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81 A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo MICHAEL LÖWY Algumas palavras pessoais, a título de introdução. Descobri Rosa Lu- xemburgo por volta de 1955, aos 17 anos, graças ao amigo Paul Singer. Paul me explicou longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos políticos que ele me passou, a crítica do centralismo, a visão revolucionária e democrática de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragten- berg, Hermínio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader [Eder e Emir]. Tínhamos um local de reuniões no centro de São Paulo que media 2 x 5 metros e cuja única ornamentação era um quadro com um desenho que representava Rosa Luxemburgo. Nessa época, recebi de minha mãe um exemplar das cartas de prisão 1 que ela havia trazido de Viena quando emigrou para o Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa da revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a orientação de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 1964*, toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É uma paixão que dura até hoje. Esta é a primeira conferência sobre Rosa Luxemburgo de que par- ticipo no Brasil. Nunca imaginaria, há cinquenta anos, que algum dia haveria tanto interesse por ela no país, em especial em Natal, capital 1 Rosa Luxemburgo, Briefe (Berlim, Verlag der Jugend-Internationale, 1927). * Publicada no Brasil como A teoria da revolução no jovem Marx (Petrópolis, Vozes, 2002). A C E N T E L H A S E A C E N D E N A A Ç Ã O M I C H A E L L Ö W Y Margem 15 Final.indd 81 Margem 15 Final.indd 81 18/11/2010 19:08:41 18/11/2010 19:08:41

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A centelha se acende na ação:a fi losofi a da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo

MICHAEL LÖWY

Algumas palavras pessoais, a título de introdução. Descobri Rosa Lu-xemburgo por volta de 1955, aos 17 anos, graças ao amigo Paul Singer. Paul me explicou longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos políticos que ele me passou, a crítica do centralismo, a visão revolucionária e democrática de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragten-berg, Hermínio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader [Eder e Emir]. Tínhamos um local de reuniões no centro de São Paulo que media 2 x 5 metros e cuja única ornamentação era um quadro com um desenho que representava Rosa Luxemburgo. Nessa época, recebi de minha mãe um exemplar das cartas de prisão1 que ela havia trazido de Viena quando emigrou para o Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa da revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a orientação de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 1964*, toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É uma paixão que dura até hoje.

Esta é a primeira conferência sobre Rosa Luxemburgo de que par-ticipo no Brasil. Nunca imaginaria, há cinquenta anos, que algum dia haveria tanto interesse por ela no país, em especial em Natal, capital

1 Rosa Luxemburgo, Briefe (Berlim, Verlag der Jugend-Internationale, 1927).

* Publicada no Brasil como A teoria da revolução no jovem Marx (Petrópolis, Vozes, 2002).

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do Rio Grande do Norte. É verdade que esta cidade tem um lugar especial na história do movimento operário brasileiro: foi aqui a úni-ca vez que, em nome do proletariado, um grupo de revolucionários (da Aliança Nacional Libertadora) tomou e assumiu o poder durante uma semana. Não conseguiram fazer muita coisa, mas pelo menos declararam a gratuidade dos transportes públicos e o povo adorou tomar o bonde de graça...

Quando publicou as “Teses sobre Feuerbach”* de Marx, em 1888, Engels qualifi cou-as de “primeiro documento em que está depositado o germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com efeito, nesse texto Marx supera dialeticamente – a famosa Aufhebung, negação/conservação/superação – o materialismo e o idealismo anteriores e formula uma nova teoria, que se poderia designar como fi losofi a da práxis. Enquanto os materialistas franceses insistiam que é necessário mudar as circunstâncias para que os seres humanos se transformem, os idealistas alemães acreditavam que, ao promover uma nova cons-ciência nos indivíduos, modifi ca-se em seguida a sociedade. Contra essas duas percepções unilaterais, que conduziam ao impasse – e à busca de um “Grande Educador” ou Salvador Supremo – Marx afi r-ma na Tese III: “A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo [Selbstveränderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis revolucionária”. Em outros termos: na prática revolucionária, na ação coletiva emancipadora, o sujeito histórico – as classes opri-midas – transforma ao mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência. Marx volta a essa problemática na Ideologia alemã, na qual escreve:

A revolução, portanto, não é apenas necessária porque não há outro meio de derrubar a classe dominante, mas porque a classe subversiva [ stürzende ] pode ter êxito apenas por meio de uma revolução para livrar-se de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz de efetuar uma nova fundação da sociedade.2

Isso signifi ca que a autoemancipação revolucionária é a única forma possível de libertação: é só por sua própria práxis, por sua experiência na ação, que as classes oprimidas podem transformar sua

* Em A ideologia alemã, São Paulo, Boitempo, 2007.2 Karl Marx e Friedrich Engels, L’idéologie allemande (Paris, Éditions Sociales, 1968), VI, p. 243. [Ed. bras.: A ideologia alemã, São Paulo, Boitempo, 2007.]

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consciência, ao mesmo tempo que subvertem o poder do capital. É verdade que em textos posteriores, como no famoso prefácio de 1857 à Contribuição à crítica da economia política*, encontramos uma versão muito mais determinista, que vê a revolução como resultado inevitável da contradição entre forças e relações de produção, mas o princípio da autoemancipação dos trabalhadores continua a inspirar o pensamento político de Marx.

É Antonio Gramsci, nos Cadernos do cárcere **, que vai utilizar pela primeira vez a expressão “fi losofi a da práxis” para referir-se ao marxismo. Pretendem alguns que isso seria apenas uma astúcia para enganar seus carcereiros fascistas, que poderiam desconfi ar de qual-quer referência a Marx; mas esse argumento não explica porque ele não usou outra fórmula, como “dialética racional” ou “fi losofi a crítica”. Na verdade, com essa expressão, ele defi ne de modo preciso e coe-rente o que distingue o marxismo como visão de mundo específi ca e distancia-se radicalmente das leituras positivistas e evolucionistas do materialismo histórico.

Poucos marxistas do século XX estiveram tão próximos do espírito dessa fi losofi a marxista da práxis como Rosa Luxemburgo. Claro, ela não escrevia textos fi losófi cos nem elaborava teorias sistemáticas – como observa com razão Isabel Loureiro: “suas ideias, esparsas em artigos de jornal, brochuras, discursos, cartas [...] são muito mais res-postas imediatas à conjuntura do que uma teoria lógica e internamente coerente”3. Ainda assim, a fi losofi a da práxis, que ela interpreta de maneira original e criativa, é o fi o condutor – no sentido elétrico da palavra – de sua obra e de sua ação como revolucionária. Mas seu pensamento está longe de ser estático: é uma refl exão em movimento, que se enriquece com a experiência histórica. Tentaremos reconstituir a evolução de seu pensamento por meio de alguns exemplos.

É verdade que seus escritos são atravessados por uma tensão entre o determinismo histórico – a inevitabilidade da derrocada do capi-talismo – e o voluntarismo da ação revolucionária. Isso se aplica em particular a seus primeiros trabalhos, anteriores a 1914; Reforma ou revolução?, de 1899, obra com que Rosa Luxemburgo se tornou co-nhecida no movimento operário alemão e internacional, é um exemplo

* São Paulo, Expressão Popular, 2007.

** 3. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007.3 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburgo: os dilemas da ação revolucionária (São Paulo, Unesp, 1995), p. 23.

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claro dessa ambivalência. Contra Bernstein, insiste que a evolução do capitalismo se orienta no sentido de um desmoronamento (Zusammen-bruch) e que esse desmoronamento é “a via histórica que conduz à realização da sociedade socialista”. Trata-se, em última análise, de uma variante socialista da ideologia do progresso linear e inevitável que dominou o pensamento ocidental desde a Filosofi a da Ilustração. O que salva seu argumento de um economicismo fatalista é a pedagogia revolucionária da ação: “Somente no curso [...] de lutas demoradas e tenazes, poderá o proletariado chegar ao grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória defi nitiva da revolução”4.

Essa pedagogia dialética da luta é também um dos principais eixos da polêmica com Lenin, em 1904:

É somente no curso da luta que o exército do proletariado se recruta e que ele toma consciência dos fi ns dessa luta. A organização, a conscien-tização [Aufklärung] e o combate não são fases distintas, mecanicamente separadas no tempo [...] mas apenas aspectos diversos de um único e mesmo processo.

É claro que a classe pode se equivocar no curso desse combate, mas, em última análise, “os erros cometidos por um movimento real-mente revolucionário são histórica e infi nitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘Comitê Central’”.

A autoemancipação dos oprimidos implica a autotransformação da classe revolucionária por sua experiência prática; esta, por sua vez, produz não só a consciência – tema clássico do marxismo –, mas também a vontade:

O movimento histórico-universal [Weltgeschichtlich] do proletariado até sua vitória é um processo cuja particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira vez na história, as próprias massas populares impõem sua vontade contra as classes dominantes [...]. Entretanto, as massas não podem conquistar essa vontade senão na luta cotidiana com a ordem estabelecida, isto é, no quadro dessa ordem.5

4 Rosa Luxemburgo, Reforma ou revolução? (São Paulo, Expressão Popular, 1999), p. 24, 41 e 105. Cito a tradução brasileira, de Lívio Xavier, bela fi gura de militante e intelectual que ainda cheguei a conhecer.5 Idem, “Organisationsfragen der russischen Sozialdemokratie” (1904), em Die Russische Re-volution (Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1963), p. 27-8, 42 e 44. [Ed. bras.: A Revolução Russa, Petrópolis, Vozes, 1991.]

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Poderíamos comparar a visão de Lenin com a de Rosa Luxemburgo na seguinte imagem: para Vladimir Ilitch, redator do jornal Iskra, a cen-telha revolucionária é trazida pela vanguarda política organizada, de fora para dentro das lutas espontâneas do proletariado; para a revolucionária judeu-polaca, a centelha da consciência e da vontade revolucionária se acende no combate, na ação de massas. É verdade que sua visão de partido como expressão orgânica da classe correspondia mais à situação na Alemanha do que na Rússia ou na Polônia, onde já se colocava a questão da diversidade de partidos em relação ao socialismo.

Os eventos revolucionários de 1905 no Império Russo czarista vão amplamente confi rmar Rosa Luxemburgo em sua convicção de que o processo de tomada de consciência das massas operárias resulta menos da atividade “esclarecedora” do partido do que da experiência de ação direta e autônoma dos trabalhadores:

É o proletariado que vai derrubar o absolutismo na Rússia. Mas o pro-letariado necessita para isso de um alto grau de educação política, de consciência de classe e de organização. Todas essas condições não podem surgir da leitura de panfl etos e brochuras, mas somente na escola da luta e na luta política viva, no curso da revolução em marcha. [...] O súbito levantamento geral [Generalerhebung ] do proletariado em janeiro, sob a forte impulsão dos acontecimentos de São Petersburgo, foi, em sua ação dirigida para o exterior, um ato político de declaração de guerra revolucionária ao absolutismo. Mas essa primeira ação geral direta da classe teve um impacto ainda maior numa direção interna, despertando pela primeira vez, como que por um choque elétrico [einen elektrischen Schlag ], o sentimento e a consciência de classe em milhões e milhões de indivíduos.6

É verdade que a fórmula polêmica sobre “panfl etos e brochu-ras” parece subestimar a importância da teoria revolucionária nesse

6 Idem, “Massenstreik, Partei und Gewerkschaften”, em Gewerkschaftskampf und Massenstreik (Berlim, Vereinigung Internationaler Verlagsanstalten, 1928, p. 426-7) [ed. bras.: Greve de massas, partido e sindicatos, São Paulo, Kayros, 1979]. Trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo sobre a greve de massas, organizada por seu excelente discípulo e biógrafo Paul Frölich, excluído nos anos 1920 do Partido Comunista. Consegui esse livro num sebo em Tel-Aviv; o exemplar tinha o carimbo do Kibutz Ein Harod, “Seminário de Ideias, Biblioteca Central”. O proprietário do livro era, sem dúvida, um esquerdista judeu-alemão que emigrou para a Palestina em 1933 e entregou sua biblioteca ao kibutz onde se instalou. Com a morte dos velhos militantes do kibutz, e como a nova geração não lê alemão, a biblioteca vendeu ao sebo seu estoque de livros na língua de Marx.

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processo; por outro lado, a atividade política de Rosa Luxemburgo, que consistia em grande parte na redação de artigos de jornais e de brochuras – sem falar de suas obras teóricas no campo da economia política – demonstra, sem dar margem a dúvidas, o signifi cado decisivo que ela atribuía ao trabalho teórico e à polêmica política no processo de preparação da revolução.

Na famosa brochura de 1906 sobre a greve de massas, Rosa Lu-xemburgo ainda utiliza os argumentos deterministas tradicionais: a revolução ocorrera “com a necessidade de uma lei da natureza”. Mas sua visão concreta do processo revolucionário coincide com a teoria da revolução de Marx, tal como ele a desenvolve na Ideologia alemã, obra que ela não conhecia, já que só foi publicada depois de sua morte: a consciência revolucionária não pode se generalizar senão no curso de um movimento “prático”, a transformação “maciça” dos oprimidos só pode se generalizar no curso da própria revolução. A categoria da práxis – que, para ela e para Marx, é a unidade dialética entre o objetivo e o subjetivo, a mediação pela qual a classe em si torna-se para si – permite superar o dilema paralisante e metafísico da social--democracia alemã, entre o moralismo abstrato de Bernstein e o econo-micismo mecânico de Kautsky: enquanto, para o primeiro, a mudança “subjetiva”, moral e espiritual dos “homens” é a condição do advento da justiça social, para o segundo é a evolução econômica objetiva que leva “fatalmente” ao socialismo. Isso permite entender melhor por que Rosa Luxemburgo se opunha não só aos revisionistas neokantia-nos, mas também, a partir de 1905, à estratégia de “atentismo” passivo defendida pelo assim chamado “centro ortodoxo” do partido.

Essa mesma visão dialética da práxis é que lhe permite superar o tradicional dualismo encarnado no Programa de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão entre as reformas (ou o “programa míni-mo”) e a revolução (ou o “objetivo fi nal”). Pela estratégia da greve de massas que ela propõe em 1906 – contra a burocracia sindical – e em 1910 – contra Kautsky –, Rosa Luxemburgo encontra precisamente o caminho capaz de transformar as lutas econômicas ou o combate pelo sufrágio universal num movimento revolucionário geral.

Ao contrário de Lenin, que distingue a “consciência sindical” (trade--unionista) da “consciência social-democrata”, ela sugere uma distin-ção entre a consciência teórica latente, característica do movimento operário no período de dominação do parlamentarismo burguês, e a consciência prática e ativa, que surge no processo revolucionário, quando as próprias massas, e não apenas os deputados e dirigentes

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do partido, aparecem na cena política, cristalizando sua “educação ideológica” diretamente na práxis; é graças a essa consciência prático--ativa que as camadas menos organizadas e mais atrasadas podem se tornar, em período de luta revolucionária, o elemento mais radical. Dessa premissa decorre sua crítica àqueles que baseiam sua estratégia política numa superestimação do papel da organização na luta de classes – que se acompanha em geral da subestimação do proletariado não organizado –, esquecendo a ação pedagógica da luta revolucioná-ria: “Seis meses de revolução farão mais para a educação das massas atualmente não organizadas do que dez anos de reuniões públicas e distribuição de panfl etos”7.

Então, Rosa Luxemburgo é espontaneísta? Não é bem assim. Nes-sa brochura sobre Greve de massas, partido e sindicatos (1906), ela insiste que o papel da “vanguarda consciente” não é esperar “com fatalismo” que o movimento popular espontâneo “caia do céu”. Ao contrário, seu papel é precisamente “preceder [vorauseilen ] a evolução das coisas e tentar acelerá-la”. Ela reconhece que o partido socialista deve tomar “a direção política” da greve de massas, o que consiste em “dar à batalha sua palavra de ordem, sua tendência, assim como a tática da luta política”; chega a afi rmar que a organização socialista é “a vanguarda [Vorhut ] dirigente de todo o povo trabalhador” e que “a clareza política, a força, a unidade do movimento resultam preci-samente dessa organização”8.

É interessante observar que a organização polonesa dirigida por Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches, o Partido Social-Democrata do Rei-no da Polônia e Lituânia (SDKPiL), clandestina e revolucionária, tinha mais semelhanças com o partido bolchevique do que com a social--democracia alemã. Deve-se também levar em conta, na discussão das concepções organizacionais de Rosa Luxemburgo, suas teses sobre a Internacional como partido mundial centralizado e disciplinado, pro-postas num documento redigido em 1914, após o colapso da Segunda Internacional. Por uma ironia da história, Karl Liebknecht, numa carta à amiga Rosa Luxemburgo, tacha essa concepção da nova Internacio-nal como “demasiadamente centralista e mecânica”, com “‘disciplina’ em excesso e muito pouca espontaneidade”, considerando as massas “demasiados instrumentos da ação, não portadoras de vontade; mais

7 Ibidem, p. 455-7.8 Ibidem, p. 445 e 457.

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como instrumentos da ação desejados e decididos pela Internacional, e menos desejados e decididos por elas mesmas”9.

O otimismo determinista (econômico) da teoria do Zusammen-bruch, a derrocada do capitalismo como vítima de suas próprias contradições, não desaparece de seus escritos, mas, ao contrário, encontra-se no centro de sua grande obra econômica A acumulação do capital *, de 1911. O texto que vai superar essa visão tradicional do movimento socialista do começo do século é a brochura A crise da social-democracia, escrita na prisão em 1915, publicada na Suíça em janeiro de 1916 e assinada com o pseudônimo “Junius”. Esse documen-to, graças à palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, é um marco na história do pensamento marxista. Curiosamente, o argumento de Rosa Luxemburgo começa referindo-se às “leis inalteráveis da história”; ela observa que a ação do proletariado “contribui para determinar a história”, mas parece acreditar que se trata apenas de “acelerar ou retardar” o processo histórico. Até aqui, nada de novo!

Logo em seguida, porém, ela compara a vitória do proletariado a “um salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade”, acrescentando: esse salto não será possível “se a faísca incendiária [zündende Funke ] da vontade consciente das massas não surgir das circunstâncias materiais que são fruto do desenvolvimento anterior”. Aqui aparece então a famosa Iskra, essa centelha da vontade revolu-cionária que é capaz de fazer explodir a pólvora seca das condições materiais. Mas o que produz essa zündende Funke ? É graças a uma “grande cadeia de poderosas lutas” que “o proletariado internacional fará seu aprendizado sob a direção da social-democracia e tentará to-mar em suas mãos sua própria história [seine Geschichte ]”10. Em outras palavras: é na experiência prática da luta que se acende a centelha da consciência revolucionária dos oprimidos e explorados.

Ao introduzir a expressão “socialismo ou barbárie”, Junius refere-se à autoridade de Engels num escrito de “quarenta anos atrás” (o Anti--Dühring): “Friedrich Engels disse certa vez: ‘A sociedade burguesa

9 Ver Karl Liebknecht, “À Rosa Luxemburg: remarques à propos de son projet de thèses pour le groupe ‘Internationale’”, Partisans, n. 45, jan. 1969, p. 113.

* 2. ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985. 10 Rosa Luxemburgo, Brochura Junius, em Rosa, a vermelha (2. ed., São Paulo, Busca Vida, 1988), p. 114-5, corrigido pelo original alemão Die Krise der Sozialdemokratie von Junius (Bern, Unions-druckerei, 1916), p. 11. Essa cópia da edição original pertenceu a meu professor e orientador Lucien Goldmann; recebi-a recentemente de sua viúva, Annie Goldmann.

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acha-se num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie’”11. Na verdade, o que disse Engels é bastante diferente:

As forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista mo-derno, assim como o sistema de repartição dos bens que ele criou, entraram em contradição fl agrante com o modo de produção mesmo, e isso a tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer.12

O argumento de Engels – essencialmente econômico e não político, como o de Junius – é bem mais retórico, uma espécie de demonstração por absurdo da necessidade do socialismo, senão a sociedade moderna vai “perecer” – fórmula vaga que não se sabe bem a que se refere. Na verdade, foi Rosa Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno da palavra, a expressão “socialismo ou barbárie”, que teria tanto impacto no curso do século XX. Se se refere a Engels, é talvez para tentar dar legitimidade maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra – e o desmoronamento do movimento operário internacional, em agosto de 1914 – que terminou abalando sua convicção na vitória inevitável do socialismo. Nos parágrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista inovador:

Nós nos encontramos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, diante da terrível opção: ou triunfa o imperialismo, provocando a des-truição de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperia-lismo, seus métodos, suas guerras. Tal é o dilema da história universal, sua alternativa de ferro, sua balança oscilando no ponto de equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado.

Pode-se discutir o signifi cado do conceito de “barbárie”: trata-se, sem dúvida, de uma barbárie moderna, “civilizada”, portanto a com-paração com a Roma Antiga é pouco útil e, nesse caso, a afi rmação da brochura Junius revela-se profética: o fascismo alemão, manifestação suprema da barbárie moderna, resultou da derrota do socialismo. Con-tudo, o mais importante na fórmula “socialismo ou barbárie” é a palavra “ou”: trata-se do princípio de uma história aberta, de uma alternativa ainda não decidida (pelas “leis da história” ou da economia), que

11 Ibidem, p. 115.12 Friedrich Engels, Anti-Dühring (Paris, Éditions Sociales, 1950), p. 189.

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depende, em última análise, de fatores “subjetivos”: a consciência, a decisão, a vontade, a iniciativa, a ação, a práxis revolucionária. Não insisto mais porque escrevi já há muitos anos um artigo sobre essa questão13. Como aponta Isabel Loureiro em seu belo livro, é verdade que mesmo na brochura Junius, assim como em textos posteriores de Rosa Luxemburgo, ainda encontramos referências ao colapso inevitável do capitalismo, à “dialética da história” e à “necessidade histórica do socialismo”14. Mas de alguma maneira, com a fórmula “socialismo ou barbárie”, colocavam-se as bases de uma outra concepção da “dialé-tica da história”, distinta do determinismo econômico e da ideologia iluminista do progresso inevitável.

Voltamos a encontrar a fi losofi a da práxis no centro da polêmica de 1918 sobre a Revolução Russa – outro texto capital redigido atrás das grades da prisão. O teor desse documento é conhecido: de um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenin e Trotski à frente, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revolução de Outubro; de outro, um conjunto de críticas, algumas bastante discutí-veis, como as questões agrária e nacional, e outras, como o capítulo da democracia, que aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionária judeu-polaco-alemã é, acima de tudo, a supressão das liberdades democráticas pelos bolcheviques: liberdade de imprensa, de associação e de reunião, que são precisamente a garantia da “atividade política das massas operárias”; sem elas, “é inconcebível a dominação das grandes massas populares”. As tarefas gigantescas da transição ao socialismo – “às quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resolução” – não podem ser realizadas sem “uma intensa educação política das massas e uma acumulação de experiências”, impossíveis sem liberdades democráticas. A construção de uma nova sociedade é uma “terra virgem”, que levanta “problemas para milênios”; ora, “só a experiência é capaz de trazer as correções necessárias e abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto histórico “nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das massas populares ( Volksmassen) deve participar dessa experiência, de outro modo “o socialismo é decretado, outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde”. Para os inevitáveis erros do processo, “o único sol curativo e purifi cador é a própria revolução e seu princípio

13 Michael Löwy, “O signifi cado metodológico da fórmula ‘socialismo ou barbárie’”, em Método dialético e teoria política (3. ed., São Paulo, Paz e Terra, 1985).14 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.

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renovador, a vida espiritual, a atividade e a autorresponsabilidade [Selbstverantwortung ] das massas que surgem com ela e formam-se na mais ampla liberdade política”15.

Esse argumento é muito mais importante do que o debate sobre a Assembleia Constituinte, no qual se concentraram as objeções “leni-nistas” ao texto de 1918. Sem liberdades democráticas é impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação popular pela expe-riência prática, a autoemancipação revolucionária dos oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe trabalhadora.

György Lukács, em seu importante ensaio “Rosa Luxemburgo mar-xista”, de janeiro de 1921, mostra com grande agudeza como, graças à unidade da teoria e da práxis (formulada “por Marx em suas Teses sobre Feuerbach”), Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da impotência dos movimentos social-democratas, “o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das puras intenções”. O que signifi ca essa unidade dialética?

Da mesma forma que o proletariado como classe não pode conquistar e guardar sua consciência de classe, elevar-se ao nível de sua tarefa his-tórica (objetivamente dada) senão no combate e na ação, o partido e o militante individual não podem apropriar-se realmente de sua teoria senão ao passar essa unidade em sua práxis.16

Portanto, é surpreendente que, apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukács redija o ensaio “Comentários críticos sobre a crítica da Revolução Russa em Rosa Luxemburgo”, que também vai fi gurar em Historia e consciência de classe e em que ele rejeita em bloco o conjunto dos comentários dissidentes da fundadora da Liga Espártaco, afi rmando, ainda por cima, que ela “se representa a revolu-ção proletária nas formas estruturais das revoluções burguesas”17 – uma acusação pouco crível, como mostra Isabel Loureiro18. Como explicar a diferença, no tom e no conteúdo, entre o ensaio de janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma conversão rápida ao leninismo ortodoxo? Possivelmente, mas também entra em jogo a posição de Lukács em re-

15 Rosa Luxemburgo, “A Revolução Russa”, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22, corrigido pelo original alemão, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.16 György Lukács, “Rosa Luxemburg, marxiste”, em Histoire et conscience de classe (Paris, Minuit, 1960), p. 65. [Ed. bras.: História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003.]17 Ibidem, p. 321.18 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.

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lação aos debates do comunismo alemão. Paul Levi, principal dirigente do Partido Comunista Alemão, havia se oposto à “Ação de Março de 1921”, uma tentativa fracassada de levante comunista na Alemanha, que teve o apoio entusiasmado de Lukács, mas foi criticada por Lenin. Excluído do partido, Paul Levi decide publicar em 1922 o manuscrito sobre a Revolução Russa, que Rosa Luxemburgo havia lhe confi ado em 1918. A polêmica de Lukács com respeito a esse documento é também, indiretamente, um acerto de contas com Paul Levi.

Na verdade, o capítulo sobre democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo é um dos textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da teoria crítica e do pensamento revolucionário no século XX. E difícil imaginar uma refundação do socialismo no sé-culo XXI que não leve em conta os argumentos desenvolvidos nessas páginas febris. Os representantes mais inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest Mandel, reconheciam que essa crítica de 1918 ao bolchevismo, no que concerne à questão das liberdades democrá-ticas, era, em última análise, justifi cada. É óbvio que a democracia a que se refere Rosa Luxemburgo é a exercida pelos trabalhadores num processo revolucionário, e não a “democracia de baixa intensidade” do parlamentarismo burguês, na qual as decisões importantes são tomadas por banqueiros, empresários, militares e tecnocratas.

A zündende Funke, a centelha incendiária de Rosa Luxemburgo, brilhou uma última vez em dezembro de 1918, na conferência diante do congresso de fundação do Partido Comunista Alemão (Liga Espártaco). Ainda encontramos nesse texto referências à “lei do desenvolvimento objetivo e necessário da revolução socialista”, mas trata-se, na realida-de, da “amarga experiência” que várias forças do movimento operário têm de fazer antes de encontrar o caminho revolucionário. As últimas palavras dessa memorável conferência são diretamente inspiradas pela perspectiva da práxis autoemancipadora dos oprimidos:

É só exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. Não há outra maneira de ensinar-lhe. Nós já superamos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado. Aparentemente esse tempo ainda não passou para os marxistas da escola de Kautsky. Educar as massas queria dizer: fazer-lhes discursos, difundir panfl etos e brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não necessita de nada disso. Sua educação se faz quando eles passam à ação [zur Tat greifen].

Aqui Rosa Luxemburgo vai se referir a uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat! No começo de tudo não se encontra

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o Verbo, mas a Ação! Nas palavras da revolucionária marxista: “No começo era a Ação, tal é aqui nossa divisa; e a ação é quando os conselhos de operários e de soldados se sentem chamados a tornar-se a única força pública do país e aprendem a sê-lo”19. Poucos dias depois, ela seria assassinada pelos paramilitares (Freikorps) mobili-zados pelo governo social-democrata contra o levante dos operários espartaquistas de Berlim.

Rosa Luxemburgo não era infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e suas ideias não constituem um sistema teórico fechado, uma doutrina dogmática para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas, sem dúvida, seu pen-samento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina capitalista que nos tritura. Não é por acaso que ela se tornou nos últimos anos, em particular na América Latina, uma das referên-cias mais importantes do debate acerca de um socialismo do século XXI, capaz de superar os impasses das experiências reivindicando o socialismo do século passado, seja a social-democracia, seja o stali-nismo. Sua oposição irreconciliável ao capitalismo e ao imperialismo, sua concepção de um socialismo revolucionário e ao mesmo tempo democrático, baseado na práxis autoemancipadora dos trabalhadores, na autoeducação pela experiência e pela ação das grandes massas populares, é de uma impressionante atualidade, sobretudo aqui, no Brasil e na América Latina.

Dizem os jornais que recentemente, noventa anos após sua morte, seu corpo teria sido encontrado. Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra vez, não consegui-rão libertar-se de seu espectro. A centelha incendiária de suas ideias ninguém conseguirá apagar.

19 Rosa Luxemburgo, “Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund)”, em Ausgewählten Reden und Schriften (Berlim, Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edição que estou utilizando aqui tem uma história curiosa: trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo editada pelo “Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK der SED”, com prefácio de Wilhelm Pieck, dirigente stalinista da República Democrática Alemã, e introduções de Lenin e Stalin, com críticas aos “erros” da autora. Comprei esse exemplar num sebo e descobri que trazia uma dedicatória em inglês, datada de 1957, assinada por “Tamara e Isaac” – sem dúvida, Tamara e Isaac Deutscher –, em que pediam desculpas por não terem encontrado uma edição sem todas essas supérfl uas “introduções”!

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Celular móvel: outra morada de entretenimento

ANITA SIMIS

Muito já se escreveu sobre o avanço das comunicações no en-tretenimento, mas aqui privilegiamos sua conexão com observações do início do século passado feitas por Kracauer. Trata-se apenas de indicar algumas questões para refl etirmos sobre as novas formas de produção e difusão do entretenimento, em particular aquelas proporcionadas pelo celular móvel1, no contexto da convergência entre informática e telecomunicações e entre linguagens do áudio, do visual e da escrita.

Todos pressentem a pujante presença da indústria do entreteni-mento em nossos dias. Sendo um conjunto de atividades que o ser humano pratica em busca do prazer, o entretenimento diz respeito ao hedonismo, mas nem sempre no intuito de desviar o espírito para coisas diferentes das que o preocupam. Pode ser uma distração, um passatempo ou um esporte, mas, concordando com Brecht, não apenas isso. Há também aqueles que potencializam nossa força de imaginação.

1 O celular móvel, ou serviço de telefonia móvel, antes denominado Serviço Móvel Celular, foi instalado no Brasil entre 1991 e 1992 por meio do Sistema Telebrás e suas agregadas, que, por sua vez, com o fi m da estrutura baseada em prestadoras estatais, em 1998, transformou-se em serviço privado. Em novembro de 2009, o número de linhas de telefones celulares no Brasil chegou a 169,8 milhões, isto é, cerca de 88% dos brasileiros possuíam uma. É possível que a telefonia celular no Brasil já tenha atingido a cobertura de 100% dos municípios, como aponta o Atlas Brasileiro de Telecomunicações 2010, publicação da Teletime, que consolida informações da Anatel com dados das próprias operadoras.

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Evidentemente, não estamos aqui desconsiderando as teorias frankfurtianas sobre indústria cultural. De fato, no capitalismo tardio, diversão é prolongamento do trabalho, serve para escapar ao proces-so de trabalho mecanizado e ao mesmo tempo para estar de novo em condições de enfrentá-lo. Como apontam Adorno e Horkheimer, “divertir-se signifi ca estar de acordo. [...] Divertir-se signifi ca sempre: não ter de pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado”2. Aqui procuramos incorporar essa análise para refl etir sobre os efeitos das novas mídias na cultura de massa, mas também para indagar com aqueles que apontam para a importância das trans-formações da percepção e da experiência social das massas: o que condiz com outras lógicas que não apenas com a do capital?3

Hoje, os “espetáculos de grandiosidade bem acabada”, os “espetá-culos completos” a que Kracauer se referia em seu texto como culto ao divertimento ou culto da distração4, restringem-se a um público proporcionalmente cada vez menor, a uma elite. E, paradoxalmente, a “obra de arte total (Gesamtkunstwerk) dos efeitos” desencadeia-se hoje com todos os meios diante de todos os sentidos. A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos no Ninho de Pássaro, o Estádio Olímpico Nacional chinês, em 2008, foi palco para poucos (90 mil expecta dores) e visto no mundo todo (4 bilhões de telespectadores). Shows são apresentados para alguns, mas as músicas são vendidas para a massa em suportes diversos ou pela internet. A obra de arte total dos efeitos tornou-se vitrine, marketing. As salas de cinema oferecem apetrechos tecnológicos e seus programas compõem-se de fi lmes com inúmeros efeitos que já não podem ser considerados especiais, mas integrantes do que já está sendo classifi cado de divertimento com padrão de qualidade. E, no entanto, são únicos a cada apresentação, ao contrário, sua exibição/realização, desde seu lançamento, é reproduzi-da em série e pressupõe sua venda em massa: confl uem das salas para o DVD, deste para a televisão (pay per view, aberta, por assinatura) e na sequência para as telinhas dos computadores e dos celulares móveis, ajustando-se e conformando o “homogêneo público cosmopolita”, que, como ressalta Kracauer, “do diretor de banco aos auxiliares de

2 Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento: fragmentos fi losófi cos (Rio de Janeiro, Zahar, 1985), p. 128 e 135.3 Ver Michèle e Armand Mattelart, Pensar sobre los medios: comunicación y crítica social (Madri, Fundesco, 1987), p. 120.4 Siegfried Kracauer, O ornamento da massa (São Paulo, Cosac & Naify, 2009), p. 344.

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comércio, da diva à datilógrafa, sente do mesmo modo”5. Com o ce-lular móvel, a difusão de conteúdo ocupa a jornada das massas numa intensidade portátil e contínua6. Se nos “espetáculos a excitação dos sentidos se sucede sem interrupção, de modo que não haja espaço para a mínima refl exão”7, agora as interrupções simplesmente desaparecem e a ocupação, na maior parte sem real ou consistente preenchimento, ocorre por meio do entretenimento. O fi lme já não precisa negar a sala escura e ao mesmo tempo ocultar sua associação com o jogo de luzes que defi ne o próprio cinema: o fi lme mesmo ou seu congênere – o audiovisual – já se cola à vida, sempre ao alcance das mãos e ao toque dos dedos para preencher todo momento ocioso.

A questão que se coloca é: como recuperar aquilo que se perdeu com a alienação no trabalho e sua desumanização, sem pretender recuperá-lo apenas na mesma esfera superfi cial a que estamos subme-tidos, sem fazer corresponder necessariamente a forma da atividade da empresa à forma do entretenimento? O crítico de arte Pierre Crapez, citando João Bosco Renaud – e seu objeto que aumenta o fl uxo, o “desentupidor” – , diz: “O lúdico mescla-se aqui ao cinismo [...] (‘o plunger é ameaçador porque desentope a dor’), como um exército avança como para ‘limpar o caminho’”8. Desentupir para aumentar o fl uxo do pensar e do existir atual. Com sua estratégia humorística, pretende desentupir energias reprimidas.

Poderíamos desentupir e liberar o fl uxo de energias revigoradas classifi cando comicamente obras audiovisuais culturais e educativas signifi cativas como outras com fi nalidades diversas. Como tornar o divertimento não um fi m em si mesmo, mas capaz de nos levar a identifi car obras educativas, informativas, de propaganda ideológica ou religiosa, publicidade etc., seja nos cerca de 3 mil títulos cinema-tográfi cos anuais produzidos no mundo e projetados nas salas, seja

5 Ibidem, p. 345.6 Serviço móvel que disponibiliza a venda de conteúdos digitais de todos os tipos, indepen-dentemente do canal de ativação. Nem todos os modelos possuem a capacidade de difundir imagens. Atualmente, no Brasil, os usuários de celulares 3G, que permitem transmissão de voz e de dados a longa distância, já superam a marca dos 7 milhões. É ainda um número pequeno em comparação com o de portadores de celular. Mas, nos Estados Unidos, uma pesquisa sobre uso e compra de conteúdos para celular revela que o conteúdo premium tem apelo de massa e atinge diversas idades; 40% do público de 18-24 e 38% do público de 25-32 anos gastam de 8 a 10 dólares por mês em conteúdo para celular.7 Siegfried Kracauer, O ornamento da massa, cit., p. 346.8 Pierre Crapez, 2009.

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nos restantes 95% de todos os outros audiovisuais que consumimos em grandes e pequenas telas? A transmissão de conteúdo na telinha do celular móvel, preenchendo todo o tempo ocioso, desde o da curta espera do elevador ao da chegada do metrô, pode levar seu público a encontrar impressões sensoriais à luz de sua própria realidade? Podem pressagiar a milhões de olhos e de ouvidos de modo exato e claro a desordem da sociedade? Segundo Kracauer:

Frequentemente, pelas ruas de Berlim, somos surpreendidos pela ideia de que tudo venha um dia, improvisadamente, a rachar ao meio. Também as distrações [divertimentos], para os quais o público é compelido, deveriam operar do mesmo modo.Geralmente elas não conseguem alcançar esse efeito; as apresentações dos grandes cineteatros comprovam-no exemplarmente.9

Parafraseando Kracauer, podemos dizer que não conseguem alcan-çar esse efeito porque o divertimento está envolvido por uma unidade que já não existe mais. Tendências reacionárias – com o auxílio dos elementos da exterioridade – colam pedaços que deveriam ter sen-tido se fossem apresentados justamente como cópia da incontrolada confusão do nosso mundo, e não o contrário, como unidade. Mas sem o auxílio dos âmbitos arquitetônicos para acentuar a dignidade própria das instituições artísticas superiores, como poderíamos situar hoje o entretenimento veiculado em qualquer tempo ocioso por meio de celulares móveis?

Por outro lado, essa obsessão de estar em contato, de receber in-formações instantâneas e solúveis, de estar conectado e presente, de receber sem véus arquitetônicos e dar conteúdos (fi lmes, fotografi as, desenhos, músicas) torna corriqueira uma nova linguagem da qual as políticas culturais não podem se furtar. Qual será o artesanato capaz de registrar ou gravar (em vídeo, celulares móveis ou outras máqui-nas) conteúdos que serão apropriados pela indústria cultural? Com efeito, como transformar aquarismo em conhecimento ou a música que se escuta por um fone de ouvido em cultura? É partindo desses pressupostos que consideramos justamente um desafi o para uma política cultural, seja do Estado-nação, seja, como assinala Rubim, de “um conjunto complexo de atores estatais e particulares possíveis”10,

9 Ibidem, p. 347.10 Albino Rubim, “Políticas culturais: entre o possível e o impossível”, em Gisele M. Nussbaumer [org.], Teorias e políticas da cultura: visões multidisciplinares [Salvador, Edufba, 2007], p. 150.

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converter informação em conhecimento e entretenimento em cultura. E, para isso, no que diz respeito ao entretenimento veiculado pela telefonia móvel, é necessário indagar historicamente como a percepção humana se transformará num meio em que predominarão grandes e pequenas telas ou, dito com outras palavras, como a linguagem con-vergente se tornará corriqueira na comunicação pessoal.

É certo que essas questões são conexas à compreensão de que nenhuma comunicação, mesmo dependente da tecnologia, suplanta a precedente, mas antes redefi ne seu papel, muitas vezes reforçando-o. Mesmo Kracauer já notava como, “ao gravar o mundo visível – não importa se a realidade vigente ou um universo imaginário –, os fi lmes proporcionam a chave de processos mentais ocultos”11 a partir da redefi nição da comunicação gestual ou das expressões faciais. Estas não foram abandonadas, mas convertidas em “hieróglifos visíveis da dinâmica despercebida das relações humanas”, segundo Kallen12. E, ainda sob infl uência do que Kracauer ensinava sobre a importância da completa mobilidade da câmera, como nos valer da intensifi cação da mobilidade que o celular móvel dotado de câmera e sua instantânea captação/retransmissão de imagens nos oferecem e encontrar nessa produção um conteúdo cultural capaz de anunciar bons auspícios? O celular móvel, dispondo de uma tela que avalia melhor imagens mais próximas, traz indícios de que lida com a identidade dos indivíduos que dele se utilizam? Se “os fi lmes parecem cumprir a missão inata de esgaravatar na minúcia”13, que dizer dessa produção artesanal confec-cionada para ser vista individualmente numa tela pequena? As fotos expostas em sites de relacionamento proliferam (mais de 260 milhões de pessoas frequentam ambientes virtuais de sociabilidade em todo o mundo), e muitos são recheados de conteúdos produzidos por ce-lulares móveis, de fotos a vídeos. Há um movimento que impulsiona não o reforço da condição de massas (e nisso o espetáculo das Olim-píadas na China precisa ser revisto), não sua reintegração em comu-nidade com a necessária combinação de terror e propaganda durante o nazismo, mas a exposição de sua individuação, de sua identidade. Poderiam essas fotos ou vídeos pessoais contribuir para a construção de uma memória audiovisual ativa, mostrando quanto se transforma

11 Siegfried Kracauer, 2009, p. 19.12 Idem.13 Idem.

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a linguagem (mesmo que apenas por uma releitura do que foi uma elaboração passada)? Teriam condição de sacudir e iluminar a falsa coerência da representação de suas vidas, de arrancar fragmentos de signifi cado de sua imagem prévia e dispô-los num novo mosaico, de maneira que se ilustrem entre si livremente, numa proposital alusão à possível associação entre os hieróglifos de Kracauer e as citações de Benjamin que fi zemos em outro trabalho?14

Mas não podemos esquecer que ainda é preciso considerar outro aspecto da produção de conteúdos culturais: o controle sobre sua distribuição, circulação e exibição a partir de megaconglomerados que resultam de fusões de empresas e associam cultura, comunicação e entretenimento. Referimo-nos mais especifi camente às regulações a que estão sujeitas essas esferas, que são políticas e culturais e que se encontram num momento decisivo: a convergência entre mídias15 e linguagens (áudio, visual e escrita). O controle mundialmente hege-mônico dos fi lmes é de origem norte-americana, não apenas para as salas de cinema, mas também para as demais formas de exibição de audiovisual, incorporando novas estratégias às antigas e volumosos recursos em publicidade, desdobrando-os em outros conteúdos e associações, tais como games, marcas comerciais para produtos diver-sos etc. Nesse sentido, a política cultural de qualquer país não pode prescindir da análise que tenha como ponto de partida justamente a ocupação do espaço de seu audiovisual dentro da economia do espaço audiovisual global: ela necessita se afi rmar como uma política cultural participante do processo de globalização do audiovisual.

A seu favor, a produção de programas das indústrias audiovisuais nacionais, em especial para a televisão aberta, mantém-se no topo da competição, e seu espaço certamente se manterá por meio dos celulares móveis. Mas esse mercado será ampliado ou será apenas uma multiplicação do mesmo exibido em suportes diversos, incluin-do o computador? Como abrir mercado para meios tão diversos de exibição, em vez de apenas transformá-los em extensões móveis, em telas de transmissão de conteúdo homogêneo? Que políticas cultu-

14 Ver Anita Simis, “Luzes e foco sobre Kracauer”, Revista Estudos de Sociologia, v. 10, n. 18-19, 2005. 15 Por convergência entre mídias entendemos a chamada convergência tecnológica, que se inicia com o surgimento da internet e da digitalização dos conteúdos e possibilita que uma única rede ou tecnologia possa ser usada para transportar, armazenar e redistribuir som, vídeo, voz e dados, isto é, seja capaz de oferecer diferentes serviços ao consumidor.

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rais poderiam reservar esse mercado para uma produção específi ca, independente dos atuais oligopólios (mídia tradicional e telecomu-nicações), transformando-a em difusão do alternativo ou ao menos no papel coadjuvante que o curta-metragem nacional teve em nossas salas dos anos 1920, preenchendo os claros deixados pela produção norte-americana? Certamente está em disputa quem deterá o controle sobre o serviço de banda larga universal para celulares móveis. Será com investimentos privados, públicos, partilhados?

A rapidez com que a tecnologia se desenvolve é proporcional àquela que propicia a incorporação das massas, de maneira que as inovações já não necessitam de décadas para se popularizar, como foi o caso do rádio e da TV. Mas a produção dos conteúdos culturais para as novas tecnologias não voa na mesma velocidade. Assim como o rádio infl uenciou o cinema e depois a TV (ou o cinema infl uenciou a TV norte-americana), a linguagem televisiva específi ca/própria afi rmou--se posteriormente. E no celular móvel? Assistiremos mais uma vez a esse processo ditado por quem detém a hegemonia dos circuitos e do marketing, daqueles que são donos dos espaços multimidiáticos? Como traduzir o avanço da linguagem audiovisual em uma linguagem de fato diversifi cada, democrática, sem adotar medidas protecionistas arcaicas e paliativas? Que estímulos sistêmicos poderiam alavancar uma produção autossufi ciente e ampla?

Sem dúvida, são necessárias políticas mais concretas e menos im-provisadas. Um avanço signifi cativo parece ser a constituição de nu-merosos observatórios com dados diversos sobre as diferentes áreas de produção, distribuição, comercialização e apresentação de conteúdos culturais nos vários meios de comunicação. Outro é a educação. Segun-do Rubim, “como a cultura perpassa diferentes esferas sociais, torna-se substantivo analisar suas interfaces, em especial com áreas afi ns, tais como educação, comunicação etc.”16. Políticas nesse âmbito tão amplo apontam para uma perspectiva multidisciplinar, não apenas nacional (e há instrumentos para isso que poderiam ser mais bem explorados, como o Conselho de Comunicação Social), mas também de foro internacional, com a participação de setores sociais, representantes dos empresários e da fusão produtores e consumidores/receptores. Enfi m, em tempos de tantas críticas, nunca é demais dizer que vivemos um processo em que superestrutura e infraestrutura revelam sua relação dialética.

16 Albino Rubim, “Políticas culturais”, cit., p. 157.

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A barbárie como civilização: Walter Benjamin e a tragédia humana

SÉRGIO DE SOUZA BRASIL SILVA

Cansei de esperar por elaToda noite na janelaVendo a cidade luzir

Nesses delírios nervososDos anúncios luminososQue são a vida a mentir

Orestes Barbosa, “Arranha-céu”

O desenvolvimento do capitalismo mercantil estabeleceu uma forte correlação entre as categorias universais de explicação e os lugares do mundo. Tal manifestação determinava não só uma regularidade na expressão dos fenômenos, mas uma inclusão destes na forma ordenada de ver, ler e operar o mundo da produção e da cultura materiais. O ato de conferir às coisas uma “tradutibilidade” por meio de atributos comuns permitia facilmente fi xar identidades entre estas e regulari-zar, de modo imediato, o jogo de atribuição de proporcionalidades e qualidades diferenciadas. Assim tudo encontrava seu locus, desde os produtos até as manifestações estéticas, compondo, dessa maneira, as condições defi nidoras do conceito de representação. Portanto, em toda sua extensão, no capitalismo mercantil “representar” implicava obrigatoriamente reproduzir o real de modo estável, provocando relações redutoras de uma coisa na outra e, por consequência, uma homogeneização corriqueira e naturalizada pelo “senso comum”1.

1 E o que o “senso comum” entende por realidade? Ignorando contradições contidas no jogo das relações sociais, o público que opera no “senso comum” fundamenta seu conhecimento do mundo por meio da mera vivência imediata. Não percebe, portanto, que não é o homem que se engana

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Além disso, as sistemáticas alterações nas condições da produção de bens determinaram incrementos radicais na tecnologia dos siste-mas de máquinas, fortalecendo a ampliação da demanda e um uso maior da fi nanceirização dos mercados. Tais modifi cações produziram também concepções de mundo vinculadas aos novos modos burgueses de lidar com a vida. A multidão voraz pelo consumo assume as ruas e os desejos são apreendidos pela espetacularização das mercadorias. A “vida” se acelera e, como observava Baudelaire em O spleen de Pa-ris*, os olhares sobre os acontecimentos se dispersam não só pelas anonimidades, como por uma desregulamentação dos conceitos e dos princípios regentes da universalidade. Cria-se uma fragmentação dissi-pada: o consumo vai preliminarmente para os anúncios publicitários2 e para as vitrines, o ato da compra e da apropriação se submete às egolatrias mercadologicamente planejadas e a novidade – associada ao imperativo da perplexidade – assume o esforço de sempre atualizar as pulsões desejantes. A proliferação das mercadorias-próteses rompe os conceitos que conduziam às formas totalizantes e instauram a vida em escolhas-riscos de felicidade personalizada. O “cálculo” de tudo é radicalmente substituído pela excitação do choque do sempre novo. Mergulhamos, enfi m, na modernidade.

Dentre os vários observadores desse momento está Walter Benjamin, que apreende essas alterações contextuais na conhecida Tese IX de suas Teses sobre a fi losofi a da história: o anjo3 da tela de Paul Klee4 (Angelus Novus) se debate na armadilha de ter de presenciar o passado e ser compelido – mesmo que de maneira ansiosa – para um futuro, cujo nome, naquela época, era “progresso”5. Mas não era só essa im-

e sim a própria construção social da realidade que o engana, dissimulada que está pelas formas aparentes. A permanência no “senso comum” indica, sobretudo, a construção de um sistema de dominação social que organiza o conhecer sem a necessidade de um “desvelamento” crítico.* Rio de Janeiro, Imago, 1995.2 Deve-se observar que a publicidade se forja mediante textos curtos, que não aceitam se dissipar em textos precedentes de outras publicidades. Cada texto publicitário é um começar novamente.3 As correspondências trocadas entre Benjamin e o sionista Gershom Scholem indicam que a fi gura do “anjo” é uma metáfora de uso frequente entre os dois amigos. Ver Walter Benjamin e Gershom Scholem, Correspondências (1933-1940) (São Paulo, Perspectiva, 1993).4 Ao lado de Wassily Kandinsky, Klee introduziu na arte uma estética radicalmente transformadora. Ambos integraram, de 1926 a 1928, o quadro de professores da famosa escola da Bauhaus, em Dassan, fechada em 1933 pelo governo nazista por “experiências estéticas” antigermânicas.5 Embora constasse do projeto ideológico da fi losofi a das Luzes (século XVIII), a noção de “progresso” sempre foi acompanhada de um determinismo caracterizado por uma série uni-

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posição ao progresso a que o anjo se submetia: ele se aterrorizava ao constatar que o progresso capitalista era acompanhado da destruição do passado e, sobretudo, de uma catástrofe particular – a morte do humano-humanidade em cada ação do moderno tecnológico (o pensar científi co se converte em “pensar instrumental”, fazendo com que a técnica e suas tecnicidades assumam o epicentro majestático das novas experiências sociais). Assim é que, sob o céu persuasivo do “progres-so”, encontrava-se em ruínas o fazer histórico enquanto intervenção criadora e transformadora, isto é, o império da autêntica dispraxia6. O “inumano” agora é modelado pela imediaticidade do hedonismo individualista, ou seja, pela teleologia do consumo orgiástico e pelo isolamento entre os sujeitos do desejo dirigido. Tudo como se fosse um ato normal, corriqueiro, em que as perdas são classifi cadas como derrotas acidentais de cada um. Assim a modernidade tecnológica – aventura desmesurada da cultura capitalista – constitui-se na tragédia (Trauerspiel) do humano, pois a memória – enquanto repositório das experiências da humanidade – já não ocupa papel relevante na crítica do mundo da eupraxia7. Os comportamentos eufóricos do progresso e da tecnolatria só sabem dizer e expressar a presentifi cação sufocan-te do aqui e agora. A cultura mais excitante, paradoxalmente, faz-se representar pela barbárie8.

linear, em que cada incremento técnico-histórico nos conduzia a um otimismo fundado num futuro mais feliz para o ser humano. Assim “progresso” e “tecnologia” são elementos que se confundem na contemporaneidade, até porque representam “atos de fé” da cultura ocidental. É comum ouvirmos: “Não posso viver sem (tal) tecnologia!” ou “Não percebo o progresso sem (tal) tecnologia”.6 Entende-se aqui por dispraxia (dis, dys = má, inefi caz + praxia, práxis = intervenção prática) uma ação meramente prática, que se esgota em si mesma (labor = trabalho rotineiro, massifi cante) e não identifi ca a capacidade criadora e transformadora do sujeito operante (opus= intervenção prática criadora). Em contrapartida, faço uso do termo eupraxia (eu = boa, efi caz + praxia, práxis =intervenção prática) com o mesmo sentido da palavra grega poiésis, cujo signifi cado é “artesania”, ou seja, a produção de uma identidade entre o produzido e a criatividade do produtor.7 A eupraxia, recuperando plenamente o sentido de opus, é, portanto, histórico-crítica e revela-se como um guia de intervenção-transformação. Além disso, na inteligibilidade da eupraxia está, sobretudo, a inteligibilidade do movimento social da história.8 Nelson Brissac Peixoto indica claramente que “ao transgredir limites, ao romper os meca-nismos que permitiam identifi car e medir e ao dissolver a subjetividade e a própria realidade, a modernidade depara com a barbárie. [...] A desordem, o desatino, o horror estão inscritos, como possibilidade, na mais refi nada cultura, pois só ela é capaz de desmantelar a si própria, de atrair-se pelo que é outro, pela selvageria. Ao criticar a si mesma, a razão fl erta com o desvario [...]. Desregramento que pode esfacelar os diques da cultura, liberação incontrolável de instintos de

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Karl Marx já havia feito restrições ao progresso técnico (Grundrisse). Em especial no Manifesto Comunista*, ele faz ver que a burguesia, em pouco menos de cem anos, havia criado e desenvolvido forças tais que gerações anteriores não tinham despertado (“tudo o que é sólido desmancha no ar”). No Capital **, a face lúgubre da tecnologia é destacada com ênfase quando Marx afi rma que, devido à maquinaria e à ordenação do trabalho, o potencial força-transformação havia se tornado um tipo de tortura, uma rotina degradante, em que a máquina despojava o trabalho de sua condição criativa (travail non attrayant, dispraxia), ao mesmo tempo que impunha ao produtor submeter-se por mais tempo aos processos rudes da repetição e da mesmice9. Instala-se um continuum mecânico, em que os sujeitos históricos se reduzem à natureza de simples ferramenta e o imaginário se forja na esperança sempre renovada de um futuro rico em consumo, que permita a identifi cação espelhar com a classe dominante.

É assim, com a instigadora refl exão benjaminiana, que a crítica da civilização tecnológica assume caráter de tragédia, de dor. Lamentando a redução dos homens às máquinas, a simplifi cação do homem nos instrumentos-próteses e no empobrecimento do trabalho, o pensador alemão rejeita o materialismo superfi cial e acredita na necessidade de uma articulação entre o messianismo libertador da mística judaica e o caráter revolucionário da dialética da história. É bom lembrar que a fi losofi a messiânico-revolucionária10 recusa a subordinação a um Mes-sias ordenador do reino espiritual do paraíso ou da bem-aventurança.

morte. No fi o da navalha, num ritmo do qual não se pode desprender. É uma corrente que nos arrasta à beira do precipício” (A sedução da barbárie, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 22-3).

* São Paulo, Boitempo, 1998.

** 22. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.9 Mesmo abarcando outra perspectiva fi losófi ca, vale ressaltar aqui a observação feita por Albert Camus, em O mito de Sísifo: “Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessante-mente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança” (Rio de Janeiro, Guanabara, 1989, p. 141).10 O “messianismo” benjaminiano não se assemelha ao “messianismo” tradicional do marxismo burocrático de fundamentação soviética. Neste, a supressão da propriedade privada implicaria o desaparecimento mecanicista da luta de classes e o problema da alienação humana estaria, em princípio, resolvido defi nitivamente. A visão benjaminiana sinaliza a descoberta dos mecanismos de opressão e o fato de que a revelação de cada um deles implicará a “descoberta” de novos fragmentos da opressão, impondo assim uma inconclusividade no conhecimento da opressão, mesmo depois da implantação de uma sociedade comunista.

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O messianismo, como observa Michael Löwy, “distingue-se por sua natureza estritamente impessoal: o que lhe interessa é a era messiânica do porvir, a realização do Tikkoun”11. E acrescenta:

uma das razões que permitiram à maior parte dos pensadores judeus dessa corrente escapar às formas mais perversas da “religião política” do século XX é provavelmente a integração, em sua visão de mundo, de certos valores e princípios herdados da fi losofi a das Luzes: a liberdade, a igualdade, a tolerância, o humanismo, a Vernunft (razão). Sua espiri-tualidade, embora oriunda do universo cultural romântico, contém uma dimensão decisiva inspirada pela Aufklärung.12

Por outro lado, a possível crítica nostálgica de um Benjamin sufo-cado pela civilização técnica não indica o retorno às condições ante-riores ao desenvolvimento desigual do capitalismo, mas ao propósito de lutar por uma pólis em que cada sujeito histórico possa recuperar o passado da humanidade cujo presente obliterou a crítica da opressão e que é agora acrescido de um progresso tecnólatra esfuziante, que emascula o sabor da vida. A partir dessas referências, há de se negar, portanto, a concepção de história em que o capitalismo a identifi ca como mero fl uxo contínuo em direção ao futuro e não dependente de uma Aufhebung (superação) radical.

E é justamente sobre essa relação fulcral “tempo-história” que Walter Benjamin dedicará esforço singular. Para tanto é preciso primeiramente refutar a visão teleológica de que o progresso nada mais representa do que a ritmização do tempo em sua metamorfose simplista de passado--presente-futuro, fazendo com que o perceber da “história” se reduza a um fl uxo absolutamente evolucionista e predizível. Benjamin acusa esse problema em sua Tese XIII, em que escreve:

a teoria e, mais ainda, a prática social-democrática foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a

11 Michael Löwy, Redenção e utopia (São Paulo, Companhia das Letras, 1989), p. 171. Tikkoun: “Em hebraico, signifi ca ‘conserto’, ’correção’, ‘restauração’: Preceito cabalístico sobre a necessidade de o homem corrigir o mundo” (Dicionário judaico de lendas e tradições, Rio de Janeiro, Zahar, 1992, p. 262). Em complemento, Löwy observa que “o Tikkoun, caminho que leva ao fi m das coisas, é também o caminho que leva ao começo”: implica a “restauração da ordem ideal”, isto é, “a restituição, a reintegração do todo original [...] o mundo do Tikkoun (Olam Ha-Tikkoun) é, portanto, o mundo utópico da reforma messiânica, da supressão da mácula, do desaparecimento do mal” (Redenção e utopia, cit., p. 21).12 Ibidem, p. 171.

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realidade [...] [em que se faz como] um progresso automático, percor-rendo, irresistível, uma trajetória em fl echa ou em espiral [...]. A ideia de um progresso na humanidade, na história, é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia de progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha.13

Não é, porém, na pura denúncia que se esgota a questão benjami-niana. Já que esse tempo “vazio e homogêneo” é questionado, como pensar o tempo da história? Ou como se oferecer uma historiografi a que não faça do “presente” a resultante de um desenvolvimento pre-dito? Para tais questões, Benjamin intentará elaborar uma perspectiva radicalmente humana da “experiência” histórica, quando então se integrarão o messianismo revolucionário e a temática política da opressão e dos vencidos14.

O primeiro movimento na construção dessa perspectiva é apreen-der a história como ruína e declínio. Para tanto é necessário assegu-rar-se de um olhar melancólico. Não de uma condição melancólica, típica da nosologia psiquiátrica, mas a eleição de um olhar e de um perceber que considere o homem um ser tristemente deslocado do mundo, porque obnubilado por uma civilização tecnológica que o afugenta das contradições e o confunde com uma contemporaneidade sempre efêmera. O olhar melancólico se apoia na compreensão de um homem frágil que, sob a barbárie contemporânea, vive uma história mundial do sofrimento. Vale dizer: o homem encontra-se de luto, porque sua fala foi roubada pelos produtos-mercadorias e sua práxis instalou-se num mundo vazio do sempre-mesmo, cuja satisfação é continuamente enigmática.

Mas o olhar melancólico é também uma condição estratégica, já que nos reanima a persistir na investigação das causas do sofrimento ou, como relata Walter Benjamin:

Ele é determinado por uma surpreendente tenacidade da intenção, que entre os sentimentos talvez só se compare seriamente ao amor. Pois enquanto na esfera da afetividade não raro a relação entre a intenção e

13 Walter Benjamin, “Teses sobre a fi losofi a da história”, em Obras escolhidas (São Paulo, Brasi-liense, 1985), v. 1, p. 229.14 Tese VII: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco o processo de transmissão da cultura. Por isso [...] o materialismo histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” (ibidem, p. 225).

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seu objeto experimentam uma alternância entre a atração e a repulsão, o luto é capaz de intensifi car e aprofundar continuamente sua intenção. A meditação é própria do enlutado.15

O segundo movimento nos impele a apreender a ação histórica segundo a perspectiva barroca da imanência total dos acontecimentos. Com isso Benjamin resgata a fi gura da “alegoria” (allos agourein) e coloca-se em oposição à concepção de que a melhor transparência, clareza e harmonia estaria no “símbolo” como sinônimo de uma totalidade apreensível por si mesma16. Na construção linguística do símbolo, o momento que liga a imagem e sua signifi cação é natural e imediata, o que transfere ao símbolo uma unidade harmoniosa de sentido. Já na construção da alegoria – ao pretender a tradução sensível do conceito –, o que existe não é uma imediaticidade, mas uma defi ciência que necessita ser desvelada. Dessa forma, reabilitar esse trópos do signo implica um aprofundamento da crítica radical da história em sua linearidade do tempo-progresso. A alegoria, re-jeitando o tempo harmônico da civilização tecnológica, obriga-nos a compreender cada manifestação fenomênica do presente como uma expressão de faltas e dilaceramentos do real histórico; por isso o homem sofre. Não pode haver imediaticidade no conhecimento humano, já que a percepção do sofrimento resulta não somente na consciência da desintegração da eupraxia, mas, sobretudo, na im-possibilidade histórica do homem de exprimir um sentido último do mundo, obrigando-o a continuar seu fazer histórico através da dor, pela alegoria, ao encontro das falas roubadas.

A alegoria, portanto, ao destacar o que foi oprimido, o que foi ex-cluído, está mais próxima da consciência dialética do que a fi guração simbólica. Enquanto o símbolo compromete uma intencionalidade harmoniosa e uma concepção do sujeito como apreendedor natural, a disposição alegórica – movida pelo olhar melancólico, ou seja, pelo desencanto proveniente da tragédia da práxis – instala-se a partir dos fragmentos e das ruínas colhidos pelo sujeito histórico que perdeu sua identidade com o mundo, mas não abandonou a chama de um messianismo crítico que pretende domar os enigmas do luto.

15 Walter Benjamin, A origem do drama barroco alemão (São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 163.16 Uma inteligente análise da relação entre “alegoria” versus “símbolo”, que opôs Walter Benjamin e György Lukács, está no livro de Celso Frederico, Lukács: um clássico do século XX (São Paulo, Moderna, 1997), p. 68-75.

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Ao relacionar tempo linear e harmonia histórica à fi gura do progres-so, o marxista Benjamin vê na civilização técnica criada pelo capitalis-mo moderno a consumação assintótica da barbárie. Em Romantismo e messianismo, Löwy nos aponta que:

[é] por sua hostilidade comum ao progresso que Benjamin aproxima, no Passagen-Werk, Baudelaire e Blanqui. Em seu ensaio sobre a exposição universal de 1855, Baudelaire denuncia furiosamente a ideia de progresso como um “farol pérfi do”, uma “ideia grotesca que fl oresceu no terreno podre da fatuidade moderna”, graças à qual os povos “adormecerão sobre o travesseiro da fatalidade no sono caduco da decrepitude”. Benjamin tinha estudado atentamente esse texto e dele cita no Passagen-Werk a seguinte passagem: “os discípulos dos fi lósofos do vapor e dos fósforos químicos entendem assim: o progresso só lhes aparece sob a forma de uma série indefi nida. Onde está essa garantia?”. Se Baudelaire pode do-minar Paris em sua poesia – contrariamente aos poetas da cidade que o seguiram – isso ocorreu, segundo Benjamin, graças a sua distância crítica diante de seu objeto, que resultava de sua “hostilidade frenética ao pro-gresso”; seu spleen é, em realidade, um sentimento que correspondeu à catástrofe permanente”. Quanto a Blanqui, um de seus grandes méritos é o de ter armado a classe revolucionária de uma sadia indiferença diante das especulações sobre o progresso.17

Baudelaire se apercebe de que seus poemas assumiram o caráter de mercadorias18, mas recusa-se a ser apenas um produtor dessas mer-cadorias e, por isso, tematiza essa transformação dos objetos culturais delatando com furor (As fl ores do Mal *) a ilusão constituída por uma sociedade que se produz e reproduz no princípio do progresso, so-bretudo tecnocapitalista. Assim é que a alegoria baudelairiana, como também a alegoria metodológica nos termos propostos por Walter Benjamin, são frutos da melancolia e da revolta messiânica.

O terceiro movimento da perspectiva benjaminiana se concentra em revelar que, rejeitado o tempo universal, o tempo singular – o tempo roubado pelo poder da opressão, o tempo da ruína – constitui-se na verdadeira explicação do domínio da capital, já que o tempo

17 Michael Löwy, Romantismo e messianismo (São Paulo, Perspectiva/ Edusp, 1990), p. 191.18 “Pode-se ver igualmente com que rapidez nos enfronhamos na via do progresso (entendido por progresso a dominação progressiva da matéria)” (“Salão de 1859”, em A modernidade de Baudelaire: textos inéditos (sel. Teixeira Coelho, São Paulo, Paz e Terra, 1988, p. 69).

* Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.

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singular indicará uma história que fracassou, portanto a dos opri-midos. Tal propósito deverá compulsivamente orientar os fi lósofos e os historiadores do materialismo histórico, ou seja, deverão estes dialeticamente pôr em evidência que os tempos singulares, porque diferentes, expõem como a dispraxia se instalou na história social e por que a revolta messiânica deve constituir-se na lança mortal para a recuperação da prática revolucionária. Essa responsabilidade do fi lósofo e do historiador marxistas é tornada clara na Tese I19, quando Benjamin assinala:

conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um con-tralance que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida fi lo-sófi ca desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafi o, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.20

A contrapartida fi losófi ca é que as ações do autômato no xadrez são movidas por um “espírito”. Esse “espírito” se torna teologia, ou “espírito messiânico”, sem o qual o materialismo histórico não triunfará revolucionariamente.

Dominado por esse “espírito messiânico” – imanente ao próprio jogo da opressão –, o materialismo histórico saberá ler as ruínas da contemporaneidade e então poderá escrever uma outra história, uma anti-história, a história da barbárie21. Contudo, para escrever a história dos vencidos – já o que se vê é uma enorme massa de intenções hu-manas mortas e fragmentadas22 –, exige-se a posse de uma memória

19 O assunto foi aprofundado por Michael Löwy, Romantismo e messianismo, cit., p. 195.20 Walter Benjamin, “Teses sobre a fi losofi a da história”, cit., p. 222.21 Um verdadeiro tempo do fazer humano; um retorno à eupraxia. Uma história ocultada e marginalizada pela Zivilisation tecnológica predatória, que a tudo normatiza pelo efêmero, pelo sempre novo.22 Relembro a importância de uma investigação fundada na “alegoria” que – em oposição ao símbolo que permanece eternamente igual a si mesmo – assegura o movimento dialético do fato

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que certamente não se encontra nos livros da história burguesa. O que se pede, na verdade, não é uma memória, mas uma rememoração, ou seja, o reencontro da experiência humana (Erfahrung) que conduzirá o fi lósofo e o historiador marxistas a não explicar o passado tal como as informações encontradas nos fatos assim o ordenaram, mas resti-tuir as esperanças não realizadas desse passado e instá-la a inscrever no presente um projeto de futuro diferente, porque revolucionário. Tal conexão compromete a posse e a revelação de uma experiência histórica capaz de vincular o passado submerso e o presente por inter-médio de um novo modelo de sujeito da narração. E Walter Benjamin marca essa premente necessidade quando acusa:

por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia cada vez mais [...]. É a experiência de que a arte de narrar está em via de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devi-damente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercam-biar experiências. Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça como um todo.23

O ofuscamento dessa capacidade de fazer fi cção por meio das histórias contadas de geração a geração foi oprimida e substituída por uma memória interiorizada, fundada agora somente na experiência pessoal (Erlebnis) de cada indivíduo.

Se a memória que os fi lósofos e os historiadores marxistas de-sejam deve reter as experiências humanas forjadas na melancolia, ela não deverá também explicar tudo. O luto melancólico impedirá que tudo se encerre numa única visão, numa única leitura, e reservará ao revolucionário novos segredos, novas surpresas, novas indagações, comprometendo o materialismo histórico com uma scriptura que não poderá se dar nunca por encerrada; reafi rmando a cada ato desco-berto a abertura de seu sentido, de sua alegoria inacabada. Somente assim o homem-humanidade poderá voltar a viver o tempo digno da

histórico mediante sua contínua descontextualização, na possibilidade de recriar novos e infi nitas revelações da opressão.23 Walter Benjamin, “O narrador”, em Obras escolhidas (São Paulo, Brasiliense, 1985), v. 1, p. 197-8.

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eupraxia, esta como intervenções inconclusas do fazer histórico. Essas verdadeiras ressurreições se vinculam ao passado coletivo de uma humanidade barbarizada pelo capitalismo tecnológico e, portanto, não poderão depender do acaso, mas do esforço vigoroso de todo reno-vador marxista. E manter o vínculo revolucionário é não permitir que a memória da experiência humana escape da investigação dialética, em que cada fragmento, cada ruína, enlaça a totalidade do humano-humanidade. Ou como nos lembra Löwy:

Se o autômato é o homem que perdeu toda a experiência e memória, a ligação entre a Erfahrung, a teologia e o materialismo histórico é para Benjamin a rememoração (Eingedenken) – que ele distingue da lembrança (Andenken), ligada ao simples “vivido” (Erlebnis). [...] A rememoração se relaciona de forma privilegiada com dois domínios da experiência perdida: o combate das gerações vencidas (as vítimas do progresso) e, mais dis-tante no passado, o “Paraíso Perdido” – aquele do qual a tempestade do progresso nos afasta – isto é, a experiência das sociedades sem classe.24

Contudo, não se trata somente de impedir que a história dos ven-cidos se passe no silêncio, mas que o messianismo nos conduza a preencher uma esperança libertária que não pode cumprir-se. Embora o passado submetido ao tempo linear já esteja consumado de forma opressora, caberá aos revolucionários retomar o que fi cou sem respos-ta. Ou seja, não convém ao materialismo histórico somente desvendar de modo dialético o passado dos oprimidos e sim libertá-lo. Nesse sentido, vale a correta observação realizada por Stella Penido:

A possibilidade da construção alegórica de ultrapassar o continuum dessa história arruinada baseia-se no vislumbre da eternidade contida no elemento original investigado pelo alegorista. Essa possibilidade de eternidade está dada na categoria de “origem” que para Benjamin se formula a partir da imagem de uma emergência. Para ele, a noção de “origem” só pode ser compreendida no âmbito da história, pois é nela que o aspecto de eternidade pode emergir. Contudo, não podemos re-duzir essa categoria a uma identifi cação com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção.25

24 Michael Löwy, Romantismo e messianismo, cit., p. 196.25 Stella Penido, “Duas faces da história como ruína”, O que nos faz pensar, Cadernos do Depar-tamento de Filosofi a da PUC/RJ, n. 5, nov. 1991.

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Vale dizer: a história que se constrói a partir de uma gênese é aquela que se obriga ao encadeamento lógico dos acontecimentos, enquanto o fi lósofo e o historiador marxistas investigam a história descontínua.

Retomar a “origem”26 para Walter Benjamin é, portanto, revelar a ruína, a dor da opressão, e messianicamente “restaurar” o que foi esquecido, arrebatando dos vencidos o que lhes foi roubado e, a partir daí, empenhar-se nos oprimidos de hoje. Cabe ao materialismo histórico desvelar as passagens que ameaçaram o homem-humanidade em sua práxis, a fi m de reconstruí-las no presente com o propósito de libertá-las da história vazia, linear, instituída pela classe dominan-te e pela hegemonia da tecnologia. A “salvação” (Rettung) é então uma libertação do exílio (a essência do Êxodo, segundo livro da Torá escrita)27, contudo nada garante o sucesso no recolhimento dos frag-mentos constituintes das ruínas e é até mesmo provável que o fi lósofo e o historiador marxistas sejam incapazes de reencontrar a parte do passado que garantirá o vislumbre mais crítico da opressão. Talvez alguns fragmentos fi quem imersos no total esquecimento e não possam ser rememorados, ou ainda que o passado salvo possa ser novamente perdido sob outros mecanismos de opressão, mas nada disso há de impedir o cumprimento do fazer revolucionário.

26 Sobre a categoria histórica de “origem” no pensamento benjaminiano, Anna Luiza Coli observa que “no momento em que a análise de um fenômeno fá-lo aparecer com tanta essencialidade que ele se revela como Origem, é-nos dada a possibilidade de resgatar as ‘promessas’ recalcadas e não realizadas de seu momento originário e, a partir dessa quebra da estrutura sucessiva da história, atribuir um novo signifi cado não apenas ao fenômeno, mas a toda a realidade” (“A Origem [Ursprung] como alvo e método interpretativo de Walter Benjamin”, Cadernos Benjaminianos, v. 1, n. 1, jun. 2009; disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/benjaminianos/index.html>).27 Duas são as Torás (leis) ofertadas por Moisés ao povo judeu: a escrita e a oral. Na Torá escrita estão contidos os cinco livros bíblicos: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Cabe à Torá oral as interpretações desses livros e estas são ordenadas em quatro níveis: o literal (Peshat), o alegórico (Remez), o metafórico (Darash) e o místico (Sod).

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José Carlos Mariátegui e o México

LUIZ BERNARDO PERICÁS

Tanto a Revolução Mexicana como a Russa exerceram considerável infl uência sobre José Carlos Mariátegui, ainda que a segunda certa-mente tenha causado maior impacto no jovem jornalista peruano e em toda a sua geração. Basta ver a quantidade de artigos que ele escreveu acerca de cada uma delas. Sobre a Rússia, Mariátegui produziu mais de cinquenta textos, seja exclusivamente sobre fatos ou personalida-des ligados diretamente à Revolução de Outubro, seja sobre aquele país, ainda que de maneira marginal. Já sobre a nação ao sul do Rio Grande, publicou em torno de uma quinzena.

Não custa recordar que, em 1917, Mariátegui tinha 23 anos e já era periodista conhecido em Lima. Embora não estivesse maduro politicamente, aproximava-se pouco a pouco do movimento ope-rário, conhecia bem os meandros dos debates parlamentares locais e reunia-se ocasionalmente com amigos para estudar, mesmo que ainda de forma incipiente, autores anarquistas e socialistas. A organi-zação dos trabalhadores em sovietes e a mudança radical de classes no poder foram todos enormes atrativos para Mariátegui, que viria a aprofundar e depurar seus conhecimentos teóricos mais tarde, na Europa, onde conheceria melhor a realidade da URSS por meio de publicações italianas.

Além disso, em 1910, ano do início da Revolução Mexicana, Ma-riátegui tinha apenas 16 anos e ainda não tinha nem sequer come-çado a escrever na imprensa limenha. Era praticamente um garoto. Naquele ano, o futuro autor de La escena contemporánea era apenas

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auxiliar de linotipista e corretor de provas do diário La Prensa. Nos anos seguintes trabalharia na redação do mesmo jornal como classi-fi cador de telegramas noticiosos e ajudante de redação. Só em 1914 começaria a escrever de maneira regular sob pseudônimos (Juan Croniquer, o mais conhecido, seria defi nitivamente abandonado em 1918) sobre temas tão variados como colunismo social, corridas de cavalos e crônicas policiais.

Contudo, ainda nessa fase, chegou a comentar rapidamente Vic-toriano Huerta e Pancho Villa em textos que, certamente, não eram dos mais sofi sticados1. Ainda não possuía nessa época o instrumental necessário para analisar de maneira mais profunda as raízes e os des-dobramentos dos acontecimentos revolucionários em terras astecas. É interessante notar aqui que Mariátegui mostraria um forte precon-ceito contra Villa, chegando a chamá-lo de “caudilho tosco, inculto, grosseiro e brutal”, “jaguar zambo” e “mulato vulgar e impávido”2. E ainda completaria:

Um dia desses, [Pancho Villa] terminará vulgarmente. Os ianques o caça-rão como a um búfalo selvagem. Os rotativos publicarão sua biografi a, em que se contarão todas as suas bizarrices, desonestidades, audácias e felonias; e um retrato seu, em que esteja galvanizado seu sorriso felino. E se pensará que Villa foi somente um africano transplantado em terras astecas, que, se não tivesse nascido nelas, provavelmente estaria coman-dando no Rife [Marrocos] uma expedição militar irregular de rebeldes berberes, bandoleira e cruel.3

Mesmo que tenha chegado a dar uma palestra sobre as origens da Revolução Mexicana e sua fase armada na Universidade Popular González Prada, em 1923, a produzir um artiguete em moldes similares com o título “México y la revolución”, publicado em Variedades, em janeiro de 1924, e a escrever um resumo pontual sobre o tema em 1929 com o título “Veinte cinco años de sucesos extranjeros”, a maioria de

1 Ver Genaro Carnero Checa, La acción escrita, José Carlos Mariátegui periodista (Lima, s. ed., 1964), p. 71. Ver também José Carlos Mariátegui, “La nostalgia de Huerta”, La Prensa, 20 abr. 1915, e em Sandro Mariátegui (org.), Mariátegui total (Lima, Empresa Editora Amauta, 1994), p. 2377-8; e José Carlos Mariátegui, “Glosario de las cosas cotidianas”, La Prensa, 17 mar. 1916, e em Sandro Mariátegui (org.), Mariátegui total, cit., p. 2431-3.2 Ver José Carlos Mariátegui, “Glosario de las cosas cotidianas”, em Sandro Mariátegui (org.), Mariátegui total, cit., p. 2433.3 Idem.

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seus opúsculos tratará dos anos posteriores, de Obregón, de Calles, de Portes Gil e da Crom (Confederación Regional Obrera Mexicana), assim como de artistas e livros daquele país4. Em boa medida, seus textos sobre o tema são esquemáticos, apresentando o assunto em termos gerais e deixando de lado muitas informações e detalhes im-portantes, apesar de em certos momentos ter discutido, por certo com mais sofi sticação, o caráter político da revolução.

Mariátegui nunca esteve pessoalmente no México (apesar de alu-sões de que talvez tivesse ido até lá para participar de um ciclo de conferências, o que não ocorreu)5 e por isso tinha de contar com as narrativas e descrições da situação política da terra de Emiliano Zapa-ta e Pancho Villa feitas por amigos que viviam no país, assim como consultar a bibliografi a básica sobre o tema. Não há indícios, contu-do, de que tenha lido o clássico de John Reed, México insurgente 6, obra de fácil acesso, certamente7. Ao que tudo indica, Os dez dias que abalaram o mundo 8 era o único livro que conhecia do autor9. De qualquer forma, porém, leria os relatos de Luis Araquistain e de Esteban Pavletich, e um estudo de Froylán Manjarrez, publicado na revista Crisol. Importantes também para que pudesse conhecer melhor a questão mexicana foram os artigos de diversos autores publicados na Amauta, como os de Martín Luis Guzmán, Angela Ramos e Martí Casanovas, entre outros.

O primeiro ponto a se notar nos escritos de Mariátegui sobre o assunto são os “silêncios”, as “ausências”. Em etapa madura, pratica-mente deixará de lado, sem lhes dar a devida atenção ou protagonis-mo, personagens centrais como Zapata e Villa, por exemplo, embora haja quem diga que “indiscutivelmente na história do México, seja

4 Ver idem, “La revolución mexicana: conferencia de José Carlos Mariátegui”, em Historia de la crisis mundial (Lima, Empresa Editora Amauta, 1986), p. 166-7; e “Mexico y la revolución”, em Temas de nuestra América (Lima, Empresa Editora Amauta, 1985), p. 39-43.5 Ver Jorge del Prado, En los años cumbres de Mariátegui (Lima, Unidad, 1983), p. 71-2. 6 John Reed, Insurgent Mexico (Nova York, D. Appleton, 1914). [Ed. bras.: México insurgente, São Paulo, Boitempo, 2010.]7 Informação de Harry Vanden e de Antonio Melis, correspondência com Luiz Bernardo Pericás, dez. 2009.8 John Reed, Ten days that shook the world (Nova York, Boni and Liveright, 1919). [Ed. bras.: Os dez dias que abalaram o mundo, 2. ed., Porto Alegre, L&PM, 2005.]9 Mariátegui chegou a mencionar Reed e seu livro Os dez dias que abalaram o mundo em um de seus artigos, e Ricardo Martinez de la Torre fez uma resenha dele: “Cómo tomaron el poder los bolcheviques”, Labor, n. 1, 10 nov. 1928, p. 6.

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na etapa anterior à Conquista, durante a Colônia ou, mais tarde, da Independência aos nossos dias, não houve nome de mexicano mais conhecido internacionalmente que o de Pancho Villa”10. O “Centauro do Norte”, o “Átila do Sul” e outros “heróis” populares serão citados de forma esporádica, seus nomes praticamente salpicados, quando muito, nos breves artigos que produziu sobre aqueles episódios. Isso é ainda mais surpreendente quando se sabe que o autor dos Sete ensaios se interessava muito por personalidades históricas de relevo. Uma grande quantidade de seus escritos foca especifi camente a vida e a obra de indivíduos que, para ele, teriam dado alguma contribuição signifi cativa a seus países ou áreas de atuação. Serão dezenas de artigos desse gênero, em que o caráter biográfi co é claramente acentuado. Contudo, ao falar da nação ao sul do Rio Grande, os personagens que escolherá não serão os revolucionários mais emblemáticos ou os rebeldes camponeses, mas homens como Obregón, Portes Gil e Calles – algo a se notar.

Mesmo o Partido Comunista Mexicano (PCM), um dos mais an-tigos e importantes do continente, será praticamente negligenciado em seus textos, aparecendo apenas esporadicamente11. Não houve

10 Talvez seja exagero, mas, sem dúvida, um personagem como o “Napoleão Bandido” (como foi chamado por William Randolph Hearst), não podia ser ignorado. Mesmo na Rússia soviética foi representada uma peça teatral intitulada A revolução de Pancho Villa. O poeta Evtushenko dedicou um poema a ele, “O realizador da Revolução Mexicana e redentor dos desvalidos”. E Alperovitch e Rudenko produziram um romance chamado O Robin Hood mexicano. Ver Eugenio Toussant Aragon, Quién y como fue Pancho Villa (México, Universo, 1983), p. 12. Para mais informações sobre Pancho Villa, ver Luis Garfi as M., Verdad y leyenda de Pancho Villa (México, Panorama Editorial, 1983); Enrique Krauze, Francisco Villa, entre el ángel y el fi erro (México, Fondo de Cultura Económica, 1987); e Paco Ignacio Taibo II, Pancho Villa, una biografía narrativa (México, Planeta, 2006).11 Para mais informações sobre a formação do Partido Comunista Mexicano, ver Barry Carr, Marxism and Communism in twentieth-century Mexico, (Lincoln/ Londres, University of Nebraska Press, 1984). Desde sua fundação, em 1919, o partido passou por momentos importantes, como a publicação de distintos órgãos, como El comunista latinoamericano (1919), Vida Nueva (1920) e El Machete (1924); a criação da Federação Comunista do Proletariado do México e a Confe-rência Sindical Vermelha, da qual surgiu a Confederação Geral dos Trabalhadores; a expulsão do México do norte-americano Linn Gale; o Primeiro Congresso Ordinário do PCM; a expulsão de Bertram Wolfe do país (1925); o Congresso Constituinte da Liga Nacional Camponesa (1926); o fechamento, por ordens do presidente Portes Gil, dos escritórios do Comitê Central do PCM e da redação do El Machete (1929). Vale recordar que, em 25 de agosto de 1919, houve a inauguração do Congresso Nacional Socialista no México, que compreendia três tendências: a anarcossindicalista, representada por Vicente Ferrer Aldama, a reformista, com Francisco Cervantes López e Samuel O. Yúdico, e a comunista, com J. Allen, Eduardo Camacho e M. N. Roy. Em 4 de setembro foi fundado o Partido Nacional Socialista, que declarou, em seu primeiro congresso,

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nenhum trabalho exclusivo seu sobre o PCM nem sobre seus princi-pais dirigentes. Estava a par do movimento operário e dos partidos comunistas de outros países (como o italiano, o alemão e o russo, por exemplo), era admirador incondicional da Revolução de Outubro e acompanhava o desenvolvimento do Komintern, seria compreensível que quisesse elaborar algum escrito de fôlego sobre o PCM e quem sabe se comunicar com alguns de seus militantes. A falta de inter-câmbio epistolar com membros do alto escalão do partido demonstra a ausência de um contato direto entre ele e os líderes comunistas mexicanos. Paradoxalmente, porém, escreverá sobre a Crom em dois artigos conhecidos12.

Embora fosse grande defensor e admirador da União Soviética e de seus dirigentes, confessasse ser marxista “convicto e confesso” e tivesse fundado o Partido Socialista do Peru (que mais tarde se tornou o Partido Comunista do Peru), Mariátegui sempre foi mais ligado a indivíduos vinculados à cultura do que necessariamente com políticos; manteve boas relações com intelectuais e revistas (em grande medida, heterodoxas) sem ligação com Moscou e por vezes críticas ao stali-nismo. Foi assim com Samuel Glusberg, Waldo Frank, Tristán Maróf e

que “o socialismo signifi ca a possessão e a direção comunista de todos os meios de produção, distribuição e troca [...] [dos quais] se excluem todos os elementos burgueses e capitalistas da sociedade, e tende à abolição das classes, fi cando constituída a sociedade somente para os que trabalham [...]. A luta de classes tem de continuar e continuará até que o controle e o poder administrativos da sociedade estejam nas mãos dos trabalhadores”. No programa de ação, o partido defenderia “propagar a ideia da derrota do capitalismo por meio da conquista industrial do poder político, até chegar ao estabelecimento transitório da ditadura do proletariado [...]. O Partido Nacional Socialista nomeará três delegados e três suplentes à Terceira Internacional em Moscou [...]. A organização dos sindicatos deve ser a base da indústria, em vez de por ofícios”. Em 24 de novembro do mesmo ano, o partido muda de nome para Partido Comunista do México e ingressa na Terceira Internacional. Já no dia 29 de novembro de 1929, num informe ao Comitê Executivo da Internacional Comunista, endereçado à camarada A. Balabanova, secretária-geral do Komintern, J. Allen, secretário-geral do PCM, comunica que o órgão do PCM El Soviet torna-se o órgão ofi cial do bureau latino-americano e muda de nome para El comunista latinoamericano; em 15 de janeiro de 1920, começa a ser publicado Vida Nueva, órgão do Comitê Central do PCM; em 15 de março de 1924, David Alfaro Siqueiros, Xavier Guerrero e Diego Rivera fundam El Machete, futuro órgão do PCM; de 15 a 20 de novembro de 1926, ocorre o Congresso Constituinte da Liga Nacional Camponesa, na qual os comunistas desempenham um papel de destaque. Entre os membros do Comitê Executivo, fi guravam Luis Monzón, Ursulo Galván e Diego Rivera. Ver Gerardo Peláez, Partido Comunista Mexicano, 60 años de historia (Culiacán, Universidad Autônoma de Sinaloa, 1980), p. 14-35.12 José Carlos Mariátegui, “La lucha eleccionaria en Mexico” e “Portes Gil contra la Crom”, em Temas de nuestra América, cit., p. 52-59.

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tantos outros. Houve quem dissesse, talvez com algum exagero, que Mariátegui estaria se aproximando do trotskismo ou, pelo menos, era grande admirador do fundador do Exército Vermelho.

Interessante também é o destaque que dará ao pintor muralista Diego Rivera. Seu artigo sobre este, publicado em Variedades em fe-vereiro de 1928, é extremamente laudatório. Para Mariátegui, Diego, um “pintor genial”13, seria “talvez o espírito mais representativo da Revolução Mexicana”14, pois sua obra era “nutrida do sangue de uma grande revolução”15. Mas não escreve nenhum artigo sobre David Al-faro Siqueiros, pelo qual também tinha grande respeito. Este detalhe pode ser signifi cativo. Rivera, mais heterodoxo politicamente, se vincu-laria a André Breton16 (a quem Mariátegui admirava), se aproximaria do trotskismo e seria expulso do PCM pouco tempo depois17. Já Siqueiros (que mais tarde também seria defenestrado do partido, ainda que por motivo de “indisciplina”) era identifi cado com a ortodoxia stalinista18.

13 Idem, “La revolución mexicana, por Luis Araquistain”, Variedades, 11 set. 1929, e em Temas de nuestra América, cit., p. 94.14 Idem, “Itinerario de Diego Rivera”, em El artista y la época (Lima, Empresa Editora Amauta, 1987), p. 96. 15 Idem.16 Anos mais tarde, em 1938, Rivera e Breton divulgariam, juntos, na revista Clave, o manifesto “Por una arte revolucionaria independiente”, dois meses após a chegada do surrealista ao México.17 De acordo com Margaret Hooks, “embora o governo de Portes Gil, cada vez mais encurralado com a proximidade das eleições gerais, ameaçasse deportar todos os comunistas estrangeiros, o partido enfrentou problemas ainda mais graves em agosto. A conferência plenária, realizada em julho, fora tomada de ‘direitistas’ supostamente íntimos demais do governo ‘burguês’ e de trotskistas. Ione Robinson observou que Joseph Freeman e seus amigos comunistas estrangeiros se tornaram ‘terrivelmente críticos em relação a Diego’. Havia sinais também de que Tina [Modotti] se irritava cada vez mais com o radicalismo irônico de seu amigo de longa data. Mesmo assim, quando ele e Frida se casaram em fi ns de agosto, Tina emprestou-lhes sua cobertura para a festa. Num estilo tipicamente extravagante, Diego teria puxado sua pistola durante a festa, querendo atirar no fonógrafo, só desistindo depois que Tina lhe disse que o aparelho fora emprestado por outro amigo”. E completa: “Menos de um mês depois, Diego foi expulso do Partido. Parece que Joseph Freeman se vangloriava de ter presidido a expulsão. Vittorio Vidali também colaborou. Mais tarde, alardeou ter sido ‘um dos que, junto com todo o CC do PC, fi zeram tudo o que era necessário para expurgar o partido desses agents provocateurs’. As simpatias trotskistas de Diego já eram famosas. Ele tinha retratos do líder revolucionário nas paredes de sua casa e, poucas semanas após sua expulsão, anunciou publicamente seu apoio a ele” (Margaret Hooks, Tina Modotti, fotógrafa e revolucionária, Rio de Janeiro, José Olympio, 1997, p. 205).18 Na realidade, Siqueiros foi expulso do partido supostamente por sua relação amorosa com Blanca Luz Brum. O Comitê Central do PCM teria dito a Siqueiros que “a amizade de Blanca Luz Brum com os sandinistas, em estreita amizade atual com o governo do México que nos persegue,

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Também merece atenção o fato de Siqueiros nunca ter colaborado com a Amauta, embora, de um lado, tivesse forte militância sindical e escrevesse constantemente sobre arte e política e, de outro, vivesse com a uruguaia Blanca Luz Brum, amiga íntima de Mariátegui e assídua colaboradora da revista editada pelo peruano. Em carta, Luz Brum, que se correspondia com frequência com Mariátegui, chegou a lhe dizer que ela e Siqueiros sempre se lembravam dele19.

Apesar da importância de Mariátegui na América Latina, e de ter incluído em seus murais muitas fi guras marxistas, como Marx, Engels, Lenin, Trotski e Daniel De León, Rivera nunca pintaria sua efígie. Quem pintaria seu retrato em duas oportunidades seria justamente Siqueiros. O primeiro foi uma xilogravura feita em 1932 para Grito, no México; se pensarmos que naquela época a imagem e o legado de Mariátegui estavam sendo atacados pelos representantes ofi ciais do Komintern, a realização dessa gravura é simbólica e signifi cativa (por sua relação com Blanca Luz Brum, amicíssima de Mariátegui, e também por sua admiração por ele, Siqueiros homenageou o peruano, mesmo sendo visto com desconfi ança por alguns PCs da região). O segundo, um retrato de perfi l de Mariátegui, foi baseado em sua foto mais emble-mática (fotografi a que, por sinal, foi tirada pelo pintor José Malanca). Esse retrato foi realizado em 1959, numa época em que o teórico marxista peruano já havia sido reabilitado, depois de alguns anos de desprezo e vilipêndio a sua memória por parte de seu próprio partido. Portanto, quando Siqueiros retrata Mariátegui pela segunda vez, este já era visto com respeito pelos partidos comunistas de diversos países, inclusive do Brasil e do México.

Abrimos aqui um parêntese a respeito de Rivera, que, além de artista, foi membro importante do PCM, diretor do El Machete, do jornal La Plebe e de El Libertador, órgão da Liga Anti-imperialista das Américas. É bom lembrar que, apesar de tudo isso, as principais publicações comunistas do continente ligadas a Moscou, no fi m dos anos 1920 e ao longo da década de 1930, criticavam o muralista com

vai facilitar o descobrimento do lugar onde fazemos as reuniões secretas [...]. Um verdadeiro comunista afoga seus sentimentos amorosos em favor de seus deveres de militantes político e você, em consequência, deve cumprir com esse postulado e, a partir desse momento, terá de romper relações com a uruguaia” (Hugo Achugar, Falsas memorias, Blanca Luz Brum, Montevidéu, Trilce, 2000, p. 51).19 Carta de Blanca Luz Brum a José Carlos Mariátegui, novembro de 1929, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui: correspondencia (Lima, Empresa Editora Amauta, 1984), t. II, p. 688.

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veemência. Foi assim com o próprio El Machete, que depois da expul-são de Rivera do PCM, em 1929, publicou uma série de artigos contra o pintor20 e o descreveu como “a maior imundice do trotskismo”21. As revistas norte-americanas New Masses22 e Daily Worker também o atacaram. Na New Masses, por exemplo, Siqueiros tachou o colega de oportunista, demagogo, sabotador, “mão corrupta da contrarrevolução” e colaborador da burguesia23. E, paradoxalmente, até mesmo o John Reed Club de Nova York fez uma autocrítica e afi rmou que o artista não deveria ter dado uma palestra lá24.

É certo que, até quase o fi m da década de 1920, Rivera tinha o reconhecimento de Moscou e a aprovação do partido de parte de seu trabalho, e ele próprio era membro do Comitê Central do PCM. Mas depois que esteve na URSS, em 1928, sua posição política começou a ser vista como “suspeita”, não só por sua participação no grupo Ou-tubro e pela petição de fundação da Confederação Sindical Unitária

20 Como os artigos “Se retira un héroe”, El Machete, n. 183, jul. 1929; “Un viejo amor”, El Machete, n. 219, fev.-mar. 1932; “El trotzkista Diego Rivera ayuda a engañar a los repatriados”,El Machete, n. 296, jul. 1934; e “Los trotzkistas riveristas babean contra la III Internacional y contra el camarada Stalin”, em El Machete, n. 302, set. 1934.21 El Machete, 30 maio 1934.22 O artigo de Joseph Freeman, “A pintura e a política: o caso de Diego Rivera”, publicado na New Masses em janeiro de 1932, tratava da expulsão de Rivera do PCM, sua relação com o governo mexicano, sua designação como diretor da Escola Nacional de Belas Artes etc.. Siqueiros também publicou um artigo nessa mesma revista (“O caminho contrarrevolucionário de Rivera”, em 29 de maio de 1934). Para mais informações sobre The Masses, a revista que deu origem a New Masses, ver Leslie Fishbein, Rebels in Bohemia: the radicals of The Masses, 1911-1917 (Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 1982).23 Ver Raquel Tibol, Diversidades en el arte del siglo XX, para recordar lo recordad (México, Uni-versidad Autónoma de Sinaloa, 2001), p. 19.24 Ver Maricela González Cruz Manjarrez, La polémica Siqueiros-Rivera, planteamientos estético-políticos (1934-1935) (México, Museo Dolores Olmedo Patiño, 1996), p. 21-2. No John Reed Club, Rivera era considerado traidor, pequeno-burguês e colaboracionista. Em 1931, quando esteve em Nova York para inaugurar sua exposição no Museu de Arte Moderna da cidade, deu uma palestra no John Reed Club, onde foi bastante hostilizado pelo público. O escritor Bill Dunne chamou-o de traidor, propagandista de um governo assassino e pintor do quarto da sra. Morrow (esposa do embaixador dos Estados Unidos no México); o pintor Hugo Gellert acusou-se de degeneração de sua arte por não querer pintar em São Francisco os trabalhadores Tom Mooney e Billings, que haviam sido condenados à prisão perpétua por organizar uma greve; e o militante Harrison George acusou-se de servir ao imperialismo ianque com sua obra. Rivera quis oferecer 100 dólares ao clube e outros 25 para serem entregues ao Centro Operário, mas a oferta não foi aceitara. Ver Raquel Tibol, Diversidades en el arte del siglo XX, cit., p. 18.

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do México, mas também por seu apoio a Trotski25. Foi justamente em 1929 que ele seria expulso do partido. Será que Mariátegui não tinha ciência desses debates, mesmo que somente no fi m de sua vida? Não conheceria os detalhes das polêmicas entre Rivera, Siqueiros e os comu-nistas soviéticos? É difícil dizer. O fato é que ele se correspondia com frequência com seus amigos no México e estava bastante inteirado de muito do que se passava por lá. Além disso, conhecia os dois mura-listas (não pessoalmente, por certo), a quem mandava saudações por intermédio de alguns colegas, e o próprio Siqueiros, por sua mulher, Blanca Luz Brum, mandaria abraços a Mariátegui “com todo o nosso calor de irmãos”26.

De qualquer forma, Mariátegui daria certo destaque a Rivera na revista Amauta e em seus textos. Nesse sentido, já em 1927, demons-traria interesse na colaboração de escritores e artistas de vanguarda mexicanos, pedindo a seu amigo Esteban Pavletich que solicitasse “algo de Rivera, de Orozco e de algum outro artista revolucionário”27. Ele havia recebido do colega fotos dos afrescos de Rivera, que causaram “grande efeito no ambiente artístico juvenil”28, quando foram publica-das. Mais tarde, Tristán Maróf também diria, em carta, que procuraria Rivera para colaborar com a revista29. Na Amauta seria publicada, de Rivera, uma “autobiografi a sumária”30, assim como um artigo de Es-teban Pavletich (“Diego Rivera: el artista de una clase”) em que seriam enfatizados o papel da arte na sociedade capitalista, a possibilidade e o caráter da arte proletária, as tendências pictóricas, o papel do artista na

25 De acordo com o próprio Rivera, sua posição política “se tornou desagradável ao aparato stalinista na sessão consultiva de todos os delegados das diferentes seções do Komintern então presentes em Moscou. Votou somente com outros quatro delegados a favor de Trotski e sua linha política” (Diego Rivera, “Raíces políticas y motivos personales de la controversia Siqueiros--Rivera: stalinismo vs. bolchevismo leninista”, folheto de dezembro de 1935, reproduzido em Raquel Tibol, “Diego Rivera, un pintor que militó en política”, em Diversidades en el arte del siglo XX, cit., p. 16 e 17.26 Carta de Blanca Luz Brum a José Carlos Mariátegui, novembro de 1929, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui, cit., t. II, p. 688.27 Carta de José Carlos Mariátegui a Esteban Pavletich, 8 de março de 1927, em ibidem, t. I, p. 243.28 Idem.29 Carta de Tristán Maróf a José Carlos Mariátegui, 6 de agosto de 1928, em ibidem, t. II, p. 409.30 Ver Diego Rivera, “Autobiografi a sumaria”, Amauta, n. 4, dez. 1926, p. 5.

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sociedade, a arte mexicana e sua infl uência no continente31. Também seria reproduzido, tanto na Amauta como no Labor, o retrato que o muralista havia feito do professor e dirigente agrarista de Durango, José Guadalupe Rodríguez, assassinado pouco tempo antes.

Apesar disso, Rivera não estava entre os pintores favoritos de Mariá-tegui32 e nunca houve troca de correspondência entre eles, tampouco com Siqueiros, ainda que fi zesse menção a ambos, com alguma fre-quência, em suas trocas de cartas com companheiros que viviam no México. Mesmo assim, havia vozes dissonantes entre os colegas de Mariátegui em relação a Diego e Siqueiros, como o pintor argentino José Malanca, muito crítico a ambos33.

31 Esteban Pavletich, “Diego Rivera: el artista de una clase”, em Amauta, n. 5, jan. 1927, p. 5-9.32 Seus pintores favoritos eram Leonardo da Vinci, Sandro Boticelli, Piero della Francesca, Degas, Cézanne, Matisse e Franz Marc. Ver José Carlos Mariátegui, “Instantâneas”, em La novela y la vida, Siegfried y el profesor Canella (Lima, Empresa Editora Amauta, 1987), p. 140-1.33 Em carta enviada do México, e datada de 23 de abril de 1929, o pintor argentino José Malanca escreveria: “Vai fazer um mês que me encontro neste país e desde já com muitos desencantos no que se refere à revolução. Não quero me aventurar a dizer coisas monstruosas a esse respeito, pois poderia estar equivocado e oxalá assim o seja, para continuar esperando algo”. E ainda: “No mesmo dia que conheci Diego, tive uma discussão sobre o comunismo da América do Sul. Há um desconhecimento absoluto do que somos: isso também sabe Maróf, com quem sempre me encontro [...]. Diego diz que somos apenas intelectuais: esse homem conhece nosso comunismo por escritos. Defendi e defendo que na Argentina os verdadeiros comunistas não escrevem [...] e sei disso por ter atuado dentro do meio operário, em que tinham ódio a qualquer ‘escrevedor’, e [aqueles] eram operários bem preparados [...] e foram as únicas pessoas em que vi consciência da revolução”. E mais: “Diego acredita que aqui ser ‘valentão’ e ‘brigão’ signifi ca revolução; me alarma a criminologia que existe no México: cada dia as crônicas [jornalísticas] trazem tragédias que horrorizam [...] e tudo por alguns pesos”. As críticas seguiam: “Falei com trabalhadores; todos são anarquistas – me faz lembrar a situação da Itália em 1921. E [ele] diz que a nós [sul-americanos] sobram dirigentes, enquanto, em contrapartida, a eles [os mexicanos] sobram lutadores [...] mas aqui vai a verdadeira frase: lutadores, nada mais, que lutam por qualquer general que lhes dê algo para comer e um fuzil. O proletariado, em grande quantidade, é indígena; com um problema parecido com o que existe por lá [na América do Sul]; [só que] mais matador, é claro. E essa conversa de agrarismo e tantas belezas é pura lei [...] pois Calles, Obregón (e qualquer outro que se nomeie) são os maiores latifundiários do México revolucionário”. Mesmo assim: “Eu sigo com minha ‘pudicícia’, que faz Diego, Carrero e muitos [outros] rirem. Não concebo comu-nistas depravados e corruptos. Não creio nos pregadores bêbados. Não creio no apóstolo que deixa sua ideologia para seguir um par de ‘belas’ pernas. Enfi m, se o comunismo é isso, eu serei anticomunista, pois entendi em Marx, em Lenin e em mim mesmo o porvir de uma sociedade nova [...] sem as taras burguesas. Creio na pureza do homem e espero que nossa luta há de ser com honradez, e não como pensa Maróf, que [acha que se pode] chegar ao que se propõe pelo mesmo meio pelo qual, até agora, usaram os politiqueiros [...] Aqui a pintura artisticamente é grandiosa; mas, revolucionariamente, é discutível. A arte revolucionária é proletária; é acessível, humana. Diego pinta metafi sicamente. Orozco faz pintura intelectual: sua revolução me faz crer

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O fato é que a arte mexicana receberia destaque na Amauta, e a busca por uma estética e atitude artística revolucionárias estaria bastan-te presente na revista. Mariátegui, que editava a publicação, certamente conhecia o que se passava nesse campo no México e teve suas ideias infl uenciadas por esses textos. Sobre esse assunto em particular, foram publicados diversos artigos na Amauta34.

O mesmo pode ser dito dos eventos políticos da revolução, com textos de Luis Araquistain, Luis F. Bustamante, Esteban Pavletich e do mexicano Jesús Silva Herzog, por exemplo35.

que está feita de carolismo e beataria; e eu opino que quando for lutar por uma ideologia feita de carne, adornarei a baioneta com cravos e irei cantando ‘Adelita’ ou qualquer outro canto de fé revolucionária” (carta de José Malanca a Mariátegui, 23 de abril de 1929, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui, cit., t. II, p. 548-9. Mas não era só de Rivera que Malanca não gos-tava. Blanca Luz Brum, em carta a Mariátegui, queixava-se dos ataques do argentino a Siqueiros, de quem era companheira. Afi rmava que “Malanca detesta David”. De acordo com a poetisa uruguaia, “David é um revolucionário sacrifi cado e valente, que deixou a pintura de publicidade e espetáculo pela revolução – e trocou os soldos do governo pela miséria; é tão forte e humano que a seu lado todos esses ‘artistas’ resultam desportivos e vergonhosamente inúteis a nossa época”. E então completava, dizendo que “não quero lhe fazer o elogio de David, mas me indigna a incompreensão e a maldade dos que o julgam” (em ibidem, p. 688).34 Ver Luis Cardoza Aragón, “Ensayo sobre el arte del trópico”, em Amauta, n. 14, abr. 1928, p. 12, 31-6; Martí Casanovas, “Jacoba Rojas”, em Amauta, n. 14, abr. 1928, p. 10-1; “Cuadro de la pintura mexicana”, Amauta, n. 19, nov.-dez. 1928, p. 37-50; “Cuadro de la pintura mexicana”, Labor, n. 2, 24 nov. 1928, p. 5-7; “Cuadro de la pintura mexicana”, Labor, n. 3, 8 dez. 1928, p. 5; “La plástica revolucionária mexicana y las escuelas de pintura al aire libre”, Amauta, n. 23, maio 1929, p. 47-50; “Pintores mexicanos”, Amauta, n. 24, jun. 1929, p. 76-78; Nicanor A. de la Fuente, “Una exposición de arte mexicano”, Labor, n. 8, 1o maio 1929, p. 7; Grupo de pintores “30-30!”, “Segundo manifi esto treintatreintista contra: I, los académicos; II, los covachuelistas; III, los salteadores de puestos públicos; y IV, en general contra toda clase de sabandijas y zánganos intelectualoides, Amauta, n. 21, fev.-mar. 1929, p. 82-4; Tristán Maróf, “En el atelier del pintor revolucionario Fernando Leal”, Amauta, n. 28, jan. 1930, p. 86-7; e Doctor Atl, “Cinemática mexicana”, Amauta, n. 3, nov. 1926, p. 27.35 No começo de 1929, Luis Araquistain publicaria “El aspecto agrario de la revolución mexicana” (Amauta, n. 20, jan. 1929, p. 79-82), em que mostraria quais seriam, em sua visão, as principais conquistas da revolução, ou seja, a expropriação dos grandes latifúndios, a luta contra a resistência dos latifundiários expropriados e a elevação do nível econômico e “espiritual” dos indígenas. Para ele, a excessiva concentração de terras justifi cava o processo revolucionário. Quatro meses depois, numa resenha crítica e polêmica, Luis F. Bustamante comentaria o livro do autor e negaria à revolu-ção mexicana um suposto caráter socialista (“La revolución mexicana, por Luis Araquistain”, Amauta, n. 23, maio 1929, p. 102-4; ver também “La revolución mexicana, por Luis Araquistain”, Labor, n. 8, 1o maio 1929, p. 2.) Na mesma linha, Esteban Pavletich, em seu “La revolución mexicana, revolución socialista?”, depois de expor o processo de formação do que chamava de “feu-dalismo” mexicano durante a dominação espanhola, seu prolongamento na primeira fase da independência, a luta do Estado contra a Igreja e a situação do país até 1910, tentará defi nir a

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Outros textos importantes, alguns deles sobre a situação conjuntural do México, a relação do Estado com a Igreja e a atuação de Obregón, Vasconcelos e De la Huerta, também seriam publicados em vários números da revista36.

orientação política da revolução a partir da Constituição de 1917, da organização de classes e das tendências econômicas do governo de então, concluindo enfi m que o que havia no México não era socialismo, já que, segundo ele, “sua realidade econômica e social [era] fundamentalmente feudal” (Amauta, n. 26, set.-out. 1929, p. 57-67, e n. 28, jan. 1930, p. 30-6). A questão agrária seria discutida especifi camente pelo historiador mexicano Jesús Silva Herzog, em “El problema agrario de Mexico y la revolución”, em que mostra o painel no campo mexicano desde a época colonial até o processo de concentração de terras durante o porfi riato, discutindo em seguida o papel de Madero, Zapata e Carranza na revolução (Amauta, n. 20, jan. 1929, p. 32-6, e Labor, n. 6, 2 fev. 1929, p. 6). Ele afi rmaria que “a revolução mexicana foi um movimento social interno sem ideologia prévia, produto de causas biológicas, de um instinto coletivo de conservação. Sua ideologia foi se formando pouco a pouco, de forma imprecisa, durante o período mais acalora-do da luta. Ainda hoje não temos uma orientação totalmente clara e defi nida” (Amauta, n. 20, p. 34-5). Assim, para Jesús Silva Herzog, a revolução foi uma “luta de classes... do proletariado das cidades e dos campos contra a burguesia e contra o clero”, mas a suposta “originalidade originalíssima” da Revolução Mexicana seria “uma patraña”. Ver Arnaldo Córdova, “México, revolución burguesa y política de masas”, em Adolfo Gilly et al., Interpretaciones de la revolución mexicana (México, Unam/ Nueva Imagen, 1979), p. 79-88.36 Ver Ricardo Martinez de la Torre, “La revolución mexicana y el clero”, Amauta, n. 12, fev. 1928, p. 26-8; Martí Casanovas, “México después de la muerte de Obregón”, Labor, n. 1, 10 nov. 1928, p. 1-2; J. Oscar Cosco Montaldo, “México y Vasconcelos”, Amauta, n. 18, out. 1928, p. 87-92, e Labor, n. 1, 10 nov. 1928, p. 2-3; Jacobo Hurwitz, “Panorama de la política mexicana: el movimiento reaccionario Gómez-Serrano-de la Huerta”, Amauta, n. 10, dez. 1927, p. 23-4; Liga contra o Imperialismo, “Manifi esto contra el terror, la reacción y la traición en México”, Amauta, n. 29, fev.-mar. 1930, p. 91-3; Liga contra o Imperialismo, “La prisión de Esteban Pavletich en México”, Amauta, n. 30, abr.-maio 1930, p. 97 (texto publicado em homenagem póstuma a Mariátegui); Liga contra o Imperialismo, “Manifi esto a todas las organizaciones revolucionarias antiimperialistas”, Amauta, n. 30, abr.-maio 1930, p. 100-1; Tina Modotti, “La contrarrevolución mexicana”, Amauta, n. 29, fev.-mar. 1930, p. 94-5; Ramiro Perez Reinoso, “La Iglesia contra el Estado mexicano”, Amauta, n. 1, set. 1926, p. 29; Eudocio Ravines, “El termidor mexicano”, Amauta, n. 23, maio 1929, p. 77-81; Rafael Ramos Pedrueza, “La revolución mexicana frente a Yanquilandia”, Amauta, n. 12, fev. 1928, p. 34-6; Socorro Vermelho Internacional, “Circular”, Amauta, n. 30, abr.-maio 1930, p. 98; e Nicolas Terreros, “Panorama de la política mexicana: el movimiento reaccionario Gómez-Serrano de la Huerta”, Amauta, n. 10, dez. 1927, p. 23-4. Tanto o artigo de Pavletich como o de Ravines se oporiam às divagações apristas sobre um suposto caráter socialista sui generis da Revolução Mexicana (ver Narciso Barssols Batalla, Marx y Mariátegui, México, El Caballito, 1985, p. 266). Para Ravines, “esse grande movimento cole-tivo, ainda que possa ser classifi cado como uma revolução social, não é nem tem os caracteres específi cos de uma revolução socialista” (“El termidor mexicano”, em Amauta, n. 23, mai. 1929, p. 79 e 81). Nesse caso, a revolução teria fracassado porque se devia ao pacto realizado com outras classes sociais, inimigas do proletariado (ver Diego Meseguer Illán, José Carlos Mariátegui y su pensamiento revolucionario, Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 1974, p. 201).

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Dentre os personagens mexicanos da época, um dos que mais interessariam a Mariátegui seria José Vasconcelos, que teria um artigo publicado na Amauta37 e duas resenhas de seus livros Indología e La raza cósmica, redigidas por Carlos Arbulú Miranda38 e por Luciano Castillo39, futuro dirigente do Partido Socialista do Peru após a cisão em 1930 do Partido Comunista Peruano, além de um texto de Cosco Montaldo. O próprio Mariátegui falaria, em alguns de seus artigos, sobre o intelectual mexicano, a quem chegou a descrever como “um dos homens de maior destaque histórico da América contemporânea”40. Entre outros motivos, sua importância residiria no fato de que:

[usou] os mais originais métodos para diminuir o analfabetismo; franqueou as universidades às classes pobres; difundiu como um evangelho da época, em todas as escolas e em todas as bibliotecas, os livros de Tolstói e Romain Rolland; incorporou à Lei da Educação a obrigação do Estado de sustentar e educar os fi lhos dos incapacitados e os órfãos; semeou de escolas, livros e ideias a imensa e fecunda terra mexicana.41

O interesse pela questão da educação42, em especial dos mais pobres e dos indígenas no Peru, e a procura por respostas para resolver os problemas históricos que afl igiam seu país nesse campo, fariam com que ele se aproximasse e admirasse, em alguns momen-tos, as ideias de Vasconcelos, o “ministro a cavalo”43, no México, e de Lunatcharsky44, na União Soviética. Mais tarde, a opinião de Mariátegui sobre o reitor da Universidade Nacional mudaria de forma signifi cativa.

37 José Vasconcelos, “El nacionalismo en la América Latina”, Amauta, n. 4, dez. 1926, p. 13-6, e n. 5, jan. 1927, p. 22-4.38 Carlos Urbulú Miranda, “Indología, por José Vasconcelos”, Amauta, n. 9, maio 1927, p. 42-3.39 Luciano Castillo, “La raza cósmica, por José Vasconcelos”, Amauta, n. 2, out. 1926, p. 41.40 José Carlos Mariátegui, “Mexico y la revolución”, Variedades, 5 jan. 1924, e em Temas de Nuestra América, cit., p. 42.41 Ibidem, p. 42-3.42 Após seu retorno da Europa, Mariátegui escreveu diversos artigos sobre a questão da educação. Para mais informações, ver Luiz Bernardo Pericás, “Mariátegui e a questão da educação no Peru”, em Mariátegui: sobre educação (São Paulo, Xamã, 2007), p. 8-38.43 Para mais informações sobre o projeto cultural e educacional de José Vasconcelos, ver Joaquin Cárdenas Noriega, José Vasconcelos: educador, político y profeta (México, Oceano, 1982).44 Ver José Carlos Mariátegui, “Lunatcharsky”, em La escena contemporánea (Lima, Empresa Editora Amauta, 1987), p. 96-102.

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Em 1916, Vasconcelos fez uma rápida visita ao Peru, onde fez conferências na Universidade de San Marcos, em Lima. Mariátegui não assistiu às palestras, mas deve ter sabido delas, já que tiveram boa repercussão no meio estudantil45. Em 1923, os alunos da Univer-sidade de Trujillo, que viam o mexicano como um homem de ação, hostil aos nacionalismos estreitos, ao “falso patriotismo”, e defensor de um “ibero-americanismo” concreto, pediram-lhe que aceitasse o título de “Maestro de la Juventud”. Nesse mesmo ano, Mariátegui daria uma palestra na Universidade Popular González Prada sobre a Revolução Mexicana, dedicada em boa parte a exaltar Vasconcelos, sua obra educacional, sua ideologia revolucionária e seu “mais alto e puro idealismo”46. Por iniciativa do estudante Luis F. Bustamante, Mariátegui e o público presente concordaram em convidar o “prole-tariado organizado” a assinar uma mensagem de saudação ao intelec-tual mexicano, que deveria ser entregue a ele por Haya de la Torre, residente no México na época47. Em fevereiro de 1924, Vasconcelos enviaria uma mensagem de agradecimento aos jovens peruanos que seria publicada na Costa Rica, em Cuba, na Argentina e no México, já que havia sido proibida no Peru48. Quando perguntado por periodistas sobre os protestos da Embaixada do Peru contra sua declaração, ele diria que “o Peru é minha pátria, e por isso não posso nem ofendê-la nem deixar de me interessar por seus assuntos”49. Por tudo isso, Mariátegui certamente devia conhecer havia muito tempo o autor de Ulises criollo, doze anos mais velho que ele. Em carta, José Vascon-celos chamava o jornalista de “meu querido e admirado Mariátegui” e avisava que enviaria seu livro Indología e um artigo que “poderia ser digno do senhor”, para possível publicação50. Mais tarde, o autor

45 Ver Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui: convergencias y divergencias”, em Roland Forgues, Mariátegui, uma verdad actual siempre renovada (Lima, Empresa Editora Amauta, 1994), p. 56.46 José Carlos Mariátegui, “La revolución mexicana: conferencia de José Carlos Mariátegui”, cit., p. 167.47 Idem.48 Ver Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui”, cit., p. 56-57. A íntegra da mensagem de Vascon-celos pode ser encontrada em José Vasconcelos, “Mensaje a los estudiantes peruanos”, em Fedro Guillén, Vasconcelos, apresurado de Dios (México, Comunidad Latinoamericana de Escritores, 1990), p. 183-95.49 Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui”, cit., p. 59.50 Carta de José Vasconcelos a Mariátegui, escrita em Paris em 3 de fevereiro de 1927, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui, cit., t. I, p. 233.

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dos Sete ensaios faria uma resenha da obra51 e La Antorcha, revista editada pelo “ministro a cavalo”, reproduziria dois artigos seus52.

Ainda que a tônica fosse respeitosa, não faltariam críticas ao autor de La raza cósmica. É certo que Mariátegui achava que ninguém ha-via imaginado o destino da América com tanta ambição e veemente esperança do que Vasconcelos, que acreditava numa “profecia”, na construção de um Mundo Novo como expressão da cultura universal. Tratava-se de uma obra mais “musical” do que “arquitetônica”, pelo estilo, pelo lirismo e pela poesia, e possuía um caráter marcadamente autobiográfi co. Apesar de sua importância, porém, Mariátegui insis-tiria em que os espíritos da nova geração (inclusive ele) tinham de constatar, “com um pouco de tristeza e desencanto”, que faltava à obra do mexicano um sentido mais agudo e prático do presente53. Ou seja, ele apenas condenava seu momento histórico, mas não se dispunha a entendê-lo, promovendo em seguida, como a própria época exigia, por um idealismo prático e uma atitude beligerante, sua transformação. “Nosso destino é a luta, mais do que a contemplação. Esta pode ser uma limitação de nossa época, mas não temos tempo para discuti-la, apenas para aceitá-la. Vasconcelos coloca sua utopia demasiadamente longe de nós”, diria o jornalista peruano54. E era categórico ao afi rmar claramente sua posição política. A revolução “social” estava na ordem do dia. E, para realizar o ideal de maneira concreta, o melhor instrumento seria o marxismo, porque este não seria um programa rígido, mas um método dialético. Apesar das crí-ticas, contudo, insistiria em que essas observações não atenuavam o valor da obra de Vasconcelos, ainda que, por outro lado, o mexica-no colocasse na mestiçagem sua esperança de constituição da “raça cósmica”, coisa de que Mariátegui discordava55.

Quando Vasconcelos decidiu se candidatar à Presidência do México, Mariátegui deu seu veredicto. Haveria um claro afastamento político e ideológico entre os dois, já que o jornalista peruano apoiava a política de Plutarco Elias Calles (1924-1928) e seus seguidores56. No momento

51 Ver José Carlos Mariátegui, “Indología, por José Vasconcelos”, em Temas de nuestra América, cit., p. 78-84.52 Ver Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui”, cit., p. 59.53 José Carlos Mariátegui, “Indología, por José Vasconcelos”, cit., p. 81.54 Idem.55 Ibidem, p. 81, 82 e 84.56 Ver Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui”, cit., p. 68.

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que o “ministro a cavalo” anunciou sua candidatura, Mariátegui fi cou, ainda que de forma crítica, do lado da reformista Crom e de seu lí-der, Luis Morones57, demonstrando em grande medida uma falta de conhecimento mais profundo sobre a situação mexicana58. Em artigo de 27 de setembro de 1929, ele comentaria:

o programa de Vasconcelos carece de todo signifi cado revolucionário. O ideal político nacional do autor de La raza cósmica parece ser de um administrador moderado. Ideal de pacifi cador que aspira à estabilização e à ordem. Os interesses capitalistas e conservadores sedimentados e sólidos estão prontos a subscrever, em todos os países, esse programa. Econômica, social, politicamente, é um programa capitalista. Mas desde que a pequena burguesia e a nova burguesia tendem ao fascismo e re-primem violentamente o movimento proletário, as massas revolucionárias não têm por que preferir sua permanência no poder. Na verdade – sem ter nenhuma ilusão a respeito de um câmbio do qual elas mesmas não sejam autoras – têm de contribuir para a liquidação de um regime que abandonou seus princípios e faltou a seus compromissos.59

Já Calles seria um verdadeiro estadista e continuador da revolução, além de “homem culto e idealista, de grande sensibilidade histórica e ampla perspectiva humana”60. Calles recrutaria o grosso de seus adeptos entre operários e camponeses e aceitaria seus pontos de vista até granjear para si uma extensa reputação bolchevique61. Mariátegui chegaria a escrever uma resenha sobre uma coletânea de discursos de Calles (em boa medida, repletos de proselitismo e clichês), organizada

57 Ver José Carlos Mariátegui, “Portes Gil contra la Crom”, cit., p. 58.58 Ver Claude Fell, “Vasconcelos-Mariátegui”, cit.59 José Carlos Mariátegui, “La lucha eleccionaria en México”, Mundial, 27 set. 1929, e em Temas de nuestra América, cit., p. 65.60 Idem, “Un libro de discursos y mensajes de Calles”, Variedades, 9 jul. 1927, e em Temas de nuestra América, cit., p. 98.61 Idem, “La guerra civil en México”, Variedades, 15 out. 1927, e em Temas de nuestra América, cit., p. 47. O mesmo Calles, porém, diria: “Sou moderado não só por minhas inclinações pessoais, mas também por estar seguro de que qualquer movimento radical no México, que ameace o domínio do capital, está fadado a fracassar pela simples razão de que uma mudança tão radical se oporia ao modo de pensar dos mexicanos. No México, observa-se uma clara tendência ao individualismo, que só se pode conseguir dentro do chamado sistema capitalista. Por essa razão, o governo fará todo o possível para defender os interesses dos capitalistas estrangeiros, que investem seu capital na economia do México” (Anatoli Shulgovski, Mexico en la encrucijada de su historia, México, Cultura Popular, 1977, p. 65-6).

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por Esperanza Velásquez Bringas e publicada pela Editorial Cervantes de Barcelona; ali, ele não mediria palavras para elogiar o presidente que “se destaca [...] no cenário da América”62. Mesmo que por vezes o mandatário fosse impreciso do ponto de vista doutrinário, isso não poderia diminuir o sentido revolucionário de sua política, já que seu governo, antes de tudo, queria se apoiar no proletariado63. Além do mais, Calles “não ambiciona mais que cumprir, íntegra e honrada-mente, sua missão histórica, sem se preocupar demais com seu grau de grandeza”64. Suas principais restrições ao governante mexicano se referiam à questão agrária, no sentido de que sua política no campo se dirigia para a criação de pequenos proprietários individualistas, o que, para Mariátegui, era um traço “liberal”, fora de sintonia com os anseios da nova geração de assentar a economia do continente sobre bases socialistas. Em outras palavras, a política de Calles não visava a educação das massas rurais para a exploração da terra por meio de cooperativas, e isso seria um sinal de sua limitação. Ainda assim, para o jornalista peruano, podiam-se descobrir nas palavras do presidente pontos de contato ou afi nidades entre o problema agrário do México e o do Peru. E diria então que Calles era, antes de tudo, um homem de ação, que muito havia colaborado para o desenvolvimento da revolução65.

62 Ver José Carlos Mariátegui, “Un libro de discursos y mensajes de Calles”, cit., p. 95.63 Ibidem, p. 95-6.64 Ibidem, p. 96.65 Ibidem, p. 97-8. Já os comunistas mexicanos tinham uma posição bem distinta. Anatoli Shul-govski afi rma que “paulatinamente se formava uma situação tal que surgiam uma união e uma trama singulares dos interesses dos novos-ricos, dos latifundiários e dos capitalistas, com as ‘velhas’ camadas privilegiadas da população. Esse processo se destacou com especial clareza nos anos da presidência de Calles. Caracterizando a essência do callismo, El Machete assinalava que o caudilhismo tinha profundas raízes econômicas e sociais, representava a união de interesses dos latifundiários e da grande burguesia reacionária, que acumularam milhões nos anos do chamado regime callista. Esses círculos uniram sua sorte, em certo grau, com a velha reação porfi rista, em especial na esfera da propriedade agrícola; ademais, estavam unidos, por relação de negócios, com o capital imperialista norte-americano [...]. Não obstante, a aproximação de posições sobre a base econômica não eliminou, na esfera política, as contradições entre o grupo governante e as forças conservadoras tradicionais. O paradoxal da situação no México residia em que, à me-dida que se realizava a aproximação, as contradições políticas se agudizavam. E mais, o próprio sentido da existência do regime político do caudilhismo exigia que as consignas ‘esquerdistas’, ‘revolucionárias’, cobrissem até as ações mais conservadoras, ‘protetoras’, da elite governante” (Anatoli Shulgovski, Mexico en la encrucijada de su historia, cit., p. 46-7).

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Por outro lado, Mariátegui criticaria Portes Gil por sua ofensiva contra a Crom, que, para ele, era um claro movimento para aniqui-lar a força política das massas trabalhadoras66. Em outras palavras, um “objetivo inequivocamente contrarrevolucionário, que nenhuma retórica pode ocultar nem disfarçar”67. Já o “famoso” líder sindical Luis Morones, com sua “força pessoal de caudilho”, conseguia trazer a completa adesão do feixe de forças populares representativas do sentido classista e doutrinário da revolução68.

As perseguições à Crom e a Morones seriam notadas por Mariátegui. Nesse sentido, o jornalista diria:

Morones não se intimidou. Depois de um período de prudente reserva, reapareceu em seu posto de combate, à frente da Crom, em cuja IX Convenção Nacional, recentemente reunida, replicou com agressividade ao ataque de seus adversários [...]. Os inimigos da Crom têm em suas mãos o poder e empregam-no enquanto podem contra essa organiza-ção operária.69

De acordo com o jornalista peruano, por mais moderada que fosse sua política como organização classista, a Crom tinha de enfatizar dia a dia seu “programa” de socialização da riqueza, num período em que a classe capitalista, mais madura politicamente, solidifi cava-se cada vez mais dentro do regime criado pela revolução, com o apoio gradual dos elementos pequeno-burgueses e dos caudilhos militares, que cediam a sua infl uência. Afi nal, a Crom teria entrado “em combate” em condições e num momento desfavorável. Morones e seu grupo (que Mariátegui, apesar de tudo, caracterizava como “reformistas”), aparentemente por questões conjunturais e pelo próprio caráter que havia adquirido a Revolução Mexicana, não poderiam passar de uma prática pacífi ca, legal e evolucionista à luta contra o poder constituído. Mariátegui, nesse caso específi co, diria:

tem, por isso, muita transcendência e signifi cado o esforço que desen-volvem várias organizações operárias revolucionárias, independentes da Crom, para estabelecer uma frente única proletária, que compreenda to-

66 José Carlos Mariátegui, “Portes Gil contra la Crom”, cit., p. 56.67 Idem.68 Idem, “La lucha eleccionaria en México”, Variedades, 5 jan. 1929, e em Temas de nuestra América, cit., p. 52.69 Ibidem, p. 53.

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dos os setores ativos, através de uma assembleia nacional camponesa [...] Todas as forças operárias são chamadas em auxílio à Crom, em sua luta contra a ofensiva reacionária. Condena-se toda a inclinação intransigente a dar vida a uma nova central. Compreende-se que a Crom constitui um ponto de partida, que o proletariado não deve perder.70

Isso porque “a revolução enfrenta sua mais dura prova. E o México é hoje, mais do que nunca, o campo de uma experiência revolucionária. A política de classes entra nesse país em sua etapa mais interessante”71.

Na época, os comunistas, rivais da Crom, deram a ela um apoio circunstancial, como forma de protestar simbolicamente contra o antigo governo Calles72. Por indicação do Komintern, o grupo majoritário do PCM, que tinha células infi ltradas na Crom, defendia, naquele mo-

70 Idem, “Portes Gil contra la Crom”, cit. p. 58-9.71 Ibidem, p. 59. Uma crítica incisiva às posições da Crom pode ser encontrada em Anatoli Shul-govski, Mexico en la encrucijada de su historia, cit., p. 47-62. Criada em 1918, a Crom começaria a manter relações pouco tempo depois com a AFL dos Estados Unidos, que tinha como objetivo afastar quaisquer tendências anarquistas ou marxistas da organização mexicana. Em 1919, seu principal dirigente, Luís Napoleón Morones realizaria um pacto secreto para apoiar a candidatura de Obregón, o que garantiu a ele e a seu grupo, depois das eleições, “cotas” de poder e apoio fi nanceiro de parte do governo. No governo Calles, sua infl uência seria ainda maior: Morones seria nomeado ministro da Indústria e Trabalho. Assim, com o apoio da Crom (que estendia sua supremacia a grande parte dos sindicatos, absorvendo ou destruindo os contrários a sua política ou os independentes) e do PLM (Partido Laborista Mexicano), seu braço político, o ministério de Morones propagaria a conciliação de classes e uma suposta melhoria material para todos os setores sociais. A Crom tornou-se uma agremiação poderosa, burocratizada e corrupta. Na greve ferroviária de 1926-1927, dirigida pelos comunistas, a Confederação colaboraria com Calles para sua brutal repressão. A direção da Crom e do PLM manifestou-se contra a reeleição de Obregón, decerto temendo perder infl uência dentro do governo e vantagens fi nanceiras. Mas o PCM e o PNA (Partido Agrarista Nacional), apoiaram o caudilho por questões circunstanciais.72 O Partido Comunista do México em geral criticava e opunha-se ao governo Calles, ainda que, em alguns momentos, tivesse sido pressionado pelo Komintern a apoiá-lo. Em março de 1927, o Comitê Executivo da Internacional Comunista enviou uma carta ao PCM na qual discutia o governo mexicano. Ainda que este fosse designado como “pequeno-burguês” e com crescente tendência à direita, tinha traços favoráveis, como o fato de ter lutado contra a Igreja Católica e o imperialismo. Ou seja, havia elementos objetivamente “revolucionários” nesse caso, e o próprio Calles havia colaborado fi nanceiramente para o Congresso Mundial Anti-imperialista em Bruxelas. O Komintern, assim, indicava que o partido deveria construir um bloco de camponeses e operários com a inclusão de elementos pequeno-burgueses, e o governo Calles deveria ser apoiado em seus esforços contra o imperialismo. O PCM, a partir daí, deveria trabalhar para transformar-se numa organização de massas e acabar com o sectarismo em suas fi leiras. E também seria importante manter o trabalho dentro da Crom e de seus sindicatos. Essa política, imposta por Moscou, foi levada a cabo provisoriamente, ainda que com a discordância de dirigentes importantes do PCM, como Julio Antonio Mella, que queria constituir uma nova central sindical independente.

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mento, que esta continuasse existindo e atuando, porque acreditava que poderia trocar suas lideranças e, eventualmente, dar à Confede-ração um novo direcionamento político. Como Obregón, depois de eleito, não cedeu às chantagens de Morones para manter o poder e a infl uên cia da Crom na esfera estatal, muitos sindicatos se afastaram dela. Morones seria suspeito de estar envolvido no assassinato do general. O presidente interino, Portes Gil, que também não gostava do líder sindical nem da Confederação, não demonstrou nenhum apoio a ambos, tirando ainda mais a força da organização. A Crom seria dissolvida logo em seguida73. É difícil imaginar que Mariátegui não soubesse das opiniões do PCM naquele momento...

Outro personagem polêmico retratado de forma relativamente favorável por Mariátegui é o já citado Álvaro Obregón74, por dar a im-

73 Nunca é demais recordar que alguns anos antes, em 1923, na V Convenção da Crom, a or-ganização divulgou sua resolução anticomunista, a qual afi rmava que “o movimento operário do México, representado pela própria confederação, é de caráter nacionalista [...]. Que é incompatível com o sentimento nacionalista dos trabalhadores a propaganda que elementos interessados vêm desenvolvendo a favor do chamado ‘Partido Comunista’, subordinado ao governo russo; portanto, as agrupações operárias deverão proceder à expulsão de seu seio de todos os elementos de fi liação comunista” (Gerardo Peláez, Partido Comunista Mexicano, 60 años de historia, cit., p. 23). Em 1926, Ricardo Treviño, secretário-geral da Crom, divulgaria uma circular que afi rmava que “há bastante tempo tratara-se de introduzir entre as organizações de trabalhadores indivíduos que manifestavam ideias radicais, comunistas, anarquistas etc. e dedicaram-se à agitação dentro dos grupos de trabalhadores [...] com o único objetivo de fazer parecer que o movimento operário do México está se tornando cada vez mais dissolvente e extremista [...] por causa disso, consideramos oportuno prevenir-lhes contra essa campanha, para que não permitam que se introduzam no seio das organizações os indivíduos ou as propagandas que denunciamos, e que avisem a esse comitê, caso tenham conhecimento, para [podermos] fazer as investigações pertinentes” (ibidem, p. 26). Já o PCM diria, um ano depois, que “Morones, em troca da direção dos fabris, fez da Crom um instrumento do governo de Obregón, e em troca de uma secretaria de Estado entregará inerme os trabalhadores da Crom à vontade onipotente do próximo governo burguês do general Calles, para que este possa, sem difi culdade e distúrbios, cumprir os compromissos que contraiu na passada revolta com o imperialismo ianque” (ibidem, p. 24). Finalmente, em 30 de outubro de 1929, a Confederação Sindical Latino-Americana divulgaria um manifesto em que afi rmaria que “o exemplo da triste história da Crom prova que toda organização de verdadeiras massas proletárias que caia no seio da Copa degenerará fatalmente e se converterá em outro elemento de corrupção e de desvio da classe operária, em outro suporte da penetração imperialista, e no mais perigoso instrumento de sufocação contrarrevolucionária do espírito anti-imperialista das massas, como é atualmente o caso da Crom dirigida pelos Morones e outros aventureiros, discípulos dos Green e companhia” (manifesto “Contra los traidores de la Copa y su vil congreso y por la defensa del movimiento sindical revolucionario latinoamericano!”, El Trabajador Latinoamericano, n. 26 e 27, 15 dez. 1929 e 30 dez. 1929, e em Gerardo Pelaéz, Partido Comunista Mexicano: 60 años de historia [Culiacán, Universidad Autónoma de Sinaloa, 1980], p. 35).74 Diego Meseguer Illán, José Carlos Mariátegui, cit., p. 122.

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pressão de ter se afastado dos reacionários e responder às aspirações dos operários e camponeses75. Afi nal de contas, o general “deu um passo para a satisfação de um dos anseios da Revolução: deu terra aos camponeses pobres. A sua sombra, fl oresceu no estado de Yucatán um regime coletivista”76.

Já os dirigentes do Komintern tinham uma opinião bastante distin-ta. Stirner (o suíço Edgar Woog), em artigo para La Correspondance Internationale, em 1924, por exemplo, escreveria:

O governo “socialista” de Obregón é tão pouco socialista como todos os outros governos “socialistas” existentes atualmente na sociedade burguesa. Desempenha momentaneamente um papel revolucionário, na medida em que fomenta a atividade dos camponeses contra o clero e os grandes pro-prietários. Sua política, além do mais, é aquela de todos os poderes pequeno-burgueses. Arma e desarma os camponeses, encarcera e liberta os militares, simpatiza com os comunistas e pensa fuzilar os verdadeiros comunistas.77

Depois do assassinato do caudilho, em 1928, Mariátegui escreveria um artigo em que diria que “a fórmula Obregón, para quem exami-

75 Idem.76 José Carlos Mariátegui, Temas de nuestra América, cit., p. 42. Em relação ao general, Mariátegui diria: “Tinha porte, têmpera e dons de chefe, características que lhe permitiram presidir um governo que, com um amplo consenso da opinião pública, liquidou uma etapa de turbulências e contradições, quando o processo revolucionário mexicano concretizou seu sentido e coordenou suas energias. O governo de Obregón representou um movimento de concentração das melhores forças revolu-cionárias do México. Iniciou um período de realização fi rme e sagaz dos princípios revolucionários, apoiado no partido agrarista, nos sindicatos operários e nos intelectuais renovadores. Sob seu governo entraram em vigor as novas normas constitucionais contidas na Carta de 1917. A reforma agrária – identifi cada por Obregón como o principal objetivo do movimento popular –, começou a traduzir-se em atos. A classe trabalhadora consolidou suas posições e acrescentou à revolução seu poder político e social [...]. A política governamental de Obregón conseguiu esses resultados por acertar em associar a seus objetivos a maior soma de elementos para a reconstrução. Seu êxito se deveu à virtude taumatúrgica do caudilho: ele fortaleceu o Estado surgido da revolução, defi nindo e assegurando sua solidariedade com as mais extensas e ativas camadas sociais. O Estado proclamou-se e considerou-se órgão do povo, de modo que seu destino e sua gestão deixavam de depender do prestígio pessoal de um caudilho para vincular-se estreitamente aos interesses e sentimentos das massas. A estabilidade de seu governo assentou-se numa ampla base popular. Obregón não governava em nome de um partido, mas sim de uma concentração revolucionária, cujas diversas reivindicações constituíam um programa. Era essa aptidão para unifi car e disciplinar as forças revolucionárias que indicava, precisamente, suas qualidades de líder e de condutor” (José Carlos Mariátegui, “Álvaro Obregón”, em Luiz Bernardo Pericás (org.), José Carlos Mariátegui: do sonho às coisas, retratos subversivos, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 119-20).77 Alfred Stirner, “Au Méxique”, La Correspondence Internationale, n. 21, 9 abr. 1924.

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nasse objetivamente os fatores atuais da política mexicana, aparecia ditada, por razões concretas, em defesa da revolução”78.

Por outro lado, o Komintern afi rmaria, por intermédio da Corres-pondance Internationale:

a vida de Obregón é uma cadeia ininterrupta de traições à causa mexi-cana e, em sua nova situação, ele vai continuar o caminho do governo Calles, o caminho dos compromissos com o capital norte-americano, os proprietários latifundiários e os sacerdotes mexicanos.79

É verdade que, tanto no governo Obregón quanto no de Calles, o México manteve relações diplomáticas com a URSS (reconhecida ofi cialmente em 1924); personalidades ligadas ao socialismo ou ao comunismo que expressavam simpatias pela União Soviética tinham acesso aos círculos do governo; e o PCM (por intermédio de indivíduos como os artistas muralistas) possuía bom trânsito nos setores da nova elite no poder80, mas a postura ofi cial do partido era outra. Até o fi m de 1928, portanto, o jornalista peruano manteve análises e posições bastante distintas e mesmo opostas às da Internacional Comunista.

Por fi m, Julio Antonio Mella, comunista cubano que na época era dirigente do PCM e por quem Mariátegui tinha profunda simpatia, tanto por sua conduta quanto por sua personalidade81. De certo modo, o jornalista peruano difundiria seu pensamento por meio de suas publicações, fi caria a seu lado na polêmica com a Alianza Po-pular Revolucionaria Americana (Apra) e apoiaria suas propostas no Congresso de Bruxelas, ainda que, como em outros casos, não tenha produzido um artigo exclusivo sobre ele. Ele conhecia Mella por sua atuação no movimento estudantil cubano, como dirigente do PCC e do PCM, assim como por sua relação com Tina Modotti, que teve casos com outros membros do partido (os pintores Xavier Guerrero e Diego Rivera) e publicou um artigo em 1930 na revista Amauta. Modotti, membro do PCM na época, notabilizou-se por suas fotogra-fi as, que foram publicadas em diversas revistas, entre elas El Mache-te, para a qual o marxista cubano escrevia regularmente. O próprio Mella tinha conhecimento de Mariátegui, a quem chamara certa vez,

78 José Carlos Mariátegui, Temas de nuestra América, cit., p. 51.79 La Correspondence Internationale, n. 65, jul. 1928.80 Ver Christine Hatzky, Julio Antonio Mella, una biografía (Santiago de Cuba, Oriente, 2008), p. 203.81 Ver Jorge del Prado, En los años cumbres de Mariátegui, cit., p. 118.

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em carta, de “companheiro” e “valioso intelectual peruano”82. Assim, quando Mella foi assassinado, Mariátegui em pessoa iniciou uma campanha de protestos pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP) e pelo Grupo Rojo Vanguardia, ligado ao movimento estudantil83. Diria:

Mella era um dos verdadeiros revolucionários, saídos das fi leiras da Reforma Universitária, dessa variada e extensa gama de renovadores de toda espécie que não souberam em sua maior parte superar um confuso estado de ânimo pré-revolucionário; ele havia tomado posição franca e transparente. Por isso reagiu contra os que não se decidiam a seguir sem reservas a mesma via. Na polêmica reconhecia-se seu tom tropical, seu temperamento fogoso; mas sua sinceridade e sua convicção revolucionárias primavam sobretudo em suas campanhas. Amauta saúda com emoção a memória do valente camarada e associa-se ao protesto contra o crime.84

Outro ponto que deve ser salientado aqui é a importância da cor-respondência entre Mariátegui e seus colegas no México. As informa-ções que estes lhe passavam das terras astecas certamente ajudariam a moldar suas ideias sobre a situação política do país85. O México recebeu muitos artistas e intelectuais dissidentes e exilados ao longo do século XX, personalidades que iam de Leon Trotski e Julio Antonio Mella a Che Guevara e Fidel Castro. Isso para não falar de um grande número de espanhóis republicanos que lutaram na Guerra Civil contra as hostes fascistas de Franco86. Mariátegui chegou a se comunicar por carta com mexicanos, assim como com alguns amigos que moravam ou estavam de passagem por lá, como Oliverio Girondo, Graziella Garbalosa, José Vasconcelos, Rafael Heliodoro Valle, Esperanza Ve-lázquez Bringas, Carlos Gaytán, J. López Méndez, Victor Haya de la Torre, Tristán Maróf, Alfredo E. Uruchurtu, José Malanca, Carlos Manuel Cox, Blanca Luz Brum e Esteban Pavletich. De um lado, queria criar

82 Julio Antonio Mella, “Carta al representante del Perú”, Juventud, ano I, t. I, n. 7-8, maio 1924, p. 46.83 Jorge del Prado, En los años cumbres de Mariátegui, cit., p. 119.84 Ibidem, p. 120.85 Para informações sobre as cartas de Mariátegui com amigos no México, ver Ricardo Luna Vegas, Historia y trascendencia de las cartas de Mariátegui (Lima, s. ed., s. d.), p. 69-71.86 Ver, por exemplo, El exílio español en Mexico (México, Fondo de Cultura Económica, 1983).

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vínculos com artistas e distribuir a Amauta em livrarias da capital, já que “poucas revistas na América Hispânica acompanharam com tanta atenção o movimento revolucionário mexicano”87 e, portanto, “é necessário que isso se saiba lá”88. Por outro, buscava informações sobre os desdobramentos da revolução. E, por outro ainda, discutia os rumos da Apra após a decisão da célula local transformar a frente anti-imperialista em partido nacionalista.

Mas o quadro apresentado por seus amigos no México era por vezes carregado de tintas fortes e mostrava uma situação bastante distorcida da realidade89. A poetisa uruguaia Blanca Luz Brum, por exemplo, faria um retrato contundente do país. Diria ela que o México era uma “terra porca, de homens torpes, luxuriosos e egoístas”, um “blefe”, tudo “caca, pura caca”, onde nunca nasceria um Mariátegui ou uma

87 Carta de José Carlos Mariátegui a José Malanca, 2 de julho de 1929, em Jorge del Prado, En los años cumbres de Mariátegui, cit., p. 69.88 Idem.89 Em uma carta conhecida, o boliviano Tristán Maróf dizia: “Não é possível escrever uma linha sequer sobre o México sem viver aqui, sem se relacionar com os meios mais diversos e sem ter um espírito de observação agudo. Os que escrevem sobre o México, à distância, poderão acer-tar talvez em alguns aspectos, mas não em todos. Frequentemente me divirto ao ler polêmicas sustentadas sobre o México e não faço outra coisa além de sorrir. O México não se consertará nem mudará pelos bons ou maus desejos desses senhores. Estando aqui, sentindo a vibração e a força deste país, dá-se conta de que o México tem enorme dinamismo, [e] que o emprega quando convém, no momento que é preciso. Os que analisam a ‘revolução mexicana’ como uma coisa defi nitiva, seguramente não se dão conta de que ela não realizou senão seu papel histórico diante do poder feudal, enfraquecendo-o consideravelmente. Mas, por esse mesmo motivo, este país marcha a passos rápidos para a ‘revolução social’, proletarizando todas as suas massas camponesas e operárias. Por esse mesmo motivo, o México encontra-se à frente de nossos países, onde o privilégio, o latifúndio como entidade política e o clero dominam de forma abarcadora. Temos de realizar uma revolução muito parecida com a do México em 1910; talvez nossa revolução tenha maiores conteúdos sociais, maior visão de conjunto, mas mesmo isso não será senão o resultado de experiências obtidas pelo México [...]. A polêmica de Urquieta, pequeno-burguês intelectual, e Meneses, com sua dose de sentimentalismo, não me demonstra senão uma coisa: o erro de não viver no México, de não estar inteirado da evolução econômica – único fator que precipita as revoltas. Calles e Obregón – este último assassinado num momento lamentável – não signifi cam outra coisa senão a representação da pequena burguesia nacional que derrotou o regime latifundiário e porfi riano que dominou o México por um período de mais de trinta anos. Mas não é possível desconhecer a obra da Revolução Mexicana, a interrogante que [esta] abriu em todos os campos, e, por último, seus esforços para se impor e lutar diante de um inimigo tão poderoso quanto o capitalismo de Wall Street”. E concluía: “Por outro lado, nosso dever revolucionário é defender todas as conquistas que foram obtidas com a revolução e seguir adiante” (carta de Tristán Maróf a José Carlos Mariátegui, 6 de agosto de 1928, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui, cit., t. II, p. 408-9).

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Blanca Luz, apenas gente como Pancho Villa e outros bandidos90. Uma opinião certamente tendenciosa.

Por essas e outras, Mariátegui recorreria a várias fontes distintas para compor o painel mais amplo da revolução. Afi nal de contas, o “tropicalismo fraseológico” local poderia levar os analistas desavisados a confusões. O fato é que Mariátegui procuraria no México um para-digma para tentar entender os caminhos políticos do continente91, os motivos da desvinculação entre os movimentos do México e do Peru, e o modo de superar essa situação. Afi rmaria que “os revolucionários da América Hispânica sempre nos interessamos mil vezes mais pela Revolução Mexicana do que esta por nós. Os que agora verdadeira-mente representam a Revolução Mexicana têm o dever de retifi car essas limitações do nacionalismo do México”92. De qualquer forma, chegaria à conclusão de que, mesmo sendo um dos grandes centros latino-americanos, o México ainda estava muito distante da América do Sul e não tinha condições de sentir um nacionalismo continental93.

As opiniões de Mariátegui sobre o processo revolucionário mu-dariam bastante ao longo dos anos. De seu primeiro artigo político, de 5 de janeiro de 1924, até o último, publicado em 19 de março de 1930, suas análises ganhariam mais densidade e sofi sticação. Seria interessante discutirmos aqui sua interpretação sobre o caráter da Revolução Mexicana.

Foram muitas as tentativas de caracterizá-la. Vários revolucionários daquele país chegaram a dizer que se tratava de uma revolução socia-lista94; outros, que era apenas uma revolução popular; e os marxistas

90 Carta de Blanca Luz Brum a José Carlos Mariátegui, 18 de outubro de 1929, em ibidem, p. 651.91 Ver Tatiana Goncharova, La creación heroica de José Carlos Mariátegui (Lima, Empresa Editora Amauta, 1995), p. 90.92 Carta de José Carlos Mariátegui a José Malanca, 2 de julho de 1929, citada em Jorge del Prado, En los años cumbres de Mariátegui, cit., p. 68-9.93 Carta de José Carlos Mariátegui a Samuel Glusberg, 10 de junho de 1929, em Antonio Melis (org.), José Carlos Mariátegui, cit., t. II, p. 576.94 Arnaldo Córdova tenta mostrar qual era a concepção de socialismo dos revolucionários mexicanos. Em 1919, Salvador Alvarado dizia que “há uma fórmula que hoje, passada a agitação passional, tem de nos encaminhar pelo verdadeiro caminho do bem-estar coletivo [...] essa fór-mula é [...] a da socialização do Estado como emanação direta da vontade social”. Assim que o Estado se “socializar”, “o capitalista poderá se dedicar tranquilamente a seus negócios, sem os soçobros que hoje estorvam suas horas [...]. O Estado tem em suas mãos a solução: chama-se socialismo de Estado, fundamenta-se na cooperação universal e cumpre sua obrigação” (Citado

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mais ortodoxos a defi niram como “burguesa”, “democrático-burguesa” ou “democrático-pequeno-burguesa”. Seu caráter seria muito discutido dentro do Komintern, por exemplo95. Trotski a chamaria de revolução “bonapartista”96, enquanto outros, de “caudilhismo revolucionário” de origem pequeno-burguesa e bonapartista97. Certo autor afi rmaria que se tratava, na realidade, de uma “grande rebelião”98 e o cineas-ta argentino Raymundo Gleyzer a designaria como uma “revolução

em Arnaldo Córdova, “México, revolución burguesa y política de masas”, cit., p. 79). Já Álvaro Obregón diria que “o socialismo é um ideal que todos nós, homens que subordinamos nossos interesses pessoais aos interesses das coletividades, devemos alentar. O socialismo tem como objetivo principal estender a mão aos de baixo para buscar um maior equilíbrio entre o capital e o trabalho, para buscar uma distribuição mais equitativa entre os bens com que a natureza dota a humanidade” (idem).95 Na I Conferência Comunista Latino-Americana de Buenos Aires, em 1929, a Revolução Mexicana seria caracterizada como “democrático-burguesa”. O principal dirigente da Internacional Comunista no continente, Vittorio Codovilla, e os representantes da delegação mexicana diriam que havia no México um regime “pequeno-burguês”, que havia conseguido realizar a “revolução agrária” com reivindicações de uma “revolução democrático-burguesa”. Já o camarada Luis, o suíço Jules Humbert Droz, discordava veementemente, pois, segundo com ele, a pequena burguesia não seria uma “classe revolucionária”. Para ele, “o movimento revolucionário nasceu da ação das massas camponesas pela posse da terra. Teve, portanto, desde o princípio, o caráter de um movimento de massas, e a pressão armada dos camponeses obrigou o governo que emergiu desses aconteci-mentos a realizações, e não somente a gestos demagógicos ou frases revolucionárias. Os governos de Obregón e Calles representavam a coalizão de quatro classes: a burguesia agrária e a classe de latifundiários nascidos da revolução ou somados a esta, a pequena burguesia, os camponeses e uma grande parte da classe operária representada pelo Partido Trabalhista e a Crom [...]. A política de Obregón e Calles foi a de desenvolver e fortalecer a burguesia agrária e chegar a um compromisso com o imperialismo. Os camponeses foram desarmados e os tribunais de apelação devolveram a terra aos antigos latifundiários. As relações com o imperialismo melhoraram, graças à política capitulacionista do governo mexicano. O governo rompeu as greves realizadas pela categoria mais ativa da classe trabalhadora” (Arnaldo Córdova, “México, revolución burguesa y política de masas”, cit., p. 80-1). De acordo com Arnaldo Córdova, “o curioso foi que, apesar de o delegado ‘Luis’ caracterizar a revolução mexicana como um ‘movimento revolucionário democrático-burguês anti-imperialista’, reconhecera que a revolução ‘democrático-burguesa’ estava ainda por ser feita. Sem dúvida, uma coisa é tomar o poder e outra levar a cabo, a partir do próprio poder, as trans-formações que postula uma revolução (essa foi outra herança da Revolução de Outubro); mas ninguém se perguntou na época, e nas décadas seguintes, sobre o problema da transformação socialista da revolução. Desde aqueles dias, os comunistas mexicanos qualifi caram, sem atalhos, a revolução mexicana como ‘democrático-burguesa’ e o regime político que dela emanou como burguês” (ibidem, p. 81).96 Para mais informações sobre as opiniões de Trotski relativas à Revolução Mexicana, ver Leon Trotsky, Escritos latinoamericanos (Buenos Aires, Ceip “León Trótsky” Ediciones, 2000).97 Anatoli Shulgovski, Mexico en la encrucijada de su historia, cit., p. 41.98 Ramón Eduardo Ruiz, México: la gran rebelión (1905/1924) (México, Era, 1984).

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congelada”. Já o trotskista argentino, naturalizado mexicano, Adolfo Gilly, denominou-a “revolução interrompida”99.

O próprio Mariátegui, em 1926, chegaria a dizer que “as formas políticas e sociais vigentes no México não representam uma etapa do liberalismo, mas sim do socialismo. Quando o processo da revolução estiver cumprido plenamente, o Estado mexicano não se chamará neu-tro e laico, mas sim socialista”100. E ao comentar a luta “antirreligiosa” do presidente Calles contra a “agitação católica e reacionária” (que para ele era de fundo essencialmente político e conservador), diria:

E então não será possível considerá-lo antirreligioso. Pois o socialismo é também uma religião, uma mística. E essa grande palavra religião, que seguirá gravitando na história humana com a mesma força de sempre, não deve ser confundida com a palavra Igreja.101

Aqui se pode perceber claramente, de um lado, o apoio a Calles e, de outro, sua crença tanto no futuro socialista da Revolução Mexicana quanto na importância do fator religioso. Crítico do Estado laico per se, e fortemente infl uenciado pela religiosidade de sua família materna, Ma-riátegui criticaria o clero ofi cial como elemento aliado dos latifundiários, já que o objetivo deste era deter os avanços revolucionários. Contudo não atacaria a “religião” em si e apoiaria a ideia do “mito revolucionário” como importante fator na luta do proletariado pelo socialismo.

Em janeiro de 1929, seria mais explícito em relação ao caráter da revolução. Já não falaria mais de uma fase transitória, uma etapa rumo ao socialismo, mas que “o Estado mexicano não era, nem na teoria nem na prática, um Estado socialista. A Revolução havia respeitado os

99 “Com a irrupção das massas camponesas e da pequena burguesia pobre, desenvolveu-se de início como revolução agrária e anti-imperialista e adquiriu, em seu próprio curso, um cará-ter empiricamente anticapitalista, levada pela iniciativa de baixo, apesar da direção burguesa e pequeno-burguesa dominante. Na ausência de uma direção proletária e de um programa operário, teve de ser interrompida duas vezes: primeiro em 1919-1920 e depois em 1940, sem poder avançar até suas conclusões socialistas, mas, ainda assim, sem que o capitalismo conseguisse derrotar as massas, arrebatando-lhes suas conquistas revolucionárias fundamentais. É, portanto, uma revolução permanente na consciência e na experiência das massas, mas interrompida em duas etapas históricas no progresso objetivo de suas conquistas. Entrou em sua terceira ascensão – que parte [...] de onde se interrompeu anteriormente – como revolução nacionalista, proletária e socialista”. Adolfo Gilly, La revolución interrumpida, México, 1910-1920: una guerra campesina por la tierra y el poder (México, El Caballito, 1971), p. 388.100 José Carlos Mariátegui, “La reacción en México”, Variedades, 7 ago. 1926, e em Temas de nuestra América, cit., p. 45-6.101 Ibidem, p. 46.

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princípios e as formas do capitalismo. O que o Estado tinha de socialista consistia em sua base política operária”102. No entanto, é estranho que o representante desse proletariado supostamente socialista não era o PCM, mas sim a reformista Crom de Morones e seu grupo103.

Os dois artigos em que Mariátegui descreve de maneira mais ex-plícita o caráter da revolução são “La revolución mexicana, por Luis Araquistain”, de 11 de setembro de 1929, e “Al margen del nuevo curso de la política mexicana”, de 19 de março de 1930, nos quais utilizou menos os fatos cotidianos e jornalísticos do momento e dedicou-se mais a analisar de forma teórica o conteúdo político do processo. Para Mariátegui, a Revolução Mexicana poderia ser classifi cada “historica-mente” como democrático-burguesa, já que, de um lado, atacava o latifúndio por sua imobilidade “feudal” diante das leis do crescimento capitalista e da necessidade política de se apoiar nas massas populares e, de outro, mantinha o princípio da propriedade privada. Diria ele:

uma revolução continua a tradição de um povo, no sentido de que é uma energia criadora de coisas e ideias que se incorpora defi nitivamente nessa tradição, enriquecendo-a e acrescentando-a. Mas a revolução traz sempre uma nova ordem, que teria sido impossível ontem. A revolução se faz com materiais históricos; mas, como desenho e como função, corresponde a necessidades e propósitos novos.104

Utilizando as opiniões de Araquistain, que naquela época já não tinha ilusões a respeito do desenvolvimento da revolução rumo ao socialismo, Mariátegui diria que a política agrária dos governos sur-gidos do movimento que formulou os princípios na Constituição de 1917 foi, na prática, moderada e transacional. Assim, o processo revo-lucionário estaria claramente dentro do quadro capitalista e burguês. O movimento político, confuso ideologicamente, seria dirigido pela pequena burguesia. Mariátegui afi rmaria:

o México fez conceber a apologistas apressados e excessivos a esperança tácita de que sua revolução proporcionaria à América Latina o padrão e o método de uma revolução socialista, regida por fatores essencialmente

102 Ver José Carlos Mariátegui, “Portes Gil contra la Crom”, cit., p. 57-8.103 Para mais informações sobre o movimento operário no México, ver Ramón Eduardo Ruiz, La revolución mexicana y el movimiento obrero (1911-1923) (México, Era, 1981).104 José Carlos Mariátegui, “La revolución mexicana, por Luis Araquistain”, Variedades, 11 set. 1929, e em Temas de nuestra América, cit., p. 93.

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latino-americanos, economizando ao máximo a teorização europeizante. Os fatos se encarregaram de acabar com essa esperança tropical e mes-siânica. E nenhum crítico circunspecto se arriscaria hoje a subscrever a hipótese de que os caudilhos e planos da Revolução Mexicana conduzem o povo asteca ao socialismo.105

Este é, sem dúvida, um claro ataque à Apra e a todos aqueles que o haviam acusado de ser excessivamente infl uenciado por ideias europeias.

Mariátegui criticaria também Froylán C. Manjarrez, que, em artigo publicado na revista Crisol, havia defendido a ideia de que, na etapa gradual de transição do capitalismo para o socialismo, haveria um Es-tado intermediário, regulador da economia nacional, que defenderia o conceito “cristão” de propriedade e a este atribuiria funções sociais (para Mariátegui, isso já ocorria na Itália, por exemplo, e chamava-se fascismo). Em outras palavras, a ideia de retirar de cena o Estado de classes e colocar em seu lugar um outro, supostamente “superior” aos interesses classistas, “conciliador e árbitro” (surgido muitas vezes de processos genuinamente revolucionários), seria, na realidade, uma ideia contrarrevolucionária e pequeno-burguesa. Representaria, portanto, uma regressão, já que esse Estado não só não poderia assegurar à organização política e econômica do proletariado as garantias de legalidade democrático-burguesa, como, na prática, assumiria a função de atacá-la e destruí-la, caso se sentisse ameaçado por suas manifestações. Ou seja, esse Estado “regulador”, de mentalidade patriarcal, proclamaria a si mesmo depositário absoluto e infalível dos ideais revolucionários, afi rmando falar em nome dos traba-lhadores, mas, ao mesmo tempo, atacando-os quando fosse conveniente ou necessário. Por isso, Mariátegui diria:

o caráter e os objetivos dessa revolução, pelos homens que a acaudilha-ram, pelos fatores econômicos a que obedeceu e pela natureza de seu processo, são os de uma revolução democrático-burguesa. O socialismo não pode ser levado a cabo senão por um partido de classe; não pode ser senão o resultado de uma teoria e de uma prática socialistas.106

Isso quer dizer que, para ele, a Revolução Mexicana teria sido de início uma revolução agrária, popular e “antifeudal”, liderada, de

105 Idem, “Al margen del nuevo curso de la política mexicana”, Variedades, 19 mar. 1930, e em Temas de nuestra América, cit., p. 66-7.106 Ibidem, p. 69.

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um lado, por setores burgueses e, de outro, por uma forte vertente camponesa, e que resultou, após sua estabilização, numa revolução democrático-burguesa, com traços reacionários, tendendo, ao que tudo indicava, para a construção de um Estado regulador, semelhante ao fascista, e que, portanto, não poderia servir de modelo para as lutas políticas dos trabalhadores da América Latina. Só o socialismo seria a verdadeira alternativa revolucionária para os países do continente.

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