a casa de madeira-um saber popular
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A casa de madeira
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Batista, Fábio Domingos. A casa de madeira : um saber popular / Fábio Domingos Batista. - Curitiba, PR : Instituto Arquibrasil, 2011. 102 p. : il. ; 24 x 24 cm. - ( A casa de araucária : arquitetura da madeira em Curitiba ; 2) Inclui bibliogra#a. ISBN 978-85-62369-03-2
1. Arquitetura de madeira – Paraná. 2. Construção de madeira – Curitiba (PR). I. Título. II. Série. CDD ( 22ª ed.) 1. 720.98162
Incentivo:
Dados internacionais de catalogação na publicaçãoBibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
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Fábio Domingos Batista
Curitiba 2011
A casa de madeiraUm saber popular
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Av. Nossa Senhora da LuzFotos: Arthur Wischral, 1952Acervo: Cassa da Memória Diretoria do Patrimônio Cultural - FCC
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Sumário
Apresentação 9
Introdução 11
Uma arquitetura popular 14
Uma arquitetura %exível 45
Uma arquitetura seriada 54
A negação da casa de madeira e a Erkulit 77
Considerações 86
Referências 95
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Não gosto da arquitetura novaPorque a arquitetura nova não faz casas velhas Não gosto das casas novasPorque casas novas não têm fantasmasE, quando digo fantasmas, não quero dizer essasAssombrações vulgaresQue andam por aí...É não-sei-quê de mais sutilNessas velhas, velhas casas,Como, em nós, a presença invisível da alma...Tu nem sabesA pena que me dão as crianças de hoje!Vivem desencantadas como uns órfãos:As suas casas não têm porões nem sótãos,São umas pobres casas sem mistério.Como pode nelas vir morar o sonho?O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso(Como bem sabíamos)Ocultá-lo das outras pessoas da casa,É preciso ocultá-lo dos confessores,Dos professores,Até dos Profetas(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)E as casas novas não têm ao menos aqueles longos,Intermináveis corredoresQue a Lua vinha às vezes assombrar!
Arquitetura FuncionalMario Quintana
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Apresentação
Apresentar “A casa de madeira: Um saber popular” é para mim motivo de grande satisfação e, devo reconhecer, de certo orgulho por ter contribuído, ao lado de outros colegas do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPR para a formação do autor, o arquiteto e pesquisador, Fábio Domingos Batista.
Neste livro, segundo tomo de coleção sobre o tema, o autor analisa aspectos da arquitetura popular, dos sistemas construtivos tradicionais, da fabricação em série, das vilas ferroviárias e, por #m, de um produto muito popular tempos atrás, as placas de madeira mineralizada.
Além de interessantes reHexões sobre as casas de madeira, tão presentes nas paisagens das cidades paranaenses, o autor alerta para a urgência da produção de mais estudos sobre a questão, pois com o acelerado processo de desaparecimento desse tipo de arquitetura, perde-se, ao lado do patrimônio material, também o imaterial: o saber dos antigos mestres carpinteiros.
Daí a importância deste trabalho, preservar ao menos a memória dessas manifestações da cultura popular que já desapareceram (e continuam a desaparecer) e chamar a atenção para os exemplares remanescentes, contribuindo de alguma forma para a sua preservação.
Sabe-se que a preservação da arquitetura da madeira é tarefa delicada e dispendiosa, e que não é nada fácil aos órgãos o#ciais obrigar os proprietários dessas casas a promoverem sua preservação, em geral dada a grande valorização dos terrenos em que estão implantadas.
Desse modo, uma das soluções para este problema – embora não a ideal- tem sido o traslado para outro local da cidade. Exemplo desta operação é a que foi realizada em 1985 com a atual sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Curitiba. Originalmente situada no bairro do Portão, se encontra hoje exemplarmente conservada na Rua José de Alencar, no bairro Juvevê.
José La Pastina FilhoArquiteto e Urbanista, Professor de Arquitetura da UFPR e
Superintendente Estadual do IPHAN/PR
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A casa de madeiraUm saber popular
Introdução
O estudo da arquitetura de madeira curitibana é algo instigante. Ainda
hoje, na moderna Curitiba, encontramos entre os edifícios contemporâneos
algumas casas de madeira, testemunhas da resistência de seus moradores ao que
conhecemos como progresso, que muitas vezes arrasa conjunto de edi#cações
que são registro de uma cidade que hoje não mais existe. As casas de madeira
estão presentes em diversos bairros, compondo a paisagem diversi#cada da cidade
e sua riqueza cultural e arquitetônica. Contudo, não sabemos até quando estas
construções poderão ser percebidas. O grande crescimento da construção civil dos
últimos anos pôs inúmeras abaixo, e muitas ainda perecerão.
Este trabalho é relato desta história, a história da “Casa de Araucária”,
que marcou profundamente a paisagem da cidade no #nal do século XIX e
primeira metade do século XX, sobre a ocupação da mata de araucária e seu cruel
desmatamento. Hoje a mata não mais existe, apenas alguns poucos remanescentes
nos contam sua história, e o mesmo ocorre com a Casa de Araucária. Por isso a
importância deste trabalho, preservar a memória dos exemplares desta arquitetura
que pereceram ao longo do tempo, relatar o sistema construtivo e as questões
socioculturais que possibilitaram o seu surgimento. Chamar atenção para os
exemplares ainda existentes e com esta ação contribuir para a sua conservação.
O interesse pelo tema permeou já os primeiros anos da academia, como
estudante de arquitetura da Universidade Federal do Paraná. Não especi#camente
a casa de madeira curitibana, mas o interesse pela arquitetura popular.
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Alguns autores, como os arquitetos Lina Bo Bardi, Luís Saia, Lúcio Costa
e Günter Weimer traziam à tona algumas questões pouco discutidas no meio
arquitetônico, mas que encontravam resposta em alguns professores de teoria e
história da arquitetura, dentre eles o professor Key Imaguire Júnior, Lóris Carlos
Guesse, José La Pastina Filho, entre outros.
Este tema foi ao longo do tempo pensado e repensado, e já com quase dez
anos de formado foi possível discuti-lo no mestrado realizado na Universidade
Federal de Santa Catarina, sob a orientação do professor Carlos Alberto Szücs.
Durante o período do mestrado, a proposta era estudar a arquitetura de
madeira curitibana e traçar uma análise comparativa entre a tecnologia tradicional
presente nesta arquitetura de madeira com as tecnologias contemporâneas
disponíveis no Brasil, ou seja, como se constrói com madeira hoje no nosso país.
Porém, o trabalho se voltou mais para a arquitetura tradicional, já intitulada
“Casa de Araucária”, do que para as tecnologias contemporâneas, pois percebi
que pouco se constrói com madeira no Brasil. Existem sim muitos exemplares
de boa arquitetura, porém são casos isolados, não existindo no país uma cultura
arquitetônica em madeira, como existia no passado.
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Este livro é o segundo tomo de coleção, frutos de três pesquisas acadêmicas.
O primeiro tomo é intitulado “A casa de araucária” de Key Imaguire Júnior, com
a colaboração de Marialba Rocha Gaspar Imaguire. O terceiro tomo é intitulado
“A tectônica e a poética da casa de tábuas” de Andréa Berriel.
Este tomo se divide em quatro partes:
- A primeira refere-se à arquitetura popular, ou vernacular, como é mais conhecida.
- A segunda analisa a Hexibilidade do sistema construtivo da Casa de Araucária,
pois em sua curta existência podemos reconhecer uma grande diversidade de
soluções, o que demonstra que a Hexibilidade construtiva aliada à criatividade dos
construtores possibilitou uma arquitetura de boa qualidade.
- A terceira tem como objetivo demonstrar o princípio de industrialização do
sistema, que possibilitou a construção de casas seriadas. Além da análise de
exemplares dispersos pela malha urbana de Curitiba, também foram analisadas as
vilas ferroviárias curitibanas.
- A última refere-se ao Erkulite, tecnologia utilizada para revestir a casa de madeira
de forma tal a parecer-se com uma casa de alvenaria. A empresa responsável revestiu
cerca de 20 mil casas na nossa cidade, fato hoje pouco conhecido.
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Uma arquitetura popular
O termo arquitetura sempre é vinculado a uma edi#cação projetada por
um arquiteto, geralmente relacionada a um movimento ou estilo. Para se produzir
arquitetura é necessário erudição, ou seja, conhecimentos técnicos, formais e
funcionais. Desta maneira o arquiteto é uma espécie de douto que acumula os
conhecimentos eruditos, tanto do passado como do presente e, através destes
conhecimentos, produz o que chamamos de arquitetura.
Porém, em nossas cidades, há um grande número de edi#cações que
fogem deste conceito. Não são projetadas por arquitetos e tão pouco podem ser
relacionadas a qualquer forma de erudição. São o que se denomina arquitetura
popular.
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Neste trabalho a arquitetura popular e erudita será classi#cada da seguinte maneira: O termo “erudito”, como de#ne Houaiss (2001), está relacionado ao su-jeito que tem erudição, a qual, por sua vez, é de#nida como instrução, conhecimento ou cultura variada adquirida por meio de estudo. A palavra “erudito” tem sua raiz no latim “eru-ditio”, que signi#ca: ação de ensinar, instrução, saber e conhecimento. Pode-se a#rmar que a arquitetura erudita é produzida por pessoas que obtém seus conhecimentos sobre arquitetura e construção por meio de instrução, pesquisa e leitura, isto é, de maneira acadêmica e formal. Já o termo “popular”, segundo Houaiss (2001), tem origem na palavra latina “populus”, que signi#ca “do povo”. Conclui-se, então, que a arquitetura popular é aquela que é produzida pelo povo, pela gente comum. Weimer (2005) salienta que a arquitetura popular é a arquitetura própria das camadas in-termediárias da população. Ele busca a origem do termo “popular” no termo latino “populus”, que designa o conjunto de cidadãos, onde se excluíam os mais privilegiados e os escravos, sendo o “populus” os menos afortunados, a plebe. O autor conclui que a arquitetura popu-lar é própria do povo e por ele é construída. É usual encontrar em alguns textos o termo “vernacular” para caracterizar a arquite-tura não erudita. O termo vernacular caracteriza, segundo Houaiss (2001), algo próprio de um país ou região. A palavra “verná-culo” tem sua origem na palavra latina “ver-nacùlus”, que signi#ca escravo nascido na casa do senhor. Weimer (2005) considera que o uso do termo “arquitetura vernacular” dá caráter pejorativo a ela, sendo mais prudente chamar a arquitetura não erudita de arquitetura popular.
A arquitetura popular, na maioria das vezes, não possui autor e sim uma
autoria coletiva acumulada ao longo do tempo, tendo como base as tradições
construtivas, ou seja, o saber construtivo transmitido de geração para geração.
Estas técnicas, de domínio público, foram responsáveis pela con#guração de
nossas cidades, apresentando uma diversidade de soluções que correspondem à
diversidade cultural do nosso país.
A arquitetura popular, como a#rma Weimer (2005), é a arquitetura
própria das camadas intermediárias da população; e ocorre à revelia dos
movimentos de vanguarda e das correntes acadêmicas. Tais construções
geralmente não fazem parte do imaginário dos arquitetos, sendo comumente
estudadas em outras áreas, principalmente nas ciências humanas. Isto nos leva a
crer que esta arquitetura não costuma ser de interesse dos arquitetos, cujo foco
principal de estudo e produção são as vanguardas arquitetônicas, na maioria
das vezes são produzidas fora do Brasil.
Não há como traçar uma divisão rígida entre a arquitetura popular e a
arquitetura erudita, ambas podem sofrer as mesmas inHuências, ou até mesmo
inHuenciar uma à outra. Como sabemos, algumas edi#cações provenientes
dos saberes populares são eleitas como eruditas, devido ao alto grau de suas
qualidades arquitetônicas, ou por marcar um período histórico importante,
como é o caso da arquitetura residencial do ciclo do ouro mineiro ou da
casa bandeirista. Estas edi#cações, agora eruditas, inHuenciam as produções
posteriores.
Outra questão importante acerca da Arquitetura Popular é o vínculo
estreito que ela possui com o ambiente onde está inserida. Suas construções
são simples, em virtude das limitações econômicas e pouca oferta de materiais,
por este motivo as soluções construtivas apresentam uma boa adaptabilidade
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com o local onde foram inseridas. Também vale destacar que esta arquitetura é
fruto de uma tradição construtiva, que é expressa por elementos e formas que
identi#cam as construções de um grupo de pessoas, nas quais saberes como o
melhor aproveitamento dos materiais disponíveis, a época certa da extração
e detalhes como o tamanho dos beirais, dimensão dos vãos e pés-direitos são
estabelecidos através de gerações de construtores. Cada nova geração apresenta
um signi#cativo progresso em relação à geração anterior, até o momento em
que se consegue uma solução precisa e de#nitiva para o ambiente onde estas
edi#cações estão inseridas. Tal solução é posteriormente repetida quase que
inconscientemente.
Fathy (1980) a#rma que existem hoje tradições construtivas que
remontam os primórdios da sociedade humana. Algumas completam o seu
ciclo e desaparecem, e outras têm surgido recentemente. Porém, muitas destas
tradições são sufocadas pela arquitetura erudita, tendo como agente principal
o arquiteto. Muitas das soluções presentes nas construções tradicionais
acabam cedendo lugar a outras provenientes das correntes arquitetônicas
contemporâneas. Como no exemplo citado pelo autor, referente ao correto
dimensionamento de uma janela em um clima quente e seco. Gerações de
construtores, através de tentativas e erros, conseguiram uma dimensão precisa
das aberturas que possibilitaria um melhor conforto nas edi#cações em questão.
Estes construtores provavelmente levaram décadas, seguindo suas tradições
construtivas, para chegar a esta solução precisa. Porém, seguindo as correntes
modernas, uma nova solução de abertura é apresentada e prontamente repetida
em diversas edi#cações. Esta solução, na qual o vão é grosseiramente substituído
por um painel contínuo de vidro irá gerar diversos problemas como o aumento
considerável de irradiação solar em um espaço onde existia uma luz suave e
difusa, proveniente do conhecimento acumulado por gerações. Este processo
contribui para a perda de qualidade das construções e o aumento do consumo
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Mestre carpinteiroFonte: SCHEIER, P. O Paraná no seu centenário.Curitiba : Imprensa Paranaense, 1953
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de energia, o que acontece porque a nova construção se desvincula das questões
ambientais e culturais locais.
Com o movimento moderno e a estandartização da arquitetura, as
construções feitas pelo povo foram perdendo cada vez mais importância para
a arquitetura dita erudita. O arquiteto, detentor do conhecimento acadêmico
e com inHuências dos movimentos internacionais de vanguarda, não deu a
devida importância às construções populares, tampouco compreendeu sua
complexidade e suas estreitas relações com os costumes e cultura locais e
aspectos ambientais. Aos poucos, esta arquitetura deixou de ser produzida e
seus artesãos e construtores procuraram outros ofícios, e todo o conhecimento
acumulado tornou-se obsoleto e perdeu-se, muitas vezes sem deixar registro.
Este processo de substituição de uma técnica tradicional por outra
mais recente é algo inerente ao homem. Dentro da própria cultura construtiva
popular isto acontece, principalmente com a descoberta de novos materiais ou
com o esgotamento de outros, porém esta substituição não ocorre de maneira
tão brusca como aconteceu no século XX, devido aos progressos industriais e a
evolução tecnológica do processo construtivo.
Pode-se a#rmar que esta arquitetura popular ou tradicional está
vinculada a um primeiro estágio de modernidade onde os materiais empregados
na construção das habitações e demais edifícios são extraídos diretamente do
meio natural. A transformação de tais materiais em habitação não requer uma
transformação das características físicas e mecânicas destes. A madeira continua
sendo madeira, a pedra continua sendo pedra e o barro continua sendo barro.
O conhecimento tecnológico é aplicado na extração destes materiais para que
eles tenham uma maior durabilidade na confecção e preparo das peças, para
que apresentem um melhor desempenho mecânico com relação a questões
Casa Colônia MuricySão José dos Pinhais - Pr., 2005
Casa em Rio Branco do Sul - Pr., 2006
Casa Rural em Prudentópolis - Pr., 2008
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estruturais da edi#cação e respondam, de maneira e#ciente, ao meio ambiental onde
estão inseridos; salientando questões como intempéries, radiação solar, ventos e
proteção contra insetos e fungos.
Desta junção de materiais nasce a arquitetura popular. É o que Lévi-Strauss
(1962) nomeia como “bricolage”. O autor a#rma que o “bricoleur” está apto a realizar
um grande número de tarefas diversi#cadas, porém comparando-o com o engenheiro,
este não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas especí#cas e
utensílios procurados na medida em que concebe seu projeto. O “bricoleur” tem seu
universo fechado e produz sua construção com um conjunto sempre #nito de utensílios
e materiais. Ele não possui oportunidades que se apresentam de maneira variada, para
renovar e enriquecer as técnicas construtivas. O conjunto que se apresenta é limitado
ao uso, onde cada elemento se restringe a um emprego exato e determinado. Por
sua vez, o engenheiro tem ao seu dispor uma grande variedade de instrumentos e
materiais. Ele os classi#ca e escolhe segundo um projeto especí#co. A diferença entre
a construção produzida pelo “bricoleur” e a construção produzida pelo engenheiro é
na verdade a diferença entre o conhecimento tradicional e o conhecimento cientí#co.
O “bricoleur” faz com que sua produção não exceda a capacidade de
sustentação deste universo e não extrapole seu tênue equilíbrio (cultural ou ambiental).
A sua construção é a arquitetura popular. Já o engenheiro, por ter à sua disposição
grande quantidade de instrumentos e materiais, não compreende os estreitos vínculos
existentes no universo fechado do “bricoleur“, correndo o risco de produzir uma
construção erudita, sem qualquer vínculo cultural ou ambiental com este universo. Por
este motivo, é tão importante para os arquitetos o estudo desta arquitetura popular.
Não para repeti-la sem qualquer questionamento, mas para extrair destas várias
arquiteturas suas valiosas lições, já que este conhecimento os auxiliará em questões
como conforto ambiental, diminuição dos custos das construções e compreensão do
nosso passado arquitetônico.
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Saia (1978) a#rma que a arquitetura tradicional merece ser estudada
pelos arquitetos contemporâneos, no sentido de contribuir com sua formação
em questões vinculadas ao ordenamento do espaço e à escolha dos esquemas
construtivos mais satisfatórios. Sua apurada sensibilidade de selecionar os
resultados plásticos verdadeiramente expressivos confere à construção um maior
signi#cado social. Uma das qualidades essenciais do arquiteto é a sensibilidade de
perceber os fatores regionais e as realidades sociais para os quais a arquitetura se
destina, porque esta deverá sempre estar em sintonia com a estrutura íntima da
comunidade. A interpretação direta destes problemas confere à arquitetura uma
simplicidade apenas aparente, porém capaz de solucionar os problemas propostos.
Segundo o autor, a inteligência da arquitetura tradicional consiste,
basicamente, em resolver sem pretensões os problemas propostos pela comunidade.
Paiol Fedalto em Campo Largo - Pr.Foto: João Adolfo Moreira, 2005
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Esta arquitetura se mantém num alto nível de respeito próprio, o que a
diferencia de alguns exemplares modernistas da década de setenta, cuja repetição de
soluções previamente determinadas (como rampas, pilotis e brise-soleil) conferia
a elas apenas uma busca formal para incluí-las dentro do movimento modernista.
Tal busca estava totalmente desvinculada das realidades sociais das comunidades a
quem eram destinadas e também fora das proposições das correntes modernistas,
nas quais as soluções propostas não eram simplesmente formais, mas sim munidas
de todo um ideal teórico que caracterizava o movimento moderno.
No Brasil, a arquitetura popular apresenta diversidade de soluções e
tipologias, fruto da grande extensão territorial e diversidade cultural presentes no
país. Há muitos estudos relevantes sobre a arquitetura popular brasileira, alguns
feitos por pro#ssionais das ciências sociais e outros elaborados por arquitetos,
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muitos deles modernistas. Têm-se a compreensão errônea de que o movimento
modernista brasileiro rompeu com a arquitetura tradicional. Há um rompimento,
mas este não acontece de maneira total. O rompimento modernista abrange de
maneira mais efetiva a própria arquitetura erudita anterior a ele, onde o formalismo
eclético imperava. Muitos arquitetos vão buscar na racionalidade e funcionalidade
da arquitetura popular inspiração, como se pode veri#car no trabalho de Lúcio
Costa, Lina Bo Bardi e Severiano Porto, entre outros.
A italiana Lina Bo Bardi era uma defensora da arquitetura e da arte
popular. Mesmo #el aos preceitos do movimento modernista, alguns de seus
projetos têm referências claras do saber construir do homem do povo. Tem-se
como exemplo a escada do Solar do Unhão em Salvador, destinado ao Museu de
Arte Moderna da Bahia, onde Lina constrói uma nova escada com um sistema de
encaixes dos antigos carros de boi. Neste exemplo, a tecnologia tradicional milenar
é transportada para outro objeto, que é transformado na obra focal da intervenção
arquitetônica. O saber construir tradicional se transforma em arquitetura erudita
e se a#rma como obra de arte.
Bardi (1992) defende a ideia de que o homem do povo é o arquiteto
de verdade. Esta a#rmação tem importância, pois subverte toda a lógica entre
arquitetura popular e erudita. No texto elaborado em 1992, para apresentação
do livro “Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira” de Marcelo Carvalho Ferraz
a autora a#rma que as qualidades da arquitetura modernista são as mesmas da
arquitetura popular e traça uma dura crítica à inHuência do mercado imobiliário
e dos modismos na arquitetura brasileira que, segundo Lina, resulta em uma
arquitetura de má qualidade, em uma não-arquitetura. Em seu texto ela a#rma que
a verdadeira arquitetura, sem erros, sem o conjunto de aparências e preconceitos
frutos da pseudo-cultura, é a produzida pelo homem do povo. “O homem do
povo é o arquiteto de verdade, mesmo que por intuição” (BARDI in FERRAZ,
Escada do Solar do UnhãoFoto: Suelen Vasquez, 2005
Carro de BoiFoto: Key Imaguire Jr.
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1992, p. 07), sem o conhecimento erudito, pois constrói para suprir as exigências
de sua vida. “A harmonia de suas construções é a harmonia natural das coisas não
contaminadas pela falsa cultura, pela soberba e pelo dinheiro” (BARDI in FERRAZ,
1992, p. 07), vistos pela arquiteta como os modismos arquitetônicos propostos
pelo mercado imobiliário. Bardi entende por “falsa cultura” as referências históricas
e as inHuências arquitetônicas aceitas pelas correntes ditas pós-modernas.
Sendo #el aos preceitos modernistas, condena o uso de elementos
decorativos (segue os preceitos de Adolph Loos em seu artigo publicado em
1908, intitulado: “Ornamento é Crime”), e considera supérHuos o uso de estilos
arquitetônicos importados, sem nenhuma referência com o local de implantação
ou com a tecnologia local.
Ela defende a casa do homem comum, que tem qualidades arquitetônicas
semelhantes às propostas modernistas, onde a casa é um espaço simples e sem
retóricas, com os lugares cuidadosamente calibrados e pensados, onde é possível
viver e principalmente pensar, e onde se encontra a poesia da arquitetura. Estas
qualidades, como a ausência de elementos que não encontram uma função especí#ca
na construção e a racionalidade dos espaços assinalados como “cuidadosamente
calibrados e pensados”, são facilmente encontradas na arquitetura produzida pelas
camadas populares do país. Tais características são pouco absorvidas pelo grande
mercado consumidor, que não vê as casas somente como um objeto que cumpre a
função de moradia e, sim, como um produto a ser comercializado.
Saia (1978) compartilha da mesma ideia, porém, sua crítica é focada no
uso indevido de elementos modernistas, colocados à revelia por alguns arquitetos
para a#rmar o estilo. Esta arquitetura também foi produzida e absorvida pelo
mercado consumidor da mesma maneira que a arquitetura pós-moderna.
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Tanto Lina como Saia buscam um vínculo estreito entre a arquitetura e
as questões sociais, culturais e físicas do local onde a arquitetura é implantada, e
a relação desta com a comunidade para quem ela se destina. Questões como estas
estão muito distantes da vida pro#ssional de muitos arquitetos, que se desvinculam
dos aspectos locais e buscam referências formais e tecnológicas externas sem um
maior comprometimento com o usuário #nal.
A análise da arquitetura tradicional é, por isso, de estimável ajuda na formação do arquiteto contemporâneo: no sentido de contribuir substancialmente para a criação de uma estrutura mental capaz de enfrentar, com propriedade e adequação, as questões de ordenamento do espaço; esclarecida o su#ciente para a escolha dos esquemas construtivos mais satisfatórios para cada caso. (SAIA, 1978, p. 260)
No entanto, não se pode esquecer que a arquitetura é também um
símbolo de status econômico e cultural, portanto, não é possível retornar à pureza
funcional e formal da arquitetura tradicional. A arquitetura popular merece ser
estudada, todavia não podemos reproduzi-la, pois como a#rma Saia, “se cada
época e cada comunidade têm uma temática expressiva e uma intenção peculiar, é
evidente teimosia pretender repetir experiências plásticas destituindo-as de senso
de funcionalidade, (...).” (SAIA, 1978, p. 262)
Pode-se, portanto, compreender os fenômenos que a fazem surgir e, através
deste entendimento, propor uma arquitetura que possua os mesmos vínculos da
arquitetura popular, e também produzir uma arquitetura contemporânea que
reHita as questões culturais, sociais e econômicas do nosso tempo. Porém, para
tanto, é preciso que os arquitetos primeiramente assimilem algumas questões,
principalmente como vive a população brasileira, como ela experiencia sua morada
e quais as relações que lá acontecem.
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Lúcio Costa, em seu texto “Constatação”, de 1932, já demonstrava esta
preocupação:
Morei no Interior, neste interior desproporcionado do nosso país. E vi fazendas e sítios. Vi de perto o homem do campo no seu trabalho de enxada. Acompanhei-o légua e meia até o cercado onde mora por favor; entrei na casa onde ele vive: a mulher, os #lhos – aquela porção de #lhos de olhar espantado. Assistí à janta, vi o que eles comem. À noite, senti o vento soprar pelas frestas, a umidade subir do chão e vi como dormem, todos juntos. Sei no #m do mês o quanto ele “ganha”.
Morei nos subúrbios da cidade, nos quartos sublocados e nas favelas onde o operário vive. Segui-o muito cedo, na caminhada à estação; no trem apinhado, no “caradura”; presenciei à chamada, ao reinício do trabalho interrompido na véspera. Vi como ele come, sentado na calçada da fábrica ou encostado aos andaimes, o almoço requentado. Depois, à tarde, ainda o “caradura”, o trem apinhado, a caminhada e por #m, de novo, o quarto sublocado ou, lá em cima, a favela. É o que se convencionou chamar o “dia de oito horas”. Trabalha a vida toda – ganha apenas para sobreviver.
Morei nas casas de cômodo da cidade. Conheci costureirinhas que almoçavam média com pão, sonhavam com meias de seda, e se suicidavam, por amor, em Paquetá. “Crime ou suicídio?” – perguntavam os jornais. É tudo que elas ganham.
Como se vê, nada mudou, salvo o bonde de segunda classe, e o quarto sublocado, - as favelas cresceram. Quanto às “costureirinhas”, - continuam a sonhar, mas já não se matam por amor, em parte alguma.
(COSTA, 1993. Discurso proferido na solenidade de abertura do XVII Encontro Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo no dia 18 de julho de 1993, na UFRJ, no Rio de Janeiro.)
O conhecimento do morar do homem, independente de sua condição
social, é fundamental para uma boa arquitetura, pois sem ele corremos o risco
de produzir belos edifícios sem nenhuma possibilidade de se transformá-los em
morada.
A arquitetura popular brasileira sofre continuamente várias inHuências,
devido tanto à diversidade territorial quanto à cultural do Brasil. Cada estado
ou região apresenta características singulares em relação ao restante do país. No
Paraná, a recente arquitetura popular está intimamente ligada aos movimentos de
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imigração que ocorreram da segunda metade do século XIX até a primeira metade
do século XX. Neste período, as construções de origem portuguesa e indígena,
também consideradas populares, foram cedendo lugar à arquitetura do imigrante
e, hoje, poucos exemplares desta arquitetura colonial e indígena permanecem.
O imigrante não encontrou no Brasil os mesmos materiais existentes no
seu país de origem para a confecção de suas moradias. A adaptação das técnicas
construtivas destes imigrantes, provenientes de vários países europeus e asiáticos,
com o ambiente natural e diversi#cado resultou em uma arquitetura rica e singular.
Weimer (1987), relatando sobre a arquitetura do imigrante alemão no
Rio Grande do Sul, a#rma que este agiu de acordo com um repertório que lhe
era familiar e tentou reproduzi-lo de acordo com suas possibilidades materiais.
Esta adaptação está presente em toda a arquitetura da imigração no Brasil. Como
a#rma Key Imaguire Júnior, o colonizador europeu tinha disponíveis no Brasil
os três materiais básicos para construção: a madeira, o barro e a pedra. Sendo,
dentre eles, a madeira o mais rico em possibilidades, pela facilidade de manuseio
e Hexibilidade construtiva.
O exemplar mais signi#cativo da arquitetura popular deste período é a “Casa
de Araucária”, construção muito comum nas paisagens curitibanas, arquitetura
típica da região onde se encontrava a mata de araucária e que se estendia pelos
estados do sul do país. Sua maior densidade era no estado do Paraná.
A “Casa de Araucária” é uma arquitetura feita com madeira extraída da
araucária em processo industrial, desde as primeiras serrarias a vapor. A construção
é formada basicamente com madeira. As paredes são construídas com tábuas e
mata-juntas, o assoalho, o forro, as esquadrias e tesouras do telhado são também
de madeira. As fundações são de pedra, tijolo e, em alguns exemplos, de madeira de
Casa Pereira
em São Mateus do Sul - PR
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maior densidade, como a imbuia. A cobertura era de telhas cerâmicas, sendo que,
nos primeiros exemplares, a cobertura também era feita com tábuas de madeira,
chamadas “tabuinhas”.
Esta arquitetura sofreu uma contínua alteração ao longo do tempo, inclusive
com a substituição da espécie de madeira, como ocorreu na região denominada
Norte Novo1. Também está presente em quase todas as cidades do Paraná, sendo
sua mais expressiva arquitetura popular. Embora, em alguns casos, como a Casa
Pereira, em São Mateus do Sul, a Casa Estrela e a Casa Domingos Nascimento
(hoje sede do IPHAN) em Curitiba, a arquitetura deixe de ser popular e #gure
entre a arquitetura erudita paranaense, nas plantas ainda se percebe suas origens
tradicionais.
Atualmente, esta técnica ainda persiste, porém sem a expressão
arquitetônica e apuro construtivo dos exemplares mais antigos e com madeiras de
menor qualidade. Fica assim demonstrado que cumpriu seu ciclo evolutivo, e por
isso merece ser estudada e relatada.
A ocorrência da Casa de Araucária não se limitou às divisas do estado. Em
quase toda extensão da Horesta de araucária, que abrangia principalmente os estados
do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, encontram-se remanescentes
desta arquitetura, com muitas variações regionais, mas que na essência mantém as
mesmas características tecnológicas e construtivas.
O sistema construtivo denominado tábua e mata-juntas também não é
característico apenas da arquitetura feita com araucária, e sim das coníferas de um
modo geral, por apresentarem #bras longas e um tronco retilíneo, e por serem
árvores de grande porte. A matéria-prima presume a técnica e o mais coerente é
o uso do sistema de tábuas verticais e mata-junta como acabamento e junta de
1. O Norte Novo é a região paranaense ocupada a partir da década de 20 em torno da estrada de ferro, e onde surgiram cidades
como Londrina, Maringá e Apucarana.
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dilatação. Há exemplares em países nórdicos, além de Chile, Canadá, Estados
Unidos. Contudo, como a pesquisa fora do território nacional não foi abrangente,
acredita-se na hipótese deste sistema ser recorrente em outras áreas onde se
encontram coníferas. Veri#cou-se que este sistema não foi importado destes
países para o Brasil, pois o que chamamos de “Casa de Araucária” aconteceu sem
inHuências externas identi#cáveis, sendo fruto de um sincretismo arquitetônico,
como caracterizado anteriormente.
01
03
02
04
01 - Casa AmericanaFoto: Gary 718 | dreamstime.com
02 - Casa DinamarquesaFoto: Jean Schweitzer | dreamstime.com
03 - Casa AmericanaFoto: Jean Schweitzer | dreamstime.com
04 - Casa AmericanaFoto: Robert Fullerton | dreamstime.com
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Weimer (2005), referindo-se à arquitetura popular do imigrante italiano
no Rio Grande do Sul, a#rma que embora muitos historiadores tenham valorizado
as construções de pedra, por manterem um vínculo com a Itália, as construções
de tábua são as mais signi#cativas por expressarem a verdadeira dimensão da
criatividade e da capacidade de adaptação do imigrante no novo meio. Na região
de Curitiba, é muito comum vincular-se as construções com tábua e mata-
juntas com presença de lambrequins aos poloneses. Ao se referir a este sistema
construtivo, Weimer (2005, p. 245) apresenta uma imagem de uma casa de tábuas
com a referência: “uma casa dita polonesa na periferia de Curitiba, Paraná, com
destaque para os lambrequins.”
Dudeque (2001) a#rma:
Acreditou-se que os lambrequins eram uma prova clara e claríssima da inHuência germânica ou italiana, pois os construtores alemães eram os mais ativos da cidade no #nal do século XX. Mas como alemães e italianos havia em outras partes do Brasil, onde os lambrequins não eram tão triviais, a solução foi inventar genealogias que acabaram ligando os lambrequins aos poloneses. Ora, se a maioria dos poloneses que imigraram para o Brasil se estabeleceram na região de Curitiba, e como só em Curitiba todas as casas de madeira foram decoradas com lambrequins, o lambrequim só podia estar relacionado aos poloneses ou, pelo menos, esta seria a ‘origem mais provável’ (...). (DUDEQUE, 2001, p.252)
No entanto, o autor questiona esta hipótese, se referindo à legislação
urbana do #nal do século XIX, que incentivava a aplicação deste ornamento,
destacando seu uso na arquitetura curitibana, tanto de madeira como de alvenaria.
O lambrequim é um elemento presente em diversas arquiteturas. É difícil
uma de#nição precisa de sua origem, pois encontramos lambrequins tanto nas
construções tradicionais europeias como nas construções asiáticas. A necessidade
de proteger o topo dos caibros e das vigas que sustentavam o telhado da água da
chuva induzia o uso de uma de tábua, cuja forma deveria ser pontiaguda para
direcionar a queda da água pluvial. Esta era a real função do lambrequim, uma Casa CanadenseFoto: Frederic Sune | dreamstime.com
Código de Posturas do Município de Curitiba
Lei n° 527 d 27 de janeiro de 1919
Em 1919 a Câmara Municipal de Curitiba divide a cidade em três zonas, sendo permitido na primeira, que abrange a área central, somente construções que possuem as paredes externas em alvenaria. Nas demais zonas as construções em ma-deira sofriam algumas restrições como:
- O afastamento do alinhamento predial deveria ser de, no mínimo, dez metros. E os afastamentos laterais de, no mínimo, dois metros;- O muro frontal deveria ser de grades de ferro sobre alicerce de alvenaria;- A casa deveria ser construída sobre um alicerce de alvenaria com um metro, no mínimo, sobre um terreno nivelado. E com meio metro em um terreno inclinado;- Possuir lambrequins nos beirais frontais e laterais;- Possuir varandas com largura mínima de um metro e cinquenta centímetros, como passagem intermediária entre a casa e a rua;- Os compartimentos internos deveriam possuir, no mínimo, trinta e seis metros cúbicos com um pé direito de no mínimo quatro metros. E as janelas com as di-mensões mínimas de dois metros e trinta centímetros de altura por um metro e dez centímetros de largura. - Possuir janelas, portas, forros, paredes internas e externas além de lambrequins com pintura a óleo.
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espécie de pingadeira. Este elemento foi reutilizado como adorno na arquitetura
eclética do século XIX, geralmente confeccionado em metal. O chalé eclético
possuía lambrequins, e esta tipologia construtiva está presente em diversas cidades
brasileiras. A “casa dita polonesa” nada mais é do que uma referência ao ecletismo
que ocorria na Europa, que possivelmente foi trazido para as terras paranaenses
pelos imigrantes, não somente poloneses como também ucranianos, italianos
e alemães, e seu uso foi reforçado pela legislação curitibana, que almejava uma
cidade com ares europeus.
Porém, o uso dos lambrequins carrega uma aura mítica em Curitiba.
A referência a algumas etnias reforça a ligação quase que sentimental com o
ornamento. Alguns depoimentos conferem ao seu uso uma marca europeia às
construções:
“É saudades da neve”, como me a#rmou uma vez uma velha imigrante.
“Temos saudades da neve da Ucrânia, por este motivo marcamos as casas com este
rendado, era como #cava o beiral do telhado após uma nevasca”.
O lambrequim funcionando como pingadeira
Telhado sem o lambrequim
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Veríssimo (1999), no livro sobre os quinhentos anos da casa no Brasil, cita a trans-formação da casa brasileira no #nal do século XIX, onde salienta um dos modelos europeus
transpostos para o Brasil, o “Chalé Frances”:
O chalé é um excelente exemplo com seus lam-brequins de madeira e ferro nos beirais, seu porão elevado, o ferro fundido nos balcões, pilares e vigotas, com seu ar de clima temperado, trazendo a visão romântica dos espaços ideais, bucólicos (...). Os modelos considerados nobres são re-produzidos e interpretados. Encontra-se casas populares e vilas operárias com suas casas eclé-ticas e conjuntos de chalés, procurando, numa imitação, a identi#cação com a ideologia do es-paço dominante (...). (VERÍSSIMO, 1999, p. 63)
O chalé é frequente em quase todo o território nacional no #nal do século XIX e início do sé-culo XX. Esta tipologia está vinculada ao Chalé Francês, de referência eclética, o que explica o uso de lambrequins, muito comum nesta ar-quitetura, tanto a de alvenaria quanto a de ferro.
É muito provável que a “Casa da Imigração”, como descrita no primeiro tomo, recebeu inHuências do Chalé Eclético francês e está vinculada a dois fatores principais: a corrente eclética adotada em todo o território nacional, pois não há diferenciação volu-métrica ou compositiva entre o chalé eclético de
alvenaria ou de ferro do chalé de araucária. Tam-bém em termos de distribuição dos espaços inter-nos e a setorização dos usos não há diferenciação. O que varia são as possibilidades construtivas do material empregado. O outro fator é a legislação municipal, que incentivou a propagação deste tipo de construção em nossa cidade. Porém, esta tipolo-gia não ocorre somente em Curitiba, mas, sim, em toda região da mata de araucária. O que contribuiu para sua disseminação foi a grande quantidade de matéria-prima disponível, já bene#ciada industrial-mente, e o processo de imigração que possibilitou uma grande quantidade de mão de obra quali#cada.
Casa em Olinda - PE., 2009
Casa em Macaé - RJ., 2010
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Lambrequins curitibanosFonte: Key Imaguire Júnior
Casa de Madeira na Ucrâniafoto Oleksandr Smushko | Dreamstime.com
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Os antecedentes históricos da Casa de Araucária são de difícil de#nição.
Pode-se constatar que os portugueses e os indígenas brasileiros não usaram esta
técnica construtiva, e também que os imigrantes não a trouxeram de seus países de
origem, pois não se conhece remanescentes na Itália, Alemanha, Ucrânia, Japão
e Polônia datados da época da imigração. A hipótese mais provável é que estes
imigrantes conheciam as técnicas construtivas para trabalhar com a madeira, e
a araucária apresentava características mecânicas que facilitavam o manuseio,
ocorrendo o sistema construtivo de maneira intuitiva.
A araucária possibilitava o desdobre em tábuas com 30 cm de largura,
com alturas de até quatro metros e meio. O sistema construtivo mais adequado
para esta madeira, que existia em abundância, era o de tábuas com mata-juntas.
Já quanto à volumetria, a Casa de Araucária possui volumetria semelhante a das
casas de alvenaria feitas no Brasil e na Europa no período da imigração. Apenas o
material é substituído, pois em vez do tijolo ou a pedra é usada a madeira.
Apesar de sua simplicidade construtiva esta arquitetura possui grande
diversidade de soluções em vários elementos que a compõe. Podemos citar alguns
exemplos:
- Os oitões possuem grande variedade de desenhos. Sua função, afastado da
parede, é formar uma espécie de pingadeira, protegendo assim o topo da tábua da
parede. Tanto em Curitiba como em outras cidades onde este sistema construtivo
está presente veri#camos diversas soluções de acabamento para o oitão.
- Os lambrequins possuem uma grande variedade de soluções, e são um
dos elementos de composição mais marcantes desta arquitetura.
Todos estes elementos têm uma função construtiva, vinculada diretamente
com a durabilidade da construção, protegendo-a das intempéries. Contudo, os
Casa em Ouro Preto, 2007
Casa em Ouro Preto, 2007
Casa em Ouro Preto, 2007
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construtores não se limitaram apenas a resolver um problema funcional, mas sim
tiraram partido deste, criando importantes elementos de composição e tornando
esta uma arquitetura complexa e expressiva. Como citados por Imaguire no
primeiro tomo, há diversos elementos que possuem uma variedade formal e apuro
técnico comparável a dos lambrequins e oitões.
Estes elementos decorativos, juntamente com os outros aspectos
construtivos, individualizaram este sistema. Há somente uma tecnologia
construtiva, uma pequena disponibilidade de bitolas, uma única madeira usada,
todavia a variedade de soluções encontradas atesta que esta arquitetura possibilitou
tanto o apuro técnico quanto a liberdade criativa de seus construtores e moradores.
A proximidade entre o proprietário e o construtor também foi um dos fatores
que contribuíram para tal diversi#cação. Os mestres carpinteiros deixavam sua
marca em suas construções, detalhes que iam se aprimorando à medida em que a
experiência construtiva ia aumentado.
Projetos de casas de madeira.Acervo: Casa da MemóriaDiretoria do Patrimônio Cultural - FCC
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A casa de madeira e a de alvenaria, construídas no mesmo período, possuem a mesma volumetria e composição de espaços internos. Apenas o material é substituído, pois em vez de tijolo ou pedra, é usada a madeira.
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As casas de madeira possuían a mesma volumetria e disposição dos espaços das casas de alvenaria.
Detalhe Oitão
proprietários, porém o saber destes mestres carpinteiros se perdeu para sempre,
# cando apenas a materialização de seus conhecimentos construtivos e da lida com
a madeira nas poucas casas que restaram e nas fotos antigas que testemunharam
uma cidade com magní# cas e complexas construções de madeira que não mais
existe.
Este conhecimento, adquirido pelas gerações de construtores durante a
curta vida da Casa de Araucária, foi uma perda irreparável. Ainda encontramos
em Curitiba muitos exemplares destas casas de madeira, cujo número diminui
a cada dia. Muitas ainda serão demolidas, algumas poucas serão preservadas, ou
por entidades que se sensibilizam com a preservação da nossa cultura ou pelos
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Oitão
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Varandas
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Janelas
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Uma arquitetura %exível
A Casa de Araucária é uma arquitetura Hexível por de#nição, devido a
alguns fatores como a facilidade construtiva e a modulação de 30 cm decorrente
da padronização da largura das tábuas. O sistema construtivo é simples, o que não
impediu a grande quantidade de soluções volumétricas.
Porém, mesmo com a aparente baixa tecnologia, a Casa de Araucária
atingiu uma expressividade arquitetônica e acompanhou as alterações do modo de
morar ao longo do tempo, mesmo empregando sempre a mesma tecnologia.
Também é importante o fato desta arquitetura ser tão difundida no Paraná e nos
outros estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Analisando algumas
fotos antigas de Curitiba e cidades do interior do Paraná identi#ca-se a presença
marcante da Casa de Araucária. O fato desta arquitetura possuir um sistema
construtivo simples e com os elementos para sua confecção padronizados contribuiu
para a absorção desta tecnologia por um grande número de construtores.
A simplicidade do sistema, aliada com a grande quantidade de matéria-
prima no mercado, possibilitou a difusão do seu modo construtivo, todavia, esta
simplicidade não o limitava. A imensa gama de possibilidades é atestada pela grande
variação tipológica de seus remanescentes. A pré-fabricação de suas peças criou o
que chamamos de um “Sistema Construtivo Aberto” e a modulação de trinta
centímetros, na verdade, favoreceu a liberdade criativa de seus construtores. E ao
se caracterizar como uma construção fácil, os mestres carpinteiros direcionaram
sua liberdade criativa na produção dos detalhes de acabamentos individualizando
cada edi#cação. Wenceslau Braz na década de 1930Foto: Album do cincoentenário da Estrada de Ferro do Paraná - 1885-1935
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46
A casa de madeira americana, a chamada “Balloon Frame” dispõe de toda uma linha de produção de vários componentes e encaixes que acompan-haram a evolução tecnológica industrial. A casa concebida no século XIX sofreu grande evolução tecnológica, porém sua volumetria permaneceu com as mesmas referencias de seus primeiros exemplares. Hoje há um amplo mercado consumidor de casas de madeira nos Estados Unidos e toda uma indústria voltada para esta construção, mas a Casa Vitoriana ainda persiste, sua volumetria e características arquitetônicas muito nos lembra a casa do século XIX, não reHetindo as mudanças tecnológicas que esta arquitetura sofreu ao longo do tempo. Porém muito se constrói em madeira nos Estados Unidos, e encon-tramos muitos bons exemplares contem-porâneos que não apresentam qualquer relação com a Casa Vitoriana, testemun-hando a excelente tecnologia disponível voltada para as construções em madeira.
Oliveri (1972) a#rma que “a casa pré-fabricada americana onde o valor tecnológico é notável, porém entra em contradição com a #guratividade ob-soleta inspirada em precedentes modelos arquitetônicos de estilo vitoriano”. Se-gundo o autor, este sistema foi concebido para reproduzir grosseiramente o que se fazia com tijolos e, por conseguinte, é limitado sob o ponto de vista criativo e equivocado sob o ponto de vista cultural.
Se compararmos uma casa construída nas primeiras décadas do século XX
com uma outra, da década de 1960, ambas possuem o mesmo sistema construtivo,
porém sua volumetria é completamente diferente. No caso da Casa de Araucária,
a simplicidade do sistema constritivo favoreceu a complexidade de soluções
possíveis. O mesmo não acontece com a casa de madeira americana.
A proposta tipológica apresentada por Key Imaguire Júnior, a#rma a fácil
absorção das correntes arquitetônicas ao sistema construtivo da Casa de Araucária.
O primeiro tipo, denominado “Casa Luso-Brasileira”, apresenta a solução com
referências às casas coloniais, com seus telhados voltados para a frente e fundo
dos lotes. O segundo tipo, denominado Casa da Imigração, buscou referências
na arquitetura eclética francesa, presente tanto nas edi#cações o#ciais brasileiras
quanto nas construções destinadas às camadas de alta renda do país. Já o terceiro
tipo, a Casa com Chanfro, também se inspirou nas correntes ecléticas, buscando
Casa VitorianaFoto: Terry CAr | dreamstime.com
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referências nos “bungalow”. Veríssimo (1999) a#rma que na década de vinte
houve diversas publicações no Brasil onde aparecem esta arquitetura europeizada
e ressalta que o uso dos “bungalows” e residências “normandas” conferiam um ar
erudito aos seus proprietários.
Nas diversas publicações de arquitetura existentes nos anos vinte também percebemos, pelo lado dos mais “europeizados” ainda alheios a qualquer manifestação nacionalista, o gosto dos bungalows e residências “normandas” profusamente adotadas, conferindo sempre um “ar erudito” ao seu proprietário, diferente das posturas tradicionais do neocolonial. As plantas, como de#nições de espaço, praticamente perpetuavam os valores antão adotados. Apenas alguns novos elementos decorativos vão estar presentes: uma lareira, um tapete importado, uma luminária européia, ou mesmo uma paisagem romântica presente num tapete ou quadro nas paredes, além da falsa estrutura de madeira das fachadas (VERÍSSIMO, 1999, p. 70).
Comparando os “bungalows” em alvenaria com a casa com chanfro,
percebe-se que a volumetria é semelhante, variando apenas os adornos na fachada,
impossibilitados pelo uso da madeira no sistema tábua e mata-juntas como
material construtivo. Em Curitiba esta tipologia não se limitou às camadas mais
ricas da população. Nos subúrbios e áreas onde se concentram a classe média e
pobre, estas residências também estão presentes, tendo apenas suas proporções
reduzidas.
O quarto tipo refere-se a casa com telhado de quatro águas. É muito
comum encontrarmos em Curitiba pequenas casas com telhado em quatro águas
produzidas em série com as mesmas características em diversos locais da cidade.
Também foram observadas casas com maiores dimensões, avarandadas, com
acabamentos complexos e primorosos. Porém, o tipo mais interessante do ponto
de vista técnico, que comprova a Hexibilidade do sistema, é o quinto tipo, a casa
modernista. Data, aproximadamente, a partir da década de sessenta. Possui maior
racionalidade construtiva, com pé direito mais baixo e maior complexidade na
volumetria do telhado, usando elementos metálicos como esquadrias, pilares,
rufos e calhas. Apresenta grande variação volumétrica, que acompanha a variação
volumétrica das casas modernistas de alvenaria.
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49
Além das casas construídas apenas com madeira, encontra-se na cidade muitas casas mistas. São mistas as casas
que possuem a subdivisão interna em madeira com o invólucro externo em alvenaria ou as casas com apenas a frente em
alvenaria e restante em madeira. Não são consideradas mistas os exemplares que sofreram adaptações em alvenaria, como
acréscimo de banheiros ou ampliação neste material.
As frentes em alvenaria são erroneamente entendidas como adaptação posterior. A construção da parte frontal
neste material era uma exigência da legislação, que não permitia casas de madeira próximas a área central, porém acredita-
se que estes exemplares não são somente construídos desta forma por uma exigência legal, mas sim como uma forma
de atribuir valor à moradia, uma espécie de status, que elevava a edi#cação apenas de madeira para uma edi#cação em
material, termo muito usado para denominar as casas em alvenaria de tijolos. Estas casas também seguiam as mesmas
correntes de inHuências das demais construções em alvenaria ou madeira, porém, no caso das casas de madeira com frente
em alvenaria, as composições das fachadas possibilitavam aos construtores incorporações de elementos estéticos muito
mais variados do que na casa em madeira, cuja adição destes elementos era possível apenas nos beirais, oitões, guarda
corpos e vãos, elementos estes sempre vinculados a questões técnicas.
As inHuências das correntes arquitetônicas que nortearam a tipologia e volumetria das construções podem ser
divididas principalmente entre arquitetura eclética de inHuência francesa - que data do século XIX até a década de trinta e
a arquitetura chamada de funcionalista ou moderna, conceituada como uma arquitetura racional e funcional. Veríssimo
descreve esta arquitetura:
Projeto de casas de madeiraAcervo: Miguel Coelho dos Santos
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Os anos quarenta vão encontrar a sociedade brasileira verdadeiramente fascinada pelo american-way-of-life, abandonando, em grande parte, seus hábitos franceses, já quase tradicionais. A moradia também recebe esta inHuência, principalmente quanto ao seu funcionamento (...). (Nos anos cinqüenta) nossas habitações procuram novo caminho quanto ao aspecto formal e ao gosto moderno, com fachadas retilíneas, formas geométricas simples e janelas de correr (...). (VERÍSSIMO, 1999, p. 74)
Na transição entre estas duas correntes encontramos a arquitetura neo-
colonial, que foi a primeira proposta para uma arquitetura nacional, e ocorreu logo
após a proclamação da república. Porém, na arquitetura de madeira os elementos
neocoloniais #cam visíveis apenas nas casas mistas, ou seja, com frente de alvenaria
ou invólucro de alvenaria, onde aparecem arcos, telhas capa e canal compondo a
fachada e frontão, elementos decorativos de fachada como pedras e tijolos.
Observamos, a partir dos exemplares estudados, que em Curitiba as casas
de madeira mais antigas trazem referências luso-brasileiras, e posteriormente
apresentam características da arquitetura eclética. A inHuência da arquitetura
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neocolonial ou californiana, comuns nas décadas de trinta e quarenta, também
é veri#cada principalmente nos exemplares com frente em alvenaria. Após
a consolidação do modernismo brasileiro com a construção do conjunto da
Pampulha e, depois, Brasília, a Casa de Araucária começa a apresentar alguns
exemplares referenciando formas da arquitetura modernista, muito em voga nas
revistas e demais meios de comunicação da época.
O fácil domínio da técnica construtiva possibilitava não somente a
construção mas também reformas e ampliações, que eram muito comuns nas
casas de madeira. Estas adaptações posteriores à construção, como ampliações,
incorporações de elementos e volumes em alvenaria, entre outros, tinham como
#nalidade a adaptação da casa ao novo modo de morar, incorporando novos usos
e equipamentos, muito semelhante ao que ocorreu a casa de alvenaria.
Dentre tais adaptações, as mais signi#cativas foram:
- ampliação da casa e alteração volumétrica: muitas casas sofreram alterações
e ampliações a partir do módulo inicial, que era posteriormente adaptado e
ampliado segundo as necessidades dos moradores. Contudo, é muito difícil saber,
precisamente, qual foi o módulo inicial, e se a casa realmente sofreu ampliação ou
adaptação. Grande parte dos exemplares estudados não passou por um processo
de aprovação nas prefeituras e não há documentação sobre estas modi#cações e
tampouco datas das construções e ampliações;
- inclusão de elementos ou espaços em alvenarias: a maioria das adaptações
de espaços ou ampliações em alvenaria é relativa às áreas úmidas. É comum a
presença de novos volumes neste material em substituição à madeira para compor
cozinhas e banheiros, principalmente nas edi#cações datadas do #nal do século
XIX até as primeiras décadas do século XX. Nestas casas o banheiro era externo,
o que era vulgarmente chamado de “casinha”. A cozinha também necessitava de
pelo menos uma parede defronte a pia em alvenaria, evitando assim a degradação
da madeira devido ao contato intenso com a água.
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O sistema construtivo da Casa de Araucária não possuía a Hexibilidade
necessária para incorporar as áreas úmidas em madeira, como no caso do sistema
construtivo presente na casa americana, onde é possível construir toda a casa em
madeira. As áreas úmidas são revestidas com chapas impermeáveis, não sendo
necessária a inclusão de outro sistema construtivo, como a alvenaria de tijolos,
para as áreas úmidas.
(...) o “quartinho”, “casinha”, “latrina” ou “privada”, antes localizados nos fundos dos quintais, sobre fossas fétidas, sem água corrente, começam a se aproximar das residências, acoplando-se às cozinhas, compondo-se uma única área que deve possuir tubulação de esgotos, piso e paredes laváveis e abastecimento de água localizado. (...) Com a entrada de produtos sanitários importados, o banheiro aproxima-se da casa, mas pelos fundos (VERÍSSIMO, 1999, p. 101).
Nas edi#cações mais contemporâneas o banheiro é separado da cozinha e
disposto mais próximo dos quartos. Porém, pelo não desenvolvimento tecnológico
deste sistema construtivo, no que se refere às áreas úmidas, estes espaços, na grande
maioria das vezes, são executados em alvenaria. A Casa de Araucária, ao longo de
sua existência não incorporou tecnologia para solucionar a necessidade de espaços
úmidos, em contato direto com a água, como vemos nas casas de madeira européia
e americana. Deste modo, as áreas úmidas são sempre entendidas como anexo,
não se incorporando plasticamente ao restante da edi#cação.
- relocação das casas: muitas casas de madeira foram construídas em um
local especí#co e, posteriormente, foram trasladadas ou para outro local no mesmo
terreno ou até para outros bairros. Este traslado era feito de muitas maneiras, ou se
desmontava a casa e remontava em outro local, ou simplesmente a casa era erguida
com macacos hidráulicos.
Diferente da tradição construtiva européia, onde a cozinha é geralmente disposta no centro da casa, a arquite-tura colonial brasileira instalou a cozinha em um espaço isolado, geralmente nos fundos. Afastando o calor e evitando, desta maneira, a entrada da fumaça pro-veniente do fogão à lenha nos demais cômodos, seu isolamento também reHete uma questão social, pois a cozinha era o es-paço dos empregados, geralmente escravos.
Em algumas casas as cozinhas eram divididas em dois espaços distin-tos: a que era incorporada à casa e a “co-zinha suja”, localizada em uma edi#cação separada do corpo principal da edi#cação ou em uma área anexa. A “cozinha suja” era, geralmente, localizada próxima ao poço. Neste local se preparavam os ali-mentos que “sujavam a casa” e eram mortos os animais destinados ao con-sumo, como por exemplo as galinhas.
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Frequentemente a casa era deslocada para o fundo do terreno, para ser
construída uma casa de alvenaria na frente, e neste caso se retiravam os pilaretes
do alicerce e a casa era colocada sobre troncos, que eram “rolados” para o local
destinado no terreno.
Quando o transporte era feito para distâncias maiores, a casa era erguida
com macacos hidráulicos, colocada em cima de um caminhão e transportada para
outro local da cidade ou até para outro município. Durante a pesquisa constatou-
se que muitas casas foram relocadas dentro do próprio terreno usando-se macaco
hidráulico e troncos. Outras foram transportadas via caminhão. Infelizmente,
existem poucos registros fotográ#cos deste transporte.
Há algumas casas signi#cativas que foram desmontadas e remontadas em
outro local, como a casa que é hoje a sede do IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional em Curitiba; a casa Erbo Stenzel, remontada no
parque São Lourenço; a Casa Estrela que foi desmontada recentemente e será
montada no campus da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A possibilidade
de deslocamento e remontagem é mais um fator que comprova a Hexibilidade do
sistema construtivo.
A Casa de Araucária, mesmo inHuenciada pela recente corrente mi-gratória, perpetua o esquema colonial. Nela a cozinha é também disposta nos fundos da edi#cação, próxima à entrada dos fundos, ou seja, a entrada secundária.Já o banheiro não possuía as mesmas fun-ções que o banheiro contemporâneo. A função de higiene, o banhar-se ou o lavar-se, era realizada dentro da casa, geralmente nos quartos. Já a latrina era disposta afasta-da da moradia, nos fundos do terreno, e conhecida como casinha. A casinha era composta por um assento de madeira so-bre uma fossa seca, e sem água corrente. Com os avanços da construção civil e a oferta de materiais hidráulicos que possibilitam o acesso à água potável e ao sistema de esgoto, tanto a cozinha quan-to o banheiro se incorporam ao corpo da casa, em um primeiro momento lado a lado, devido ao alto custo da tubulação.
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Uma arquitetura seriada
Uma das possíveis classi#cações da Casa de Araucária refere-se às questões
relacionadas à pré-fabricação. Em Curitiba encontramos diversas casas singulares,
cuja construção foi elaborada artesanalmente, não prevendo qualquer espécie de
repetição da construção em outras localidades. Geralmente as casas com maiores
dimensões, com elementos mais complexos e acabamentos mais elaborados, foram
produzidas singularmente dentro da concepção artesanal.
Também encontramos muitas casas que foram produzidas em série e
geralmente estão implantadas em um único terreno, formando uma espécie de
condomínio, ou espalhadas pela cidade em terrenos únicos, porém apresentam o
mesmo módulo construtivo, com a mesma dimensão e volumetria. Estas moradias
foram produzidas em série nas próprias serrarias, vendidas, pré-cortadas e levadas
ao local de implantação apenas para a montagem, o que se chama vulgarmente de
kits. Em alguns casos, estes conjuntos foram produzidos pelo mesmo carpinteiro,
cuja fórmula construtiva ou kit é de sua própria autoria. Várias destas casas eram
depois ampliadas ou com alguns detalhes especí#cos alterados, como acabamento
dos oitões e pilares das varandas, que eram modi#cados para individualizar
a moradia. Contudo há, ainda, em Curitiba, alguns destes grupos de casas
idênticas que possivelmente pertenciam à mesma família e eram uma espécie de
investimento para obtenção de renda através do aluguel. Mesmo estes exemplares
são muito bem construídos e possuem acabamentos singulares, o que di#cilmente
se encontra hoje, nas atuais construções em série.
Algumas empresas também produziram casas em série para seus
funcionários, como o caso das vilas ferroviárias de Curitiba. A ferrovia no Paraná
está intimamente ligada ao processo de urbanização do estado. Muitas cidades
nasceram a partir das estações de trem. A empresa ferroviária possibilitou o
54
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56
escoamento da madeira de pinho extraída da Horesta de araucária, e utilizou
o pinho como principal material utilizado para construção das primeiras
estações e da infraestrutura necessária à implantação e expansão de sua malha.
O Paraná, na primeira metade do século XX, tinha sua paisagem
urbana formada, em sua maioria, por edi#cações em madeira, sendo a rede
ferroviária um dos principais consumidores desta tecnologia construtiva.
Analisando o arquivo fotográ#co da extinta RVPSC (Rede Viação Paraná
Santa Catarina) vê-se muitas cidades nascendo ao redor da pequena estação
de madeira, tendo ao lado algumas casas também em madeira, construídas
no sistema tábua e mata-juntas. Junto à estação ou em suas proximidades era
construída a vila ferroviária.
Projeto de casas de madeiraAcervo: Miguel Coelho dos Santos
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A empresa, nos 113 anos de existência, foi uma das principais construtoras de
casas operárias. Há registros, datados a partir da década de trinta, de reivindicações
dos funcionários para #nanciamentos e possibilidades de acesso a moradia. Um
dos principais sistemas construtivos foi a tábua e mata-juntas, que era utilizado
em grande parte das primeiras estações. Também as casas dos funcionários e os
edifícios de apoio, como garagens, o#cinas e depósitos, eram construídos neste
material. O pavilhão destinado à exposição ferroviária, construído em 1935 para
a comemoração dos cinquenta anos da estrada de ferro no Paraná, também foi
construído no sistema tábuas e mata-juntas.
Ao contrário do que acontecia na maioria das construções neste sistema, a
edi#cação seguia um projeto feito por um engenheiro da empresa, sendo planejada
e padronizada. As estações eram dimensionadas de acordo com a capacidade do
local de instalação, e as residências hierarquizadas pelo tamanho, de acordo com o
cargo ocupado na empresa pelo morador.
As construções não seguem uma tipologia própria da empresa, e sim a
mesma volumetria das casas anteriormente analisadas. No entanto, possuem menor
complexidade nos acabamentos, similar às construções convencionais produzidas
em série. Comparando-se as primeiras construções com as mais recentes, também
se veri#ca que há a mesma variação volumétrica presente na Casa de Araucária.
As primeiras possuem referências ecléticas, e as edi#cadas a partir da década de
sessenta possuem referências modernistas.
Pesquisando o Correio Ferroviário, um periódico publicado pela RVPSC a
partir de 1933, constatou-se que o acesso à moradia era uma questão importante.
Um artigo de 1936 salienta: “um dos principais problemas humanos da atualidade
é a habitação e o governo brasileiro resolveu con#á-lo às organizações autônomas,
mas de caráter o#cial, como as Caixas de Aposentadorias e Pensões”.
As primeiras ligações ferroviárias
do Paraná datam do #nal do século XIX,
iniciando-se com trecho ligando Curitiba
a Paranaguá que é inaugurado em 1885.
Posteriormente, a rede ferroviária foi
expandida para outras cidades paranaenses
e, no ano de 1942, toda a malha ferroviária
dos estados do Paraná e Santa Catarina
foi encampada pelo governo federal e se
transformou na Rede Viação Paraná e
Santa Catarina (RVPSC), com sede em
Curitiba. A RVPSC passou a pertencer,
em 1957, à Rede Ferroviária Federal
S. A., empresa estatal que reunia vinte
e duas outras ferrovias. A RFFSA foi
privatizada na década de noventa. O trecho
pertencente a RVPSC foi adquirido pela
empresa Ferrovia Sul Atlântico, passando a
chamar América Latina Logística em 1999.
58
Com este dispositivo legal a Caixa de Aposentadorias e Pensões dos
Ferroviários inicia a construção de casas para os ferroviários. No artigo publicado
em novembro de 1937: “(...) a propriedade exerce na economia particular uma
inHuência primordial. O indivíduo, com sua propriedade, sente-se por maneira
inHuenciado para o bem e para o trabalho.”
59
Em 28 de julho de 1937 é exposto o regulamento para a
aquisição de moradias, que tem como objetivo facilitar o acesso
à habitação “ao alcance dos modestos recursos dos associados” e
apresenta questões como:
- prazo de vinte anos para o pagamento;
- no caso de família composta por mais de quatro #lhos menores
de 16 anos, o prazo se estende a vinte cinco anos;
- resgate da dívida não poderá ser superior a 45% dos vencimentos
mensais do associado;
- possibilidade de compra de habitação, compra de terreno e
posterior construção da habitação, empréstimo para construção
de habitação em terreno anteriormente adquirido, remodelação de
habitação existente, venda de prédios construídos ou adquiridos
por iniciativa direta e venda de apartamentos. Os dois últimos
itens possibilitam a uma empresa obter #nanciamento da caixa de
pensão para construção de habitações destinadas à venda para os
próprios associados;
- obrigatoriedade de apresentação de plantas de situação e
Fonte: Correios dos Ferroviários, 1937 - 1938
60
orientação da construção na escala 1:500 e planta de cada pavimento na escala
1:100. No caso de remodelação de habitação, apresentação de fotogra#a 18x24cm
da fachada principal;
- no caso de construção de habitações para venda, “os apartamentos serão do
tipo econômico, respeitado a simplicidade de concepção, o emprego racional dos
materiais e os requisitos de higiene e conforto e de conservação fácil e módica.”;
- a localização terá sempre em vista a proximidade da sede de trabalho do associado
ou a facilidade de transporte barato deste;
- taxa de juros inicial de 6% ao ano, podendo ser elevada a 8% se exigirem as
condições #nanceiras;
- obrigatoriedade de seguro de vida e contra fogo;
- em casos especiais, poderá ser realizada, em regiões apropriadas, a construção de
casas de madeira, mediante prévia aprovação do Conselho Nacional do Trabalho,
não podendo o prazo de pagamento exceder 10 anos.
A preocupação com o acesso à moradia exposto no regulamento é permeada
por questões como a localização das habitações operárias em áreas próximas ao
local de trabalho. Outra preocupação são as questões sanitaristas, que aparecem
em alguns termos como “casas higiênicas” e de “fácil manutenção e limpeza”.
Também veri#ca-se o preconceito existente com a habitação em madeira, pois esta
requeria uma maior burocracia para aprovação do #nanciamento, além de possuir
a metade do prazo para a sua quitação, todavia, isto não impediu a construção de
casas de madeira. Provavelmente, o prazo era menor devido o custo da construção
em relação à casa de alvenaria.
61
Em outro texto, datado de março de 1938, é solicitado à RVPSC o
transporte gratuito dos materiais de construção, principalmente nas grandes
cidades, como Curitiba e Ponta Grossa, onde as vilas ferroviárias são afastadas do
centro.
Não foi possível determinar a quantidade de habitações produzidas através
do #nanciamento da Caixa de Aposentadoria e Pensão da RVPSC, tampouco
localizar com exatidão todas as tipologias construídas. Há uma diferenciação entre
as casas de propriedade da RVPSC construídas para os funcionários e as casas
que foram #nanciadas pela Caixa de Aposentadoria e Pensão, contudo supõe-se
que não há uma diferenciação tipológica marcante entre as casas construídas pela
RVPSC para seus funcionários e as casas adquiridas pelo mercado imobiliário.
Esta diferença se daria em algumas questões projetuais, entretanto, as dimensões e
quantidade de cômodos seguiam a lógica do mercado imobiliário, como se constata
comparando as habitações produzidas pela RVPSC com outras contemporâneas
a estas.
Para análise deste trabalho, focou-se somente as tipologias produzidas pela
própria RVPSC, não tendo sido localizadas as tipologias #nanciadas pela Caixa de
Aposentadoria.
Foram estudadas cinco vilas ferroviárias instaladas em Curitiba, uma delas,
a vila o#cinas, possui apenas casas de alvenaria. Sua inclusão se mostrou necessária
para aprofundar a análise comparativa entre uma arquitetura seriada construída
com madeira e uma arquitetura seriada de alvenaria. Veri#cando a volumetria
de ambas as casas e a distribuição espacial conclui-se que não havia diferenças
marcantes entre as casa de alvenaria e as de madeira, apenas a técnica construtiva
as difere.
Fonte: Correios dos Ferroviários, 1938
62
Vila Capanema
A Vila Capanema era composta por aproximadamente setenta casas, sendo a
maioria delas construídas em madeira. Está situada nos fundos da Rodoferroviária
e ao lado do Estádio Durval Britto e Silva, antigo estádio do Ferroviário.
Hoje restam apenas alguns remanescentes ofuscados pelo complexo sistema viário
local.
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Casas da Vila Capanema, sem dataAcervo: Disciplina da Aquitetura Brasileira da UFPR, cedido por Key Imaguire Júnior em 2005
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Projeto da casa de madeira tipo A ampliadaAcervo: Rede Ferroviária S.A. cedido em 2005
Casas da Vila Capanema, sem dataAcervo: Disciplina da Aquitetura Brasileira da UFPR, cedido por Key Imaguire Júnior em 2005
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Vila O)cinas
A vila o#cinas foi construída para abrigar os funcionários das o#cinas da
rede ferroviária, por isso o seu nome. É composta por casas de alvenaria
que possuem uma pequena variação tipológica. As residências maiores são
destinadas a engenheiros e funcionários mais graduados, estas possuem
plantas mais complexas e maior volumetria. As residências menores são
destinadas aos operários, formando a maior parte do conjunto. As casas
da Vila O#cinas possuem uma particularidade, ao compará-las com as
outras vilas ferroviárias curitibanas elas possuem uma edícula implantada
nos fundos do terreno, destinada ao abrigo de veículos. Nestas casas a
garagem ainda se mantém isolada do corpo da edi#cação, situação comum
nas residências urbanas anteriores a década de cinquenta.
Também faz parte do conjunto de edi#cações os edifícios destinados
à manutenção das locomotivas e uma escola.� � � �� � � � � � � � � �� � � � �� � � � �� � � � � � �� � �
As casas de madeira produzidas pela rede não possuíam diferenças de plantas ou volumetria, comparadas com as casas de alvenaria construídas pela empresa.
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Casa do Guarda Chaves
O conjunto de casas denominada “Casa do Guarda Chaves” foi implantado ao
longo da linha férrea aos fundos do terreno do Graciosa Country Clube, no bairro
Cabral.
As casas de madeira possuem volumetria singular, são estreitas e compridas, talvez
pela necessidade de aproveitamento da faixa de domínio da ferrovia ao longo dos
trilhos.
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� � � � � � �� � � � �� � � � � � � � � � � � � � � � � � �� � � � � � � �Projeto da casa de ma-
deira para guarda-chavesAcervo: Rede Ferroviária
S.A. cedido em 2005
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Vila Ferroviária do Cajurú
A Vila Ferroviária do Cajurú é composta por um pequeno número de casas de
madeira já bastante alteradas. A primeira vista não parecem formar um conjunto,
porém olhando mais atentamente é possível perceber os módulos iniciais que
foram posteriormente alterados e ampliados.
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Vila Ferroviária da Água Verde
A Vila Ferroviária da Água Verde foi implantada ao longo dos trilhos,
próximo a estação de mesmo nome e era composta por casas de alvenaria e
madeira. Com a desativação dos trilhos e demolição da estação o conjunto
foi aos poucos se descaracterizando, restando hoje apenas algumas casas já
muito descaracterizadas.
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� � � �� � � �� � � � �� � � � �� � � � �� � � � � � � �� � � � �Projeto da casa de madeira para guarda-chavesAcervo: Rede Ferroviária S.A. cedido em 2005
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A negação da casa madeira e o Erkulit
As edi#cações de madeira foram sofrendo diversos preconceitos ao
longo do tempo, talvez devido à nossa cultura construtiva herdada já no inicio
da colonização portuguesa, que tinha como referência a casa sólida, caiada, em
oposição à moradia indígena, leve e efêmera, confeccionada com materiais naturais,
cuja aparência denotava certa fragilidade. A solidez da casa colonial demonstrava
a #xação na terra, certo domínio do meio natural. Por sua vez a efemeridade da
casa indígena demonstrava um perfeito equilíbrio entre a intervenção humana e
o meio natural.
A Casa de Araucária é fruto da intervenção humana na natureza. Sua
matéria prima, a madeira, provém da derrubada da mata, porém a utiliza na
confecção das moradias, demonstrando um primeiro estágio de modernidade, no
qual os materiais são apenas moldados, mas em sua essência ainda continuam os
mesmos, sem sofrer grandes transformações, como no caso do tijolo, do concreto
e do aço.
Talvez, devido a esta aparente efemeridade e também à aparente falta
de modernidade, é que as pessoas preferem as casas de material, pois a #xação
de maneira de#nitiva representada pela casa de paredes sólidas, além de marcar
o território de modo quase que irreversível, demonstra o poder sobre o meio
natural, além de remeter a uma ideia de status com relação a outras edi#cações
com aparência menos sólida. Tal ideia se torna mais clara nas décadas de 1950
e 1960, devido aos ares modernistas provenientes da construção dos primeiros
conjuntos modernos e rea#rmado na inauguração de Brasília, a nova capital
brasileira. O modelo de modernidade desta época evidenciou o concreto como
ícone da modernidade. Um país que almejava o progresso o estava conquistando e
isto estava muito claro nas revistas que evidenciavam a nova maneira de morar. A
exaltação ao modernismo legou à madeira apenas uma função secundária.
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78
Como visto anteriormente, nas décadas de 1950 e 1960 temos em Curitiba
uma Casa de Araucária com referências modernistas, porém as correntes modernistas
não absorveram esta técnica construtiva. Construir em madeira usando-se tábuas
e mata-juntas não consistia em uma postura moderna. Não existem construções
elaboradas por arquitetos modernistas cujo sistema construtivo fosse o mesmo
elaborado para a Casa de Araucária. Construir desta maneira era uma postura
conservadora e tradicional, que caracterizava um olhar para o passado e não para
o futuro como pregava o movimento moderno.
É dentro deste contexto que surge o Erkulite. Curitiba possuía uma
grande quantidade de casas de madeira, e substituir uma casa de madeira por
uma construção em alvenaria não estava ao alcance de todos. Possuir uma casa de
alvenaria demonstrava certo status, a#rmava que o morador estava prosperando,
pois morar em uma casa de material era como ascender socialmente. O Erkulite é
um dos casos mais interessantes de intervenção nas casas de madeira. É composto
por uma chapa de #bras de madeira mineralizada, que tem como função revestir
a casa para que esta #que com o aspecto de uma casa de alvenaria. O slogan da
empresa é “Mude sua casa sem mudar de endereço. Com chapas Erkulit sua casa
de madeira se transformará em uma linda residência em material.”
A empresa foi montada pelo austríaco Peter Petschel na década de sessenta.
Ele trouxe da Áustria a tecnologia da fabricação de chapas de #bra mineralizada
de madeira, que em princípio seriam utilizadas para isolamento térmico. Peter
adaptou o uso das chapas para o revestimento de casas de madeira. As chapas são
pregadas nos mata-juntas deixando o espaço entre a tábua e a chapa de Erkulit
para ventilação. Posteriormente, é aplicada uma tela plástica nos cantos e nas
juntas para evitar rachaduras. Os pregos devem #car com a cabeça um pouco para
fora onde é feita uma malha com arame para aumentar a rigidez. Após a #xação
da placa, é aplicada a argamassa e realizado o acabamento com pintura ou textura,
que é característica das casas revestidas com Erkulit.
Casa revestida com ErkulitAcervo: Peter Petschel, 1972
Casa revestida com ErkulitAcervo: Peter Petschel, 1972
Prospecto austriaco do produto HeraklithAcervo: Peter Petschel
79
Durante a fase inicial da pesquisa, observou-se que em algumas regiões
havia casas de madeira idênticas às casas de alvenaria vizinhas. Pensaram-se várias
hipóteses sobre qual delas inHuenciou a outra na volumetria. Com o andamento
da pesquisa, descobriu-se que se tratava de casas revestidas com Erkulit.
O prospecto da empresa informa que em mais de quarenta anos já foram
revestidas, aproximadamente, vinte mil casas na cidade de Curitiba e arredores.
Também se pode veri#car a aplicação do material em uma casa de madeira, já em
fase #nal. O tempo médio de aplicação é de quinze dias, e a obra se dá na área
externa da casa, sem transtorno para os moradores. As paredes #cam protegidas
contra a umidade e o frio, que são um dos problemas da Casa de Araucária, e o
resultado também oferece um bom isolamento acústico, resolvendo um incômodo
muito presente nas casas próximas a vias de trânsito intenso.
Pode-se, com esta experiência, demonstrar a criatividade dos construtores
na adaptação e inclusão de sistemas construtivos. No caso, o Erkulit foi a leitura
de uma tecnologia utilizada para um #m especí#co e adaptada para revestimento
das casas de madeira. Um fato interessante é que, se retirarmos as placas, a casa está
intacta. É uma adaptação reversível, pois somente as mata-juntas são um pouco
dani#cadas.
Outra questão importante é com relação ao preconceito existente com a
casa de madeira. É um sonho de muitos moradores de casas de madeira morar em
uma casa de alvenaria, símbolo de status e de modernidade. O Erkulit criava esta
possibilidade a um custo acessível e a procura foi intensa. Segundo o Sr. Peter,
foram revestidas em média trinta e seis casas por mês, um número signi#cativo que
demonstra tanto o anseio de morar em uma casa de alvenaria quanto o número
expressivo de casas de madeira existentes em Curitiba. Também vale ressaltar que
revestir uma casa com Erkulite era muito mais acessível #nanceiramente do que
construir uma casa em alvenaria.
Exemplos da aplicação do ErkulitAcervo: Peter Petschel
80
A empresa Erkulite hoje encontra-se quase inativa, há pouca procura
de casas para revestir, talvez devido ao fato de não se produzir mais casas em
madeira no sistema tábua e mata-juntas. A alvenaria se tornou um material mais
acessível do que a madeira, e outra questão relevante é a facilidade ao acesso a
moradia através das linhas de #nanciamento hoje disponíveis. Isto aqueceu o
mercado da construção civil e novos empreendimentos surgem diariamente na
paisagem curitibana. Tal facilidade de se adquirir um imóvel acelerou o processo
de demolição das casas de madeira, também direcionou o morador à construção
de novos imóveis, o que é mais viável do que a adaptação ou reforma de uma
antiga casa.
Aplicação do ErkulitAcervo: Peter Petschel
81
Entrevista com Peter PetschelPor Deborah Agulham Carvalho em 13 de março de 2010.
O senhor veio da Áustria?É, vim da Áustria, em 1951.
E logo que o senhor chegou da Áustria, veio pra Curitiba?Não, não. Nós morávamos no Entre Rios, em Guarapuava, e depois chegamos aqui em 1961.
Em Guarapuava já pensava em trabalhar com a Erkulit? Nós #zemos uma máquina provisória lá, porque não tinha uma tecnologia. Então nós começamos lá na colônia de Entre Rios, quando morava lá. Quando chegamos em Curitiba em 1961 começamos aqui. Nós #zemos uma máquina, testamos. Algumas deram certo, algumas não, mas nós temos patente aqui pra fabricação. Nós vendemos a patente e estamos revendendo chapa de outra #rma.
E nessa época eu imagino que o senhor não tivesse concorrentes para as chapas de madeira, o senhor era o pioneiro?Nós tínhamos concorrente em Porto Alegre. Tinha uma #rma, mas depois nós dominamos aqui o mercado. Tinha muito serviço. Nós trabalhamos dia e noite. Agora está tão fraco... estamos praticamente parados e temos um funcionário só.
Quem eram os fornecedores da matéria prima que o senhor utilizava para confeccionar as chapas de madeira?O cimento era Votoran e a madeira a gente comprava em Curitiba, de particular, pra fazer a palha.
Como eram as primeiras casas de madeira revestidas? Que características elas tinham?Aqui você pode ver casas de madeira, antes e depois. Depois prega em cima da sarrafa e #ca com parede dupla [Seu Peter me mostra um álbum com algumas fotogra#as das casas, primeiramente, sem e depois com o revestimento, a Erkulit]. Prega em cima e depois é rebocado. Esta aqui é da praia de Matinhos. Este é forro, #zemos forro de gesso. Se você quiser levar esse aqui, sobre colocação de chapa [Seu Peter me entrega um folheto explicativo sobre o processo de colocação das chapas de madeira].
Casas revestidas com ErkulitAcervo: Peter Petschel
82
As pessoas tinham casa de madeira e entravam em contato com o senhor. Então essas casas não eram padronizadas?A casa era cada uma diferente, a construção, tudo.
De onde veio o termo Erkulit? Da Áustria se chama Eraklit, esse é o material, é um termo que faz referência aos materiais usados pra confecção das chapas.
O senhor implantou a técnica da Erkulit com uma função mais acústica ou de proteção contra umidade?Mais de proteção de casa de madeira, que #ca com a parede dupla porque pregava em cima do sarrafo e depois tem a ventilação, a isolamento.
E o senhor comentou um pouquinho sobre as di)culdades que teve, se teve di)culdade na implantação das chapas?No começo as pessoas não conheciam, então nós temos essa casinha aqui e nós puxamos com um caminhão até o parque de exposição. Então nós #zemos bastante propaganda da casinha, que tem a parte revestida. E foi uma boa propaganda pra nós.
E qual foi o período em que as casas de madeira tiveram maior representatividade? Mais em 1970-1974, nós tínhamos bastante serviço.
E o senhor se lembra das primeiras encomendas que recebeu e as primeiras casas que revestiu? Por exemplo, qual o bairro que teve o maior número de casas?Isso eu não lembro, não tem assim. Em Curitiba era assim: não era concentrado num bairro. Fizemos propaganda e foi assim, em todo lugar. Mais Curitiba. Fora, em Ponta Grossa, #cava muito complicado de administrar as coisas. Fizemos mais em Curitiba, nas praias tinha pouco, mas em Curitiba o mercado era maior.
Quando o senhor implantou a técnica, houve algum tipo de adaptação de materiais? Ah, sim!Porque primeiro nós usamos a araucária. Porque pinus, naquele tempo, era muito raro, mas depois estava tão caro que não tinha mais essa madeira. Depois nós
Casas revestidas com ErkulitAcervo: Peter Petschel
83
mudamos para pinus; era bem mais barato e mais fácil pra trabalhar.
O senhor acha que isso foi também década de 1960-70?Bom, isso tem que ver... Quando vem o pinus, nós trabalhávamos há alguns anos com a araucária. Agora, pra ver que ano que foi... Porque não foi de repente, foi devagar, foi faltando. Daí nós compramos esse rolete de laminação e também tava difícil. Depois vinha aquele pinus, que foi bom pra nós.
E o senhor chegou a anunciar os serviços nos jornais da época?Nós #zemos propaganda na televisão e no rádio.Porém era mais assim, direto com o freguês, porque a pessoa não sabia o que era, como é que funcionava. Então foi assim, um serviço bem feito para uma casa. Os vizinhos também viram uma coisa bem feita e durável, porque não desaparece.Então foi a maior propaganda, um serviço bem feito! A gente escolhia os pedreiros. A casa, a pessoa visitava os parentes, os conhecidos, foi uma propaganda direto com a pessoa.
As pessoas conheciam o seu serviço por conta do nome Erkulit ou “seu Peter”?É revestimento Erkulit. Nós andávamos com um carro, nós tínhamos um Pontiac, daquele 1952 com uma casinha em cima e isso deu muita propaganda pra nós.Nós tínhamos Fusca também, colocávamos as casinhas e isso chamava bastante a atenção.
A Erkulit foi usada sempre como revestimento?Nós #zemos beiral e forro, mas o forte nosso era revestimento de casa de madeira.
O senhor teve di)culdade de revestir alguma casa por conta do projeto muito diferenciado?Às vezes tinha casa meio complicada de fazer. Tínhamos que colocar andaime. Uma vez revestimos uma casa de três andares, perto do Hospital São Lucas.Foi difícil mesmo!
O senhor consegue identi)car qual era o per)l das pessoas que contratavam os seus serviços?A classe média que tem casa de madeira. Com eles nós não perdíamos muito dinheiro, porque era pessoa mais honesta; nós perdíamos muito dinheiro com #rma (empresa), porque eles contratavam e depois iam a falência e perdíamos.
84
Mas casa de madeira a gente sabe que a pessoa mora lá e é mais, assim, honesta normalmente.
A idade da casa chega a in%uenciar na colocação da Erkulit?Bom, mais assim o estado, porque conforme a madeira tem que fazer uma reforma. Muitas vezes é o cupim, então tem que trocar o vigamento, tem que ver bem antes de colocar o revestimento. Tinha casa que quase não valia à pena de fazer, porque exigia muita reforma... Antigamente essas casas de pinus, às vezes, virava tudo em ‘bagaço’.
Quais os bairros que vocês revestiram mais casas de madeira?Pelo que eu me lembro era Hugo Lange, #zemos uma casa e, depois, os vizinhos #zeram cinco, seis casas, uma do lado da outra. É, gostaram. Mas tinha 45 casas na #la pra fazer. A gente trabalhava dia e noite! Você veja como mudou e agora estamos praticamente só tendo a #rma. A gente não pode fechar, mas nós estamos mais com mais despesa do que lucro.
85
O senhor delegou a técnica da Erkulit pro seu )lho? É, ele conhece. Está trabalhando junto comigo.
A que o senhor atribui o sucesso no ramo de revestimento de casas de madeira nesse período, década de 1960-1970? Como é que o senhor entende esse boom das casas de madeira?É mais assim a conservação da casa, né? Porque a casa de madeira, se não tem uma proteção, vai começar a apodrecer. Agora essa parte #nanceira, acho que mudou bastante - matéria prima, mão de obra. Naquele tempo a situação era bem diferente.Hoje a mão de obra, o material é muito mais caro e, por isso, grande parte das pessoas não tem mais condições de fazer.
O senhor acha que o sucesso da Erkulit veio em função do preconceito que as pessoas tinham com a casa de madeira? Porque a casa de madeira quem tem é pessoa mais classe média e, normalmente, a pessoa quer uma casa de material, logicamente mais durável, mais cômoda.Então talvez seja uma parte disso também, né? Mudou assim muita coisa.Veja, o que facilitou antigamente e o que di#culta a gente agora, é que o tijolo, antigamente, o milheiro, era muito caro. Se a senhora fosse às favelas, a senhora só ia encontrar casa de madeira, barraco de madeira e o que acontece hoje em dia é que a situação se inverteu: a madeira se tornou cara e o tijolo, barato. Tanto é que nas favelas muitas casas são de material. E essa inversão fez com que a #rma praticamente falisse. Sobre o revestimento seria só isso, que nós agora estamos “remando”, mas no seco. A gente revende as chapas, mas estamos assim, conservando o que tem, as coisas.Agora o problema é o cupim. O cupim, até agora, não acharam uma coisa pra combater. Então, nós temos bastante problema de conservação de casas. Uma vez eu estava pensando em fazer com o ultrassom: peguei um pedaço de madeira e coloquei no microondas. Mas o interessante é que ele não morre. Eu vi uma vez num jornal um americano que fez uma máquina de alta frequência e energia (pra cereais) e realmente foi e#ciente, mas no caso da casa de madeira eu não sei. O problema é que penetra na madeira: a gente passa o veneno e o bichinho #ca dentro.
86
Considerações
A análise deste sistema construtivo não é possível apenas pela observação
do objeto em si, sem o devido cuidado de pesquisar todo o contexto sociocultural
que possibilitou o surgimento desta arquitetura. Há várias possibilidades de
abordar a Casa de Araucária, porém todas perpassam por um tema em comum: a
modernidade em suas diversas faces.
A expressão desta modernidade, que cria, destrói e recria todos os dias a
nossa paisagem urbana, é bem de#nida por Walter Benjamin através da metáfora
do Angelus Novus do pintor Paul Klee:
Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara #xamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1994, p. 226)
A relação da metáfora de Benjamim com o ciclo da Casa de Araucária é
clara. Sempre somos impelidos para frente, sempre em nome do progresso. Neste
processo acelerado, sem a possibilidade de uma análise crítica, ou uma visão mais
ampla dos acontecimentos, muito foi destruído. De todo este ciclo construtivo
nos restam apenas resquícios, pois as cidades sempre se renovam.
Destruímos para construir, esta é de certa maneira a missão do homem
moderno. Porém, mesmo paralisado pela tempestade o anjo tem o rosto voltado para
o passado. É no passado que juntamos fragmentos para construir a nossa identidade,
pois sem ela não há como se a#rmar no presente e nem vislumbrar o futuro.
86
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A Casa de Araucária é um forte fragmento de nossa identidade urbana,
sua varanda e seus lambrequins fazem parte do imaginário da antiga Curitiba.
Preservar este fragmento é preservar não somente a nossa história, mas sim o
imaginário coletivo de toda uma cidade e também toda uma cultura construtivo e
do morar que perdurou por quase um século.
Olhando para o passado, podemos visualizar uma arquitetura singular, que
surgiu fruto de um sincretismo construtivo que une a tecnologia dos imigrantes
com a abundante matéria prima existente nas terras ainda a desbravar no Paraná.
Perpassamos pelo processo migratório do #nal do século XIX e início do século XX,
onde grandes massas populacionais se deslocaram da Europa e Ásia para o Novo
Continente. Neste contexto de abundância Horestal, que inicialmente era pouco
valorizada, surge um princípio de industrialização da madeira, que foi possível com
o surgimento das primeiras serrarias a vapor, que produziram as primeiras peças
com bitolas padrão. A grande oferta de madeira, aliada a necessidade de novas
moradias e à existência de uma mão de obra quali#cada, além de muitos outros
fatores, fomentou o surgimento desta arquitetura. Ao longo do tempo a casa vai se
modi#cando, sempre acompanhando as inHuências das correntes arquitetônicas e
as novas maneiras de morar. Isto demonstra a Hexibilidade do sistema construtivo
e a criatividade dos construtores.
Olhando para o presente, veri#camos que a casa de madeira curitibana está
desaparecendo da paisagem urbana da cidade, restando apenas alguns exemplares
que resistiram as pressões imobiliárias e ao modo moderno de morar, onde a
madeira já não é mais uma opção viável. Este sistema construtivo possivelmente
desaparecerá, ou será revisto e alterado, como acontece com muitas tecnologias
construtivas de saber popular. Ele concluiu seu ciclo, como a#rmou Weimer
(2005). Há pouca disponibilidade de madeira para confeccionar as paredes de
tábua e mata-juntas, também as novas tecnologias disponíveis possibilitam casas
88
com melhor conforto térmico e acústico, porém esta arquitetura merece ser
estudada, pois representa todo um período histórico de imigração e urbanização
dos estados do sul do Brasil.
Esta história também nos conta a destruição desenfreada dos recursos
naturais que caracterizou o século XX. A Araucária está extinta como ecossistema,
porém há a preocupação de preservar as poucas áreas remanescentes de Horesta
nativa. O mesmo acontece com a tecnologia construtiva. Há muita pesquisa
ainda a ser feita. Algumas casas estão sendo preservadas pelo poder público ou por
universidades, o que garante a proteção de alguns exemplares mais signi#cativos.
Estudos sobre o tema são urgentes, pois a cada dia, possivelmente, um exemplar
está sendo demolido. Os mestres carpinteiros não têm mais para quem repassar
seu saber. O importante é pesquisar, analisar e relatar este patrimônio material e
imaterial para que o mesmo chegue às gerações futuras.
Olhando para o futuro podemos vislumbrar a possibilidade de uma nova
inserção da arquitetura de madeira, não somente em Curitiba, mas no Brasil.
Isto possivelmente ocorrerá em algumas décadas, impulsionado pelas questões
ambientais, pois a madeira é um bem renovável e sua extração consciente causa
um menor impacto no meio ambiente do que outros materiais utilizados na
construção civil. Porém, ainda existe o preconceito com o material, mas este não é
a principal barreira que impede tais construções.
Preconceito, como signi#ca a palavra, é um conceito prévio, sem um
conhecimento mais aprofundado do material. Se tivermos bons pro#ssionais que
utilizem a madeira e usuários satisfeitos, este preconceito será dissipado. Existem
hoje sistemas construtivos, como o Sistema Plataforma, que dentre as tecnologias
existentes é a que mais oferece possibilidade criativa e de projeto. Contudo, em
muitos casos, ele resulta em casas com característica colonial americana. Este
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sistema é aberto, como a Casa de Araucária, sua modulação é linear (baseado no
tamanho da placa de OSB ou Chapa Compensada). Mas esta tecnologia é ainda
desconhecida ou pouco explorada pelos projetistas e arquitetos brasileiros.
A arquitetura em madeira produzida hoje no Brasil ainda é feita de
maneira quase que artesanal no sistema pilar/viga. As outras tecnologias existentes
reproduzem construções com pouca qualidade arquitetônica, sem referências à
arquitetura contemporânea. Este quadro reHete o afastamento e desconhecimento
dos pro#ssionais, como arquitetos e engenheiros, de questões referentes à
industrialização da madeira e a pré-fabricação de peças para a construção.
A Casa de Araucária marcou uma época de abundância de material aplicado
na construção de uma habitação, que seguia uma modulação procedente das
dimensões comercias da madeira naquela época. Seguia uma tecnologia facilmente
absorvida pelos carpinteiros. A Casa Contemporânea está inserida em uma época
de escassez de material, oriundo das Horestas nativas. Atualmente é necessário o
uso das madeiras oriundas das Horestas plantadas, comercializadas ainda jovens
(sem grande formação do cerne). A Casa Contemporânea requer novas tecnologias
de uso da madeira e racionalização de seu emprego, com considerável grau de
industrialização, o que caracteriza o sistema construtivo como pré-industrializado,
permitindo o ganho de tempo de construção, um menor custo e conforto
ambiental adequado.
Outra questão relevante é a modulação que deve respeitar as dimensões
dos produtos derivados de madeira, como chapas, disponíveis no mercado,
como chapas portantes de OSB e compensados. Somente o conhecimento
destes materiais irá produzir uma arquitetura de qualidade. Só iremos produzir
uma boa arquitetura de madeira quando os pro#ssionais da construção civil e as
universidades se interessarem pelo assunto. Somente assim a sociedade nacional
irá se despir dos preconceitos com relação a este material.
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Casa de madeira em Curitiba no ínicio do século XXAcervo: Casa da Memória/ Diretoria do Patrimônio Cultural/ FCC
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foto: Maurício Alexandre Maas
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Fotos
Ramon José Gusso: Foto da capa e das páginas 11, 21, 47, 54, 55, 58, 64, 67, 68, 70, 71, 73 e 75.
Fábio Domingos Batista: Páginas 14, 18, 24, 26, 27, 28, 33, 35, 37, 38, 39, 48, 50, 76, 83, 86, 87, 88 e 90.
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Sobre o autor
Fábio Domingos Batista mestre em Projeto e Tecnologia do Ambiente Construído pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, em 2007, com a dissertação “A Tecnologia Construtiva em Madeira na Região de Curitiba: da Casa Tradicional à Contemporânea”.
Especialista em Estética e Filoso#a da Arte pelo Curso de Filoso#a da Universidade Federal do Paraná em 2010, com o tema: “Antecedentes do Artista Contemporâneo”.
Graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, em 1997.
Sócio do escritório Grifo Arquitetura e membro do Instituto Arquibrasil. Trabalha com arquitetura e urbanismo, projetos arquitetônicos complexos, desenho urbano, patrimônio histórico e mobilidade urbana.
Autor, com Marialba Rocha Gaspar Imaguire e Sandra Rafaela Magalhães Corrêa, do livro “Igrejas Ucranianas: Arquitetura da Imigração no Paraná”, lançado em 2009 e do livro “Arquitetura Italiana em Curitiba” com João Adolfo Moreira e Ana Carolina Mazzarotto, em andamento.
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Mecenato Subsidiado 001/08Fábio Domingos Batista, proponenteMarialba Rocha Gaspar Imaguire, substituto
Autores Andréa BerrielFábio Domingos BatistaKey Imaguire JúniorMarialba Rocha Gaspar Imaguire
Fotogra)asFábio Domingos BatistaRamon José Gusso
Projeto Grá)co e Tratamento de ImagensFábio Augusto Melges Stinghen
Pesquisa HistóricaDeborah Agulham Carvalho
Revisão de TextosGiselle Christina Corrêa Solange Lucini
IlustraçãoMichelle Friedlaender RepleRoberta Nakaguishi
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Agradecimentos
Este livro foi viabilizado através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura Municipal de Curitiba, através do PAIC - Programa de Apoio e Incentivo
à Cultura. Mecenato Subsidiado, Edital 001/2008.
Desta forma, agradecemos a Fundação Cultural de Curitiba, ao presidente anterior, o Sr. Paulino Viapiana, à atual presidente a Srª Maria Christina de Andrade Vieira e
funcionários pela atenção e apoio técnico.
Agradecemos a empresa Volvo Veículos do Brasil, que foi a incentivadora deste livro, em especial a Srª Solange Fusco.
Agradecemos a Casa da Memória, em especial ao Roberson e Jussara.
Agradecemos os proprietários e moradores das Casas de Madeira, que são os responsáveis diretos pela conservação deste inestimável patrimônio curitibano que é
a Casa de Araucária.
Agradecemos os estudantes, professores, arquitetos, engenheiros e demais pesquisadores do tema, que nos forneceram material precioso para a execução deste livro.
Agradecemos também toda a equipe e colaboradores pelo auxílio prestado durante a execução deste trabalho.
Andréa BerrielFábio Domingos Batista
Key Imaguire Júnior Marialba Rocha Gaspar Imaguire
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Agradeço os meus professores, sendo a maioria deles de escola pública.
À Universidade Federal do Paraná, pela minha graduação no curso de Arquitetura e Urbanismo.
À Universidade Federal de Santa Catarina, pelo meu mestrado em Arquitetura e Urbanismo, área de concentração em Projeto e Tecnologia do Ambiente Construído.
Ao professor Carlos Alberto Szücs, meu orientador de mestrado e quem me guiou pelo mundo da construção em madeira.
Ao Instituto Arquibrasil, em especial à Jussara, Zé Rodrigues e Roberto.À Sandra, Marialba e Key pela experiência que resultou no livro “Igrejas Ucranianas: Arquitetura da Imigração no Paraná”.Ao Igor, meu sócio no escritório Grifo Arquitetura.
Ao Taco, Cristina e Luciana, pela amizade e novas experiências na área de urbanismo e mobilidade urbana.
Aos meus grandes amigos, Karina, Polucha (Ricardo), João, Fernanda (Botter), Gerson, Eduardo, Ramon, Rogério (Shibata), Paula, Lindy, Bia, Alexandre e Maurício, entre tantos outros.
Aos meus a#lhados Ana Beatriz, Fred e Luiz Eduardo.
À Bárbara, Giselle, Juliano (Lamb) e Karina pela leitura e revisão do texto, a Suelen Vasquez pela foto da escada do Solar do Unhão, e à Elena Quintana por autorizar o uso do poema do Mario.
À Ana Mazzaroto e João Adolfo Moreira pelo nosso futuro livro “Arquitetura do Imigrante Italiano em Curitiba”, que também será possível através do Mecenato Subsidiado da Fundação Cultural de Curitiba.
Fábio Domingos Batista
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O Tempo
O Tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor; embora incomensurável, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é, contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem #m; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo nessa mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu #nalmente uma prancha nodosa e dura, trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes de nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil de nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu Huxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente desse bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou de espera, que se deve por nas coisas, não corre nunca risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.
Fonte: NASSAR, R. Lavoura Arcaica.
foto: Maurício Alexandre Maas