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13º SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA
A CEROPLASTIA NA FACULDADE DE MEDICINA DE SÃO PAULO:
importância para o ensino e para a consolidação das especialidades médicas (1930-1950)
JORGE AUGUSTO CARRETA
SÃO PAULO
SETEMBRO DE 2012
1
Representações do corpo humano
Como indica Monteiro (2009), a preocupação com a representação do corpo humano e
o desvendamento de suas estruturas íntimas é componente marcante da cultura visual
ocidental, sobretudo com o surgimento da chamada “ciência moderna”. Especificamente
durante o Renascimento, quando há o resgate dos estudos anatômicos, as investigações sobre
os mistérios do corpo não eram feitas apenas pelos médicos, mas também por artistas
preocupados em representar a figura humana da maneira mais fidedigna possível (Landes,
2008). Essas representações do corpo buscavam legitimar-se a partir do conhecimento
anatômico, superando as práticas de dissecação anteriores, nas quais a confirmação dos textos
era a intenção dominante. Segundo Wilson (1987), a dissecação difere da anatomia. Embora
partes do mesmo processo, a primeira refere-se à abertura do corpo e sua “desmontagem”. A
segunda, à sua reconstituição.
No período renascentista há uma mudança na forma de produção de saber sobre o
corpo, marcado pelo abandono das práticas escolásticas e a adoção da observação direta do
corpo dissecado. De acordo com Wilson (1987), a documentação das sessões de dissecação
relevantes do ponto de vista médico e social começa no século XIII com Mondino de Luzi
(c.1270-1326), professor de cirurgia na Universidade de Bolonha da década de 1290 até sua
morte. Seu livro Anathomia corporis humani (1316) se tornou a obra de anatomia mais usada
na Europa por cerca de 250 anos.
A primeira dissecação de Mondino se deu em Bolonha, em 1315, testemunhada
apenas por estudantes de medicina. O foco do acontecimento não era o corpo, mas o
professor, que não se envolvia diretamente na dissecação, que era feita por seus assistentes (o
demonstrator e o ostensor). Os estudantes, dispostos ao redor da mesa onde o cadáver jazia
inerte, ele mesmo uma peça secundária, somente observavam sem participar.
Como indica Wilson (1987: 64), o objetivo da anatomia naquele momento era a verificação
ou demonstração do texto, que ficava sob os olhos do professor, único autorizado a
interpretá-lo. O demonstrator, um cirurgião, fazia a abertura do corpo. O texto era lido pelo
professor e o ostensor indicava com uma varinha a parte do corpo descrita. Por vezes, ele
repetia literalmente as palavras do mestre, usualmente colocado em um patamar superior,
sentado em um tipo de cátedra. A cena pode ser imaginada a partir das gravuras seguintes.
(Figuras 1 e 2)
2
Figura 1: Dissecação conduzida por Mondino. Gravura presente em Anathomia Mundini, edição de 1519. Apud, Wilson: 1987.
Figura 2: Preparador e médico durante uma dissecação. Gravura presente em Anathomia Mundini, edição de 1495. Apud, Wilson: 1987.
3
Na primeira ilustração é evidente o papel de destaque de professor, que lê o texto
enquanto os assistentes indicam as estruturas descritas. A segunda gravura mostra ainda de
forma mais clara a centralidade do texto, para o qual o preparador dirige o seu olhar,
enquanto o médico aponta as estruturas internas do corpo.
De acordo com Wilson (1987:68), a atividade de dissecar corpos era associada a algo
ilícito e moralmente duvidoso, não obstante a aprovação pelas autoridades religiosas e
seculares. Os cadáveres eram de criminosos executados, o que reforçava tal associação. Em
nada contribuiu para melhorar essa imagem a prática de violação de sepulturas de cemitérios
para o roubo de cadáveres a serem usados em dissecações. De qualquer modo, a estima
pública era baixa em relação aos cirurgiões, que tocavam os cadáveres, ao contrário dos
médicos, que apenas liam os textos durante a dissecação.
As dissecações tornaram-se altamente ritualizadas, muitas vezes acompanhadas por
banquetes, concertos ou apresentações teatrais. Esses rituais complexos revelam um
significado que transcendia os contextos médico e forense. As dissecações eram também
entretenimento e “performance”. No século XVI, essa tendência à espetacularização atingiu
seu auge. Grandes multidões acorriam aos teatros anatômicos das universidades de Pádua e
Bolonha para acompanhar os trabalhos dos grandes anatomistas. O que antes era uma
atividade voltada apenas para o ensino médico, logo se tornou uma atração pública. (Wilson,
1987: 69)
Mas nesse período houve uma mudança significativa na maneira como a dissecação
era conduzida. O foco passou a ser o anatomista, não mais o texto ou o “médico-professor”.
O ritual não era mais a comprovação do texto, tal como na tradição escolástica, mas a
observação direta das estruturas internas. As figuras do demostrator e do ostensor foram
dispensadas e suas funções incorporadas pelo anatomista, que fazia a autópsia, ou seja, “via
com os próprios olhos”. Andreas Vesalius (1514-1564), anatomista belga autor da obra De
humanis corporis fabrica (1543), realizava as dissecações dessa maneira. O frontispício de
Fabrica revela essa mudança nos rituais de dissecação (fig. 3).
4
A cena mostra o próprio Vesalius conduzindo a abertura e manipulação do corpo. Ele
não lê ou segura nenhum texto, indicando aos espectadores diretamente as estruturas internas
do cadáver. Conforme Wilson (1987: 69), o ritual revela menos ostentação de hierarquia
intelectual do que a “performance” do anatomista: mostra-se o corpo dissecado e também o
corpo do próprio anatomista.1 O cadáver é também participa ativamente da cena, aparecendo
inclinado para frente, dividindo a atenção do espectador entre ele e o médico. Outros
elementos presentes na cena indicam que qualquer corpo ali poderia ser alvo de dissecação:
um cão, um pequeno macaco e corpos nus ou com aparentes marcas de cortes por
1 “The static spectacle of the authority of the text has been superseded by the dynamic performance of an identifiable performer who, both in his own corporeal particularity and in his physical contiguity with the cadaver, finds himself fundamentally not unlike the body whose structures he performs”. (Wilson, 1987:71)
Figura 3: Frontispício da obra De
humanis corpori fabrica, edição de 1543. Apud, Wilson, 1987.
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instrumentos cirúrgicos. Por fim, também ao centro, um esqueleto, seguramente
representando a morte, destino inescapável de todos os homens.
Essa mudança na forma de explorar o corpo foi acompanhada pelo desenvolvimento
de técnicas de modelagem de peças em cera que representavam estruturas internas do corpo e
se tornaram instrumentos preciosos para o ensino médico e para o conhecimento público da
anatomia humana.
O corpo humano modelado em cera
Em primeiro lugar, é preciso indicar que a modelagem em cera estava inserida no
movimento maior de mudança nas formas de conhecimento anatômico. Não há precisão exata
quanto ao período em que modelos de cera foram usados para o ensino ou preparação de
médicos. Modelos em cera do corpo humano ou de suas partes são produzidos desde há
quatro mil anos. Podem-se encontrar peças feitas por egípcios, gregos e romanos. (Haviland e
Parish, 1970). O uso de imagens votivas, que representam partes do corpo curadas pela graça
de santos ou da divindade, data desde os períodos pré-cristãos e até hoje podem ser
encontradas nas igrejas. Em Florença, do século XIII ao XVII, eram inúmeros os ateliês que
produziam tais imagens.
Os mais ricos encomendavam figuras de corpo inteiro, coloridas, que eram vestidas e
oferecidas às igrejas como “atos de devoção”. A igreja da Santissima Anunzziata, por
exemplo, tornou-se um verdadeiro museu de cera, que só foi desmontado a partir de 1786,
quando Leopoldo II, Imperador do Sacro Império Romano, ordenou que as imagens fossem
retiradas das igrejas. Elas terminaram derretidas e transformadas em velas. (Ballestriero,
2009)
Como dito acima, o interesse científico pela exploração do interior do corpo ressurgiu
durante o Renascimento, mobilizando médicos e artistas. Havia grandes dificuldades para se
conseguir cadáveres e preservá-los. Muitas vezes os anatomistas eram acusados de manter
ligações com criminosos que roubavam corpos recém-sepultados de cemitérios.2 Maneiras de
preservação das peças anatômicas pelo maior tempo possível foram tentadas, mas o tempo de
duração era limitado.3 A modelagem em cera foi a saída para reproduzir os órgãos e
2 Entretanto, Foucault (2006: 137) diz que no século XVIII a obtenção de cadáveres para dissecação tornou-se mais fácil e os anatomistas trabalhavam tranquilamente. 3 Segundo Balestriero (2009: 224), as primeiras tentativas de preservar cadáveres com injeções de produtos químicos foram feitas pelo italiano Marcello Malpighi (1628-1694) e pelo naturalista holandês Jan
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estruturas internas. O material era facilmente moldado, poderia ser colorido e ser receber
implantes orgânicos para aumentar seu efeito de representação (pelos, cabelos, dentes etc.).
(Balestriero, 2009) Para os cirurgiões, os modelos em cera poderiam suprir a falta de
cadáveres usados em demonstrações anatômicas.
Segundo Haviland e Parish (1970), os primeiros usos dos modelos de cera no ensino
de anatomia ocorreram na Itália Renascentista, por volta do século XIII. O emprego pioneiro
desses modelos teria sido feito no século XIV por Alessandra Gigliani de Persiceto,
preparadora de Mondino de Luzi (Mundinus, 1270?-1326), anatomista e professor da
Universidade de Bolonha. Seu trabalho consistia em produzir peças anatômicas injetadas com
cera, preservando e realçando as veias e artérias corporais.
Nesse período, a produção de modelos anatômicos de cera estava a cargo de artistas e
não de anatomistas. No processo de melhorar os modelos votivos, Andrea Del Verrocchio
produziu “écorchés” (corpos de cera sem pele e que revelavam os músculos e outras
estruturas internas) e “modelos posturais” para escolas de arte. Leonardo da Vinci, seu mais
conhecido aluno, teria dissecado mais de cem corpos para seus estudos anatômicos.
Michelangelo também foi um hábil dissecador, utilizando o conhecimento adquirido com
essa prática em suas pinturas e esculturas. A atenção dos artistas se concentrava nas vísceras,
vasos sanguíneos e nervos. (Haviland e Parish, 1970)
Os modelos de cera, principalmente “écorchés”, eram produzidos para o ensino de
artes, não para as escolas de medicina ou anatomia, a não ser que houvesse encomenda
específica. Os anatomistas não dominavam as complexas técnicas artísticas de reprodução de
objetos em meios variados, tais como cera, gesso, terracota, bronze, mármore, madeira e
marfim. As peças anatômicas eram, assim, produzidas por artistas que não tinham qualquer
tipo de treinamento médico ou anatômico.
A ligação entre artistas e cientistas se tornou mais forte após a inscrição dos primeiros
na corporação dos médicos e apotecários em 1303, conhecida desde 1349 como Companhia
de São Lucas, presente nos Países Baixos e na Itália. Os artistas eram clientes frequentes das
apotecas, onde compravam corantes e outros suprimentos usados em seu ofício. Eles
acabaram por circular no mesmo espaço que os médicos, cujos consultórios eram contíguos a
esses estabelecimentos. Mas essa relação nem sempre era tranquila e os anatomistas se
ressentiam da concorrência oferecida pelos artistas, que por vezes se consideravam mais
Swammerdam (1623-1680). Os preparados podiam ser coloridos ou não e continham elementos variados, como álcool, mercúrio, metais (chumbo, bismuto ou ferro) e cera.
7
capazes que os médicos na arte de representar as estruturas internas do corpo humano.
(Haviland & Parish, 1970)
Entre fins do século XVII e começo do XVIII, o interesse por modelos de cera dentro
da profissão médica atinge o seu auge, com destaque para a produção feita por cirurgiões, tal
como o francês Guillame Desnoues (1650-1735). Utilizando-se da técnica de injeção de cera
nas preparações, ele organizou em Paris um museu de peças anatômicas de cera aberto à
visitação pública. As peças também foram expostas em Londres e atraíram grande atenção.
Antes de alugar as peças para fins didáticos, o médico francês preferiu fazer um tour por
cidades do interior da França e Inglaterra. Em 1726, as peças reaparecem em anúncios de
palestras sobre anatomia humana. (Haviland & Parish, 1970)
Desnoues se associou ao artista siciliano Gaetano Giulio Zumbo (1656-1701).
Treinado na Escola de Anatomia de Bolonha, ele teria trabalhado em Florença sob a proteção
da família Médici. De formação religiosa (era um abade), suas primeiras obras em cera
tinham caráter marcadamente religioso, mas o reconhecimento veio pelos chamados “Teatros
da Morte” (ou “Teatrini”), que expressavam a decadência do corpo, o senso de precariedade
da vida e a morte.4. Desnoues e Zumbo se conheceram em Bolonha e produziram diversas
peças, notadamente a de uma moça, em tamanho natural, que faleceu em trabalho de parto.
(Balestriero, 2009: 224) Durante a consecução da figura, os dois se desentenderam e Zumbo
se mudou pra Marselha. Desnoues se uniu ao escultor em mármore Lacroix e os dois hoje são
considerados os precursores da escola francesa de anatomia plástica (Haviland & Parish,
1970: 56)
Para Poggesi (2006: 51), a primeira escola de ceroplastia teria sido fundada em
Bolonha no século XVIII pelo pintor, escultor e arquiteto Ercolle Lelli (1702-1766). Desde o
fins do século anterior, a instrução anatômica tinha atingido tal importância que um teatro
para esse fim fora erigido no Pallazzo dell’Archiginnasio, onde funcionava a universidade. O
intuito de Lelli ao organizar a primeira coleção de peças era servir ao ensino. (Balestriero,
2009: 225) Outros nomes importantes dessa escola são Giovanni Manzolini (1700-1755),
assistente de Lelli, e sua esposa Anna Morandi (1716-1774).5
4 São exemplos dessa série “O triunfo do tempo”, “A peste”, “Sílfide” e “O enterro”. Parte dessas figuras encontra-se hoje no Museu La Specola, em Florença. Para mais detalhes, ver Poggesi (2009).
5 Segundo Haviland & Parish (1970: 59-60), Manzolini superou seu mestre Lelli, o que acabou por provocar o rompimento entre os dois. Morandi, por sua vez, igualou em perícia o trabalho de seu marido e antigo professor. Após a morte deste, ela se tornou membro da Academia Clementina e da Universidade de Bolonha. A cadeira de anatomia lhe foi atribuída e ela podia ensinar na universidade ou em casa, como melhor lhe aprouvesse.
8
Outra importante escola de modelagem em cera se formou em Florença, sob
influência da escola bolonhesa. Em 1771, foi constituído o Museu de História Natural
(também conhecido por “La Specola”) pelo Grão-Duque da Toscana, Pedro Leopoldo de
Lorena-Habsburgo. Sua intenção era reunir as coleções científicas espalhadas pelos palácios
do Grão-Ducado. (Poggesi, 2009: 46) A oficina ceroplástica foi criada pelo abade e diretor do
museu Felice Fontana (1730-1805). Nos primórdios havia apenas um modelista, Giuseppe
Ferrini. O próprio diretor se encarregou das dissecações até que outros funcionários
pudessem ser contratados. Em 1773 foi admitido Clemente Susini (1754-1814), que ficou
conhecido como o mais refinado modelista do museu.
A intenção de Fontana era utilizar as coleções não apenas para a instrução, mas
também para a educação do público em geral, conforme indica Maeker (2006).6 Segundo a
autora, o diretor acreditava que o corpo de conhecimentos da filosofia natural estaria
acessível a qualquer um, desde que apresentado de maneira simples, sem rebuscamento. Os
modelos de cera do corpo humano serviriam a esse propósito. Tal concepção baseava-se em
teorias de aprendizagem sensualistas, que enfatizavam a percepção visual. Os modelos não
deveriam representar uma simples discrição do corpo, mas também suas funções. Cada peça
individual era acompanha por um desenho em duas dimensões, que permitiria a compreensão
do que se via.7 (Maerker, 2006: 302)
Em linhas gerais, o processo de produção era feito de acordo com as seguintes etapas:
um filósofo ou um cientista natural escolhia a ilustração de uma publicação renomada e que
preferencialmente trouxesse os avanços mais recentes da anatomia; em seguida, o dissecador
preparava partes de corpos reais de acordo com as ilustrações; por fim, os artesãos faziam o
molde a partir das preparações (podia ser mais de uma da mesma parte do corpo) ou
modelavam livremente, apenas observado as ilustrações e preparações. Feitos os moldes, eles
eram preenchidos com cera derretida e, após a secagem, envernizados e pintados. Depois de
prontos, eram representados em desenhos, que também eram expostos ao público. (Maerker,
2006: 299)
6 A instituição não seria apenas um lugar de transmissão de conhecimentos, mas de produção. Fontana e o vice-diretor, Giovanni Fabbroni, publicaram obras sobre os mais variados assuntos. Além disso, os filósofos naturais e anatomistas prestavam serviços especializados (expertise) para a corte. (Maerker, 2007: 258) 7 Embora aberto ao público em geral, exigia-se que o visitante estivesse “bem vestido”, o que poderia ser uma forma de restringir o acesso. Por exemplo, nem todos recebiam uma demonstração da famosa “Vênus”, cujo abdômen se desmontava, revelando os órgãos internos até chegar ao útero, que continha um feto. Naturalistas ou pessoas de alta extração social tinha o privilégio de visitas guiadas pelo próprio diretor fora dos horários normais de funcionamento do museu. (Maerker, 2006: 302)
9
Um aspecto importante da produção dos modelos de cera é a forma de sua validação,
isto é, da sua aceitação como representação confiável e fiel do corpo humano e, na verdade,
da própria natureza e de suas leis. Os artistas não tinham formação médica e o trabalho na
oficina era supervisionado por Fontana. O diretor estabeleceu duas fontes principais de
“autoridade” para a produção de peças de cera. A primeira era o conjunto de ilustrações
retiradas dos trabalhos dos mais aclamados anatomistas da época, como Albinus, Haller,
Mascagni, Vicq d’Azyr, Loder, Soemmering e Weitbrecht. A segunda era o uso de partes de
corpos obtidas junto a hospitais locais.8 (Maerker, 2006: 299)
Havia um complicado processo para conferir credibilidade às peças, que, além dos
procedimentos citados acima, envolvia uma rede de colaboradores que davam sua aprovação
a elas. Não bastava o esmero na produção, com a referência às obras clássicas de anatomia e
a utilização de preparações derivadas de cadáveres. A aprovação externa também era
necessária para garantir a precisão dos modelos. Essa rede envolvia naturalistas visitantes,
médicos e anatomistas com os quais Fontana mantinha contato. (Maerker, 2007: 262)
Problemas de “autoridade cognitiva” não eram só resolvidos pelos recursos a
especialistas externos.9 Dentro da oficina do La Specola havia uma disputa entre os
naturalistas, anatomistas e os artesãos. (Maerker, 2007). Para o diretor, os artesãos eram
apenas “instrumentos”: a autoridade não repousava nas competências artesanais. Como
enfatiza Maerker (2007: 263), não havia a cooperação interdisciplinar entre naturalistas,
anatomistas e artesãos idealizada por alguns historiadores e analistas da produção do La
Specola. O que se via era a tentativa de cada um desses personagens de garantir sua anatomia
e o controle sobre o próprio trabalho.
Os artesãos eram donos de um “conhecimento especial” e suas habilidades bastante
difíceis de repor. Sabendo disso, resistiam a se submeter estritamente às ordens do diretor.
Muitos tinham seus próprios ateliês e neles trabalhavam nas horas vagas. Havia suspeitas de
que cera era desviada para essas oficinas particulares, mas os filósofos naturais, que não
dominavam as técnicas de modelagem, não conseguiam apurar com certeza quanto material
8 O Grão-Duque Pedro Leopoldo garantiu o fornecimento de cadáveres ao museu, oriundos dos hospitais locais. Os corpos de adultos vinham do Santa Maria Nuova, enquanto os de crianças eram mandados pelo orfanato Istituto del’Innocenti. Isso criou uma animosidade entre Fontana e os médicos do Santa Maria Nuova, que perdiam corpos utilizados no treinamento médico. Por vezes, Fontana não utilizava os corpos e os mandava para o cemitério, causando a fúria dos médicos. (Maerker, 2007: 261-262) 9 Segundo Maerker (2007: 264), “autoridade cognitiva” significa “a capacidade socialmente aceita de falar a verdade sobre a natureza”. A dependência financeira do artesão, o fato de ser assalariado, tornava “parcial” o seu trabalho. Somente o filósofo natural, que contava com meios próprios, seria verdadeiramente desinteressado e capaz de produzir “asserções verdadeiras”. O que essa separação entre artesãos e naturalistas efetivamente revela é a oposição entre trabalho manual (artesãos) e trabalho intelectual (naturalistas), expressa nos termos de “autonomia” e “dependência”.
10
havia sido usado pelos artesãos. Essa dificuldade de separar o conhecimento dos seus
proprietários tornava-os difíceis controlar. (Maerker, 2007: 266)
A modelagem patológica
O surgimento da modelagem médica de doenças (chamada de moulage, derivado do
francês mouler, ou seja, “moldar”) seguiu o desenvolvimento da anatomia patológica e de
novas noções sobre saúde e doença. Esse processo pode ser localizado entre os séculos XIX e
XX, mas desde o século XVII encontram-se esforços de descrição e classificação das
enfermidades que acometiam os seres humanos. (Sevalho, 1993: 357). Thomas Sydeham
(1624-1689) dizia que “para ajudar o doente era preciso delimitar e determinar o seu mal”
(Canguilhem, 2007: 11). Haveria, segundo ele, espécies mórbidas, tal como existem as
espécies vegetais ou animais.
O médico italiano Giovanni Battista Morgagni (1682-1771) criou a anatomia
patológica por meio da associação entre as lesões presentes em tecidos corporais e os
sintomas de certas doenças, permitido que a classificação nosográfica encontrasse, como
disse Canguilhem, apoio na “decomposição anatômica”. (Canguilhem, 2007: 12).
Essa identificação entre lesão histológica e doença abriu caminho para a evolução da
fisiologia. François Broussais (1772-1838), combinando elementos das doutrinas de Xavier
Bichat e John Brown, defendia a ideia de que as doenças são de natureza quantitativa, isto é,
surgem devido a uma maior ou menor excitação dos órgãos ou tecidos do corpo. O excesso
de estímulos, provenientes do meio ou do próprio cérebro, teria mais importância que a falta
e daí decorreriam a maioria dos estados patológicos. Nessa concepção, a patologia era um
prolongamento da fisiologia. Saúde e doença, normal e patológico apresentariam uma relação
de continuidade, seriam apenas a variação numérica de um mesmo estado. O corolário dessa
concepção é a doença como algo visível, tangível e mensurável.10 Essa teoria foi assumida e
continuada por Claude Bernard (1813-1978), o grande nome da medicina experimental
francesa.
Para Bernard, a medicina experimental compreendia três partes distintas: a fisiologia,
a patologia e a terapêutica, sendo a primeira a sua base. Ele considerava a medicina de sua
época essencialmente empírica. Apesar de apontar as limitações dessa prática médica,
10 Canguilhem (2007: 26) apontou as dificuldades dessa concepção. Mesmo negando o caráter “ontológico” das doenças e seu caráter qualitativo, o que impediria a nosografia de Phillipe Pinel e outros, Broussais ainda se apegava a uma definição “valorada” de estado normal, quer dizer, a um ideal de perfeição não claramente definido.
11
Bernard não a rejeitava. Afirmava ele que a observação era parte importante da medicina
experimental. Dentro de seu esquema de evolução das ciências, exposto em Introdução ao
estudo da medicina experimental, publicado em 1865, a medicina empírica era o primeiro
período da medicina experimental. Mas todos os dados oriundos da observação deveriam ser
submetidos à prova pela experimentação. Em sua época, dizia Bernard, a medicina se
encontraria em uma fase de transição do empirismo puro para a observação combinada à
experimentação laboratorial. (Bernard, 1944: 266-268)
Essa maneira de pensar o patológico vai se opor à clínica, conjunto formulações
médicas oriundas da observação dos sintomas clínicos dos doentes feitas à beira dos leitos.
(Foucault, 2006) Essa medicina “racionalista” deu origem ao que se chamou de concepção
ontológica de doença, isto é, aquela que considerava que todos os males tinham sua própria
“história natural” e podiam ser ordenados em classes, ordens, gêneros e espécies. (Sevalho,
1993: 357) Foucault (2006: 139) observa que “a clínica, olhar neutro sobre as manifestações,
frequências e cronologia, preocupada em estabelecer parentesco entre sintomas e
compreender sua linguagem, era (...) estranha a essa investigação de corpos mudos e
atemporais (...). Anatomia e clínica não têm o mesmo espírito”.
No entanto, essa oposição vai aos poucos enfraquecendo e surge no século XIX aquilo
que Foucault chamou de “anatomoclínica”, resultante de uma “litigiosa estruturação” na qual
a clínica e a anatomia patológica se confrontaram. A clínica e sua nosografia ganharam uma
nova base proveniente da anatomia patológica de Xavier Bichat (1771-1802), que
privilegiava a análise dos tecidos formadores do corpo e não dos órgãos.11 (Foucault, 2006)
Os modelos em cera, inicialmente, buscavam representar de forma fidedigna a
anatomia humana e traduzir as leis naturais, como pretendia Fontana, diretor do La Specola.
Mas desde Zumbo podemos perceber a preocupação com a doença e a decadência do corpo.12
A moulage se torna relevante no começo do século XIX. Conforme aponta Schnalke (1995:
47), ela acompanhou as mudanças que transformaram a medicina em uma disciplina
clinicamente orientada.
Três nomes podem ser citados como pioneiros na arte de modelagem médica, embora
suas obras não tenham ido muito além de suas cidades de origem: Franz Heinrich Martens
(1778-1805), Joseph Towne (1806-1879) e Anton Elfinger (1821-1864). O primeiro, 11 De acordo com Foucault (2006: 149), a anatomoclínica aplicou “o princípio diacrítico a uma dimensão muito mais complexa e problemática: aquela em que se articulam as formas visíveis da história patológica [sintomas] e os elementos visíveis que aparecem quando ela acaba”. 12 Os modelos em cera eram feitos essencialmente para o estudo de anatomia humana e não de condições patológicas. Contudo, no Museu La Specola foram produzidos modelos obstétricos que mostravam partos normais e com complicações. (Haviland e Parish, 1970: 68)
12
inicialmente interessado em obstetrícia, voltou sua atenção para as doenças venéreas.
Atuando na Universidade de Jena, na Turíngia, desde 1804, ofereceu palestras nas quais
utilizava modelos de cera de genitais masculinos e femininos. Sua preocupação era auxiliar
os diagnósticos. Considerava que as “artes visuais” (os desenhos em duas dimensões) eram
insuficientes para uma correta identificação da doença. O poeta Johann Wolfgang von Goethe
era um de seus admiradores e fez menção às obras de Martens em carta ao Conselheiro
Financeiro em Berlin, datada de 4 de junho de 1832, o que indica a sua existência e
importância. Suas peças, infelizmente, terminaram por se perder. (Schnalke, 1988)
Joseph Towne, nascido na Inglaterra, aprendeu com o pai a arte de moldar em barro e
cera. Sua primeira obra, aos quinze anos, foi um esqueleto humano em cera, feito a partir de
figuras e alguns ossos. Quando seu pai descobriu o modelo, o enviou para o Fitzwilliam
Museum em Cambridge. O curador o comparou a outros esqueletos de cera do Museu e o
aprovou. O pai e o curador estimularam o rapaz a submeter o trabalho a um concurso da
Royal Society of Arts de Londres, em 1826. Towne foi à cidade se aconselhar com o
cirurgião Astley Cooper, do Guy’s Hospital, que o orientou na finalização da peça. Ele
ganhou a medalha de prata e conseguiu um emprego no Guy’s Hospital como modelador
médico, que durou 53 anos. Inicialmente, ele fazia modelos anatômicos e apenas mais tarde
se dedicou à moldagem de doenças de pele. Ele teria feito cerca de 560 peças
dermatológicas.13
Segundo Schnalke (1988), embora nunca tivesse comercializado seus trabalhos na
Inglaterra, Towne exportou alguns para diversos países, mas os principais compradores eram
os dermatologistas americanos. Os modelos eram destinados ao ensino nas recém fundadas
escolas médicas. Eles também enriqueceram as coleções de museus, como a da Universidade
da Pennsylvania ou a do médico Louis A. Duhring, que se tornaria a mais significativa
coleção nos Estados Unidos.
Por fim, o terceiro pioneiro foi o austríaco Anton Elfinger. Filho de um farmacêutico,
ingressou na Academia de Artes Plásticas e Gráficas de Viena aos quinze anos. Nas aulas de
pintura estudou as estruturas de órgãos a partir de preparações anatômicas e ilustrações.
Desistiu da escola de artes e se matriculou na faculdade de medicina, onde se graduou em
1845. Contudo, nunca desistiu completamente de seus interesses artísticos e procurou mesclá-
los à carreira médica. Trabalhou com Ferdinand von Hebra, renomado dermatologista
vienense, que o convenceu a se dedicar integralmente à arte médica.
13 Essas peças seriam até hoje utilizadas em aulas no Guy’s Hospital. (Schnalke, 1988)
13
A partir de 1848, Elfinger voltou-se integralmente à produção de desenhos, aquarelas
e pinturas que representavam doenças de pele variadas. Mais tarde, voltou-se à modelagem.
Entretanto, o fazia de forma privada, quase como um passatempo. Poucas peças
sobreviveram e hoje estão sob guarda do Museu de Anatomia Patológica em Viena.
(Schnalke, 1988)
Da metade do século XIX em diante, as especialidades médicas começavam a se
multiplicar, impulsionadas pelo avanço das técnicas cirúrgicas, do diagnóstico clínico mais
apurado e da experimentação. A dermatologia e a venereologia se tornaram disciplinas
médicas reconhecidas no início do século XIX, separando-se de outras. (Haviland e Parish
1970: 69) Sua origem, entretanto, está na anatomia patológica do final do século anterior.
(Schnalke, 1992). Inicialmente, a anatomia patológica desenvolveu a noção de que as
doenças estavam associadas a um órgão específico. Com isso, a prática clínica ganhou ênfase,
com a observação do doente e a descrição dos sintomas. Os diagnósticos eram confirmados
pelas dissecções. Essas práticas identificaram novas doenças e as classificaram em sistemas
nosológicos. Os grupos se relacionavam com os órgãos e seus sistemas, o que serviu de base
para o surgimento das especialidades médicas. (Schnalke, 1992: 134)
A pele humana não era vista como um órgão, mas suas afecções apenas refletiriam a
doença de órgãos internos. Aos poucos, essa concepção mudou e ela passou a ser vista como
local de condições patológicas específicas, que poderiam ser descritas e tratadas. Por volta de
1860, como indicam Haviland e Parish (1970), a dermatologia ainda fazia parte das
disciplinas médicas iniciantes e seus praticantes começaram a perceber a importância dos
modelos de cera para fins didáticos.14
Foi no Hôpital Saint Louis, em Paris, que ocorreu o Primeiro Congresso Internacional
de Dermatologia e Sifiliologia, em 1889. Segundo Schnalke (1992), esse evento marcou o
início do período de florescimento da arte da moldagem na Europa. A instituição francesa
teve papel central na consolidação da disciplina e a influenciou até meados do século XX.
A prática do “ensino do olho” (“teaching of the eye”) no Saint Louis já estava
presente nas aulas do médico Jean Louis Alibert (1768-1837), que lançava mão de
ilustrações, gravuras, aquarelas e pinturas a óleo para melhor caracterizar para os seus alunos
as doenças dermatológicas. Isso abriu caminho para a introdução da moldagem em cera no
ensino do hospital, o que foi feito por Charles Lailler (1828-1898) na década de 1860. Seu
14 Como assinalam os autores, ao final do século XIX todos os grandes centros de dermatologia (Paris, Londres, Viena) possuíam importantes museus ceroplásticos. A coleção parisiense serviu de modelo para os demais hospitais dermatológicos europeus. (Haviland e Parish, 1970: 69)
14
principal colaborador foi Pierre François Baretta (1834-1923), artista de origem belga,
contratado pelo Saint Louis em 1870. Ele produziu aproximadamente duas mil peças para o
Hospital, mas também para médicos particulares da França e de outros países. Além disso, foi
o principal colaborador do Museu de Patologia do Saint Louis.15 (Schnalke, 1992: 135)
O Primeiro Congresso Internacional de Dermatologia e Sifiliologia colocou em
evidência as obras de Beretta, que foram vistas por médicos de diversas partes da Europa,
despertando o interesse de formar coleções em seus próprios hospitais.16 A moldagem
dermatológica restringia-se aos grandes centros e ainda não era utilizada na Alemanha ou no
Império Austro-Húngaro. O evento parisiense certamente teve importância decisiva para a
disseminação dessa técnica.
No mundo germânico, Viena foi o primeiro local onde a venéreo-dermatologia se
institucionalizou como disciplina universitária. Como dito acima, Von Hebra, com a
colaboração de Anton Elfinger, introduziu a moldagem na dermatologia vienense, mas uma
verdadeira “tradição” na área só seria possível com a colaboração entre o médico Moriz
Kaposi e Carl Henning, já nos anos 1880. A influência do congresso parisiense, do qual
participou Kaposi, foi marcante. Henning tinha formação médica e havia publicado um atlas
de anatomia com imagens bidimensionais antes de se graduar. De acordo com Schnalke
(1992), não se sabe como o jovem médico interessou-se pela modelagem em cera, mas supõe-
se que ele teve contato com os modelos de Elfinger através do oftalmologista vienense
Johann Hofmayr.
Kaposi considerava que as peças em cera eram um valioso material para a prática
clínica e educacional, pois poderia representar vividamente (“lifelike”) uma parte do corpo
afetado por uma doença. Inicialmente, a produção de peças era feita em anexo do consultório
de Kaposi, mas com o sucesso, ele ganhou um ateliê no terreno do Hospital Geral de Viena.
Henning participou com trabalhos no 10º Congresso Internacional de Medicina Interna em
Berlim (1890) e no Segundo Congresso Internacional de Dermatologia e Sifiliologia,
organizado por Kaposi em Viena. Durante a Primeira Guerra, produziu próteses faciais para
soldados que sofreram algum tipo de deformação no campo de batalha. Faleceu em 1917, em
15 De acordo com Schnalke (1992), a coleção de moulages do Hôpital Saint Louis é a maior do mundo, contando com mais de quatro mil peças. 16 “Many representants of the young discipline recognized the vividness of moulages, which had a lasting effect on the observers’ memory. They accepted the moulage as a ‘modern’ dermatologic teaching medium that overcame the two-dimensional abstraction of plane illustrations. Many dermatovenereologists left Paris with the wish to establish moulage collections at their own local hospitals”. (Schnalke, 1992: 137)
15
virtude de uma contaminação provocada por um instrumento de trabalho. O negócio de
moldagem em cera foi continuado por seu filho, Theodor Henning.17
A “moulage” teve seu apogeu nas quatro primeiras décadas do século XX e conhece
sua decadência a partir da década de 1950. As peças, usadas no ensino, educação pública e
pesquisa perderam força face ao surgimento de novas tecnologias de documentação e
representação das doenças.18 Muitas coleções foram descartadas ou armazenadas de forma
inadequada. A profissão de modelador médico foi extinta e as técnicas esquecidas. Contudo,
com indicava Schnalke (1993: 462) há mais de uma década, as coleções ceroplásticas foram
recuperadas e transformadas em objeto de estudo de historiadores, que nelas viram
importantes fontes sobre a história das especialidades médicas e da representação do corpo e
de suas doenças.
A ceroplastia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
A ceroplastia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo surgiu graças
ao esforço de João de Aguiar Pupo (1890-1980) e de Flamínio Fávero (1895-1982),
responsáveis, respectivamente, pelas cátedras de dermatologia e medicina legal. (Sampaio,
1980). O responsável pela confecção das peças foi Augusto Esteves (1891-1966), artista
quase autodidata cuja carreira de modelador se iniciou com Vital Brazil no Instituto Butantan,
em 1912.19 Seu trabalho no Butantan consistia em produzir desenhos (ilustrou o livro de Vital
Brasil, A defesa conta o ofidismo) e moldes de cobras em cera. Insatisfeito com os modelos
importados da Alemanha, considerados imperfeitos e frágeis, Brazil incumbiu Esteves de
moldar as peças a serem usadas em ensino e pesquisa. O cientista deixou o Butantan em 1919
e fundou o Instituto Vital Brazil em Niterói, estado do Rio de Janeiro. (Ribeiro, 2001)
17 Mesmo com as dificuldades provocadas pela Primeira Guerra, Theodor Henning conseguiu seguir adiante e, após o conflito, tornou-se o fornecedor de várias clínicas nos países que surgiram após o fim do Império Austro-Húngaro. Com início da Segunda Guerra, a produção de seu ateliê foi interrompida e Henning veio a falecer em 1946. Apesar da predominância dos Hennings, outros moldadores alcançaram alguma notoriedade em Viena: Alphons Raimond Poller (1879-1930) e seu aprendiz Maximilian Blaha (1905-?). Na década de 1930 foi organizado o Museu de Anatomia Patológica junto ao Hospital Geral, que reuniu trabalhos dos Henning, Poller e Blaha. Hoje, de acordo com Schnalke (1992: 140), a instituição tem uma coleção de três mil peças, a segunda maior da Europa. 18 Os modelos feitos de plástico, por exemplo, podiam ser reproduzidos diversas vezes a partir de um negativo. Eram mais resistentes, flexíveis e duradouros, além de apresentarem cores mais fidedignas. Mas mesmo eles não resistiram ao desenvolvimento da fotografia dermatológica (Schnalke, 1993) 19 Esteves casou-se com Vitalina, filha de Vital Brazil, em 1920.
16
Esteves o acompanhou, assumindo tarefas administrativas. De volta a São Paulo, em 1934,
trabalhou no Instituto Pinheiros como desenhista e distribuidor de anúncios.20
A contratação de Augusto Esteves pela Faculdade de Medicina de São Paulo se deu
em 1934. Ocupou inicialmente uma sala conseguida por Aguiar Pupo na Santa Casa de
Misericórdia. Atuou no Instituto Oscar Freire e na cátedra de Medicina Legal sob supervisão
de Flamínio Fávero.21 Entre 1943 e 1959 foi auxiliar técnico da Clínica Dermatológica,
contratado por Aguiar Pupo. Nesse período, dedicou-se intensamente à moulage
dermatológica, produzindo aproximadamente 259 peças.22 Elas representavam
principalmente lesões dermatológicas próprias da nosologia tropical. (Lacaz, 1993).
Entre 1920 e 1930, como assinalam Mota e Schraiber (2009: 347), deu-se início a um
conjunto de transformações corporativas vinculadas à formação dos médicos e suas
especialidades, no qual o pensamento clínico conquistava mais espaço no que tocava às
questões médicas e de saúde pública. Sob influência da Fundação Rockfeller, um novo
modelo de ensino foi introduzido.23 Também é importante situar essa produção em meio ao
colapso da medicina liberal (Schraiber, 1993), modelo caracterizado pelo trabalho artesanal e
desenvolvido no consultório privado. Seguindo as mudanças promovidas na política de saúde
após 1930 e marcadas pela centralização, surgiu a figura do médico assalariado e ganhou
força a discussão sobre as especialidades médicas. (Mota e Schraiber, 2009: 351).
Armou-se o embate entre a “nova” e a “velha” medicina: os novos médicos teriam
esquecido o passado heroico da profissão e não estariam interessados em seus reais
problemas. Outro antagonismo que surgiu no período era aquele entre os “antigos
generalistas” e os “novos especialistas”. Como mostram Mota e Schraiber (2009: 352), esse
confronto “explicitava as mudanças de um profissional de conhecimento integral ao novo
20 Segundo Ribeiro (2001), o Instituto Pinheiros Produtos Terapêuticos S. A. foi criado em 1928 por médicos treinados no Instituto Butantan. Um dos fundadores, Mário Pereira, trabalhou com Vital Brazil em seu Instituto de Niterói, assim como Esteves. O Instituto Pinheiros produzia vacinas e soros, inclusive antiofídicos, chegando a ser responsável por 80% do abastecimento do mercado nacional. Havia peças de cera de autoria de Esteves no instituto, que se perderam quando uma empresa estrangeira o comprou. 21 Segundo relato de Lacaz (1994), Esteves foi admitido no Instituto Oscar Freire em 1937 e produziu 38 peças representando hímens, esgorjamentos, lesões por armas brancas ou de fogo, cicatrizes etc. 22 Em 1980, por iniciativa de Carlos Silva Lacaz (1915-2002), diretor da Faculdade de Medicina entre 1974 e 1978 e idealizador do Museu da instituição, fundado em 1977, criou-se o Museu Ceroplástico Augusto Esteves. Ele foi instalado em um dos saguões do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Faculdade. A exposição foi desmontada anos depois e as peças foram armazenadas por Lacaz no Museu da Faculdade de Medicina, onde ainda hoje permanecem. Na década de 1990 foi produzido um vídeo sobre a obra de Augusto Esteves, idealizado por Lacaz e José Eduardo Costa Martins, naquele momento presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia. A obra foi financiada por um laboratório farmacêutico. (Lacaz, 1993) 23 Entre os pontos mais importantes desse modelo, pode-se destacar: a limitação do número de alunos por turma, ensino em tempo integral, a organização da disciplinas em departamentos e a vinculação do ensino clínico à estrutura do hospital escola. (Mota e Schraiber, 2009: 347). Sobre a atuação da Fundação Rockfeller na Faculdade de Medicina de São Paulo, ver Marinho (2001).
17
profissional, mais técnico e específico, apto às demandas tecno-assistenciais de acesso à
assistência médica nos centros urbanos e rurais e com novas formas de produção social de
serviços”.
O trabalho médico incorporava-se gradativamente ao Estado nos anos 1930 e, nesse
contexto, as áreas médicas lutavam para estabelecer sua autonomia e seus objetos de
intervenção. Como indicam Mota e Schraiber (2009: 354), Flamínio Fávero, titular da cadeira
de Medicina Legal e o primeiro mentor de Augusto Esteves na Faculdade de Medicina, era
um exemplo de médico que buscava legitimar a sua área, argumentando sobre a importância
da medicina legal para outras áreas médicas e não médicas, tais como a higiene e o direito, e
sua afinidade com as novas tecnologias.24
Segundo Gabriela Marinho (2001 apud Mota e Schraiber, 2009: 352), no caso de São
Paulo, a especialidade foi exigida como forma de possibilitar políticas no campo da pesquisa,
da clínica e das organizações profiláticas, que demandavam profissionais com tratamento
específico. Cabe perguntar qual foi o papel da moulage nesse processo de transformação do
ensino médico, e consequentemente da profissão, em São Paulo, mais especificamente sua
relação com a consolidação de especialidades como a medicina legal e a dermatologia, nas
quais atuou Augusto Esteves.
A introdução dessa nova tecnologia, as peças de cera que reproduziam doenças
dermatológicas da nosologia tropical, indica uma consonância entre o ensino da dermatologia
e da medicina legal e as novas instituições que surgiam dentro do campo da saúde em São
Paulo. Uma das linhas de investigação deste trabalho consistirá em verificar as possíveis
relações entre o ensino nessas disciplinas e as novas exigências da profissão na década de
1930.
Pretende-se investigar ainda as relações entre a medicina clínica e o desejo de
implantar na Faculdade de Medicina a “medicina científica” e o papel desempenhado pela
produção e peças de cera nessas relações. Esse tipo de conflito já podia ser visto na ocasião
da fundação do Instituto Soroterápico no Rio de Janeiro e podemos intuir que ele se estendeu
para São Paulo, visto que Oswaldo Cruz, fundador da instituição carioca, dispunha de
interlocutores paulistas afeitos à sua forma de conceber a medicina experimental.
24 “À medicina não compete apenas estudar as moléstias em todas as suas modalidades e estabelecer os diversos processos terap6euticos, orientando-os de molde a restituir ao doente, indivíduo, a saúde perdida, como realiza ou deseja realizar a medicina curativa. Incumbe-lhe também prevenir os agravos à saúde do indivíduo isolado e principalmente dos indivíduos em conjunto, constituídos agrupamentos, esclarecendo os administradores públicos nos problemas de proteção à saúde, mister da higiene, e, finalmente, a missão de orientar os legisladores e magistrados na elaboração e aplicação das leis civis e penais do meio coletivo, como faz a medicina legal. (grifos do autor). (Fávero, 1938: 13 apud Mota e Schraiber, 2009: 354)
18
Resultados esperados
Como já dito acima, além das duas questões mais gerais delineadas, quais sejam, o
papel da modelagem em cera na consolidação de novas especialidades médicas e seu reflexo
no ensino dentro da Faculdade de Medicina de São Paulo, e a elucidação da natureza do
conflito entre medicina clínica e medicina científica e suas consequências para o ensino
médico e a delineamento do profissional da saúde, outros temas adjacentes serão tratados.
Especificamente, sobre a produção das peças ceroplásticas, algumas questões derivadas da
análise da literatura sobre o tema se colocam:
1) como os modelos eram produzidos, ou seja, como reclamavam acuidade e
precisão? Quais as fontes de autoridade (obras escritas, supervisão de médicos
dermatologistas e/ou anatomistas)?
2) quais os possíveis usos dos modelos? Ensino, pesquisa, educação pública?
3) que tradição de moldagem seguia Augusto Esteves? Visto que a moulage médica
era importante desde o século XIX, quais foram as influências sobre a produção da USP?
4) qual a relação do público médico e leigo com as peças (quando dispostas em
exposição)?
5) houve disputas de autoridade envolvendo o julgamento das peças, ou seja, disputas
pela legitimação do material?
6) quais as relações do ensino de dermatologia e medicina legal com o ensino de
autonomia?
Além do desenvolvimento da investigação, o projeto de pós-doutorado também
envolverá a participação em atividades docentes junto à graduação e pós-graduação da
Faculdade de Medicina da USP. Outro objetivo relevante é o estreitamento de relações com
os pesquisadores da linha de pesquisa “Ciências Sociais e Saúde” do programa de pós-
graduação em Medicina Preventiva, onde este projeto vai se abrigar. A investigação também
estará vinculada ao grupo de pesquisa “História da Ciências e História da Saúde”, sediado na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade.25 Este grupo vem
desenvolvendo atividades de pesquisa e intercâmbio intelectual por meio da RedeHiss, Rede
Interdisciplinar em História da Medicina e das Ciências da Saúde em São Paulo, criada em
2008 com o intuito de congregar os pesquisadores que trabalham com temas da história das
ciências e da saúde no estado de São Paulo. Espera-se que a participação nos debates do
25 O grupo está registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil, organizado pelo CNPq (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0067705LV2CNX4).
19
programa de pós-graduação em Medicina Preventiva e nas atividades de ensino e extensão
contribua para o amadurecimento intelectual da investigação.
Além do aprofundamento da discussão teórica presente na literatura sobre o tema, esta
pesquisa vai procurar deslindar as relações entre ensino, pesquisa e formação profissional na
Faculdade de Medicina por meio da análise de fontes primárias como atas das reuniões da
Congregação da instituição e documentos dos departamentos de Dermatologia, Medicina
Legal e Anatomia. Também será conduzido um estudo exploratório de outras possíveis fontes
primárias e secundárias presentes no Museu da Faculdade de Medicina e no Instituto Oscar
Freire, vinculado à Faculdade de Medicina e que conta com obras de Augusto Esteves.26
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