplo,
situação jurídica seria todo resultado da aplicação da norma jurídica, de maneira que
não abrangeria tão somente situações subjetivas. Não utiliza tal sentido, restringindo
a expressão ao seu sentido estrito, no qual situação jurídica refere-se somente a
sujeitos (ASCENSÃO, 2010).
O autor classifica as situações jurídicas sob a ótica de diferentes critérios
entre:
I - simples ou complexas;
II - compostas ou coletivas;
III - unissubjetivas ou plurissubjetivas;
IV - ativas ou passivas.
Elenca, ainda, outras classificações, todavia, para os presentes fins,
interessam somente as aqui expostas.
As situações complexas são o resultado da junção de várias situações
jurídicas simples (e.g. a posição do devedor). Aquelas podem ser decompostas em
situação mais elementar, enquanto estas já não o podem mais (ASCENSÃO, 2010).
Somente as situações jurídicas complexas podem ser compostas ou
coletivas. Quando as várias situações simples integrantes da situação complexa
perdem a sua autonomia, há a situação jurídica composta (e.g. direito subjetivo).
Não ocorrendo tal perda, configura-se uma situação jurídica coletiva (e.g.
universalidades de direito) (ASCENSÃO, 2010).
Quanto aos sujeitos, as situações jurídicas podem ser unissubjetivas ou
plurissubjetivas. Nas primeiras, há a posição de somente um sujeito. Nas segundas,
48
existem situações jurídicas pertecentes a mais de um sujeito. Estas são as relações
jurídicas. Aquelas são chamadas de posição jurídica37 (ASCENSÃO, 2010).
Por fim, as situações jurídicas podem ser ativas ou passivas. O critério é
útil quando se trata de posições jurídicas; todavia, ao se enfrentar relações jurídicas,
percebe-se que, em sua maioria, há um “equilíbrio de posições, em que os vários
sujeitos são simultaneamente ativos e passivos” (ASCENSÃO, 2010, p. 18).
Infere-se que os critérios apresentados relacionam-se de maneira que a
própria relação jurídica (situação jurídica plurissubjetiva), por exemplo, pode ser
simples ou complexa. Aquela ocorre quando seu conteúdo limita-se a uma única
posição de poder ou dever, enquanto esta tem seu conteúdo composto por diversas
posições de poder e dever.
Assim, a relação jurídica é composta de posições jurídicas, que podem
ser ativas ou passivas, conforme coloquem o sujeito em posição de vantagem ou
desvantagem, respectivamente (ASCENSÃO, 2010).
São modalidades de posições jurídicas ativas:
I - poderes elementares (faculdades), que podem ser de quatro ordens:
I.a) Faculdade, ou poder de gozo;
I.b) Pretensão, ou poder creditício;
I.c) Poder potestativo ou potesta;
I.d) Posição ativa contraposta ao ônus.
II - poderes genéricos;
III - direitos subjetivos;
IV - poderes funcionais;
V - interesses juridicamente protegidos.
São modalidades de posições jurídicas passivas:
I – complexas:
I.a) deveres genéricos;
I.b) obrigações;
I.c) sujeições:
37“A terminologia é convencional. Podemos falar todavia de posição jurídica, aproveitando a
orientação dominante na doutrina italiana, para designar toda a situação jurídica, simples ou complexa, que caiba a um único sujeito” (ASCENSÃO, 2010, p. 17). O autor também refere-se às situações jurídicas unilaterais como posições jurídicas. “Toda a situação jurídica de uma pessoa pode ser designada posição jurídica, por oposição às relações jurídicas. E é ainda por si uma situação jurídica, dada a grande latitude desta noção” (p. 47).
49
I.d) deveres funcionais
II – simples:
II.a) débitos (positivos ou negativos);
II.b) sujeições;
II.c) ônus.
3.2.3 Interlúdio
Com a apresentação de teorias sobre situações e relações jurídicas,
conforme o entendimento de dois diferentes autores, pretendeu-se demonstrar a
dificuldade de tratamento do tema pela doutrina jurídica neolatina. Mesmo em
sistemas jurídicos de origem comum, a questão está longe de ser unívoca.
Ainda que o presente trabalho realizasse o hercúleo esforço de
estabelecer-se como uma “enciclopédia da teoria geral da relação jurídica”, de
maneira a elencar todas as teorias mais destacadas, não se atingiria nível
satisfatório sobre o problema.
Cada teoria possui seus méritos e seus deméritos. Marcos Bernardes de
Mello, por exemplo, peca ao limitar sua classificação de situação jurídica (lato) à
referibilidade ou não de uma ou mais situações jurídicas, enquanto José de Oliveira
Ascensão acaba por classificar demais, estabelecendo os mais diferentes critérios, o
que acaba por gerar, paradoxalmente, uma imprecisão, tornando difícil de entender
o fenômeno globalmente. Apesar disto, é extremamente útil sua construção de
posição jurídica.
Criticar, todavia, é tarefa fácil e esse não é o objetivo que se busca. Crê-
se, portanto, que com as teorias elencadas, torna-se possível obter uma mínima
noção conceitual da questio. Para o prosseguimento do estudo, torna-se necessário
definir conceitos, pactuando-se tal sentido com o receptor da mensagem. Todavia,
não seria justo jogar-lhes os conceitos na face sem uma mínima problematização do
tema.
Assim, para os fins do presente trabalho, utilizar-se-á a construção teórica
de relação jurídica idealizada por Giuseppe Lumia com contribuições de Alcides
Tomasetti Jr e Rafael Vanzella.
50
3.2.4 Conforme concepção de Giuseppe Lumia (com contribuições de Alcides
Tomasetti Jr. e Rafael Vanzella)
Relações jurídicas são intersubjetivas, reguladas por normas jurídicas e
regidas pelos conceitos de alteridade, exterioridade, bilateralidade e reciprocidade
(LUMIA, 1981).
A alteridade indica a intersubjetividade própria do direito, enquanto a
exterioridade exprime a noção de ser alheio à regulação do direito fatos psiquícos
meramente internos e comportamentos que têm nas coisas pontos exclusivos de
referências. A bilateralidade e a reciprocidade indicam que das relações jurídicas
exsurgem poderes (lato) e deveres (lato) correlativos e em sentido duplo, ou seja,
que ao poder de um sujeito corresponde o dever de outro (bilateralidade), de forma
que um não pode atuar de certa maneira diante do outro sem com isso acabar por
legitimá-lo, em condições iguais, a atuar de modo análogo em face do primeiro
(reciprocidade, que acaba por exprimir a noção de igualdade formal entre os sujeitos
da relação jurídica) (LUMIA, 1981).
A relação jurídica é estruturada de forma a considerar os “sujeitos entre
os quais a relação se instaura; a posição que corresponde a tais sujeitos na relação,
e o objeto a propósito do qual a relação se estabelece” (LUMIA, 1981, p. 3).
Nesse momento, cumpre distinguir os conceitos de partes, sujeitos e
pessoas, categorias diferentes muitas vezes tratadas de maneira idêntica.
Cada parte (lado, polo ou centro de interesses) da relação jurídica pode
ser composta por vários sujeitos de direito, que não necessariamente serão
pessoas. Os sujeitos titulares de interesses idênticos integrarão o mesmo polo. Cada
sujeito recebe a denominação técnica de “figurante”. Por conta disso, as partes
podem ser unifigurativas (simples) ou multifigurativas (complexas) (TOMASETTI
JUNIOR, 2011).
Geralmente as pessoas, físicas ou jurídicas, são os figurantes. Todavia,
não somente essas são consideradas sujeitos de direito38 pelo ordenamento jurídico.
Rememora Alcides Tomasetti Junior (2011, p. 757) que sujeito de direito “é todo
ente, seja ou não pessoa, que o ordenamento jurídico admita ser titular das posições
jurídicas ativas e passivas que estão no conteúdo das relações jurídicas”.
38São exemplos o nascituro, a massa falida, o condomínio, a sociedade em cota de
participação.
51
A parte, como centro de interesses, também deve ser considerada em seu
sentido substancial, podendo ser composta de apenas um interesse (parte
objetivamente simples) ou de vários interesses (parte objetivamente complexa).
Todavia, também pode haver parte em sentido formal, como nos casos de
representação direta, na qual o representado é parte em sentido substancial e o
representante é parte em sentido formal, pois os efeitos jurídicos da relação são
imputados ao primeiro (TOMASETTI JUNIOR, 2011).
A polarização de cada uma das partes na relação jurídica define a
posição jurídica de cada uma, o que implica que do polo passivo defluem posições
jurídicas subjetivas passivas (necessidades jurídicas comportamentais), enquanto do
polo ativo defluem posições jurídicas subjetivas ativas (possibilidades jurídicas de
impor determinados comportamentos a outro) (LUMIA, 1981).
Para que se torne possível definir cada posição jurídica subjetiva
elementar, faz-se necessário tratar sobre as normas de comportamento (ou
primárias) e as normas de competência (ou secundárias). Aquelas têm por objeto
condutas, enquanto estas possuem como objeto outras normas (LUMIA, 1981).
Posições jurídicas subjetivas diferentes surgirão a depender da espécie
de norma constante na sua base.
Quando uma conduta é prescrita para um sujeito como decorrência de
uma norma de comportamento e tem em vista a consecução do interesse de outro
sujeito, tem-se que aquele possui um dever de comportamento (posição jurídica
subjetiva passiva) para com o segundo, de forma que este, correlativamente, possui
uma pretensão (posição jurídica subjetiva ativa) em face do primeiro, ou seja, pode
exigir o comportamento devido do sujeito integrante do polo passivo (LUMIA, 1981).
O conceito de pretensão é extremamente essencial ao Direito. Ressalta-
se que não se confunde com a noção de interese, que se entende como a
propensão à realização de uma necessidade. A pretensão é tida como exigência de
subordinação do interesse de outrem ao próprio (SIMÕES, 2011).
Por negação, obtém-se o segundo par de posições jurídicas subjetivas
decorrentes de normas primárias. Ora, caso falte pretensão (posição jurídica
subjetiva passiva) a um sujeito, de modo que não possa exigir de outrem a
realização de determinado comportamento, ele próprio detém a faculdade (posição
jurídica subjetiva ativa) de, conforme sua vontade, praticá-lo ou não (LUMIA, 1981).
52
Assim, a segunda posição jurídica subjetiva elementar ativa consiste na
faculdade, que se caracteriza por seu cunho fático pujante e exprime a noção de
liberdade para fazer ou não fazer o que por bem entender, só podendo ser exercida,
todavia, em situação na qual não houver pretensão de outro sujeito (SIMÕES, 2011).
Das posições jurídicas subjetivas elementares ativas derivadas de normas
secundárias (reguladoras de outras normas) surgem o poder formativo, a imunidade,
a sujeição e a falta de poder. Essa segunda categoria de posições jurídicas
subjetivas elementares não acarreta, diretamente, a regulação do comportamento,
mas sim de outras situações jurídicas.
O poder formativo (chamado por Pontes de Miranda de direito formativo)
consiste no poder, marcadamente jurídico, de afetar a esfera jurídica de outro
sujeito. Difere da pretensão de modificar o plano estritamente jurídico e não o
comportamental. Assim, se a vontade de um sujeito é vinculante para outro sujeito,
pois aquele pode “ditar normas”, ou seja, “criar, modificar, extinguir ou transferir
situações jurídicas em que se encontra o segundo, diz-se que este último está
sujeito a um poder formativo do primeiro” (LUMIA, 1981, p. 9).
Outra vez, por negação do par ora exposto, obtém-se outro par. Se um
sujeito não tem poder formativo sobre outro, significa que este está imune a um ter
que suportar de poder formativo. Logo, a imunidade é posição jurídica subjetiva
elementar ativa exercida na ausência de poder formativo, esta entendida como
posição jurídica subjetiva elementar passiva correlata àquele.
São oito as posições jurídicas subjetivas elementares. Quatro decorrentes
de normas primárias (duas passivas e duas ativas) e quatro decorrentes de normas
secundárias (duas passivas e duas ativas), de maneira a formar o conteúdo da
relação jurídica.
Caso essas posições elementares se combinem, podem formar posições
jurídicas subjetivas complexas, a exemplo do direito subjetivo. Representa este um
complexo unitário de posições jurídicas subjetivas ativas elementares (pretensão,
faculdade, poder formativo, imunidade) que se encontra sob a titularidade de um
sujeito determinado em relação a um determinado objeto (LUMIA, 1981).
Todavia, há uma questão longe de ser pacífica no que foi exposto:
consiste o poder formativo em posição jurídica elementar inserta no direito subjetivo
ou deveria ser considerado poder externo ao direito, objeto do poder?
53
Para responder a tal questão, necessário se faz tratar sobre o conceito de
titularidade, que corresponderia justamente à ideia de pertinência de uma posição
jurídica subjetiva patrimonial, obrigacional ou real, a um sujeito de direito com
exclusividade.
Logo, titularidade significa um metapoder, pois ter um bem econômico
também significa ter um direito subjetivo patrimonial sobre esse bem de maneira
exclusiva. Assim, v.g., o titular de uma posição jurídica subjetiva patrimonial
complexa, como o crédito (obrigacional) ou domínio (real), possui tanto pretensões a
sujeitos passivos totais, contrapostas a um dever desses de abstenção, quanto
poder de dispor sobre tal posição, contraposto a uma sujeição do sujeito passivo
total. Há, pois, uma dissociação entre os direitos subjetivos patrimoniais e os
poderes que sobre eles atuam, razão pela qual não é possível compreender o poder
de dispor como parte do conteúdo de um direito subjetivo39, mas sim como um
metapoder, regulado justamente por normas jurídicas secundárias e integrante da
titularidade (VANZELLA, 2012).
A titularidade seria um metapoder proveniente de normas jurídicas
secundárias, que garantiriam ao titular o poder de dispor e a imunidade contra a
disposição. No que se refere ao objeto, configura-se como o “termo de referência
externo da relação jurídica” (LUMIA, 1981, p. 3).
Em uma relação jurídica obrigacional, o direito subjetivo é o crédito,
enquanto o débito corresponde ao dever jurídico (= posição jurídica subjetiva
passiva complexa), e o devedor se obriga (em sentido estrito, significando dever
comportamental) a realizar a prestação (= objeto de primeira ordem) pretendida pelo
credor. Concomitantemente, o titular desse direito subjetivo de crédito (= objeto de
segunda ordem) possui o poder de dispor sobre ele, tão quanto a imunidade à
disposição, justamente pelo fato de os sujeitos passivos totais (= possíveis
adquirentes) encontrarem-se sob sujeição a tal poder e ausentes de poder formativo
sobre tal direito. Ademais, todos os sujeitos de uma ordem jurídica possuem o dever
de não interferir sem autorização no direito subjetivo de outrem, ou seja, normas
comportamentais referentes à titularidade, a um objeto de direito de segunda ordem.
39 Exemplifica a situação a metáfora da pedra, proposta por Thon e P. Oertmann: “A força
para arremessar uma pedra por uma trajetória adiante não é conferida pela própria pedra, sendo, antes, anterior a ela; tem-se a força para arremessar uma pedra independentemente de ter a pedra na mão.” (VANZELLA, 2012, p. 88)
54
Por fim, resta tratar sobre as situações jurídicas (v.g. herdeiro, condômino,
empresário) que funcionam como designadoras de posições ou atividades
decorrentes de posições jurídicas subjetivas, tendo em vista as funções orientantes
ou que devam orientar os sujeitos correspondentes em sua busca pela realização de
algum interesse situacional (LUMIA, 1981).
55
4 ASPECTOS GERAIS DO CONTRATO DE DISPOSIÇÃO
Muitas vezes negligenciado pela doutrina nacional, o contrato de
disposição constitui-se como elemento essencial para a devida compreensão do
fenômeno de transmissão da titularidade de direitos subjetivos patrimoniais.
O presente estudo não possui a pretensão de realizar uma análise
minuciosa e detalhada do tema, pois, de maneira muito sincera, não se configura
como espaço adequado para tanto, considerando-se que tal proposta, no Brasil,
originou uma tese de doutorado, “O contrato e os direitos reais”, de Rafael Vanzella.
O objetivo, portanto, é de apresentar aspectos gerais do instituto, de
forma a possibilitar o entendimento de questões a serem postas neste trabalho.
4.1 CONTRATOS OBRIGACIONAIS E CONTRATOS DE DISPOSIÇÃO
Contrato é o “acordo entre duas ou mais partes formalmente iguais
mediante o qual escolhem o seu tipo, configuram relações jurídicas patrimoniais e
instauram uma regulação jurídico-negocial e autônomo-privada” (VANZELLA, 2012,
p. 104).
O ordenamento jurídico adota como técnica essencial, em diferenciação
de sua própria reação a operações econômicas e socialmente contratuais que não
se enquadram em tipos contratuais previamente dispostos, a utilização de um
regime de numerus apertus ou numerus clausus (VANZELLA, 2012).
Na primeira hipótese, em um regime de tipicidade legal aberta, caso
ocorra uma manifestação atípica de autonomia contratual, não necessariamente os
contratos atípicos serão prejudicados em sua existência. Significa que poderão ser
tidos como contratos em gênero ou serem jurisprudencialmente tipificados como um
dos contratos em espécie normativamente previstos. Na segunda hipótese, os
contratos atípicos necessariamente não serão considerados existentes como
contratos, pois não há um tipo contratual em gênero (VANZELLA, 2012).
Assim, no “direito positivo, apenas os contratos obrigacionais submetem-
se a um regime, em tese, de tipicidade legal aberta; os contratos de disposição
submetem-se a um regime de tipicidade legal fechada” (VANZELLA, 2012, p. 55).
E a referida autonomia contratual é representada em três dimensões da
capacidade de exercício: a) o poder de decidir pela participação ou não participação
56
em um ou ambos os lados de uma relação jurídica patrimonial; b) o poder de decidir
por um tipo contratual, ou seja, pelos essentialia negotii (estrutura), que possibilitam
ao acordo existir no plano jurídico, e consequentemente pelo conteúdo legal
(naturalia negotii cogentes), que atribui ao acordo sua conformação jurídica mais
básica; e c) o poder de decidir pelos accidentalia negotii (conteúdo derivado da
vontade), pela confecção ou não das outras normas jurídicas contratuais, que
podem decorrer de derrogação de conteúdo legal disponível ou de inexação de
cláusulas contratuais típicas ou atípicas (VANZELLA, 2012).
As duas últimas dimensões variam, em extensão e intensidade, a
depender das citadas classes de contratos do Direito Positivo. No tipo do contrato
obrigacional, a autonomia contratual é identificada por essentialia negotii gerais,
naturalia negotii predominantemente não cogentes e accidentalia negotii permitidos
de maneira ampla, enquanto no tipo do contrato de disposição, é enxergada por
meio de essentialia negotii especiais, naturalia negotii predominantemente cogentes
e accidentalia negotii permitidos de maneira excepcional (VANZELLA, 2012).
O ordenamento jurídico utiliza-se de figuras contratuais de tipo vinculativo
e fixo ao tratar dos contratos de disposição justamente por conta de suas funções de
transmitir posições jurídicas subjetivas patrimoniais e de regular o próprio poder de
dispor sobre essas, como se poderá verificar na sequência.
4.2 CARACTERÍSTICAS, CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DOS CONTRATOS
DE DISPOSIÇÃO
Geralmente o caminho é inverso: primeiro o conceito é apresentado e
seus aspectos são dissecados, de forma a se obter a natureza jurídica e os
principais caracteres do instituto. Todavia, nesse caso, optou-se por, inicialmente,
analisar as características mais importantes do contrato de disposição e a partir daí
construir sua conceituação e consequente natureza jurídica.
4.2.1 Características
Neste momento serão analisadas, de maneira direta, as características
mais importantes para que se torne possível entender o que é o contrato de
57
disposição. As característas mais importantes desses contratos são: atuarem como
a categoria jurídica que artigula os problemas regulados pelo regime de numerus
clausus e funcionarem como reguladores do poder de dispor.
Outras características não tão determinantes, como o regime típico de
publicidade, serão tratadas de maneira lateral em outros tópicos do presente estudo.
4.2.1.1 Categoria jurídica que articula os problemas regulados pelo regime de
numerus clausus
Uma afirmação de tal monta pode causar espanto em um primeiro
momento, pois significa que não somente os direitos subjetivos patrimoniais reais
articulam os problemas regulados pelo regime de numerus clausus, mas sim a
categoria do contrato de disposição.
4.2.1.1.1 Conceito de direito real e direito de crédito
Para comprovar tal afirmativa, necessário se faz delimitar o conceito de
direito real. A summa divisio das posições jurídicas subjetivas patrimoniais
estabelece a dicotomia entre direitos subjetivos obrigacionais e direitos subjetivos
reais como modelos sociais de intitulamento dos bens econômicos.
A corrente doutrinária das teorias subjetivistas ou personalistas dos
direitos subjetivos reais explica que cada uma das posições jurídicas subjetivas
patrimoniais referidas decorre da estrutura diferenciada das relações jurídicas que
lhes são subjacentes. Na hipótese de posição jurídica subjetiva obrigacional, a
relação jurídica correspondente possuirá caráter relativo (= ambos os polos
determinados ou determináveis), enquanto em uma posição jurídica real, a relação
jurídica possuiria caráter absoluto (= um dos polos indeterminado). A partir daí
retirar-se-ia o caráter absoluto dos direitos subjetivos reais, de forma que seriam
dotados de pretensões reais, imunidades contra disposição e contra execuções
judiciais (VANZELLA, 2012).
Todavia, os três atributos citados não se manifestam somente em
posições jurídicas subjetivas reais, mas sim em todas as figuras de direitos
subjetivos patrimoniais, inclusive nos créditos, afinal todo direito subjetivo é
58
“limitação à esfera jurídica de todos os outros sujeitos de direito; da mesma maneira
que o proprietário que usar, fruir e dispor com exclusividade sua coisa, o credor quer
receber com exclusividade a sua prestação” (VANZELLA, 2012, p. 62).
Assim, o critério da exclusividade como forma de caracterizar os direitos
subjetivos reais não é suficiente, considerando-se que informa muito pouco sobre a
espécie das posições jurídicas subjetivas patrimoniais, pois, como afirmado, não
somente o titular de um direito subjetivo real tem interesse em que lhe seja provido,
com exclusividade, determinado bem da vida. Este possui como interesse a res,
enquanto um credor possui como interesse a prestação do devedor (VANZELLA,
2012).
Logo, o foco deve ser alterado da relação dos titulares das posições
jurídicas patrimoniais com terceiros para a relação daqueles com o objeto de
primeira ordem destas.
Remete-se à clássica distinção entre objetos de direito de primeira e de
segunda ordem. Aqueles, de maneira tradicional, são definidos como os objetos
materiais e imateriais “sobre los que es posible un derecho de dominio o de
utilización con eficacia frente a terceros” (LARENZ, 1978, p. 370). No que se refere
aos objetos de direito de segunda ordem, podem ser entendidos como objetos de
disposição, ou seja, os direitos e relações jurídicas (LARENZ, 1978).
Karl Larenz (1978, p. 370) usa como exemplo “la cosa que se halla en
propriedade de alguien es un objeto de derecho de primer orden, y la propriedad
existente sobre la misma, en cuando objeto de disposición, un objeto de derecho de
segundo orden”.
Assim, os direitos subjetivos patrimoniais possuem como objeto imediato
(= de primeira ordem) coisas ou prestações, de forma que o assenhoreamento das
primeiras é regulado por meio da atribuição de direitos subjetivos reais, enquanto o
das segundas o é por direitos subjetivos obrigacionais. Prestações são,
residualmente, o que não se encontra definido como coisa. Coisas são os objetos
corpóreos, incorpóreos e os direitos sobre direitos (e.g. hipoteca de superfície,
penhor de créditos, usufruto de empresa). Outrossim, os próprios direitos subjetivos
patrimoniais serão sempre objetos de direito de segunda ordem, ou seja, de uma
titularidade, configurando-se como objeto do poder de dispor e do dever geral de
abstenção, esse decorrente do princípio da incolumidade das esferas jurídicas
(VANZELLA, 2012).
59
Ao focar a relação da posição jurídica subjetiva patrimonial com seu
objeto de primeira ordem, o critério da exclusividade passa a delinear-se de maneira
adequada a descrever os direitos subjetivos reais, pois as atitudes dos seus próprios
titulares possibilitam-lhes obter utilidades da coisa, diferentemente dos direitos
subjetivos obrigacionais, os quais dependem da atitude do devedor para terem suas
utilidades obtidas. Assim, os direitos subjetivos reais independeriam de uma relação
com outrem a quem o direito pertenceria com exclusividade; entretanto, os créditos
também põem seus titulares de maneira independente para com a coisa.
Portanto, a noção mais adequada é a de imediatidade, de forma que os
créditos podem ser tidos como “técnicas jurídicas de intitulação do assenhoreamento
imediato de prestações; direitos subjetivos reais […] técnicas jurídicas de intitulação
do assenhoreamento imediato de coisas” (VANZELLA, 2012, p. 66).
A contrario sensu, significa que direitos subjetivos obrigacionais podem
intitular mediatamente assenhoreamento de coisas (e.g. obrigações de dar),
enquanto os direitos subjetivos reais podem intitular mediatamente o
assenhoreamento de prestações (e.g. em variadas hipóteses de servidão).
Ademais, os direitos subjetivos reais não são os únicos a possuírem
pretensões exercíveis frente ao sujeito passivo total, pois a atribuição de créditos
também impõe a terceiros um dever comportamental geral de abstenção,
considerando que se trata de um direito subjetivo, e “onde quer que a regra jurídica
crie direitos, do lado passivo, por parte de todos, ou de alguém, está o alterum non
laedere” (MIRANDA, 2012a).
Assim, mesmo o crédito sendo um direito relativo, a atribuição de um
direito subjetivo a alguém é sempre absoluta. O que aduz à percepção de que a
diferença entre as “pretensões reais e as pretensões obrigacionais não está naquilo
que uma tem e a outra deixa de ter, mas sim no que ambas têm, e uma tenha,
talvez, mais do que outra” (VANZELLA, 2012, p. 68).
Significa que somente o devedor pode descumprir uma obrigação, ou
seja, ser sujeito do suporte fáctico de atos ilícitos relativos. Todavia, não significa
que terceiros não possam causar lesão a um direito de crédito e que esse não possa
ser objeto de suporte fáctico de atos ilícitos absolutos (VANZELLA, 2012).
Também significa que qualquer um pode causar dano a um direito
subjetivo real, todavia, desse ilícito absoluto surgem pretensões de caráter relativo,
como a de sequela (art. 1.228, caput, do Código Civil de 2002).
60
Dessa maneira, é possível falar sobre um caráter dúplice dos direitos
subjetivos patrimoniais, de maneira que as pretensões reais (posições jurídicas
subjetivas ativas elementares do direito subjetivo real) são primariamente absolutas
e secundariamente relativas, enquanto as pretensões obrigacionais (posições
jurídicas subjetivas ativas elementares do direito de crédito) são primariamente
relativas e secundariamente absolutas (VANZELLA, 2012).
A imunidade contra disposição é uma posição jurídica subjetiva ativa
elementar definida por normas de competência e frequentemente associada a um
direito subjetivo real. Significa que o titular de tal direito é imune à eficácia real
irradiada de quaisquer títulos que não tenham sido outorgados pelo próprio titular do
direito subjetivo real (ou por alguém com legitimação), que não tenham sido
originariamente adquiridos e não precedam, caso exista ordem de constituição, o do
titular do direito real (VANZELLA, 2012).
Tal imunidade corresponde justamente à falta do pleno poder formativo de
dispor, ou seja, quem não é titular do direito subjetivo real não pode operar uma
disposição translativa ou constitutiva desse, significando que não poderá celebrar
contrato de disposição eficaz, pois o pleno poder formativo de dispor é requisito para
sua eficácia.
Assim, “se o que não pode alienar aliena, o efeito real (da transmissão)
falta. Pode haver contrato consensual (rectius obrigacional) válido e eficaz; mas o
ato (rectius contrato) de disposição é ineficaz” (MIRANDA,1955, p. 15).
Nesse sentido, vale a máxima romana nemo plus iurius transferre potest
quam habt ipse (Ulpiano, L. 54, D., de diversis regulis iuris antiqui, 50, 17), de forma
que o sucessor não pode receber mais direito do que possuía o sucedido40.
Passou-se a sustentar, então, que os direitos subjetivos reais teriam em
seu conteúdo a presença da posição jurídica subjetiva elementar ativa de imunidade
40Rememora-se que, no Direito Romano, o credor pignoratício poderia alienar o objeto do
penhor e pagar a si próprio. Lição que advém de Ulpiano (L. 46, D., de adquirendo rerum dominio, XLI, 1): “Non est novum, ut qui dominium non habeat, alii dominium praebeat: nam et creditor pignus vendendo causam dominii praestat, quam ipse non habuit” (CORRAL, 1897, p. 314); (L. 20, D., XLI, 1) “Traditio nihil amplius transfere debet vel potest ad eum, qui accipit, quam est apud eum, qui tradit. Si igitur quis dominium in fundo habuit, id tradendo transfert; si non habuit, ad eum, qui accipit, nihil transfert" (p. 306); L. 20, § 1, D., XLI, 1) “Quoties autem dominium transfertur, ad eum, qui accipit, tale transfertur, quale fuit apud eum, qui tradit; si servus fuit fundus, cum servitutibus transit, si liber, uti fuit;” (p. 306). Essa possibilidade não constitui um direito, mas sim um poder, de forma que não há exceção à referida máxima romana.
61
contra disposição e a consequente presença da correlata posição jurídica subjetiva
elementar passiva da falta do poder de dispor, enquanto os direitos de crédito teriam
em seu conteúdo a ausência da posição jurídica subjetiva elementar ativa da
imunidade contra disposição e a ausência da posição jurídica subjetiva elementar
passiva da falta do poder de dispor, o que garantiria maior estabilidade aos direitos
subjetivos reais (VANZELLA, 2012).
Tal afirmação não faz sentido, pois caso fizesse, significaria concluir que
qualquer pessoa poderia dispor eficazmente de um crédito, inclusive o devedor,
independentemente de declaração jurídico-negocial do credor. Assim, a imunidade
contra disposição exsurge em ambos os direitos subjetivos patrimoniais no que se
refere ao assenhoreamento imediato dos objetos de primeira ordem de cada um e a
estabilidade dos direitos subjetivos reais encontra-se na imunidade contra a
disposição de posições jurídicossubjetivas sobre coisas, enquanto a estabilidade dos
créditos resta na imunidade contra disposição de posições jurídicossubjetivas sobre
prestações (VANZELLA, 2012).
Por fim, cumpre tratar sobre a imunidade contra execuções judiciais.
Ressalta-se que essa característica também atribuída, geralmente, somente aos
direitos subjetivos reais, é consequência da característica anterior, e pelos mesmos
motivos não se restringe somente aos direitos subjetivos reais.
Como observa Pontes de Miranda (2012a, p. 398), “os direitos
intransmissíveis também são inconstringíveis […], pôsto que a lei possa abrir
exceção ao princípio de paralelismo da transferibilidade e da constringibilidade”.
Assim, como os créditos também são imunes à disposição, também o são
contra execução judicial, de maneira que o titular daqueles estará sempre imune à
constrição de sua própria posição jurídicossubjetiva patrimonial (VANZELLA, 2012).
Ante o exposto, percebe-se que o caráter tríplice da absolutidade
(pretensões a sujeitos passivos totais, imunidades contra disposição e imunidades
contra execuções judiciais) encontra-se presente em todos os direitos subjetivos
patrimoniais, motivo pelo qual não há diferença entre as posições jurídicas subjetivas
patrimoniais sob o ponto de vista da relação de seus titulares com terceiros,
justamente por conta da situação jurídica da titularidade, pois são titulares de um
direito frente a todos os outros, seja esse real ou de crédito (VANZELLA, 2012).
Portanto, para os fins do presente trabalho:
62
Os direitos subjetivos reais são definidos como técnicas jurídicas de intitulacão do assenhoreamento imediato de coisas, tuteladas por pretensões primariamente absolutas e por imunidades contra disposição e contra execuções judiciais de posições jurídicas subjetivas patrimoniais sobre coisas; os créditos, como técnicas jurídicas de intitulação do assenhoreamento imediato de prestações, tuteladas por pretensões primariamente relativas e por imunidades contra disposição e contra execuções judiciais de posições jurídicas subjetivas patrimoniais sobre prestações. (VANZELLA, 2012, p. 81).
Logo, todo titular de um direito subjetivo patrimonial é titular do poder de
dispor sobre esse e é titular de uma imunidade perante terceiros para com aquele.
4.2.1.1.2 Fundamento do numerus clausus dos direitos reais e dos contratos de
disposição
Apesar de a Revolução Francesa ter decretado o fim político do modelo
feudal de propriedade, consubstanciado na figura do duplo domínio, coube aos
pandectistas decretar a morte jurídica daquele, sobretudo ao elaborarem um
conceito abstrato de propriedade (propriedade como poder uno e total diferente de
todos os demais poderes que daquele decorrem).
Referido conceito tornou mais palpável a possibilidade de constituição de
direitos reais limitados e a facilitação da circulabilidade da propriedade, o que
significa o reconhecimento de que os proprietários possuem o poder de determinar,
mediante suas declarações jurídiconegociais, não “apenas um meu e um teu
dinâmicos (poder de dispor translativo), mas, sobretudo, a medida em que isso é
meu e aquilo é teu, e se isso pode ser meu e aquilo pode ser teu (poder de dispor
constitutivo)” (VANZELLA, 2012, p. 145-146).
Todavia, caso os proprietários pudessem exercer tal poder de dispor
constitutivo conforme seu bel-prazer, haveria o risco de instaurar-se uma ordem
descentralizada de atribuição dos bens econômicos, o que poderia causar tanto
desuniformidade quanto não atributibilidade, criando-se uma propriedade fora do
comércio. Nisso reside o paradoxo do poder de dispor (VANZELLA, 2012).
E a genialidade dos criadores do sistema das pandectas da ciência alemã
do Direito comum não somente os fez perceber tal problema, mas também propor
soluções, de maneira que abstrair os poderes do proprietário regula o paradoxo
supracitado, pois retira a competência daquele para regulamentar o poder de dispor
63
constitutivo, ao mesmo tempo em que reconhece o princípio da disponibilidade das
posições jurídicas subjetivas patrimoniais. Assim, a competência para regular os
direitos subjetivos reais limitados foi atribuída ao legislador, ou seja, para regular o
poder de dispor, definindo de maneira exclusiva o objeto e o modo do tráfico,
predispondo legalmente os tipos vinculativos e fixos dos contratos de disposição
constitutiva daqueles direitos (VANZELLA, 2012).
Logo, o numerus clausus dos direitos reais funciona como instrumento
para a promoção do tráfico jurídico e econômico. Mas não somente isso, pois
também garante a liberdade do proprietário e dos potenciais proprietários ao
assegurar a irrestringibilidade do poder de dispor e a intangibilidade do poder de
adquirir, ou seja, serve à liberdade social do tráfico.
Como a propriedade é um direito subjetivo privado, deve guardar
observância ao princípio da individualidade dos direitos subjetivos privados. Como
rememora Pontes de Miranda (2012a, p. 286), “é princípio da teoria geral do direito,
vindo do conceito mesmo de direito, que duas pessoas, separadamente, não podem
ter o ‘mesmo’ direito41”.
Com o poder de dispor junto à posição jurídica subjetiva ativa do
proprietário, tal princípio poderia restar desviado. Como conciliar tal risco com a
necessidade de manutenção da liberdade do proprietário de manifestar sua vontade
sobre seu direito? Pois o proprietário pode dispor do que é seu como bem entender
e outro não pode dispor de tal coisa contra a vontade do primeiro, sendo estes os
aspectos positivo e negativo da propriedade. Reconhecer o poder de dispor do
proprietário significa que este pode alterar uma ordem de atribuição preestabelecida,
mas não somente isso, pois também significa que o titular do poder de dispor tem o
poder de dizer “quem tem e em que medida pode exercer o poder de dispor, quem é
e em que medida é proprietário” (VANZELLA, 2012, p. 161).
A solução, aparentemente simples, foi estabelecer que aquilo que não
está proibido pela lei consequentemente está permitido, estabelecendo-se o princípio
41Excelente exemplo é dado por Miranda (2012a, p. 286). “A regra jurídica tem tanto com
isso como tem com a identidade da página 100 do exemplar dêste livro, que o leitor está lendo, a máquina de impressão que baixou quatro mil vêzes sôbre as fôlhas de papel. A página de papel foi o suporte fáctico; a chapa molhada de tinta é a regra jurídica; o contacto é a incidência; a página impressa é o fato jurídico, que há de ser necessàriamente algum fato que interesse às relações humanas. A página 100 tem a sua individualidade, quer se cogite dela como a página 100 dentre as quatro mil páginas 100 que foram impressas, quer dela se cogite como a página 100 dentre as páginas dêste exemplar.”.
64
da liberdade privada de disposição, qualidade do próprio poder de dispor. Isso
significa que o titular de uma posição jurídica subjetiva patrimonial pode exercer, de
forma autônoma, o poder de dispor sobre essa posição, a não ser que a lei o
impeça, em determinadas situações, retirando sua legitimidade de exercício do
poder de dispor. Daí pode-se concluir, também, que o titular do poder de dispor não
pode transformá-lo em não poder de dispor conforme sua própria vontade, restringi-
lo, subordinando a decisão de sua eficácia a mais de uma esfera jurídica. Que são,
pois, os direitos subjetivos reais limitados? Justamente restrições ao poder de
dispor. Como são criados? Por meio de contratos de disposição constitutiva
previamente fixados pela lei. Logo, somente mediante esses, o proprietário pode
restringir seu poder de dispor. A irrestringibilidade do poder de dispor é um princípio
geral do direito patrimonial privado que se concretiza no direito das coisas mediante
o numerus clausus dos direitos reais. E tal regime, além de limitar a autonomia nos
contratos de disposição, acaba por promovê-la nos contratos obrigacionais, pois
torna irrelevante a posição jurídica subjetiva do proprietário para que sejam eficazes
(VANZELLA, 2012).
O poder de adquirir consiste em posição jurídica subjetiva ativa capaz de
possibilitar um poder de aumentar o ativo patrimonial por meio de declarações
jurídiconegociais, ou seja, da potencialidade “de se tornar titular de direitos
subjetivos patrimoniais constituídos jurídico-negocialmente” (VANZELLA, 2012, p.
170).
Tal poder é regido pelo princípio da liberdade privada de aquisição (art. 5º,
caput, CF/1988), de forma que também só pode ser limitado pela lei (casos de falta
de legitimação, v.g., art. 497 do Código Civil de 2002, ou de falta de legitimidade,
v.g., art. 166, VII do mesmo Diploma). E tal poder de adquirir é regulado pelo
exercício do poder de dispor. Não somente do adquirente imediato, mas de todo um
contingente indeterminado de sujeitos, de todos os potenciais adquirentes que,
obviamente, não participam do processo de formação dos contratos de disposição
(meio mais comum de exercício do poder de dispor). Nesse sentido, o exercício do
poder de dispor atinge a liberdade privada de aquisição, significando heteronomia
privada, pois interfere na esfera jurídica de terceiros. Logo, o regime de tipicidade
vinculativa e fixa dos contratos de disposição expressa o regime de lei ao qual é
submetido o poder de aquisição, tendo em vista que é regulado pelo poder de
dispor, exercido por intermédio daqueles contratos (VANZELLA, 2012).
65
Os contratos de disposição tornam-se existentes a partir do consenso
entre a declaração jurídiconegocial de dispor e a declaração jurídiconegocial de
adquirir, manifestações dos respectivos poderes de dispor e de adquirir.
Impedimentos ao poder de dispor significam, simetricamente, frustrações ao fim do
poder de adquirir e vice-versa, pois caso assim ocorra, o contrato de disposição será
ineficaz. Em uma transmissão translativa, v.g., a regulação do poder de adquirir é
verificada ao se determinar um novo centro de interesses ao qual aquele poder deve
ser direcionado para que os consequentes contratos de disposição sejam eficazes.
E em uma transmissão constitutiva? Os elementos do poder de adquirir podem ser
negocialmente modificados de diversas maneiras. Uma delas é a definição
autônomo privada de sujeitos que não possam adquirir determinada posição jurídica
patrimonial, ou seja, retira a legitimação para sua aquisição (e.g. cláusula xenófoba,
art. 16, II da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976), todavia não há impedimento
para que eles negociem a retirada de tal restrição com o titular original da posição
(por isso esse ainda permanece com uma mínima titularidade do direito subjetivo
patrimonial), o que acabaria por eficacizar posteriormente o contrato de disposição.
Também pode haver a definição autônomoprivada de res extra commercium (e.g.
pactum de non cedendo, art. 286 do CC/02). O modo de aquisição também pode ser
autonomamente definido, seja mediante a formação da vontade no contrato de
disposição subsequente (e.g. art. 36 da Lei nº 6.404/1976) ou dos fatores de sua
eficácia (e.g. direitos reais limitados) (VANZELLA, 2012).
Caso os contratos de disposição não fossem regulados em numerus
clausus, as partes poderiam alterar o poder de dispor e, consequentemente, o poder
de adquirir conforme seu bel-prazer. Logo, o numerus clausus dos contratos de
disposição (e consequentemente dos direitos reais) preserva a intangibilidade do
poder de dispor ao predeterminar modelos jurídiconegociais de adquirir vinculativos
e fixos, e caso a vontade das partes não se enquadre em um desses, haverá apenas
eficácia obrigacional.
Isso posto, é possível perceber que o regime de numerus clausus
estabelece um equilíbrio na tensão existente entre autonomia privada e regulação
jurídiconegocial das relações jurídicoabsolutas (manifestada mediante a categoria
jurídica da titularidade), pois reserva exclusivamente à lei a regulação de tais
relações. E esse regime encontra-se intimamente relacionado com a transmissão
constitutiva de direitos subjetivos patrimoniais, pois ao se estabelecer um direito
66
subjetivo real limitado, evidencia-se a multiplicação de titulares de uma mesma
propriedade, consequentemente, de posições jurídicas subjetivas passivas
absolutas. Ademais, o sujeito passivo total deve ser encarado como os potenciais
adquirentes, existindo o numerus clausus porque qualquer pessoa tem o legítimo
poder de adquirir qualquer posição jurídica subjetiva patrimonial disponível e não
porque os direitos subjetivos reais podem ser violados por qualquer um. Em
verdade, as principais posições jurídicas subjetivas passivas que se multiplicam são
as sujeições e as ausências de poder dos potenciais adquirentes, opostas ao poder
de dispor e às imunidades dos titulares, o que causa uma reconfiguração
heterônoma do poder de adquirir daqueles, visto que não participam do negócio
jurídico de disposição constitutiva. Logo, o fim prático desejado mediante o
estabelecimento de um direito subjetivo real é impedir, de maneira total ou parcial, a
aquisição de um mesmo direito subjetivo patrimonial por um adquirente
subsequente, pois qualquer futuro adquirente terá que negociar com ao menos mais
de um titular para adquirir a plenitude de um mesmo direito subjetivo patrimonial, e
justamente por conta de tal potencial, o estabelecimento daqueles direitos (e de
todos os contratos de disposição, sobretudo os constitutivos) é regulado por lei,
mediante tipos vinculativos e fixos (VANZELLA, 2012).
O referido impedimento à aquisição será atingido caso a declaração
jurídiconegocial se enquadre em um dos tipos do contrato de disposição,
independentemente da eficiência dos agentes privados em conhecer ou não fatos
que impeçam sua aquisição, pois é o conhecimento do direito que importa. O foco
não deve ser a boa-fé subjetiva dos terceiros-adquirentes de boa-fé. Assim, para
alcançar tal objetivo, o adquirente deve contratar com o titular para, então, tornar-se
titular, e justamente em razão de esse fato afetar o poder de adquirir de potenciais
adquirentes, há um numerus clausus dos tipos de titularidades que se resolve no
numerus clausus dos contratos que modificam a titularidade, ou seja, dos contratos
de disposição. Dessa feita, mesmo que o terceiro-adquirente conheça declarações
jurídiconegociais reguladoras do poder de dispor que não se enquadrem nos tipos
fixos e vinculantes do contrato de disposição, irradiadoras somente de efeito
obrigacional, adquirirá a titularidade do direito transmitido, pois não existe contrato
de disposição anterior, mas tão somente contrato obrigacional, que não possui o
67
condão de impedir uma disposição42. Pelo fato de esse contrato obrigacional criar
uma obrigação de não fazer (crédito à abstenção de alienação), caso ocorra,
resultará em crédito à indenização, além de nas possíveis penas convencionais
estabelecidas43 (VANZELLA, 2012).
Assim, ante todo o exposto, é possível concluir que não somente os
direitos subjetivos reais possuem o poder de afetar o poder de adquirir de terceiros,
mas todos os contratos de disposição, sobretudo os constitutivos. E esses contratos
regulam a titularidade de direitos, sendo totalmente irrelevante, para a existência de
imunidades contra disposição e execução judicial, a espécie de direito subjetivo
patrimonial que regulam. Da mesma forma que uma servidão afeta o poder de
adquirir de terceiros, assim também o faz um pacto de non cedendo. Por conta
disso, surge o paradoxo do poder de dispor, no qual o titular de um direito pode
regulá-lo, de forma autônoma, a ponto de atingir terceiros-potenciais-adquirentes,
exercendo uma heteronomia contratual, mas não a pode exercer de forma a
descaracterizar o próprio conceito de titularidade, e para solucionar tal situação,
impõe-se o regime de numerus clausus aos contratos de disposição.
4.2.1.1.3 O princípio da separação do direito das obrigações do direito das coisas
O numerus clausus dos direitos reais (dos contratos de disposição)
funciona como forma de assegurar tal princípio, garantindo que os efeitos contratuais
meramente obrigacionais não adentrarão no campo dos efeitos contratuais reais,
pois o legislador quis fazer impossível a transformação de acordos bilaterais em
posições jurídicas eficazes perante terceiros. Tal princípio estabelece uma conexão
entre efeitos contratuais reais e definição de titularidade ao determinar as fronteiras
dessa, atuando de forma a impedir que os agentes privados prejudiquem a
autonomia do direito das coisas, que afetem os tipos legais de titularidade (eficácia
real) predispostos pelo ordenamento jurídico (VANZELLA, 2012).
Por razões já especificadas, tal princípio não diz respeito às posições
jurídicas patrimoniais em si, em posições obrigacionais ou reais, mas sim aos
42§ 137 Rechtsgeschäftliches Verfügungsverbot. Die Befugnis zur Verfügung über ein
veräußerliches Recht kann nicht durch Rechtsgeschäft ausgeschlossen oder beschränkt werden. Em livre tradução, significa que o poder de dispor sobre um direito alienável não pode ser limitado ou excluído por outro negócio jurídico.
43Contra o adquirente, o prejudicado poderá demandar com base no § 826 do BGB.
68
contratos que as regulam: os contratos obrigacionais e os contratos de disposição,
dois negócios jurídicos absolutamente inconfundíveis.
Sob o ângulo dogmático, referido princípio explica três quesitos que a
teoria do titulus e modus de aquisição não consegue explicitar de maneira
satisfatória, quais sejam a qual fato jurídico inexa-se uma condição em hipótese
exemplificativa de venda com reserva de domínio; qual fato jurídico é suscetível à
respectiva prática de representação; e qual seria o modo de aquisição de
propriedade em hipóteses de tradição ficta. A resposta a tais questões44 leva à
conclusão de um negócio jurídico existente entre o titulus e o modus, ou seja, ao
reconhecimento de um contrato de disposição (no caso de transmissão translativa
do direito subjetivo real da propriedade, na espécie de acordo de transmissão).
Percebe-se que a transmissão das posições jurídicas subjetivas patrimoniais não se
vincula a um modo de aquisição virtualmente necessário para sua eficácia, mas
depende, sobretudo, da categoria do negócio jurídico (obrigacional ou de disposição)
(VANZELLA, 2012).
Diante de toda a diferenciação entre tais categorias, iniciando-se a partir
da distinção entre negócios obrigacionais e negócios de direito das coisas, tornou-se
necessário o descobrimento de um elo perdido, pois o pensamento jurídico entende
que não somente a propriedade material poderia ser coisa, mas também outros
objetos, como créditos, admitindo-se que fossem realizados (sentido jurídico) a
depender de sua situação jurídica, pois “créditos são direitos subjetivos obrigacionais
quando observados na perspectiva da relação jurídica, mas são realizados quando
tomados […] como objetos da titularidade” (VANZELLA, 2012, p. 235), ou
compreende que o chamado direito subjetivo real não esgota o fenômeno da eficácia
contratual real, pois todos os direitos subjetivos possuem uma realidade atrelada à
alteração de sua titularidade. Como já foi tratado, há evidências das duas
tendências, e a “elaboração de uma categoria geral, que apanha também os
contratos de direitos das coisas, é uma das respostas para esse “elo perdido”: o
contrato de disposição” (VANZELLA, 2012, p. 235-236).
O contrato de disposição trata sobre todas as modalidades de alteração
plena ou modificação gravosa da titularidade de direitos subjetivos patrimoniais,
pouco importando se são obrigacionais ou reais, de forma que tal modificação
44Ver subitem 3.1.
69
gravosa e tal alteração plena da titularidade é que se devem denominar de eficácia
real. Logo, os contratos de direito das coisas são uma espécie de contrato de
disposição, enquanto também existem no direito obrigacional (v.g. cessão de
créditos, pacto de non cedendo, cessão de quotas societárias e restrição de sua
cedibilidade). Portanto, as diferenças que as espécies de relações jurídicas
patrimoniais vão ocasionar são duas: a) primeiro, diferentes fatores de eficácia para
os contratos de disposição, pois quando esse regula o poder de dispor sobre
créditos há, desde o início, na relação jurídica obrigacional subjacente, um sujeito
determinado, e por isso necessita o contrato de disposição, para ser eficaz, da
participação de tal sujeito determinado (v.g. a renúncia do crédito depende do
assentimento do devedor [art. 385 CC/02] e da notificação do devedor na cessão de
crédito para que possa ser perante ele eficaz [art. 290 CC/02]), enquanto nas
relações jurídicas reais, por não haver tal sujeito determinado, a eficácia do contrato
de disposição não depende da participação de ninguém; b) a delimitação de uma
zona na qual a qualidade pessoal de um sujeito de direito é normalmente relevante
em um esquema entre as partes, como nos contratos obrigacionais, e de outra zona
na qual tal qualidade é excepcionalmente relevante em face de terceiros, como nos
contratos de disposição (VANZELLA, 2012).
Infere-se, pois, que o objetivo do princípio da separação é, sobretudo,
separar a eficácia dos contratos de disposição da eficácia dos contratos
obrigacionais.
4.2.1.1.4 Considerações
Ante todo o exposto, não faz sentido continuar a afirmar que o numerus
clausus é assunto atinente tão somente ao direito das coisas, pois toda alteração
plena de titularidade, sobretudo sua modificação gravosa, possui o condão de afetar
o poder de adquirir de terceiros. Por razões históricas, tal característica restou
associada à alteração da propriedade e principalmente à constituição de direitos
subjetivos reais limitados. Contudo, restou demonstrado que tal pensamento é falho,
de forma que a mesma alteração ou modificação gravosa também atua sobre
direitos de créditos, produzindo os mesmos efeitos. E a categoria jurídica apta a
regular tal situação de transmissão e modificação da titularidade e a consequente
regulação do poder de dispor e de adquirir é o contrato de disposição, sendo-lhe
70
ínsito o regime do numerus clausus, pois funciona como a solução do paradoxo do
poder de dispor, garantindo a segurança do tráfico jurídico-econômico.
4.2.1.2 Regulador do poder de dispor
Como já tratado, o poder de dispor constitui um poder formativo, um
metapoder integrante da titularidade e um dos fatores de eficácia dos contratos de
disposição, ou seja, da declaração jurídiconegocial de dispor e da aquisição
contratual derivada, por isso veicula a chamada heteronomia privada.
Nesse contexto, há de se indagar: como ocorre a aquisição de direitos?
A aquisição de um direito pode ser originária ou derivada.
Na primeira, não há alusão a qualquer outra pessoa e o suporte fático do
fato jurídico de que nasce tal direito não tem ligação com outro direito, sendo
composto apenas de fatos do mundo. Assim, o direito é novo, e caso existisse antes,
como de alguém, pouco importa, já que não é de tal titular que ele advém (e.g. o
dono das matérias na comistão). Por ser o direito novo, logicamente não é o mesmo
que o anterior, caso existisse, ou não havia outro de que proveio ou, ainda, não
constituiu-se a partir de elementos de outro direito. As relações jurídicas creditórias
sempre criam novos direitos, oportunizando aquisição originária. O usucapiente, v.g.,
não tem nada com o proprietário anterior, pois o que causa sua aquisição originária
é o suporte fático suficiente, adquirindo, por si só, a propriedade. Além disso, não é
da usucapião que decorre a perda da propriedade do proprietário anterior, pois não
é o novo direito que suplanta o precedente. O objeto desse apenas desapareceu, de
maneira que o seu suporte fático desfez-se (PONTES DE MIRANDA, 2012a).
Na aquisição derivada o suporte fático é composto de fatos do mundo e
fatos jurídicos, de forma que este constitui o cerne daquele, havendo, pois, relação
causal entre a nova relação jurídica e a anterior. Ocorre de pessoa a pessoa,
suscitando, como regra, a sucessão, translativa ou constitutiva. Na primeira, uma
pessoa substitui a outra na relação jurídica, enquanto na segunda passa-se a
outrem elemento de seu direito. Assim, em uma aquisição derivada translativa, o
sucessor adquire o mesmo direito do sucedido, que imediatamente o perde,
enquanto em uma aquisição derivada constitutiva, ocorre a passagem de direito
retirado do direito do sucedido (PONTES DE MIRANDA, 2012a).
71
A aquisição de direitos subjetivos patrimoniais significa, portanto,
acréscimo de posição jurídica subjetiva patrimonial na esfera jurídica do sujeito de
direito. Via de regra, de maneira correlata à tal aquisição há o consequente
agravamento do ativo patrimonial ou do passivo patrimonial. Os acréscimos
patrimoniais, quando realizados por meio de contrato, chamam-se de atribuições
patrimoniais e aquele será obrigacional quando o acréscimo patrimonial em favor de
um sujeito (= credor) significar um aumento do passivo patrimonial (= obrigação) do
outro (= devedor), ou será de disposição, quando ao acréscimo em relação a um
sujeito (= adquirente) corresponde uma diminuição do passivo patrimonial (=
transmissão) de outro sujeito (= disponente) (VANZELLA, 2012).
No primeiro caso, há aquisição originária contratual, enquanto no segundo
há aquisição derivada contratual.
Tal “agravamento patrimonial não concerne […] apenas a quem o
experimenta, [pois] na ordem jurídica da circulação econômica, todos os sujeitos de
direito são […] potenciais credores e sucessores uns dos outros” (VANZELLA, 2012,
p. 258).
Existem, pois, dois momentos jurídicos distintos quando se trata da
transmissão de direitos subjetivos, o obrigacional45 e o de disposição46. No momento
obrigacional, o sujeito privado pode “vender (= prometer alienar) um determinado
direito subjetivo patrimonial quantas vezes quiser para diferentes compradores.”
(VANZELLA, 2012). Frisa-se que o contrato obrigacional, nesses casos, restará
incólume, não lhes sendo aplicada a sanção da nulidade.47 Seu objeto é uma
aquisição contratual originária.
O objeto do contrato de disposição é a sucessão (= transmissão), logo,
uma aquisição contratual derivada, podendo regular, pois, uma transmissão
translativa ou uma transmissão constitutiva.
45Os credores “submetem-se à regra da irrelevância da precedência ou ausência de
prioridade: os contratos obrigacionais não implicam uma restrição ao poder de se obrigar, e nem de nenhum outro poder sobre o patrimônio do devedor […]” (VANZELLA, 2012, p. 258).
46Impera “a regra de supremacia da precedência ou prioridade: os contratos de disposição implicam uma restrição ao poder de dispor, [e] os direitos subjetivos patrimoniais a que se referem são […] modificados, e todos os […] posteriores encontram um impedimento nos anteriores” (VANZELLA, 2012, p. 258).
47No Direito brasileiro, tal conclusão extrai-se de interpretação a contrario sensu do artigo 166, VII, segunda parte, do Código Civil de 2002, além de ter como sanção, em vez de nulidade, a indenização pela impossibilidade da prestação por culpa do devedor, conforme dispõe o art. 399 do Código Civil de 2002 (VANZELLA, 2012).
72
Na primeira o “titular do direito muda sem que mude o direito” (PONTES
DE MIRANDA, 1955, p. 31). Nesse sentido, a perda do direito por um gera a
aquisição do direito por outro. E o que causa tal aquisição é justamente o necessário
ato de disposição de quem perde seu direito. Observe-se que a relação jurídica não
será a mesma, pois alteram-se os sujeitos. Apenas o direito não resta alterado.
Na segunda hipótese, haverá a situação anômala de perda da
individualidade do direito subjetivo, pois esse não é completamente transferido.
Logo, “a soma dos conteúdos do direito que fica e do direito que passa a outrem é
igual ao conteúdo do direito que havia; […] não há alienação […] exatamente porque
há cerne de direito que mantém o nôvo […] como ‘agarrado’ ao […] que fica”
(PONTES DE MIRANDA, 1955, p. 36-37).
Assim, apesar da íntima relação, os direitos constituinte e constituído são
independentes, devendo este ser, sempre, menor que o primeiro48.
Com efeito, haverá a multiplicação da titularidade sobre o mesmo direito,
pois mais de um sujeito deterá um titulo de precedência sobre a mesma posição
jurídica subjetiva patrimonial, considerando-se que o titular do direito constituinte é
imune à disposição do direito constituído e vice-versa. Dessa maneira, o poder de
dispor da parte transmitente sobre o direito constituído é regulado pela própria
transmissão.
Então, “transmitir contratualmente uma posição jurídica subjetiva
patrimonial é regular contratualmente o poder de dispor sobre ela” (VANZELLA,
2012, p. 266).
A lógica funciona como maneira de regular o próprio poder de dispor, pois
a causa de sua extinção, total ou parcial, na esfera jurídica do sucedido, é a mesma
do nascimento do mesmo poder, no todo ou em parte, na esfera jurídica do
sucessor. Assim, a “disposição contratual translativa regula a permissão de dispor
(Verfügendürfen), enquanto a transmissão contratual constitutiva regula a
possibilidade de dispor (Verfügenkönnen)” (VANZELLA, 2012. p. 266-267).
O contrato de disposição translativa informa o novo titular exclusivo,
enquanto o contrato de disposição constitutiva regula em face de quem a disposição
48Somando-se as duas noções, concluí-se pela possibilidade de os próprios direitos
constituídos constituirem outros direitos, também menores. Surge, daí, o que Pontes de Miranda (1955) chama de graus em linha sagital, inconfundíveis com os graus em irradiação, observados por meio de direitos constituídos sobre o mesmo objeto pelo proprietário (primeiro e segundo penhores, por exemplo).
73
não é eficaz. Logo, a “metáfora do direito constituído é de que o sucessor também
pode dispor ou, pelo menos, está imune contra a disposição, e é por isso que se diz
que ele […] se tornou titular. Eis a eficácia real” (VANZELLA, 2012, p. 267).
Tal fenômeno que é regulado pelo numerus clausus.49 E disso surge uma
estabilidade, uma segurança, pondo na prática a máxima de que o sucessor tem, no
máximo, o direito que tinha o sucedido.50
4.2.2 Conceito e natureza jurídica
Diante de tudo que foi apresentado, torna-se possível definir o contrato de
disposição em três sentidos, que se inter-relacionam.
Em um primeiro sentido, restrito e histórico, o contrato de disposição seria
o contrato de direito das coisas. Tal ponto de vista é útil para acentuar que a
irradiação de efeitos provenientes da eficácia real foram transladadas para outros
espaços do Direito Positivo. Em um segundo sentido, amplo, contrato de disposição
significa contrato de disposição contratual, translativa ou constitutiva, de direitos
subjetivos patrimoniais preexistentes, o que acarreta a perda, total ou parcial, de tais
direitos pelo sucedido, sem significar, todavia, sua extinção, produzindo, por
conseguinte, sua aquisição derivada, total ou parcial, pelo sucessor. Em um terceiro
sentindo, técnico e estrito, contrato de disposição deve ser entendido como o
negócio jurídico bilateral predisposto pela ordem jurídica apto a regular, de maneira
autônomoprivada, a titularidade (VANZELLA, 2012).
A natureza jurídica do contrato de disposição é translatícia, podendo
veicular tanto uma posição jurídica subjetiva patrimonial de crédito, como uma
posição jurídica subjetiva patrimonial real. No primeiro caso, será regulado por
normas atinentes ao direito obrigacional (v.g. cessão de créditos e convenção de
incedibilidade). Na segunda hipótese, será regulado por normas referentes aos
49Em princípio, todos os créditos são cedíveis, todavia, as partes podem regular o poder de
dispor sobre eles também mediante contrato de disposição constitutiva. São exemplos o pactum de non cedendo e as cláusulas de contratos societários que restringem a cedibilidade das participações societárias (VANZELLA, 2012).
50Rafael Vanzella (2012) arremata a questão, afirmando que a técnica do contrato obrigacional será mais adequada caso os interesses econômicosociais do agente recaíam sobre comportamentos de uma pessoa determinada e/ou na solvibilidade do seu patrimônio. Por outro lado, a técnica do contrato de disposição será mais eficiente quando os interesses do agente se direcionarem a um direito subjetivo patrimonial determinado e/ou para comportamentos próprios de quem cumpra suas ordens sobre tal direito).
74
direitos reais (v.g. acordo de transmissão da propriedade e acordo de constituição de
direito subjetivo real limitado). Logicamente, trata-se do objeto de primeiro grau que
veicula, pois seu objeto de segundo grau será a titularidade e sempre produzirá os
efeitos decorrentes de sua alteração, qual seja, efeito real, independentemente do
direito veiculado. A diferença, portanto, em tal critério, residirá nas características da
relação jurídica subjacente, que constituirão diferentes fatores de eficácia em relação
ao contrato de disposição, caso seja aquela obrigacional ou real, como a necessária
participação ou não de um sujeito determinado ou determinável para que possa
irradiar seus efeitos.
75
5 DA CESSÃO DE CRÉDITOS
A cessão de créditos, enquanto modalidade de transmissão das
obrigações, foi a primeira a ser consagrada legislativamente, mediante o Code Civil
de 1804.
Todavia, nem sempre a transmissão das obrigações foi reconhecida como
algo possível. Os romanos eram totalmente avessos a essa possibilidade, por conta
da sua concepção de obrigação como uma ideia de vínculo de estrita pessoalidade
(FARIA, 1990).
Antonio Fernández de Buján (2012) salienta que a primeira demonstração
do surgimento, entre os romanos, da noção de obrigação como vinculum iuris,
decorreu das consequências da composição, voluntária ou legal, entre o sujeito ativo
e passivo da atividade delitiva penal. Em seguida, passou a derivar da exigência
legal de acordo entre eles. No âmbito dos atos lícitos, a progressividade da noção de
obrigação girou em torno das figuras do nexum, dos garantes procesales e da
sponsio. A primeira (que literalmente significava nexo) era um negócio jurídico formal
que implicava ampla responsabilidade do devedor, que não se limitava somente ao
seu patrimônio até o advento da Lei Poetelia Papiria. A partir desse momento, tal
negócio caiu em desuso, até desaparecer no período referente ao final da
República. A sponsio consistia em um negócio formal, mediante o qual uma das
partes, o sponsor, comprometia-se, por meio de sua palavra, a realizar perante o
sujeito ativo da relação obrigacional uma prestação. Caso o sponsor descumprisse
sua palavra, a prestação poderia ser exigida por meio da legis actio per iudicis
arbitrive postulationem. Com o decorrer do tempo, o conceito da obligatio estendeu-
se a todas aquelas prestações surgidas no âmbito dos contractus e dos demais atos
lícitos geradores de deveres jurídicos com o conteúdo de dare, facere, praestere e
oportere.
Assim, por conta do caráter estritamente pessoal da obrigação primitiva,
essa era tida como um “vinculum iuris contraído de forma exclusiva entre un
acreedor y un deudor, excluía la possibilidad de ceder el credito a una tercera
persona, sin consentimiento del deudor [...]” (BUJÁN, 2012, p. 577).
A relação entre credor e devedor, no pensamento jurídico romano, era tão
pessoal que “no cabía la posibilidad de cambiar a uno u otro de estos sujetos,
76
dejando existente la relación obligatoria, en el sentido de transmitir a otros la facultad
de exigir una determinada conducta [...]” (VOLTERRA, 1986, p. 583).
Todavia, tal fator não impediu os romanos de desenvolveram meios
indiretos para conseguirem obter os efeitos práticos da transmissão obrigacional,
como a delegatio e a cognitio ou procurario in rem suam.
A delegatio podia ser realizada por meio da transscriptio a persona in
personam ou por meio da estipulação novatória. A pedido do credor, o devedor se
obrigava, na mesma forma da stipulatio, em relação com pessoa indicada por
aquele, a realizar a prestação a que se encontrava obrigado (= delegatio crediti).
Dessa forma, a primeira obrigação entre o credor e o devedor originário restava
extinta, transformando-se, pois, na segunda obrigação, decorrente de tal pacto.
Como afirmado, não se tratava de transmissão propriamente dita, considerando-se
que a obrigação não era mais a mesma. As diferentes consequências a serem
emanadas das diferentes obrigações comprovavam tal assertiva, v.g., as garantias
da primeira obrigação extinguiam-se juntamente com essa, não se reconstituindo
ipso iure por conta da stipulatio (VOLTERRA, 1986).
Por meio da cognitio ou procuratio in rem suam o credor nomeava terceiro
como seu cognitor ou procurator com o objetivo de que atuasse em juízo contra o
devedor, para que obtivesse a prestação devida. Por meio da litis contestatio
formava-se uma nova relação obrigacional entre devedor e novo credor, ao mesmo
tempo em que aquela extinguia a relação obrigacional originária (= novatio
necessaria). Em tal hipótese, diferentemente da estipulação novatória, não
necessariamente haveria a extinção das garantias da obrigação, além de a “cessão
do crédito” poder ocorrer sem a participação do devedor originário (VOLTERRA,
1986).
Apesar de tais vantagens, o “cedente” ainda conservava a posição de
credor. Ademais, enquanto não concluída a litis contestatio, o outorgante poderia
revogar o mandato e extinguir o crédito.
Diante disso, durante o Direito Imperial, a partir de Antonino Pio, passa-se
a oferecer ao “cessionário” uma melhor posição, pois há a concessão, para esse, de
uma actio utilis, praticável independentemente de representação processual
(KASER, 1999).
Assim, com o decorrer do tempo, a própria concepção de obrigação foi
sendo moldada conforme os ditames e interesses de cada sociedade. Atualmente,
77
não pode ser mais enxergada de modo estático, mas sim de forma dinâmica, como
um processo apto a gerar riquezas, o que estimula o estudo dos seus meios de
transmissão, entre os quais, a cessão de créditos.
5.1 ESTRUTURA, EXISTÊNCIA E NATUREZA JURÍDICA
Precisões terminológicas precisam ser feitas, considerando-se que a
expressão cessão de créditos pode ser compreendida conforme vários sentidos, pois
alguém pode utilizá-la para designar o contrato obrigacional que faz surgir o dever
de ceder o crédito, ou o contrato de disposição, que efetivamente transfere o crédito,
ou o processo como um todo, incluindo ambos os contratos, ou ainda para referir-se
ao efeito da cessão, tratando-a como sinônimo de transmissão.
A cessão de crédito como processo (contrato obrigacional + contrato de
disposição) deve ser entendida como cessão em sentido lato.
Sob o ponto de vista estrutural, portanto, a cessão de crédito “consiste na
concatenação de dois negócios jurídicos, dois contratos, cada qual passível de
análise estrutural própria” (SIMÕES, 2011, p. 17).
Desde já, é possível perceber que vários passos precisam ser dados para
a ocorrência dessa cessão em sentido lato. O objetivo final de uma cessão de
créditos é, logicamente, a transferência de tal crédito, o que vai ocorrer mediante o
contrato de disposição translativo de cessão de crédito.
Logo, em um primeiro momento há o contrato obrigacional51
estabelecendo a obrigação de transferir o crédito, mais especificamente, de dar o
crédito52. Sua eficácia é vinculativa. Tal contrato pode ser, v.g., uma compra e venda
ou doação. Ocorre entre o cedente e o cessionário, ou, mais propriamente, vendedor
e comprador, doador e donatário, credor e devedor.
51Não se nega que o crédito a ser transferido pode decorrer de outro fato jurídico, v.g.,
promessa de recompensa. (HAICAL, 2013). Todavia, escolheu-se utilizar o contrato como paradigma, por configurar o negócio jurídico por excelência da regulação do tráfico jurídicoeconômico, além do fato de tal utilização manter a coerência do termo, que foi dominantemente utilizado neste trabalho, sobretudo por conta da diferenciação dos contratos obrigacionais e dos contratos de disposição com base na obra de Rafael Vanzella (que também opta por tal utilização).
52“A função do contrato-base é permitir a vinculação das partes nos termos por ela desejados, gerando deveres prestacionais dentre os quais, necessariamente, se encontrará a promessa de transferir o crédito” (SIMÕES, 2011, p. 19).
78
Esse contrato obrigacional, também denominável de negócio basal, vai
fixar o regime jurídico a ser aplicado na totalidade da operação (v.g. onerosidade ou
gratuidade), logo, de acordo com Marcel Edvar Simões (2011, p. 18), os “caracteres
típicos, as notas conceituais, a disciplina legal e os princípios aplicáveis próprios do
contrato-base é que se deverão ser examinados a fim de se obter o colorido próprio
da operação concreta”.
Infelizmente, o Código Civil de 2002 não traz disposição expressa quanto
ao regime jurídico aplicável, como o faz seu confrade português53. Cabe à doutrina
elaborar tal possibilidade ou não, de forma que neste trabalho segue-se a primeira
opção. Tal posição, inclusive, é totalmente coerente com a assertiva de que o
sistema brasileiro é causalista.
Em um segundo momento, há o contrato de disposição translativa de
cessão de crédito, tipificado no art. 286 do Código Civil de 2002, que visa justamente
adimplir a obrigação assumida no primeiro contrato, a de transferir aquele crédito,
logo, sua eficácia é, obviamente, translativa. Ocorre entre o cedente e o cessionário,
ou mais propriamente, nesse momento, entre o dispoente e o adquirente. Ademais,
pode-se afirmar que ainda se faz necessária a participação do cedido, de alguma
forma, para que tal contrato seja eficaz perante ele (= notificação).
A natureza jurídica do contrato de disposição de cessão de crédito é
obrigacional, considerando-se que transfere direito subjetivo de crédito ou
pretensões, ações, exceções creditícias. Como visto, tal fator não prejudica o caráter
de absolutidade ínsito à toda transmissão de direito subjetivo, de titularidade, pois a
classificação em direito de crédito ou direito real considera o objeto de primeiro grau,
o que acarreta mudanças nos fatores de eficácia da relação jurídica subjacente a
tais direitos (relação obrigacional = participação do outrem
determinado/determinável). Um contrato de disposição pode ter natureza real ou
obrigacional, a depender do direito que veícula. Mas continua sendo de disposição,
pois acarreta mudanças na titularidade, enquanto um contrato estritamente
obrigacional não tem tal condão. Não necessariamente tal diferença ocorre somente
por conta da posição topográfica no Código (cessão de créditos no livro das
obrigações), pois existem contratos de disposição que importam em deveres
comportamentais (de natureza obrigacional) também no livro do Direito das Coisas.
53Artigo 578. Regime aplicável. 1 - Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes
definem-se em função do negócio que lhe serve de base.
79
Ademais, nada impede que de tal contrato de disposição exsurjam direitos
e deveres obrigacionais secundários e laterais, destinados a atender à satisfação do
crédito transferido ao cessionário (HAICAL, 2013).
Não há um “tipo geral” da cessão de crédito, no qual a vontade das partes
pode se adequar caso não se encaixe nas disposições dos arts. 286 ao 298. Caso
as declarações jurídiconegociais das partes não se encaixem em tais tipos legais
vinculativos e fixos, o contrato de disposição pode nem existir (v.g. crédito incedível
por convenção entre credor e terceiro) e tais acordos terão eficácia meramente
obrigacional. Todavia, ainda há algum espaço de liberdade para as partes
exercerem sua autonomia, e.g., arts. 287 e 296.
Apesar de a margem de modificação dos tipos vinculativos e fixos do
contrato de disposição ser muito pequena, todas aquelas que visem diminuir a
eficácia de uma restrição ao poder de dispor são admissíveis, pois, como visto, o
ordenamento jurídico é refratário à regulação autônomoprivada de tal poder
(modificações ao tipo do contrato de disposição constitutiva do pactum de non
cedendo constituem exceção à tal diretriz, ou se respeita o tipo do artigo 286 ou a
convenção entre o credor e o devedor de, e.g., estabelecer uma forma especial para
a cessão, produzirá efeitos meramente obrigacionais, não prejudicando o
cessionário) (VANZELLA, 2012).
Como no presente trabalho adota-se a posição de que o sistema
brasileiro de transmissão da titularidade é essencialmente causal, a questão em
relação à cessão de crédito lato não poderia deixar de ser diferente, já que não
constitui exceção.
O contrato de disposição translativa da cessão de crédito é causal ao
contrato obrigacional subjacente. Os arts. 294 e 295 do Código Civil de 2002
fundamentam bem tal afirmação.
De acordo com o primeiro, o devedor pode opor ao cessionário as
exceções e objeções que possuía contra o cedente, como a nulidade do contrato
obrigacional subjacente (v.g. ilicitude dos motivos, art. 166, III, do Código Civil), ou a
sua anulabilidade54. De acordo com o segundo artigo referido, há que se pesquisar
54Gustavo Haical (2013, p. 24) ainda trata sobre a possibilidade de o devedor objetar a “anulabilidade
da própria cessão”. Caso o autor esteja se referindo ao contrato de disposição translativo de
cessão de crédito, tal questão não diz respeito a sua causalidade ou abstração em relação ao contrato obrigacional, mas ao contrato de disposição ter ou não cumprido com os requisitos de validade.
80
sobre a onerosidade ou gratuidade do contrato obrigacional para se saber qual será
a responsabilidade do cedente no que tange à existência do crédito (HAICAL, 2013).
A cessão de um crédito não modifica o seu conteúdo, mas sim a relação
jurídica, que tem seus figurantes alterados. Logo, quem “fala de sucessão alude à
derivatividade, à causação, à aquisição de direito à custa de outrem e não de outro
direito” (PONTES DE MIRANDA, 1958, p. 268).
Ademais, não pode ser confundida com a cessão de posição contratual. A
cessão de créditos lato transfere o direito subjetivo de crédito (= posição jurídica
subjetiva ativa complexa), logo, transfere, via de regra, as pretensões (com a
correspectiva ação de Direito Material), faculdades, poderes formativos e
imunidades. Em uma cessão de posição contratual o figurante transfere, prima facie,
tanto seu direito subjetivo quanto seu dever jurídico, duas posições jurídicas
subjetivas complexas, a primeira ativa, como visto, e a segunda passiva.55
De acordo com o esquema proposto por Marcel Edvar Simões (2011),
considera-se como núcleo essencial da cessão de créditos os dois contratos
expostos. Outros elementos completantes ou suplementares podem ser agregados
sob o aspecto de fatores de eficácia, como, v.g., tradição do título, notificação do
cedido, registro.
Portanto, para existir, necessários apenas os dois primeiros contratos e,
via de regra, para ser eficaz perante o cedente e o cessionário também. Ambos
precisam respeitar os requisitos de validade.
Todavia, em alguns casos, para que a eficácia plena da cessão entre o
cedente e o cessionário ocorra, apresenta-se como necessário o ato-fato de
tradição-entrega do título do crédito cedido, como nos títulos de crédito, caso em que
pode ser posta como elemento completante. Em outros casos, tal tradição é
necessária para que a cessão possa ser eficaz perante terceiros, caso em que será
considerada como elemento suplementar.
A quarta etapa consiste na prática do ato jurídico stricto sensu enunciativo
de notificação do devedor-cedido. É suplementar pela sua inobservância não
55Carlos Alberto da Mota Pinto (1985, p. 185) defende a teoria unitária, de forma que a
cessão da posição contratual não consistiria apenas em uma fusão das figuras da cessão de crédito e da assunção de dívidas (= teoria da decomposição), mas sim em que o objeto daquela cessão contratual seria a relação contratual, “entidade dogmática diversa duma simples soma ou conglomerado de créditos e débitos, consistindo numa unitária relação da vida que sucessivamente se pode desentranhar em vários vínculos e faculdades”.
81
acarretar inexistência ou ineficácia total do contrato de disposição translativo da
cessão de créditos, mas sim por torná-lo ineficaz em relação ao cedido, já que seu
assentimento não é fator de eficácia. Configura um procedimento típico de
publicidade, fator de eficácia tão ínsito aos contratos de disposição.
A quinta etapa, também suplementar, consiste no assentimento do
cedente para registro, enquanto a sexta e última etapa (suplementar) diz respeito ao
ato jurídico de Direito Público do registro, o que possibilita a irradiação de eficácia
perante terceiros (= potenciais adquirentes que têm seu poder de adquirir afetado
pela disposição).
Qual a utilidade da distinção entre tais etapas? A resposta é simples: a
atribuição das consequências corretas. Caso o contrato-basal obrigacional seja
existente, válido e eficaz, mas o contrato de disposição não exista, seja inválido ou
seja firmado entre o cedente e o cessionário, aquele restará incólume, continuando a
irradiar sua eficácia obrigacional, além de possibilitar o surgimento de outras
pretensões e deveres obrigacionais, como indenização por inadimplemento ou por
descumprimento de deveres laterais, em violação à boa-fé objetiva. Na hipótese de o
contrato obrigacional ser inválido, o contrato de disposição também necessariamente
o será. Caso os dois existam, sejam válidos e eficazes entre o cedente e o
cessionário, mas o devedor-cedido não houver sido notificado, haverá ineficácia
relativa perante esse. E se o ato de registro público não houver sido realizado,
haverá ineficácia relativa perante terceiros.
Ademais, o art. 286 do Código Civil de 2002 também traz o tipo legal de
outro contrato de disposição, qual seja, a convenção de incedibilidade ou o pactum
de non cedendo, que regula uma disposição constitutiva realizada entre o credor e o
devedor.
5.2 REQUISITOS DE VALIDADE
Tanto o contrato obrigacional quanto o contrato de disposição translativa
de cessão de créditos atravessam o plano da validade, considerando-se que ambos
são, antes de tudo, negócios jurídicos bilaterais. Os atos componentes das outras
etapas da cessão de créditos também encaram o plano da validade, com exceção
do ato-fato da tradição entrega.
82
Logo, a primeira necessidade que se impõe é o respeito aos requisitos do
art. 104 do Código Civil de 2002: agentes capazes, objeto lícito, possível,
determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.
5.2.1 Objeto
O objeto imediato da relação jurídica obrigacional é a prestação de
transferir o crédito, enquanto o objeto do contrato de disposição translativo é a
transferência do crédito (= transferência da titularidade do direito subjetivo de
crédito).
Como o sistema jurídico patrimonial privado brasileiro adota o princípio da
livre disponibilidade, a regra é que tal titularidade seja cedível. Indaga-se, pois: o
crédito futuro também é cedível? Antes: que são os créditos futuros?
Apesar de aparentemente óbvio, são os créditos ainda não existentes na
esfera jurídica patrimonial do cedente. Diferem-se dos créditos a termo inicial ou
condição suspensiva, que já existem e sobre os quais não paira qualquer dúvida
quanto a sua cedibilidade (HAICAL, 2013).
A principal polêmica sobre tal cedibilidade ou não reside na questão do
momento da translação do crédito e duas principais teorias, opostas, buscam
explicar o fenômeno: a teoria da transmissão (Durchgangstheorie) e a teoria da
imediação (Unmittelbarkeitstheorie).
Segundo a primeira, o crédito, no momento em que passa a existir,
constitui-se na figura do cedente e então é transmitido ao adquirente. De acordo
com a segunda, o crédito futuro cedido surge imediatamente na figura do
cessionário (PINTO, 1985).
Logo, de acordo com a primeira teoria, é possível sim a cessão de
créditos futuros com a devida observância do requisito de serem determináveis, pois
“apenas exige que se haja caracterizado o que se cede, isto é, que ao nascer o
crédito, se saiba, ao certo, qual será o crédito cedido” (PONTES DE MIRANDA,
1958, p. 275).
Como ocorre uma aquisição derivada, o devedor “poderá opor ao
cessionário todas as exceções e objeções existentes contra o cedente até o
momento em que o crédito foi constituído” (HAICAL, 2013, p. 28).
83
E em caso de falência do cedente de créditos futuros, a operação se
concretizará? Marcel Edvar Simões afirma que não (2011), com o que se concorda,
pois de acordo com a teoria da transmissão, o crédito se forma primeiramente no
patrimônio do cedente e a declaração da situação de insolvência limita o seu poder
de dispor, cabendo, pois, ao administrador da massa, decidir sobre o destino de tal
cessão.
O art. 287 do Código Civil de 2002 trata sobre a regra de que um crédito,
na cessão, deve abranger todos os seus acessórios. Logo, o “crédito não pode vir a
enfraquecer pela cessão com a extinção das garantias, privilégios ou direitos a ele
vinculados” (HAICAL, 2013, p. 30-31).
Podem ser tidos como acessórios do crédito cedido os direitos de garantia
do crédito, além dos juros e das penas convencionais. Os poderes formativos não
podem ser tido como acessórios56, pois a depender da concepção, devem ser
considerados como conteúdo de tal direito ou como meta poder que atuam sobre
ele. Do mesmo modo os direitos e deveres laterais não devem ser encarados como
acessórios, pois também constituem conteúdo do direito subjetivo de crédito.
As indisponibilidades legais são exceções ao princípio da disponibilidade
das posiçoes jurídicas subjetivas patrimoniais, estabelecendo o abstratamente
indisponível. Há, nesses casos, uma ausência do poder de dispor, e como a posição
jurídica patrimonial é indisponível, a consequência será a nulidade do contrato
obrigacional e do contrato de disposição por impossibilidade do objeto (art. 166, II,
do CC/02) (VANZELLA, 2012).
Tal hipótese se afigura na primeira parte do art. 286 do CC/02, já que o
credor não pode ceder o seu crédito se a isso se opuser a natureza da obrigação ou
a lei. A lei se opõe, v.g., à cessão de créditos alimentares (art. 1.707 do CC/02), e
por isso haverá nulidade em tal hipótese. A consequência será diferente em caso de
incedibilidade convencional (v. 5.3).
5.2.2 Capacidade (e legitimidade) das partes
56Gustavo Haical sustenta o contrário (2013).
84
Ambos os contratos precisam ter figurantes capazes, podendo padecer de
nulidade caso sejam absolutamente incapazes, ou de anulabilidade, caso sejam
apenas relativamente incapazes.
Todavia, existem limites legais (= falta de legitimidade) ao exercício dos
poderes de dispor, de se obrigar e de se adquirir, que configuram questão alheia à
falta ou não de capacidade (VANZELLA, 2012).
São exemplos, no que tange a tal quesito, a venda de ascendente a
descendente sem assentimento dos outros descendentes e do cônjuge do vendedor
(art. 496 do CC/02), além da doação de cônjuge adúltero ao seu cúmplice (art. 550
do CC/02) (SIMÕES, 2011).
Na primeira hipótese, v.g., os ascendentes não possuem legitimidade
para se obrigar a alienar e de dispor, por meio de transmissão onerosa, sobre seus
direitos subjetivos patrimoniais a um de seus descendentes, salvo assentimento dos
demais descendentes e de seu cônjuge. Como o negócio jurídico entre ascendente
e descendente é bilateral, o poder de adquirir desses também é limitado
(VANZELLA, 2012).
Tais limites legais são exceções ao princípio do não impedimento legal do
poder de dispor, estabelecendo o que é concretamente indisponível. A consequência
do desrespeito a tal proibição é a invalidade do contrato de disposição, na espécie
de nulidade (residualmente, art. 166, VII, do CC/02) ou de anulabilidade, a depender
do caso (VANZELLA, 2012).
Crê-se, todavia, que é inteiramente válido o contrato de disposição
translativa de cessão de crédito entre descendentes e ascendentes, em cuja base
esteja um contrato obrigacional gratuito. Não há, aí, qualquer limitação ao poder de
dispor ou mesmo ausência desse, já que a lei não torna indisponível a posição
jurídica subjetiva patrimonial do ascendente de maneira prévia e abstrata, como faz
com os créditos de caráter alimentar.
.
5.2.3 Forma
O contrato de disposição translativa de cessão de crédito não está sujeito
a qualquer forma em especial. Caso o contrato-base obrigacional, ex hypothesi,
85
necessite de forma específica e essa não seja respeitada, a nulidade deste se
comunicará em relação àquele. Todavia, se desconhece tal necessidade.57
Logo, não haverá nulidade em relação ao contrato de disposição de
cessão de créditos oralmente concluído, bem como na hipótese de ter sido realizado
tacitamente ou por fatos concludentes (PONTES DE MIRANDA, 1958).
Outras formalidades, como a notificação do devedor-cedido ou a
celebração por meio escrito, não versam propriamente sobre requisitos de validade,
mas sim sobre fatores de eficácia.
5.3 FATORES DE EFICÁCIA
Em tal plano residem as maiores diferenças entre os contratos
obrigacionais e os contratos de disposição. O contrato-base obrigacional pode ser
existente, válido e eficaz sem que o contrato dispositivo de cessão de crédito o seja,
justamente por causa dos efeitos de transmissão da titularidade que esse último
produz.
Reitera-se que o cedente necessariamente deve ser titular do poder de
dispor, mas nem sempre será o titular do direito de crédito a ser transmitido. Em
regra, “e não sempre, o poder de dispor compete ao titular do direito. Às vezes, em
virtude de negócio jurídico, surge em outrem que o titular do direito o poder de
dispor” (PONTES DE MIRANDA, 2012a, p. 390-391).
Ademais, os contratos de disposição, translativa ou constitutiva, são
“ineficazes sem a observância de um procedimento típico [de publicidade], o qual se
constitui, assim, como fator de eficácia, simples ou relativa, desses mesmos
contratos” (VANZELLA, 2012, p. 207).
Portanto, todos os procedimentos de publicidade do contrato de
disposição, translativa ou constitutiva (= convenção de incedibilidade), de cessão de
créditos devem ser vistos como fatores de eficácia. Grave erro é afirmar que dizem
respeito à forma, como requisitos de validade.
O motivo de o contrato ser de disposição é justamente o seu objeto, que
consiste em alteração da titularidade de um direito subjetivo patrimonial, e não
57Gustavo Haical (2013) fala da necessidade da outorga do cônjuge nas cessões de direitos
reais de garantia. Como o autor mesmo coloca, trata-se de cessão de um direito real e não de crédito, por isso não se aplica a essa modalidade de cessão.
86
porque foi alvo de publicidade. Entende-se, pois, que “a publicidade não é elemento
de existência do contrato de disposição; é fator de eficácia: integra o suporte fático
[...]” (VANZELLA, 2012, p. 208).
Justamente por isso um contrato de disposição translativa de cessão de
crédito é plenamente eficaz entre o cedente e o cessionário. Implica transmissão de
titularidade, sobre a qual ambos já acordaram, por isso não necessita de qualquer
publicidade para que seja eficaz entre eles ou do assentimento de ninguém
(diferentemente da assunção de dívida quanto a esse último aspecto).
Portanto, com a conclusão do contrato de disposição, a transferência do
direito subjetivo de crédito ao cessionário acontece de maneira imediata (o art. 293
do CC/02 corrobora esse entendimento, que é majoritário). Há o imediato
adimplemento do contrato obrigacional, pois cumpriu-se sua obrigação principal.
Por conta disso, “o cedente, perante o cessionário, somente terá em sua
esfera jurídica deveres secundários, laterais e ônus, por exemplo, os advindos do
art. 295 do Código Civil” (HAICAL, 2013, p. 57).
Logo, desde tal momento, o cessionário tem plena legitimidade para
ingressar com ação de cobrança ou ação executiva contra o devedor-cedido58,
enquanto o cedente deixa de possuir tal legitimidade (HAICAL, 2013).
Será relativamente ineficaz o contrato de disposição translativa de cessão
de créditos em relação ao devedor que não tenha sido notificado ou que não tenha
declarado ciência (art. 290 do CC/02).
A notificação ao devedor tem o objetivo de proteger o cessionário e o
devedor no que tange à eficácia do pagamento, e não de tornar eficaz a transmissão
do crédito, que já ocorrera (HAICAL, 2013).
Protege o cessionário pela razão de o devedor-cedido não poder mais
pagar o cedente de modo eficaz após ter sido notificado (art. 292 do CC/02).
Protege o devedor diante de várias hipóteses, v.g., se o devedor não
notificado oferecer o pagamento e o cedente recusar, haverá mora creditoris quanto
ao cessionário, e se o pagamento for realizado por terceiro ao cedente, será ineficaz,
já que a notificação importa ao devedor e não ao terceiro (HAICAL, 2013).
58“Destarte, não pode ser considerado ato ilícito o ato praticado pelo cessionário de
inscrever o devedor ainda não notificado da cessão nos órgãos de proteção ao crédito” (HAICAL, 2013, p. 82).
87
O cedente e o cessionário possuem legitimidade ativa para notificar o
devedor, todavia esse último, para tanto, deve apresentar o documento da cessão
para que a notificação seja eficaz. O devedor é o legitimado passivo a receber tal
notificação, que no caso de sua incapacidade, deverá ser dirigida ao representante
legal. Em caso de solidariedade passiva, a notificação deve ser dirigida a todos os
devedores solidários, pois se um não notificado pagar o cedente, esse pagamento
será eficaz. Por fim, caso o devedor declare ao cedente ou ao cessionário ser ciente
da cessão, essa será eficaz perante ele, mesmo sem ter sido notificado (HAICAL,
2013).
O procedimento típico de publicidade para a eficácia perante terceiros
encontra-se disposto no art. 288 do CC/02. Para tanto, o instrumento da transmissão
de crédito deverá ser público ou particular, esse último revestido das solenidades
previstas no § 1º do art. 654 do CC/02. No último caso, também deve haver o
registro, conforme preceitua o art. 221 do CC/02.
Como afirmado, o art. 286 também apresenta o tipo específico de outro
contrato de disposição, dessa vez constitutiva, o pactum de non cedendo ou
convenção de incedibilidade.
Por seu intermédio, o “devedor adquire, derivada e constitutivamente um
‘pedaço do crédito’, que fora originalmente adquirido pelo credor [...]” (VANZELLA,
2012, p. 268).
Logo, o devedor que busca impedir a eficácia de uma cessão de créditos
deve, por escrito, estipular tal convenção no instrumento do contrato obrigacional.
Trata-se de fator de eficácia do contrato de disposição constitutiva do pactum de non
cedendo. Ademais, nessa hipótese, a boa-fé do cessionário não é suficiente para
que adquira o crédito.(VANZELLA, 2012).
Há, pois, restrição jurídiconegocial ao poder de dispor, o que constitui
exceção ao princípio da sua irrestringibilidade, consequentemente, definição
autônomoprivada de falta de legitimação. Caso o credor realize contrato de
disposição em arrepio à tal convenção, a consequência será a ineficácia relativa
daquele, considerando-se que tal restrição pode ser distratada ou resilida a qualquer
momento59 (a partir de uma interpretação extensiva do art. 1.268, § 1º, infere-se que
59“Sempre que não se dividiu o conteúdo do direito, mas apenas se lhe retirou elemento, isto
é, se sòmente ocorreu, com ABC, tirar-se-lhe B, ou C, ou BC, e não fracionar-se ABC, dá-se a consolidação. Entre os seus elementos, o direito tem atração, é elástico; donde o
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qualquer direito subjetivo patrimonial pode tornar-se novamente disponível).
Ademais, a ineficácia é relativa, pois caso fosse absoluta, na hipótese de o credor
ceder seu crédito mais uma vez, não seria a primeira cessão que se tornaria eficaz,
mas sim aquela que o devedor, conforme sua livre vontade, determinasse, sem
qualquer respeito à regra da prioridade, que não pode ser derrogada pelas partes,
em observância à segurança do tráfico jurídico. Logo, com o fim da eficácia do
pactum de non cedendo, há a pleni-eficacização da primeira cessão, que prefere
todas as outras porventura celebradas, ocorrendo, assim, a pós-eficacização
(VANZELLA, 2012).
Os contratos obrigacionais contrários à tal clausulação não
necessariamente serão afetados, significando que podem continuar existentes,
válidos e eficazes, todavia, como já tratado, não produzem efeitos reais. Da mesma
forma o são aqueles assim declarados por vontade das partes ou por
incompatibilidade entre essa e os tipos legais dos contratos de disposição (=
contratos de disposição inexistentes) e que busquem estabelecer restrições
obrigacionais ao poder de dispor, como a obrigação de não alienar (= não fazer).
5.4 FIGURAS ESPECIAIS LIGADAS À CESSÃO DE CRÉDITOS
Duas figuras especiais ligadas à cessão de créditos (em sentido lato)
merecem análise destacada, quais sejam, a cessão de créditos em garantia e o
factoring.
A primeira figura pode ser dividada em cessão de créditos (atuais) em
garantia e em cessão de créditos futuros com fins de garantia, considerando-se que
essa última envolve créditos futuros, a serem constituídos na esfera jurídica do
cedente em face de terceiros, que possuem o objetivo de garantir um débito do
cedente para com o cessionário. Caso o cedente cumpra a obrigação que deve ao
cessionário antes de tais créditos se constituirem, quando assim o fizerem,
permanecerão no patrimônio do primeiro. Entretanto, caso aquela não seja
cumprida, os créditos se formarão no patrimônio do cedente e serão
princípio de elasticidade dos direitos, que não é peculiar ao direito de propriedade, e sim princípio interior do todo de elementos que fazem o direito. Uma vez que se lhe tira elemento, e não parte, o direito mantém a sua expansibilidade automática: extinto o direito constituído, retoma-se-lhe o elemento pela elasticidade do direito.” (PONTES DE MIRANDA, 2012a, p. 106).
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automaticamente transferidos ao do cessionário, para que possa cobrá-los dos
devedores. Essa modalidade encontra larga utilização no campo da atividade de
financiamento à exportação, de maneira que a instituição financeira, ao conceder um
financiamento ao exportador, recebe dele, em troca, títulos emitidos por ele próprio
(export notes), que dizem respeito a créditos futuros em face de um comprador
estrangeiro (SIMÕES, 2011).
O factoring também funciona como uma operação apta ao financiamento
de empresas. Consiste em um contrato que envolve a cessão onerosa de um
conjunto de créditos futuros com desconto em seu valor, a envolver, de maneira
contínua, prestações de serviços. No Direito pátrio, a cessão de créditos reside no
núcleo de tal operação e não o instituto da sub-rogação convencional por vontade do
credor, considerando-se que o deslocamento patrimonial da casa faturizadora para o
faturizado não se trata de adimplemento, mas sim de preço relativo à compra de
créditos. Ademais, a faturizadora não se encontra limitada a exercer os direitos e
ações do credor no limite da soma que tiver desembolsado (conforme o art. 350 do
CC/02) (SIMÕES, 2011).
Diante de tais figuras, é possível perceber que a operação da cessão de
crédito, em sentido lato, deixou de ser apenas uma transmissora de riquezas para
tornar-se também uma produtora de riquezas.
Um problema que pode exsurgir de tal situação refere-se ao
financiamento de pequenos e médios empresários titulares de créditos incedíveis.
Por conta de tal clausulação, eles se encontram com possibilidades limitadas,
sobretudo no que se refere ao factoring e na estipulação de contratos acessórios de
reforço de garantia, como penhor, já que a restrição de seu poder de dispor afeta
sua possibilidade de celebrar contrato tanto de disposição translativa como
constitutiva.
Por isso fez bem o legislador alemão ao estabelecer, em seu reformado
Código Comercial (HGB), no § 354 a S. 160, a ausência de eficácia real do pactum
60Handelsgesetzbuch. § 354a (1) Ist die Abtretung einter Geldforderung durch Vereinbarung
mit Dem Schuldner gemäss § 399 des Bürgerlichen Gesetzbuchs ausgeschlossen un ist das Recshtsgeschäft, das diese Forderung begründet hat, für beide Teile ein Handelgeschäft, oder ist der Schuldner eine juristische Person des öffentlichen Rechts oder ein öffentlich-rechtliches Sondervermögen, so ist die Abtretung gleichwohl wirksam. Der Schuldner kann jedoch mi befreiender Wirkung an den bisherigen Gläubiger leisten. Abweichende Vereinbarungen sind unwirksam.
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de non cedendo quando os créditos limitados por esse originam-se de contratos
empresariais (VANZELLA, 2012).
Privilegia-se a noção de transmissão de riquezas como produção de
riquezas, de maneira que a lei encontra-se simétrica com a faceta contemporânea
da obrigação, pois essa deve ser vista como um processo complexo, bem como os
seus mecanismos de transmissão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A distinção entre obrigação e disposição ainda é pouco tratada pela
doutrina no âmbito do Direito Privado Patrimonial pátrio. Muitos podem achar
despicienda tal diferenciação, todavia é essencial à compreensão desse ramo do
Direito, que vem sofrendo cada vez mais com a falta de tecnicidade e a ausência de
tratamento preciso e dogmático.
Atualmente há uma supervalorização do prático, de maneira que se chega
a esquecer da teoria, do que é prévio à própria prática e aos seus efeitos. Deveria
haver um equilíbrio entre as duas vertentes, pois um belíssimo fundamento
dogmático sem qualquer aplicação prática não é útil, enquanto uma concepção
estritamente prática, sem uma forte teoria estruturante por trás, é facilmente
derrubada e refutada.
Criptoargumentos também devem ser evitados. O que não se encontra
conforme o mainstream muitas vezes é visto com pouca vontade.
Este trabalho buscou realizar uma análise dogmática do Direito
Patrimonial Privado, focando a relação entre contratos obrigacionais e contratos de
disposição, elecando como utilidade prática de tal distinção a cessão de créditos.
Buscou-se demonstrar, pois, que um estudo marcadamente dogmático não é inútil.
Se a tentativa será bem recebida ou não, cumpre ao futuro afirmar.
Todavia, o presente graduando em Direito já encontra-se satisfeito, com a sensação
de dever com o estudo jurídico realizado, de não tratar, pois, apenas sobre o “óbvio”
que não deveria ser óbvio.
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REFERÊNCIAS
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