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A CAMINHO DO SUPER-HOMEM

QUIXOTE E CARLITOS: DOIS SÍMBOLOS PARAA COMPREENSÃO DO HOMEM ATUAL

A CAMINHO DO SUPER-HOMEM

QUIXOTE E CARLITOS: DOIS SÍMBOLOS PARAA COMPREENSÃO DO HOMEM ATUAL

Rosaura Paranhos

A CAMINHO DO SUPER-HOMEM

QUIXOTE E CARLITOS, DOIS SÍMBOLOS PARA

A COMPREENSÃO DO HOMEM ATUAL.

Copyright 2001: Rosaura Paranhos

Versão para e-book da iEditora

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SUMÁRIO

Prefácio ....................................................................... 7

PARTE I....................................................................... 17

1 O Retorno de uma Velha Questão .............................. 19Demócrito e Platão; Erasmo e Montaigne ................... 32Descartes e a identificação com o ser pensante ............. 38

2 Os atributos do ser pensante, as inovações técnicas e afamosa proclamação de Descartes .............................. 65A Navegação, a Velocidade e a sensação de Liberdade eOnipotência ........................................................... 67As armas de fogo e os atributos da Instantaneidade e daOnipotência ........................................................... 70A imprensa e o papel da linguagem ............................ 83O monismo que é ao mesmo tempo um dualismo ......... 124

3 O olhar do artista ................................................... 1274 Pequeno estudo sobre Van Gogh ................................ 1455 De qual corpo estamos falando? ................................ 1516 A relação da moeda com o corpo em sociedade ............ 1617 O corpo de Sancho e o de Falstaff .............................. 1738 Carlitos e o corpo mudo .......................................... 1859 A questão mente–corpo para a Psicologia .................... 197

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PARTE II ..................................................................... 211

10 Filosofia: contando uma nova história da questão ........ 21311 Os primeiros filósofos ............................................. 21512 A passagem das trocas para a moeda .......................... 21913 Sócrates e os sofistas ............................................... 22314 Sofistas, um espelho indesejável ................................ 22915 Sócrates na visão de Aristófanes ................................ 23316 Por que Sócrates foi condenado? ............................... 23517 Platão e o conflito mente–corpo ................................ 23918 Aristóteles e a lógica ............................................... 24319 Um pouco da cultura helenística ............................... 24520 A Ciência liberta-se, aos poucos, da Filosofia ............... 24921 O Direito e a Filosofia dos romanos ........................... 25322 Cristo e a via-crúcis da carne .................................... 25523 Plotino e a balança corpo–mente ............................... 25924 O Cristianismo e a Filosofia ..................................... 26125 O Renascimento ..................................................... 26326 A Reforma e o Capitalismo ...................................... 26527 A Ciência e o Racionalismo ...................................... 26728 A Literatura pede a Palavra ...................................... 27129 Reflexões sobre as mortes de Dom Quixote e de Hamlet .... 281

Conclusão .................................................................... 299

Notas Bibliográficas ....................................................... 311

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PREFÁCIO

Prezado leitor, uma introdução normalmente limita-se aoconteúdo da obra, não nos contando nada da vida do autor nemdas circunstâncias que o levaram a escolher e trabalhar aqueledeterminado tema. Talvez essa forma seja a mais adequada, por-que, afinal, compramos um livro atraídos pelo assunto e dele nãoesperamos conhecer nada além do desenvolvimento das idéiasque o sumário sugere. Mas existem as exceções. Tenho em menteaqueles trabalhos intimamente ligados às experiências de seusautores. Não falar um pouco sobre essas experiências prejudica-ria uma melhor compreensão. Eis o motivo de haver optado porum prefácio em que narro as circunstâncias especiais que envol-veram as idéias que deram origem a este livro, e que, curiosamente,brotaram da leitura de um outro livro. Uma leitura que suscitouuma resposta ao problema relativo à interação entre a mente e ocorpo do homem, que há muito me intrigava.

Jamais poderia supor que seria um romance quem meresponderia. Apesar de antigo, ele era especial e continuavavencendo os séculos como o maior romance já escrito: o fa-moso Dom Quixote de la Mancha. Mas antes de lhes relatar aexperiência da leitura, seria necessário voltar um pouco notempo.

A recordação mais significativa que guardo da infân-cia e, principalmente, da juventude diz respeito a uma inquie-tação que produzia em mim o pensamento de que existiaalguma coisa muito peculiar e, ao mesmo tempo, de difícil

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compreensão na constituição humana, em relação ao mundomoderno. Se no início era apenas um vago pressentimento,adulta, já se apresentava abertamente como uma questãoclara e definida a exigir uma resposta: por que persistia umcerto dualismo na maioria das pessoas e principalmente nomundo tecnológico que o próprio homem construiu, se ainteração entre a mente e o corpo era tão perfeita e harmo-niosa, ao ponto de nos fazer seres únicos? Que o mundo setornava cada vez mais perigoso e inóspito à carne, dissonão tinha dúvidas. Ele parecia espelhar muito mais umaarena para o confronto e o choque entre as duas naturezasde que somos constituídos do que um lugar propício aodesfrute sereno da interação. Bastava qualquer observaçãomais atenta das situações corriqueiras do dia-a-dia para che-gar a essa certeza. Entretanto, não colhera exemplos ape-nas no bombardeio do noticiário cotidiano, verdadeira su-gestão de que a vida urbana corria mais riscos hoje do queno tempo de nossos antepassados. Os noticiários da TV,trazendo-nos o mundo para dentro de casa, poderiam serresponsáveis pela má impressão. Não fora desta fonte queextraí a convicção do conflito e sim de acontecimentos co-tidianos, das experiências corriqueiras em situações aparen-temente inofensivas como, por exemplo, atravessar ruas eavenidas movimentadas de minha cidade, à hora do rush.

Vivemos tão mergulhados na corrente ininterrupta denossos pensamentos que não prestamos atenção naquelasações que praticamos quase que de forma automática, roti-neiramente. Mas se obrigássemos o pensamento, errante e vo-lúvel, a concentrar-se no corpo que o produz e no mundomaterial que o cerca, o simples ato de atravessar uma rua ouficar ilhado numa avenida de uma grande cidade — à horado tráfego intenso — seria o suficiente para despertar-nos.Sim, só poderíamos estar dormindo para não percebermosque aquele rio de aço que passa à nossa porta e normalmentecruza o nosso caminho não era adequado a nós, pobres mor-tais. A velocidade que os carros podem desenvolver e o ma-terial rijo de que são feitos, por si só, constituem ameaças

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veladas às nossas carnes tenras e frágeis. Acrescente-se a issoo fato de os veículos — que não sabemos se estão aptos atrafegar — se encontrarem sob a direção de pessoas a quemignoramos a sanidade, o caráter, o estado de espírito, a saúdee a condição de sobriedade ou não. E não seria necessárioestarmos acometidos da síndrome do pânico para nos espan-tarmos com a desatenção dos pedestres que atravessam ruase avenidas, em horários de maior movimento, desligados dosriscos que estão correndo naquele instante.

Com a insatisfação de quem tem um problema funda-mental na vida e ainda não obteve nenhuma resposta, entreipara o curso de Psicologia porque me parecia o que mais seaproximava da questão mente–corpo. Além disso, lera aos15 anos alguma coisa de Freud que muito me impressionarae que já me fizera, na época, inclinada para a Psicanálise. Naverdade, fui cursar Psicologia somente muito mais tarde, comquase 28 anos. Lá pude constatar que o assunto que tanto meinteressava e que fazia parte do currículo fora rejeitado pelamaioria dos psicólogos, como uma inútil questão filosófica,e isso me fez sentir desanimada. Porém, minha vida já estavacomprometida com a Psicologia, e, assim, o problema men-te–corpo aparentemente desapareceu por um bom tempo.

Com a exceção de uma certa curiosidade diante o mun-do moderno e suas contradições, minha atenção se encontra-va inteiramente absorvida pela formação analítica que pre-tendia seguir ao término do curso e após três anos e meio deanálise. Foi então que alguns fatos inesperados aconteceram,mudando para sempre o curso de minha vida. Havia aluga-do um consultório e fizera um convênio com uma institui-ção. Esperava portanto o aparecimento de clientes para, as-sim, dar início à vida profissional. Nesse meio tempo, umaantiga inspiração poética retornou, juntamente com a alegriada gravidez inesperada de um filho temporão.

Ainda que estivesse atendendo a uma recomendaçãomédica de repouso, devido à gravidez tardia, a decisão desuspender as atividades profissionais que mal se iniciavam eme dedicar à produção de um livro de poesias parecia uma

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temeridade. Depois de quase oito meses de trabalho e poucoou nenhum progresso da poesia, em meados de 89, resolvidescansar do trabalho improdutivo, proporcionando-me umprazer que desde criança ansiava: ler o tão famoso romancede Cervantes, o Dom Quixote de la Mancha.

A revolução que a leitura do livro provocou em minhavida me emociona profundamente até hoje, passados quasedez anos. Finalmente encontrava uma resposta para a velhaindagação sobre a mente e o corpo do homem, que tanto meintrigava. Contudo, ela veio a mim como uma profunda inspi-ração. Uma persuasão íntima e não uma solução racional, sus -citando uma série de questões e como conseqüência, obrigando-me, desde então, a um árduo trabalho para respondê-las. O livrorepresenta uma tentativa de resposta para todas elas.

Quem já leu o romance e se deliciou com as aventurasdo cavaleiro, sente que está diante de uma loucura sui generis.Dom Quixote não padece de uma loucura comum, dessas nor-malmente familiares aos psiquiatras. A par das extravagânciascometidas em nome de um ideal de proteção aos mais fracos,o fidalgo apresenta uma profunda e admirável sabedoria. Alémdisso, nada do que existe nele nos é estranho. Ao contrário.Sua loucura fornece-nos um espelho onde podemos desafo-gar, em lágrimas, as desditas pela triste, laboriosa e frágil con-dição humana e, ao mesmo tempo, desopilar, em risos, o pesodessa constatação, perante a observação do quanto há de ridí-culo na caricatura traçada. Mais do que apenas emoções, oromance tem o poder de suscitar a impressão de uma verda-deira revelação, em muitas pessoas. Também a mim, a leituradespertou um forte pressentimento. Fui tomada do sentimen-to de que nas temerárias aventuras do cavalheiro se elucidavao maior conflito do homem. O que no romance sobressaíacomo o choque entre a imaginação desenfreada do fidalgo e afrágil constituição física submetida aos mais arriscados empre-endimentos, poderia ser facilmente transposto para as contra-dições suscitadas pela interação entre a mente e o corpo dohomem que vivencia um formidável e atraente mundo tecnológico,cheio dos mais inusitados perigos e imprevistos.

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A caminho do super-homem

Não gostaria, em hipótese alguma, que a palavra “re-velação” fosse responsável por um equívoco, que consistiriaem presumir neste livro alguma coisa mais do que o fruto deuma intuição. Apesar de não ter, pessoalmente, nada contrahistórias misteriosas, o fato do meu trabalho ser confundidocom algo religioso ou como mais um produto da Nova Eranão corresponderia à realidade. As idéias que nasceram daleitura de Dom Quixote não foram gratuitas, porque já exis-tia em mim uma indagação à procura de uma resposta. Oromance representou o estímulo apropriado a essa resposta.Quanto à intuição, não podemos nos esquecer que ela repre-senta uma forma natural e legítima do processo de conheci-mento, principalmente na mulher.

Desdobrada em várias idéias, a síntese do pensamentoque deu origem a este livro poderia ser explicada como aconstatação de que o homem se identifica muito mais com amente do que com o frustrador corpo, constituído de carnefrágil e mortal. A visão que tive dessa realidade nasceu daprópria interpretação das figuras do par Quixote–Sancho. Oreconhecimento das duas figuras como símbolos convergen-tes para o maior conflito do homem foi apenas o começo deuma verdadeira transformação na minha forma de encarar avida e o mundo em que vivemos.

Ao final da leitura de Dom Quixote, eis que uma segun-da figura emergiu, em meu pensamento, como complementoda dupla Quixote–Sancho. Acredito que o seu aparecimentose deveu ao fato de que a tríade representativa das circunstân-cias existenciais que regem a condição humana, isto é, o ho-mem, resultado da interação entre a mente e o corpo, exigiaum terceiro elemento para a sua melhor compreensão. Umsímbolo não menos comovente e muito significativo para omundo moderno — o imortal Carlitos, de Charles Chaplin.No momento em que ele surgiu em minha lembrança evocoua imensa ternura que sentia quando assistia, ainda menina,aos seus filmes nos cinemas de minha cidade. Foi através des-sa figura que pude compreender a angústia do homem decarne e ossos que no mundo de hoje, cada vez mais abstrato,

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virtual e menos humano se assemelha mais a um estrupício,uma geringonça, um obstáculo no caminho de quem cami-nha...

Mas quem caminha e para onde caminhamos? Foi pararesponder a mais essa pergunta que introduzi a figura tambémsimbólica para o homem de hoje — o super-homem. Ele é achave para entender o conturbado mas ao mesmo tempo se-dutor mundo atual. Porém, de maneira diferente dos outrossímbolos, o super-homem não surgiu em minha mente comouma intuição verdadeira, uma revelação. Ao recorrer a ele nãosenti nada que se assemelhasse à emoção inesquecível de quefui tomada ao ler o Dom Quixote, ou ao me recordar deCarlitos. Não foi a sensibilidade que o escolheu como repre-sentante da busca frenética do homem contemporâneo. A esco-lha do super-homem não passou de uma dedução: fria, objetivae racional como o mundo que ele representa. Infelizmente,apenas a trindade Quixote–Sancho–Carlitos não poderia tra-duzir fielmente o homem moderno. Embora ela reflita o confli-to original e simultaneamente a busca pelo equilíbrio que nosfaz mais humanos, na figura do super-homem encontra-se odisfarce para uma antiga frustração do homem, frente às limita-ções e a morte.

O que até há pouco tempo era uma compensação àdifícil condição humana — refiro-me à literatura e às artes,em geral —, hoje, uma fantasia pouco inspirada a substituiu,para nossa infelicidade. Mas não pretendo iniciar o livro comalgumas das conclusões a que cheguei, conclusões essas quese encontram espalhadas ao longo do livro e que tiveramorigem na intuição original. Antes disso, gostaria de convi-dar o leitor para, juntos, nos aventurarmos num novo itine-rário pelo mundo das idéias, guiados pela antiga mas agorarenovada questão mente–corpo. Em um novo e resumidohistórico da questão, passaremos por Demócrito, Sócrates ealguns outros filósofos, até que, já no campo da literatura,divisemos a figura altaneira e solitária, irresistível e sonhado-ra de nosso querido Dom Quixote, nos derradeiros momen-tos de sua heróica mas também desventurada existência.

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A caminho do super-homem

O trabalho não se prende apenas ao seu histórico ecaminha através de algumas idéias originais em outros cam-pos do conhecimento, assim como entre outras tantas figurasilustres. Quanto ao autor de Dom Quixote, mais que umahomenagem a Miguel de Cervantes, a autora deste livro pre-tende haver dado a sua modesta contribuição ao atrair asatenções para o romance, cuja leitura mantém renovado oacervo universal das emoções mais nobres, verdadeiras e pro-fundas da humanidade. Cada nova interpretação surgida aolongo desses quatro séculos, desde a sua aparição, é sempreuma constatação da riqueza simbólica inesgotável da obracervantina. Foi, portanto, pensando nisso e na belezainigualável do texto que resolvi introduzir como epígrafespara alguns capítulos trechos significativos do romance. Elessão importantes para o livro como um todo e em especialàquela parte que cuida da interpretação da figura de Sancho,em contraste com a de Falstaff, de Shakespeare. Por último, amenção ao romance que considero a mais importante emmeu trabalho trata justamente da reflexão sobre a morte docavaleiro, utilizando para tal, novamente, a comparação como final de outra peça do bardo inglês, desta feita a mais fa-mosa dentre todas — Hamlet, o príncipe da Dinamarca.

A segunda homenagem que gostaria de prestar — nãosegunda em merecimento, mas na ordem em que apareceu comofonte inspiradora deste livro — seria a Charles Chaplin, atravésde um pequeno ensaio sobre a figura de seu comovente e imor-tal Carlitos. Na análise do eterno vagabundo pretendo demons-trar a relação de Carlitos com o tema da questão estudada.

Por uma daquelas felizes “coincidências significativas”,o livro começou em 1989. Ora, naquele ano havíamos co-memorado o centenário de nascimento de Charles Chaplin,(1889-1977). Mas as coincidências não pararam aí. Quis aboa estrela que direcionou este trabalho, que a parte maissignificativa dele terminasse justamente em 1997, ano em quecomemorávamos os 450 anos do nascimento de Miguel deCervantes (1547-1616). Desse modo, de forma espontânea,as duas homenagens já nasceram com o próprio livro.

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No mundo de hoje, tão cheio de atraentes novidades,mas ao mesmo tempo de perigos inimagináveis, a infânciase encontra, mais do que nunca, à mercê dos males resul-tantes do descuido para com a sua saúde, segurança e pro-teção. Este fato é o motivo por que escolho da obra deCharles Chaplin o filme O garoto, juntamente com umadeterminada passagem de Dom Quixote, como representa-tivos do reconhecimento da fragilidade das crianças e denossas responsabilidades para com o bem-estar e a prote-ção de todas elas.

No capítulo IV do primeiro volume, Dom Quixote de-parou com um lavrador que castigava duramente umrapazinho, o seu empregado. Havendo obrigado o perversohomem a interromper os açoites dados no adolescente, o ca-valeiro seguiu de volta para a sua aldeia, muito feliz. Pensavahaver praticado, já no início de sua aventura cavaleiresca,um bom ato, que ele define como o reparo do “maior torto eagravo que a injustiça gerou e a crueldade cometeu: arreba-tou o látego às mãos do inimigo desapiedado, que tão semmotivo surrava aquele indefeso infante”.

Assim, homenageando Chaplin, no Carlitos de O ga-roto, e Cervantes, através de Dom Quixote — protetor —das crianças, pretendo dedicar a todas elas o meu trabalho.Foi na conscientização de sua vulnerabilidade física, psíquicae emocional perante um mundo cada vez mais apropriado asuper-homens, que encontrei a razão e a coragem para exporas minhas idéias. Como já mencionei logo atrás e veremos deforma extensa por todo o livro, essas idéias podem ser suma-riamente entendidas como a extrema identificação com amente, em detrimento ao próprio corpo. A meu ver, é a op-ção insensata pelo super-humano o principal responsável pelanegligência para com a infância, fazendo da criança a maiorvítima do mundo do super-homem.

Longe desta autora a pretensão de haver encontradouma verdade absoluta que faça par ao conhecimento que nosfoi legado pelos grandes pensadores e aceito pela maioriados homens. Isso seria apenas um delírio ou tola presunção.

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A caminho do super-homem

Também reconheço que, embora a revisão do problema sejaimportante a um cotidiano cada vez mais abstrato e virtual, osimples retorno da questão mente–corpo não deve alterarcoisa alguma, ainda que possa tornar compreensível grandeparte das mazelas do homem. Talvez, nem valesse a pena afaçanha de se escrever um livro somente para tentar provar,de todas as maneiras, a realidade de um corpo negado quepreferiríamos que continuasse esquecido. Porém — à seme-lhança dos abusados e fantasiosos romances de cavalaria —,o conhecimento dos inúmeros desvarios cometidos mundoafora, que nos chegam todos os dias através dos meios decomunicação, pode transtornar uma pessoa, por naturezapacata e avessa a exposições, obrigando-a a correr mundo dearmas improvisadas, para aventurar-se em terrenos onde tempouca ou nenhuma autoridade. Na tentativa desesperada dedesentortar tortos e desfazer agravos, temo que, assim comoo cavaleiro da Mancha, também me tenha colocado ao al-cance de tundas e refregas.

Guiada pela figura benfazeja de Quixote e tocada pelacomovente solidão de Carlitos, me arrisquei pelos caminhosdesconhecidos do saber. Foram anos de trabalho e de lutaque agora se transformaram neste livro. Se ele representaum produto racional, não podemos nos esquecer que omotor que o impulsionou se encontrava, sobretudo, no co-ração. Muito aprendi pelo caminho mas a maior lição foi,sem dúvida, haver me inspirado nas qualidades dos própriosmitos, ou seja, na espontaneidade, confiança, coragem e sin-ceridade.

A ousadia de percorrer campo tão esquadrinhado quan-to o do saber no mundo atual, orientando-se, antes de qual-quer coisa, pelos labirintos da intuição, exigiu da parte da au-tora, como já vimos, uma disposição quixotesca. Assim, caroleitor, não lhe pediria que me perdoasse os erros porventuracometidos ao longo do trabalho, mas que os debitasse porconta da ingenuidade da autora em acreditar que bons senti-mentos pudessem abonar tudo, até a ignorância, ainda que elativesse sido expressa com a melhor das intenções.

PARTE I

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O RETORNO DE UMA VELHA QUESTÃO

Quero dizer — explicou Dom Quixote —que, quando a cabeça dói, todos os membros doem;e assim, sendo eu teu amo e senhor, Sou tua cabeça,e tu és parte de mim, pois és meu criado; por estarazão, o mal que a mim me tocar, a ti te há de doer,assim como o teu doerá em mim.

— Assim devia ser — replicou Sancho; —porém, quando a mim me manteavam, como a ummembro, a cabeça deste membro estava por trás dasebe, vendo-me voar pelos ares, sem sentir dor al-guma; e se os membros são obrigados a sentir a dordo mal da cabeça, ela, por sua vez, devia estar obri-gada a sentir a dor dos males deles.

— Quererás dizer agora, Sancho — pergun-tou Dom Quixote, — que não doeu em mim quan-do te manteavam? Se o dizes, não o digas, nem openses; pois, mais dores sentia eu então em meuespírito que tu em teu corpo.

Dom Quixote, vol. II, cap. II, p.26.1

Experimentamos uma brutal contradição nesta mudan-ça de século. De um lado habitamos um excitante mundo quepoderíamos designar pelo nome de “mundo do super-homem”,com suas extraordinárias invenções tecnológicas, distendendoo nosso horizonte, embriagando-nos com a fantasia da leveza,da velocidade, da invulnerabilidade e do infinito, enquanto

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do outro, vivenciamos a mesma condição do homem das ca-vernas, encerrados em nossos corpos, limitados pelo peso,pela fragilidade e a morte.

O desacordo entre os dois mundos faz parte do coti-diano. Ao volante de nossos automóveis corremos velozmente,quando as estradas desimpedidas nos permitem; deslocamo-nosa cidades distantes, em poucas horas, instalados confortavel-mente em enormes aviões; subimos e descemos de elevado-res e em escadas rolantes sem despender nenhum esforço fí-sico ou, ainda, nos iludimos com os poderes superiores que ouso dos aparelhos de televisão e dos computadores nos ofe-rece. Mas basta qualquer falha na engrenagem desse mundo— digamos, a angustiante experiência de um engarrafamen-to —, para que caiamos das nuvens, irritados e frustradospela lentidão e por constatar que, na essência, não nos dife-renciamos muito de nossos mais remotos ancestrais.

A análise do comportamento do homem nas grandescidades parece haver concluído que não é tanto a aceleraçãodo cotidiano a verdadeira causa do estresse da vida moderna.As pessoas acostumaram-se ao aumento da velocidade em suasvidas e disso extraem um certo prazer. A razão do mal, cadavez mais comum,

seria justamente a perda de controle da situa-

ção frente aos obstáculos que as impediriam de vivenciar amesma velocidade e facilidade a que estão habituadas.

Realmente, o ritmo vertiginoso das metrópoles torna-se um vício difícil de abandonar. Embora nos queixemos dapressa em nossas vidas, a rotina menos atribulada das cida-des do interior, ou mesmo a dos campos, aborrece-nos com aaparente lentidão. Entretanto, uma observação acurada so-bre o problema constata que, embora a afirmação seja emparte correta, alegar como origem do estresse a perda de con-trole sobre a situação e não a própria opção pela agitação evelocidade confunde mais que esclarece, porque toma o re-sultado pela causa, escondendo-nos uma verdade maior, deprofundas implicações.

O anseio pelo gozo de poderes superiores ou divinos— muito além da capacidade de nossa constituição frágil e

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A caminho do super-homem

limitada —, encontra nos produtos da ciência e tecnologia avazão para os seus objetivos. Exemplos disso seriam o carrocomo expressão do desejo por velocidade e a televisão e ocomputador pela sensação de instantaneidade, ubiqüidade,onisciência e onipotência. Ora, o fato de não aceitarmos quesomos constituídos de matéria inadequada para ambições tãodesmedidas é a verdadeira razão que faz esses desejos e asconseqüentes tentativas em atendê-los uma fonte inesgotávelde estresse. Nossos frustradores corpos ante congestionamen-tos ou qualquer obstrução não voam, não são invulneráveis,nem flexíveis ou rarefeitos o suficiente para transpor ou tres-passar barreiras, da mesma forma que nos desenhos anima-dos,

tal como desejaríamos que fossem. Ao contrário, sentimo-

nos aflitos por sermos obrigados a permanecer num mesmolugar, enquanto nosso ágil pensamento — prisioneiro da car-ne —, dá voltas e mais voltas em seu mundo subjetivo, den-tro da cela de um corpo lerdo e desajeitado.

Insistimos em acelerar nossos possantes veículos em umtrânsito caótico e atribuímos o motivo de nossas frustraçõesà perda de controle sobre a situação ou aos empecilhos quevamos encontrando pelo caminho. Não percebemos que averdadeira origem de nossa irritação se prende à realidadedo princípio que diz “dois corpos não podem ocupar o mes-mo lugar ao mesmo tempo”. Exasperamo-nos diante de umprograma de televisão que sai do ar ou do computador quese desconecta da internet, porque não suportamos constatarem nossas mentes um solitário universo, cuja impressão deonividência, onisciência, ubiqüidade, onipotência e unificaçãocom as outras mentes não passa de uma tola ilusão, alimenta-da por esses aparelhos. Porém, a dificuldade de enxergar o ób-vio nasce justamente do patético desejo de exercitar os poderessuperiores e, assim, reconhecermos a causa real do estresseseria questionar, da ciência, o atraente mundo do super-homem, iniciativa para a qual não estamos preparados.

Não se pode esquecer que o estresse e mesmo outrosdistúrbios, tais como a síndrome do pânico e a depressão, tam-bém estão presentes nas cidades do interior e até nos campos,

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apesar da relativa tranqüilidade que ainda se desfruta nesseslugares. Isso corrobora o que foi dito logo atrás, porque nãodevemos atribuir essas perturbações apenas à perda de con-trole da situação, já que na área rural ela é praticamenteinexistente, mas à simples existência da tecnologia em nos-sos dias, tendo em vista que nesses lugares, mesmo os maisdistantes, as pessoas hoje convivem com aparelhos e máqui-nas como telefones, televisões e veículos automotivos. Comoveremos no decorrer da obra, quando houvermos analisadoo problema sob abordagens mais amplas, apenas a existênciada tecnologia é suficiente para causar esses e muitos outrosdistúrbios que perturbam o homem moderno.

As conquistas da ciência parecem sustentar-se em pro-fundas contradições. Não compreendemos muito bem porque o mesmo conhecimento científico empregado para con-ceber um invento de utilidade ou diversão para o homempossa servir, ao mesmo tempo, na criação de objetos ou méto-dos para o seu prejuízo ou destruição. O resultado é uma rela-ção ambígua para com o desenvolvimento tecnocientífico,embora a maioria das pessoas dê a impressão de se posicionara favor. Isso se reflete na extensa literatura sobre o tema,produzida geralmente por filósofos.

Embora a aprovação devesse ficar por conta da quali-dade de benfeitora — enquanto traz a cura para os males e oconhecimento da natureza que tem como conseqüência amelhoria da condição humana —, comumente são os entre-tenimentos proporcionados pela tecnologia que produzemos maiores apologistas da ciência. Como exemplo insano desseentusiasmo me vêm à memória os seguidores do Heaven’sGate, grupo de pessoas especializadas em software e que sesuicidaram na ilusão de embarcarem na cauda do cometaHale-Bopp, em recente passagem pela Terra. O extremo en-tre os delirantes adeptos do mundo do super-homem e osfanáticos opositores — que tem na figura do Unabomber umsombrio representante —, dá a impressão desalentadora deque, talvez, não seja possível abordar o assunto de forma razoá-vel e benéfica para todos. Certamente isso ocorre porque os

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A caminho do super-homem

oponentes vêem o objeto de sua controvérsia fora deles, comoalgo que não lhes pertence. Os primeiros encarnam o pró-prio super-homem, enquanto os segundos, não percebendoque a forma como vem sendo empregada a ciência é resulta-do natural da identificação do homem para com o universomental e não simplesmente uma opção de cientistas e inven-tores, sentem-se excluídos e mesmo perseguidos por ela. Oexemplo mais cruel desse lamentável engano fica por contado já citado terrorista, que representou um risco à vida devárias pessoas e instituições ligadas à tecnologia, por muitosanos, havendo cometido atos violentos e criminosos comoregistro de sua contestação. Mas o risco de danos físicos e aviolência contra a carne são justamente os subprodutos maisperversos do progresso tecnocientífico e, desse modo, pare-ce-me um verdadeiro contra-senso atacar a malignidade doprogresso utilizando-se, para tanto, da própria arma do ad-versário, nesse exemplo em particular, o envio de bombaspelo correio.

Vivemos o dia-a-dia em estado de alerta, como umaespécie de novo Tântalo, cujo suplício consiste em não pro-var em paz os frutos apetitosos da avançada tecnologia, semo temor pela erva daninha do perigo e da violência, que,como vimos, também vicejam no progresso. Acossados cons-tantemente pelo desejo de fruir os poderes sobre-humanos e,ao mesmo tempo, pelo receio talvez inconsciente da exposi-ção da carne aos perigos desta fruição, não deveria nos sur-preender o resultado do conflito como sendo o estado per-manente de aparente ansiedade, insaciabilidade e inquieta-ção que caracterizam a vida moderna.

Apenas seres muito distraídos quanto à condição deseus corpos ou dispostos a tudo para esquecê-la poderiamnão perceber as verdadeiras razões que subjazem na contra-dição do emprego do conhecimento científico, e, pior queisso, permitir que a utilização do conhecimento se voltassecontra a própria carne. A compreensão para essa atitude,acredito, encontra-se lá atrás, em Galileu e nos fundamentosda ciência moderna. Para que o homem dominasse a natureza

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seria necessário estabelecer as suas leis e elas não poderiamser embasadas naquelas qualidades materiais que o cientistaitaliano denominou de secundárias, isto é, as que dependemsomente de nossos sentidos. As qualidades primárias — asque poderiam ser reduzidas a expressões matemáticas e quan-titativas — seriam as únicas que, dali para a frente, deveriamser levadas em conta. A conseqüência disso não poderia seroutra. Trocando o testemunho dos sentidos pelossupersentidos da ciência — através de aparelhos e instrumen-tos os mais sofisticados —, a realidade física passou a serpercebida muito além da capacidade humana. O mundo nuncamais poderia ser o mesmo, não devemos nos esquecer disso.A consciência da matéria do mundo e do próprio corpo so-freriam uma transformação que teria como resultado final,em última análise, vivenciarmos uma realidade esticada aomáximo em seus limites — sob o risco previamente calcula-do. Isso colocou-nos na difícil posição de um equilibristamantendo-se numa corda sobre um despenhadeiro. Oequilibrista é o candidato a super-homem, a corda é o mun-do esticado pela ciência e o despenhadeiro é o desafio decaminhar na trilha do ideal super-humano, sob a pele vulne-rável do homem.

O paradoxo das duas faces do conhecimento é o res-ponsável pela ambigüidade das conseqüências: se por um ladosomos beneficiados pelos métodos, invenções e pesquisas quenos reviram o corpo e a alma pelo avesso, a procura do remédioe da cura ideais que nos libertem das dores e enfermidades natu-rais e fortuitas, por outro, estamos sempre a um passo de trá-gicos acidentes ou condições adversas, criados pelo mesmoprogresso, produtor de outras dores e males, muitas vezes,mais assustadores do que os primeiros. Os males advindos doprogresso científico e tecnológico costumam lançar-nos novazio da estupefação e do silêncio. Os acidentes aéreos assom-bram-nos de uma tal maneira que tentamos, a qualquer custo,encontrar um culpado que ocupe o lugar da verdadeira expli-cação. O argumento do risco calculado não é suficiente paradesfazer a contradição em que o progresso científico repousa.

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Não importa quantas medidas de segurança foram tomadasem cada invento e a cada fato, se essas medidas se basearamnão no bom senso nem na prudência dos cinco sentidos, masapenas no olhar frio e distante da ciência. Qualquer desastreocasionado por ela reproduz o conflito que existe no âmagodo próprio homem: exceto em uma maca de hospital, a ciên-cia e a tecnologia — tal qual o espírito mais arrojado —, nun-ca se lembram ou fazem caso, verdadeiramente, da extremafragilidade e finitude do corpo.

A ampliação dos limites naturais do homem só podeter como princípio básico o não reconhecimento ou a indife-rença para com esses mesmos limites. Assim é que a utilizaçãocorreta das leis da aerodinâmica nos possibilita a experiênciado vôo, apesar da realidade de o homem não possuir asas.Tudo bem, enquanto não nos deparamos com nenhuma fa-lha, humana ou técnica, que impeça a decolagem ou a ater-rissagem do aparelho em condições normais. Entretanto, seum acidente nos desperta da ilusão de sermos pássaros, fica-mos imediatamente sozinhos com a nossa dor porque nuncacontamos com o apoio moral da ciência. Para ela, tudo nãopassa de uma questão de números ou variáveis e os númerosapontam o avião como o meio de transporte mais seguro.Além disso, ela cumpre sua obrigação e tudo é sempre levadoem conta, em cada vôo — nos mínimos detalhes —, tudo,menos o fato de que o homem não tem asas para escapar deum avião que está caindo ou prestes a explodir. Ante o dadocrucial, ela não tem mais nada a oferecer do que o dar deombros, das estatísticas, como se dissesse: azar daqueles quese encontravam justamente no vôo fatídico, entre milharesde outros vôos bem-sucedidos. Ora, isso não é nada reconfor-tante e deve originar desse abandono a tendência obsessivadas pessoas — refiro-me aos leigos — de tentar compreenderas causas de um acidente, revendo e relendo sobre o assuntovezes sem conta.

A maior diferença entre a vida que levamos hoje e aque viviam os homens anteriores às invenções que foram re-volucionando o mundo — desde as armas de fogo até os

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inventos mais recentes —, reside no fato de que a ciência pas-sou, gradualmente, a se interpor nas relações que o homemmantém com o mundo circundante e com o próprio corpo.Essa mediação crescente parece haver atingido o apogeu: nãosão mais os nossos sentidos os testemunhos da realidade emque vivemos, porque, para isso, contamos com os aparelhosapropriados para a conferição precisa. Mas — é importanterepetir —, os dados obtidos através da verificação científicaultrapassam em muito as limitações da carne e, desse modo,passamos a vivenciar uma realidade além do homem, maisapropriada a seres detentores de superpoderes. Assim é que,nas grandes cidades, são os instrumentos conferidores do tem-po e da poluição atmosférica e sonora os verdadeiros compro-vantes dessa realidade; corremos a velocidades espantosaspara a nossa capacidade natural; despencamos do alto desuperbrinquedos em parques de diversões; subimos às altu-ras, a bordo de imensos aparelhos; habitamos ou trabalha-mos em arranha-céus, construções monstruosas, excessiva-mente desproporcionais aos nossos corpos; enfrentamos emnosso cotidiano um trânsito caótico, repleto de veículos me-tálicos, grandes e velozes o suficiente para aterrorizar o maispreparado de nossos ancestrais e somos obrigados a convi-ver com tudo isso — em ritmo muito mais acelerado do queo de nossos próprios movimentos — como se fosse a coisamais natural possível! De uma tal maneira a vivência nessemundo superior aos nossos limites se impõe, que não nosparece um contra-senso diagnosticar aqueles que sentem te-mor em viver num mundo desses, simplesmente como doen-tes, sem levar em consideração, antes de qualquer coisa, averdadeira “doença” que contribui, sobremodo, para preci-pitar seus males.

Entre a morte “espetacular”, provocada pelos inúme-ros meios extraordinários de que esse mundo dispõe paramatar, e o medo, aparentemente ilógico, da vivência e morteem tais circunstâncias — sentido pelos fóbicos e vítimas dasíndrome do pânico —, tenho escrúpulos em apontar qual seriao distúrbio mais grave, porque desconfio que o incremento da

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síndrome nos últimos se deve ao aumento e à crueldade dosmétodos terroristas do primeiro. Contamos com um arsenalde instrumentos mortais de dar inveja ao mais imaginativo,vingativo e irado dos deuses gregos. Das formas sofisticadas— do vazamento de usinas nucleares, acidentes aéreos, gasestóxicos como os usados pela seita japonesa no metrô de Tó-quio —, às mais comuns, como os acidentes de trânsito, asbalas perdidas ou ainda a explosão de um bujão de gás defei-tuoso, negligenciado por um vizinho, as maneiras de morrerestão cada vez mais diversificadas, como suas próprias víti-mas. Só não ficamos petrificados pelo medo de sucumbir aum desses inúmeros perigos que nos rodeiam, graças à felizinconsciência ou negação de nossa vulnerabilidade. Além dis-so, auxilia nesse processo o estado mental em que normal-mente vivemos, pulando de um pensamento ao outro, numainconstância e insatisfação que se adaptam muito bem aoimenso parque de diversões em que se transformou o mun-do, por obra da ciência e da tecnologia. Mas se não vivemosconscientemente amedrontados pelos riscos embutidos noprogresso, a própria vivência nesse mundo mais apropriadoa super-homens e a observação do resultado da ceifa — cine-matográfica, exibida cotidianamente pelos meios de comuni-cação — tem como conseqüência natural desequilibrar ainteração mente–corpo, principalmente naqueles já propen-sos a esses distúrbios.

Na verdade, são dois os tipos básicos de vitimas: osfóbicos ou sujeitos aos ataques de pânico e os estressados. Osprimeiros fugiram aterrorizados diante da ferocidade dasmetrópoles, e os segundos, mesmo amedrontados, mãos su-ando frio, permaneceram para lutar. Porque uns fogem e ou-tros enfrentam os perigos da “selva de aço e concreto”, apredisposição genética poderia fornecer a explicação. Talvezos primeiros tenham muita consciência da carne, ou instintode sobrevivência mais acentuado. Já no segundo caso, pare-ce-me que o numeroso grupo acolhe tanto aqueles indivídu-os pertencentes à maioria, quanto o grupo dos menos sensí-veis aos perigos da existência. Nesse último caso, refiro-me

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àquelas pessoas que parecem necessitar viver com muitaadrenalina no sangue, daí procurarem sempre profissões eesportes arriscados. Tanto num caso quanto noutro, prova-velmente, uma questão de grau de sensibilidade à realidadeda carne e da matéria e que foi levado aos extremos: as víti-mas da síndrome percebem essa realidade mais do que deve-riam, enquanto os protótipos do super-homem parecem ha-ver se alienado dela. O certo é que o estresse é mais que oresultado do excesso de trabalho, que somado à aceleraçãoda vida moderna produz a irritação, a frustração e outrasemoções negativas. Não podemos nos esquecer que a funçãodo mecanismo biológico do estresse é despertar o organismopara situações de risco. Ora, se perigos naturais existiam naépoca do homem das cavernas, risco é o que não falta nascidades adequadas ao super-homem, e assim, penso que essadefesa natural e inconsciente, ao contrário do que muitosimaginam, continua muito atual e, em muitos casos, útil. Nãofoi o mecanismo que ficou obsoleto, foi o homem que ousoualém de suas possibilidades. De nada adianta o conhecimentoque temos das medidas de segurança tomadas para cada in-vento e experiência no mundo tecnológico, se o risco calcula-do matematicamente ultrapassou em muito a capacidade deavaliação de nossos próprios sentidos. O instinto de sobrevi-vência ante um perigo em potencial irá sempre preparar nos-sos corpos através do medo, suor e adrenalina para fugir oulutar com as feras criadas pelo arrojo da ciência do espírito.

Como se não bastassem os riscos inerentes ao progres-so, ainda nos vemos envolvidos por todo tipo de violência. Ahistória dessa característica do homem já acumulou séculosde teorias, hipóteses e estudos, sem que se tenha chegado auma conclusão. Penso que o assunto não deveria ficar restri-to ao pequeno número de estudiosos, para que as aborda-gens não ficassem resumidas apenas ao ponto de vista cientí-fico. Seria muito bom se os dados coletados pela ciência fos-sem, também, ponderados por quem — fora do campo deestudo — conseguisse um novo ângulo de visão, assim comouma nova forma de interpretá-los.

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Como percebemos o mundo que nos cerca e nossospróprios corpos? Poderíamos haver nos interrogado, ao de-parar-nos com a violência, em qualquer época. Mas a emoçãode que somos tomados frente ao acontecimento violento einesperado, muitas vezes, nos leva — a nós, enquanto leigos— a pensar nas diferenças de cunho moral, responsáveis pelograu de belicosidade ou pacifismo das pessoas, assim comotambém em fatores circunstanciais e externos que transfor-mam pessoas em vítimas de tragédias fortuitas e sobre as quaisnada há para fazer. Desse modo, acabamos fazendo um jul-gamento ou mesmo atribuindo ao acaso o que deveríamosquestionar de forma mais objetiva.

A abordagem ética da questão é benéfica enquantoincentivadora da reflexão sobre nossa conduta, e a casuali-dade pode ser fonte alimentar para as estatísticas, mas ambasjamais responderam, de maneira satisfatória, sobre a essên-cia do conflito. Hoje, no entanto, a ciência que participa comouma das causas do problema também tem se empenhado emresolvê-lo, com resultados positivos para a sua compreen-são. Em pesquisas sobre a biologia do comportamento —tanto de criminosos violentos como de pacientes neurológi-cos — e através da mais avançada tecnologia, ela tem feitointrigantes descobertas. Quantos aos primeiros, os crimino-sos violentos, é preciso recordar que o fato de se encontrarno universo carcerário masculino o maior número de exem-plos de violência colocou o hormônio testosterona sob a sus-peita de ser uma das principais influências para o comporta-mento anti-social. A respeito, embora não seja um assuntopertinente a este livro, penso que seria interessante o estudoaprofundado sobre a provável conexão entre o hormôniocitado e a insuficiente ou excessiva quantidade do neuro-transmissor serotonina, envolvido em inúmeros comporta-mentos, dentre os quais, os que nos interessam agora mais deperto, nos casos de violência e naqueles outros em que se en-contram a habilidade, o gosto e a atração para o risco, como noexemplo de um praticante de esportes radicais. Voltando às pes-quisas de que falávamos, sobre criminosos violentos e pacientes

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neurológicos, ambas as condições parecem surgir da interaçãoentre dois fatores: o genético, associado ao mau funciona-mento cerebral, e o meio ambiente em questão. Mas a espé-cie de estímulo provinda do ambiente e que leva o organis-mo a responder de forma tão violenta, e o verdadeiro alcan-ce dessa influência externa são questões que ainda não obtive-ram respostas. Este livro, pesquisando uma antiga indagaçãofilosófica e suas atuais implicações, nutre esperanças de en-contrar não uma solução para o problema da violência ou doestresse, mas contribuir para a melhor compreensão dessasquestões e de muitas outras, que tanto atordoam o homemnesta mudança de século.

Sob uma nova roupagem — como uma questão maisrestrita às relações cérebro–mente — o antigo e complexoproblema mente–corpo, que ocupou um lugar importante naspreocupações dos primeiros filósofos, parece haver recon-quistado o seu espaço. Nessa que foi denominada a décadado cérebro, é provável que não exista nenhum estudioso daárea que não tenha se deparado com a delicada questão. Tãodelicada que costuma incomodar a quem se sente na obriga-ção de tratar da mesma. Para a maioria dos psicólogos — osprimeiros a serem apresentados à tarefa indigesta — essa he-rança indesejável da filosofia simplesmente não condizia como status científico que desejavam obter para a sua nova maté-ria de estudos, e, assim, preferiram descartá-la como não me-recedora de maior atenção. De forma semelhante percebemos,hoje, as dificuldades que a mesma questão causa aos cientis-tas que não quiseram ou não puderam se furtar ao dever delidar com o problema. Receosos de serem consideradosdualistas — ou seja, qualquer coisa que lembre ainda queremotamente a nada científica dualidade cartesiana —, essesdesbravadores e corajosos estudiosos do cérebro parecem ha-ver capitulado diante da complexidade da questão, perdendo,assim, a oportunidade de atacar de frente um problema ain-da não solucionado. O resultado de tal atitude é que grandeparte de seus conceituados textos, tratando das últimas des-cobertas sobre o cérebro, ficam a desejar quando o assunto se

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aproxima da contradição que persiste no âmago do proble-ma de seu próprio objeto de estudo: por que o homem —que sabemos agora, através da ciência, ser único — insiste,muitas vezes, em tratar o mundo material e a si mesmo comouma dualidade, composta por duas naturezas distintas e opos-tas entre si, matéria e imaterial; corpo e mente?

Na Antiguidade, a importância do problema devia-se aofato de que para responder a uma questão crucial — quem é ohomem? —, se fazia necessário pensar, antes de mais nada, so-bre a condição especial do ser que é ao mesmo tempo pensa-mento e matéria. Embora aparentemente nada práticas, muitasdessas questões fundamentaram a própria filosofia, numa épo-ca em que a ignorância relativa à ciência não inibia nem depre-ciava a reflexão sobre as mesmas. Hoje podemos nos dar aoluxo de descartar — não sem algum prejuízo — uma ou outradessas questões, mas aquela cuja compreensão possibilitaria amudança da perspectiva sobre a qual enxergamos o homem e omundo que ele construiu, acredito ser temerário deixar de lado.

Não existe um conhecimento e muito menos uma prá-tica, seja de caráter filosófico ou científico, capaz de explicare resolver os problemas oriundos da complexa organizaçãomental do homem. Suas trapalhadas psíquicas e contendasemocionais ainda aguardam uma psicologia que lhe traga umpouco mais de paz. A Psicanálise é uma prova de que essatarefa gigantesca está apenas em seu início. Entretanto, com-preender o enredo complicado do teatro da mente não é oúnico desafio a vencer, nem o maior. Muito aquém das sutismaquinações psíquicas existe o problema concreto de ummundo que vai aprofundando o abismo entre o homem decarne e o ser puramente mental. É até possível que jamaisencontremos uma teoria e psicoterapia plenamente satis-fatórias para os nossos complexos problemas emocionais,nenhuma resposta crível ou agradável para o verdadeiro sen-tido de nossas existências e, apesar disso, sermos capazes demelhorar o mundo em que vivemos. Assim, retornando àsperguntas que devem ter feito nossos antepassados, gostaría-mos de abordar a questão sem o risco de sermos julgados

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precipitadamente, numa idéia preconcebida, como sendo ul-trapassada dualista, a quem as descobertas científicas sobre aíntima relação cérebro–corpo parece desconhecer.

Quem somos nós, verdadeiramente? — têm pergunta-do, os homens, ao longo dos séculos. Seres duais ou de umanatureza única? Seres, sobretudo mentais, apesar da flagran-te materialidade de nossa carne? Ou somente a matéria cujaconsciência, abrigada em seu interior, se ilude pensando tervida própria, quando na realidade não passa de umsubproduto das atividades físicas e químicas dos neurôniosdo nosso sistema nervoso central?

Talvez o caminho que nos levaria à melhor respostafosse conhecer a natureza e o resultado das relações que ohomem mantém com a sua mente e o corpo e que faz comque nos comportemos de uma determinada maneira e não deoutra, assim como edificamos o mundo à nossa volta. Se elenos conduzir à compreensão da contradição em que o ho-mem vive, ao ostentar sofisticado aparato tecnológico e altamentalidade, ao lado de um coração de pedra que não secomove, verdadeiramente, com o sofrimento e a miséria ain-da existentes, então terá valido a pena haver tentado recupe-rar a denominação e a dimensão originais desse problemafilosófico, arrebatado, de forma prematura, pela ciência.

DEMÓCRITO E PLATÃO; ERASMO E MONTAIGNE

Estudando a história do pensamento,2 ficamos sabendoque o tema em questão já aparece, na antiga Grécia, como adualidade em corpo e alma. Ele foi transformado numa fontenatural de questionamento de uma filosofia que, iniciando-secom a natureza, começava, enfim, a fixar a atenção no pró-prio homem.

Nos escritos do pré-socrático Demócrito de Abderasomos surpreendidos por um fragmento muito interessante arespeito do assunto. No texto “Sobre o desejo e a dor”,3 ofilósofo culpa a alma por todos os males que o corpo tem

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sofrido, ao esgotá-lo com o êxtase das paixões e o desmazelopara com a própria sobrevivência. Esse escrito, que de tãosignificativo para este trabalho será transcrito em outro capí-tulo, tem o poder de atrair a atenção de quem estuda o pro-blema, por sua afirmação inusitada. Geralmente, ao contrá-rio de Demócrito, era costume atribuir à carne as origens daspaixões e sensualidade humanas, tal como fez algum tempodepois Platão, através da figura de Sócrates — em Fédon —,acusando o corpo de desviar a alma da verdade, com seufestival de desejos, necessidades e luxúrias. A posição dessesdois grandes filósofos evidencia a importância do problemana Antiguidade e ainda revela uma simpatia, ora para com ocorpo, como no caso de Demócrito, ora para com a alma,como no exemplo de Platão.

Penso ser oportuno definir o que pretendo dizer quan-do me refiro à carne ou ao corpo, que neste livro serão ter-mos muito utilizados. Hoje, ainda é costume atribuir à partematerial do homem qualidades sensuais, tal qual antigamente,embora a liberação sexual não veja mais na carne nenhumaqualidade negativa, muito pelo contrário. Porém, sempre queeste livro fizer menção a ela ou ao corpo será no pensamentode Demócrito que deveremos nos embasar. De uma formasemelhante ao filósofo, atribuo não propriamente ao espíri-to mas à propensão do homem em identificar-se com elemuitos dos males infringidos gratuitamente ao corpo. Assim,quando falar em carne não estarei fazendo alusão ao sentidoerótico — como objeto de desejo, forma habitual de a psico-logia enxergá-la — mas referindo-me a ela enquanto proble-ma de sobrevivência do homem; que ocupa um determinadolugar no espaço; cuja condição frágil, mortal e limitada seopõe à idéia de espírito, mente ou alma.

Além de subentender o dualismo, a posição de Demócri-to também poderia ser classificada como a de um monismomaterialista, por reduzir o homem à realidade física do áto-mo. Demócrito, aliás, parece-me surpreendentemente moder-no, o que não é tanto o caso de seu contemporâneo. Dualista,como era a posição de seu tempo, Platão mantinha a firme

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convicção na existência anterior do mundo das idéias perfei-tas, superior à mente, que naqueles tempos era percebida comoalma, imortal. Desse modo, as posições filosóficas iam-se al-ternando entre o dualismo, que dividia o homem em mente ecorpo, e o monismo, que o considerava único, seja em sua rea-lidade física, seja em sua natureza mental/espiritual.

A questão mente–corpo — que de agora em diante po-deremos simplificar chamando de “questão MC” ou apenasMC — seguia o seu curso, no pensamento de cada filósofo.Porém, o que é imprescindível ressaltar é que nem sempre oproblema foi colocado de forma clara e evidente como encon-tramos em Demócrito e Platão. Na maioria das vezes ele apa-receu modificado, tratado de modo unilateral ou indiretamente,fato que dificultou a percepção da importância que obteve naobra de determinado autor, impedindo-nos de perceber a suacontinuidade na história da Filosofia. Mas ele estava lá, basta-va reconhecer-lhe os traços sob a deformação sofrida, decor-rente da progressiva complexidade do pensamento. E comoseria possível não encontrá-lo, se o problema se ocupa da ver-dadeira “condição humana”, tão lembrada, mas ao mesmotempo tão indefinida? Tanto é assim que podemos detectar onascimento do problema já com os filósofos pré-socráticos.Embora colocado de forma abstrata e camuflado sob outra ques-tão — a do ser e do não-ser, de Parmênides —, no fundo, é oconflito mente–corpo a verdadeira polêmica da época. Além deintroduzir a lógica e a metafísica na filosofia, a questão do ser edo não-ser traz em seu bojo uma posição contrária à naturezamaterial do homem, uma vez que o filósofo despreza o testemu-nho dos sentidos. Platão demonstra haver compreendido, naessência, do que tratava a questão do ser, que tanto mobilizavaa atenção dos pensadores naquele tempo. Podemos confirmarisso no diálogo do Estrangeiro com Teeteto, no Sofista de Platão:

Estrangeiro — Na verdade, parece que, entre eles,há um combate de gigantes, tal o ardor com que disputam,entre si, sobre o ser.

Teeteto — Como assim?Estrangeiro — ... Definem o corpo e a existência

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como idênticos e logo que outros pretendam atribuir o Ser aalgo que não tenha corpo, mostram por estes um soberbodesprezo nada mais querendo ouvir.

Teeteto — É verdade...Estrangeiro — Por sua vez, os seus adversários nesta

luta se mantêm cuidadosamente em guarda, defendendo-sedo alto de alguma região invisível, e esforçando-se por de-monstrar que certas formas inteligíveis e incorpóreas são oser verdadeiro ... é em torno a tais doutrinas, Teeteto, que hásempre uma luta sem fim a esse propósito.4

Essa passagem de Platão nos faz compreender perfeita-mente o que se encontrava em jogo. O debate real, mascaradosob a controvérsia extremamente subjetiva da existência do sere do não ser, trata do corpóreo e do incorpóreo, da matéria edo imaterial, como já afirmamos, da questão mente–corpo.Como este livro pretende demonstrar, é ela a fonte dos maioresconflitos do homem, apesar de se haver concluído, numa deter-minada época e de maneira equivocada, que os problemas rela-tivos ao assunto estavam ultrapassados, com pouca ou nenhu-ma significação para a história do pensamento.

Vêm à minha memória, neste instante, dois filósofos queilustram bem a forma indireta de se abordar o tema. São elesErasmo de Rotterdam e Montaigne que, dentro do espírito deliberdade da Renascença, questionaram a natureza e o com-portamento humanos. Sob a perspectiva da questão mente–corpo é possível aproximar esses dois filósofos, sem que nospreocupemos com as diferentes formas de humanismo demons-tradas por ambos. Se Montaigne desconfia da razão ao anali-sar o próprio universo mental, Erasmo não deixa por menos,ainda que suas esperanças na capacidade racional do homempretendessem o merecimento do livre-arbítrio. Embora o filó-sofo holandês — tal como Platão — atribua à carne os peca-dos da sensualidade, quem está no banco dos réus é a psique,porque a base da existência humana seria a loucura.

Montaigne — cujo objeto de estudo foi ele próprio —descobriu, através da análise espontânea e sincera de tudo o quelhe atraía a atenção, a extrema volubilidade e inconsistência do

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espírito. O que seria possível a esse espírito saber, verdadei-ramente, sobre ele mesmo, sobre as outras pessoas e as coisasao redor? Nada. O homem não pode conhecer nada comabsoluta certeza, nos leva a pensar o cético filósofo, baseadona íntima e despretensiosa sondagem de seus pensamentosvariados. Nada que não revele o retrato da inconstância daalma, frente aos acontecimentos externos e aos próprios ca-prichos. Talvez esse conhecimento seja a causa da sua maiorsensibilidade aos males físicos, do que àqueles advindos doespírito. Desses, certamente, o sábio francês teria que levarem conta a leviandade das paixões, ponderar sobre as verda-deiras razões antes de se deixar abater por eles. Aliás, comonão poderia deixar de ser àqueles que analisaram tão a fun-do a inconsistência e loucura do universo mental, tanto umquanto outro dão a impressão de possuir um profundo co-nhecimento da fragilidade da vida. Ora, esquecer ou negaressa fragilidade é justamente a loucura da espécie. E a causada miséria humana.

Erasmo, antes mesmo que Montaigne fizesse o inven-tário de seu espírito, já havia analisado não propriamente oseu comportamento, mas o de outros. A sua conclusão era ade que todas as pessoas eram possuídas pela loucura: bispos,cardeais, filósofos, governantes, médicos, artistas; mulheresque seduzem os homens com os seus artifícios e os homensque se deixam seduzir por elas. No Elogio da Loucura, suaobra-prima, Erasmo faz com que a Loucura maior fale portodas as loucuras pessoais, concluindo ser ela própria o mo-tor da existência. Apesar de o livro ter sido escrito em 1509,a Loucura continua se vangloriando através de todos nós etalvez agora, no início do novo milênio, mais do que nuncae, ironicamente, cheia de razão. Tanto o Elogio quanto osEnsaios tratam indiretamente da questão mente–corpo por-que concentram suas atenções sobre um de seus pólos — oespírito —, proclamando a sua loucura e inconsistência.

Acredito que seja uma tendência do homem identificar-se em maior grau com a mente. Essa tendência demonstraum potencial de insanidade que se realiza na medida em

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que o homem reconhece os seus desejos e caprichos comosendo ele próprio, identifica-se inteiramente com eles. Issoresulta em prejuízo ao corpo, visto que dar sempre priori-dade à imaginação é negar as necessidades básicas da maté-ria, sua fragilidade e finitude. É ainda a preferência pela indi-vidualidade egoísta do ser que se compraz em ser sobretudopensante, ao invés do reconhecimento solidário da carne,verdadeira base da igualdade entre os homens. Mas afirmar aopção pelo mental não parece, de imediato, um equívoco?Afinal, a opinião corrente é de que vivemos uma época, comonunca, materialista. Sobre isso, não gostaria de argumentar agora.Para tanto, seria necessário introduzir já, neste texto, o conceitode corpo ideal e outros que irão aparecer logo adiante, nos pró-ximos capítulos. Por enquanto, só me resta pedir um voto deconfiança ao leitor, para que, juntos, possamos continuar.

O ceticismo de Montaigne e a constatação da loucura— principalmente a dos representantes da Igreja —, por par-te de Erasmo, encaminham-nos, em última análise, às virtu-des socráticas. E o que representam essas virtudes senão aprocura de um bem que, no fim, reverterá ao próximo? As-sim, em Montaigne, a serenidade obtida pelo auto-conheci-mento possibilita o arrefecimento das paixões, o que favore-ce a prática da justiça. E a volta ao verdadeiro cristianismoda caridade e do amor ao próximo — como propunha Erasmoem outra de suas obras —, significaria o afastamento, porparte do clero, da loucura e iniqüidade em que vivia para oretorno ao exercício diário das virtudes cristãs. Falavam osdois filósofos, de uma maneira geral e sob ângulos variados,a respeito dos mesmos problemas e esses tinham a sua ori-gem na grande questão, a maior de todas: a complexidade daconstituição mente–corpo, advinda da tendência humana emidentificar-se com a mente, em detrimento do corpo. Entre-tanto, não vi mencionado em lugar nenhum, que os dois filó-sofos estivessem tratando da velha e polêmica questão.

Desta forma, insisto, é que a questão MC continuousendo tratada, não mais de forma direta, como em sua ori-gem. Prosseguia através da análise do espírito. Os dois filósofos

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haviam conseguido o mínimo distanciamento necessário paraa observação de seu objeto de estudo, o que lhes propiciou alucidez em meio à contagiante instabilidade do espírito. A meuver, Erasmo e Montaigne estão entre os maiores representan-tes da sanidade que o pensamento logrou atingir em sua histó-ria, qualidade que logo, logo, a filosofia iria perder.

DESCARTES E A IDENTIFICAÇÃO COM O SER PENSANTE

Acredito que não devemos separar o mundo que habitaa cabeça dos filósofos daquele outro que, frustrado por nãoconseguir exprimir com o próprio corpo as faculdades super-humanas da mente, inventou e produziu, entre outros, as ar-mas de fogo, os grandes navios, o carro, o avião, a televisão, eainda o computador. Ignorar a relação que, direta ou indireta-mente, existe entre os dois mundos, deixar de perceber-lhes aconexão íntima, representa incorrer num grave erro. É dessaperspectiva que entendo a dualidade cartesiana, primeiro comoa identificação total com a mente — denominada por Descar-tes de coisa pensante, res cogitans, ou ser pensante —, segundocomo a manifestação de um mundo que, já no Renascimento,dava mostras crescentes de sua preferência pela individualida-de, diversificação, velocidade, instantaneidade e todos os ou-tros poderes superiores ou divinos.

“Eu penso, logo existo”: com a famosa afirmação Des-cartes não somente inaugura a Filosofia Moderna mas, prin-cipalmente, “oficializa” a tendência humana em se identifi-car com o universo mental, em prejuízo da limitada efrustradora carne. A tendência primitiva que, desde osprimórdios da filosofia, levou a maioria dos filósofos a osci-larem entre o pálido reconhecimento do corpo e a rubra eapaixonante entrega aos domínios do pensamento.

Antes que se prossiga na análise do pensamento deDescartes, a complexidade do tema nos obriga a fazer umalonga e aparente digressão. Com algumas exceções devida-mente assinaladas, os termos pensamento, mente, espírito,

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psique ou alma serão empregados, neste livro, indistintamentee apenas com o sentido de imaterialidade em oposição à reali-dade material do corpo. Assim, a mente será compreendida demodo geral, não nos interessando nenhuma faculdade ouestado em particular, tais como a percepção, a memória oumesmo a consciência, comumente estudados por psicólogos,e, em relação à última, objeto de interesse permanente daFilosofia, e agora, também, da neurociência. Entretanto, nodecorrer do trabalho, pretendo (re)definir o conceito deimaterialidade, substituindo a sua indeterminação pelo con-junto das qualidades relativas à dinâmica mental que deno-mino potencial da mente ou potencial do ser pensante. Essasqualidades são percebidas ou fantasiadas pelo homem comodivinas e sobrenaturais. Ou ainda dotadas de superpoderes,tais como os que caracterizam o super-homem americano,das revistas em quadrinhos. Como exemplos do primeiro casoa ubiqüidade, instantaneidade, onividência, onisciência e oni-potência, qualidades atribuídas a Deus e que, até o adventoda revolução tecnológica, foram vivenciadas apenas comouma dimensão espiritual do homem. Do segundo, a condiçãode imortalidade; a capacidade de “voar”; de alcançar grandesvelocidades e demonstrar força física superior, característicasatribuídas tanto aos deuses e heróis gregos quanto aos moder-nos super-heróis. Esses atributos super-humanos complementam,de forma explícita, a vaga onipotência divina.

Apenas os atributos citados serão levados em conta,não devendo nos interessar as diferenças entre a mente e aalma, nem da mente em relação ao intelecto ou ao espírito.Isso nos desobrigará da preocupação com a distinção cére-bro–corpo e cérebro–mente, já que o objetivo principal destelivro é destacar a oposição entre o imaterial e a matéria.

Feitas essas observações iniciais, penso haver deixadoclaro que este trabalho passa longe das questões relativas aoembasamento físico da mente, assim como da conseqüente ecomplexa rede de interação e interdependência existente en-tre ela e o corpo. Essa é uma tarefa apropriada aos cientistasespecializados nas áreas de estudo da neurologia, ou ainda

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psicólogos e outros estudiosos devidamente habilitados. Aposição da autora é a mesma de um leigo que olhasse o pro-blema a partir de sua própria percepção, de dentro para fora.Não colocado na forma de um problema intelectual — exte-rior a nós — a mente e seu produto, os pensamentos, sãopercebidos a maior parte do tempo e pela maioria das pesso-as como algo imaterial, não importando quão material seja asua origem. É somente dessa perspectiva que podemos com-preender os atributos imateriais, logo atrás citados.

O fato de a imaginação possibilitar o deslocamento ins-tantâneo dos pensamentos para qualquer lugar que desejemos,de alguma forma reproduz a onipresença, que significa estarem todos os lugares ao mesmo tempo. A própria capacidadeque temos de estar mentalmente longe do espaço que o nos-so corpo ocupa no momento, vivenciando, assim, duas reali-dades de forma simultânea, já me parece a comprovação paraesse atributo percebido como divino. Mas não somente“estamos” em todos os lugares onde queremos, como tam-bém, tudo “sabemos”, “vemos”, e “podemos”. O universopensante que representa o conjunto das faculdades imateriaisda mente possibilita-nos acreditar e imaginar o que quiser-mos, da maneira como desejamos que as coisas sejam. Ora,isso equivale à onisciência (e também à onividência, no senti-do de tudo conhecer) e essa impressão é tão forte que,constantemente, se sobrepõe a qualquer dúvida que possamosalimentar em relação a ela. Por mais que racionalmente che-guemos à conclusão de que pouco ou nada sabemos, a capaci-dade imaginativa de nossas mentes dotou-nos de uma espéciede onisciência natural que permite que o lugar da dúvida sejalogo ocupado por uma convicção de natureza qualquer, sejafilosófica, psicológica, religiosa ou mesmo por uma teoriasobre a própria dúvida, que nos devolve ao estado tranqüi-lizador do tudo saber. Que esse saber não contenha nada deverdadeiro não faz a menor diferença, porque no reino dopensamento tudo faz sentido e mesmo a loucura tem sua pró-pria lógica, indiferente à ordem que preside ao mundo real,da matéria.

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A ignorância socrática subjacente ao método demolidordas falsas crenças é, em si mesma, o saber que se sobrepõe atoda e qualquer sabedoria, pois que “sabe que nada se sabe”.Assim, contrariamente ao que poderíamos esperar de umatal descoberta — se nada sei, devo ficar em meu canto, igno-rante e inativo —, a negação do saber detém, paradoxalmen-te, a onisciência a respeito da ignorância de todos. É em razãodesse poder que Sócrates se tornou muito ativo e ameaçador àsociedade de seu tempo. Penso que a razão maior da condena-ção do filósofo grego tenha sido a percepção de que a onisciên-cia socrática anulava toda e qualquer onisciência do próximo,fator, em si mesmo, insuportável para muitos. Além disso, osábio ateniense dava a impressão de reconhecer a materialidadede seu corpo, ao levar uma existência simples, atendendo ape-nas às suas necessidades principais. Sobre estas questões, veremosmais na segunda parte deste livro.

Fenômeno semelhante sucede no caso de Descartes,quando o filósofo, ao invés da desorientação e do esvaziamen-to de respostas positivas, causados pela dúvida levada ao ex-tremo, emerge desse caos particular com um sistema completoe ordenado para o saber. Curioso é que esse sistema tenta apoiaro homem numa realidade tão inconsistente quanto aquela emque a dúvida inicial o havia deixado. Nos domínios do serpensante em que passa a existir, a onisciência e a onipotência,atribuídas ao Todo-Poderoso, reconstroem o mundo com ma-téria retirada do próprio nada, da mesma maneira que, demodo inverso, a dúvida praticada de forma exaustiva haviareduzido a pó o chão da realidade que ele pisava.

De uma certa forma, o “tudo saber” se encontra atrástanto da sabedoria de Sócrates quanto do saber religioso efanático daquele que, tomando emprestado de uma doutrinaqualquer a certeza e a fé que sentia faltar em sua própria onisciên-cia, se apropria imediata e inconscientemente do saber alheio.Não poderíamos dotar os deuses e heróis de qualidades divinas,se não as tivéssemos antes, de maneira dinâmica ou em potencial,dentro de nós mesmos. Essas qualidades são estimuladas pelossentidos, como veremos no final deste capítulo.

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Mais do que nunca, hoje, existe ilusão de sobra para fa-zer-nos sentir como deuses, porque pensar, acreditar e desejar éser e ser é, hoje em dia, interligar quase que de forma ininterruptaa nossa rede particular à rede universal de conexões dos meiosde comunicação, formando uma realidade paralela ao mundonatural. Feitos à imagem e semelhança do homem, esses meiosreproduzem a instantaneidade, onipresença, onividência e onis-ciência de nossas mentes. Somos capazes de passar de um pen-samento a outro, de uma imagem à outra rapidamente, de ma-neira semelhante ao que fazem o computador e a televisão. Avariedade de canais da TV — e agora também o computador,através da internet — tomaram, em parte, o encargo de fazer-nos não somente onividentes e oniscientes, mas também pre-sentes em vários lugares ao mesmo tempo, com a diferença deque na televisão, ainda não interativa, o telespectador é umaespécie de presença muda e inativa, mas que tudo vê e, imedia-tamente vendo, conhece. O cinema também poderia se enqua-drar nesta categoria, apenas com a restrição de que para assistira seus filmes temos que nos deslocar às salas de projeção, alémdo fato de que ele não permite a mudança de conteúdo nem éinterativo, como ocorre na TV e na internet.

Absorvendo completamente a atenção, os programastelevisionados “pensam” e “imaginam” pelas nossas mentes,proporcionando-nos um descanso que talvez seja o maiorresponsável pelo irresistível fascínio que costuma exercer so-bre a maioria, levando-nos ao mau hábito da inércia mental,que comumente se transforma num vício. Se falta à televisão,por enquanto, a interatividade, em compensação, sua prodi-galidade em imagens supera, em muito, a do computador.Assim, ambos se completam, fazendo um par quase perfeito.Quem se senta diante desses aparelhos — entretendo-se, pormuito tempo, com as imagens e textos —, desliga-se da suarealidade imediata, passando a usufruir da onividência, onis-ciência e ubiqüidade oferecidas pelas respectivas redes. Atéaí tudo bem, se não fosse pela onipotência — qualidade “di-vina” e sobrenatural mais pretensiosa, e já referida. Ela evo-ca não somente o poder absoluto do Todo-Poderoso — algo

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muito vago para as ambições terrenas —, mas também ossuperpoderes semelhantes aos dos deuses gregos, hoje muitobem representados pelo super-homem e pelos demais super-heróis. Essa qualidade é apenas em parte satisfeita pela TV epela internet — diante da televisão ou do computador plugadona rede, somos, de alguma maneira, onipotentes, “donos”do mundo. Mas, isto é pouco. Afinal, o século XX não in-ventou somente esses aparelhos. E, assim, através de motoci-cletas, automóveis, aviões, ultraleves, asas delta e demais veí-culos, nos sentimos impulsionados a vivenciar os poderes su-periores, poderes esses concedidos a deuses e heróis. A sen-sação que o vôo e a velocidade oferecem ao homem é algoequivalente à onipotência. Eles compensam o desalento e afrustração causados pelo nosso corpo desajeitado, pesado,frágil e finito. Voar e correr velozmente são poderes maisconcretos do que a indefinida onipotência divina.

O potencial “divino” e superior da mente, que puse-mos em prática graças à passagem da ciência especulativapara a ciência aplicada, estimulam o individualismo e a arro-gância, que se sobrepõem à humildade do reconhecimentode solidão e desamparo da carne. Quanto maior o potencialpraticado, maior a pretensão à onipotência, ou seja, quantomais velozes e potentes são nossas máquinas e recursos parausufruir desse potencial, mais onipotentes e menos carnaisnos sentimos. Isso se aplica não somente ao indivíduo, mastambém ao grupo e ao país. No último caso, o exemplo esta-ria nos Estados Unidos. Aliás, se existe um modelo que sirvade ilustração, esse se aplica com perfeição ao Tio Sam. Onorte-americano é o típico pretendente aos poderes dos super-heróis, o que seria de esperar do povo que detém o maiordesenvolvimento tecnológico do planeta.

A diversificação dos produtos oferecidos ao consumotambém contribui para a expansão da índole caprichosa dohomem. Talvez a contradição flagrante entre o extremo ceti-cismo e o aumento de religiosidade e misticismo de nossa épo-ca seja explicada pela exploração das faculdades divinas e su-periores, nos diversos produtos ofertados pelo mercado. Se,

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por um lado, o cientista que possibilitou as inovaçõestecnológicas e o consumidor que usufruiu dessa tecnologia nãosentem mais necessidade do elemento divino em suas vidasporque já se fartaram, quotidianamente, das qualidades daubiqüidade, onividência, onisciência e onipotência, por ou-tro, justamente como reação a tudo isso, aumenta a demandapela fé, por novas crenças, pelo ocultismo. A expansão da NovaEra tem sua razão de ser. Afinal, os deuses foram roubados emsua essência e a pobreza dos produtos tecnológicos, enquantosubstitutos para os atributos divinos, provocou um vazio quesó fez aumentar a necessidade do sobrenatural. Também existeuma velada acusação ao mundo materialista e consumidor querepresenta esses mesmos produtos. Embora todos se utilizemdeles, aparelhos como a televisão, o computador e outros se-melhantes são, no fundo, pressentidos como verdadeiras blas-fêmias. Mas retornemos desta longa e necessária digressão,refletindo, por último, na razão da necessidade de reduzir aterminologia, no estudo da questão mente–corpo.

Quando, lá atrás, observava que pensamento, mente,alma e espírito terão indistintamente o mesmo significado —o da imaterialidade —, gostaria de justificar a economia pelofato de estar convencida da necessidade de simplificação, sem-pre que possível e sem prejuízo da inteligibilidade. A comple-xidade do problema exige que mantenhamos um pé na reali-dade, a fim de não nos perdermos na observação de um deseus pólos, isto é, o universo mental, sempre em expansão. Oque deve sobrecarregar os filósofos não nos incomodará tan-to porque o objetivo é outro e a tarefa um pouco menosárdua. Ao contrário deles, a nossa preocupação se concen-trará justamente na complexidade no tratamento com as pa-lavras, o perigo que representam e o cuidado para não nosdeixar enredar por elas. A sua multiplicação poderia signifi-car uma crescente imponderabilidade, sinal do afastamentoda matéria do corpo e da realidade do mundo físico.

Uma longa reflexão sobre o assunto persuadiu-me que,quanto mais vasto o império do espírito, menos palavras deve-mos empregar para trazê-lo de volta ao corpo que ele habita,

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assim como ao chão que esse corpo tem pisado. O vocabulá-rio filosófico contradiz a muda realidade da carne. Tentandocompreender o pensamento, sua lógica e abstrações, ele afas-tou-se gradualmente da matéria do corpo e do mundo. Como,agora, empregar os mesmos termos para aproximarmo-nosnovamente deles? Com certeza, escapariam-nos das mãos.Desse modo, é preferível delimitar o âmbito da questão, re-correndo ao vocabulário comum, desde que se tome cuidadocom o perigo da imprecisão e da redundância. Foi pensandonisso que consultei, para este livro, mais os dicionários idi-omáticos, no caso o da língua portuguesa, do que os especia-lizados em filosofia, psicanálise ou psicologia. Acredito quesomente os primeiros — testemunhos da linguagem corren-te, nascida das necessidades e experiências humanas funda-mentais — poderiam fornecer o peso existencial de que aspalavras necessitam; o ponto de correspondência com a rea-lidade material. Desse modo, se o texto não advertir que otermo deva ser entendido como pertencendo especificamen-te à filosofia, psicologia ou psicanálise, todas as palavras se-rão utilizadas com o significado dos dicionários da língua, e,assim mesmo, enquanto uso comum e não emprestadas dosdicionários específicos a que pertencem.

Como ilustração, tomemos a palavra espírito. Consul-temos o Aurélio:5

espírito. S.m. 1. A parte imaterial do ser humano; alma. 2.Entidade sobrenatural ou imaginária, como os anjos, o dia-bo, os duendes. 3. (não interessa para o objetivo em ques-tão) 4. 5. 6. 7. 8. (idem) 9. Idéia, pensamento; cabeça. 10.(idem) 11. Filos. O pensamento em geral, o sujeito da repre-sentação, com suas atividades próprias, e que se opõe àscoisas representadas; à matéria ou a natureza.

Reparemos nos verbetes. Aqueles que interessam dire-tamente ao nosso propósito, tais como alma, seres espirituaise pensamento têm como ponto em comum a imaterialidade,em oposição à matéria. Porém ao do nº 11, a filosofia acres-centa algo mais, ou seja, “o sujeito da representação”, em

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oposição às “coisas representadas”. Ora, por que não dizerapenas: “o pensamento em geral, que se opõe à matéria ou anatureza?” Para quem se propõe a simplificar, o acréscimo sóprejudica. Por que complicarmos? Se aceitamos os acrésci-mos somos obrigados a ampliar o universo de nosso estudo.Para constatar a afirmação basta recorrer aos dicionários espe-cíficos à filosofia para ver que tanto “representação” quanto“sujeito” remetem a outros termos que, por sua vez, enviarãoa outros, numa viagem sem fim. Embora essa seja uma carac-terística de todo e qualquer dicionário — os vocábulos têmvárias significações e são explicados através de outros vocá-bulos —, os termos dos dicionários da língua materna sãocomumente utilizados por todos nós, mas não os de filoso-fia. Esses refletem a sabedoria dos filósofos e como eles nãocostumam ter as mesmas opiniões, é possível que nos confun-dam mais que esclareçam. Além disso, são 26 séculos de pon-tos de vista diferentes sobre o homem e o mundo! Se nosembasamos neles, corremos o risco de alienação do objetivoprincipal deste trabalho, que é analisar a questão mente–cor-po sob a hipótese da plena identificação do homem com a suamente, tendo sempre em vista a carne que ele possui mas pre-fere esquecer, assim como o limitador mundo material em quevive. “Não há necessidade de examinar as questões a fundo esutilmente; perdemo-nos em querer considerar todos os as-pectos e formas que comportam”, já nos advertia o sábioMontaigne.6 Assim, todo cuidado é pouco para não chegar, aofim do livro, falando e se ocupando de outra matéria.

Contentemo-nos tão-somente com o significado da pa-lavra imaterialidade, para a definição da mente ou espírito.Para a percepção do que ela venha a ser, não necessitamosrecorrer a nenhum dicionário. A compreensão plena não po-deria ser adquirida através de um mero conceito mas davivência da imaterialidade, em oposição à experiência dolo-rosa da carne. Basta recordarmo-nos de algumas experiên-cias que, conforme o grau de intensidade, chegam a ser trau-máticas. Quem, por exemplo, já não bateu fortemente a ca-beça em algo sólido como uma parede ou janela, que não via

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por estar totalmente absorvido pelos seus devaneios e, por-tanto, também alheio ao próprio corpo? Recordemo-nosdesses momentos: eles podem ser muito instrutivos. Anali-sando o pequeno mas desagradável acidente lembramo-nosde que na hora do choque ficamos de imediato cientes dadolorosa e grosseira existência do corpo. Como num golpecerteiro de cassetete a carne revela-se a nós, em sua verdadenua e crua, sem nenhuma condescendência para com aqueleque dela andava esquecido. No instante em que ocorre, po-rém, a dor aguda não deixa espaço para o raciocínio, eis omotivo de nos esquecermos sempre da plangente verdadedessas colisões. Elas poderiam ser as oportunidades deconscientização de nossos corpos. Quando o sentido magoa-do — no caso, o tato — nos fornece a prova incontestável darealidade material.

Num relâmpago, com um impacto maior que centenasde conceitos ou mil argumentos, a experiência tem a forçanecessária para convencer-nos da existência da carne, alémde trazer-nos instantaneamente de volta ao chão, vendo es-trelas as mais brilhantes, lantejoulas e sóis latejantes que ne-nhum outro insight poderia acender ou elucidar. Mas a filo-sofia e, depois, a ciência — principalmente esta última —,não tomou para si o saber que tudo esclarece? Se em relaçãoà manipulação do mundo material os sentidos podem se equi-vocar, porque são, realmente, passíveis de ilusões, não pode-mos lhes tirar a única verdade a que sempre tiveram acesso eque apenas num delírio cartesiano seria possível negar: a re-alidade do corpo. Sim, a carne existe, é real, dolorosamentereal. Verdade que o espírito prefere esquecer e negar. Apesarde tudo, não existe definição melhor para uma palavra do queaquela encontrada no dicionário da existência, aquela que foivivenciada e depois, de alguma forma, gravada para sempre.

Talvez a matéria tolha, frustre e aborreça muito nossaspretensões, para que vivamos no mundo da lua, literalmen-te. Ou seria o caso de o pensamento opor-se à matéria, em-bora originário dela? O certo é que existe um conflito emnossa singular constituição mente–corpo que resulta em

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desvantagem para a carne e num dualismo intuitivo, dualismonatural que não se pode negar, ainda que a ciência de hoje otenha rechaçado. Penso que a descoberta científica, incontes-tável, de que a estreita interação cérebro–corpo faz do ho-mem um ser único, não anula esse dualismo vivenciado nocotidiano e expresso, de forma espontânea e provavelmenteinconsciente pela maior parte das pessoas. Enquanto a ciêncianão atingiu o conhecimento atual acerca da interação, convi-vemos muito bem com a nossa singularidade, sem nos sentir-mos desconfortáveis em sermos únicos e, ao mesmo tempo,aceitando a dualidade das coisas e situações pertencentes, deum lado, ao corpo–carne e, do outro, à mente–espírito. Ago-ra, qualquer abordagem dualista é desautorizada pela ciên-cia, cabendo, portanto, à filosofia ou mesmo à psicologia acoragem de enfrentar o desafio. Melhor reconhecer o enig-ma ainda não solucionado que negar o óbvio. Porém, não énecessário nos estendermos sobre essa parte, agora. Temos olivro inteiro para isto. Por enquanto, basta apenas que seentenda o motivo da redução da terminologia do problemamente–corpo ao mínimo necessário, e a razão da preferên-cia, sempre que possível, pelo vocabulário comum. Após anecessária explicação, voltemos a Descartes.

Se até o momento este livro parecia concordar com asidéias do grande filósofo, já que pressupõe alguma dualidade naquestão mente–corpo, devo avisar que, daqui por diante, per-correrá outro caminho. Mas antes que isso aconteça e comoprova de profunda admiração e respeito para com a genialidadedo filósofo, gostaria de lembrar que o termo ser pensante —que já vinha sendo utilizado —, foi tomado de empréstimo aele, como a expressão predileta para a imaterialidade, noestudo da questão. Desse modo, embora possamos usar in-distintamente os vocábulos pensamento, alma, mente e espí-rito, a primazia será para os termos ser pensante, eu pensantee universo pensante, nesses últimos casos, no sentido indivi-dual e geral, respectivamente.

“Eu penso, logo existo”. O intelecto que desconfiava douniverso pensante, examinando atentamente as suas “razões”,

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agora se identifica inteiramente com ele. O novo ser resultanteestará, daqui para frente, sujeito à rede de volubilidades econtradições da qual Montaigne conseguiu tão bem se dis-tinguir, assim como ao mercado de indignidades e estupidezda loucura, que Erasmo havia denunciado. A aguda inteli-gência de Descartes captara as tendências da época, transfor-mando-se em seu porta-voz. Mas a mensagem era triste por-que prognosticava a malignidade de uma doença. O mal nãoera tanto a aceitação de um dualismo irreal — de um corpomaterial independente da natureza espiritual da mente — àqual a ciência iria se opor, mas a identificação total do ho-mem com a sua dimensão imaterial. Na falta de meios físicosapropriados para atender a necessidade cada vez maior deexprimir o potencial da mente, o racionalismo irromperiadentro e depois fora do próprio método, como erva daninhadifícil de ser debelada. De que outra forma alguém poderiafazer semelhante afirmação: “Eu não sou essa reunião demembros que se chama corpo humano”,7 senão abstraindo-se totalmente da realidade material, perdendo-se no labirintoda especulação? Se a época de Descartes dispusesse das inúme-ras máquinas e meios que a ciência e a tecnologia nos ofere-cem hoje, para “praticar” os atributos do potencial, a filoso-fia não precisaria desmaterializar o homem, através da dúvi-da sistemática. Na falta disso, o ser pensante delira: alimentadúvidas de tudo, até do corpo que o contém e do mundomaterial que o cerca. Entretanto, não desconfia — um pará-grafo sequer —, das próprias razões que o levaram à identifi-cação total com o espírito. Identificação tão perfeita que ofilósofo se definirá como coisa pensante, descartando-se detudo, principalmente da matéria de seu corpo! Isso anulou oreconhecimento que ele fez, num segundo momento, da resextensa (corpo), como sendo a parte oposta ao eu pensante.Afinal, esse reconhecimento nascia, contraditoriamente, danegação dos sentidos e da identificação total com a res cogitans(ser pensante). Descartes completou o raciocínio dizendo quea única certeza que poderia ter seria a de que “para pensar épreciso existir”, porém, existir como coisa pensante e não

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como matéria. Se a sua constatação houvesse sido outra, elademonstraria, além de correção, também a sua identificação coma carne: para pensar é necessário, primeiro, possuir um corpo.

Está certo, Descartes não nega inteiramente a parte físi-ca do homem pois que a reconhece como res extensa. Mas aí éque reside a contradição. Além de negá-la num primeiro mo-mento, ele não reconhece esse corpo simplesmente como car-ne, carne percebida pelos sentidos como dolorosa, limitada efrágil. A res extensa representa o divisor de águas entrea carne real, sentida e individualizada em cada ser humano e acarne que, sendo apenas matéria, substância, doravante seráredefinida e manipulada pela ciência, renovada por Galileu,contemporâneo do filósofo. Ela será medida e trespassada peloolhar científico que a observa de fora, perdendo, em conseqüên-cia, o verdadeiro (re)conhecimento: aquele que advém da ex-periência tátil.

A mudança de perspectiva pela qual se observava, na-quele momento, o corpo, era tão perturbadora que algunsteólogos e filósofos da época levantaram expressivas obje-ções quanto à distinção da carne em relação ao espírito. Es-sas objeções nos permitem observar o estranhamento de par-te da intelectualidade para com o pensamento do filósofo.Embora Descartes estivesse proclamando algo muito concor-dante com o seu tempo, suas afirmações não passaram des-percebidas e, ao contrário, chamaram a atenção. Olhandopara trás, temos a impressão de que a controvérsia despertadapelos intelectuais contém um velado temor pelo futuro dohomem de carne e ossos. Nem o fato de Descartes logicamentenão desconhecer “que existe um mundo, que os homens têmcorpos ... isso jamais foi questionado por nenhum homem debom senso”,8 e de continuar afirmando que “mesmo o espíritodepende tanto do temperamento e da disposição dos órgãosdo corpo...” foi suficiente para tranqüilizar aqueles senhores.

A utilização da ciência “para a invenção de uma infini-dade de artifícios, que permitiriam gozar sem qualquer cus-to, os frutos da terra e de todas as comodidades que nela seacham”,9 é uma citação de Descartes que se encontra no mesmo

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texto em que ele faz do conhecimento médico uma prioridadeem relação ao emprego da ciência com a finalidade do pra-zer. Porém, de modo diferente do que o sábio filósofo ideali-zava, a realidade do desenvolvimento da ciência inventiva deuma “infinidade de artifício” para distrair o espírito sobre-pôs ao aproveitamento do conhecimento médico para o maiornúmero de pessoas, de forma igualitária. Além disso, comojá vimos, se o conhecimento científico possibilita hoje umenorme avanço na medicina, justamente porque a carne,redefinida em suas qualidades, é passível da intervenção re-paradora e curativa, grande parte da labuta médica consisteem consertar os estragos causados pelos produtos dessa mes-ma ciência, que não reconhece a carne individualizada numcorpo frágil, doloroso, limitado e mortal. Assim é que, aoinvés de uma medicina preventiva, como imaginava Descar-tes “para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primei-ro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida”,10

a ciência médica gasta muito de seus recursos e tempo dispo-nível na recuperação da saúde das vítimas de trânsito; dosacidentes cardiovasculares, em grande parte conseqüência davida agitada nas grandes cidades; dos transtornos respiratórioscausados pela poluição do ar; dos acidentes que ocorrem nosesportes arriscados, e, de uma infinidade de outros males re-sultantes da admirável ciência, empregada na construção deum mundo para super-homens. Ora, esse mundo — que certa-mente teria sido reprovado pelo bem-intencionado filósofo —já se achava esboçado dentro do próprio método.

É significativo que o cartesianismo tenha frutificadocom o passar do tempo, evidenciando a atração exercida poressas idéias, talvez maior do que na época do próprio autor.Não que a dualidade proposta por Descartes, assim comocertas idéias dela decorrentes, não fossem rejeitadas por al-guns filósofos — como Locke, que sensatamente reconheceucomo origem do conhecimento do homem a experiência, aoinvés do racionalismo das idéias inatas. Mas diante agrandiosidade de um filósofo reconhecido como “pai da fi-losofia moderna” e que tem exercido influência duradoura,

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penso que não devemos rejeitar a hipótese de considerar queo fascínio maior de suas idéias reside justamente no anúnciode uma dualidade que assim se expressa, como uma totalidentificação com a mente: “penso, logo existo”. O poder desedução que subjazia nesse pensamento se embasava no pro-gressivo aumento da identificação com o ser pensante que vi-nha ocorrendo há um certo tempo, até o ponto em que adualidade cartesiana passou a ser aceita pela maioria, comoalgo comum e inquestionável. Caberia à ciência contemporâ-nea alertar-nos sobre a impropriedade dessa colocação, comoveremos logo adiante.

No século de nosso filósofo a medicina encontrava-seainda às escuras — sem a luz da ciência para guiar-lhe ospassos. Além disso, via-se atrelada às concepções filosóficasda época, tal como no exemplo do modelo mecânico para ocorpo, do próprio Descartes. Seria impossível supor as des-cobertas científicas que ocorreriam no campo da neurologia,em fins desse século, na década que foi dedicada ao estudodo cérebro. Hoje, o conhecimento que se tem a respeito dasrelações entre o cérebro e o corpo nos faz perceber o quantoo filósofo se enganou.

Existe um livro de um professor e médico português,Antonio R. Damásio, radicado nos Estados Unidos, intituladoO erro de Descartes,11 cuja análise de algumas partes vemmuito a propósito do tema em questão. Aliás, diga-se de pas-sagem, tão a propósito que a reflexão do médico a respeitodas questões pertinentes ao filósofo acabou servindo de ro-teiro para o restante deste capítulo.

O título do citado livro chamou-me de imediato aatenção porque tanto nesse primeiro capítulo quanto no brevehistórico da filosofia meu livro também mencionava o filósofo.Entretanto, embora sugerisse ligação direta com a filosofia, otrabalho do cientista era na verdade um importantíssimo estu-do em neurobiologia e neuropsicologia, obtido através deobservações clínicas em pacientes vítimas de acidentes e do-enças cerebrais e as perturbadoras modificações de compor-tamento resultantes. A análise acurada do autor estabelecia

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surpreendentes relações entre a razão, as emoções e o senti-mento, tendo como “pano de fundo” a contínua percepçãodos estados do corpo. Se não se ocupou propriamente dafilosofia, no entanto, cuidou indiretamente de uma de suasquestões fundamentais — visto que o livro também pode serentendido como um estudo profundo da interação mente–cor-po. No final do mesmo, encontra-se o que para nós, estudio-sos da questão MC, se afigura o mais importante. Ao salientara necessidade de uma visão integral do homem, o que odualismo cartesiano — refletido na medicina do corpo e damente —, fez com que se perdesse de vista, o autor, além dereiterar o erro de Descartes, ao atribuir ao homem duas na-turezas distintas, coloca sobre os ombros do filósofo parteexpressiva da culpa pelo esquecimento de que somos, em es-sência, um organismo limitado, frágil e mortal.

Os comentários que serão feitos sobre pequenos tre-chos escolhidos nem de longe farão jus ao alcance e a impor-tância das descobertas realizadas pelo médico em questão,aliás, eminente neurologista, reconhecido e premiado pelasua classe. Sobre o campo da neurobiologia, só me resta feli-citar o professor por sua preciosa colaboração, porém, noque diz respeito a Descartes, abordado no último capítulo,gostaria, com a permissão do escritor, de fazer observaçõessobre o que me pareceu ser a parte mais importante do livro.Repleto de análises penetrantes e curiosas descobertas docomeço ao fim, a meu ver é sobretudo no capítulo dedicadoà razão e a Descartes que o autor deixou o melhor de si.Certos trechos, repito, pareceram-me tão oportunos à ques-tão da dualidade, além de importantes à época em que vive-mos, que, embora já estivesse dado por encerrado o primeirocapítulo, achei imprescindível comentá-los.

No final do trecho dedicado a Descartes, o autor nosdiz que: “Versões do erro de Descartes obscurecem as raízes damente humana em um organismo biologicamente complexo,mas, frágil, finito e único...”. Esquecidos desta trágica circuns-tância inerente à própria condição, os homens “sentem-se me-nos impelidos a fazer algo para minimizá-la e podem mostrar

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menos respeito pelo valor da vida”.12 Mais adiante, conclui:“Talvez a coisa mais indispensável que possamos fazer nonosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seja recordar a nóspróprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude esingularidade que nos caracterizam”.

É grande a alegria por encontrarmos certas afinidadesentre os pensamentos de um autor, em quem respeitamos aseriedade do trabalho e admiramos a beleza do estilo, e osnossos próprios, ainda mais quando — mais por ignorânciaque pretensão —, nos julgávamos solitária em meio às nossasidéias. Da mesma forma que o médico, também acredito quena dualidade cartesiana se encontre a compreensão para omaior problema que o mundo enfrenta hoje: a violência e odesrespeito pela vida das pessoas. Entretanto, a concordân-cia com parte de suas idéias não poderia justificar qualquernegligência para com o trabalho do mesmo. Assim, antes deargumentar com o que no texto merece cuidadosa reflexão, épreciso lembrar que o autor chegou a essas conclusões poroutros caminhos que não os desta autora e que, conquanto aessência de algumas idéias se encontre em harmonia com asminhas, elas não estão aqui para as corroborarem.

Tomados esses cuidados e levando-se em consideraçãoa possibilidade de uma leitura equivocada — pois tendemosa distorcer as idéias dos outros com as nossas próprias con-vicções —, na minha interpretação o texto sugere que: se aseparação cartesiana em mente e corpo que ainda prevaleceno mundo contemporâneo esconde a fragilidade e finitudeda existência, então é porque o homem deve haver optadoentre as duas partes que o constituem, dando prioridade auma em detrimento da outra. A identificação com uma daspartes seria a única razão suficientemente forte para levar ohomem a esquecer-se das raízes de sua mente num organis-mo complexo mas limitado, frágil e mortal. Não podemosacreditar que essa indiferença, desrespeito e esquecimentopara com a fragilidade e finitude da existência se devam auma simples influência intelectual. Nenhum filósofo, nenhu-ma teoria ou sistema de idéias, por mais importante ou influente

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que tenha sido, possui força suficiente para desencadear umareação de tal magnitude. Se os homens demonstram isso nãosomente em relação aos organismos de seus semelhantes mascom os seus próprios, visto que tanto a negligência quanto odesrespeito e a violência acabam por atingir a sociedade comoum todo, então é porque algo muito mais forte do que umasimples influência intelectual se acha em jogo. Ora, entendoque apenas a primazia da mente poderia resultar em “menosrespeito pelo valor da vida”, já que os homens, identificadoscom a parte imaterial, estariam, certamente, negando o cará-ter frágil e mortal do “organismo biologicamente complexo”.Entretanto, levantando a hipótese de que os homens que per-petuam o erro de Descartes houvessem, como ele, também seidentificado com a sua parte imaterial, em prejuízo ao corpo,notamos que, para uma maior clareza da citada afirmação,seria necessário que adotássemos a própria dualidadecartesiana rejeitada pela ciência, trocando as palavras “vida”e “organismo biologicamente complexo” pelos termos carneou corpo. Sem essas modificações, parece-me que a mensagemdo médico, embora coerente e lúcida, suscita uma questão ime-diata que, sem resposta, deixa o texto do autor se afigurarmais como uma velada observação que uma clara e grave ad-vertência, como sói esperar de um sério e eminente médico ecientista, preocupado com os problemas atuais, como o au-tor de quem estamos tratando agora. A questão a que merefiro transforma todo o parágrafo citado simplesmente numasó indagação: Por quê? [“versões do erro de Descartes obscu-recem as raízes da mente em um organismo ... frágil, finito eúnico; obscurecem a tragédia implícita no conhecimento des-sa fragilidade, finitude e singularidade ... os seres humanosnão conseguem ver a tragédia inerente à existência consciente... e podem mostrar menos respeito pelo valor da vida”].12 Porquê?

Mas as palavras corpo ou carne, de preferência aos ter-mos “vida” e “organismo biologicamente complexo” escolhi-dos pelo autor, parecem, à primeira vista, dispensáveis e mes-mo inadequadas para interpretar o seu pensamento, uma vez

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que ele sensatamente descarta a dualidade do homem, comojá afirmamos. Sinto que as nossas dificuldades estão apenascomeçando e, assim, embora possa dar a impressão de preten-der transformar uma discreta advertência em uma revelaçãobombástica, o que demonstraria uma atitude oportunista deminha parte, pediria ao leitor um voto de confiança.

Para que o termo carne ou corpo? A argumentação domédico não poderia ter sido construída de forma mais corre-ta do que já está. Também não se trata de uma simples ques-tão de estilo. Mesmo levando-se em conta a formação doautor, em que as afirmações claras, brilhantes e convincentes— próprias de um escritor —, permanecem à sombra da re-serva e do comedimento naturais ao cientista, o problemanão se restringe a uma questão de ênfase: chamar a atençãopara a condição humana, de uma forma nua e crua, lançan-do mão de palavras que causem impacto.

É necessário repetir: o autor, tendo para si o corpo e amente como algo indivisível, não teria por que distinguir, emsuas conclusões, o que desde o início do livro foi tratadocomo único. Afinal, como comprovaram suas próprias inves-tigações clínicas, Descartes estava totalmente enganado quan-to à dualidade mente–corpo e isso seria mais uma boa razãopara não se mostrar incoerente, cometendo o mesmo erro dofilósofo, ao acusá-lo. Por que usaria ele outros vocábulos, seorganismo e vida são justamente termos médicos apropria-dos para expressar o corpo humano em sua constituição eexistência? Tudo isso isenta o texto do autor da possibilidadede incorreção, e, aliás, seria uma pretensão tal julgamento,não existindo razão nem propósito para tal. De uma vez portodas gostaria de deixar claro que, para mim, o escritor emquestão está absolutamente correto em suas colocações. Masse o problema não está no autor, do que se trata?

O que parece uma teimosia da autora se prende, na reali-dade, à complexidade do próprio objeto de estudo: a constitui-ção humana. Senão vejamos. Descartes, com a famosa procla-mação num primeiro momento separa a mente e o corpo comoduas coisas distintas, fazendo do homem um ser dual. Num

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segundo, faz a opção pela mente ou espírito, pois afirma serapenas uma coisa pensante. Reparemos neste detalhe: ele nãodiz algo como “sou um corpo que pensa, logo existo” mas sim“penso, logo existo”. Para mim, isto representa uma identifica-ção apenas com o ser pensante e, conseqüentemente, uma pre-dileção pela imaterialidade do homem, em detrimento à carne.

Extrapolando a dualidade cartesiana para muitos ho-mens (diria mesmo, a maioria), que, na visão do autor de Oerro de Descartes, perpetuam o engano do filósofo, esque-cendo-se da origem biológica frágil e mortal, pensamos quetambém esses fizeram a mesma identificação, rejeitando, aomesmo tempo, o corpo. Identificação aqui, tanto no sentidodo dicionário comum, da língua portuguesa, quanto do psi-canalítico: de reconhecimento da imaterialidade como se fosseo próprio espírito, ou assimilação de atributos, nesse caso daimaterialidade conforme definição deste livro, transforman-do-se no protótipo do super-homem.

Se o filósofo francês e a maioria dos homens não sehouvessem identificado com o ser pensante não haveria ra-zão para as “versões do erro de Descartes” obscurecerem “asraízes da mente humana em um organismo ... frágil, finito eúnico: “nem para obscurecer “a tragédia implícita no conhe-cimento dessa fragilidade, finitude e singularidade”, levandoos homens a não enxergarem a fatalidade da existência. Ape-nas a dualidade não justifica o esquecimento responsável pelodesrespeito para com a vida, uma vez que o filósofo, comovimos, reconhece o corpo como matéria — res extensa —,ainda que de uma forma bastante contraditória, negando-o,primeiramente, em sua realidade material. Ele não afirma,de maneira definitiva, que o corpo não existe, o que se fosse ocaso, primeiro o tiraria da posição dualista, segundo nos facili-taria a tarefa de compreender o fato de os homens não enxer-garem sua própria constituição material frágil e finita, tor-nando-se violentos e desrespeitosos em relação à existência.

Se não efetuarmos as substituições requeridas, de quemodo perceberemos que algo foi esquecido ou negado para queoutro fosse o preferido? A ausência de um termo que se oponha

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claramente a outro — no caso, a carne ou o corpo em oposiçãoà mente —, faz com que não atinemos com a mensagemsubjacente e a mais importante, do livro do médico: a de queo homem se identificou com a parte imaterial, uma vez quenão consegue enxergar a tragédia da fragilidade e finitude davida. Se não se houvesse identificado com o universo pensante,de que outra maneira poderia estar obscurecida a própriacondição frágil e mortal?

“Versões do erro de Descartes obscurecem as raízes damente humana...”.12 A questão torna-se cada vez mais com-plexa quando tomamos a liberdade não apenas de trocar ostermos “organismo” e “vida”, por corpo ou carne, mas tambémespírito ou alma como substituição para a palavra “mente”, jáque o sentido de oposição assim o exige. A troca é necessáriaporque se trata de um texto médico, em que a palavra menteé empregada no sentido experiencial, positivo, não poden-do, assim, conter em si a oposição necessária ao corpo (orga-nismo), como no caso do espírito — algo claramente imaterial.O que seria uma incoerência no texto do autor, um cientista,para nós, que vamos de peito aberto enfrentando contradi-ções, isso é, no momento, desejável. Porém, é importanteque se diga, o autor de O erro de Descartes não renuncioutotalmente à alma ou ao espírito. Confere-lhes, entretanto— num segundo parágrafo — uma qualidade especial como“os níveis mais refinados de funcionamento” da “mente ver-dadeiramente incorporada”. Isso complica a troca que aca-bamos de realizar, ainda mais que, adiante, ele se refere aosdois como “os estados complexos e únicos de um organis-mo”.12 A coragem louvável, em um cientista, de não renegaro espírito nem a alma, infelizmente, coloca-nos diante de umobstáculo: substituindo os termos estaremos contradizendoo autor, pois que a alma e o espírito sempre significaram, emsua essência, o componente imaterial do homem em oposi-ção à matéria de seu corpo. Se, ao contrário, aceitamos essamoderna concepção científica do espírito e da alma comoapenas os “níveis mais refinados de funcionamento”, isto é, ne-gamos qualquer dualidade e em conseqüência a identificação, a

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substituição para o primeiro parágrafo citado deixaria de fa-zer sentido e, assim, a própria advertência do autor sobre oesquecimento das origens da mente num organismo frágil emortal, transformando-se numa indagação sem resposta. Ouseja, voltamos ao início da questão: se uma parte (espírito oualma) não foi a escolhida, em prejuízo da outra, por que oshomens se esqueceram da trágica condição da existência (car-ne)? A dualidade cartesiana, sozinha, sem a idéia de identifi-cação, não justificava o esquecimento e a negligência, o quedizer, então, da unicidade?

A propósito, a idéia de dualidade não foi uma origina-lidade de Descartes. Ela já existia nos textos de Demóstenes,Platão e do que sabemos de Sócrates. O que o filósofo fran-cês parece ter inovado foi a clara e inconfundível opção peloespírito, o que o desabrochar da ciência daquele tempo favo-recia. Mas como o próprio autor do Erro de Descartes nosconta, a medicina, da época de Hipócrates ao Renascimento,mantinha “a abordagem orgânica da mente-no-corpo”,12 pas-sando a uma visão dual após a famosa proclamação. Isso nosleva a pensar que, se não existe alguma forma de oposição naconstituição do homem, alguma coisa, porém, persiste em sedividir e se opor fortemente, tecendo as maiores contradi-ções. Desse modo, nos encontramos na situação, aparente-mente absurda, em que a terminologia médica contribui, inad-vertida e paradoxalmente, para obscurecer não o texto doautor mas a compreensão da própria condição humana.

É preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Palavrassão palavras, mas a ciência lida com fatos, certo? No caso daconstituição humana diria que nem tanto assim. O homem éum ser único enquanto interação mente–cérebro–corpo, dissonão existem dúvidas e nem faz sentido falar em dualidade nosdomínios de um contexto estritamente científico. Porém, oautor do livro em questão adverte-nos sobre o desrespeitopela vida e esse desrespeito pode ser constatado, desde o noti-ciário internacional até a opinião da pessoa mais simples. Avida corre perigo, todos sabemos. Mas quem a ameaça? A vio-lência sempre existiu, embora pareça estar aumentando, nesta

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mudança de século. Seja como for, o que não se pode negar éque tanto ela quanto o acaso nunca contaram com tantos re-cursos para agredir suas vítimas, como hoje em dia. Assim, oque precisamos enxergar é que o que mata a vítima — naverdade — é o revólver; o que faz sucumbir inúmeras pesso-as nos mais variados atentados terroristas são bombas; o quepossibilita o terror e até mesmo a morte daqueles que estão àmercê de assassinos nos seqüestros aéreos, em escolas oumesmo em cativeiros são os aviões e a armas de todo os mo-delos e calibres; o que atropela e tira a vida do pedestre é ocarro; o que decide o destino de quem tem o azar de se en-contrar no caminho de seu trajeto são as balas perdidas. Fi-nalmente, o que está atrás duma infinidade de agressões àexistência são máquinas e toda espécie de invenções propor-cionadas pelos avanços da ciência e sua cúmplice, a tecnologia.Na denúncia do esquecimento das origens “da mente huma-na em um organismo biologicamente complexo, mas frágil,finito e único” 12 não há como poupá-las, acusando apenas afilosofia. A vida corre perigo, sim, e perante a iminência datragédia seria necessário que todos assumíssemos nossa parti-cipação no crime.

Ainda que unamos o que foi dividido por Descartes —tendo a nosso favor a realidade incontestável da íntimainteração mente–corpo, que faz do ser humano um ser único—, algo, contudo, permanece estranha e profundamente dualno homem, ensejando, por isso, as maiores dificuldades econfusões. Certamente não será o simples acréscimo de pala-vras, no caso, a carne e o espírito, que esclarecerá para nósesta singular condição. Porém, o emprego dos termos vida,existência, organismo e outros que não a carne ou o corpopropicia um eufemismo conveniente à negação da brutal rea-lidade da matéria e da terrível lembrança de fragilidade e mor-te. O eufemismo não é tanto do médico que se expressa corre-tamente dentro de sua ciência e, que, como seria de esperar,está consciente do conflito. Mas de todos nós que, ocupadospela construção de um mundo favorável a super-homens, va-mos perdendo o respeito pela vida e sendo omissos quanto

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àquilo que poderíamos fazer para minorar os sofrimentos da-queles que não podem fugir da mísera condição da carne.

Diante disso tudo, o máximo que o emprego da pala-vra carne poderia fazer seria destacar a importância e a com-plexidade do problema levantado pelo autor de O erro deDescartes e, com um pouco mais de sorte, auxiliá-lo naconscientização dessa atitude de negação frente à sinistra rea-lidade. Atitude de negação ou esquecimento? O último ter-mo foi deduzido do próprio livro em questão, ao final docapítulo homônimo. Após conceber a alma e o espírito como“os estados complexos e únicos de um organismo”, o médicosugere-nos que “talvez a coisa mais indispensável que possa-mos fazer no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, sejarecordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragili-dade, finitude e singularidade que nos caracterizam”. E, logoadiante — a respeito do espírito que se encontra em um pe-destal —, conclui da necessidade de “reconhecer sua origemhumilde e sua vulnerabilidade...”.13 Ora, a necessidade derecordar e reconhecer, remete-nos à idéia de esquecimento.De fato, quem precisa ser recordado de algo é aquele que seesqueceu. Ninguém necessita recordar se nada foi despreza-do ou perdido em sua lembrança. Além disso, reconhecer, noNovo Dicionário Aurélio significa: “1) Conhecer de novo(quem se tinha conhecido em outro tempo)... 2) Admitir comocerto... 3) ... 4) Certificar-se de; constatar, verificar... 5) Con-fessar, aceitar... 6) ... 11) 12) Admitir como bom, verdadeiroou legítimo; conhecer...”.5 Se a essas provas claras de esque-cimento, não aceitação e mesmo negação da carne juntarmosa troca final das expressões utilizadas pelo autor, ou seja, nolugar de “reconhecer sua origem humilde e sua vulnera-bilidade” colocarmos “reconhecer sua carne ou corpo”, pensoque as evidências a respeito desse ponto dispensam maiorescomentários.

Mas, para compreender um pouco melhor tão in-trincada questão será necessário que continuemos recorren-do ao auxílio do escritor, pedindo-lhe, novamente, licença paracitá-lo. Como já foi dito, o autor pode comprovar em seu

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estudo com pacientes neurológicos o erro de Descartes, aoseparar o corpo da mente como coisas distintas, fazendo dohomem um ser dual. É lógico que concordo quanto ao fatoda unidade do homem, disso a ciência não deixou nenhumadúvida. Mas imagino haver deixado claro que aceito somentea unidade relativa à interação mente–corpo (cérebro–corpo),isto é, a indivisibilidade real de cada ser humano, como umorganismo complexo. Quanto à apreensão dessa unidade pelopróprio homem, tomada dentro dele mesmo, e a manifesta-ção dela no mundo exterior, não podemos obter nenhumacerteza, ao contrário, as evidências denunciam um dualismodisfarçado com dificuldade por aqueles que, temerosos deserem qualificados como ultrapassados, dele tentam de to-dos os modos se distanciar. Não acredito que seja o caso doautor de O erro de Descartes. Como cientista, é normal que,por princípio, rejeite a idéia de dualismo. Afinal, o equívocode Descartes eclipsou, daqueles que constataram em seus tra-balhos tão flagrante erro, qualquer insight que possibilitasseequacionar o problema de outra forma. O filósofo, em suaexuberante inteligência, “contaminou” de tal forma a ques-tão da dualidade que esta já chegou aos nossos dias viciada.Não se consegue imaginar o problema em outros moldes.Imaginá-lo como uma tendência natural do homem e nãosomente como a marca de Descartes. Tanto é assim que opróprio autor do livro em questão, a exemplo de muitos ou-tros, também atribui ao filósofo o perpetuamento da incor-reção que se vê ainda hoje. Diz o escritor, lá pelo meio docitado último capítulo: “Para muitos, as idéias de Descartessão consideradas evidentes em si mesmas, sem necessitar denenhuma reavaliação”.14 É natural que, mesmo descontandoo atraso da medicina da época, a primeira reação seja impu-tar ao filósofo o ônus por um erro que foi expresso e procla-mado por ele, com todas as letras. Aliás, um erro admirável,pois que venceu o tempo, chegando até nossos dias. Masdevido exatamente à longevidade e, sobretudo, à unanimi-dade para com esse engano, parece-me justificável empreen-dermos uma investigação da história, correlacionando a

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dualidade cartesiana com as tendências e características doséculo em que o filósofo viveu, a fim de verificarmos até queponto ele falou por si ou foi o porta-voz de seu tempo, comoafirmei lá atrás. Talvez sejamos recompensados pelo nossotrabalho ao descobrir que a época em que Descartes viveu foidecisiva para a identificação com o ser pensante, identifica-ção essa que parece ser uma disposição natural do homem eque faz com que a maioria aceite a dualidade como um fato.

De antemão, quero reafirmar que não acredito ser de-ver da ciência médica se dedicar a tal atividade, nem sua obri-gação enxergar — em plano geral — o itinerário de um erroque atravessou os séculos, e, que, portanto, requer para a suacompreensão um esforço conjunto. Como nos dá a entendero autor de O erro de Descartes, embora a medicina não devacontinuar tratando o homem como um ser dual, como vemfazendo até hoje, não podemos esperar que ela, sozinha, sejacapaz de restabelecer a saúde de uma “cultura doente”. Naverdade, seria pedir demais àqueles que, sobrecarregados pelagrande quantidade de descobertas feitas na década do cére-bro, ainda se preocupam com a interpretação correta dos no-vos dados. A única saída para o impasse a que a complexidadedo século XX nos levou parece ser a reunião de esforços embusca de uma compreensão do homem por inteiro, assimcomo do mundo que ele construiu. É com essa idéia de coo-peração que alimento a esperança de estar contribuindo, dealguma forma, para esse humano propósito. Desse modo,voltemos a nossa atenção à época do grande filósofo, inician-do o segundo capítulo do livro.

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OS ATRIBUTOS DO SER PENSANTE, AS INOVAÇÕES

TÉCNICAS E A FAMOSA PROCLAMAÇÃO DE DESCARTES

Ditosa idade e séculos ditosos aqueles queos antigos chamavam de Dourados, não porque neleso ouro, que tanto se estima nesta nossa Idade doFerro, se alcançasse sem fadiga alguma, mas por-que os que nela viviam ignoravam as palavras “teu”e “meu”. Naquela santa idade, eram comuns todasas coisas; ninguém precisava, para conseguir o or-dinário sustento, ter outro trabalho que não o dealçar a mão e colhê-lo nos robustos azinheiros queliberalmente os convidavam, com seu doce e sazo-nado fruto.

Dom Quixote, vol. 1, cap. XI, p.94.

Quando somos obrigados a andar a pé numa rua ouavenida de uma grande cidade, recordando-nos do aconche-go de um moderno automóvel, das delícias de se deixar levara grandes velocidades, parece-nos uma insensatez questionaras comodidades que a ciência e a tecnologia proporcionaramao homem. Mas excetuando da medicina tudo o que servepara preservar a saúde, curar males e prolongar, dignamen-te, a existência, poderíamos, num raciocínio semelhante aoque Freud expressou uma vez, pensar que grande parte doprogresso científico serve para solucionar problemas que namaioria das vezes ele próprio criou. Mas a despeito de tudo ohomem não hesita, um segundo, em trocar a incômoda e obso-leta forma de ser apenas homem pelos poderes super-humanos

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que ela, a ciência, promete e cumpre. Sentada em frente aocomputador, a própria autora deste livro não se consideraexceção. Muito pelo contrário. Conquanto lamente os ex-cessos do progresso, do que lhe parece uma desvantagem —a necessidade dos pesados veículos e o pesadelo do trânsito;o tamanho desproporcional das megalópoles e tudo o maisque desrespeita, agride e destrói a natureza humana —, elatambém parece haver sucumbido aos embriagantessuperpoderes da velocidade que essas mesmas máquinas co-locam-nos à disposição; da instantaneidade, leveza, ubiqüida-de, onisciência, onividência e onipotência que os meios decomunicação e os recursos da informática oferecem, além dasestimulantes “viagens”, que a realidade virtual pressagia, paraum futuro próximo. É justamente a grande atração que elasente pelos avanços da ciência e da tecnologia que a leva,primeiro, a vestir a carapuça que lhe é devida e, somentedepois, convidar o leitor para um mergulho no passado, embusca de pistas que iluminem essa obscura fascinação do ho-mem pelo mundo do super-homem.

Descartes nasceu na França, no final do século XVI, emorreu na Suécia em 1650. Viajou muito, tendo vivido naHolanda em seus quase últimos 20 anos. Embora filósofo epor natureza introspectivo, não poderia ser imune às influên-cias de sua época, e essas foram marcantes. A Europa, embo-ra ainda um pouco distante da revolução industrial, já se so-bressaía através da navegação de alto-mar, a artilharia e aimprensa que não surgiram exatamente no século de Descar-tes, mas que eram, na época, o que havia de mais moderno.15

Se observamos essas inovações técnicas de perto, tendo emmira a evolução da identificação do homem para com a men-te, podemos detectar nelas um anseio crescente por uma iden-tificação cada vez maior.

Neste exato instante, solicitaria a paciência de quem— leitor do livro do médico anteriormente citado, ou apenasdeste trabalho —, continuasse achando um contra-senso aobstinação da autora em asseverar a identificação do homemcom o seu pensamento, visto que, de acordo com os estudos

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neurológicos mais avançados e já referidos, reiteradamente,não faz sentido falar da mente como se fosse algo separadodo corpo. Ainda mais quando, há pouco, afirmei concordarcom António Damásio sobre o engano de Descartes. Dianteda contradição só me resta lembrar que, primeiro, a minhaconcordância foi parcial e, segundo, conseqüentemente,acredito haver lançado, logo atrás, a suspeita de que existealguma dualidade no homem, ainda que a interação mente–corpo a desminta. Se isso não for suficiente para justificaruma análise da época do filósofo, conto com a boa vontadedo leitor em esperar que a argumentação encontre razõesmelhores para convencê-lo. Confesso que a perseverança éuma qualidade fundamental para quem se arrisca a compre-ender o emaranhado problema mente–corpo e, assim, nãodevemos perder as esperanças se não conseguirmos desataros nós logo nas primeiras linhas. Feita a recomendação, vol-temos a analisar a época do filósofo, sob a hipótese da iden-tificação com o ser pensante.

A NAVEGAÇÃO, A VELOCIDADE E A SENSAÇÃO

DE LIBERDADE E ONIPOTÊNCIA

Independentemente das grandes descobertas, a nave-gação significava o atendimento à necessidade premente delocomoção irrestrita, que se fazia sobre as águas já que porterra era impossível em virtude da inexistência de estradas eveículos apropriados para tal fim. Porém, qualquer meio detransporte utilizado em terra, ar ou sobre as águas satisfaz aum impulso básico do ser pensante. Concomitantemente àutilidade prática, o espírito anseia exprimir-se através da ve-locidade do mesmo modo como deseja ardentemente ainstantaneidade, a ubiqüidade, a onisciência e a onipotência,ou seja, todos aqueles atributos já denominados como poten-cial da mente. No caso que analisamos agora, o da navega-ção e, portanto, no que diz respeito ao movimento, diria quequanto mais rápido for o transporte maior a sensação de liber-dade. Porém é preciso notar que essa liberdade representa não

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apenas o estado ou condição de um homem livre — não im-pedido de mover o seu corpo como lhe aprouver —, mas aprópria libertação do peso e da lentidão da carne, de tal formaque, maior a velocidade, maior a ilusão de ser puro espírito.Não há nisso nada de extraordinário, muito pelo contrário,poderíamos até definir a vida humana como uma manifesta-ção contínua do espírito.

Voltando à navegação antiga, o que devemos notar sobo desejo das aventuras marítimas é sobretudo a ânsia crescentepela expansão e velocidade, soprando as velas dos navios que,afinal, nem velozes eram, mas em compensação venciam asdistâncias e as barreiras, transportando os homens e seus so-nhos de realizar façanhas dignas de um verdadeiro herói.

No caso da Holanda, onde Descartes passou a maiorparte de seu amadurecimento intelectual, não se tratava deuma aventura, mas da necessidade do trânsito sobre as águas,como por exemplo a cidade de Amsterdã, onde ele passavatemporadas. Um viajante da época relata a admiração pelaspopulosas cidades holandesas e por suas estradas tão cheiasde viajantes quanto os seus canais “cobertos ... de inúmerosbarcos”.16 Com um pouco de imaginação é possível ver ofilósofo em uma dessas embarcações, singrando os canais ho-landeses com a liberdade, determinação e energia semelhan-tes ao país que escolheu para meditar e erigir seu Método, asmesmas características que sobressaem do retrato mais co-nhecido que dele nos ficou, assim como do perfil que pode-mos lhe traçar, com base nos dados biográficos disponíveis.

Muitas coisas sabemos de Descartes, através da vastacorrespondência sua com personalidades da época. Do bomnúmero de detalhes sobre a infância e juventude, que ele le-gou à posteridade, interessa-nos saber que a sua poderosainteligência possuía um grande talento para abstrair da reali-dade física tudo o que pudesse ser transformado em relaçõesmatemáticas. Nesse aspecto ele concordava com Galileu, que“trata de examinar as matérias físicas por razões matemáti-cas”, no que ele completava, “não existe outro meio de en-contrar a verdade”.17

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Até aqui não trouxemos nenhuma novidade para a nos-sa argumentação. Afinal, a capacidade de abstração só con-firma a identificação do filósofo com o ser pensante, o quefoi declarado publicamente na famosa afirmação que ele fez,não restando disso nenhuma dúvida. Seria necessário um ar-gumento mais consistente, digamos, algo que tirado da pró-pria personalidade do filósofo e somado à efervescência ma-rítima dos canais holandeses nos dê a certeza de estar nave-gando pelos canais apropriados à hipótese principal destetrabalho. Nunca será demais recordarmos que ela é a bússolaapontando o caminho a seguir: a proclamação cartesiana comoa expressão da velocidade, onipotência e ainda da individuali-dade e diversidade que invadiam o espírito naquele exatomomento da história.

É difícil mas não impossível relacionar a inspiração deuma determinada concepção do mundo com alguma experiên-cia física, como no caso da navegação, em barcos que sin-gram os canais de buliçosas e prósperas cidades. Enquanto aembarcação transporta o homem e seus devaneios, a vida sedesenrola às suas margens, como num filme. O chão em quepisa, as dificuldades cotidianas da sobrevivência, tudo se eva-pora na brisa marítima que o filósofo inspira. “Suponho, por-tanto, que todas as coisas que vejo são falsas; o que poderá,pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisaa não ser que nada há no mundo de certo”.18 As viagens fa-vorecem a imaginação e as meditações, porque estando opassageiro, na maior parte das vezes imóvel e sem nada parafazer, a não ser observar as águas ou as margens, da almavêm à tona aquelas coisas propícias ao ritmo do movimentodos barcos, ao sabor das ondas. Mesmo à pouca velocidade,não há como negar que o movimento, qualquer que seja, écapaz de inflamar e embalar nossos espíritos. “Eu não souessa reunião de membros que se chama o corpo humano”.19

Dentro do barco, o vento sopra no rosto e as imagens pas-sam depressa. No gozo da saúde e força física plenas, deixar-se conduzir por qualquer veículo — mesmo um barco —,deslocando-se de um lugar para outro sem que seja pelos

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próprios esforços, dá a falsa sensação de que nos transporta-mos apenas como ser pensante e isso contribui para fazercom que a realidade do corpo pareça uma ilusão. Tambémnão podemos nos furtar ao pensamento de que, convivendocom o espírito holandês, espírito da liberdade e do capitalis-mo, o filósofo se via reforçado em sua disposição natural.“Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovidode mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quais-quer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essascoisas”.20 Quantas dessas viagens, propiciando o deslocamen-to sobre as águas, nos canais holandeses, não devem ter con-tribuído para o arrebatamento de nosso filósofo!

Navegar é preciso, viver não é preciso — já dizia o sábiolema da Liga Hanseática, aproveitado na letra da maravilhosamelodia de Caetano. Sim, se navegar representa o movimentoincessante da própria consciência, oscilante entre a matéria eo espírito, a matéria e o espírito... Desmaterializado com êxi-to, o filósofo medita : “Eu penso, logo existo”.

AS ARMAS DE FOGO E OS ATRIBUTOS DA

INSTANTANEIDADE E DA ONIPOTÊNCIA

Como estabelecer ligação entre a violência — que arealidade das armas de fogo evoca —, e o espírito retilíneo egeneroso de um homem como Descartes? Talvez a questãonão esteja sendo adequadamente colocada, visto que nem sem-pre a atração que sentimos pelos inventos que nos possibili-tam vivenciar atributos do ser pensante tem a ver com o ob-jetivo para o qual foram criados, assim como o resultado desua utilização. Desse modo é que se torna possível a contra-dição entre a sedução pelas armas de logo utilizadas comoesporte — veículos adequados que são para a efetivação da-quele potencial do espírito percebido como precisão,instantaneidade e sobretudo onipotência —, e a rejeição aoobjetivo último para o qual elas foram projetadas, ou seja,como objeto de destruição do homem.

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Isso explica a contradição havida entre algumas inven-ções e seus consternados inventores. Dos exemplos que pode-ria apontar surgem em minha lembrança os mais significati-vos: o de Alfred Bernhard Nobel e o de Alberto Santos Dumont.Do primeiro, é fácil deduzirmos a magnanimidade do espíritopela generosidade da atitude tomada para compensar o mauuso da dinamite e outras descobertas suas para fins bélicos.Adquirida, em parte, pelo emprego de suas patentes, e tam-bém pela exploração de poços de petróleo, sua grande fortu-na foi transformada em um fundo que tem como objetivopremiar aqueles que, de alguma forma, contribuíram para obem da humanidade.21 Cada Prêmio Nobel servirá, para sem-pre, como um lembrete da contradição que existe no âmagoda natureza humana, assim como também do grau de nobre-za que o espírito pode alcançar ao tentar solucioná-la.

Um exemplo semelhante mas trágico encontramos nosegundo inventor. A depressão e o suicídio decorrentes douso do avião como arma de guerra representam um argu-mento incontestável de que foi ele, Santos Dumont, o inven-tor da primeira máquina que se ergueu acima da terra pelospróprios recursos, a prova final de que somente no criadorde um invento desviado em sua finalidade útil poderia a afli-ção chegar a tais extremos.

Ainda que não tenha sido Descartes o inventor das ar-mas de fogo, em seus textos e biografia não encontramosnenhuma oposição direta a respeito de seu uso, o que, soma-do a detalhes significativos de sua vida como o caráter enér-gico e a coragem, presumem supor nele uma certa simpatiapelas mesmas, ou ao menos a idéia de que a sua imagemdestrutiva não devia preocupá-lo de maneira incomodativa.Uma de suas biografias22 nos relata que ingressou no exércitopor conta própria, sem nenhuma coação para fazê-lo, e queseu gosto pelos exercícios fizeram-no praticar a esgrima pormuito tempo. Em “Os grandes males, desgraças e misérias daguerra”, Descartes fala da guerra de modo trivial, talvez pornão haver tido ainda uma experiência em batalha — na opi-nião de sua biógrafa e maior especialista.23 Mas no “balé para

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o nascimento da paz”, em que fala novamente da guerra —agora, após a participação em combates —, Descartes conti-nua aparentemente insensível ao verdadeiro sentido trágico,visto que das pelejas traz à lembrança exemplos insignifican-tes, como o de “uma couraça deformada por uma bala decanhão, sem que fosse morto aquele que a usava”, e a experiên-cia que assistiu de um soldado francês que retorna de uma lutaacreditando-se ferido; ao tirar-lhes as armas descobrem que acausadora da aflição era apenas “uma fivela ou correia”.24

Muito expressivos são esses exemplos. Neles encontra-mos, ao invés de fatos que comprovassem o horror pela guerracomo a arena onde o conflito entre o pensamento e a matériaatingem o ponto mais doloroso, provas ao contrário, desmen-tindo a desesperadora realidade da carne, porque a couraça foideformada mas o homem que a usava não morreu e a causa daaflição do soldado não passava de uma simples fivela ou cor-reia! Tudo isso é coerente com a negação suprema e definitivado corpo : “Depois, examinando com atenção o que eu era, evendo que podia supor que não tinha corpo algum...”.25

A nobreza da alma do filósofo, demonstrada no con-junto de sua obra, advém do espírito retilíneo que ergue oMétodo sobre o alicerce das virtudes. Dignifica aqueles tra-ços de caráter que ele, certamente, tinha em comum com amaioria de seus contemporâneos e de que a aguda inteligên-cia extraiu-lhe a essência, transformando-o, justamente, norepresentante máximo da identificação com o ser pensante.Aliás, imagino que se fosse possível Descartes se transforma-ria em um ser assim. O perfil que sua maior biógrafa lhe fazda juventude, apoiada num texto há pouco descoberto, con-firma a tendência que foi se acentuando com o tempo. Dei-xemos que a autora nos fale com as suas próprias palavras:

Se o jovem René tinha uma excepcional maturidade pararesolver certos problemas matemáticos ou apresentar questõescríticas com relação às suas leituras, convém igualmente reco-nhecer a exaltação, não sem confusão, de um jovem que duran-te muito tempo continuou próximo da infância, talvez em vir-tude dos cuidados de que fora rodeado. Por isso esse texto, tão

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longamente ignorado e ainda pouco conhecido, clareia com novaluz o ponto de partida daquele que se agita e fervilha, longe deseguir um caminho rígido, como são imaginados (erroneamen-te) os “cartesianos”. Mas já se afirma o amor às ciências, assimcomo à liberdade, ainda que esta pareça submeter-se aos desíg-nios da família, cuja “sujeição” ele devia experimentar então.26

A descrição não poderia ser mais coerente com a ori-gem de uma identificação tão profunda com o ser pensante,como foi a de Descartes. Realmente, nada mais próximo da-quele que trilharia o caminho que levaria a se considerar “ape-nas uma coisa pensante” do que o entusiasmo, a agitação, oamor à liberdade e à ciência. Não por mera coincidência,esse também o perfil dos tempos atuais: “uma excepcionalmaturidade” para a ciência, ao lado de uma “exaltação, nãosem confusão”, de uma sociedade que perpetua a adolescên-cia, adolescência essa diagnosticada corretamente pelo médi-co e escritor Moacyr Scliar.27

Um sinal de impulsividade também pode ser encontra-do na segunda máxima, da terceira parte do Discurso do Mé-todo. Embora um tanto cuidadosa, a decisão de “ser o maisfirme e o mais resoluto possível em minhas ações ... sempreque eu me tivesse decidido a tanto”,28 supõe um certo graude atrevimento indispensável àquele que na quarta parte pro-clamará a supremacia do espírito, negando a carne. Ora, oespírito liberto — tal como imaginamos o desencarnado ou,melhor ainda, o zombeteiro —, tende, mesmo, a ser audaz:tanto é capaz de trespassar os obstáculos da realidade físicaquanto, cheio daquela energia inesgotável, semelhante aofervor da juventude, pode cometer toda espécie de travessu-ra, possível apenas aos que não carregam o peso da matéria.Analisar Descartes é o mesmo que observar o nascimentodesse espírito que reina no mundo de hoje. Se com o filósofoele ainda se revestia de uma certa gravidade, no propósito dese utilizar a ciência com o intuito da utilidade e diversão sau-dáveis, em nossos dias, em que pese a seriedade e utilidadeda ciência como um todo, a imaginação sem limites tem mui-tas vezes patrocinado inutilidades científicas, uma futilidade

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que apenas serve para aprofundar o fosso entre o corpo e aalma. Ora, a valorização excessiva da irreflexão, exaltação efalta total de comedimento, característicos de nosso mundo“adolescente”, são condições necessárias para o mundo dosuper-homem, mundo que, dependendo da perspectiva, ohomem já habita ou, então, dele se encontra a caminho.

A enérgica e apaixonada disposição do espírito, neces-sária àquele que se identificará totalmente com o ser pensante,emerge de sonhos e alguns incidentes, na vida do jovem Des-cartes. No primeiro caso, um exemplo de sua disposição, re-latado por ele próprio, sobre a noite que antecedeu um so-nho extraordinário e significativo em sua vida: “quando euestava cheio de entusiasmo e ocupado em descobrir os fun-damentos da ciência admirável...”;29 ou de exaltação, comoo exemplo extremo de coragem nos contado pela biógrafa,daquele que tem por objetivo “amar a vida sem temer a mor-te” e que alcança a bravura em seu destemor, quando de umataque sofrido por marinheiros ladrões: “O senhor Descar-tes ... levantou-se de repente ... puxou a espada com umaaltivez imprevista, falou-lhes na língua deles com um tomque os impressionou”.30 Todos esses detalhes são compatí-veis com a atração pela matemática, o gosto adolescente pelaleitura de epopéias e romances de cavalaria tais como Amadisde Gaula, a curiosidade pelos rosa-cruzes, o desejo de viajar,o devaneio juvenil sobre “como elevar-se no ar” 31 e a “loucaambição”, demonstrada por essa época. Também se harmo-niza perfeitamente com o interesse por autômatos e outrastécnicas destinadas a produzir miragens; e, por fim, permite-nos compreender o motivo da preferência em viver naHolanda da liberdade de espírito e do progresso material.Nenhuma dessas características empana a maravilhosa obra-prima da razão, que é o resultado do trabalho de Descartes,nem diminui o valor do filósofo, a não ser que consideremoso homem moderno indigno apenas porque ainda não logrouconciliar as duas naturezas contraditórias das quais é o fruto.

Se tivesse nascido hoje talvez Descartes se envolvesse coma mais avançada ciência e tecnologia, ainda que sua biógrafa

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nos advirta que ele “não dava às técnicas mais apreço do queem sua juventude”.32 É preciso não esquecer que o atraso daciência de seu tempo não oferecia ao espírito oportunidadespor onde se esgotar. A linguagem era ainda o único veículo,embora já se delineassem, nessa época, as condições necessáriaspara a primeira revolução — a industrial. Mas seria preciso,antes de qualquer coisa, negar o corpo e, assim, a famosa afir-mação “Eu penso, logo existo” foi somente o início de umanegação sistemática, que chegaria até nossos dias alimentan-do-se de provas da inexistência da carne, através de corridasde carro e “rachas”, esportes de alto risco, ioiôs humanos e,principalmente, das sofisticadas armas de fogo.

Armas que nos confundem quanto à crença na evolu-ção do homem, que fazem, muito a contragosto, esta autoraser obrigada a traçar um paralelo entre elas e um homemnobre, da estatura de nosso filósofo. Não diretamente, postoque “o amor às armas”,33 mencionado pela sua maior biógra-fa, não indica, necessariamente, que Descartes fosse uma pes-soa belicista. A relação é de forma indireta, como represen-tante de uma época em que o uso da pólvora não pode serdissociado da agressiva e certeira pontaria do espírito, emseu afã de atingir, com o sacrifício da própria carne, a plenaidentificação do homem com o ser pensante.

Enquanto Erasmo e Montaigne desconfiavam dosintrincados produtos do ser pensante, pouco se identificandocom o universo mental, Descartes não titubeia em fazê-lo porcompleto. Os mais de 120 anos que separam O Elogio da Lou-cura da publicação do Discurso do Método — incluindo, nessemeio tempo, a publicação dos Ensaios — devem conter altera-ções significativas que expliquem uma mudança quase que radi-cal na maneira de encarar o homem e o mundo e que resultou,finalmente, no risco permanente do divórcio entre a mente e ocorpo. Essa transformação foi o produto da identificação pro-gressiva e em certos momentos da história, profunda, que ohomem veio sofrendo, primeiro, descarnado pela dúvida siste-mática de Descartes, e, agora, gradativamente desmaterializadopela ciência e tecnologia. Realmente, o mundo de hoje caminha

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para uma espécie de virtualidade, tal a abertura crescente doespírito às próprias ilusões. Ora, “quanto mais a alma é vazia enada tem como contrapeso, tanto mais ela cede facilmente àcarga das primeiras impressões”,34 essa foi outra observação quenos legou a sabedoria de Montaigne.

Embora no século de Montaigne as cidades já se en-contrassem vigoradas pelo comércio, não podemos esqueceras diferenças importantes entre uma época e outra. A primeira— conta-nos o excelente historiador Braudel — é que no sécu-lo XVII “há um dilúvio, uma inundação de lojas”;35 a segunda,diz respeito ao aumento significativo do uso das armas de fogo,paralelamente ao abandono das pesadas armaduras. Em rela-ção ao incremento do mercado, nos tempos de Descartes, nãotenho dúvidas de que a febre da atividade comercial contri-buiu, e permanece contribuindo, para esvaziar do espírito aconcretude da própria existência a que se acha submetido. Amoeda não somente paga mas principalmente “apaga” o es-forço físico empregado na produção da mercadoria, por par-te de quem a possui em abundância, colaborando, em conse-qüência, para a alienação da carne. Sobre isto veremos maisquando tratarmos, no capítulo 5, de outras espécies de cor-pos — o corpo idealizado e o que poderíamos designar, pro-visoriamente, como o corpo social.

O desuso das armaduras deveu-se à impossibilidade dese fabricar uma cota de malha adequada para defender o cor-po do poder destrutivo das armas de fogo. As tentativas nes-se sentido falharam, por causa do peso insuportável da gran-de quantidade de ferro necessária para a maior proteção. Nãoque as armaduras já não fossem bastante pesadas. Ao contrá-rio. Montaigne, ao discorrer sobre elas, deixa-nos cientes dasdificuldades enfrentadas por aqueles “homens de ferro”. Massão justamente as dificuldades e o peso das armaduras, da épo-ca, que nos levam a imaginar o quanto de consciência da carneo filósofo da torre devia possuir, para que, malgrado a suaparticipação no exército e em combates; em que pese o en-tusiasmo pelas atividades em companhia de soldados e a leve-za com que nos conduz em seus textos, ele não se deixasse

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enganar pelos ardis empregados pelos pensamentos e palavrasdispostos a nos fazer esquecer do pesado fardo da matéria.

No século de Descartes — durante a Guerra dos TrintaAnos —, o uso da armadura declina. O que resta dela são o“elmo, placas no peito e nas costas, protetores de coxa”.36

Entravam em cena os homens mais aliviados de peso, e, so-bretudo, os primeiros canhões móveis e as armas de fogoportáteis, um pouco mais confortáveis e precisas. “Provessea Deus que este infeliz instrumento nunca tivesse sido inven-tado!”,37 já se lamentava alguém no longínquo século XVI,diante do poder destrutivo dessas armas.

Ainda que tranqüilo e afastado daqueles que poderiamlhe perturbar a concepção do Método, o retiro de Descartesnão poderia se assemelhar ao de seu conterrâneo que, doalto da torre de um castelo observava, da janela, a segundametade do século XVI. Embora o recolhimento de Montaignese fizesse no campo, ele redigia os Ensaios em meio às atroci-dades provocadas pelas guerras religiosas da França. Ora, omedo provocado pelo abuso que os soldados cometiam con-tra os habitantes das aldeias — medo suficiente para deixar ofilósofo, inúmeras vezes, na expectativa sombria de tambémser atingido —, deve ter resultado no aumento da consciên-cia da fragilidade do corpo frente às veleidades do espírito,assim como, também, no arrefecimento do entusiasmo pelavida militar, tendência que parecia resistir à vocaçãohumanista do grande pensador. O contrário parece haverocorrido a Descartes, que em meio à Guerra dos Trinta Anosgozava de um retiro tranqüilo nos Países Baixos, mas que, deforma diferente da vida no campo, como sucedera aMontaigne, convivia com o buliçoso espírito da liberdade depensamento e do comércio, na próspera e agitada Holanda.Nesse cenário animado, nem a filosofia mais racional teriacomo proteger o filósofo dos efeitos estimulantes de umarealidade que se afastava da carne, cada vez mais. Aliás, prin-cipalmente a filosofia racional.

Desde o início do século XVII o espírito já tem pressa,atolado e reprimido pela falta de veículos adequados e péssimas

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condições das estradas. Mas existem as compensações. Omesmo espírito que havia pegado carona em cavalos, bigas ecarruagens; através das terríveis máquinas de guerra do tem-po dos gregos, da catapulta e balista romana; agora podiacontar com a difusão das armas de fogo, com “uma fonte deenergia milhares de vezes superior à sua força muscular”.38

Tais são as diferenças entre os dois séculos. Entretanto,isso ainda não explica a relação direta entre as armas de fogoe a identificação com o ser pensante. Assim, ocupemo-nos,por um momento, da pólvora. Ainda que fornecedora damelhor munição para a nossa hipótese, ela difere da poéticaevocação do mar. Enquanto a última conduzia o raciocínio,docemente, no balanço cadenciado das águas, dela não deve-mos esperar mais que argumentos secos, lúgubres e precisos,como tiros dados à queima-roupa.

A invenção das armas de fogo representa uma das maioresconquistas da identificação com o ser pensante. O ato de mirar avítima, apontar a arma em sua direção e atirar significam, emessência, atingir o inimigo ou adversário com a rapidez, a preci-são e o “poder” dos pensamentos de morte, completando, admi-ravelmente, a ação de um olhar “fulminante”. Isso reproduz amanifestação do potencial da mente, em seus atributos deinstantaneidade e, em especial, de onipotência. O atendimento aesses impulsos causa uma impressão tão forte que, mesmo levan-do-se em conta os problemas técnicos da época — as dificuldadesno manejo e carregamento das armas, que não permitiam a alie-nação total da pessoa em relação ao seu corpo e, em conseqüên-cia, do corpo do outro —, a utilização de explosivos representa oprimeiro e decisivo passo rumo ao caminho do super-homem.Embora a invenção da pólvora date de época mais distante, nainvenção e aperfeiçoamento das armas portáteis deve residir aexplicação para a mudança radical na maneira de pensar, ocorri-da nos 120 anos que separam Erasmo e Descartes, como foi ob-servado linhas atrás. Para a compreensão desse ponto, é necessá-rio que analisemos mais detalhadamente como isto é possível.

Observando uma pessoa que recebeu um tiro, a pri-meira impressão sugere que ela foi atingida por algo imaterial.

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Percebe-se o sangue e o estrago resultantes mas não se vê, deimediato, o projétil que os causou. Além disso, a pessoa tombacomo que aniquilada por uma força invisível. Isso coadunamuito bem com a imagem e a convicção íntima de que os pen-samentos destrutivos detêm o poder mágico de — fixando-sena vítima — fulminá-la. Nos domínios do universo pensantetudo se passa de uma forma irreal, como num sonho. Umasituação absurda e uma ocorrência abstrata, o contrário damaterialidade flagrante de um ferimento provocado, atravésdo uso da força física, por uma lança, flecha ou espada. Ex-cetuando-se a lança, as demais armas brancas, juntamente comfacas e facões, sempre foram usadas nas refregas corpo a cor-po. Com elas, os combatentes têm a oportunidade de se recor-dar da carne, da maneira mais dura e cruel.

Uma pessoa atingida por uma bala infunde na cena umcerto mistério. A seqüência rápida das imagens em que elarecebe o tiro e instantaneamente cai, se presta, de forma ad-mirável, à magia dos filmes. Tanto é assim que, hoje, é difícilassistirmos a uma fita em que não se abuse dos efeitos retira-dos de cenas violentas com armas mortais e quedas espetacu-lares. Ora, o cinema de uma maneira geral e, em particular,os filmes de super-heróis ou os de efeitos especiais são umacontinuação ou substituição para os nossos próprios deva-neios. Uma compensação para as frustrações que experimen-tamos quando insistimos em vivenciar, com o próprio cor-po e no mundo material, nossos empolgantes superpoderesmentais. Tanto a câmara lenta como outros recursos técni-cos de um cinema ou videoteipe, rodado na televisão, sãocapazes de explorar, de todos os ângulos, a seqüência deum tiro seguido da queda da vítima. Não é à toa que osprodutores de imagens usam e abusam desses recursos. Elessabem que, por mais que sejam sinceras as afirmações da-queles que repudiam os atos de violência, as pessoas prega-rão os olhos nas imagens, numa demonstração de soturnofascínio.

Se procurássemos pelas razões mais profundas dessaatração sombria, descobriríamos que elas também revelam o

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espectro de uma dúvida surpreendente e, da qual, não temosplena consciência: a visão de um corpo baleado que cai podenos convencer de que realmente possuímos um corpo, por-que afinal acabamos de comprovar o do outro. Poderia ser ade um homem esfaqueado, de uma vítima de acidente demoto, carro, avião. Para esse último caso não importam asformas que a morte utiliza para nos tentar convencer, emcada cena, da realidade da carne. Aqui, já não nos interessa-mos tanto com os pensamentos de morte quanto com elaprópria, espetacularmente reprisada até a náusea. Mas dei-xemos que estes novos aspectos sejam abordados noutro con-texto para retornar, tristemente, aos projéteis das armas defogo, em relação aos pensamentos de morte.

Como os antigos tinham a oportunidade de possuir maisconsciência de seus corpos limitados, frágeis, dolorosos e mor-tais, do que nós possuímos hoje, seria de esperar que as socie-dades anteriores ao uso da pólvora, ou ao início de sua utiliza-ção, devessem ser mais humanas, no sentido de que, possuin-do a condição necessária para a reflexão sobre a própria hu-manidade, pudessem ser mais justas. Sabemos que não era as-sim. Podemos evidenciar essa contradição quando ficamos cien-tes dos casos de sacrifícios, massacres e casos bárbaros de tor-tura e morte violenta por meios cruéis, que sempre existirammas que parecem uma marca significativa da época anteriorao mundo moderno. Além disso, o direito penal comum —que vigorava na época —, era arbitrário e cruel, estabelecidosobre um sistema punitivo. O sentido de vingança e a intimi-dação pelo terror, de que se revestia a aplicação das penas,suscitando a fúria assassina no cumprimento da lei, leva-me apensar que esse aspecto contraditório se deve, justamente, aofato de que aqueles homens habituados às duras condições,vestidos de pesadas armaduras, elmos e lanças — a pé ou acavalo — e que se feriam ou perdiam os seus, de maneira sel-vagem e cruel, sentiam a dolorosa e latejante realidade da car-ne, muitas vezes mais do que a maioria de nós sente hoje.

Em que pese a insanidade das justificativas apresentadaspara um duelo — o que poderia se constituir numa exceção,

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para a presente hipótese —, o excesso de consciência ou rea-lidade da carne poderia, por isso mesmo, ser o verdadeiropatrocinador da figura sinistra da vingança pessoal, assimcomo da intimidação pelo terror, características da justiçaarbitrária, punitiva e cruel, que imperava nesses séculos. Poroutro lado, os tempos modernos caracterizam-se por umajustiça que abandona, cada vez mais, a figura da vingança,colocando, no lugar dessa, a idéia de defesa social, com arecuperação do criminoso. Esse desgarramento da idéia devingança pessoal também pode ser constatado na problemá-tica da violência que tem se revestido do caráter aparente-mente frio e impessoal dos assassinatos em série, assim comodas tragédias oriundas de ataques terroristas. A nova formaperpetrada por esses criminosos mostra a contradição que adiminuição ou perda gradativa da consciência da carne pro-duz em nosso tempo, embora a violência ainda seja alimenta-da pelo impulso da retaliação, em muitas ocorrências, comoantigamente. Se temos condições de sermos mais brandosporque sentimos menos o peso e limitações da carne, alivia-mos o peso da mão social que irá punir o crime, procurandopara o criminoso a pena mais justa e humana. Por outro lado,será, justamente, essa ausência de peso o próprio motor docrime acionando o gatilho, na destruição de vidas anônimase indiferentes à existência do próprio criminoso, num exem-plo de violência gratuita, desconhecida até então, com essaintensidade, pelo homem. Na balança entre mente e corpo,eis o paradoxo da condição humana. Quanto mais peso, maiordeveria ser o bom senso, o que não aconteceu em temposantigos. Assim como tentar contrabalançar pensamentos,desejos e emoções à carne nem sempre resulta no benefíciodesta, como conferimos no exemplo da atualidade. O exces-so do fator mental em nossa época, ainda que favoreça atroca do terrível espírito de vingança pela justiça que preten-de ser mais humana e imparcial, infelizmente, também, temcometido injustiças por hesitações e confusões, oriundas daprópria prolixidade do universo conceitual reinante. Suas leise convenções constituem, muitas vezes, e de formas variadas

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em vários países, verdadeiros empecilhos à pratica da justiçae do bom senso. Atolamo-nos facilmente no pântano das idéiase convenções, hoje, mais do que seria razoável, para homensmodernos. O politicamente correto esconde, em seu terreno,muitos riscos dessa espécie.

Se a grotesca e pesada realidade da carne não permitiaque um combatente anterior ao uso da pólvora se esquecessede sua existência, o mesmo não ocorre quando se empunhauma arma de fogo e se atira em alguém, de longe. A umacerta distância, o atirador vê a pessoa cair como que fulminadapor um raio — pelo “poder” de seus pensamentos de morte— vivenciando uma experiência além do homem. Se a dor eo sangue não foram provocados por um corpo que se atra-cou com outro, ou a prova material do crime — prova essaque não custou ao criminoso nenhum esforço físico — é, nomomento em que provocou a queda da vítima, algo invisívelcomo um projétil, então a carne passará a pesar cada vezmenos nas considerações dessa sociedade que se arma, de-vendo a sensibilidade à existência da mesma ceder o seu lugaràs questões objetivas, de ordem legal. A evolução das armas,que tem progredido bastante no aperfeiçoamento da capaci-dade mortífera e na facilidade do manuseio, talvez engendrealgo semelhante aos raios letais dos super-heróis, dos dese-nhos animados da televisão. Para isto, já contamos com o raiolaser, o que melhor exprime e mais se aproxima do “poder”dos pensamentos de morte e do olhar fulminante.

Não creio que a falta de escrúpulos que move todo equalquer comércio seja a razão maior da evolução e prolife-ração das armas de fogo. Acredito que somente o encanta-mento pelos superpoderes que elas representam poderia de-terminar o consentimento para que fossem fabricadas e ain-da que expandissem de uma maneira tão alarmante. Apenasa identificação com o ser pensante e, conseqüentemente, ofascínio pelo mundo do super-homem poderia explicar a lou-cura de expormos a nossa pele e a daqueles que nos são caros(já nem digo os nossos semelhantes) ao alcance do poderdestrutivo dessas armas. Só mesmo negando ou “esquecendo”

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a carne para compartilharmos desse crime contra a própriahumanidade. Porque, não podemos nos esquecer, não é oinventor nem o fabricante dos potentes instrumentos de des-truição quem deles necessitará e os usará para os assaltos,assassinatos ou mesmo para o escoamento da violência deque estão possuídos. Se os ladrões, assassinos e malfeitorestêm feito uso das armas de fogo, ao longo do tempo, é por-que houve primeiro a permissão para que fossem fabricadas.Embora não assumamos a autoria, o dedo que puxa o gatilho— ainda que não seja o de nossa mão —, pertencerá sempre aum de nossos cúmplices. Eis a razão de nosso maior problema— a distância existente entre o progresso científico e a sensibi-lidade moral — não haver ainda encontrado uma respostasatisfatória e muito menos solução, embora aparentemente nosincomode. Todos, com raras exceções e à semelhança de Fausto,vendemos nossa consciência e nossa paz ao verdadeiroMefistófeles do homem: o mundo jovem e agitado, estimulan-te e imediato, para o delírio dos sentidos que se encontramsubmetidos ao potencial do puro espírito. Esse mundo podeser corretamente denominado de mundo do super-homem.

A IMPRENSA E O PAPEL DA LINGUAGEM

Das três invenções mais importantes da época de Descar-tes, a navegação em alto-mar, a artilharia e a imprensa, estaúltima é considerada a mais importante para este livro. Enquan-to preservação da palavra escrita, ela representava a difusão eperpetuação de um ser pensante que há muito ultrapassara oslimites do subserviente papel de mantenedor da sobrevivênciado indivíduo e da espécie. Num mundo cada vez mais comple-xo, ele ia tornando-se a razão maior da labuta humana.

É muito difícil imaginar um mundo diferente deste queevoluiu do modo como é conhecido: cheio de carros, televi-sões, aviões e a infinidade de objetos que produzimos com ointuito de “praticar” os atributos do espírito, já que nossa li-mitada estrutura física nos impede. Mas é tentador fantasiar

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sobre um mundo assim, cuja técnica não forjasse a maioriadas invenções existentes. Somente a imprensa se apresenta-ria como sua maior criação. Como seria esse mundo? Acredi-to que um grande conjunto de novas Atenas. Não seriammegalópoles, já que não existiriam carros, nem a medicinateria salvo tantas vidas ceifadas ainda na infância ou prolon-gado a velhice. A compensação para o atraso da medicina —a meu ver o maior a lamentar —, seria a multiplicação dosSócrates, Platão e Demócrito, além da felicidade de se vivernuma cidade proporcional e adequada ao corpo físico. Maso exemplo serve apenas para ressaltar a importância da im-prensa. Assim, abandonemos o terreno fácil da imaginação afim de retornarmos ao campo difícil da linguagem.

A linguagem surgiu da necessidade de comunicação emanifestação do homem, nas relações com os semelhantesque com ele viviam em comunidade. Porém, o que deve ha-ver iniciado apenas como o atendimento ao indispensável àconservação da existência, com o passar do tempo e a com-plexidade que a comunidade atingia, transformava-se na ex-pressão simbólica dos atributos do ser pensante. Assim é quemuito tempo depois, na Grécia, um sistema nervoso suficien-temente maduro e sustentado por uma admirável rede deconexões começou a produzir, para o próprio consumo edeleite, o pensamento filosófico.

Talvez seja preciso ir mais devagar, as coisas são maiscomplicadas do que parecem à primeira vista. Antes de tudogostaria de definir o que no parágrafo superior mencioneicomo expressão simbólica dos atributos do ser pensante eque, neste livro, continuará sendo tratado de forma geralcomo simbolização, já anteriormente citada. Assim, gostariade esclarecer que me refiro à utilização do termo símbolo nosentido de signo, e como esse último é também utilizadocomumente para indicar a palavra, de uma forma geralsimbolização, neste livro, designaria a própria linguagem, de-finida no mesmo Aurélio como “o uso da palavra articulada ouescrita como meio de expressão e de comunicação entre pes-soas”. Em nosso caso, poderíamos acrescentar a essa definição

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a idéia de linguagem em seu sentido dinâmico, como um pro-cesso de representação ou mesmo de transposição não so-mente dos atributos do ser pensante, assim como de todamanifestação psíquica: pensamentos, necessidades, intençõese fantasias do homem em signos cuja utilidade, além de meiode expressão e comunicação entre as pessoas, cumpriria afunção orgânica relativa aos estímulos do Sistema NervosoCentral (SNC). É justamente nesse sentido dinâmico que te-mos a intenção de compreender, ainda que de uma formabastante grosseira e resumida, a simbolização como a trans-formação da energia física oriunda do funcionamento do cé-rebro em símbolos ou palavras. Definido isso, lembremos quena parte inicial deste capítulo havia prometido falar dos sen-tidos e de sua relação com os atributos mentais, atributosesses que podemos entender também como faculdades empotencial da mente. Desse modo, apenas com a finalidade demaior compreensão, separemos o que no homem é uno eindivisível, enxergando os sentidos como as janelas da alma.O corpo é a prisão e dele escapamos, parcialmente, atravésdos sentidos. Eles revelam-nos um mundo atraente que ansia-mos possuir. Mas, antes de mais nada, é importante observarque aqui, nesse contexto, trataremos especialmente da visãoe da audição, já que os demais sentidos não costumam susci-tar nenhuma transcendência, ou transcendência claramentepositiva, que será melhor compreendida mais adiante. Comoexemplo, poderíamos citar o verbo tatear, originado do senti-do mais próximo do corpo, o tato, em contraste com o verbover. Enquanto tatear, extrapolando o significado principal doverbo (relativo ao tato), apenas sugere um sentido muito pró-ximo da realidade, como investigar, pesquisar; ou procedercom cautela, sondando e examinando,39 a visão abrange emo-ções e possibilidades as mais diversas e vastas — que ultrapas-sam em muito o significado de ver (como função do órgão davisão) —, ao excitar em nós o desejo ardente pela fusão, am-pliação, instantaneidade e movimento. Nosso olhar já havia“viajado” pelo universo milhares de anos antes da conquistaespacial. Em sua totalidade, as sensações que a vista nos pro-

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porciona nos levam a pressentir a satisfação plena que adviriade algo similar à ubiqüidade, à onisciência e ainda à veloci-dade que, elevada ao ponto ideal para a sustentação decola-ria nosso corpo para a incrível aventura do vôo. É pela capa-cidade de ver, imaginar e prever situações como essas que ado-ramos assistir a filmes cujos efeitos especiais incluam cenasde veículos (terrestres ou aéreos) em grande velocidade; quea própria criação do super-homem, batman e tantos outrossuper-heróis devem o seu sucesso; que voamos em sonhos;que sempre aspiramos à descoberta de meios que reproduzamcondições semelhantes às experimentadas pelo arrebatamentovisual, e nos tornamos, efetivamente, aptos a inventar apare-lhos que nos permitam obter prazer com o próprio corpo,experienciando os atributos da alma.

Mas ver não é apenas pressentir esses gozos nem so-mente perceber através do órgão da visão. É sobretudo fan-tasiar. Compreender, examinar, viajar, julgar. É prever. O atode ver auxilia a imaginação para estar em muitos lugares aomesmo tempo e para tudo saber. A luz que nos abre os olhospara a vida também esclarece, guia o espírito, traz em si averdade. A verdade que só à palavra é dada a possibilidadede traduzir, porque a linguagem, contendo a simbolizaçãodos atributos da alma, contém a chave dessa alma. Não oarremedo de ubiqüidade e onisciência que a televisão nosoferece, através da grande variedade de canais e dopseudoconhecimento da informação ininterrupta. Esse apa-relho representa uma extensão do sentido da vista e, ao mes-mo tempo, uma materialização ao anseio pelos atributos psí-quicos correspondentes.

Os sons agradáveis que entram em nossos ouvidos nosembalam com a canção de ninar do tempo. O sentido daaudição complementa admiravelmente a visão. Dele, tam-bém, extraímos a ilusão de onisciência e ubiqüidade. Talvezum pouco mais pronunciada que a primeira, a sensação deonipresença acontece, principalmente, através da música.Ouvindo uma canção podemos “estar”, ao mesmo tempo,em todos os lugares que desejamos. Assim como, também,

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retornamos ao passado e projetamo-nos no futuro. Porém,temos de reconhecer que para a espécie humana a visão ésuperior à audição. Não somente a experiência de ver e deouvir corroboram a afirmação feita. Ainda que os amantesda música possam desfiar um rosário de argumentações emlouvor do humilde sentido, os dicionários das línguas pare-cem fazer ouvidos de mercador à importância do ato de ouvir.Basta uma consulta aos vocábulos ver e ouvir para constatar-mos que, além da menor quantidade de acepções do último, apalavra “ver” oferece mais condições de transcendência doque a outra. Transcendência, no sentido de ultrapassar os limi-tes da experiência de cada sentido, ampliando, enriquecendoou satisfazendo, o que para o homem é considerado bom oupositivo. No caso da visão, o exemplo do verbo ver com ou-tros significados — alguns já citados —, como imaginar, fanta-siar, reconhecer, compreender, percorrer, prever, projetar ejulgar.

É possível que a necessidade de amplidão, que nos levaa abandonar as grandes cidades e seu paliteiro de arranha-céus, em busca de praias, campos e montanhas, seja, no fun-do, o desejo de avistar o horizonte longínquo e, assim,vivenciar a experiência de sublimidade e superioridade quenos eleva acima da miserável condição da carne e da matéria,limitadoras do mundo. Revigorada a força dos sentidos —em especial, o da visão —, sentindo a alma em plenitude,retornamos às cidades com outra perspectiva sobre a vida: oque antes nos aborrecia e oprimia, a cidade de aço e concre-to, agora, acolhe-nos com novas qualidades de encher a vis-ta. Quanto à audição, embora a música também constituauma necessidade importante, talvez por nos permitir a “via-gem” no tempo e no espaço, assim como a vivência do subli-me, não me foi possível recordar nem encontrar nos dicioná-rios consultados (da língua portuguesa), um só sentido trans-cendente para o verbo ouvir. Talvez seja porque o som e espe-cialmente a música já contenham em si a própria transcen-dência, não necessitando, como o ato de ver, do complemen-to de uma ação impossível ao corpo humano sem o recurso

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das técnicas e das máquinas, ou seja, voar. Sim, ver comple-ta-se em voar, assim como dançar pode complementar o atode ouvir. Mas nesse caso o corpo é o próprio pêndulo dotempo, oscilando e atualizando suas manifestações. Ao ex-pressar movimentos, de forma ritmada, a dança detém o poderde extasiar o espírito, como se, dançando, nos tornássemosconscientes da quarta dimensão, vivenciando-a plenamente.Não é por acaso que ambas, a música e a dança, fazem partedas manifestações mais primitivas do homem. Isso justifica-ria a ausência das acepções: viajar, saber, compreender, fan-tasiar, projetar ou prever nos verbetes do verbo ouvir, tal comoencontramos em ver. Realmente, para os ouvidos basta a mú-sica. Ela é embriagadora o suficiente para que necessitemosdas ações de outros verbos. É a própria viagem, o vôo, a onis-ciência, a ubiqüidade, a instantaneidade e a onipotência. Algoque está além das possibilidades de qualquer sentido, talvez,até mesmo da poderosa visão.

Em pleno gozo da saúde e principalmente na infânciae juventude, o conjunto das sensações dos cinco sentidos pro-voca-nos um prazer capaz de suscitar o anseio pela onipotên-cia. Respiramos profundamente o ar revigorante dessa sen-sação com o impulso irresistível para esticar os membros esair voando por aí, livres, totalmente livres e poderosos. Masaí é que está. Embora os sentidos nos forneçam janelas parao espírito, não temos asas para evadir-nos da triste cela dacarne. Erguemos os braços e iludidos aterrissamos imediata edolorosamente na terra. É impossível esquecer a frustraçãopelo mau êxito das primeiras experiências que realizamos,sob o impulso de sermos deuses ou super-homens. Podería-mos resumir quase toda a história da ciência e tecnologiacomo a procura desesperada pelos superpoderes. Porém, aúnica porta de saída verdadeiramente humana para a evasãodo super-humano ainda continua sendo a linguagem.

A possibilidade da tradução de qualquer língua por ou-tra indica-nos a universalidade dos símbolos expressos pelalinguagem. Assim foi possível, entre os lingüistas, aconstatação de que em todas as línguas conhecidas existem

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verbos ou mesmo partes do discurso denotadores de ação.Realmente, o espírito é sobretudo ação; movimento. Entre-tanto, para a compreensão da linguagem como simbolizaçãodos atributos do espírito não é aconselhável que nosembasemos na lingüística. A preocupação com particularida-des tais como a arbitrariedade do signo nos é indiferente,porque não estamos propriamente interessada nas diferen-ças entre o significante e o significado, mas nas conexões queas acepções de uma palavra — principalmente verbos e seusderivados —, mantêm com esses atributos. Dessa perspectivaé que se pretende usar o vocábulo linguagem — não sob adefinição da lingüística, mas naquela comum a todos nós eque, no Aurélio, designa: “1. O uso da palavra articulada ouescrita como meio de expressão e de comunicação entre pes-soas”.40 Ao invés de signo preferiremos “palavra” e apenastomaremos emprestado do uso lingüístico o termo símbolo,para a representação arbitrária dos atributos do potencialmental.

A lingüística tem seu mérito e razão de ser, mas o saberfragmentado poderia nos confundir e levar a perder o objeti-vo em vista: a compreensão do homem por inteiro. Comofizemos em relação à filosofia, contemos apenas com nossaspróprias experiências com a linguagem e, sobretudo, comuma paciente investigação das palavras. Sejamos detetives daspalavras dos dicionários. Assim, somente com a finalidadede comparação poderão ser citados trechos selecionados da-queles que se ocuparam da linguagem em seus estudos.

Mais interessante que nos ocuparmos com a lingüísticaseria nos determos em certas reflexões de uma das maioresautoridades de comunicação de massa: Os meios de comuni-cação como extensões do homem, de Marshall McLuhan.41

Elas contêm algumas curiosas semelhanças com este traba-lho, como o trecho que veremos a seguir, em que o autor faza relação entre a linguagem e os sentidos, definindo-a emtermos de movimento e projeção. Discorrendo sobre a capaci-dade do homem para falar, Marshall McLuhan, ao referir-se aotrabalho de Bergson a respeito, afirma-nos que a linguagem

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seria a “extensão, manifestação ou exposição de todos osnossos sentidos a um só tempo”.42 Diz-nos, ainda, o autor: “Alinguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, poislhe permite deslocar-se de uma coisa a outra com desenvolturae rapidez, envolvendo-se cada vez menos. A linguagem proje-ta e amplia o homem, mas também divide as suas faculda-des”.43

Se levarmos a comparação ao pé da letra repararemosque as palavras do autor se prestam à nossa compreensão dopapel da linguagem de uma forma admirável. Vejamos: a lin-guagem seria a roda... o veículo natural de que o homemsempre dispôs para dar vazão ao anseio pelo deslocamento evelocidade, sem que fosse preciso levar o corpo fisicamente,nessa viagem, posto que, “permite deslocar-se de uma coisa aoutra com desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vezmenos”. Entretanto, se a compreensão da linguagem enquantomovimento e extensão de todos os sentidos é semelhante nosdois livros, a idéia central que norteia este trabalho deixa àmostra as diferenças. E elas, embora pareçam insignificantes,são expressivas. A idéia principal do livro de McLuhan podeser retirada do próprio título e resumida nas palavras do au-tor: “O tema constante deste livro é o de que todas astecnologias são extensões de nosso sistema físico e nervoso,tendo em vista o aumento da energia e da velocidade”.44

Colocar a tecnologia numa dimensão humana — sejacomo extensão física (McLuhan) ou potencial da mente (estaautora) —, significa recuperar para o homem o que a ciênciahavia dissociado. Isso tem como conseqüência imediata divi-dir com cientistas e tecnólogos os louros ou a responsabilida-de pela utilização benéfica ou prejudicial dos frutos do pro-gresso tecnocientífico. Se a energia nuclear é uma extensãode nós mesmos, seria muito favorável à paz mundial que to-dos assumíssemos a bomba de Hiroshima, não deixando nasmãos dos americanos a responsabilidade pelos destinos detodo o planeta.

Contudo, de modo diferente de McLuhan, esta autoraviu nas invenções tecnológicas não propriamente extensões

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do sistema nervoso e sim reprodução ou desdobramento dealgo que existe nele como virtualidade psíquica. Tomemosum exemplo para melhor compreensão: uma pessoa morta eum aparelho de televisão desligado não detêm semelhançasentre si, ainda que os elementos do sistema nervoso estejamlá, assim como os fios e conexões do aparelho. Não pode-mos fazer nenhuma comparação entre os dois. A máquina émuito grosseira para que possamos enxergar nela extensõesdo ser humano, mesmo que não exista mais nesse ser nenhu-ma atividade. Mas quando os olhos se abrem para a vida e aTV é plugada ao mundo algo mágico sucede e o aparelholigado, refletindo o seu criador, tem a capacidade de “trans-portar” quem o assiste para vários lugares, instantaneamen-te. A televisão proporciona-nos além de ubiqüidade, onisciên-cia e onipotência, algo próximo à sensação embriagadora quea visão, descortinando horizontes, nos oferece.

Também de forma diferente do autor citado, a implica-ção do dualismo na compreensão da revolução tecnológicapermite-nos entender o aprofundamento da distância exis-tente entre o desenvolvimento material e o atraso nas ques-tões morais. Somente a identificação com uma parte — o serpensante —, em detrimento da outra, material, poderia ex-plicar o fascínio que os produtos da tecnologia exercem so-bre o homem, deixando-o insensível quanto ao sofrimento emiséria do próximo, ao fazer da aquisição desses produtosuma prioridade não apenas na vida de cada um mas da pró-pria sociedade. Eles possibilitam a todos ultrapassar osfrustradores limites corporais, com a promessa do gozo depoderes superiores. Assim é que atrás da maioria dos inventostecnológicos encontra-se um arremedo de super-homem, ne-gando em sua essência o próprio homem.

Unicamente supondo alguma dualidade no homem so-mos capazes de perceber o prejuízo que o desenvolvimentotecnocientífico causou à sua capacidade de transcendência. Aimpulsividade do espírito que sempre desejou ardentementese manifestar e que, antes da revolução tecnológica, se satis-fazia, de preferência, na urdidura simbólica da linguagem —

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escrita e falada —, agora encontrou nas máquinas e apare-lhos a oportunidade de usufruir do potencial de maneira di-reta e a mais fácil possível, “carregando-se” e “descarregan-do-se” de seus atributos. Mas essa nova realidade, que per-mite à velocidade, à onisciência, à onipotência e à ubiqüida-de poderem ser consumidas direta e facilmente, custa-nosum preço muito alto. O preço do esvaziamento da fé no po-der divino e da riqueza simbólica da linguagem, substituídasque foram pelos superpoderes da ciência. Isso explica a bus-ca sequiosa por novas divindades, seja no misticismo da NovaEra, seja na multiplicação e fanatismo das seitas.

Façamos uma comparação entre a Atenas filosófica e omundo tagarela atual: se ambas as civilizações, paradoxalmente,padecem do excesso de poder oferecido às palavras, hoje, en-tretanto, não podemos alimentar a esperança de um novoSócrates e seu método descascador de excrescências, à procurada essência das coisas humanas, isto é, da própria virtude. Afo-gados na verborréia circundante, nos debatemos como náu-fragos desorientados em pleno mar da relatividade moral. Senos agarramos à segurança de algo que nos parece absoluta-mente verdadeiro, logo virá alguém, com seu veneno sofístico,a nos lançar, outra vez, nas águas agitadas e volúveis das merasopiniões. Para escapar — ou quem sabe alienar-nos dessa situa-ção dolorosa — contamos com a panacéia das invenções, masnenhuma delas é capaz de elevar-nos a alma, por mais veloz-mente que corramos de carro ou mais alto subamos nos edifí-cios, na montanha russa ou de avião. Embora de alguma for-ma, quem se encontre nessas máquinas ou a essas alturas possasentir, num instante de arrebatamento, algo dentro dele queultrapasse a si próprio, mesmo assim, por si só, a experiênciafísica de correr velozmente, encontrar-se no alto ou voar nãoprovoca, necessariamente, nenhuma transcendência. Se assimfosse, os arranha-céus ou milhares de quilômetros rodados evoados deveriam contribuir para um mundo mais humano emelhor. Assim como a televisão deveria inspirar concepçõessublimes, ao manter-nos onipotentes, oniscientes e onipresentes,ininterruptamente “ligados”, no “ar”. A mim, parece que tal

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não ocorre. Com tanta fartura de víveres e comodidades detoda espécie, a nossa frieza diante a miséria e o sofrimentoalheios dá a impressão de ser maior do que a dos séculos ante-riores. Também jamais se produziu tanta mediocridade, tama-nho lixo cultural, justamente numa época em que a facilidadede acesso à riquíssima herança artística e literária de todos ostempos se acha disponível a todos, bastando um clique de mouseem bibliotecas ou museus virtuais, ou mesmo uma viagem aé-rea com destino àqueles lugares onde tais obras se encontram.

A correspondência entre o corpo e a alma — encontra-da em parte dos verbos indicadores de movimento —, nãoexiste na interação do homem com as máquinas que o trans-portam. Aliás, as máquinas reprodutoras dos atributos men-tais desestimulam nele a elaboração simbólica de suas faculda-des psíquicas, em troca da satisfação direta mas empobrecedorados superpoderes. A conseqüência mais perversa do mundodo super-homem é que, cada vez mais, se conjuga no mar demetal do trânsito cotidiano o verbo mover sem se comover,

se

sensibilizar; nos aeroportos e campinhos de aviação, voar sem,necessariamente, conceber idéias sublimes; e através dos ele-vadores dos mais altos edifícios subir a grandes alturas, sem aelevação concomitante da própria dignidade.

Consultemos o Aurélio: “Transcendência. s.f. Qualida-de ou estado de transcendente; Transcendente. Adj. 2g. 1.Que transcende; muito elevado; superior, sublime, excelso.2. Que transcende do sujeito para algo fora dele. 3. Que trans-cende os limites da experiência possível; metafísico”. Repa-remos na segunda acepção de transcendente: “que transcen-de do sujeito para algo fora dele”. Pode-se até “sentir” omovimento da alma: do sujeito (e não o sujeito) para algofora dele. A linguagem é o registro e o espelho das experiên-cias humanas, tanto positivas quanto negativas. É nesse sen-tido que encontro transcendência no caso do verbo voar:diante da incapacidade para o vôo — a mais antiga frustra-ção da espécie —, o verbo voar indica, de forma figurada, acapacidade de compensação que a linguagem detém para sua-vizar essa deficiência, elevando o homem em pensamentos;

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proporcionando-lhe sublimes concepções. Eis a mais nobrefunção e o verdadeiro papel da linguagem. O meio naturalpara a humanização da herança animal. O veículo detranscendência que máquina alguma poderá substituir. Se ocorpo não voa, em compensação, o espírito coloca-se em pla-no superior em pensamentos, ultrapassando a mísera condi-ção da carne para algo mais elevado, sublime, excelso; conju-gando os verbos da solidariedade, da compaixão e, dentroda arte e da literatura, comungando com a divindade dasobras-primas. Para o alto e para cima sempre foram as divi-sas simbólicas da alma! Mas hoje, infelizmente, para o alto epara cima parecem mais slogans para a corrida espacial oumesmo para as atividades aeronáuticas, de um modo geral.Se os possantes veículos e as máquinas aéreas transportam osujeito de carne e osso, fazendo-o usufruir instantaneamentedo estado de super-homem, e os meios de comunicação ofe-recem-lhe a ilusão dos atributos divinos da onipotência, onis-ciência e ubiqüidade, por que o espírito haveria de continuarsentindo necessidade de “sair” de si para algo elevado e su-blime, transcendendo, da forma simbólica do verbo, em umaação subseqüente e real, da condição animal para a de verda-deiro homem? Ora, pior que o vício num caça-níqueis é acompensação imediata que as máquinas oferecem para osfrustradores limites da carne, fazendo da tecnologia a con-corrente desleal da benemerência nascida da solidariedade edo altruísmo, do sentimento de compaixão para com o sofri-mento e miséria do próximo.

Nem todas as palavras oferecem meios de transcen-dência. Aparentemente, somente aquelas que simbolizamações e situações prazerosas para o espírito, ou seja, as cor-respondentes à satisfação do potencial da mente. Essas con-têm em si a possibilidade de enobrecimento. Vejamos os exem-plos dos verbos: elevar e subir, ambos podem ter o sentidode engrandecimento, assim como exaltação do espírito; altearpode significar tornar alto, sublime; transportar e arrebatar,no sentido de extasiar, enlevar.45 Embora não seja o caso detodos os verbos indicadores de movimento, esses verbos, de

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um modo geral, propiciam ao espírito “sair” da prisão dacarne para algo fora dela e por causa disso é que tambémpodem ser entendidos como elevação e nobreza de ânimo.Isso me parece óbvio. A linguagem, originando-se da experiên-cia, não teria por que contrapor, por exemplo, aos verboscair e escorregar um sentido ou uma ação de caráter nobre.Não podemos esperar que a queda do super-homem resultenum aperfeiçoamento do homem.

A aparente exceção — no caso do verbo cair — ocorrequando ele faz par com vocábulos auspiciosos ou neutroscomo graça, céu e nuvens. No Caldas Aulete,46 encontramos“cair em graça” (penso ser mais atual “cair nas graças de”) nosentido de “ser acolhido com benevolência ou com fervor,merecer simpatia”; “cair do céu”, significando “alguma aven-tura inesperada”; “cair a alguém uma coisa das nuvens” (emduas acepções): “acontecer-lhe inesperadamente” [diz-se deacontecimento feliz]; e cair das nuvens, (fig.) “ter grande de-cepção”. Realmente, podemos ver que se trata de uma supos-ta exceção por dois motivos importantes: primeiro, o verbocair, assim como escorregar, não possui em si mesmo a possi-bilidade da transcendência, como em grande parte dos ver-bos que satisfazem ao potencial do espírito — como os jácitados voar, mover, altear, subir, elevar, transportar, arreba-tar. Segundo, os vocábulos acompanhantes não produzem oefeito enobrecedor que procuramos e o qual podemos usarno sentido de transcender, ou seja, alguém cair nas graças deoutrem não pressupõe que isso tenha ocorrido por mérito,nem tampouco que vá torná-lo melhor. Tanto cair nas graçasde, como cair do céu e cair das nuvens (no sentido de aconte-cimento feliz) subentendem passividade, ou melhor, apenaso resultado do fator sorte.

Cair expressa não apenas o sentido concreto de “ir aochão” mas também o de morrer, sucumbir; decair; “ser ape-ado do poder”; “ser vítima de logro”; “cair em falta”; “cederem detrimento do dever ou da virtude, ou da honra.47 Ocontrário, como vimos, acontece com os verbos indicadoresde movimento, de um modo geral, e não somente para o alto

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e para cima. Todos eles atendem aos impulsos do espírito in-quieto, errante. Seja devido à generosa exaltação da alma frenteà idéia de movimento e velocidade ou uma espécie de com-pensação para as frustrações com os limites impostos ao cor-po, o fato é que esses verbos oferecem uma correlação espiri-tual — embora nem sempre enobrecedora —, para o ato dodeslocamento físico. Assim é que encontramos no CaldasAulete, para o próprio vocábulo “movimento”, o sentido fi-gurado de “impulso da paixão que se eleva na alma, senti-mento”.48 Está bastante claro: ao movimento do corpocorresponde o sentimento, na alma. Mas não que o movi-mento, em si, eqüivalha sempre a algum elemento transcen-dente. Quase tudo que beneficie o movimento será pressenti-do como positivo, com exceção para aqueles casos em que aintensidade da animação turve o bom senso e que, por issomesmo, deixe de constituir uma ponte para a transcendência.

Assim como no verbo correr, a realidade de um corpodeslocando-se velozmente abriga, entre os seus vários senti-dos, também a idéia de correr risco ou perigo, ou seja, a ad-vertência ao invés da transcendência, da mesma forma o altograu de intensidade a que pode chegar uma emoção ou senti-mento condena a paixão à cegueira. Não a cegueira do cor-po mas a da alma. Ora, à visão correspondem praticamentetodas as transcendências possíveis. Simbolicamente, a luz —que os olhos nos descortinam —, sensibiliza-nos, comove-nos, faz-nos compadecidos, abrandando-nos o coração; porela somos esclarecidos. Iluminados e guiados pela certeza epela verdade. Na ausência real da luz seria impossível percor-rer o espaço, invejar o vôo dos pássaros, inventar o avião. Semo simbolismo correspondente a ela, a linguagem não poderiaelevar o homem à altura das grandes virtudes, em sublimesconcepções. Digo simbolismo, neste último caso, porque seum cego não pode observar o vôo de um pássaro ou prova-velmente inventar o avião, entretanto, nada o impede de ali-mentar sublimes concepções, viver à altura das grandes vir-tudes. A simbolização, através da linguagem, corresponden-te aos atributos inspirados pelos sentidos, é que permite a

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contemplação de todas as virtudes que se encontram alémdos próprios sentidos, ou seja, os estados da alma. Aliás, porse ver privado da luz mas não da linguagem, justamente, épossível que para as pessoas com deficiência na visão a con-jugação da transcendência não tenha sido tão prejudicadapelo mundo do super-homem, quanto parece haver ocorridocom a maioria. Para todos nós outros, o alto grau de intensi-dade de emoção e sentimento que o estimulante mundo dasimagens hoje favorece, constitui um risco, sempre presente,de deixar-nos à mercê da cegueira das paixões. A não ser quesejamos verdadeiros artistas, e, portanto, inclinados natural-mente à transcendência, poderemos nos ver envolvidos poresse excitante mundo adolescente, fazendo vista grossa paraa sensualidade extrema e mesmo a sua apologia.

Somente o movimento desenfreado nos nega atranscendência. Isso fica evidente no caso do verbo voar. Em-bora ele contenha em suas várias acepções o sentido datranscendência — afinal ele representa a realização do maiorsonho do homem —, voar também significa desenvolver gran-de velocidade e, por isso, a expressão “voar para cima de” con-tém tanto o sentido de “voar em cima de”, ou seja, assediar umapessoa com intenções de conquista, como encontramos noAurélio, como também o de “atirar-se resolutamente contraalguém” (exemplo conferido no Caldas Aulete). Só por curio-sidade poderíamos apontar caso semelhante na língua inglesa,onde no verbo equivalente to fly encontramos a expressão letfly at e fly into a rage como significando, respectivamente,atirar em, atacar furiosamente e enraivecer-se subitamente.49

Voltando à língua portuguesa, dentre os derivados do mesmoverbo, o termo “volátil” também confirma a suposição de queo vôo impetuoso ou sem uma única direção pode traduzir,figurativamente, algo negativo como volubilidade einconstância. De fato, a experiência em modernos parquesde diversões — nos brinquedos que nos levam o corpo demaneira veloz e irrefreável, como na montanha russa —, de-monstra-nos que esse tipo de movimento se presta a tudo, doriso incontido ao frio na barriga, menos à oportunidade de

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elevar-nos em pensamentos, em sublimes concepções. O contrá-rio sugeriria o vôo tranqüilo e retilíneo de uma asa-delta, porexemplo. Mas isso somente os amantes do esporte poderiamcomprovar. Pelo visto, a experiência de voar nelas não pro-porcionou à sociedade nenhum benefício decorrente do au-mento da sensibilidade de seus praticantes em relação aos pro-blemas do próximo. Talvez o problema com tais máquinas sejaque, satisfazendo de forma direta (com o corpo) e não indireta— como no trabalho simbólico da palavra — ao anseio primi-tivo de voar, elevam a alma do homem somente para si mes-mo, isto é, para o próprio consumo e deleite e não como ummovimento para fora, em benefício do outro. Eis o que meparece ser o resultado de saciarmos, cada vez mais, o desejoardente pelo vôo, assim como pela velocidade: o homem comoo benfeitor apenas de si próprio, extrema e egoisticamentepreocupado com o seu crescimento pessoal, em detrimento dobem de seu semelhante. Mas — poderiam objetar alguns —, édiminuta a parcela da humanidade que pode usufruir e prati-car o vôo e a velocidade prazerosamente, por esporte ou hobby.Ao que esta autora argumentaria resignada: mas é essa parce-la, justamente, que dispõe de recursos para auxiliar a maioriados homens que, não podendo se alienar da carne, por elapadecem em triste condição.

Se no caso do verbo mover a contrapartida espiritual parao significado físico do verbo é a de sensibilizar, “inspirar dó oucompaixão a, comover”,50 o contrário sucede com o que frustrao deslocamento normal do corpo, estorvando a manifestaçãodo ser pensante. Naquelas situações em que literalmente vãopor terra nossas secretas pretensões aos superpoderes — comonos exemplos de cair e escorregar —, é coerente encontrarmosa correspondência para esses verbos em termos pouco louváveiscomo os que designam perda da virtude ou da honra, decadên-cia, erro e mentira. A dor sentida ao cair, dor, na realidade, maisdolorosa porque acrescida do orgulho ferido, contribui paraque fiquemos momentaneamente mal-humorados.

Se a razão da impossibilidade de transcendência dos ci-tados verbos “cair” e “escorregar” fosse apenas conseqüência

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dos sofrimentos físicos, não poderíamos esperar dignidadeou nobreza por parte das ações e pensamentos de pessoasgravemente enfermas. Sabemos não ser assim. Às vítimas demales debilitantes e dolorosos são naturais os pensamentosnegativos e até pessimismo em relação à existência. Porém,afirmar que elas se encontram incapacitadas para a grandezade espírito, em pensamentos ou ações, seria faltar com a ver-dade. Contrariamente ao que se poderia esperar, os sofri-mentos físicos acentuados costumam, muitas vezes, depuraros sentimentos. Penso que não devem ser raros os casos emque uma doença grave teve o poder de sensibilizar uma pes-soa, antes indiferente. A língua corrobora esse fato, atravésdo significado de compaixão, condolência, dó e pena, paraas palavras “dor” e “doer”, respectivamente. No Aurélio, jácitado, encontramos os seguintes exemplos: “sentir dor dapobreza de alguém” e “A mendicância infantil é um espetácu-lo que dói”. Se a dor não transcende nos atos e conseqüênciasde cair e escorregar, nas quedas e escorregões, a razão dissonão se deve apenas à menor quantidade de sofrimento en-volvida nesses acidentes. Mesmo as quedas menores costu-mam provocar em suas desprevenidas vítimas dor suficientepara lhes recordar da incômoda e desastrada realidade docorpo, sem que necessariamente essa conscientização mo-mentânea leve à transcendência. Mas é justamente a expo-sição nem um pouco glamourosa da carne estatelada nochão a responsável pelo fato de os tombos dolorosos nãoresultarem em verdadeira conscientização de nossos cor-pos, assim como na impossibilidade de transcendência dosverbos causadores de tanta vergonha. Desde criança sabe-mos disso: não podemos cair ou escorregar sem correr-mos o risco da própria desonra. Diante da queda, ao invésde solidariedade, colhe-se o riso e o escárnio. O resultadode tudo isso é que num tombo, a dor do orgulho feridopassa, com o tempo, a ser maior do que a dor da carnemaltratada.

Somente a custo as crianças aprendem a reprimir a dis-posição natural para a zombaria e, assim, são ensinadas a

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fingir que não perceberam que a vítima de um escorregãoperdeu, momentaneamente, o status de super-homem, mos-trando com a queda sua miserável condição de carne. Entre-tanto, se para o sujeito a perda do status é momentânea, alíngua a eternizou e a prova disso se encontra nos sentidosdesabonadores (figurados ou não) dos verbos “cair”, “escor-regar” e seus derivados, tais como: ceder em detrimento dodever ou da virtude, ou da honra; incorrer, incidir, cair emfalta; decadência, declínio; cometer erro, falta; alterar a ver-dade em pormenores, mentir; erro, falta, lapso, deslize; ruí-na e pecado, além, logicamente, dos significados da ação pro-priamente dita: ir ao chão e resvalar.51

Nem sempre as transcendências resultantes dasimbolização dos impulsos dos atributos mentais nos enchemo peito de sentimentos altruístas. Se essa superioridade daalma engrandece o homem sem, no entanto, resultar no bemdo próximo, a elevação do espírito parece-me uma condiçãonecessária ou pelo menos compatível e propícia à compas-sividade, solidariedade e outras virtudes afins. No mínimo, acarga de transcendência que existe na linguagem faz da habi-lidade no trato com as palavras, tanto na fala quanto na leitu-ra e escrita, um antídoto natural para a violência. Esse assuntose liga às descobertas científicas sobre a biologia do comporta-mento de criminosos violentos e pacientes neurológicos, men-cionadas no início da primeira parte deste capitulo.

Os estudos em questão apontam como a raiz do pro-blema (do comportamento violento de certos criminosos) oestado físico de alerta mais baixo do que seria o normal, taiscomo baixo nível de excitação dos batimentos cardíacos, dataxa de transpiração e atividade das zonas cerebrais. Dianteda necessidade de aumentar os níveis de excitação, essas pes-soas procuram no meio ambiente estímulos suficientes paraelevá-los e, assim, sentirem-se normais. De acordo com aspesquisas, a necessidade de níveis mais altos de excitação podeencontrar-se tanto no destemor do militar que desarma umabomba quanto no indivíduo que, sem melhores oportunidadesna vida, procura elevar sua taxa de excitação nos estímulos mais

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fortes da transgressão. Descobriu-se que 30% a 35% dessaspessoas — cuja baixa excitação crônica transformara os atosagressivos em crimes violentos —, apresentavam deficiênciaspara ler e formular os pensamentos através da fala. Esse fatodemonstrou que a habilidade no tratamento com as pala-vras, tanto em relação à expressão dos pensamentos quantona leitura e interpretação, exerce uma poderosa influênciana capacidade de controlar o temperamento predisposto àviolência.

Entender a linguagem como a expressão simbólica dosatributos mentais aprofunda e facilita a compreensão dessarelação existente entre a deficiência verbal e de leitura e aocorrência de atos de violência da parte das pessoas que apre-sentam baixa excitação crônica. Porque falar dos atributosmentais é sobretudo falar de impulsos, excitação, estímulos.Como já dissemos, nada mais próprio do ser pensante doque o movimento, a ação. Assim, quanto mais complexa esatisfatória for a organização e a capacidade de entendimen-to e expressão da rede simbólica — principalmente em rela-ção às transcendências — maior será o consumo interno dosatributos, gerando maior excitação, e, conseqüentemente,menor quantidade desses impulsos restarão para serem “des-carregados” e “recarregados” diretamente pelo organismo nomeio ambiente.

A tentativa de explicar o fenômeno em termos físicosesbarra nas dificuldades da autora que não pretende escon-der suas limitações, assim como tampouco desistir da tarefa.Penso que outra maneira de compreender o que foi dito sejacomparar os extremos da habilidade para ler e se expressar ea relação com a impulsividade e a agressividade. De um ladotemos a aptidão natural que culmina na erudição e capacida-de verbal de muitos literatos e homens de letras e do outro oscasos de deficiência, como os que acabamos de ver. Entre ume outro é significativa a diferença quanto ao comportamentoagressivo. Excetuando-se alguns casos, não parece insensatezafirmar que a literatura e a intelectualidade, de um modogeral, não predispõem o indivíduo à violência. Ao contrário,

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embora o pensamento de alguns desses homens possa contri-buir e mesmo levar povos e nações a conflitos e guerras, paraos próprios pensadores, o resultado de seus cuidadosos e fa-tigantes exercícios intelectuais costuma resultar-lhes inócuoe o máximo que poderia lhes acontecer seriam ultrajantescontendas, em combates onde as armas são as penas, e asconseqüências apenas orgulhos feridos e nada mais. Eis porque não devemos nos exasperar com a falta de inspiraçãopara as grandes obras e obras-primas, que hoje parece aco-meter tantos escritores e artistas (os que trabalham com ou-tras espécies de simbolização do mesmo potencial). Afinalesses homens seriam, salvo as exceções já mencionadas, pelomenos do ponto de vista físico, teoricamente inofensivos.Exemplos mais dignificantes do resultado ideal dasimbolização podemos encontrar naquelas pessoas, comomadre Teresa de Calcutá, que cumpriram à perfeição o obje-tivo da linguagem enquanto produtora de transcendências,transformando as frustrações pelas limitações físicas em açõesde caráter altruísta.

Embora os estudos sobre o comportamento humano eo cérebro tenham nos fornecido muitos dados para análise, anatureza extremamente complexa dos fatos mentais dificultauma visão geral sobre o assunto, resultando na fragmentaçãodesse conhecimento. Quem se tenha dado ao trabalho de lersobre o funcionamento cerebral — sua interação eletroquí-mica, por exemplo — compreende que somente especialistaspoderiam, realmente, explicar o mecanismo que se desenro-la atrás do mais simples pensamento. A especialização doestudo da integração cérebro–mente é a responsável pelosavanços terapêuticos e cirúrgicos, no campo médico da neu-rologia. Mas se por um lado a ciência e em especial a medici-na tanto se beneficiaram da particularização no conhecimen-to do funcionamento do cérebro, por outro, a dificuldade dese enxergar o homem, de forma integral, infelizmente, parececontribuir para com o recrudescimento da tendência mística,já acentuada no final do século XX. Não acredito que a reso-lução do problema seja trocar o coquetel de sinapses, neurônios

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e neurotransmissores por uma embriagante solução simplista.O que penso ser necessário é tomar distância da profusão deinformações a respeito — como quem se afasta do objetopara lhe enxergar melhor a totalidade.

O conjunto dos atributos — de onipotência, onisciên-cia, instantaneidade e ubiqüidade divinas de um lado, e dosatributos de força física ideal e faculdades extraordinárias dosuper-homem do outro — que denominei potencial do serpensante é consumido em boa parte através da linguagemque, num processo semelhante à retroalimentação, tambémo alimenta. Ao menos teoricamente, quanto mais rica a redesimbólica, maior seria a predisposição à reflexão ou à açãopremeditada e menor a tendência à impulsividade. O contrá-rio também parece verdadeiro, como sugere a já citada pes-quisa sobre a biologia do comportamento, ressaltando a im-portância da habilidade verbal e da capacidade para ler,

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controle do temperamento violento. A alfabetização e estu-dos complementares que possibilitem melhor capacidade deexpressão verbal e interpretação de texto poderiam consti-tuir uma maneira eficaz de prevenir impulsos agressivos emindivíduos que apresentem deficiência nas atividades do loboparietal. Essa deficiência congênita que, de acordo com amesma fonte, pode levar a futuros atos criminosos por açõesimpulsivas e violentas, se torna compreensível quando pen-samos na capacidade para ler e expressar pensamentos atra-vés de palavras como o alimento e o consumo simbólicos dopotencial do ser pensante. Se esse alimento e consumo repre-sentados pela leitura e expressão verbal não ocorrerem deforma satisfatória então veremos o potencial se manifestan-do diretamente, através da ação impulsiva e não como frutode reflexão.

Penso que, no mundo de hoje, o aumento da violênciatem extrapolado os casos de deficiência congênita para al-cançar, até certo ponto, a população em geral. Mas a violên-cia e a impulsividade não se beneficiam apenas da ausênciaou escassez de leitura e da pobreza na expressão verbal e escri-ta — de que são exemplos a conversa dos jovens e grande

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parte das letras de suas músicas. Quando o potencial do serpensante não é consumido simbolicamente de maneira ade-quada, isto é, consumido indiretamente por meio das idéias/palavras, então passa a ser gasto de forma direta, não somen-te pela impulsividade e violência das ações mas também atra-vés dos objetos do mercado. Ora, esses objetos expressamagora, em sua maioria, os próprios atributos do potencial dopensamento. Assim é que a televisão e o computador (internet)servem de alimento e consumo para os atributos da onisciên-cia, ubiqüidade e onipotência, assim como alguns esportesde alto risco e vários brinquedos em parques de diversão aten-dem aos anseios pelo vôo, velocidade e onipotência. Os estí-mulos imateriais advindos dessas invenções, por sua vez, nãodeixam de reforçar a identificação com o ser pensante e, con-seqüentemente, a negação da carne. O resultado de tudo issoparece ser a incrementação de uma imaturidade geral — deque já falamos lá atrás —, em que traços como a irreflexão,sofreguidão e temeridade são colocados em alta, em prejuízodo próprio bom senso. Não deveríamos nos surpreender como aumento da violência e da impulsividade numa sociedadeassim constituída.

Também não podemos esquecer que o excesso de ali-mentação simbólica sem o consumo adequado desse mesmoalimento, seja através da escrita ou do discurso, pode levar oindivíduo a ultrapassar os limites da reflexão, passando ime-diatamente à ação. O exemplo mais famoso disso se encon-tra na literatura e se trata do próprio Dom Quixote. Lendo,ininterruptamente, fantasias da cavalaria andante, resolveusair ao mundo à cata de aventuras, tais como as encontradasnos romances. Se, ao invés disso, houvesse, ele mesmo, to-mado da pena e escrito um final para aquelas intermináveisperipécias — como foi o seu primeiro pensamento, de acor-do com o narrador do romance —, o cavaleiro consumiria oexcesso do alimento fantasioso, deixando-nos privados desua adorável loucura. Reparemos nisso. A ação oriunda doexcesso não consumido e derivado de uma alta capacidadede simbolização é diferente da ação advinda da pobreza da

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capacidade simbólica, assim como do desmedido consumodireto do potencial do ser pensante, através das máquinas doprogresso. No primeiro caso ela (a ação), mesmo violenta, érevestida de um conteúdo místico ou idealizado porque seencontra repleta de significados, o que não ocorre no últi-mo. Neste, a impulsividade ou a violência são gratuitas, comoresultado de um consumo direto dos atributos e, simultanea-mente, da descarga de um potencial cheio de tensões nãosimbolizadas. Como exemplo de um e de outro caso, imagi-nemos para o primeiro o do próprio Dom Quixote — o lou-co idealista —, além daqueles em que o excesso de bagagemsimbólica advinda do fanatismo costuma levar a atos extre-mos como o suicídio em massa. Para o segundo, nada maiselucidativo do que a gratuidade dos assassinatos em série, oua recente onda de violência por parte dos jovens, nas escolasamericanas. Evidentemente, entre um e outro não temos pre-ferência por nenhum, embora a exceção fique por conta docavaleiro da Triste Figura, de cujos nobres préstimos este nossomundo anda tão necessitado.

Na evolução do sistema nervoso, o aparecimento dohomem não deve ser explicado apenas pela aquisição de al-guns genes acrescentados à bagagem de nossa herançaprimata, mas provavelmente pelo surgimento da linguagem,que possibilitou o registro das informações por parte da me-mória. Ora, já vimos que a técnica se desenvolvia, ao mesmotempo, com o progresso da linguagem. Mas enquanto a pri-meira, ainda não beneficiada pelo conhecimento científico,não resultava em produtos que satisfariam aos caprichos doser pensante, a linguagem foi a “serva” fiel e preferida deste.Se o homem não houvesse sentido uma irresistível atraçãopelos seus atributos mentais e colocasse a inteligência a servi-ço do corpo, talvez vivêssemos numa sociedade mais justa,ainda que, para o gosto da maioria, bem menos sedutora doque o mundo do super-homem. Mas não foi isso o que acon-teceu e, assim, a conseqüência mais importante foi que a lin-guagem deixou de cumprir bem o seu papel, permitindo quea ciência tomasse o seu lugar como provedora dos desejos do

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ser. “Praticar o ser pensante” poderia definir, doravante, oexaustivo fabricar daquela que abandonava a posição abstra-ta e inativa, tornando possível ao homem passar da simplestécnica a uma refinada tecnologia. Ao invés de continuar, depreferência, a alimentar-se e consumir-se simbolicamente atra-vés da palavra, o ser pensante começou a fazê-los diretamen-te nos produtos resultantes do emprego da ciência e da maisavançada tecnologia. Porém, antes que atingisse esse ponto,a identificação com o universo mental passou por uma fasedecisiva, uma espécie de encruzilhada e que pertence justa-mente à época de nosso filósofo.

Entre Erasmo e Descartes existe um fosso a separar ohomem que na transição da Idade Média para a Modernaainda se ressente do peso da armadura, lembrando-se da durarealidade da carne, e o outro que agitado pela vida urbanadas grandes cidades, tais como Amsterdã, se regozija no espí-rito da liberdade e do desenvolvimento. O comércio, que eraa tônica desse desenvolvimento, também faz parte da substi-tuição do consumo simbólico pelo direto, ou seja, do aumen-to desse último, em prejuízo do primeiro. Adam Smith, noseu livro Riqueza das Nações,52 já notava a existência de algu-ma relação entre a tendência humana para comerciar e tro-car objetos e a prática cotidiana e recíproca da linguagemverbal. Realmente, não deve ser uma simples coincidência oincremento do mercado em escala mundial, que nos dias dehoje parece estar atingindo o apogeu, a par da gradativa de-generação da qualidade literária dos livros, das letras dasmelodias e mesmo da capacidade de expressão, da fala. Sal-vo exceções, o fenômeno reflete a pobreza da capacidade dereflexão e expressão. Não é uma questão de quantidade nemde diversidade, afinal, nunca se falou, escreveu e compôs tantoe sobre tantos assuntos como agora, mas a produção espelhaas próprias limitações da época. Menos trabalhada e maisdigestiva, a literatura praticada hoje, apesar de abundante,leva mais à ação do que à reflexão, ao contrário das obras-primas do passado. Salvo, novamente, as honrosas exceções,basta recordar os romances atuais que, de forma análoga aos

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filmes chocantes, se apresentam pobres de simbolização dopotencial mental. Neles, a carne é sistematicamente negada,através do efeito contrário de uma superexposição de sua na-tureza e fragilidade, como nos enredos banhados em sangue eoutros horrores da mesma espécie. Outras vezes, a negação sefaz na insípida modernice de muitos best-sellers, contando ahistória não de personagens à semelhança de homens mas desuper-heróis, situados seus enredos nas vidas agitadas dasmegalópoles.

O contrário parece ocorrer na própria obra de Descar-tes. Não podemos nos esquecer que o discurso do filósofo,apesar de tratar-se da máxima identificação com o ser pensantee trazer em seu bojo o germe do mundo do super-homem,expressa um grande trabalho de caráter simbólico. Preste-mos atenção nesse detalhe. Por ironia, o discurso cartesianoparece até mais simbolizado do que os dos outros dois filóso-fos, Erasmo e Montaigne. Entretanto, quanto de negação dacarne ele contém!

Mas esse foi um tempo especial. A atividade simbólicaatingia sua plena maturidade no século de ouro espanhol eno teatro elisabetano, dos quais sobressaíam os gênios con-temporâneos de Cervantes e Shakespeare. A prosa filosóficajá brindara o mundo com Erasmo, Montaigne e por último opróprio Descartes. Tudo isso tornara-se possível com a in-venção da imprensa. A acessibilidade que ela proporcionavaao maior número de pessoas, às idéias e à linguagem de pen-sadores e ficcionistas, representava um acontecimento, atéentão, sem paralelo. Nos seus primórdios, entretanto, a im-prensa difundia essencialmente a qualidade simbólica quelevava à reflexão. Essa foi a época de nosso filósofo e jamaiso mundo experimentaria uma tal riqueza literária. Posterior-mente, com a era da comunicação em massa, revistas, livrose, principalmente jornais, começaram a perder em capacida-de simbólica para oferecerem, diretamente, os atributos di-gestivos do potencial, que veio desaguar no mundo que co-nhecemos. Dessa forma, a mesma imprensa que incentivou asobras-primas, paradoxalmente, também acabou contribuindo

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para estimular a ação, tornando a palavra apenas uma mer-cadoria a mais, para consumo.

“Eu não sou essa reunião de membros que se chama ocorpo humano”.53 Descartes não falava somente por si. Nãoera o único a negar a carne e a se identificar com o serpensante, isto é, não era o único a apreender o homem comoum ser dual. Sua época também não se resumia nos avançostécnicos da navegação, das armas de fogo e da própria im-prensa. Nem se alimentava, a identificação, apenas da cres-cente urbanização e do surto lojista, além da liberdade depensamento, como no caso da Holanda. Coroando de êxitotodo o processo, as ciências de Descartes e de Galileu acaba-vam de dar o tiro de misericórdia na esperança da identifica-ção humana para com o corpo, assim como ocorrera com oespírito. Dali por diante, esse corpo e o mundo que o rodeiaseriam vistos como res extensa e matéria quantificável, isto é,em suas qualidades primárias, independentes da percepçãodos sentidos que os captam simplesmente como carne e mun-do material: limites do ser humano.

A prova para o que afirmei sobre a dualidade cartesianacomo expressão da maioria de seus contemporâneos podeser encontrada na literatura daqueles séculos: o homem irre-mediavelmente dividido em ser pensante — exemplo dos ro-mances de cavalaria assim como, mais tarde, em muitas pe-ças do teatro elisabetano —, e corpo de necessidades, atravésdos anti-heróis da prosa picaresca. Ora, a verdadeira litera-tura é a manifestação das disposições de cada época, além,logicamente, de expressão de características humanas eter-nas e universais. Não existe carne nos fantasiosos romancesda cavalaria andante, nem no grande Hamlet, entre outrosexemplos do teatro inglês elisabetano, como comprovaremosno capítulo que fala apenas da literatura. Carne como sinô-nimo de necessidades vitais, fragilidade e finitude, tais comoencontramos nos romances picarescos. Nesses, o pícaro é oanti-herói e o romance é, do começo ao fim, o relato dasvicissitudes da carne. Em Hamlet, o quadro da mortandadefinal com seu excesso de sangue e violência não deve nos

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enganar. A carne, como tal, não se incorpora nos figurantesdesse morticínio, apesar de ocupar um importante lugar nasprofundas e belíssimas meditações do príncipe. Assim comoa fria exposição da morte e sua inesgotável diversidade —pelos aparelhos de TV mundo afora — serviu para nosanestesiar, banalizando seu horror, devemos encarar o tabla-do shakespeariano que se inunda de sangue, no final da peça.Não importa se essa cena era uma característica própria datragédia, no tempo do autor. Estamos interessados mais nascaracterísticas da época desses autores do que propriamenteneles. Desse modo, é que podemos apontar Dom Quixotecomo uma espécie de maravilhosa exceção, em que se encon-tram reunidos, num só romance e história, o corpo e o espí-rito, ainda que divididos no par protagonista Sancho–Quixote. Sancho, aliás, representa o maior se não o únicoexemplo de aceitação serena da carne, em toda a história daliteratura. O pícaro, reação ao desmaterializado herói dosromances de cavalaria, é a amarga conscientização da condi-ção física, tão amarga que se torna passível de negação. Ne-gação muito mais amarga do que irônica, como no exemploda exposição do corpo no Falstaff, de Shakespeare. Nele, aabundância caricatural da carne e de sua condição miserávelensejam o escárnio que deixa transparecer uma espécie derancorosa negação da mesma. Mas sobre isso veremos mais,em outros capítulos, no livro. Por agora, o que nos interessaperceber é a posição de Descartes como porta-voz dessa ten-dência de separação entre a mente e o corpo, que havia, poresse tempo, se intensificado.

Entre os corpos e o mundo, um número infinito defatos isolados se sucedem, sem nenhum nexo entre si. Sem-pre utilizando a memória, o ser pensante de cada indivíduofaz a ligação entre esses fatos, compondo um histórico pessoalcoerente onde integra suas ocorrências internas — pensamen-tos, sentimentos e imaginação —, às circunstâncias externasreferentes a sua própria vida. Nesta última, encontram-se orelacionamento com a família, amigos, conhecidos e, por últi-mo, o meio em que se vive. Assim parece ter ocorrido sempre,

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desde que o homem, expressando-se através da linguagem fala-da, deu início a um processo de crescente socialização. Passadosalguns milênios, com a expansão do mundo habitado e inte-grado quanto ao contexto social, político e econômico, a di-fusão da imprensa passou — principalmente a partir da datamencionada como a da propagação do livro —, a alargar ocontexto dessas histórias pessoais, ultrapassando as mura-lhas dos castelos medievais, o humanismo algo acanhado domundo renascentista e a noção limitadora de pátria, paradesembarcar, finalmente, num caminho que levaria o homema uma comunhão global com a própria espécie. Ora, a im-prensa sempre divulgou e divulgará idéias, mesmo atravésdo noticiário tido como o mais neutro possível. O conheci-mento do que ocorre, diariamente, no mundo, tem o efeitode influenciar nossas ações e pensamentos, porque no fundoas notícias trazem embutidas nos fatos as concepções e costu-mes de outros povos e nações. Isso vem ocorrendo com maiorintensidade nos dois últimos séculos, quando então parecehaver se iniciado o processo de uniformização. Hoje, com omundo inteiro ligado, parece-me que não é tanto a seme-lhança entre os povos o que partilhamos em comum masmuito mais uma espécie de loucura geral, antes um fenôme-no restrito ao indivíduo. Essa loucura que faz a cabeça daspessoas é como uma gigantesca onda à mercê dos caprichoshumanos; tudo varrendo e desmanchando com seu irrequie-to espírito adolescente; nada resiste a sua passagem, nenhu-ma verdade que se pretenda absoluta, porque tudo se tornarelativo quando deságua no próprio mar dos acontecimen-tos.

O historiador Will Durant, no sétimo volume de suacoleção A História da Civilização, contando-nos sobre a pro-fusão de livros que se derramou pela Europa, já em 1600,cita um escritor daquele tempo: “Uma das grandes doençasdesta época é a multidão de livros que, sobrecarregando detal forma o mundo, o impossibilita de digerir a abundânciade matéria inútil produzida e apresentada diariamente”.54

Parece-me razoável supor que a expansão e importância que

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a imprensa alcançou, nos dias de hoje, deve haver se iniciadopor volta do final do século XVI e princípio do século XVII,ou seja, o período que compreende a morte de Montaigne,juntamente com a difusão dos Ensaios, e o começo da traje-tória de Descartes.

Graças ao desenvolvimento comercial da imprensaadveio o aumento gradativo do histórico de cada um — an-tes provinciano e pessoal — até alcançar, no século XX, adimensão expansionista que a ciência e a tecnologia, apoia-das pelo efeito da globalização, inventaram para o mundo.Assim, cada vez mais foi-se ampliando o ser pensante, agorauniverso pensante, de maneira semelhante ao próprio uni-verso em eterna expansão, onde o núcleo — “material e cor-poral” — vai-se distanciando da consciência e aceitação des-se universo, com a transformação dos fatos em meras fitas;das peles em películas; da própria realidade da matéria domundo e da carne no delírio da realidade virtual.

A esmagadora supremacia da informação sobre a refle-xão, que a imprensa inaugurou com a popularização e multi-plicação dos periódicos, principalmente jornais, acabou au-xiliando a própria ciência e tecnologia na tarefa de “desma-terialização” do mundo real. Grande parte da prática dasimbolização, a literatura de reflexão — das antigas obras-primas literárias e das importantes concepções filosóficas dopassado —, foi sendo trocada pelo exercício direto dos atri-butos mentais, estimulado, num primeiro momento, pelonoticiário, e, num segundo, pela motivação das revistas demoda, fofocas; pela leitura fácil dos romances populares; best-sellers; manuais de auto-ajuda e uma variedade de outros es-critos digestivos. A diferença apontada entre a grande litera-tura e a medíocre é a de que a primeira acrescenta à pessoaque a consome algum conhecimento universal sobre a exis-tência, enquanto a segunda apenas a entretém. Ora, os pro-blemas oriundos da complexa constituição humana, em mentee corpo, sempre foram o grande tema da existência. Em tem-pos de literatura descartável, obras-primas como as deShakespeare e Cervantes devem continuar servindo como

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modelos não somente para a arte de escrever mas, também,como fonte de sabedoria profunda e inesgotável sobre a nos-sa singular condição.

A gratificação instantânea que essa leitura fácil propiciaapenas incrementa a identificação com o espírito que, comojá disse, anseia manifestar-se; assim, eis o nosso mundo, cadavez mais buliçoso e impulsivo. Repleto de protótipos do super-homem: homens de ação e menos de reflexão. MarshallMcLuhan, no já citado livro, conta-nos que “Nietzsche diziaque a compreensão paralisa a ação, e os homens de açãoparecem intuir este fato quando repelem os perigos da com-preensão”.55 Mas para agir de forma justa e ponderada é ne-cessário, antes, compreender e refletir! Desse modo, concor-do plenamente com ele quanto à observação feita, ainda queo impulsivo mundo do super-homem, de nosso livro, nãotenha sido inspirado no super-homem do filósofo alemão.

No livro História Natural do Homem, do professor ti-tular da Universidade de Paris, André Bourguignon, depara-mos com a seguinte afirmação a respeito das mudanças sofri-das pelo cérebro, quando da transformação adversa do meioambiente: “De fato, quando o ambiente humano não propiciano momento adequado, em quantidade e qualidade, aquilo deque ele necessita, o cérebro guarda a marca dessa carência,como se tivesse sofrido uma lesão”.56 A afirmação do profes-sor leva-me a pensar se o sensível mecanismo de interaçãomente–corpo não estaria sendo afetado pelo acréscimo in-cessante dos estímulos imateriais dos últimos tempos, obvia-mente, com muito mais intensidade nos derradeiros anos doséculo XX. Para comprovarmos essa observação seria neces-sário analisar algumas características da época em que vive-mos.

Sensibilidade é um termo que designa tanto a “Proprie-dade do organismo vivo de perceber as modificações do meioexterno ou interno...”,57 quanto a “Faculdade de experimen-tar sentimentos de humanidade, ternura, simpatia, compai-xão”. A correspondência entre as duas acepções do termo, nodicionário, reflete a estreita ligação entre a resposta orgânica

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aos estímulos — resposta essa fisiológica e direta —, e a ou-tra forma que, somada aos componentes psíquicos, resultanum sentimento, numa emoção, enfim na afetividade. Ora, seolharmos o mundo de hoje perceberemos que o estimulantemundo do super-homem acrescentou, em grande quantida-de, à sensibilidade pura e simples o sensacional e o desdobra-mento natural do sensacionalismo. Longe de se tratar de umproblema restrito à linguagem, o resultado da exacerbaçãode estímulos que nos excitam os sentidos a todo momento —como um acréscimo incomensurável de solicitação ao SNC— muito provavelmente vem cobrando o seu tributo, tantona esfera física, como na do sentimento e comportamento.Assim é que podemos confrontar o recrudescimento doestresse, de vários distúrbios de ansiedade e afetivos e o esta-do de agitação e impulsividade que faz de nossa época umperíodo conturbado pela violência geral e gratuita, à confor-midade de alguns sentimentos de humanidade não tão hu-manos assim, como veremos a seguir.

A intensificação das sensações que se dá através do usocontinuado e freqüente dos aparelhos e máquinas estimulan-tes de nossos sentidos parece estar embotando a sensibilida-de para aqueles sentimentos mais delicados e próprios deuma alma sensível. Concomitantemente ao efeito da utiliza-ção da técnica do mundo do super-homem, a exploração,por parte da mídia, do fato ou notícia que pode se transfor-mar em algo sensacionalista, também entra com seu quinhãode responsabilidade. Não que o homem tenha deixado de seemocionar e mesmo de se solidarizar. A impressão que temosé que, ao contrário, nunca a humanidade esteve tão próximae generosa para com o semelhante. Basta observarmos qual-quer programa de auditório de televisão para constatarmoso fenômeno. Entretanto, a uma análise mais profunda ficaclaro que o que subjaz nesta nova forma de sensibilidade éjustamente a perda ou o embotamento da capacidade de secomover espontaneamente. Os sentidos encontram-seanestesiados pelo excesso de estímulos imateriais, e divorcia-dos, muitas vezes, da própria realidade material. A televisão,

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com a prioridade do visual (e, em segundo plano a audição),sobre os outros sentidos; o computador (e, em especial, ainternet — que além do visual, se utiliza do poder mágico dapalavra, liberta dos limites da presença física do interlocutor;além disso, a um clique se torna o próprio “abre-te sésamo”para os caprichos da alma); todos os aparelhos e máquinasfornecedores dos atributos mentais tais como a própria tele-visão e o computador, os games, os filmes e a realidade virtu-al, produtores de ubiqüidade, instantaneidade, onipotência,onividência e onisciência, muitas vezes confundindo os sen-tidos ou os intensificando sobremaneira, como a realidadevirtual e os games. Aí se inclui, também, o que transportavelozmente o homem, como os carros, aviões, motos, brin-quedos eletrônicos de parques de diversões, esportes radi-cais, assim como, de certa forma, o que o transporta não tãovelozmente mas sem qualquer esforço físico, tais como eleva-dores e escadas rolantes.

Antes das máquinas, aparelhos e mecanismos produto-res de sensações e transporte, comover-se era a transcendêncianatural para o desejo por velocidade e todos os outros atri-butos do ser pensante. Agora parecem ser necessárias altasdoses de sensações ou de sensacionalismo para deixar o ho-mem enternecido e em estado de compaixão para com o seusemelhante. Somente isso explica a contradição flagrante ofe-recida pela indiferença cotidiana diante o sofrimento e a mi-séria do próximo, observados de perto nas grandes cidades,enquanto a mídia consegue o milagre de produzir solidarie-dade em milhões de telespectadores, a quilômetros e quilô-metros de distância da pessoa ou fato comovente.

Mas o excesso de movimento, velocidade e sensaçõesofertados pelo mundo do super-homem não prejudica somen-te a capacidade humana de transcender, já que, como sabe-mos, o problema não se restringe à área da linguagem. Arra-nha-céus, brinquedos emocionantes em parques de diversões,trânsito caótico e assustador às dimensões e estruturas corpo-rais do homem, aeroportos e aviões gigantescos etc. — o re-sultado da desproporção arquitetônica das grandes metrópoles

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somado à exacerbação dos estímulos imateriais, parece contri-buir para desequilibrar o delicado mecanismo que mantém ocorpo e a mente em estreita interação. Esse mecanismo, por sisó, frágil o suficiente para se ressentir das mudanças aparente-mente inofensivas de cada etapa do desenvolvimento, na his-tória da humanidade, vê-se agora abalado por uma avalanchede imaterialidade suficiente para soterrar a consciência docorpo, por natureza já precária. Bombardeados todos os dias,por todos os lados e de maneira insistente e com intensidadepelas máquinas, aparelhos e mecanismos produtores dos atri-butos psíquicos, não deveríamos nos surpreender com os efei-tos prejudiciais que esse consumo desmedido do potencialmental causa, simultaneamente, à linguagem e ao delicadoequilíbrio MC. A primeira — que, no fundo, é o produto sim-bólico dessa interação —, vê-se esvaziada na riqueza etranscendência de seus conteúdos, tanto na fala quanto na escri-ta, empobrecendo-se, assim como a realidade cultural que elaretrata. O segundo traduz-se no desequilíbrio físico-químico decada um, somando-se, no final, toda uma sociedade estressada,impulsiva, egocêntrica e com exemplos de agressividade.

Impossível mudar drasticamente o hábitat de um sercomo o homem — extremamente complexo —, sem alterar-lhe o equilíbrio entre as duas partes que o compõem. Nãopoderia resultar inócua a desproporção gigantesca que exis-te, hoje, entre os arranha-céus — construções de todos ostipos — e o corpo humano. Em sua intensidade e freqüência,o aumento significativo da maior parte das perturbaçõesdiagnosticadas como próprias da vida urbana agitada dosdias de hoje, isto é, o estresse, a ansiedade, a depressão, asíndrome do pânico, o transtorno obsessivo compulsivo e di-versas fobias têm sido associados, dentre outros neuro-transmissores, a problemas com a serotonina. A conexão en-contrada entre grande parte desses distúrbios e a deficiênciaou o aumento do neurotransmissor em questão parece tam-bém englobar, no primeiro caso, a violência e, no segundo, osprocessos patológicos cerebrais excitatórios, como o exemploda esquizofrenia.

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Ao invés de contribuir para a compreensão da corres-pondência existente entre o aumento da maioria desses ma-les e a agitação da vida contemporânea, a acumulação de umgrande número de dados científicos sobre cada um dosneurotransmissores e, em especial, da serotonina, parece ter,ao contrário, o efeito de dificultar uma visão geral do pro-cesso. Isso logicamente ocorre como uma conseqüência na-tural da especialização e fragmentação do conhecimento.

Ao analisarmos os males que nos afligem hoje, não de-vemos perder de vista que os fatores estressantes que desen-cadeiam distúrbios nos homens modernos atingem os mes-mos mecanismos aos quais seus semelhantes, desde a era dascavernas, eram submetidos. Falemos, mais uma vez, do me-canismo de sobrevivência que, no mundo do super-homem,mantém as pessoas em permanente situação de alerta, isto é,de estresse contínuo e desgastante. Naturalmente, os fatoresestressantes mudam ou se intensificam com o passar do tem-po. Atualmente temos um grande número de estudos provei-tosos sobre esses fatores e suas conseqüências, porém, é ne-cessário que tomemos muito cuidado na análise de cada umdeles. É preciso levar-se em conta outros fatores e não so-mente fatores circunstanciais já existentes em outros séculos,como, por exemplo, a separação dos pais, na causa de distúr-bios como a esquizofrenia e a depressão (que têm, de resto,comprovadamente, também um componente hereditário).Sabe-se que nem sempre as crianças foram bem tratadas ealvo da atenção e preocupação especiais por parte da socie-dade, como acontece em nossa época. Conforme pesquisasfeitas a respeito, há algum tempo, os filhos eram arrebatadosdo convívio dos pais, logo depois de nascidos, e submetidosa duríssimas e muitas vezes desumanas condições de existên-cia. Se fosse a separação dos genitores (seja por morte oudivórcio) a causa significativa desses males hoje — como in-dicam pesquisas recentes —, e haveríamos de constatar gera-ções e gerações em que a esquizofrenia e a depressão tives-sem aumentado de forma desproporcional, nessa fase da his-tória da humanidade em que era comum as crianças serem

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separadas do convívio de seus pais. Até onde sei, não existenenhuma comprovação de que tal fato tenha ocorrido, o quepoderia mostrar-se útil se fosse também pesquisado. Mas se aseparação dos pais ocorria — de forma maciça — em temposantigos, não podemos dizer o mesmo da exacerbação dosestímulos do mundo do super-homem. Esse, o único fatorque podemos com certeza atribuir exclusivamente ao nossotempo. Somente no século XX, e com maior intensidade nosúltimos anos, a humanidade conheceu e começou a desfrutarcom seu próprio corpo e na realidade material (e não apenascom a imaginação ou a linguagem), em larga escala, os atri-butos psíquicos da instantaneidade, ubiqüidade, onisciência,onividência, onipotência, supersentidos, velocidade e capa-cidade do vôo — através do cinema, da televisão, do compu-tador, do telefone, do carro, do avião, da realidade virtual eo sem número de aparelhos e utilidades da era da eletrônicae da informática.

Aos perigos naturais que cercam o homem, o mundocontemporâneo acrescentou um número muito grande de fa-tores e estímulos inadequados e mesmo francamente adver-sos ao corpo humano. Pensemos, outra vez, na arquiteturadas grandes cidades. Arranha-céus, shoppings, ruas, aveni-das, estradas, aeroportos, parques de diversões etc. — ogigantismo das construções modernas excedeu, em muito, aproporção da maioria das edificações do passado, quandoerguiam-se majestosamente edifícios e traçados urbanos à al-tura e amplidão da alma, sem contudo ultrapassar ou amea-çar em muito as limitadas dimensões e a fragilidade do cor-po. Nos tempos antigos as cidades e os monumentos eramprojetados para a harmoniosa convivência entre as duas par-tes que constituem o ser humano. A arquitetura da épocaenaltecia devidamente a alma, sem, contudo, intimidar o ho-mem em seu limite e fragilidade. Hoje, estamos diante deuma arquitetura inspirada na figura do super-homem. Andar evivenciar as megalópoles modernas parece impossível sem ummínimo e perturbador “estado de estresse contínuo”. Para mim,a acumulação dos fatores estressantes é que seria responsável

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pela verdadeira “epidemia” do estresse contemporâneo. Aolado do estresse e em estreita correlação com ele, podemosdetectar todas aquelas perturbações, citadas ainda há pouco.Todos esses distúrbios — componentes dos males modernose que parecem, de forma significativa, estar aumentando —,podem ser creditados ao bombardeio dos estímulos e à des-proporção arquitetônica das grandes cidades.

O LSD foi a droga amplamente utilizada no movimentoamericano da contracultura, ocorrido entre os anos 60 e 70.Denominado “o ácido da felicidade”, seu uso foi estimulado, naépoca, por filmes, moda, festivais, músicas e até por intelectuaiscomo o escritor inglês Aldous Huxley e o psicólogo americanoTimothy Leary. Passada a euforia inicial, quando, então, ao áci-do se atribuía a liberação da criatividade e do espírito, a drogafoi devidamente colocada em seu lugar como o mais poderosoalucinógeno criado em laboratório. No cérebro, sua ação se dá,principalmente, nas áreas correspondentes aos sentidos e no córtexsomato-sensorial, o analisador das informações sensoriais. É umadroga imitadora do neurotransmissor serotonina, ligado, comovimos, a todos aqueles distúrbios relacionados ao humor, alémda própria percepção. Perigoso para usuários com tendênciainata às psicoses, seu uso, hoje, restringe-se mais a algumas ceri-mônias místicas que buscam a transcendência. Em ação no or-ganismo, os alucinógenos, de maneira geral, misturam as men-sagens entre os neurônios, alterando os sentidos como a audi-ção, a visão e o olfato, além de modificar, também, o estado daconsciência.

Dentre as várias alterações decorrentes do uso do LSD,gostaria de focalizar as seguintes: no estado de desperso-nalização, um usuário da droga pode ser incapaz de determi-nar os limites do próprio corpo, assim como, também, ter asensação de deformação; na desrealização, não lhe é possíveldistinguir o sonho da realidade que está vivenciando no mo-mento. A confusão dos sentidos altera cores, formas, tama-nho e distância; sob o efeito da droga a realidade materialcircundante transforma-se constantemente, objetos mudamde lugar e cor, assumem formas abstratas, acontecem as

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sinestesias, os sentidos embaralham-se, “vêem-se” sons, “chei-ram-se” cores etc. A noção do tempo é distorcida, existe aperda de concentração e uma deterioração da capacidade dejulgamento. O usuário pode imaginar-se capaz de sair voan-do e, assim, pular de um prédio e realizar outras ações base-adas em falsos superpoderes. Outra reação seria a prolixida-de dos discursos, naqueles sob o efeito da droga. Falar profu-samente e de forma desconexa sobre os mais variados temasfilosóficos, morais e sociais. As mudanças de humor são, tam-bém, freqüentes e repentinas.

A interação entre o uso de alucinógenos como o LSD eo meio ambiente não pode ser negada. Foi nessa comunhãode experiências que o uso da droga passou a se denominaruma “viagem” boa, ou ruim. Na segunda (a ruim), o usuárioteme perder o controle de seu comportamento e pensamen-tos, podendo a droga levá-lo à ansiedade e ao pânico, a umestado de confusão mental, à sensação de morte iminente ouainda a uma depressão, com o risco de suicídio. Outras expe-riências malsucedidas provocam estados psicóticos semelhan-tes aos esquizofrênicos. Delírios de grandeza e de ser o pró-prio super-homem, sintomas paranóicos, depressão, agita-ção frenética ou estado catatônico, todos esses sintomas po-dem ser o resultado de uma “má viagem”. Foram constata-das relações entre o uso prolongado do LSD e um conjuntode sintomas e sinais ligados ao comportamento do usuárioda droga. São três as síndromes atribuídas ao uso constantedo alucinógeno: a extrema falta de motivação (a pessoa viveapenas o presente); o interesse pelo misticismo, pela magia,astrologia, telepatia e percepção extra-sensorial — denomi-nada síndrome psicodélica —; e um estado persistente deansiedade e depressão.

Uma observação mais acurada das características da so-ciedade que constitui o mundo do super-homem faz a expo-sição sobre o uso do LSD e os efeitos no comportamentohumano, nesse contexto, não parecer gratuita nem despro-positada. Porque se nos detivermos nos sintomas originadospelo efeito da droga — tanto na boa quanto na má viagem —

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ficaremos intrigados e mesmo surpresos com as correspon-dências e semelhanças entre eles e muitas das característicasda sociedade contemporânea. Também no mundo do super-homem parecem existir a “boa” e a “má viagem”. A boa con-segue-se através das estimulações das máquinas e aparelhosque nos fazem sentir super-homens e aí incluímos os velozesautomóveis, motos, asas-delta e ultraleves, brinquedos ele-trônicos de parque de diversões e esportes arriscados e radi-cais. Todos eles nos dilatam os limitados e precários recursoscorporais. Outras características, como a perda da imagem docorpo e as sinestesias podem nos ser oferecidas diretamentepela realidade virtual e, de certa forma, indiretamente por al-guns efeitos do computador, cinema e da própria televisão.

Produtores que são, esses aparelhos, de fantasiassinestésicas visuais, auditivas e táteis, podemos, curiosamen-te, usufruir dessas bizarrias de maneira indireta, ou seja, defora para dentro. Um exemplo das extravagâncias pode serencontrado comumente em qualquer clip musical, oferecidopelos canais de música da televisão, assim como nas experiên-cias com a realidade virtual e nos parques de diversõestemáticos dos EUA. E, de uma tal maneira nossa época assi-milou essas fantasias que, hoje, estranhos bonecos e figuras,constituídos parte gente, parte animal ou monstro, se encon-tram à disposição de qualquer criança, cuja imaturidade vai,certamente, contribuir de alguma maneira para que tais for-mas confundam a percepção correta da própria estrutura docorpo humano. Mesmo a experiência cotidiana da imagem,sobrepondo a visão sobre os outros sentidos, como ocorreno caso da televisão, já poderia ser compreendida como umaespécie de uso moderado e contínuo de alucinógeno. Assimocorre com todo e qualquer estímulo imaterial, isto é, desdevivenciar uma corrida de motocicleta ou de carro, até a ex-periência mais intensa de despencar de um brinquedo comoa montanha russa ou pular de ioiôs humanos, os chamadosbungee jump.

A correlação observada entre o consumo desses estí-mulos e muitos dos efeitos do LSD encontrou apoio, princi-

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palmente, no capacidade, já citada, de o poderoso alucinó-geno imitar o neurotransmissor serotonina, que atua, comosabemos, no humor e na percepção. Ora, ao humor e àserotonina também se acham ligados praticamente todos osmales dito modernos e que, como dissemos, englobam oestresse, a síndrome do pânico, a violência e a depressão.Como se estivéssemos, de maneira inversa, consumindo nãoexatamente a droga produtora de alucinações mas as própri-as alucinações e outros de seus efeitos, e nossa época, tantoem relação à boa como à má viagem, quanto aos seus efeitoscrônicos, poderia ser caracterizada não apenas como umaNova Era mas uma Nova Era Psicodélica. Assim como numusuário crônico da droga, não deve ser pura coincidência ofato de a aldeia global também ser tagarela, verborréica, inte-ressada sobremodo por percepção extra-sensorial, telepatia,astrologia, misticismo, magia, além de uma desmedida e di-fundida crença no poder mental. A sociedade como um todo,e não somente a juventude, é estimulada a um comporta-mento impulsivo, agitado, em que se privilegia o usufrutodos prazeres imediatos, desmotivando, conseqüentemente,os projetos a longo prazo.

Mais surpreendente é o paralelo que se pode traçarentre os efeitos da “má viagem” do LSD e os distúrbios domundo do super-homem. É tão grande a semelhança que, aolermos sobre os efeitos adversos do uso da droga, chegamosa ter a impressão que estamos lendo não sobre ela mas sobreas perturbações que têm aumentado e que são tão comunshoje em dia. Quase todos aqueles distúrbios do alucinógeno,já citados, estão igualmente presentes no agitado mundo dosuper-homem. Desnecessário, então, repeti-los. Basta rever oque já foi escrito, linhas atrás, a respeito da má viagem eestaremos, concomitantemente, lendo sobre os males moder-nos. Gostaria apenas de ressaltar a crença nos poderes supe-riores que leva o indivíduo — tanto o consumidor de LSDquanto o do mundo do super-homem —, a arriscar a própriavida, assim como a de seu próximo. Permanece inexplicável,contudo, a razão que leva os mesmos estímulos a produzirem

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efeitos opostos nas pessoas. Por que um se vê tomado pelopânico ou pela síndrome do pânico (má viagem causada peladroga, e pelo mundo do super-homem, respectivamente), eoutro salta do alto de um edifício ou se espatifa no asfalto,ao correr, de maneira insensata, pelas ruas ou estradas? Am-bos padecem do mesmo mal, do desequilíbrio na interaçãomente–corpo, ainda que apenas o segundo caso esteja basea-do numa crença inconsciente nos superpoderes, encontran-do-se com a capacidade de julgamento afetada, no momentodo acidente. Arriscar-se em esportes radicais ou em serviçosque exijam sangue-frio e coragem, como o de um policialdesativador de bombas, de um bombeiro, talvez sejam açõespositivas oriundas da “boa viagem”. Mas não podemos es-quecer que a mão que desativa uma bomba — sob outrascircunstâncias, mas os mesmos estímulos —, também pode-ria ser a de um assassino em série, ou a de um terrorista san-guinário. As causas apontadas como responsáveis pela vio-lência de criminosos, portadores de baixa excitação crônica,têm sido a disposição genética funcional, quantidades doneurotransmissor serotonina e a influência do meio ambien-te. Enquanto as duas primeiras têm sido devidamente anali-sadas, aventam hipóteses para as causas ambientais, sem, con-tudo, determinar qual o fator preponderante e a sua impor-tância. Existe uma curiosa relação entre tudo que vimos aqui.Descobri-la poderá ser a tarefa de muitos dedicados cientis-tas. Porém, não se poderá chegar a uma compreensão pro-funda sem uma visão distanciada do problema. A uma corre-ta distância o observador poderá avaliar de forma devida ainfluência dos estímulos imateriais, assim como tem notadoa da linguagem nas raízes da violência. A análise desses estí-mulos também servirá para o estudo dos distúrbios origina-dos pelo desequilíbrio psicossomático. Falando da linguagem,recordemo-nos que é hora de retornar — da hipótese sobreas semelhanças entre o uso do LSD e as características domundo do super-homem, que acabamos de ver agora —, aotema proposto sobre a imprensa, o papel da linguagem e,principalmente, ao engano de Descartes.

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Os comentários a respeito de uma afirmação do autorde O erro de Descartes transformaram-se nessa longa digres-são e isso se deve à complexidade do próprio tema. Comodeve ser da lembrança dos leitores, o autor do livro em ques-tão atribuía aos desdobramentos do pensamento do filósofoa responsabilidade pela continuidade do engano em separarcorpo e mente, engano este causador do esquecimento daorigem da mente num organismo frágil e mortal. Além disso,o escritor observava que para muitas pessoas as idéiascartesianas eram “consideradas evidentes em si mesmas”.58

Refletir sobre essas colocações do escritor foi a maneira queencontrei para chamar a atenção às razões que levam a maio-ria de nós, mesmo que imperceptivelmente, a considerar ocorpo e a mente como duas coisas distintas. Se a ignorânciaquanto à profundidade da interação mente–corpo poderiaexplicar o erro da percepção nos antigos, como justificar asua existência nos dias de hoje, em que a ciência nos faz co-nhecedores da unicidade do homem? Mas não está a própriamedicina dividida na medicina da carne e da alma? Basta umarápida pesquisa para constatarmos que a idéia do corpo e damente como coisas separadas subjaz na cabeça da maioria daspessoas, fazendo parte de muitas de suas manifestações, le-vando-nos a acreditar que talvez fosse mais sensato concluir-mos pela unanimidade do fenômeno. Ora, deve existir algu-ma dualidade no homem que justifique a concordância geralpara com o erro. Porém, antes que se descubra onde investi-gar essa dualidade, e para finalizar o longo e solitário debatecom o eminente cientista, seria proveitoso recordar o sábioconselho de Bacon para que, no entusiasmo do discurso, nãová o desejo passar por verdadeiro aquilo que apenas quere-mos que seja verdade. Embora seja possível comprovar a ten-dência geral à dualidade, nunca é demais lembrar ao leitor —e mais ainda à própria autora deste livro —, que as tentativaspara explicar essa tendência não passam de hipóteses. Masse, ainda assim, persistir no texto um apelo de ordem emocio-nal e com a qual não concorde a razão, só me resta procurarjustificativa na sabedoria de Dom Quixote, de que “a pena é

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a língua da alma. Conforme os conceitos que nesta se conce-berem, tais serão seus escritos”.59

O MONISMO QUE É AO MESMO TEMPO UM DUALISMO

Onde termina o corpo e tem início a mente? Após seidentificar inteiramente com o eu pensante, Descartes come-ça a penosa tentativa de separar o que seja a matéria do cor-po, do que ele entendia como puramente mental. Pode-seimaginar a inutilidade da tarefa se lembrarmos que mesmohoje — contando com tantos recursos da ciência —, o meioacadêmico ainda se vê em meio à polêmica questão da redu-ção ou irredutibilidade do mental ao cerebral e a um dualismode propriedades que é visto com desconfiança por sugerir,mesmo de longe, qualquer parentesco com o dualismo deDescartes. Mais prática em relação ao problema, a medicina,dirigindo suas atenções aos distúrbios resultantes da interaçãomente–corpo, cuida da compreensão das doenças e dosdesequilíbrios psicossomáticos e somatopsíquicos. Quem maisdevia interessar-se por tal problema — a Psicologia — parecehaver desistido de procurar os limites entre uma parte e ou-tra. Realmente, o bom senso falou mais alto nesta questão,pois a interação MC é tão íntima e dinâmica que esse proble-ma se afigura tão impossível como aquele do ovo e da galinha.

Porém, se o atual conhecimento da interdependênciaentre o físico e o mental faz com que não tenha mais sentidoprocurar pelas fronteiras entre a mente e o corpo dentro denós mesmos, quem sabe mudando a perspectiva pela qualobservamos a questão não seríamos mais bem-sucedidos? Aoinvés de estudarmos as relações mente–corpo dentro do ho-mem ou a partir dele, como fez Descartes, entre outros, pro-ponho investigarmos essas mesmas relações observando omundo que ele construiu. A mim, isso representa um grandeachado. Porque tentar delimitar mente e corpo dentro denós próprios é deixarmo-nos enredar pela complexainteração, ficando ao final mais confusos do que antes. Se

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podemos falar em algum erro de Descartes, trata-se justa-mente desse. Mas é justificável porque o mundo de sua épocanão propiciava tal conclusão. O contrário ocorre hoje. Anali-sarmos o mundo do super-homem — o que já estamos fazen-do desde o começo —, eis a proposta. Entretanto, é necessá-rio ressaltar que compreender melhor o homem de carne ealma analisando esse mundo não significa, necessariamente,que se tenha facilitado a tarefa, apenas que a tenha tornadoviável. O assunto é complexo e difícil e, antes de mais nada,exige uma tentativa de conceituação a respeito do que venhaa ser dualidade e monismo.

Há muito que os filósofos e, depois, os próprios psicó-logos vêm se alternando entre o dualismo, o monismo e ou-tras soluções mistas, encontradas para a velha e difícil questãodas relações entre a mente e o corpo. As posições assumidaspor eles, e suas respectivas soluções, só deverão nos interessarna medida em que se aproximem ou contribuam para o es-clarecimento deste trabalho, o que poderá acontecer em al-gumas partes do livro. Mas as soluções encontradas por essesilustres pensadores divergiram tanto de minhas idéias queisso me desobrigou da desgastante tarefa de uma exposiçãodidática sobre o problema, iniciativa sempre temerária, dadaa exigência de autoridade no assunto. A diferença no trata-mento da questão diz respeito, justamente, à mudança deperspectiva que propus logo atrás.

A dualidade mente–corpo pressupõe que existam duasnaturezas distintas em nosso próprio ser. Como a interaçãoentre os dois componentes dificultava o estabelecimento delimites entre um e outro, impedindo o reconhecimento dasduas partes de forma isolada, a solução encontrada por al-guns filósofos e, depois, psicólogos foi simplesmente ignoraruma parte em benefício da outra. A essa resposta à questãochamamos de monismo, materialista quando se reconheciaapenas o processo físico que se desenrola no corpo, e idealistaquando pressupunha somente a realidade mental, ou espiritu-al, independente da matéria. Mas a dificuldade persistia natentativa de encontrar soluções, quando o que estava em jogo

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era estabelecer com certeza os limites entre a matéria do corpoe o que se imaginava puramente mental. Esse impasse fez comque a questão, já espinhosa para a filosofia, se tornasse umaherança indesejável aos primeiros psicólogos, preocupados queestavam, como vimos, com uma definição científica para asua jovem fonte de estudos.

Hoje o dualismo pressupõe duplas diferentes ao parmente/corpo. Ora o interpreta como idéia e realidade, oraexperiência e natureza, ordem moral e ordem física. Tam-bém não lhe agrada definir posições, ao contrário dos anti-gos filósofos. No entanto, parece-me que retomar o verda-deiro par da questão é de suma importância. Reconhecermente e corpo como um problema que diz respeito direta-mente à condição humana é não apenas entender o alcanceda famosa afirmação de Descartes mas, principalmente, com-preender que a própria dualidade ou monismo depende doângulo pelo qual se encare a questão. Se procurarmos, comojá vimos, pelas fronteiras da mente e do corpo dentro denós mesmos, veremos que a íntima conexão nos fez seresúnicos e indivisíveis. Porém, se a busca se fizer exterior anós, ou seja, no mundo que vamos construindo à nossa ima-gem e semelhança, poderemos ficar surpresos com o para-doxo da realidade de que o homem é um ser dual e contra-ditório.

Essa hipótese — de que existe na condição humana umdualismo projetado no mundo do super-homem, coexistin-do com o monismo natural de sua própria constituição —, seapóia na constatação de que o homem se identifica plena-mente com o ser pensante, ao mesmo tempo que nega a suacarne. Para entendermos essa identificação é necessário ten-tar responder a uma questão fundamental, conduzindo o nos-so estudo à etapa seguinte: como enxergamos a nós mesmose o mundo? Tenho a impressão de que em certo “olhar deartista” se esconde a resposta para a identificação com o serpensante. Vamos a ele.

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O OLHAR DO ARTISTA

E eis o que a Dom Quixote lhe pareceu ca-valo ruço rodado, e cavaleiro, e elmo de ouro; poistodas as coisas que via, com muita facilidade as aco-modava às suas desvairadas cavalarias e mal-andan-tes pensamentos.

Dom Quixote, vol. I, cap. XXI, p.178.

Numa certa tarde de outubro de 1989, que até hoje meagrada recordar, encontrava-me no jardim de minha casa, ad-mirando descontraidamente a natureza. Não me recordo sechovera naquele dia mas provavelmente sim, porque o tempoestava fresco e as plantas pareciam emitir uma luminosidadeprópria de tais ocasiões, o que me fazia sentir prazer em observá-las. Talvez fosse a sensibilidade aguçada pelas idéias que havi-am brotado da leitura recente de Dom Quixote, não sei exata-mente o que emprestava àquela tarde um sabor tão especial,mas o fato é que me sentia no estado bem-aventurado de per-ceber o mundo à minha volta como se fosse a primeira vez.

Foi com tal estado de espírito que me encaminhei, na-quele momento, a um arbusto encostado ao muro do jardim,

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atraída pelo verde brilhante das folhinhas tenras que haviambrotado de seus galhos. Olhava com admiração as folhinhasverdes. No princípio sem pretensão alguma, mas depois, cu-riosamente, surgiu-me no espírito a idéia de observar o pró-prio ato de olhar para as folhas do galho, numa tentativa defixar a observação do objeto visto, como que assimilando arealidade de sua existência. Na verdade, procurava deter opensamento que haveria de captar a materialidade do arbus-to, interessada que estava apenas em sua concretude.

Fico imaginando quantas tardes aparentemente comunspodem haver contribuído para mudanças na vida de algumaspessoas. Particularmente em meu caso, a transformação mai-or já havia ocorrido alguns meses antes, quando da leiturado romance. Mas naquela tarde, ao olhar para as folhas ver-des do arbusto, trazia comigo uma questão intrigante a res-peito da identificação do homem com o universo mental. Aidentificação com a mente em detrimento ao corpo existia,para mim não havia dúvida alguma. Entretanto, não imagi-nava por que ela ocorria nem a maneira como se processava.Tinha a impressão de que era uma característica universalque se refletia continuamente na percepção que o homemtem do mundo e de seu próprio corpo. A intuição desse fe-nômeno deveria ser a responsável pela grandiosidade do li-vro de Cervantes. Certamente Dom Quixote é a caricatura doconflito, e o fascínio que as suas tresloucadas aventuras conti-nuam exercendo sobre nós, leitores, passados quase quatro-centos anos, confirma a suspeita.

Como dizia, observava o próprio ato de olhar para asfolhas do arbusto, numa tentativa de fixar a percepção doobjeto que estava enxergando. Foi então que, seduzidos peloverde maravilhoso daqueles galhos, uma grande quantidadede estímulos invadiu-me o espírito, naquele momento. Deonde vinham? Não sei. Sei apenas que pegaram o meu secoobjetivo pela mão e o levaram a passear pela floresta dospensamentos, emoções e fantasias. Desse modo, adormecidamomentaneamente para o objeto que havia decididopesquisar, despertei para outras sensações. Onde fora parar

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o meu espírito? Já não estava ali naquelas folhinhas, porquenão as percebia mais. Naquele momento, outros pensamen-tos, sensações, recordações e planos invadiram-me a alma.

Nesse exemplo em particular, a aventura, rica em ima-gens e sensações, acabou produzindo uma série de fantasiaspoéticas que não cabe aqui narrar. Para este livro interessamapenas as deduções suscitadas pela experiência daquela tarde.A primeira conclusão retirada dessa experiência que passei adenominar de “o olhar do artista” foi a convicção de que émuito difícil, talvez impossível, segurar verdadeiramente aobservação de alguma coisa, retendo somente o objeto visto.

Algum tempo se passou antes que pudesse entender ovalor real da experiência e que representa, em parte, oembasamento do próprio livro. Mas já naquele mesmo diapercebi que o pensamento do homem está comumente sujei-to a uma espécie de toque de Midas. Essa metáfora poderiaser compreendida, de uma forma bastante resumida e tosca,como o processo de contaminação da consciência e da razãopela corrente de pensamentos nascidos dos estímulos quechegam em nosso cérebro

ativando não somente os circuitos

apropriados a esses estímulos, como também aqueles famili-ares a nós por serem responsáveis por gostos, interesses ehistórias pessoais. Isso acontece porque o circuito percorri-do pelos estímulos passa sempre pela nossa memória,priorizando algumas dessas conexões mais do que seria oideal, em se tratando do objetivo da simples percepção deum objeto. Na comparação com o toque de Midas, podería-mos entender o símbolo do verbo “tocar” não apenas comoo significado de contato e conseqüente contaminação entreas idéias mas também com o sentido de produzir música. Eiso verdadeiro canto das sereias de Ulisses, aquele que nãopodemos ouvir sem que estejamos verdadeiramente perdi-dos. Em quase tudo o que o pensamento toca soa uma espéciede misteriosa harmonia que encanta e enfeitiça a razão, dei-xando-nos seduzidos mais pelos elementos subjetivos ligados,de alguma forma, aos nossos interesses conscientes ou mesmodesejos inconscientes do que pela mensagem propriamente dita

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ou, o que é pior, pela constatação da realidade material. Ouseja, estamos encerrados dentro de nossos universos psíqui-cos de uma tal forma que costumamos olhar para o mundo láfora achando que o enxergamos de verdade quando na reali-dade, na maior parte das vezes, estamos olhando para as pró-prias paisagens.

Se esse processo é necessário para o conhecimento e oreconhecimento de tudo o que vemos, ouvimos, tocamos,experimentamos ou aprendemos — o estímulo recém-chega-do à consciência segue um roteiro que inclui a memória —,por outro lado, diminui a capacidade de concentração queseria necessária à completa percepção de um objeto material.Como no exemplo daquela tarde, a dificuldade de concen-tração para o objetivo que tinha em vista devia-se à necessi-dade de que os estímulos da cor e da forma passassem, nocérebro, por caminhos que incluíssem elementos da memó-ria responsáveis pelo reconhecimento daqueles dados comopertencentes a folhas de arbustos. O caminho percorrido poresses estímulos despertaram não somente o reconhecimentodo objeto em questão mas também toda uma gama de quali-dades extremamente subjetivas, o que proporcionou oalheamento do objeto/objetivo inicial que era tão-somente aapreensão da materialidade das folhas do arbusto. Assim, antesde haver feito o verdadeiro reconhecimento da realidadematerial, a percepção ficara enredada pelas distraçõesadvindas dos estímulos que tocaram mais de perto elementosde minha memória, ficando perdida no meio do caminho.

Logicamente não se está sugerindo que o homem sejaincapaz de concentração mas apenas que tem de transpormuitos obstáculos para conseguir. A meditação é um exem-plo de como precisamos nos esforçar para manter a mentelimpa do turbilhão de pensamentos e desejos que normalmen-te nos invade o domínio mental, a fim de nos concentrarmosem uma coisa apenas. Sem esse esforço, estamos sempre cor-rendo o risco de perder a compenetração da realidade con-creta do objeto, restando dele apenas a representação. Ora,essa representação pode redundar em qualquer coisa, até num

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castelo de abstrações a respeito do objeto, menos no conven-cimento profundo de sua materialidade. Isso vai além de umasimples conscientização do objeto. Nem a percepção que te-mos de nossa própria materialidade corporal parece sufici-ente para nos convencer de uma vez por todas de sua exis-tência. Justamente porque estamos sempre ocupados comnossos pensamentos, enredados na teia dos desejos. Pareceser necessário um argumento mais forte como um tombo ouuma doença para nos conscientizarmos, de vez, de sua reali-dade concreta. Se apenas conscientes dos objetos não conse-guimos assimilar a sua materialidade, como ficamos quandodeixamos nossos pensamentos libertos de qualquerdirecionamento?

A resposta não é difícil de se obter. Basta a observaçãode um bate-papo entre duas ou mais pessoas. Como esse tipode conversa é livre e assim o pensamento flutua ao acaso, po-demos perceber o quanto de indeterminação e gratuidade ha-bitualmente governam a nossa atenção. Sim, mesmo sujeitosao determinismo psíquico que sempre comanda a escolha dospensamentos, subsiste ainda um elemento de gratuidade quandointeragimos com outras pessoas, na medida em que não pode-mos direcionar inteiramente o rumo de uma conversa, haven-do de nos contentar em retirar das idéias colocadas em pautaaquelas que mais de perto falam aos nossos interesses do mo-mento. Assim é que, pulando de um assunto ao outro, ao sa-bor da associação livre, qualquer pensamento pode servir de“gancho” para o próximo tema, por mais disparatado que seja.O fascínio que tais colóquios exercem sobre muitas pessoascostuma levar algumas delas a dar crédito maior que o devidoàs idéias que vão brotando do bate-papo, idéias que poderãoaté influenciar suas vidas, quando na verdade elas deveriamperceber o absurdo da situação. Isso só confirma o quanto édifícil para o homem manter a concentração e a objetividade.

Mesmo nas situações em que estamos aparentementeno controle de nossos pensamentos — quando movidos poralgum objetivo —, o fato de estarmos direcionando o roteirodessas idéias não nos deixa inteiramente a salvo dos perigos

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da alienação. Porque vamos nos desviando pouco a poucodo núcleo do objeto em questão, acrescentando-lhe novosdados — despertados pelas novas conexões que vão se estabe-lecendo — e, acima de tudo, fazendo a interpretação de todaessa massa de informações, pensamentos e sensações de acor-do com o nosso histórico pessoal, suscetível ao menor fatoremocional do problema. Resultado: a menos que estejamoslidando com algo exato como a matemática, por exemplo,grande parte do conhecimento, interpretação e julgamentoestão sujeitos ao erro e à incerteza.

Talvez pareça temerário tentar explicar de maneira tãocanhestra, precária e resumida tais processos cerebrais, quan-do, nos dias de hoje, a ciência nos tem acumulado de umassombroso número de informações precisas e detalhadas arespeito de qualquer assunto relacionado ao cérebro. Se ape-nas informações científicas fossem necessárias para se com-preender o processo de apreensão da realidade eu não teriacompetência alguma para abordar o tema. Porém, emboratenhamos que reconhecer a enorme importância e o valorinestimável dos cientistas que estudam o cérebro, produzin-do o conhecimento necessário para o tratamento de distúrbiosadvindos do mau funcionamento, acredito, sinceramente, quediante de nosso objetivo de observar a percepção da materia-lidade de um objeto, a ciência, mais que todos, encontra-seem desvantagem. Ainda que tenha recuperado para o corpoe precisamente para o cérebro a mente que vagava por aí,fantasiada de alma ou espírito, podemos desconfiar que pe-rante a percepção absoluta da matéria e em particular da car-ne, paradoxalmente, todo esse conhecimento não vale muitacoisa e ela parece não enxergar um palmo adiante do nariz!Salta aos olhos a contradição, quando observamos o quantoda produção tecnocientífica se volta contra a natureza e ocorpo. Tanto que grande parte de seu labor consiste em con-sertar os estragos feitos, como já foi dito antes. Assim, comoesperar que instrumentos de observação que analisam a ma-téria de uma perspectiva externa possam fazer o reconheci-mento da carne, se mesmo o tato — que deveria ser o elemento

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mais autorizado para a averiguação —, necessita da sensaçãoresultante de ser ferido, espetado, quebrado e espremido paraconvencer o homem de sua própria existência?

Em que momento a dinâmica mental, trabalhando como crescente número de informações, somadas à capacidadecriativa, atingiu complexidade suficiente para fazer desapa-recer o convencimento real da materialidade do objeto, dei-xando em seu lugar algo subtraído da verdadeira consciênciade sua materialidade? Talvez o momento exato tenha sido apassagem do cérebro primata para o cérebro humano. Massomos assim justamente porque somos humanos e não have-ria razão para escrever um livro somente para nos recordar-mos disso. A questão se complica quando pensamos no mun-do atual e em seus inúmeros estímulos à desmaterialização.

O fator de alienação da carne e da matéria que nos cercasempre foi o mesmo para o homem, desde os primórdios dahistória até o século XIX. A partir do século XX, porém, ainvenção dos meios de locomoção mais rápidos, de comunica-ção instantânea e a informática acrescentaram um excedenteindesejável de estímulos à desmaterialização, que penso nãohaver sido ainda suficientemente avaliado. O homem não mu-dou em sua essência mas o reforço oriundo da somatória des-ses estímulos fez com que o processo natural de alienação domundo material e do próprio corpo se acentuassem, extraor-dinariamente. Nos últimos anos, a excrescência dessa culturadesmaterializada originou uma inversão de prioridades: a cons-ciência dos direitos e obrigações inerentes à realidade da ma-téria vai cedendo o lugar não somente para a realidade virtualmas também à palavra. Sob o politicamente correto parece seesconder uma patologia desse tipo. Mas deixemos a análise dofenômeno para outra ocasião. Por enquanto, basta entender-mos que na percepção de um objeto existe sempre o perigo deacrescentarmos a esse objeto qualidades subjetivas, desfigurandonossa percepção do objeto de uma tal forma que o mesmo játenha se tornado outra coisa. Como naquela conhecida brinca-deira do cochicho, em que os componentes de um grupo ten-tam, um a um, murmurar o que escutaram ao ouvido da pessoa

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seguinte, num futuro não muito distante o último elo da corren-te poderá haver se modificado tanto que nele quase nada resteda conscientização da materialidade do mundo e da carne.

Não é à toa que o café sempre foi uma bebida popularem todo o mundo. Custa-nos manter a concentração, sendofácil deixarmo-nos evadir através das portas do devaneio. Osefeitos estimulantes dessa bebida, assim como de todas quetêm em suas fórmulas a cafeína, nos auxiliam a conservar aatenção, entre outras propriedades. Mesmo quando gosta-mos de nosso trabalho, a energia gasta para nos mantermosconcentrados nele é a razão maior da necessidade não ape-nas dos cafezinhos mas, para muitos outros, também do ci-garro. A fonte de distrações que cerca o homem vem se am-pliando enormemente nos últimos tempos. Parece-me queessas distrações originadas do excesso de estímulos que seacrescentam ao laborioso dinamismo do sistema nervoso cen-tral (SNC) contribuem, muitas vezes, para revestir muitascoisas de um falso sentido e importância, resultando numacrescente distorção do bom senso que aceita qualquer dispa-rate com o maior interesse, como se tratasse de algo quemerecesse a atenção. Esse me parece o fenômeno subjacenteà medonha degradação cultural que a era das comunicaçõestrouxe para todo o mundo civilizado. Quanto menos peso,menos matéria, maior a influência da desmaterialização e con-seqüentemente maior suscetibilidade à insanidade que impe-ra no mundo do ser pensante, quando entregue a si mesmo.A prova disso é a superioridade da televisão — como veículode degradação cultural — sobre todos os outros meios decomunicação. Mas um aparelho de TV ligado ininterru-ptamente reproduz o pensamento humano entregue a si pró-prio, de uma forma ideal ao eu pensante, isto é, sem nenhu-ma conexão com um organismo vivo, frágil e finito. A televi-são é o puro ser pensante dotado de todos os superpoderes!Num jornal, o papel de que é feito e ao qual temos que segu-rar para ler é materialidade suficiente para nos manter os pésno chão. Além disso, as palavras escritas ainda mantêm os elosexistentes entre a linguagem e o corpo. No rádio, ainda que

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um tanto quanto imaterial em relação à escrita, as relaçõesnão se encontram cortadas. Entretanto, dada a prioridade daimagem visual, diante da tela de um aparelho de televisão so-mos convidados a deixar que a “máquina de fazer loucos”pense por nós. Sim, máquina de fazer loucos se nos recordar-mos que ali se reproduz não apenas o mundo mental de umsó homem mas de dezenas, quem sabe de milhares de “eu”pensantes entregues às suas fantasias e tudo isso de maneiraininterrupta. O resultado da televisão — e não o trabalhoempregado em sua produção — assemelha-se de alguma for-ma à internet, que, como veremos na parte II, trata-se sobre-tudo de uma comunidade de espíritos. Porém, ela é muitomais alienante, posto que, além de interativa, tem seu alicer-ce na escrita e não na imagem. Agora voltemos a atenção aoque tratávamos antes de falarmos sobre a televisão, ou seja,dos estímulos à desmaterialização.

Natural que nesse processo o estresse e mesmo a alie-nação sejam o efeito perverso da crescente complexidade domundo. De fato, ainda traçando um paralelo com o dramade Midas — que padece da fome e da sede por causa de seuspoderes de transformar tudo o que toca em ouro —, a nossainfelicidade consiste em estarmos cada vez mais necessitadosda conscientização da matéria do mundo e de nossos corpose não conseguirmos satisfazer a essa necessidade, visto quequase tudo que a ciência toca se converte numa espécie devirtualidade. Junto ao progresso científico desenvolve-se, con-traditoriamente, também o universo do “tudo faz sentido”,algo que poderia ser entendido como uma espécie de senti-mento de coerência entre absurdos e que subjaz no surto dachamada Nova Era. Parece-me que isso se deve à expansãofenomenal da rede de intercomunicações neuronial, voltadamuito mais para o mundo interior do que para a realidadeexterna. Eis o zeitgeist de nossa época, o verdadeiro motorda aldeia que de global tem muito mais a loucura e o delíriodo que a sensatez.

O modo como nosso cérebro processa as informaçõesque ali chegam, despertando uma rede de circuitos, serve

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desde ao processo normal da percepção até ao acolhimentode idéias as mais insensatas. Essa falsa coerência muitas vezestem a capacidade de literalmente “fazer nossas cabeças”. Tudobem, enquanto estivermos interagindo com os aspectos sub-jetivos de nossas existências, fornecendo o tempero especialdas idiossincrasias de cada personalidade. Mas o caso mudade figura quando se trata de lidar com objetos compactos,palpáveis, materiais. Qualquer estímulo mais exuberante, mes-mo sendo natural como o verde maravilhoso daquelas tenrasfolhinhas, que despertou em mim uma torrente de idéias esensações, representaria um obstáculo à percepção fiel doarbusto, porque estaria somando à percepção elementos ori-ginados do mundo interior. Esse mundo pode ter um conteú-do bastante pessoal ou simplesmente pertencer ao universocultural da época. Tanto faz. Se continuamos destruindo opulmão da natureza devemos reconhecer a existência de al-guma coisa errada na percepção que temos dessa mesmanatureza, ainda que aparentemente apaixonados pelos ide-ais ecológicos.

O estudo que posteriormente fiz sobre a experiênciado “olhar do artista” embasou-se na constatação de que oato de se tentar deter esse “olhar para alguma coisa” nãopassa de uma tentativa frustrada, já que os estímulos que cor-rem o cérebro são de tal maneira velozes, ricos e variadosque não nos permitem reter a representação do objeto portempo suficiente para a real conscientização de suamaterialidade. Ao contrário, por mais que isso possa soarestranho ou desanimador para o nosso egotismo, a verdadeé que somos continuamente tragados pelos sentimentos, emo-ções e pensamentos, isto é, pelo dinamismo de nosso SNC.

Precisamos, algumas vezes, de nos deitar num divã deanalista para nos tornarmos conscientes do precário coman-do que exercemos sobre o rumo de nossos próprios pensa-mentos, sentimentos e ações. O processo de ser analisado éalgo como o despertar de um “sonho” ininterrupto, à procu-ra do autoconhecimento que é o benefício maior da psicaná-lise. Entretanto, embora o submeter-se à análise com um bom

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profissional tenha sempre se mostrado útil para aqueles quedela necessitam, uma experiência como a do “olhar do artis-ta” não exige que tenhamos passado antes por uma terapia.

Os objetivos e os resultados da psicanálise divergem daexperiência descrita. Na análise, tanto o analista quanto o ana-lisando se vêem mergulhados na correnteza do método da as-sociação livre — à procura de seus conteúdos inconscientes —, como detetives encarregados de flagrar emoções e desejosreprimidos. Essa atividade envolvente e fatigante não permiteque ambos os participantes da análise se tornem conscientesda primeira observação que deveriam fazer a respeito da sujei-ção ao inconsciente. Aliás, a origem das idéias que desviam anossa atenção — se do consciente ou inconsciente — não inte-ressa em nosso caso, particularmente. O que escapa à psicaná-lise e é importante observar é que, se nos deixamos levar pelospensamentos e seus caprichosos roteiros, não existe garantiaalguma de que estejamos compenetrados da materialidade dascoisas que nos cercam, assim como de nossa própria carne.Essa poderia ser a primeira observação a ser feita em uma aná-lise e a única que interessa para este livro.

Os estímulos logicamente serão mais eficazes em desviara nossa atenção quanto mais carregados estiverem de qualida-des subjetivas. Ora, como a psicanálise nos leva a descobrir,vivemos num mundo em que os verbos desejar, sentir e seemocionar costumam ser os verdadeiros motores por detrásde nossos pensamentos e ações mais racionais. Isso tanto con-tribui para as nossas misérias quanto para a suprema felicida-de e bem-aventurança. Porque se a rota percorrida pelas sen-sações muitas vezes nos leva para longe da compenetração damatéria, elas também são inspiradoras da música, da literaturae das artes. As antigas indagações do homem nem sempre fo-ram respondidas através de frias reflexões, em geral o foramquando, inspiradas num mundo natural de cores, sons e bele-zas, nasciam como mudas revelações nas obras de arte.

O problema é que hoje em dia o barulhento, irrequie-to e delirante mundo tecnológico acabou por abafar os har-moniosos e saudáveis estímulos advindos da natureza e das

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obras-primas. A arte produzida em nossa época e que se ins-pira nessa fonte de ruídos e imagens não tem como atenderàs nossas mais profundas e esquecidas necessidades. É numcenário triste desses, onde imperam não somente a artedescartável mas sobretudo o espetáculo grotesco e medíocrede grande parte dos programas de televisão, que vão se de-senrolando nossos enredos.

Assim é que vamos, distraidamente, nos afastando daboa e verdadeira música e literatura; nos esquecendo de comofazer e apreciar a verdadeira arte, porque os seus lugares vãosendo ocupados pelo “lixo” da cultura fácil. Não fazemosisso por mal. Não existe uma intenção predeterminada devulgarizar, massificar e deteriorar a cultura. A verdade é quefomos adormecendo com a cantiga de ninar do progresso,através das primeiras propagandas, dos enlatados, das nove-las, dos programas de auditório, da enxurrada de informati-vos e, assim, nos distanciando da genuína manifestação artís-tica, embasada no homem de carne e osso e na natureza. Aarte e a literatura atuais têm se inspirado muito mais no espe-lho do espelho do homem, e por isso é que vemos refletidanelas a figura pouco inspiradora do super-homem. Se tivés-semos a possibilidade de despertar desse sonho intermináveltalvez nos sentíssemos aliviados e ao mesmo tempo assusta-dos com a percepção da extrema facilidade em adormecer.

Olhamos para as coisas materiais como se elas não exis-tissem, porque estamos distraídos pelo fluxo ininterrupto dospensamentos. Mesmo quando nos fixamos nelas com um pro-pósito, costumamos nos admirar de suas qualidades ou nosperdermos nelas mais do que as observar de maneira objeti-va. Eis o verdadeiro ponto cego da visão do homem. A man-cha que nos impede de enxergar a matéria do mundo e a denosso próprio corpo.

Por que o homem depreda a natureza, sabendo da im-portância dela? Ora, aquele que pensou enxergar a árvoreapenas se encantando com o verde das folhas, na realidadetingiu com o vermelho das sensações a idéia que ele faz do querepresenta uma árvore, seduzido pela floresta de seus próprios

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pensamentos e emoções. Resultado: não enxergou verdadei-ramente a matéria concreta da árvore, nem da natureza. Eis amais importante conclusão que se pode tirar da experiênciado “olhar do artista”: olhamos para as coisas mas não asvemos em sua flagrante materialidade, perdidos que estamospela ininterrupta produção da fábrica de pensamentos. Essaa revelação mais intrigante a respeito de nossa identificaçãocom o universo mental e que, intuitivamente, pressentira na-quela tarde. O ato de admirarmos uma folha, por conseguin-te, pode apenas nos levar a abstrair da materialidade da ár-vore (o que, na maioria das vezes, infelizmente ocorre) ou,na melhor das hipóteses, fornecer material suficiente paracriarmos uma obra de arte. Se para tal aventura estivermos àaltura da tarefa poderemos compor uma sinfonia, escrever po-esias, pintar um quadro ou ainda interpretar a criação deuma obra de arte. Tudo isso é possível. Menos, provavel-mente, enxergarmos a própria árvore.

A experiência daquela tarde me ensinou, também, quea maioria de nós perdeu a capacidade de “olhar como sefosse a primeira vez” e portanto descobrir coisas por si mes-mo, sem precisar ser um artista ou cientista. A razão disso meparece o comodismo com que o mundo das comunicaçõesnos cercou o cotidiano, despejando-nos sobre a cabeça umexcesso de informações, desobrigando-nos de fazer desco-bertas por nós mesmos. Estamos tão pouco acostumados aver o mundo com nossos próprios olhos que uma experiên-cia dessa natureza é capaz de nos surpreender. Achando na-tural que a ciência se ocupe da matéria, não reparamos nascoisas que nos rodeiam, por nos parecer uma experiênciaóbvia e por isso mesmo sem sentido.

Poderia dizer-lhes, entretanto, que faz sentido e muitadiferença. Quando, passado certo tempo da experiência, com-prei um livro intitulado História Natural do Homem, umaparte do que li calou profundamente em minha compreen-são. Embora discordasse ou talvez não compreendesse algu-mas afirmações da conclusão, por me faltar conhecimentoapropriado na matéria, certas afirmações dele confirmavam

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as observações feitas naquele outubro. Na segunda parte dolivro o autor nos diz que o fechamento do sistema nervosocentral (SNC) do homem atinge cerca de 99,98% voltadospara si mesmo, ou seja, dedicados “aos comportamentos pró-prios do sistema”, e apenas 0,02% de “vias de entrada e desaída”,60 abertas ao mundo exterior. Isso significa, em últimaanálise, que estamos mais entretidos com o universo interiordo que realmente voltados para a realidade externa. É umfato biológico resultante da evolução da espécie e não umaquestão de escolha. A verdadeira abertura para o mundo ex-terior, como o autor nos faz ver, é feita através da linguagem,mas aí já não se trata de uma abertura para a natureza e simpara o mundo sociocultural.

Outra confirmação para a experiência daquela tardeveio de uma reportagem que li sobre a inteligência. No arti-go era citado um estudo que cientistas americanos haviamfeito a respeito do caminho percorrido pelos estímulos quechegam ao cérebro. A conclusão a que haviam chegado era ade que os estímulos nunca tinham um endereço certo e assimcorriam por variados caminhos, através dos neurônios, fa-zendo, às vezes, conexões que nada tinham a ver com o estí-mulo em questão. Entretanto, quando o estímulo tocava emdeterminados elementos da memória, particularmente signi-ficativos para ele, esse circuito se tornava mais ativo do queos outros, contribuindo assim para determinar a compreen-são ou mesmo a própria resposta do organismo.61

O artigo em questão apenas confirmava para mim, emlinguagem científica, a constatação a que já havia chegado arespeito da dificuldade de compenetração da existência ma-terial das coisas, como a de uma árvore, olhando, simples-mente, para as folhas verdes de seus galhos, como ocorreraem minha própria experiência. Embora todos saibamos da exis-tência das árvores — e conseqüentemente de toda a natureza— esse saber é inteiramente intelectual. Assim é que os estímu-los suscitados pela visão renovada de seus elementos, soma-dos, como já vimos, às nossas histórias pessoais e aos circuitosativados pelas circunstâncias do momento reproduzem, por

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assim dizer, uma árvore ou natureza únicas, a cada instante.Apenas isso poderia explicar o conflito entre o conhecimen-to aparente e a ação. Um homem que corre insensata e veloz-mente de carro pelas ruas ou estradas, correndo o risco decolidir violentamente com outro carro ou mesmo com umaárvore, como se não estivesse enxergando, lembrando ou con-vencido da materialidade das coisas, não exclui a possibilida-de de ser um defensor apaixonado pelas causas ecológicas —pressupondo uma profunda conscientização da existênciavegetal e, por extensão, do mundo material à sua volta.

A mesma alienação da matéria — agora especificamenteem relação ao corpo humano — está presente nas exaltaçõescom que certos ecologistas colocam o reino vegetal e animalacima de seus semelhantes. Esse o exemplo do lobby feito pe-los ecologistas em Washington e em Bruxelas contra osherbicidas que, utilizados pelas organizações de combate à fomenos países necessitados, resultariam no crescimento da agri-cultura. É a prioridade do verde em detrimento do homem decarne e osso. Comparado aos benefícios resultantes dos aler-tas contra a poluição e a degradação do meio ambiente, repre-senta uma contradição, visto que a consciência ecológica de-veria pressupor uma conscientização de que o homem depen-de da terra e de seus elementos, para viver. Talvez estejamosvivenciando a era da conscientização da existência do mundomineral, vegetal e animal que antecederá a mais importante edefinitiva para a humanidade, ou seja, a consciência do corpohumano. Esta próxima etapa somente se concretizará na acei-tação do corpo do outro. Enquanto ela não chegar teremos deconviver com as contradições, já que, por mais estranho queisto possa parecer, a consciência ecológica não significa, ne-cessariamente, a conscientização da matéria e muito menos damaterialidade do homem. Aliás, receio que parte do movi-mento ecológico — o segmento fanático —, represente umaprofunda negação da carne, sob a camuflagem do verde e davida. Porém, não acredito que isto se faça de maneira consciente,como, aparentemente, no caso da insensibilidade dos lobistaspara com a fome de milhões de pessoas. Na entrevista da qual

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retiramos o exemplo acima, diz o Nobel da Paz, o agrônomoamericano Norman Ernest Borlaug: “Esses ecologistas que vi-vem confortavelmente em Washington ou Bruxelas ... nuncapassaram fome”.62 Realmente, poderíamos aproveitar aconstatação do agrônomo americano para a nossa explicação.É simples. Quem nunca passou fome nem padeceu de outrosmales da carne terá maiores dificuldades em aceitar o corpode necessidades do outro, já que, por si só, a aceitação da car-ne está em oposição à identificação com o ser pensante. E quemestaria disposto a abdicar dos prazeres que advêm da identifi-cação, em favor do próximo?

Vivenciamos tão profundamente a inconstância de nos-sa vida mental, “pulando” de um pensamento ao outro, queaté o fato de constatarmos essa impossibilidade de determoso “olhar para algo” se perde no esquecimento, não nos per-mitindo retirar da experiência um dos conhecimentos maisimportantes para a nossa vida. Ambos, o livro e a primeirareportagem, citados, falavam dessa característica fundamen-tal de nossa mente e que eu compreendera fazendo aquelasimples observação, observação essa possível de ser feita porqualquer pessoa em qualquer tempo e lugar.

Mas, se a observação é simples, as conclusões que se po-dem extrair dela, entretanto, são complexas e surpreendentes,como vimos há pouco. Penso nunca ser demais recordá-las. Senão conseguimos olhar objetivamente para uma folhinha deárvore sem que nos deixemos arrastar por mil sensações, senti-mentos, lembranças, observações e juízos os mais variados, quemnos garante que estejamos “vendo” realmente não apenas umafolha mas a própria realidade material? Será que nos relaciona-mos com a matéria que nos cerca levando em conta a sua singu-laridade? Ou “viajamos” por essa constelação de distrações douniverso mental, que nos impede a conscientização do essencialda imagem vista ou da superfície tocada? Isto é, a constataçãoóbvia: a matéria existe; a matéria existe...

De fato, a matéria é real — e é por isso que dois corposnão podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo —,ainda que alguns queiram nos confundir passando correndo

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à nossa frente, em seus carros de metal, a mais de 60 Km/h! Amatéria é algo concreto, não queiramos verificar isso pesso-almente, embora a visão raios x e a laser, da ciência, a tres-passe com a mesma facilidade com que um espírito atraves-saria uma parede. A matéria é verdade pura e simples e nãohipótese que formulamos em pleno gozo da saúde, da juven-tude e da sorte, quando então tendemos muito mais parasuper-homens do que homens de carne e ossos. A matéria éuma triste constatação para os velhos e doentes que tiverampor sina adoecer gravemente, ou para os azarados que cruza-ram com aqueles outros que ainda não se haviamconscientizado de que a matéria fosse real.

Após a experiência de tentar “segurar o olhar para al-guma coisa”, podemos compreender em profundidade a des-confiança tanto de Sócrates como a dos sofistas — e posterior-mente Montaigne —, na capacidade de julgamento do ho-mem, baseada que está na percepção dos sentidos. Estes sãopassíveis de falhas e por isso podem estender e suscitar umarede de pensamentos equivocados. Assim, é possível tambémentender a loucura de que nos falava Erasmo, comoconseqüência da apreensão que se faz muito além da realida-de. Para nos mantermos com os pés fincados no chão seriamuito bom se tivéssemos, como Sócrates, um talento “descas-cador” de falsas verdades. Quem sabe, desse modo, podería-mos buscar pela essência das verdadeiras virtudes, encerra-das no autoconhecimento. Sem esse talento do sábio gregoficamos à mercê do “efeito Midas”. E assim, se tudo o que opensamento toca se contamina com a abundância de excita-ção, uma falsa conscientização como a que parece acometeros fanáticos ecologistas seria uma espécie de sobreposição desonhos, já que vivemos naturalmente adormecidos para a tristecondição humana. Contra esse “mal de Midas”, todos deve-ríamos nos precaver, sem exceção.

Embora a experiência possa acontecer a qualquer pessoae provavelmente já tenha ocorrido a muitas, ela é única eintransferível. Não se trata de ciência, nem existe nela nada demisterioso, apenas que essas coisas ocorrem espontaneamente.

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Desse modo, não existe aqui nada que sugira o “faça vocêmesmo”, tão comum em nossos dias. O “olhar do artista”não tem nenhuma pretensão de sair destas páginas. Ao con-trário, penso que seu limite é o livro, onde permanece comoo testemunho fiel da autora para o leitor.

Se a experiência é individual, por que falarmos dela?Ora, parece-me que sabemos mais sobre as longínquas estre-las do universo do que sobre a maneira como enxergamosverdadeiramente o mundo e nossos próprios corpos. Se umsaber intuitivo dessa espécie não pode nem deve ser apresen-tado como receita para se fazer em casa, o questionamentoque ele suscita, entretanto, pode se mostrar útil na medidaem que reúne um conhecimento dispersivo e só desigual naaparência. Esse conhecimento se encontra, hoje, em muitasreportagens de jornais, revistas, e até em alguns livros. Real-mente, podemos ler sobre o problema mente–corpo em mui-tos deles, não de forma explícita, visto que o retorno da ques-tão não parece haver sido notado como deveria, mas na es-sência de cada texto.

É hora de deixarmos o olhar do artista. Voltemos ago-ra a nossa atenção para as artes plásticas e seus representan-tes, principalmente para aquele que na visão desta autora é omaior de todos os tempos, Vincent Van Gogh. Através daanálise desse olhar especial poderemos compreender maissobre a atração que o universo pensante exerce sobre nós,pobres mortais.

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PEQUENO ESTUDO SOBRE VAN GOGH

Através de seu livro As vozes do silêncio, Malraux pro-curou descobrir o segredo que subjaz em toda obra de arte.Ele foi bem-sucedido em sua ambição porque acabou porintuir a essência desse segredo, vendo na obra de arte muitoalém da simples imitação da natureza, tal como pensou Platão.Também não seria apenas a expressão de um sentimento,emoção e impressão individual do artista — como imagina-ram Delacroix e Baudelaire —, nem tampouco a simples re-presentação do mundo mas a sua anexação.63 Embora apa-rentemente o crítico estivesse se referindo à liberdade do ar-tista em expressar seus sentimentos, podemos tomar suas pa-lavras ao pé da letra, enxergando no termo “anexação” nãosomente uma expressão de libertação mas de sensação de

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incorporação à coisa vista, tanto da parte do pintor que lo-grou transmitir essa sensação quanto a do observador, diantedo quadro.

Uma obra de arte é o testemunho flagrante da frustra-ção perante os limites físicos impostos à expressão plena doser pensante. É a prova do conflito e ao mesmo tempo asolução para o desejo de liberdade absoluta de movimentos,de fusão à coisa vista, às cores, à luz. A verdadeira obra dearte liberta o espírito dos limites impostos pela solitária pri-são carnal. Quanto mais o artista consegue compensar parasi e para nós — que observamos o quadro —, os anseiosfrustrados pela incapacidade de liberdade total de movimen-tos, de vôo e de fusão com a luz, mais sua obra atingirá aplenitude. Num primeiro momento, isso se torna possívelquando a pintura observada nos leva para dentro da tela.Essa ilusão de “penetrar” no quadro é tão importante queaté um artista pertencente ao Expressionismo Abstrato, comoMark Rothko, com a intenção de que o observador de seusquadros entranhasse nas suas cores, assim se expressou: “Pintoquadros grandes porque desejo criar um estado de intimida-de. Um quadro grande é uma transição imediata; leva-nospara dentro dele”.64

Se o quadro nos oferece a oportunidade de retorno àcena vista (ou imaginada, pelo artista) ou seja, a sensação depenetrar em seus domínios, de reviver a cena, poderemosnos encontrar diante de uma obra realista, em que a naturezaou a realidade foi imitada. Nesse aspecto, acredito que o ar-tista mais bem-sucedido tenha sido Vermeer, dentre os mes-tres holandeses. Mas se uma obra de arte nos oferece, alémda “penetração” na cena do quadro, ainda a sensação de muitomovimento, fusão e incorporação à coisa vista, através dascores e da luz, então estaremos, muito provavelmente, dian-te de um quadro da fase impressionista. Mais uma vez,Malraux intuiu corretamente ao apresentar Manet e Van Goghcomo os pintores que mais expressaram a liberdade de ane-xar o mundo à sua volta. Concordo novamente com o críti-co, dando ênfase, contudo, ao caso de Van Gogh.

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Através de citação do crítico de arte Greenberg, encon-trada no livro A palavra Pintada, do escritor americano TomWolfe,65 ficamos cientes da maior objeção que a arte abstratacontemporânea fazia aos pintores consagrados, a partir daRenascença. A verdadeira repulsa desses críticos e pintoresmodernos em relação às obras de arte dos mestres do passa-do seria quanto à ilusão proporcionada pela pintura em trêsdimensões, responsável pela sensação de movimento. Repul-sa essa não do público em geral, como acertadamente com-preendeu Tom Wolfe. Ora, a ilusão obtida através das trêsdimensões, responsável pela sensação de movimento como ode caminhar — encontrada em “A igreja de Auvers” —, pro-vavelmente é o fator mais atraente para quem observa umquadro. Como em grande parte das obras do impressionismoe, em especial, nas de Van Gogh, também não se pode deixarde assinalar a importância da sensação de incorporar-se àcena vista, às cores e à luz, sensações essas às vezes de grandeintensidade, inspiradoras de sinestesias, metáforas. Deve tersido justamente a impossibilidade de atender aos anseios doespírito por movimento e fusão — diante da visão de umapaisagem —, a motivação inconsciente e a fonte de inspira-ção do pintor frente à tela em branco. Desviando nossa aten-ção da antiga frustração pelo pássaro sem asas existente den-tro de todos nós, a resposta do artista à própria frustração éo oferecimento, através do quadro, da ilusão de atendimentodesses mesmos desejos por fusão e movimento. Eis a essênciadas obras-primas. O artista plástico que consegue ofertar ailusão compensadora inscreve a sua obra no tempo eterno,acima dos modismos que virão depois dela, indiferente, naatração que exerce sobre os admiradores, aos delírios dospróprios pintores e críticos.

Em relação ao corpo e à matéria do mundo, o caminhopercorrido pelas artes plásticas parece repetir a trajetória dacivilização. O impressionismo — e em especial Van Gogh,que foi muito além dele —, responde e corresponde à ansie-dade crescente do espírito que mais do que nunca tem pres-sa, tomando assento em carros e conduções cada vez mais

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velozes, preparando-se para decolar em aviões, máquinas vo-adoras, através da internet e da realidade virtual, das viagensplanetárias, até alcançar o reino da imaginação, longe da ter-ra, da qual sempre foi prisioneiro.

Van Gogh discordava da idéia de que o impressionismorepresentasse a última etapa na história da pintura, idéiaessa alimentada em seu tempo. Talvez isso se deva ao fatode ele próprio haver ultrapassado essa escola, despertandouma sensação crescente de maior fusão e movimento emseus quadros. Para mim, ele estava certo, porque seria ocubismo a reação marcante e definitiva à negação do corpoe da realidade material. Na ausência de máquinas velozes, oespírito que ansiava pelo movimento e pela luz encontraranos impressionistas e em Van Gogh a razão de sua expres-são maior. Os quadros do mestre holandês são puro movi-mento, fusão com as cores e com a luz. A atração pelo sol epela cor amarela encontram aqui a sua explicação. Nãopodemos compreender os delírios do grande pintor sem oentendimento da genialidade que o levou a se entregar to-talmente à pintura. Poderíamos até dizer que a sua loucuranão se trata da loucura comum, encontrada nos manicômi-os. Ele não é o exemplo de um louco que por acaso tornou-se um grande pintor, mas o estágio último que a pintura —leia-se, o desejo de expressão máxima do espírito pelo mo-vimento e pela fusão com a luz — alcançou, em todos ostempos. Para além de seus quadros — puro êxtase — en-contramos o rompimento com o corpo e com a matéria domundo, representado em Picasso e no cubismo. Para o ho-mem que contaria com meios de locomoção cada vez maisrápidos, e agora, também, com a informática e os meios decomunicação, pouco restaria às artes plásticas expressar doanseio primitivo, desde então atendido pelas máquinas.Deixando de expressar o conflito mente–corpo, ela passoua expressar a inconsistência e esterilidade de um ser pensanteque doravante negaria, em cada pincelada, quadro e teoria,obsessivamente, o corpo e a matéria do mundo real que ocerca.

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Diante de quadros do impressionismo e do cubismo —e em especial frente a Van Gogh e Picasso —, temos a impres-são de que, se no primeiro nosso espírito deslocou-se paradentro da tela e lá se contorce e se regozija em cores e em luz,do segundo tomamos distância, para perceber a mensagemde que ele não mais se encontra de forma voluptuosa naque-la pintura mas apenas intelectualmente, já que vemos os ob-jetos e as coisas sob várias perspectivas ao mesmo tempo.Mais um processo de descrição do que propriamente umasensação. Como se o quadro nos dissesse que o espírito cir-cundou a cena, posto que a vemos de todos os ângulos simul-taneamente. Notemos a diferença. Como se o quadro noscontasse e não que houvéssemos percebido através do pró-prio espírito. Estava plantada a semente das obras que, emconcordância com as idéias de Tom Wolfe, poderiam dalipor diante ser compreendidas como textuais.

Observando quadros de Van Gogh somos tomados pelailusão máxima de movimento dentro da tela, isto é, da inspi-ração do próprio pintor. Em Picasso, ainda que de uma for-ma suave porque ele representa o ponto de transição, somosapresentados àquilo que doravante seria a tônica das artesplásticas e que, como acabamos de ver, Tom Wolfe compre-endeu tão bem, ou seja, que a pintura deixaria de ser pictóri-ca para se tornar textual, ou palavra pintada. A importânciaa pesar sobre Picasso, Braque e os outros cubistas, assim comoem relação aos artistas plásticos que viriam depois, seria ofato de esses pintores haverem testemunhado a fronteira de-finitiva transposta pelo espírito que agora haveria de contarcom máquinas e artifícios para o atendimento de suas neces-sidades principais. Para além da perspectiva natural, percebi-da a partir da visão real de um objeto, a descrição da contem-plação vista sob todos os ângulos, simultaneamente, inscreveo registro frio da ausência do espírito na tela. Daquele pontoem diante, a maioria dos quadros da arte moderna seria aprova final e pouco inspiradora da morte da ilusão dos senti-dos, em prol do triunfo do intelecto. O testemunho da separa-ção do harmonioso casal — o espírito e o corpo —, corpo esse

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que, através de seus sentidos, propiciava de forma natural a“viagem” do companheiro sem necessitar, para isso, de má-quinas ou aparelhos virtuais. A triste constatação de que oespírito trocou o regozijo da ilusão de adentrar uma tela,fundindo-se com as suas cores e movimento, pelosbrinquedinhos medíocres do mundo do super-homem. SePicasso ainda nos comove com a sua pintura e é consideradogrande é porque representa justamente o ponto máximo e,ao mesmo tempo, único dessa ruptura, e as suas mulhereschorando poderiam refletir a tristeza por estarmos diante doflagrante do divórcio entre a mente e o corpo. Para alémdele, não haveria mais artes plásticas — enquanto expressãodo conflito MC — e assim, apenas as exceções de sempre,confirmando a regra. Embora a nova arte, embasada nas pai-sagens do ser pensante, às vezes nos surpreenda agradavel-mente, regozijando a alma que mergulha na tela que é so-mente cor e luz, ou seja, pura sensação, grande parte da pro-dução moderna se inscreve apenas como obra intelectual e,como tal, fria e objetiva.

Se em Van Gogh o olhar do artista nos leva a surpreen-der o movimento derradeiro do espírito na ânsia de expres-são de seus atributos, deveríamos procurar compreender comoesse espírito — agora praticamente divorciado do corpo, emvárias áreas da existência —, vê a matéria que o transporta eo torna viável. No quinto capítulo veremos isso detalha-damente.

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Por Deus, Senhora — respondeu Sancho —, que esse escrúpulo não deixa de ter sua razão deser. Diga-lhe Vossa Mercê que fale claro ou comoquiser: bem conheço que diz a verdade. Fosse eusensato e dias há que deveria ter abandonado meuamo. Esta, porém, foi minha sina, meu azar — nãoposso mais deixá-lo; tenho de segui-lo; somos domesmo lugar, comi seu pão, quero-lhe bem, é-meagradecido, deu-me seus burricos, e, além de tudoisto, sou fiel. Assim, é impossível que nos possa se-parar outro acontecimento que não seja o da pá edo enxadão do coveiro.

Dom Quixote, vol. II, cap. XXXIII, p.247.

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DE QUAL CORPO ESTAMOS FALANDO?

A identificação com os nossos corpos, que sempre foiprecária, diminuiu de forma substancial e decisiva com a in-venção de meios de transporte e comunicação mais rápidos.No passado, a incômoda realidade da carne era confirmadadiariamente pelas difíceis condições de locomoção, situaçãoque, de certo modo, mantinha o homem com os pés no chão,impedindo-o de sucumbir de vez à irresistível atração pelouniverso mental. A maior necessidade de caminhar a pé, asviagens inconfortáveis e fatigantes que consumiam muito tem-po daqueles que se aventuravam a ir de uma cidade a outra eos correios que demoravam a chegar ao seu destino, eramcircunstâncias difíceis que não permitiam aos nossos ante-passados se alienarem do corpo.

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O tempo foi passando e com ele vieram a invenção docarro e o melhoramento das estradas, assim como, depois,uma infinidade de produtos originados da avançadatecnologia. Sempre com o objetivo do transporte mais veloze confortável e a comunicação rápida entre as pessoas, o pro-gresso acabou ultrapassando as antigas limitações impostasao corpo. Em conseqüência, o homem foi sedesmaterializando na razão direta do aumento da velocida-de que os veículos atingiam e assim que os aparelhos destina-dos à comunicação começaram a fornecer atributos seme-lhantes aos mentais, como a instantaneidade, a ubiqüidade ea onisciência.

As distâncias nos parecem menores quando entramosem nossos velozes automóveis e aviões e, principalmente,diante da tela receptora de imagens e notícias que nos che-gam instantaneamente. Quanto mais os anos passam, fica-mos mais convencidos de que McLuhan tinha razão ao afir-mar que o mundo se tornara uma aldeia global. Mas se omundo ficou tão pequeno é provável que estejamos nos sen-tindo o máximo e essa presunção pode ser comprovada dia-riamente no egocentrismo de nossa época.

Outra característica atual é a grande atração que o cor-po e a sua imagem exercem sobre as pessoas e, assim, parecetemerário falarmos do corpo humano como algo grosseiro elimitado e com o qual nos desagrada a identificação. Nãoseria o contrário? Se existem adjetivos adequados para resu-mir a imagem ideal que o homem de nosso tempo faz docorpo, esses seriam “escultural”, “glamouroso” e “elegante”.Como pensar em imperfeição e limite, se ele está, como nun-ca, em alta no mercado das vaidades humanas? Basta ligar-mos a televisão, em qualquer canal, programa ou horário, elogo seremos lembrados que corpo é sinônimo de juventude,de formas perfeitas, de status, de estado de espírito e até defilosofia de vida. O corpo passou a ser o veículo de informa-ção e propaganda do sujeito. Nós, os da meia idade, sabemosdisso. Para sermos respeitados e dignos de atenção (já nemdigo obter sucesso), é imprescindível cuidarmos da aparência.

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Não tentarmos esconder, disfarçar ou atenuar a idade é umdeslize pouco tolerado em sociedade. É passaporte para oostracismo e alvo certeiro das mais indignadas repreensões.A cultura do corpo, que se expressa de forma maciça na exa-cerbação do sexo e da sensualidade, aponta para uma posi-ção oposta: o homem nunca foi tão identificado com o seucorpo, como agora. Além disso, o capitalismo e o consumismoparecem ser a prova final do materialismo do século XX.Diante de tantas contradições, só nos resta concluir que de-vemos estar falando de dois corpos distintos, e assim pareceoportuno repetirmos a pergunta que abriu este texto: de qualcorpo estamos falando?

O corpo, que é também o cartão de apresentação dapessoa, é o corpo ideal. O mundo tem caminhado para umprocesso crescente de individualização que pressupõe o culti-vo obsessivo desse corpo, entre outras coisas. Quando aqui sefala na identificação com a mente em detrimento do corpo, ocorpo a que se está referindo é aquele que já identificamos nosprimeiros capítulos, ou seja, o da carne e de suas tristes neces-sidades de sobrevivência e não esse último, o corpo ideal ouidealizado. Aquele que o homem usa para “malhar”, perfu-mar, se enfatiotar e assim desfilar perante o mundo — como seo corpo fosse uma vitrine — é um corpo constituído muitomais de fantasia do que propriamente de carne.

Nesse contexto e na maioria das vezes, a carne adquireuma conotação sexual. Longe de suas necessidades prementes,deselegantes e inadiáveis, a carne erotizada faz esquecer osperigos físicos, a dor, o sofrimento e sobretudo a morte. Essa éuma realidade que o homem não quer recordar, prefere até subs-tituir, pois o corpo real não se encontra à altura das exigênciasdo mercado dos desejos e ambições do ser pensante. Comouma rede de desejos que se reflete na expansão ilimitada darede de comunicações, quanto mais ela se expande do centro— corpo físico — em direção ao infinito (mente), mais a carneé negada e mentalizado torna-se o homem.

Essa sempre foi uma tendência humana que hoje só seintensificou: rejeitar a realidade da matéria grosseira e limitada

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em prol da ilusão de um corpo mais leve e nobre. Tanto ocorpo camuflado pelas extravagâncias da moda quanto ocorpo colocado em perigo de vida, voluntariamente, signifi-cam um corpo negado em sua essência. O corpo incomodapela sua condição de máquina de necessidades e triste lem-brete da mortalidade do homem. Embora hoje, através deestudos científicos, estejamos nos maravilhando com o deli-cado mecanismo que mantém um corpo vivo, da harmoniaque preside ao seu funcionamento, seus membros superiorese inferiores deixam muito a desejar frente à nossa obsessãopor precisão e velocidade. Se os programas de televisão so-bre o conhecimento pormenorizado que a ciência adquiriusobre o nosso organismo são capazes de nos encantar, issoocorre somente porque andamos motorizados por toda a ci-dade o dia todo, subimos de elevadores e escadas rolantes,enfim, contamos com uma numerosa lista de facilidades quenos levam a esquecer o quanto nos custaria a realidade devivenciar o corpo sem a ajuda desses tantos aparelhos e má-quinas.

Mas, poderão argumentar alguns, e as caminhadas di-árias, as academias e as competições esportivas, tão comunshoje em dia? O esforço despendido nessas circunstâncias nãoserviria para nos lembrar da realidade da matéria, ajudando-nos a aceitá-la? Se levarmos em consideração o desequilíbriomente–corpo, intensificado que foi, como já vimos, pela ar-quitetura desproporcional ao corpo e ritmo alucinante domundo do super-homem, realmente a prática de exercícios eesportes de forma regular auxiliam em muito para suavizaraqueles distúrbios originados ou acentuados pelo própriodesequilíbrio, ou seja, o estresse, a depressão, além de outrasdoenças afins. O fato de que movimentar mais enérgica eregularmente o corpo pode contribuir para atenuar esses dis-túrbios comprova que não somente a arquitetura e o ritmovertiginoso do mundo do super-homem auxiliaram nodesencadeamento desses males denominados modernos masque, também, as comodidades do mundo atual, fazendo dohomem um ser sedentário, tomaram parte no processo. Parece

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que vivenciar o corpo ideal em detrimento do corpo de carnedesequilibra a balança mente–corpo, expondo o homem a inú-meras doenças. Porém, apesar de ajudarem a restabelecer oequilíbrio perdido e a saúde abalada, os exercícios e esportesnão aparentam ser o suficiente para a conscientização do cor-po. Vejamos o porquê dessa contradição.

As caminhadas, corridas e exercícios que praticamosnas pistas e academias das grandes cidades, atendendo àmodelação da forma física e à conservação da saúde, são fei-tos de forma isolada e com um objetivo preciso. Não repre-sentam a vivência natural dos limites do corpo como seria secaminhássemos normalmente pelas ruas das cidades. Aliás,essas não seriam as monstruosas megalópoles que habitamosneste novo século, se fossem construídas para seres bípedes enão para híbridos de quatro rodas. Os exercícios e caminha-das praticados como algo destacado da prática cotidiana detransportar o corpo em velozes automóveis não podem seraproveitados como experiência dos limites da carne. O suore a fadiga decorrentes do uso intensivo dos músculos sãoimediatamente neutralizados e esquecidos, assim que termi-namos os exercícios. Caminhamos em uma determinada horado dia, com um objetivo preciso e apenas em certos lugaresdestinados para tal finalidade. Fazemos isso como quem ves-te uma camisa que, embora sua, não faz parte do corpo. Alémdisso, é-nos indispensável amenizar o cansaço advindo dosesforços fatigantes, distraindo-nos com a conversa de um com-panheiro de exercícios, com a música de um fone nos ouvi-dos ou com as imagens da TV, se nos exercitamos nos apare-lhos de ginástica. De qualquer maneira, a prática das ativida-des físicas, como uma experiência destacada do resto de nos-sas atividades cotidianas, não nos auxilia muito na aceitaçãodo corpo. Ao contrário, a concepção esquizofrênica que subjazno condicionamento físico isolado do ato de exercitar o cor-po, de forma natural, parece reforçar o homem quatro rodasque em seu automóvel respira aliviado por se ver livre dopeso corporal sentido durante a caminhada ou exercícios,praticados de uma forma intensiva e programada.

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As competições esportivas, que têm nas Olimpíadas asua expressão máxima, representam justamente a negaçãodos limites físicos, na tentativa desesperada por sua supera-ção. Porém, ainda constituem a forma mais saudável de sevivenciar o ideal de super-homem, porque nelas se praticamcom o próprio corpo as esperanças de atingir o modelo desseideal. Muito diferente do que acontece quando tentamos fa-zer isso através de botões, pedais, volantes e toda parafernáliaexigida para o exercício dessa ilusão. Enquanto a ciência nãoinventar atletas híbridos de máquinas e homens, e a sabota-gem às competições ficar restrita ao uso de substâncias proi-bidas aos competidores, poderemos manter acesa a chamado ideal das primeiras Olimpíadas. Mas já existe uma dife-rença entre as Olimpíadas de ontem e as de hoje. Nas gregas,cada coroa de louro reforçava o ideal da mente sã em umcorpo são, porque o homem daquela época vivenciava o cor-po de uma forma natural e o ser pensante se satisfazia apenascom a palavra. Hoje essa palavra já não nos basta e, assim,cada medalha de ouro e prata não deixa de reforçar, de certaforma, o mito do super-homem, da era moderna.

Embora tenha esclarecido nos primeiros capítulos queutilizaria os dicionários comuns da língua, e não os técnicosem Filosofia ou Psicologia, julgo oportuno, agora, traçar adiferença entre o super-homem nietzschiano e o que aqui éreferido. Nietzsche, que colocou o seu super-homem paraalém do bem e do mal, acabou descrevendo, em parte, o in-dividualismo exacerbado de hoje. O egocentrismo do homemmoderno é legitimado pelas tendências ao liberalismo eco-nômico e mesmo ao geral, que reina quase absoluto no mun-do de hoje. Sob o patrocínio desse liberalismo geral e doimenso mercado de superfluidades, ele se coloca como umautômato de seus próprios caprichos, necessitando apenasconsumir para afirmar-se soberano entre seus pares. Porém,nada da plenitude nem da potência do super-homemnietzschiano. “Para além do bem e do mal”, encontra-se, naverdade, o mercado que negocia suas mercadorias. Se o pri-meiro pode também ser considerado imoral, ao contestar os

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valores tidos como positivos, a renúncia, o sacrifício e as vir-tudes democráticas, em prol de uma moral egoísta e ambici-osa, o segundo é amoral no sentido em que a cultura do indi-vidualismo o transforma em um alienado em relação aos pro-blemas gerados por essa mesma sociedade em que vive. Masnão são essas as diferenças que nos interessa destacar, aomenos por agora. Importante apenas distinguir a diferençaem relação à força física, entre os dois super-homens.

Ainda que pese a frustração do filósofo pela sua precá-ria saúde, o super-homem nietzschiano se sobressai mais peloseu caráter amoral/imoral do que propriamente pelo atributoda força física. Eis a principal diferença. O super-homem cita-do aqui tem seu modelo no Superman da revista de quadri-nhos americana, cujas qualidades foram assim anunciadas:

Mais rápido que uma bala! Mais possante que umalocomotiva! Capaz de ultrapassar o mais alto arranha-céucom um simples salto! Vejam! Lá no céu! É um pássaro! Éum avião! É o Superman! Sim, é o Superman. Um estranhovisitante de outro planeta que veio à Terra com poderes ehabilidades muito além dos homens mortais. Superman, aque-le que pode mudar o curso dos rios, entortar barras de açocom as próprias mãos e que, disfarçado como Clark Kent,um bem comportado repórter de um grande jornal metropo-litano, trava uma luta interminável pela verdade, pela justi-ça e pelo american way of life!

O Superman não somente é o retrato do povo ameri-cano, assim como também o modelo do homem atual. Pu-lando como ioiôs ou correndo pelas pistas loucamente, va-mos tentando usar o corpo para expressar as peripécias doespírito, dignas de um super-homem. E se ainda restam acro-bacias mentais que não podemos realizar com o próprio cor-po resta-nos o consolo da onipresença, onipotência e onisci-ência oferecidas pela TV e pela internet.

A velocidade das cidades em que vivemos transformounosso cotidiano numa corrida maluca contra o relógio naturaldos movimentos corporais. É o descompasso entre a lentidão

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e o peso da carne e a rapidez e leveza das máquinas, desma-terializando coisas e fatos. A única saída para o impasse seriaimaginarmos um corpo que correspondesse melhor a tantaimaterialidade, um corpo mais flexível, rarefeito e ilimitado. Defato, como já vimos, esse corpo já existe em nossa mente e, nafalta de uma denominação melhor, o chamaremos de imagemdo corpo, corpo idealizado, ou, simplesmente, incorpóreo.

Somente com um corpo assim extraordinário podería-mos viver num mundo projetado para super-humanos. Oscarros mais velozes, os aviões supersônicos ou o fantásticouniverso das telas de computadores e televisões são a equiva-lência aproximada para os pensamentos que voam e detêmpropriedades imateriais e divinas como a onipresença, oni-potência e a onisciência. Para vivenciarmos esse mundo cul-tural paralelo ao da natureza necessitamos de um corpo quenão o contradiga com a sua materialidade grosseira e limita-da. Do contrário, como praticar ações temerárias, desde aspouco comuns, tais como pular de grandes alturas como ioiôshumanos ou correr de forma alucinada pelas estradas, até asmais corriqueiras como a de atravessar ruas e praças movi-mentadas na hora do rush? Como simples mortais sequer tería-mos coragem de sair de nossas casas para enfrentarmos o coti-diano das grandes cidades, porque estaríamos conscientes doperigo que elas representam para as nossas frágeis carnes.

A realidade poderia ser outra se fosse possível medircom nossos passos a veracidade do mundo em que vivemos,como se fazia antigamente. Atravessando as cidades a pé, sen-tindo o peso de nossos corpos e vivenciando o relógio natu-ral dos movimentos, ficaríamos cientes da influência que aidéia de aldeia global costuma refletir em nosso cotidiano,fazendo o mundo nos parecer menor. Isso não passa de umatola ilusão. O mundo continua tão vasto e inóspito à nossafragilidade material como sempre. Diga-se de passagem, muitomais perigoso do que antes.

Andar a pé, hoje, é quase impossível. Com as cidadesvoltadas muito mais para o universo das comunicações e davelocidade do que para o homem de carne e ossos, a extensão

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desproporcional aos corpos e as ruas perigosas inviabilizam oteste definitivo da realidade. Porém, alguns poderiam questio-nar, e quanto às cidades pequenas? Se os seus habitantes levamuma vida mais tranqüila, vivenciando com mais naturalidade ospróprios corpos, certamente que não valeria para eles o que foiafirmado aqui. Embora a freqüência e a intensidade dos malesmodernos, nessas cidades, devam ser menores, não sei se as pes-soas que vivem nesses lugares realmente se encontram protegi-das do estresse, assim como de todos os outros distúrbios oriun-dos da vida agitada dos grandes centros urbanos. Se possuemmais consciência de sua materialidade e, conseqüentemente,vivenciam menos o super-humano, não podemos nos esquecerda existência dos carros e principalmente da televisão, detalheque já foi destacado em capítulo anterior. Onipresente como é,mesmo numa cidade em que não trafeguem carros, não se podeexcluir a possibilidade de sua poderosa influência. Somente atelevisão já é suficiente para reforçar o super-homem em cadaum, em detrimento do homem de carne.

Pouco vivenciamos as grandes cidades com a sola dospés, assim como, também, pouco as conferimos com a preci-são dos cinco sentidos. Entre elas e a nossa percepção seencontra a ciência. Ela é a intermediária entre a mente e arealidade material, inclusive nossos próprios corpos. Seus ins-trumentos são agora os nossos sentidos e, por isso, percebe-mos a matéria muito além de seus limites normais. Essa per-cepção super-humana nos confunde quanto ao reconhecimen-to das limitadas condições da carne. Esse é o motivo pelo qualnos acidentes graves ficamos com a sensação de que algo quenão sabíamos nos foi revelado. Os ferimentos físicos resul-tantes nos transformam, nunca mais seremos os mesmos.Realmente, todos aqueles que passaram por tal experiêncianos falam disso. O que será possível saber apenas depois desofrer um grande trauma físico? Penso que para a questão sópode haver uma resposta e ela nos diz assim: que essas pesso-as que passaram por um grave acidente, como por exemplo,a queda de um avião, tornaram-se conhecedoras de que pos-suem um corpo limitado que haviam esquecido ou negado.

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Entretanto, devido à tendência humana em mentir atépara si próprio ou por razões de sobrevivência, o relato des-sas pessoas não costuma mencionar, de forma explícita, ofato de que agora reconhecem o corpo frágil e mortal, prefe-rindo a expressão duma espécie de eufemismo tal como “oreconhecimento de um valor maior pela vida”. Ora, a verda-de é que se tornaram conscientes da carne, tanto que a maiorlição que costumam tirar da traumática experiência é o bomsenso quanto às verdadeiras prioridades da existência. Po-rém, se se confessassem assim, provavelmente não teriam maiscondições de continuar vivendo na era tecnológica. De qual-quer forma, o fato continua sendo este: tornaram-se consci-entes de seu corpo. Esse corpo não voa; ora, por que, então,entraram em um avião? Resposta: porque a física, atravésdos conhecimentos da aerodinâmica, desviou-lhes a atençãoda constatação do óbvio. Enquanto fazemos viagens bem su-cedidas a contradição não nos incomoda, visto que, em pen-samento, também “voamos”. Além disso, nunca entramosnum avião com os nossos pesados e frágeis corpos e sim comos nossos corpos idealizados, ou incorpóreos. Eles são muitomais nobres e leves do que o daqueles que ficaram plantadosno chão, impossibilitados, pelo medo, de serem transporta-dos por um avião. Esses costumam ser chamados de fóbicosou tomados pela síndrome do pânico. Mas isso é uma outrahistória, que já comentamos. Por enquanto, basta pensarmoso quanto essa “alegre” e muitas vezes recreativa ciência temdesviado as atenções de nossa materialidade. E assim vamosnós. Imobilizados confortavelmente em velozes automóveisou nas alienáveis poltronas voadoras, correndo pelas ruasdas cidades, dos céus e das telas, vendo o mundo passar atra-vés dessas janelas, como um sonho do eu pensante. Vivendode forma alucinante, completamente alienados da realidadebrutal da carne.

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— Pois o mesmo — continuou Dom Quixote— acontece na comédia da vida, onde uns fazem opapel de imperadores, outros de pontífices e, emsuma, de todas as figuras que numa comédia se pos-sam introduzir; porém, chegando no final, que équando se acaba a vida, a morte a todos lhes tira asroupas que os diferenciavam, e na sepultura ficamiguais.

Dom Quixote, vol. II, cap. XII, p.86.

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A RELAÇÃO DA MOEDA COM

O CORPO EM SOCIEDADE

Um episódio antigo, narrado por Xenofonte, um dosbiógrafos de Sócrates,66 parece adequar-se perfeitamente aeste capítulo. Trata-se de uma conversa que o filósofo tevecom o sofista Antifão, e, pela importância que essa narraçãotem para o livro, talvez seja citada mais de uma vez.

Conta-nos Xenofonte que, certa vez, Antifão criticouSócrates por não cobrar por suas palestras filosóficas, comoera costume dos sofistas. Observou ele que, ministrando afilosofia de forma gratuita, ela não contribuía para a felicida-de do filósofo que vivia miseravelmente, em péssimas condi-ções materiais. Se cobrasse por elas, teria vida mais indepen-dente e agradável. Sócrates respondeu-lhe que, ao contrário,era livre para conversar com quem lhe aprouvesse, porque

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não ficava obrigado a falar por dinheiro. As privações não oimpossibilitavam de sair de casa, pois certos exercícios forta-leciam o físico. Diminuir o atendimento às necessidades fa-zia o homem mais apto a servir aos amigos e à pátria, do queatendendo aos prazeres do corpo, e isso é que seria a verda-deira felicidade.

Numa segunda conversa, Antifão insistiu que se Sócratesera justo não parecia, entretanto, sábio, porque não aceitan-do dinheiro por suas lições demonstrava ignorar o que elasrealmente valiam, visto que sua casa e seus pertences não osdaria a ninguém, nem os venderia por um preço inferior aoreal. Sócrates rebateu dizendo que aqueles quecomercializavam com a sabedoria se prostituíam e eram cha-mados sofistas, ao passo que o amigo da virtude ensinavagratuitamente, pois que era fiel aos deveres do bom cidadão.

Esse episódio ocorrido entre Sócrates e um sofista ser-ve bem ao nosso texto porque nos auxilia na compreensãodas diferenças entre o corpo real e o corpo ideal. Vamos àprimeira conversa: Antifão critica Sócrates por não cobrarpor suas lições filosóficas, quando vivia em difíceis condi-ções materiais. Realmente,

sabemos que Sócrates levava uma

vida extremamente regrada e sóbria. Seus pertences se resu-miam a poucos objetos, apenas os indispensáveis. Servia-sede alimentos simples; comia e bebia com moderação; o su-pérfluo lhe parecia prejudicial e indesejável, Porém, não ven-dendo a sua sabedoria era livre para conversar apenas comquem desejasse. Eis a primeira lição a ser extraída do episó-dio: a verdadeira liberdade do espírito não depende de pra-zeres materiais, ou seja, Sócrates não mistura com o serpensante nada que venha a pertencer ao mundo físico.

Mas a coisa parece complicar-se um pouco no segundocaso narrado. O sofista acusa-o de desconhecer o valor realde suas lições, visto que sua casa e seus objetos materiais nãoos daria a ninguém, nem os venderia por um preço inferiorao que valiam. Ao ignorar a comparação feita entre as liçõesfilosóficas e os seus pertences, Sócrates dá a impressão denão aceitar a provocação do sofista. Prefere qualificar de

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mercenários aqueles que negociam com a sabedoria, enquantoo amigo da virtude ensinava gratuitamente, como um verda-deiro cidadão.

Para nós, que temos visto a questão mente–corpo sobnovos ângulos, a explicação que justificaria a atitude deSócrates, criticada pelo sofista, seria a seguinte: a acusaçãode Antifão não tinha fundamento, isto é, o filósofo não des-conhecia a importância de suas sábias conversas. Não se tra-tava de uma questão de desconhecimento mas sim de valori-zação. Para o filósofo os produtos do espírito não equivali-am às coisas materiais. Sua casa e seus pertences tinham umvalor comercial definido, incontestável, porque deles neces-sitava para sobreviver. Mas os produtos do ser pensante nemsempre eram verdadeiros e essenciais. Eles podiam enganarcomo no caso dos sofistas, que se serviam da relatividade dasidéias para questionar os valores morais e ainda usufruir lu-cros. E mesmo quando fossem verdadeiros — como na pro-cura de Sócrates pelas virtudes —, o pagamento pelos servi-ços intelectuais não poderia ser o dinheiro. Pensamentos econvicções não eram equivalentes ao mundo material, aindaque na condução dos negócios desse mundo o afetassem. Asqualidades imateriais de suas sábias lições somente poderiamser pagas pela esperança de transformar os homens em seresmelhores do que eram!

Antifão é que estava enganado. Sócrates não era nenhumtolo que não soubesse o valor das coisas, tampouco um infelizque sofresse com a privação de bens melhores do que aquelesque possuía. Ele vivenciava apenas seu corpo real e não o cor-po ideal, como os sofistas. Comia e bebia sóbria e moderada-mente, e as poucas vestes serviam apenas para a finalidade aque foram confeccionadas, isto é, para cobri-lo e protegê-lodo clima. Em seu estilo de vida não era escravo do estômago,das vaidades nem dos deleites. Não alimentava o corpo ideale assim se achava mais preparado para a prática das virtudes,servindo à pátria e aos amigos. Era verdadeiramente feliz,porque seus prazeres nasciam da esperança de tornar, a elepróprio e aos outros, criaturas melhores, e não da sofreguidão

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pelas coisas materiais. Eis o verdadeiro homem. O equilíbrioentre o corpo e a mente sem o desvio pelo corpo ideal. Ocorpo que, na maioria das vezes, corrompe, prejudica einfelicita.

A tradição guarda uma imagem depreciadora dos so-fistas, em contraste com a dos filósofos. Mas quem somosnós para julgá-los? O mundo que no discurso tece louvoresàs virtudes socráticas mas na prática vivencia o modo de serdos sofistas se encontra hoje, mais do que nunca, à mercê daimagem do corpo e de seus caprichos.

Ao introduzir os conceitos de corpo de carne, corpoideal e agora corpo em sociedade ou corpo social, não tenhode forma alguma a intenção de extrair dessas simples refle-xões um sistema de idéias. Antes de mais nada porque, comojá foi assinalado no prefácio, a falta de competência para taisempreendimentos faria dessa temerária iniciativa apenas umatola pretensão. Além disso, o esforço gasto na tarefa serviriapara contradizer o objetivo fixado desde o início para estetrabalho que é não se deixar sucumbir ao fascínio do univer-so pensante sempre em contínua expansão. Quando o que sepretende é o contrário, ou seja, recordar ao homem a cami-nho do super-homem a fragilidade e finitude de que é feito,cabe à autora simplificar e delimitar o que por natureza écomplexo, procedendo à análise parcial de alguns conceitos,com a finalidade de introduzir modificações necessárias oufazer comentários sob outra perspectiva. Assim é que o con-ceito de corpo em sociedade, ou tomando emprestado o ter-mo já existente — corpo social —, é visto neste livro como arede de relações estabelecidas entre os homens, a partir dotrabalho e das trocas de mercadorias e serviços realizadosentre si, com o objetivo de suprir as necessidades vitais dasobrevivência. Seria um símbolo correspondente a essa redee, embora seja uma metáfora, é fundamental não nos esque-cermos de que na base do corpo social em questão o que ésignificativo para o conceito é o corpo, enquanto dispêndio deenergia cotidiana no trabalho necessário à sobrevivência. Nãonos interessa aqui o papel do Estado, tal como encontramos em

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Hobbes, porque o que se deseja ressaltar é tão-somente a forçafísica empregada na produção do trabalho como oembasamento para o conceito. Assim é que representando ocorpo de carne o corpo social não poderá representar ao mes-mo tempo a linguagem, já que ela é o veículo principal do serpensante. Eis a diferença fundamental entre esse corpo sociale o conceito já existente, encontrado em dicionários filosófi-cos. Se o conceito englobava a linguagem, é preciso que fiquebem claro que o corpo social apresentado aqui é mudo e pri-mitivo. Isso equivale logicamente a uma contradição, já queo homem não é apenas a sua carne e seus músculos mas tam-bém seu cérebro e sobretudo o que ele produz de mais huma-no, isto é, a própria linguagem. Entretanto, incluí-la no con-ceito teria como efeito não compreendermos o resultado fi-nal, ou seja, a razão da enorme distância entre a remunera-ção paga a um trabalhador braçal e a outro, dedicado sobre-tudo aos produtos do intelecto. Quando o que se pretende éjustamente o contrário, o expediente da exclusão auxilia nacompreensão do fenômeno na medida em que reflete, de for-ma artificial, a mesma dualidade encontrada naturalmentena constituição mente–corpo, como já vimos, desde os pri-meiros capítulos. Essa seria outra boa razão para não nosaprofundarmos na análise de um problema que parece re-produzir indefinidamente, em seus desdobramentos, o mes-mo conflito de origem. Ora, resolvê-lo equivaleria a encon-trar uma solução definitiva para a própria condição humana,uma tarefa para a humanidade e não para um ser humano.

Inspirando-nos em Milan Kundera, poderíamos ima-ginar que, para um mundo tão rarefeito e de insustentávelleveza, nada melhor do que a materialidade do suor gastocom os trabalhos realizados pelo corpo de carne para dar-lheestabilidade. Um corpo social fundamentado na matéria de-veria auxiliar na conscientização e valorização do trabalhobraçal, diminuindo a distância entre ele e os trabalhos inte-lectuais. Entretanto, dada a complexidade do problema, se oexpediente em questão nos levar à melhor compreensão já nosdaremos por satisfeitos. Desse modo, é importante iniciarmos

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a análise da questão recordando-nos de que existe um ele-mento do corpo social que há muito se interpôs nas trocas darede de serviços e mercadorias. Penso ser ele o maior respon-sável pelo distanciamento crescente entre o trabalho braçal eaquele que se considera intelectual. Estou me referindo, jus-tamente, ao veículo de remuneração do próprio trabalho, elemesmo, o dinheiro, o elemento do corpo social que, em lu-gar do suor, tem sido o verdadeiro lastro desse mundo turbu-lento. Mundo que se compraz sobretudo na mudança, nainconsistência e na instabilidade, enfim, um mundo adoles-cente e de insustentável leveza.

Mais tranqüilos deviam ter sido os tempos em que oshomens utilizavam o sal ou o gado em suas operações comer-ciais. Porém, assim que começaram a substituí-los por moe-das de ouro e prata nunca mais voltaram atrás. Tais moedastraziam o seu peso cunhado nas faces e embora aparentandouma simples invenção, na realidade, agilizaram e impulsio-naram o comércio, modificando toda a civilização antiga.

Ao contrário do sal ou do gado, a moeda é de facílimalocomoção, além de não servir como alimentação para o ho-mem. Ainda que materiais, o ouro e a prata são consideradosmetais nobres, comumente associados à riqueza, à perenidadee aos enfeites e valorização do corpo. Todas essas caracterís-ticas acabaram por transformar a moeda — que em grego,nómisma, simboliza a imagem da alma — em veículo essencialpara o corpo idealizado.

Devido às características de maior leveza e abstração, apassagem da moeda ou moeda papel — papel relativo à mo-eda depositada no banco — para o papel moeda ou dinhei-ro, desvinculado do metal correspondente, só fez intensifi-car tal vínculo, legitimando para sempre o dinheiro como oinstrumento ideal das transações comerciais.

Ainda que estejamos relacionando a moeda e o dinhei-ro ao corpo ideal, não podemos nos esquecer, como vimospouco atrás, que os esforços físicos despendidos na confec-ção das mercadorias e prestação de serviços é que devem fun-damentar o conceito de corpo social, já que foi a somatória

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desses esforços que possibilitou o próprio comércio dessasmercadorias e serviços. Mas aí esbarramos novamente noconflito. O ponto em que a contradição mente–corpo torna-se mais evidente. Se no início a troca de bens e serviços erafeita através do sal e do gado — meios de troca carregadosde realismo, dada sua origem natural, flagrante materialidadee dificuldade de manuseio —, as moedas e mais ainda o di-nheiro, por sua qualidade de leveza e abstração, tiveram comoconseqüência imediata “apagar” justamente o custo do cor-po de carne embutido neles, ou seja, o desgaste físico empre-gado na produção e prestação desses mesmos bens e servi-ços. Isso se torna mais facilmente compreensível, se pensar-mos em situações concretas.

Vamos imaginar, primeiramente, um episódio antigo.Mesmo improvável quanto aos detalhes, ele servirá apenas demodelo para uma transação em que a moeda e o dinheiroencontravam-se ausentes, como no exemplo de um sapateirosendo pago pela produção de meia dúzia de sapatos com umavaca, da parte de um pequeno fazendeiro que necessitasse cal-çar toda a família. A materialidade, dificuldade e visibilidadedos objetos de troca, por si só, reforçam o corpo social datransação. Se o sapateiro se esforçou dias a fio no artesanatodos calçados, em compensação, o fazendeiro não trabalhoumenos para tratar de seu animal. Ambos se encontram diantede uma realidade material pesada demais para ser ignorada. Atransação não é nada fácil. O fazendeiro suou para trazer suavaca até o sapateiro que, por sua vez, terá trabalho para recebê-la e conservá-la, nos domínios de sua pequena propriedaderural. Numa tal espécie de operação comercial, muito poucodo corpo ideal será atendido porque a inconsistência dos so-nhos e caprichos costuma desvanecer perante a dura realidadeda carne, assim como o orvalho da noite sob o calor do sol.Ela não deixa muito espaço às ilusões e a sociedade funda-mentada nela tem ainda o corpo social concretamente planta-do no chão da realidade material.

Agora transportemos o exemplo do fazendeiro/sapateiropara os dias atuais. Para começar, a transação não se faz mais de

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uma só vez e as necessidades de nossos dois produtores serãoatendidas separadamente. Assim, imaginemos um caso equi-valente. Saiamos para comprar sapatos. O salário que rece-bemos pelo nosso serviço não foi sal nem gado, mas dinhei-ro. Ele é por natureza contraditório, já que é muito fácil ecomum o abstrairmos da realidade material em que foi gan-ho. Além disso, é leve e encontra-se guardado em nosso bol-so. Como está distante de nossa lida diária, do suordespendido pela execução de nosso trabalho! Independente-mente do valor da remuneração, a pouca materialidade dodinheiro ou cheque recebidos faz com que nos consideremosquase sempre mal pagos. Mas vamos lá, existe uma compen-sação. Se não levamos bois ou sal para casa, satisfazendo anecessidade de equivalência material, levamos em nossos bol-sos e bolsas uma varinha de condão. Um papel ou cartãomágico (cartão de crédito) que satisfará os nossos caprichos,na medida em que a abstração apaga a realidade material docusto, o desgaste do corpo físico empregado na produção damercadoria que vamos comprar e do próprio trabalho nos-so, pago em dinheiro. Nessas alturas, não nos deveria maissurpreender o fato de que compraremos os nossos sapatosmuito mais para o corpo ideal deslizar e desfilar pelas passa-relas da vaidade, do que para os nossos pés pisarem o durochão da realidade material da carne.

De nada adianta sabermos que o poder de compra nãose origina diretamente da moeda ou do dinheiro mas sim dotrabalho físico empregado na economia de uma pessoa, fa-mília, estado ou país. Diante do poder da varinha mágicaque representam o dinheiro, cheques e cartões à disposiçãodos caprichos de nosso corpo ideal, o conhecimento intelec-tual perde seu poder de convencimento. Isso nos faz compre-ender as implicações que a progressiva desmaterialização damoeda em dinheiro, cheque, cartão de crédito e seja lá o quede mais abstrato ainda será criado, tem com o nosso mundocada vez mais dissociado da carne. Quanto mais “leve” ocorpo social de alguns países, em determinada época, maio-res as disparidades econômicas entre povos ou classes sociais,

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pois sustentar os caprichos do corpo ideal de alguns milharesde homens significa desprezar as necessidades dos corpos decarne de milhões de outros. Se no início essa relação de ex-clusão era direta, isto é, alguns poucos ricos dependiam dotrabalho de muitos desfavorecidos, hoje é indireta já que ainvenção e popularização das máquinas e da informática subs-tituíram em muito o trabalhador. Porém, o resultado conti-nua sendo o mesmo e a esperança de que o progresso contri-buísse para reverter a situação mostrou-se ingênuo porquenão resultou em pessoas com mais tempo à disposição para olazer, mas sim num grande e crescente número de desempre-gados e miseráveis.

Falta carne ao corpo social de nossa época. Tomandoemprestado, novamente, a feliz expressão de Milan Kundera,podemos afirmar que a leveza de nosso mundo hoje é mesmoinsustentável. Talvez estejamos atingindo o ponto crucial doconflito mente–corpo, porque vivemos praticamente em fun-ção do corpo ideal. Quem pode vivenciar seu corpo ideal,logicamente, já tem atendidas todas as necessidades básicas deseu corpo real, de carne. Pode até esquecê-lo em parte, princi-palmente enquanto goza de saúde e juventude. E quem nãopode se dar ao luxo? Então, essa pessoa não teria corpo ideal?

Sendo impossível fugir das tendências de seu tempo,quem convive obrigatoriamente com o peso da realidade car-nal tem um corpo ideal contrariado, faminto. Quanto maisjovem e saudável, mais obcecado por ele. Se os prazeres volá-teis que os meios de comunicação proporcionam ao serpensante conseguirem distrair a fome desse corpo ideal, for-necendo com seus programas de auditório, suas telenovelase informativos, divertimentos suficientes para entretê-lo, fa-zendo-o esquecer um pouco desse corpo, tudo bem. Mas se ocirco de diversões não for suficiente e, ao contrário, com assuas propagandas aumentar a fome pela imagem do corpo,então podemos temer pelo destino dos excluídos.

Num mundo cada vez mais distanciado da carne a sa-bedoria não desperta mais o mesmo interesse. Mesmo os sofis-tas morreriam de fome, porque ninguém mais se interessaria

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pelas suas advertências quanto à relatividade das “verdades”.Hoje, cada um tem a sua, legitimada pela falta de bom senso eloucura que reinam soberanas. E assim, sem filosofia que o leveà reflexão, nem circo que o divirta o suficiente, ao nosso jovemfaminto de corpo idealizado e farto de miséria real somenteresta um imenso shopping à frente. O mundo foi reduzido aesse shopping e, com certeza, o jovem tentará drogar-se para seiludir que obtém este mundo e ao mesmo tempo para esquecero vazio da própria existência, ou ainda sacará de uma armapara obter as irresistíveis mercadorias fora de seu alcance.

Há um corpo de carne estirado na rua, vítima da vio-lência. Há um corpo social que, de tanto servir à imagem docorpo, hoje pode ser simbolizado apenas pelo dinheiro. Oseconomistas deveriam preocupar-se em lastreá-lo não ape-nas com ouro mas com a realidade da carne, garantindo umpouco de estabilidade e justiça nas relações humanas. Muitosdaqueles que detêm algum poder se encontram fascinados ecorrompidos pelo mágico poder do dinheiro e, assim, gran-de parte dos representantes do povo se encontram a serviçodo corpo ideal. Houve apenas uma tentativa real de devolverao corpo social seu antigo vínculo perdido e essa tentativaveio de uma ideologia. Porém, o comunismo da antiga UniãoSoviética, fundamentado nessa ideologia, já nasceu fadadoao insucesso — embora coerente e mesmo fascinante enquantoteoria, a proposta marxista de igualdade praticada às custasde um Estado totalitário, ou seja, do sacrifício das liberdadesindividuais, só poderia mesmo se mostrar uma utopia. Osdesmandos, as arbitrariedades, corrupções e toda espécie demazelas ocorridas nos países comunistas corroboram a tristeconstatação de que a igualdade entre os homens jamais seráinstalada na terra se para isso sacrificarmos os desejos pesso-ais, em troca do bem-estar do próximo ou da maioria. OsSócrates — se é que existem — são cada vez mais raros e acorreria aos mercados e shoppings, logo após a derrubadado muro de Berlim, por parte da população do lado orien-tal, deixou claro que preferimos conviver com as desigual-dades e a instabilidade empregatícia, ainda que elas nos

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deixem a consciência pesada ou intranqüila, desde que pos-samos, a cada dia, levantar da cama com a ilusão de quesomos livres para ir aonde nosso ser pensante desejar e paraatendermos aos caprichos de nossos corpos ideais. Talvezfôssemos mais bem-sucedidos se conciliássemos a liberdade ea igualdade, atendendo ao equilíbrio da balança mente–cor-po. Algo como a liberdade plena para o homem enquantoser pensante, através do capitalismo e mesmo do consumismoe, ao mesmo tempo, a igualdade embasada no homem decarne e ossos, no direito do atendimento às necessidades desobrevivência. Seria possível tal realidade? Não podemos sa-ber. Isso implicaria a aceitação da dualidade em corpo e mente.E ela é difícil porque desmente a unidade e harmonia queexiste dentro de nós mesmos. De uma certa forma contradizaté a própria ciência. Daí a importância do entendimento deque essa dualidade só aparece nas relações que o homemmantém com seu semelhante e no mundo que ele construiu eainda constrói. Aceitar o conflito que existe em nossa pró-pria natureza poderia nos mostrar se o fato de vivenciarmosconscientemente tal situação faria alguma diferença.

Já falamos do ser pensante e da identificação do ho-mem para com ele. Vimos a correspondência cada vez maiorentre o nosso mundo tecnológico e o recrudescimento docorpo ideal, em detrimento da carne. Já lançamos as basespara entender por que o conceito de corpo social se encon-tra, hoje, desvinculado da base material da qual deveria terse originado. E agora, de posse desses poucos conceitos —imprescindíveis à nova interpretação da questão mente–cor-po —, penso ser muito proveitosa à compreensão definitivado problema a análise de figuras literárias de obras nas quaiso conflito foi simbolizado. Para tal fim nada mais adequadodo que utilizar no estudo da questão as grandes inspiraçõesdos mestres do passado, tais como o Sancho de Cervantes e oFalstaff de Shakespeare, além da figura inesquecível deCarlitos, de Charles Chaplin.

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Ó Dom Quixote,da Mancha resplendor, da Espanha estrela,que para recobrar o antigo estadoa sem-par Dulcinéia Del Toboso,deve o teu escudeiro Sancho Pançadar-se três mil açoites, mais trezentos,nos dois lados do seu carnudo assento,exposto e descoberto; e de tal modoque doam, que magoem e que amarguem.Com isso, hão de aplacar-se todos quantosde tal desgraça foram causadores.Por isto aqui me encontro, meus Senhores.

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Dom Quixote, vol. II, p.262.

Pistol — Imundo verme, o mau-olhado tepegou desde o nascimento!

Ana — Toque-lhe a ponta do dedo com ofogo da prova!

Pistol — Vamos à prova!Evans — Vinde. Será que esta madeira pe-

gará logo? (Todos queimam Sir João Falstaff comas velas.)

Falstaff — Oh, oh, oh!Ana — Corrompido, corrompido e mancha-

do pela luxúria! Cercai-o, fadas! Cantai versos demenosprezo e enquanto estiverdes correndo, ide aomesmo tempo beliscando-o.

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As alegres comadres de Windsor, ato V, cena V.

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O CORPO DE SANCHO E O DE FALSTAFF

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Sancho pode muito bem simbolizar o corpo de Quixote.Isso fica bem claro em todo o romance, especialmente emduas passagens, transcritas respectivamente nas aberturas doprimeiro e quinto capítulos desse livro. Na primeira, a ima-gem do cavaleiro e do escudeiro como um todo, formadopelo par senhor (cabeça) e criado (membros), além de magní-fica, não deixa dúvidas quanto à mensagem: Sancho deverápadecer das dores da carne, causadas pelo espírito. Assim,ele se queixa que o amo não está sujeito a sofrer essas doresque o afligem, ao que Dom Quixote, numa das mais belaspassagens do romance, defende-se: pelo criado, era atormen-tado por sofrimentos maiores em seu espírito, isto é, morais,do que Sancho, em sua condição carnal.

Na parte transcrita para o quinto capitulo, a imagemtambém é veemente: a fidelidade do escudeiro para com o seusenhor é total, absoluta. Somente a pá e o enxadão do coveiropoderão separá-los. De fato, apenas a morte separa definitiva-mente a união estreita e dinâmica entre o corpo e o espírito.

Nas reiteradas demonstrações de servilismo e fidelidadeda parte do criado perante o seu senhor podemos reconhecero papel submisso da carne diante os ditames da alma ciosa eorgulhosa de sua independência. Visando à liberdade ela desa-fiará o próprio destino, levando o corpo a confrontos e lutaspara os quais nunca esteve e jamais estará habilitado. Dessaforma é que Sancho se envolve, muito a contragosto, nas di-versas aventuras em que o amo se mete pelo caminho.

Ele, o escudeiro, é pacato e avesso à empresas arrisca-

das, a situações imprevistas. Não foi feito para combates;suas carnes tenras e sensíveis ressentem-se das mais levesinvestidas. A natureza frágil inclina-o a uma existência pací-fica, dos anos com que o destino o contemplou. Assim é quedeixa claro que não lhe interessa a vingança por agravos so-fridos. Não se importa em parecer covarde diante da altivacoragem que o cavaleiro esteve sempre disposto a demons-trar. O que se encontra atrás do bom senso é a consciência dafragilidade e finitude, realidade essa que Dom Quixote senega, terminantemente, a aceitar. Porém, ainda que a teimosia

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quanto à decisão de levar a vida de cavaleiro andante o con-dene a uma espécie de loucura, o fidalgo reconhece a bondo-sa e pacata natureza do criado, o aguçado bom senso e asimplicidade da sabedoria retirada de sentenças populares,de refrões. É quando o escudeiro provoca nele, muitas vezes,admiradas exclamações tais como “Sancho cristão”, “Sanchobondoso” e “Sancho sincero”.

Mas se o escudeiro é sensato e bondoso em relação àsconfusões suscitadas pelo espírito orgulhoso e altaneiro de seuamo, nem por isso deixa de se mostrar insensível às razõesmais profundas que levam o cavaleiro a se arriscar nas aventu-ras em que se mete. Afinal, Dom Quixote está a serviço dascausas mais nobres: defender os fracos e injustiçados dessemundo. Assim, Sancho nos passa, muitas vezes, a imagem decovardia frente à ousadia do amo, e por essa fraqueza nãoapenas física mas de caráter o criado terá de ser castigado atra-vés de tundas, açoites, piparotes e beliscões. Eis, na realidade,outra boa razão para as surras e refregas a que se vê sujeito oescudeiro, embora, na aparência, os males físicos a que o sub-metem pareçam frutos do mero capricho de seus superiores.

“Dorme tu, que nasceste para dormir”,69 diz o cavalei-ro que nunca pode cerrar os olhos, num descanso total ecompleto. Ora, o espírito, na verdade, quase nunca adorme-ce completamente. Enquanto a noite avança, no cérebro re-organizam-se as informações colhidas durante o dia; são re-alizadas as operações necessárias à memória e ao aprendiza-do. Além disso, os sonhos realizam desejos, encenam peças,passam filmes de acordo com a imaginação e ao agrado decada um. Assim, se Dom Quixote representa esse espírito sem-pre envolto em fantasias, ei-lo, um dia, descido às profundezasda cova de Montesinos, testemunhando maravilhas, enquan-to Sancho, ao contrário, havendo caído de forma desditosa erealista numa grande cova comum, padece de ansiedade emedo, temendo pela própria vida. É desse modo, no granderomance cervantino, que somos reapresentados às naturezasopostas mas ao mesmo tempo complementares e harmoniosasdo par mente–corpo, do qual somos constituídos.

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O único sonho acalentado por Sancho é a ilha prome-tida pelo amo. Quando o realiza, o escudeiro, embora de-monstre um grande bom senso nas questões de seu governo,se vê privado naquilo que para ele é o mais importante, oessencial: a comida e o descanso necessários à natureza deque é feito o próprio corpo. Não parece gratuito o nome domédico que, através da varinha de barbatana de baleia quetraz nas mãos, vai retirando os pratos de comida da frente deum Sancho morto de fome. Dr. Pedro Rijo de Agouro (a quemSancho, com sabedoria, apelida de Mau Agouro), natural deBotafora, simboliza as agruras pelas quais a carne padeceráantes de poder matar a fome, a mais angustiante das necessi-dades humanas. Atrás da provável reprovação da medicinaque se praticava na época, a figura do médico parece repre-sentar a sina do paraíso perdido, a praga divina lançada aopecado original. Mas a própria existência da miserável con-dição de carne não representa em si mesma o pecado e aexpiação? O que poderia ser mais insensato do que não “darà natureza o que ela naturalmente lhes pede”, como se la-menta Sancho ao se referir aos pesados encargos de juízes egovernadores que, tal como ele — no caso, graças ao médico—, padecem de fome e de cansaço? Pode haver maior desdi-ta do que ter de se consolar com as palavras de Dom Quixote,perante a dor e estragos causados pelas bordoadas sofridaspor ambos, de que não existe lembrança que o tempo nãoapague nem dor que a morte não consuma? Não, o corponão foi feito para se impor e prevalecer mas para se esfalfar,assim como padecer. Não nasceu para o governo e sim paraa obediência, ainda que a justiça inspirada no atendimentode suas necessidades seja muito mais humana e simples. Des-se modo é que obrigam um Sancho humilhado, maltratado efaminto a desistir de sua ilha, de volta ao inglório destino aque sempre esteve condenado.

A carne há de pagar — através dos sofrimentos do escu-deiro — não apenas por não estar à altura dos nobres ideaisdo cavaleiro andante. Afinal, a história não nos leva somenteàs lágrimas mas também aos risos incontidos provocados pelo

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espírito impetuoso e atrevido do cavaleiro, movido por moti-vos algo fúteis e inconsistentes tais como o não reconhecimen-to de sua importância e dignidade ou da incomparável belezade Dulcinéia, a sua amada. Rimos disso porque entendemosmuito bem essas “razões” desarrazoadas do fidalgo. Ele é a nos-sa cara. Também nós, muito mais por um orgulho desmedidoou prazer nas aventuras, nos atiramos nos empreendimentosmais arriscados e inconvenientes, racionalizadas que são as ver-dadeiras causas. Assim, o escudeiro/corpo deverá pagar pelagrande insatisfação que as limitadas condições físicas impõemaos anseios do Quixote/ser pensante. Para o castigo não bastamas tundas, as necessidades não atendidas, a queda na grandecova, a desistência humilhante e dolorosa de um sonho, no go-verno abandonado às pressas. Ele, Sancho, não nasceu paragovernador e muito menos para a vida dura mas gloriosa decavaleiro andante. Nasceu, isso sim, para pagar tudo o que frus-trar o espírito em suas andanças. Desse modo, deverá ser casti-gado justamente nos extremos que definem o seu destino, ouseja, piparotes e beliscões no rosto — sede do alto comando(cérebro/mente) do qual nunca se acha à altura — e açoite nasnádegas, a parte que fica ironicamente oposta à primeira e que,de maneira flagrante, através da forma saliente e roliça, consti-tui a prova da vergonhosa condição de máquina de necessida-des, realidade última a que homem algum poderá escapar.

Se o escudeiro Sancho — representante fiel da porçãomaterial de Dom Quixote —, ainda que castigado, foi vistocom benevolência por Cervantes, Falstaff, a contrapartida fí-sica do Príncipe de Gales (Hal) na peça shakespeareanaHenrique IV, não mereceu de seu criador a mesma considera-ção. Fiel companheiro do príncipe e descrito como uma mon-tanha de carnes corrompida pelos vícios, o velho cavaleiroaparece em duas peças de Shakespeare. Além do drama his-tórico do rei Henrique IV, ele faz uma outra aparição, dessavez muito mais ignóbil, na comédia As alegres comadres deWindsor. Desde a sua apresentação no drama sabemos tratar-se da figura de um vilão, destratado pelos próprios amigos(com ênfase para o príncipe), indigno a tal ponto que ele

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mesmo, através de algumas fracassadas tentativas, tenta sedesculpar pela desprezível existência.

“Como estás vendo, tenho mais carne do que qualqueroutro homem; e, por conseqüência, mais fragilidade”,70 queixa-se Falstaff ao inseparável príncipe que o acusa de canalha, atra-vés de um punhado de vitupérios. Antes disso, já se havia la-mentado do corpanzil: “Malditos sejam os dissabores e as des-graças! Incham um homem como se fosse uma bexiga”.71 Maisdo que demonstrar, mais uma vez, a genial compreensão dasraízes emocionais de grande parte dos problemas humanos,Shakespeare apresenta-nos na caricatura do cavaleiro a verdadealgo dolorosa do quanto pode ser rejeitadora e negativa a con-cepção de nossa parte material. As banhas do vil personagemconfirmam, em sua abundância, a ignomínia da carne. À pri-meira vista elas se prestam para traçar um retrato cômico mastambém cruel daquele que sucumbe, acima de tudo, ao pecadoda gula, além da luxúria, covardia e fanfarronice. Mas a carica-tura vai muito além da simples exposição de glutonaria e devas-sidão. A comicidade alcançada através das peripécias e piadasdo cavaleiro não se parece, em nenhum momento, com aquelaoutra nascida da ingenuidade do criado de Dom Quixote. Po-deríamos mesmo dizer que, ao contrário, ambas se encontramem terrenos opostos. Começando pela própria figura dos dois— havendo sido pincelado o elemento bonachão em Sancho eo da corrupção e vilania em Falstaff —, a comicidade alcançadatambém difere no efeito produzido em nós. Em Sancho, somosdespertados para uma espécie de humor magnânimo que, alémdo riso franco e espontâneo, nos leva a nos condoermos com atriste condição daquele cujo destino é ser um saco de pancadaspara os desatinos de seu amo, sempre disposto a tornar reais asfantasias. Em Falstaff — alvo constante da zombaria e armadi-lhas de seus pares —, fica quase impossível encontrar no humordespertado comiseração espontânea pela figura ridicularizadado velho cavaleiro. Somos levados, nas duas peças e sobretudonas Alegres comadres de Windsor, a uma forma de humor negroe perverso, parecida com aquela disposição de espírito nascidada condenação de nossos semelhantes, em que o elemento

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punitivo e cruel sempre predomina. Com isso, discordo da vi-são do escritor Louis Gillet, citado na Nota Introdutória dasObras Completas de Shakespeare. Ele cita Falstaff como “dignoirmão dos filhos de Cervantes”. Afirma que o vilão é ao mesmotempo Dom Quixote e seu escudeiro. Para mim, nada mais equi-vocado porque, como vimos, o vilão pode ser tomado numsentido oposto à criação do gênio espanhol.

Mas se o humor irônico e ferino a que somos levados emFalstaff nos retira a oportunidade de nos sentirmos compreensi-velmente generosos como em Sancho Pança, por outro lado, agenialidade shakespeareana não nega à carne tratada de manei-ra vilipendiosa a própria defesa. Assim, do começo ao fim dasduas peças mencionadas, e em especial na de Henrique IV, fica-mos tocados não somente pela fina ironia mas também pelafilosofia profunda e sem rodeios do bardo inglês.

Na tradução da Nova Aguilar o príncipe diz a Falstaff:“Ora, deves uma sorte a Deus”.72 Somos levados a crer que apalavra mais adequada seria morte no lugar de sorte, comopude constatar no próprio original e conforme a tradução daEdiouro. Tanto é assim, que logo a seguir assistimos ao mo-nólogo do cavaleiro que assim se expressa (agora, novamen-te, na tradução da Nova Aguilar):

Ainda não a estou devendo: teria repugnância depagar antes do termo... A honra me aguilhoa para a frente.Sim, mas se a honra me levar para o outro mundo, quandofor para a frente? Será que a honra pode repor uma perna?Não. Ou um braço? Não. Não tem a honra nenhuma habili-dade em cirurgia? Não. Que honra? Uma palavra. Que hánesta palavra honra? Ar. Encantadora vantagem! Quem apossui? Quem morreu na quarta-feira. Ele a sente? Não. Es-cuta-a? Não. Logo, eu não a quero...73

Além de comprovarmos que se tratava da morte, essemonólogo de Falstaff deixa bem clara a sensibilidade do sá-bio inglês acerca da inutilidade da honra e tantas outras ve-leidades do espírito, quando diante da realidade dura einexorável da fragilidade e finitude da existência.

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Enquanto a carne, em Sancho, se materializa na bondo-sa e ingênua figura do escudeiro e em sua filosofia singela, emFalstaff não somente é uma verdade crua e nua mas tambémapresentada de uma forma cruel, sem disfarces nem rodeios.O vilão shakespeariano ora é bife, cervo gordo, ora é carnesalgada própria para o consumo, como ele mesmo se vê emdeterminada passagem. A todo momento ele é lembrado desua condição miserável, indigna e imprópria. O opróbrio des-sa condição vai crescendo ao longo de Henrique IV até alcan-çar, no final da peça, a pena última que deverá cumprir: odesterro, a prisão para devedores, a proibição de acercar-se dopríncipe. Esse, aliás, o antigo companheiro de farras, diantedas súplicas do amigo o renega sem piedade: “Não te conhe-ço, ancião”. Ora, somente a carne, a maior frustração do espí-rito, poderia merecer tamanho castigo. Mas ainda era pouco.Nas Alegres comadres de Windsor, a abjeção extrema de que éalvo alcança a perversidade ao ser queimado por velas, expos-to à execração pública. Bem mais generoso que Shakespeare,Cervantes, ainda assim, também pune o amigo fiel do cavalei-ro Dom Quixote com açoites, piparotes e beliscões.

Somente enquanto fresca, jovem e dentro do padrão debeleza considerado ideal ou próximo dele — ou seja, objeto dedesejo sexual —, a carne deverá ser digna e merecedora deadmiração e respeito. Simplesmente porque o desejo escondeou desvia nossos pensamentos de sua fragilidade e finitude,fazendo-nos esquecer que ela, afinal, muito longe de nossosfantasiosos pensamentos, não passa de uma simples máquinade necessidades, necessidades essas nada elegantes.

O escudeiro de Dom Quixote é baixo, rotundo, umpouco glutão e de figura bonachona. Embora seu físico te-nha sido concebido, tal como o de Falstaff, para acentuar anatureza material do corpo, numa espécie de caricatura,Sancho, de forma diferente do vilão shakespeariano, não édescrito de forma ultrajante. Ao contrário, em tintas suaves oautor nos leva a ver nele a aceitação serena do corpo quetanto no romance quanto na vida acompanha fielmente oespírito que o anima e o conduz.

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Amigo da paz, da sombra e água fresca, dado à sabedo-ria popular e de uma fidelidade a toda prova ao amo, Sanchoé a representação de um corpo que faz a sua primeira apre-sentação literária, de forma serena, descrito sob a pena deum autor que talvez pelas próprias e desafortunadas condi-ções de existência o representa com benevolência, na figurabondosa e ingênua do escudeiro. Esse corpo havia sido nega-do terminantemente até pouco tempo antes nos romances dacavalaria andante, gênero muito popular em sua época e alvo,justamente, da crítica declarada do autor de Dom Quixote.Nesses romances os personagens nunca necessitam de sonoou de alimento, suas peripécias espetaculares e fantasiosasignoram as limitações da realidade material do homem. Co-locando-se radicalmente contra essa idealização do corpo eprevalência do espírito, o romance picaresco faz uma antíte-se desses super-heróis, ao enfatizar o aspecto triste e duro dacondição humana através do drama da fome e da miséria. Deuma tal forma os personagens da picaresca tingem de negroo quadro da existência que a impressão que temos é de queali também foi configurada uma rejeição à carne, desta feitaatravés da valorização excessiva de seus traços negativos.Apenas em Sancho o corpo é apresentado em sua totalidade,ou seja, tanto em relação às dificuldades que o atendimentode suas necessidades acarreta, quanto ao caráter pacífico efiel de sua natureza. O amor e a admiração sincera que DomQuixote nutre por seu escudeiro é a reconstituição mais fide-digna da terna e íntima gratidão de nosso espírito perante ocompanheiro inseparável, aquele que representa, afinal, aúnica e verdadeira possibilidade de existência, o porto segu-ro à capacidade ilimitada de fantasiar. Nunca mais a literatu-ra conseguiria descer tão profundamente na natureza huma-na a ponto de flagrar o sentimento mais íntimo, de desvelaro que para nós mesmos não passava de um pressentimento.A revelação desse segredo é a razão da perenidade de DomQuixote, de sua grandiosidade, coisa que a literatura de nos-so tempo, eivada tanto de sexualidade como da enxurradade sangue, não consegue mais nos transmitir.

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Se o autor de Dom Quixote deve à própria biografiapenosa e acidentada a aceitação serena e benévola da partematerial do homem, celebrado em Sancho como bondoso,cristão, sincero e discreto, não poderia, de forma inversa, ogrande gênio de Shakespeare também se haver nutrido dasboas e felizes circunstâncias de sua vida financeira e isenta degrandes traumas físicos para criar, na figura de Falstaff, anegação e mesmo a rejeição do corpo? Àquele que nuncapadeceu de forma dramática das vicissitudes da carne nãocaberia a tarefa de criar um personagem que simbolizasse obode expiatório para as frustrações que por volta de 1600 jáacometiam o homem, a caminho do caminho do super-ho-mem? Essas eram frustrações advindas das limitações impos-tas pela natureza, diante das mais ambiciosas pretensões. Sea picaresca apresentara a carne ressaltada pela situação mise-rável e penosa da fome do pícaro, era porque a fome era econtinua a ser a necessidade que mais tormentos causa àque-le que dela padece, e isso representava uma reação à alturada negação do corpo apresentada por parte do romance decavalaria. No caso do abominável vilão shakespeariano, arejeição e o escárnio eram os sentimentos mais adequadospara descarregar no símbolo caricaturesco das limitações doespírito a somatória de frustrações que a época jácontabilizava.

Seriam uma simples coincidência as diferenças natu-rais e circunstanciais das nacionalidades dos dois maioresgênios da literatura de todos os tempos, em cujas obras aserena aceitação da carne, de um lado, e a sua negação, deoutro, aparecessem na mesma época? Não sei até que pontopoderíamos ver na escolha de Sancho alguma relação com aalma idealista e ao mesmo tempo realista do povo espanhol,ou na de Falstaff a fleuma do povo inglês perante um mundoque começava a dar mostras de impaciência frente a qual-quer obstáculo que se interpusesse entre seus anseios e o pro-gresso. Cervantes, como nos lembra Ramiro de Maeztu, fezseu grande livro num momento especial da Espanha, numafase de decadência posterior à expansão de um império, ao

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contrário da Inglaterra que principiava o seu, dando os pri-meiros passos para a grande revolução industrial que coloca-ria o mundo em marcha. Não parece insensata essa hipótesese nos recordarmos que a maior potência do planeta, hoje, éjustamente um país de descendentes dos ingleses. Encontram-se nos Estados Unidos as maiores demonstrações de negaçãoe tentativa de superar os limites da carne, fato que tambémnos leva a pensar que não seja gratuíta a identificação norte-americana com o super-homem. Mas é preciso tomar muitocuidado ao apresentar tão apressadas conclusões. Principal-mente ao tratarmos de Charles Chaplin, nascido na Inglater-ra e o criador do adorável Carlitos. Ora, como veremos aseguir, o eterno vagabundo é a representação mais fiel do cor-po na atualidade. Se antes esse corpo ainda se expressava atra-vés de Sancho e de Falstaff, a impressão que se tem é de que doséculo XIX para cá ele foi emudecido pelo mundo do super-homem. Vejamos como Carlitos representa essa mudez.

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CARLITOS E O CORPO MUDO

O tema da maioria desses espetáculos é oSuper-Homem. O herói pode saltar mais rápido,subir mais alto, atirar mais depressa, brigar com maiseficiência e amar mais do que qualquer outro nofilme. Na verdade, todos os problemas humanos sãoresolvidos por esses métodos — nunca pelo pensa-mento lógico.

Minha vida, de Charles Chaplin, p.254.

Muitas vezes a figura de Carlitos evoca em nós um sen-timento de fragilidade, ingenuidade, desamparo e solidão.Os mesmos sentimentos que uma criança poderia despertar.Realmente, o vagabundo não parece muito longe dessa fasede nosso passado e suas peripécias nos fazem rir com o mes-mo gosto e espontaneidade da infância. Mas ele não repre-senta uma criança, pois que aparece a maior parte das vezescom sentimentos e em personagens próprios de um adulto,tais como o sentimento da paixão ou ainda no papel de umbêbedo. O que existe em comum entre ele e a criança é ape-nas o fato de ambos — o franzino vagabundo e a infância —poderem representar a fragilidade do corpo que todos pos-suímos mas que sempre preferimos esquecer.

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Chaplin sabia que seus filmes tinham de continuarmudos e ele estava coberto de razão. A mímica sempre foi econtinuará sendo a linguagem muda do corpo. A voz da almaaprisionada em seu interior. Mas os tempos modernos, maisque qualquer outro, começaram a perseguir e a espicaçar deuma tal maneira esse corpo, atormentando a alma que o ha-bita, que o cinema mudo, de uma forma geral, representouuma válvula de escape para essa opressão. O vagabundo ex-prime o grito emudecido desse espírito acuado. A coreogra-fia do desamparo e desespero de um corpo diante das arma-dilhas que a máquina do progresso costuma preparar. Paranão ser coisificado, esmigalhado nas engrenagens ou perse-guido pelo aparato policial que sempre o coloca no final paracorrer, Carlitos faz de sua pantomima o balé patético da exis-tência, levando-nos, muitas vezes, àquele riso incontido edetonador de emoções básicas e profundas. Sim, a comicidade,em Carlitos, nasce da percepção inconsciente do drama quesubjaz por detrás das aparentes cenas de uma comédia-pastelão. Se nos conscientizássemos da miserável condiçãoda carne, ao invés de rir, talvez chorássemos ao vê-la repre-sentada por Chaplin no cinema mudo.

Não podemos entender perfeitamente Carlitos sem re-corrermos aos textos de André Bazin. O admirável criticofrancês soube compreender o vagabundo de uma tal formaque somos levados a crer que ele penetrou na essência domito. Ele sabe que Carlitos, pela própria riqueza simbólica,“condensa em si (como dizem os psicanalistas) uma cargaexcessiva de afetividade social; demasiados inconscientes co-letivos ... formidáveis camadas mitológicas”,74 por isso en-tende que seria suficiente ao seu propósito discernir emCarlitos um mínimo de constantes, ou como ele mesmo diz,de transformações.75 Mais adiante adverte-nos que não quer“perder de vista que estamos diante de um processo mitoló-gico”.76 Esse mínimo de constantes que o crítico intui ser aessência do mito só se fará consistente, a meu ver, na repre-sentação da linguagem emudecida desse corpo acuado. Em-bora Bazin nunca chegue a esse corpo — direta e literalmente

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—, aproxima-me cada vez mais dele, como quando compre-ende em Monsieur Verdoux o sentido último e integrante detoda a simbologia do vagabundo. Ouçamos a palavra do crí-tico, tirando, depois, nossas próprias conclusões:

Desde que Carlitos existe (porém, como fixar umtempo à existência de Carlitos?) a sociedade delega à suapolícia a tarefa de expulsá-lo para fora de seu seio. Os tirasestão habituados a esbarrar com ele nas esquinas, nas calça-das desertas, nas praças públicas após o horário de fecha-mento. Sua fuga desajeitada e precipitada sempre foi o indí-cio de uma vaga culpabilidade, que se autodenuncia, e quebasta uma cacetada para punir. Ele lhes causava, no fundo,poucos problemas, o homenzinho de andar de pato; sua malí-cia e astúcia jamais o levavam além de revanches benignas oude um mínimo de pequenos furtos necessários à sua subsis-tência.77

Continuando, o crítico nos leva a recordar que essehomenzinho sempre escapava, e portanto, não havendo umculpado a quem descarregar o sentimento de culpa daconsciência social, essa mesma sociedade ficaria intranqüila.Mas Verdoux, compreende o crítico, é o próprio Carlitos àsavessas e, assim, por fazer uso extensivo da máxima oportu-nista das relações sociais, em que “negócio é negócio”, ele,“por sua própria existência, torna a sociedade culpada”.78

Ora, o final de Verdoux, como todos sabem, será aprisão e a guilhotina. Bazin assim se expressa a respeito:“Desde muito tempo ele é o único a saber o que os espera atodos. Ele se entrega à Sociedade. Agora tudo está termina-do”.79 Não podia estar mais claro. Verdoux é o disfarce dovagabundo, logo, quem deverá ser guilhotinado é ele, Carlitos,“o único a saber o que os espera a todos”. Embora Bazinenfatize como causa da condenação de Verdoux a utilizaçãocínica, inescrupulosa e criminosa do espírito de oportunismo,tanto Carlitos quanto Verdoux, sua contrapartida, são obrasde um mesmo espírito e na composição de ambos encontra-mos todos os elementos tragicômicos da herança carnal.

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A começar pela própria figura do vagabundo, pequena e frá-gil, ridícula em suas vestes inadequadas e em seu andar de-sengonçado; a coreografia da eterna fuga por representar obode expiatório dessa sociedade que não suporta limites aosonho do puro espírito, do super-homem e de suas loucasambições. Assim é que, no final, assistimos à entrega deCarlitos/Verdoux a essa mesma sociedade para que, nummesmo ato — a morte pela guilhotina —, represente-se tantoa expiação da culpa por se tratar da carne, quanto a de seupróprio fim natural e inexorável: a morte.

Carlitos é um símbolo para o corpo oprimido peloprogresso. Corpo esse que nas classes sociais mais baixas,na miséria do pouco ou nenhum atendimento das necessi-dades vitais, se vê representado em sua essência. O vaga-bundo e esse corpo negado em sua natureza de máquina denecessidades são uma e só coisa. Tanto Carlitos quanto osmiseráveis sabem muito bem o que significa ter de ocuparum lugar no espaço, um espaço público ou privativo dooutro, quando não possuem meios de obter o seu próprio.Sentem na própria pele as conseqüências de ter que atenderàs necessidades básicas, não tendo recursos apropriados paratal, nem as mínimas condições de conseguir esses recursospor conta própria, o que significa de uma forma ou de ou-tra criar caso com a lei e, assim, irritar os seus representan-tes legítimos. A sociedade institucionalizada, como tal, sóaparentemente é igualitária. Até que se esforça, dentro dossistemas capitalistas e democráticos modernos, em cumpriro papel de protetora do humano. Mas como não reconhecena base do homem o conflito original, é-lhe impossível to-mar consciência de sua identificação com a política indivi-dualista e egoísta do ser pensante, quando pensa estar fa-zendo um trabalho benéfico e progressista. É desse modoque, paradoxalmente, no final, a sociedade moderna acabapor refletir oposição ao corpo que deveria antes proteger,corpo esse em desvantagem nas camadas mais baixas de suaorganização, fazendo o discurso sobre o social distanciar-se, cada vez mais, das próprias ações.

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Observemos a figura do vagabundo. A própria consti-tuição física miúda de Chaplin, na indumentária de Carlitos,desenha uma silhueta desamparada e solitária; pequena, in-fantil e na forma de uma espécie de moringa, com enormespés que propiciam um andar desajeitado, de pato, parecendoirremediavelmente preso ao chão que pisa, ao espaço queocupa. Sim, o vagabundo é o oposto das silhuetas de muitossuper-heróis e do próprio super-homem americano, cuja fi-gura um pouco longilínea e triangular — pelo forte tórax emevidência e adornado por uma comprida capa — idealiza asuperação dos limites humanos, em força e capacidade paravoar. O vagabundo significa, pela própria existência materi-al, uma ameaça constante a essa sociedade institucionalizadae organizada por e para super-homens, representando o bodeexpiatório para sua vaga sensação de culpa, como já vimos.Ele, que está sempre ocupando um espaço que não é o seu;que é a imagem viva da finitude humana (“Desde muito tem-po ele é o único a saber o que os espera a todos”), só poderiamesmo ser um eterno perseguido que, enfim, deverá se en-tregar a ela (a sociedade perseguidora e verdadeira culpada),através de M. Verdoux. Embora este último possa represen-tar a culpa e ao mesmo tempo o castigo pela condiçãolimitadora imposta ao espírito, Carlitos é um símbolo acaba-do. Para mim, ele não precisa de Verdoux e de nada mais doque a figura do vagabundo para representar em si mesmo acondição da carne.

Vejamos uma característica de Carlitos que não passoudespercebida pelo crítico. O vagabundo vive no tempo pre-sente, limitado pelas circunstâncias. Sim, porque luta, antesde qualquer coisa, para existir — simplesmente ocupar umlugar no espaço —, ele é prisioneiro do aqui e agora. Esse,também, o estado real do corpo. Para ele, ao contrário doespírito, o presente é a única realidade cotidiana, inadiável eimediata.

É também em André Bazin que encontramos o comentá-rio sobre a capacidade especial de Carlitos para criar caso comas coisas, ou ainda, de os objetos aparentemente criarem caso

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com ele. Diz o crítico: “os objetos não servem a Carlitos comoservem a nós. Do mesmo modo como a sociedade só o inte-gra, provisoriamente, através de um mal-entendido, cada vezque Carlitos quer se servir de um objeto segundo sua funçãoutilitária, isto é, social, ou bem o faz com uma falta de jeitoridícula (principalmente à mesa) ou bem são os objetos quese recusam quase que voluntariamente a servi-lo”.80

Sabemos o que significa isso. Quantas vezes os objetos,como se tivessem vida própria, parecem estranhar nossos mo-dos, esquivando-se das cômicas tentativas de manejá-los deforma adequada. O que Carlitos faz é uma caricatura extrema-da de situações parecidas com aquelas que experimentamostodos os dias, diante de coisas que se recusam a colaborar comas nossas dificuldades de natureza mecânica; com a nossa formadesastrada, sujeita a um mundo também material, limitado portoda sorte de obstáculos e surpresas, nem sempre agradáveis.

Rimos de Carlitos — um lembrete e ao mesmo tempoum símbolo de nosso corpo desajeitado —, atrapalhado comas maquinarias do progresso, tentando sempre se desvenci-lhar das ciladas que elas, as coisas pertencentes ao mundocontemporâneo, lhe aprontam. Elas lhe pregam peças, taiscomo estamos acostumados a vivenciar. Em todas as situa-ções cômicas lá está ele, o corpo mudo, em luta constantecom a sua condição de peso; de ocupar um lugar determina-do no espaço; de ser miseravelmente visível, quando a situa-ção embaraçosa ou mesmo perigosa aconselharia o contrá-rio. Exemplifiquemos para essa última circunstância — a vi-sibilidade — o exemplo do vagabundo em O aventureiro,citada no próprio livro do crítico francês (naquele, entretan-to, para outra finalidade diferente da nossa). Carlitos, ha-vendo atirado pedras nos guardas que, como sempre, o per-seguiam, supõe-se livre. Aparentemente seus perseguidoresforam derrotados. Contudo, ao invés de fugir ele continuaatirando-lhes divertida e desnecessariamente pedrinhas e,assim, sem que note, é alcançado por um deles. Pegando maisdaquelas pedras no chão, depara com o sapato do guardaque o observa, logo atrás. O que faz então? Põe-se em fuga?

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Entrega-se? Não, Carlitos simplesmente tenta cobrir com umpunhado de terra o sapato do policial. A cena, que faz explodira sala dos cinemas em risadas, diz simplesmente: “ele não estáaqui; não existe; não é real”. Ora, já que era impossível aCarlitos tornar-se invisível, ele próprio, ao guarda disposto apegá-lo, esconder algo a si mesmo — o sapato de seu perse-guidor — tem naquele momento de extrema necessidade amesma função simbólica, ao anular a prova material da exis-tência do inimigo. Apenas à genialidade de um artista tragi-cômico seria possível conceber e condensar em poucas cenastamanha carga de sentimentos, sensações, pensamentos in-conscientes e pressentimentos que se desafogam numa solu-ção espetacularmente simples, somente encontrada no terre-no da imaginação, ou na condição da infância. Rimos e gar-galhamos porque conhecemos a fundo a solução mágica en-contrada por um espírito acuado e temeroso em sua prisãocarnal, que, através de um punhado de terra, tampando osapato de seu perseguidor, faz o outro desaparecer ou repre-senta o poder de se tornar invisível. Agora podemos dizerque começamos a compreender o símbolo chapliniano, atra-vés dessas duas vertentes: a da criança e a da condição tragi-cômica. Ora, a tragédia é a existência da carne num mundodisposto a negá-la. Na figura frágil de Carlitos está represen-tada essa carne que tem na infância o seu estágio mais crítico.Tanto Carlitos, como personagem, quanto o tema de seusfilmes são trágicos. A comicidade nasce das tentativas patéti-cas do vagabundo em ocupar um lugar no espaço desse mun-do que nega e rejeita a sua existência. O cômico são as peri-pécias do espírito enquanto carne... apenas carne.

O corpo emudecido pelo mundo tecnológico pode sermuito bem representado pela situação de extrema fragilidadeda infância. Toda criança se revela como tal, sobretudo, pelacondição de debilidade frente ao mundo hostil da natureza edo próprio homem que a cerca. O mesmo pode ser dito docorpo em relação à natureza e ao próprio espírito (desse corpoe dos demais corpos) que o deixam à mercê de situações derisco as mais variadas. Ela, a criança, necessita de cuidados,

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atenção e proteção constantes, tais como os que temos de dis-pensar ao nosso elemento físico, cotidianamente.

Se a infância por si mesma já padece em razão da ex-trema necessidade de cuidados constantes, o que não dizerda criança desamparada e desprotegida pela sociedade dosadultos? Mas o corpo, assim como essa infância entregue àprópria sorte, não se encontra também solto num mundohostil à sua pele, principalmente no mundo moderno, cheiode armadilhas as mais perigosas às suas carnes tenras e frá-geis? Aos seus ossos quebradiços? Esse é o motivo de enxer-gar na maioria dos filmes do vagabundo a tragédia no enre-do e no protagonista, assim como a comédia nos incidentesque cercam Carlitos o tempo todo e por e todos os lados.

Se Chaplin houvesse tido uma infância diferente da queteve, cheia de incidentes tristes e dignos de compaixão, tal-vez fosse o caso de situá-lo como uma exceção. Sim, porquenão parece muito provável, naqueles que tiveram a felicida-de de vir a esse mundo sem conhecer a miséria ou o abando-no, a compreensão da triste condição humana, quando nãoatendida em suas necessidades primordiais. Porque a pessoaafortunada não se viu exposta aos rigores e infelicidades quecostumam acompanhar os outros — os infelizes pela ausên-cia da fartura que sacia as necessidades e da proteção quecuida da fragilidade material. O criador do imortal Carlitosse encontra situado nesse último caso.

A infância de Charles Chaplin, que conhecemos emsua autobiografia Minha vida, está repleta de incidentes pro-fundamente tocantes, diria mesmo, de cortar o coração. Depais separados devido ao alcoolismo paterno, Chaplin pas-sou toda a sua infância em extrema necessidade material,muitas vezes sozinho e entregue à instituições de caridade.Sua mãe, uma mulher muito sensível e de constituição ner-vosa e frágil, embora de comovente dedicação aos filhos,não tinha como sustentá-los condignamente, por causa daprofissão de artista de variedades, na época muito precáriae que, além disso, a expunha a um desgaste superior às suasforças.

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A leitura da infância dele nos toca em vários momentos,podendo atingir, algumas vezes, devido à própria emoção quenos provoca, a compreensão da tristeza e dramaticidade quese escondem sob a figura cômica e ridícula do vagabundo.São muitas as passagens da infância de Chaplin que nos emo-cionam mas queria relatar apenas uma delas, a mais signifi-cativa, a meu ver. Isso ocorreu quando ele já havia experi-mentado em sua pouca idade muitas das situações tristes e deabandono em que a mãe, devido ao transtorno mental deque era de tempos em tempos acometida, involuntariamenteo deixava. Nessa ocasião, porém, ele estava junto a ela. Mo-ravam próximos a um açougue, no final da rua. Os carneirosque iam ser abatidos sempre passavam pela porta de sua casa.Certo dia, um deles em pânico, e aos saltos, tentou fugir,acuado e apavorado, derrubando algumas pessoas que tenta-vam apanhá-lo. Isso foi a causa do divertimento de algunstranseuntes que por ali passavam, além do próprio Chaplin.Mas ao ser finalmente apanhado e levado ao açougue paraser abatido o menino conscientizou-se da tragédia que se ha-via desenrolado diante de seus olhos e, assim, sensibilizado echorando, correu para a sua mãe, aos gritos: “Vão matar ocarneiro! Vão matar o carneiro!”.81

O próprio Chaplin nos conta que ficou dias pensandona tragicidade daquela caçada cômica. E que pensava na pos-sibilidade de aquele episódio haver estabelecido “uma espé-cie de premissa para os seus futuros filmes — a combinaçãodo trágico e do cômico”.82 Ainda que Chaplin possa ter com-posto a figura de Carlitos, tomando emprestado da infânciamodelos que o haviam impressionado, ficamos tentados aconcluir que nas vestes escuras do vagabundo já se encontrapresente a conscientização da fragilidade e finitude da exis-tência que ele parece ter adquirido muito cedo, como nessatriste tarde de primavera, quando do episódio do carneiro.Como ele deixou registrado, concebeu para seu personagemroupas que expunham em tudo contradição “as calças fofascom o casaco justo, os sapatões com o chapeuzinho”.83 Alémda divina coreografia que apresenta em situações de fuga ou

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do estado de embriaguez, também podemos reparar no ho-menzinho ridículo gestos e poses elegantes — como aquelede dar um leve toque no peito com as mãos, quando soluça—, que desafinam com o seu estado de extrema penúria edeselegância. Mas o ser humano não passa realmente de umacontradição ambulante! O espírito imponente e orgulhosovai sempre destoar das roupas miseráveis de um mendigo oudestituído da sorte —, como um nobre arruinado e mesmoassim cheio de presunção e pose. Chaplin está inteiramentecônscio do drama subjacente à carne, ao citar, ainda em suabiografia, o pensamento de Joseph Conrad de “que a vida ofazia sentir-se como um rato acuado esperando ser morto apauladas”. Ao que ele concordava, logo a seguir: “Essa ima-gem pode descrever a terrível situação de nós todos”.83 Dessemodo é que penso, devemos à experiência dolorosa de aban-dono e dificuldades de atendimento às necessidades básicasque sofreu na infância e que o fazia sensível à tragicidade daexistência, o vagabundo representar tão bem o conflito entrea majestade do espírito e a condição miserável do corpo.

A respeito de Shakespeare ele afirmou, ainda em suabiografia: “Talvez seja uma indisposição psicológica, umsolipsismo da minha parte. Em minha luta para conquistaro pão e a manteiga, as honrarias sempre me atrapalhavam.Nunca pude identificar-me com os problemas de um prínci-pe. A mãe de Hamlet, por mim, poderia ter dormido comqualquer pessoa de sua corte e eu continuaria indiferente àmágoa que isso poderia ter causado ao Príncipe da Dina-marca”.83

Como sabemos, o bardo inglês gozou de uma existên-cia tranqüila e, aparentemente, isenta dos sofrimentosadvindos do precário atendimento às necessidades básicasda existência, ao contrário de Cervantes e do próprio Chaplin.Talvez se deva a essas particularidades das biografias dos trêsgênios a criação respectiva de seus personagens. Tão profun-do em seu conhecimento da natureza humana quanto os ou-tros dois, mas de biografia mais bafejada pela fortuna, somen-te alguém como Shakespeare estaria na condição de extrair

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psicologia de personagens reais, tão acima da condição huma-na média e mais ainda daquela vivenciada pelas camadas maisbaixas. Aliás, pelo conhecemos, Shakespeare conviveu com arealeza da época e desfrutou do seu reconhecimento. O con-trário talvez pudesse ser afirmado em relação à composiçãode um Quixote, Sancho ou Carlitos por parte do poeta in-glês. Tenho a firme convicção de que tanto Cervantes quantoChaplin tiveram aguda intuição sobre a negação da carne.Especialmente Charles Chaplin, fruto dos tempos modernos,quando o corpo foi e continua sendo mais do que nuncaacuado de todas as formas e por todos os lados, não somentepela parafernália do progresso, tão hostil à fragilidade dacarne, mas também pela fartura de alimentos cuja aparênciaapetitosa, nas vitrines, assedia de forma perversa aquele quevive em estado de fome aguda, constantemente.

Assim como Cervantes se serviu da literatura como meiode expressão ideal da época, Chaplin utilizou a magia do cine-ma — ainda uma novidade em seu tempo — para dar “voz”ao espírito emudecido dentro de um corpo acuado e em con-flito com a grande expansão das coisas do progresso. Ora,num exemplo de flagrante paradoxo, o cinema, ao mesmotempo que representou o veículo ideal para a expressão des-se corpo acuado, é uma das melhores coisas inventadas pelomundo do super-homem. É a maior compensação por nãosermos espíritos livres e poderosos, por estarmos enjauladosnuma prisão da qual só escapamos através da morte. Nãopodemos esquecer que a magia que o cinema exerceu desde oseu início continua mais forte do que nunca hoje, quando atécnica dos efeitos especiais colabora de maneira magníficacom a ilusão embriagadora de “transportar” o espectadorpara dentro da tela, isto é, fazer com que ele tome parte naação, com muito mais sucesso do que o cinema antigo e apintura, dentro do mundo das artes. Ora, a sensação ilusóriade que adentramos um quadro ou um filme, participando,no caso desse último, de suas ações é o que de mais agradávelpoderia acontecer ao espírito que fantasia ser leve, livre esolto, vivenciando da carne apenas as delícias dos apetites

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saciados convenientemente. O fascínio da criação de Chapliné tão grande que, mesmo hoje, apesar do envelhecimento na-tural da obra, muita gente ainda sente o mesmo prazer em seencontrar numa sala de cinema, comodamente instalado numapoltrona confortável, assistindo ao tragicômico espetáculodenominado Carlitos, o eterno vagabundo. Sim, estaremossempre ali para rir daquele ridículo homenzinho e seu mara-vilhoso balé, porque não suportamos tomar conhecimentodela — da miserável condição da carne — em outras circuns-tâncias ou de outra forma que não seja através do riso e dagargalhada, detonadores naturais das emoções mais profun-das e inconscientes.

Um tema tão complexo quanto vasto como esse, o daquestão mente–corpo, que permeia praticamente todas as áre-as de nossas vidas, deveria merecer da psicologia maior aten-ção. Embora o “estado” filosófico permanente do problematenha incomodado os primeiros psicólogos, ansiosos que es-tavam por tornarem a psicologia apenas uma ciência, nosdias que correm são muitas as pessoas que se ocupam dotema, seja de forma direta, como uma questão já definida ecolocada sob estudo ao longo da história do pensamento,seja indiretamente, como pano de fundo para muitos proble-mas atuais. Para compreendermos melhor a razão por que apsicologia não elegeu tal questão como a espinha dorsal deseus conhecimentos, necessário que nos detenhamos na análi-se minuciosa daquele que dentre todos os mitos demonstrouser objeto de profundo interesse dos psicólogos. Estamos fa-lando de Narciso. Ora, a história de Narciso é a história dohomem. Dê a ele um espelho para que possa espiar a própriaimagem e estaremos diante do retrato mais fiel de sua verda-deira condição.

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— Por minha fé de cavaleiro andante — dis-se Dom Quixote: — assim que vi este carro, imagi-nei que uma grande aventura se me oferecia; agoradigo que é mister tocar com as mãos as aparências,para dar lugar ao desengano.

Dom Quixote, Miguel de Cervantes,vol. II, cap. XI, p.90.

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A QUESTÃO MENTE–CORPO PARA A PSICOLOGIA

O mito de Narciso — que se tornou popular através dainterpretação psicanalítica — trata da história de um belojovem apaixonado pela própria imagem, vista através do es-pelho das águas de uma fonte. Por esse amor deixou-se mor-rer, havendo o seu corpo se transformado em uma flor.

Junito de Souza Brandão, emérito professor de Línguae Literatura Grega e Latina, falecido não há muito tempo,deixou-nos em uma de suas obras uma detalhada narraçãosobre o tema.84 Dele podemos retirar informações necessári-as para uma melhor compreensão do mito, como aquela daprofecia feita por um grande adivinho à mãe de Narciso. Àpergunta se o filho viveria muitos anos, Tirésias, o adivinho,respondeu que sim, ele viveria muitos anos desde que não

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visse a própria imagem. Outro detalhe importante a respeitoda história é a referência à etimologia da palavra Narcisoque o professor nos explica como incerta, mas cujo elementogrego — nárke — é traduzido como “torpor, entorpecimen-to”. A palavra foi, posteriormente, relacionada ao poder es-tupefaciente da flor, passando o radical narc a se referir, deuma forma geral, ao sono. Após uma cuidadosa narração, oprofessor nos apresenta as mais conhecidas interpretaçõessobre o mito. Vejamos, primeiro, o elemento principal detodas elas e que diz respeito à reflexão do jovem no espelhodas águas.

“Viu-se na água e ficou embevecido com a própria ima-gem”.85 O professor oferece-nos uma argumentação convin-cente acerca do mito, com base em antigas interpretaçõesque, posteriormente, foram revistas pelos modernos. Vamosresumi-la àqueles pontos que mais nos interessam: 1) apai-xonar-se pelo próprio reflexo nas águas significaria o refluxoda libido para uma atividade endopsíquica, uma paixão pelaimagem do self, ou ainda, sua auto-imagem ou alma; 2) aanorexia, que leva Narciso ao suicídio, resultaria da decep-ção pelo fato de a imagem adorada não possuir equivalenteno mundo real. A interpretação é coerente. A paixão de Nar-ciso por sua alma pode ser entendida como a identificaçãoprimordial com o ser pensante. Nesse sentido, Narciso re-presenta o primeiro homem — o Adão para a Psicologia.

O segundo ponto — a anorexia que leva ao suicídio —que nos dá a idéia da intensidade da identificação, nos contaque o jovem prefere a morte ao perceber que não poderiavivenciar o seu devaneio. Temos aí uma afirmação que susci-ta questionamento. Não penso que o reflexo de Narciso, queno fundo representa a sua alma, não possua equivalência navida real. Para entendermos isso temos de pensar na libido,não no sentido de energia sexual como a empregou Freud,mas com a ampliação dada por Jung, indicando a energiapsíquica existente em todas as nossas tendências.Desvinculando o objetivo sexual da paixão de Narciso, po-demos entender o seu desejo pela alma como significando a

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identificação com os atributos psíquicos de seu universo men-tal. Ora, já vimos que a aparelhagem eletrônica do mundo dehoje representa uma compensação para a frustradora realida-de física do homem, que responde com o peso, a lentidão, afragilidade e o encarceramento dentro de um corpo materialàs características mentais da leveza, velocidade, onipotência,liberdade e onipresença. Deste modo, o suicídio de Narcisonão poderia ser creditado tão-somente à desilusão advindada não equivalência da auto-imagem no mundo real porquese assim o fizéssemos estaríamos aceitando o envelhecimentodo próprio mito, já que a sua simbologia não abrangera odesdobramento das coisas humanas. O contrário ocorre se,para uma visão geral do mito e não apenas no sentido doamor sexual, entendermos a paixão do jovem também comoo anseio desmedido pela imaterialidade, anseio esse que nãose contentaria apenas com a compensação oferecida pelatecnologia. Nesse sentido sim, a morte de Narciso represen-taria um prognóstico acertado para o futuro. Assim comoele, o homem estaria disposto até à autodestruição paravivenciar essa identificação ilusória. Diante de tantas vidassacrificadas na construção de um mundo para super-huma-nos, e, sobretudo, da ameaça constante de o próprio desen-volvimento propiciar a destruição do planeta, temos de re-conhecer que o mito continua mais atual do que nunca. Masa morte de Narciso pode, também, significar o risco de sedeixar perder no mundo do ser pensante e, nesse sentido, asua transformação na flor soporífera pressupõe o alerta parao perigo do adormecimento para o mundo real da matéria.Como se vê, a riqueza do mito permite que utilizemos for-mas variadas para atingi-lo. Assim sendo, deixemos os ins-trumentos utilizados pelo ilustre professor, a fim de rea-lizarmos a nossa própria abordagem.

Qual seria a razão para o jovem — ao ver-se refletido noespelho da fonte — não se haver apalpado? Como nós mes-mos nos olhamos no espelho? Geralmente, quando olhamospara o nosso rosto olhamo-nos primeiramente dentro dosolhos, para somente depois repararmos em nossas faces e no

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corpo. Poderemos até nos apalpar no rosto e no corpo, masapós havermos dado primeiro uma rápida olhada dentro denossos próprios olhos. Ora, o que pode significar isso? Sim-plesmente que, ao olharmos inicialmente dentro dos olhos, jános identificamos plenamente com o nosso eu pensante. Essaidentificação pode ser representada pelo ato de “enamorar-sede sua própria imagem”. Depois disso, podemos olhar detida-mente para o nosso corpo e face, que não enxergaremos maisa carne em sua realidade frágil e mortal, porque já estaremosentretidos com a imagem idealizada desse mesmo corpo. Mes-mo quando nos olhamos de corpo inteiro, não nos mirandoprimeiro dentro dos olhos, a “contaminação” pelas centenasde outras espiadelas em nossas almas nos faz reparar apenasno eu pensante e no corpo ideal — o eu da vaidade — obser-vado através das roupas e da aparência.

O mito de Narciso confirma o alheamento do homempela carne. A história não nos conta que, ao olhar-se, eletenha se apalpado, o que poderia significar uma primeiraidentificação com o corpo mas sim que, enamorado da pró-pria imagem, “Julga corpo, o que é sombra, e a sombra ado-ra”.86 Nesse verso de Ovídio está manifesto o corpo com oqual Narciso se identificou. A sombra representa o corpo ideal,isto é, o corpo imaginado pelo ser pensante. Continuando anarração do mito, através da voz do poeta, deparamos como verso: “Deitado contempla dois astros: seus olhos e seuscabelos”.87 O poeta nos diz que são dignos de Baco e de Apoloe após essa afirmação continua a descrever o embevecimentodo jovem pela beleza dos seus outros traços faciais. Repare-mos na ordem da descrição. Em primeiro lugar, Narciso sedeixa extasiar pelos seus próprios olhos. Os cabelos são ape-nas a irradiação desses dois astros, mundos fechados em simesmos. Dignos dos deuses que representam os pólos do serpensante: o da embriaguez e o do outro, senhor do Oráculode Delfos e sua sabedoria máxima: “conhece-te a ti mesmo”.Apenas depois de se mirar dentro dos olhos é que observa orestante de sua aparência. A seqüência confirma a constataçãofeita logo atrás, de que ao olharmos no espelho comumente

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olhamo-nos nos olhos, para somente depois repararmos emoutros detalhes de nosso rosto ou corpo. O último verso deOvídio, transcrito no livro do professor Junito, confirma aprioridade dos olhos na experiência do espelho: “E por seuspróprios olhos morre de amor”.88 O verso deveria referir-seà beleza de Narciso como um todo. Mas não, ele deixa bemclaro a causa da morte de Narciso. Esta lá, no belo verso deOvídio. Invertendo a sua ordem fica ainda mais claro: morrede amor por seus próprios olhos. Confiando na traduçãoutilizada pelo professor, penso que o verso, se fosse atribuircomo o motivo da morte a aparência geral do jovem, deveriase expressar claramente através dos termos “engano” ou “ilu-são”. Se o poeta tivesse se expressado assim: “iludido, morrede amor”, não teríamos nenhuma dúvida. Mas o poeta, senão quis ser fiel à história do mito, foi, sobretudo, ao seuengenho, e o original é muito superior. Alguém pode per-guntar de que importa esta pequena diferença. Talvez ela nãoseja importante para a vida real. Mas à nova compreensão daquestão mente–corpo interessa na medida em que auxilia naexposição clara dos conceitos. É importante ressaltar a prio-ridade da identificação de Narciso com os seus olhos porqueo ser pensante antecede ao corpo ideal, criação dele próprio.Os olhos são o espelho da alma, confirma sabiamente a sabe-doria popular, e se Narciso olhou primeiramente para elesfoi para imergir nesse universo, fugindo do (re)conhecimentoda carne. Isso contradiz uma afirmação do livro do profes-sor. Nele, ficamos sabendo do anseio das almas pela matéria.Olhar-se no espelho seria enamorar-se de seu reflexo no cor-po físico, deixando-se prender no cárcere desse corpo. Nãotenho estatura para medir tão insignes autoridades. Longede mim tentar competir com a credibilidade de suas afirma-ções e achados. Entretanto, acredito que a confrontação e oquestionamento servem apenas para demonstrar que ambasas colocações podem ser feitas a respeito de Narciso, já que,como vimos, quanto mais significativo for um mito para ohomem, mais rico em interpretações e contradições ele semostra.

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“E por seus próprios olhos morre de amor”. Diante dooutro dado — a morte —, poderíamos questionar a nossainterpretação. Por que o mito nos fala dela, se a identificaçãocom o ser pensante deveria supor a imortalidade? Aqui estáum exemplo da contradição que acabamos de assinalar, deque um mito significa a intuição de uma verdade profundasobre a existência e, como tal, um símbolo que traz em si acomplexidade de uma variedade de interpretações. Assim, amorte de Narciso significa que, ao olhar-se no espelho daságuas, ele não somente se identificou com o ser pensantemas, também, se inteirou da transitoriedade da carne. A com-provação para esta interpretação vem ainda do livro do pro-fessor. Lá, ficamos sabendo da universalidade do antigo medoe proibição de contemplar-se nas águas paradas, fornecedorado espelho para a imagem. A proibição se fundamenta norisco de que a imagem da alma seja levada pelas forças domal. Outras superstições apontam para perigos semelhantes,tais como a do espelho quebrado ou o ato de olhar-se noespelho à noite, ainda de acordo com as informações do cita-do livro. Com pouquíssimas variações, todos esses receiostêm o mesmo sentido, visto que as experiências com o espe-lho reproduziriam a que existe de mais importante nasimbologia de Narciso: identificar-se com a mente, ao mes-mo tempo, inteirando-se da morte. A identificação com aalma representa, além do desejo, o perigo de render-se aomundo de ilusões — tradução para o medo de que a imagemda alma fique à mercê das forças malignas. Quanto àconscientização da morte, essa seria a última coisa que estarí-amos dispostos a aceitar, daí o mito trazer no bojo da pró-pria conscientização o conflito, isto é, a negação da morte.Fechando o círculo, a identificação com a alma serve paranegar a consciência do corpo, nascida do olhar que surpre-ende a sua imagem.

Em alguns outros exemplos, como o temor das sombrase dos retratos, a leitura poderia ser a mesma: o desejo e, simul-taneamente, o medo de se deixar perder no mundo do eupensante. O receio de que olhando para a imagem da corpo

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— seja através do espelho, da sombra ou do retrato — seconscientize ou se lembre da realidade frágil desse corpo. Ago-ra podemos compreender a profecia do adivinho Tirésias, arespeito da longevidade de Narciso. Ele viveria vários anos,desde que não visse a própria imagem. Em sua essência, o mitoé dual como o próprio conflito que espelha. Ele tanto repre-senta o desejo pela identificação completa, quanto o medo daconscientização da morte. Quanto ao último, o pensamentomágico raciocinaria mais ou menos assim: se ver a própria ima-gem leva à conscientização ou à lembrança da realidade da mor-te, isto é, permite que ela manifeste a sua inevitabilidade, evitarolhar para o espelho ou tirar uma fotografia seria negar essapossibilidade à morte e, desse modo, impedir que ela aconteça.

Mais difícil de compreender, entretanto, a versão parao temor como o de que, olhando para o espelho ou deixan-do-se fotografar, a alma fique à mercê das forças do mal ou àmercê do fotógrafo. Se fosse assim, então, provavelmente nãogostaríamos de nos embebedar, porque quando bêbados dei-xamos o espírito liberto de todas as convenções, aberto paraas mais perigosas influências. Também, não exporíamos a almaao arrebatamento das mais alienantes paixões, crenças e opi-niões. Mas ao contrário, parece que o gosto pelas bebidas oua inclinação pelo fanatismo nascem, justamente, da felicida-de em se deixar o espírito à disposição da aventura e do im-previsto, ou, no caso do fanatismo, sob o poder das obses-sões. Por que temeríamos pelo espírito, se ele próprio, mui-tas vezes, anseia pela fusão com outros espíritos ou coisas e,além disso, representa poderes ilimitados?

A proibição de se tirar fotografia parece mais escondero medo de que, vendo a imagem do corpo físico, o fotógrafoe as outras pessoas que olharem para o retrato tomem co-nhecimento da fragilidade e da condição mortal daquele cor-po. Ora, já sabemos, através da Psicanálise, que para oinconsciente não existem as contradições nem os obstáculosa que fica submetido o raciocínio, quando em vigília. Dessemodo, a fotografia como revelação da fragilidade do fotogra-fado representaria uma lembrança de sua condição mortal e

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ao mesmo tempo uma ameaça à sua vida. Porque lembrar damorte equivaleria a provocá-la. A única forma de se protegercontra esses perigos seria, como já falamos, não se observarno reflexo do espelho nem permitir que lhe tirassem a fotogra-fia, ficando a salvo de qualquer risco. Porém, a realidade damorte, não importa quantos cuidados tomemos em negá-la,continua a nos atormentar. Basta que olhemos para o corpodo outro para nos lembrarmos dela, ainda que, nesse caso,concebamos a triste realidade apenas para o outro.

Não podemos esquecer que os exemplos do espelho eda fotografia remetem ao passado de um modo geral e, emparticular, a algumas culturas primitivas. O moderno culto aocorpo — que faz da imagem, seja a da fotografia ou a da tele-visão, os verdadeiros ícones do mundo atual —, parece des-mentir essa leitura do mito. Mas se nos recordarmos da dife-rença entre o corpo real e o corpo que idealizamos, compre-enderemos a aparente contradição. O corpo, hoje, cultivadonão somente nos aparelhos de academias, nas fotografias enas imagens da TV é o corpo ideal e por isso não nos atemori-za nem nos desagrada expô-lo. Muito pelo contrário. A au-sência completa do temor, demonstrada na atitude contrária— a do culto obsessivo — é, justamente, o termômetro capazde medir o aumento desse corpo ideal, em detrimento da acei-tação do outro, o de carne. O consumo desenfreado da ima-gem do corpo demonstra, portanto, o grau que essa febre al-cançou no delírio de nossa época, além do que, ao invés dedesmentir ou envelhecer o mito, apenas o confirma.

A nossa interpretação também é coerente com aetimologia da palavra Narciso, que, como vimos, se relacionaao sono. Quando dormimos sonhamos, e os sonhos, com asua procissão de gratuidades e loucuras aparentes — livres davigilância diurna da consciência — são a mais fiel representa-ção do mundo do eu pensante, principalmente enquanto in-consciente. Assim, a narcótica flor na qual Narciso se transfor-mou após a morte simboliza a negação dessa morte tão temida,como se o mito nos tranqüilizasse: isso não passa de um sonho.Talvez seja essa a razão de — ao olharmo-nos no espelho —

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fixarmos o olhar primeiro dentro de nossos próprios olhos,para somente depois nos observarmos em outros detalhes. Alémde não resistirmos à atração do universo mental, é semprebom nos prevenirmos contra a morte, nos embriagando e nosnarcotizando com o nosso próprio olhar.

Todas as interpretações teriam que partir doembevecimento do jovem pela própria imagem, porque oembevecimento está lá, faz parte do mito. Vejamos a psicanáli-se. Hoje todos sabemos, mesmo que de uma forma superficial,o que significa ser chamado de narcisista. A essência do con-ceito pode ser expressa resumidamente assim: o sujeito toma asi próprio como objeto de amor. O acerto da visão psicanalíti-ca a respeito de Narciso transformou-a na mais aceita e conhe-cida interpretação do mito. Realmente, os problemas que onarcisismo acarreta na vida das pessoas podem ser conferidosna prática cotidiana de psicoterapeutas. Aliás, já não se falasomente em pessoas narcisistas mas sim em uma cultura narci-sista e a veracidade da interpretação fez dela um instrumentoútil na compreensão da sociedade contemporânea. Mas o con-ceito de narcisismo e a psicanálise parecem distantes do pro-blema mente–corpo. Como veremos mais adiante, Freud sen-tiu-se à vontade para não definir-se “oficialmente” quanto àsua posição e isto talvez tenha acontecido pelo fato de o obje-to da psicanálise lidar sobretudo com os aspectos subjetivosdo homem. Assim, não surpreende a constatação de que, em-bora tão profunda em suas análises, a psicanálise não tenhadetectado no mito de Narciso esse que representa um dosmaiores conflitos do homem, que se entrega cegamente aosdomínios do ser pensante, em detrimento do físico.

Um mito, como já dissemos, tem a capacidade de des-pertar múltiplas interpretações. A diversidade de leituras queele provoca é coerente com a complexidade humana. Assim,gostaria de deixar claro que a minha interpretação não pre-tende disputar lugar com aquelas outras consagradas pelacultura e que o ilustre professor, já citado, tão bem desenvol-veu em seu trabalho. A leitura do mito que acabamos de fazerpoderá, na melhor das hipóteses, ser aceita e assim juntar-se às

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demais. Se existe algum mérito no trabalho realizado até ago-ra, esse poderia ser o de nos levar a imaginar como teriamsido os caminhos da Psicologia se o seu embasamento fosse aprópria questão mente–corpo.

Mas como, poderão alguns questionar. Como a Psico-logia, pretendendo uma posição científica, poderia se embasarnuma questão filosófica? Apesar disso tudo, não vejo comoarrancar dessa ciência o problema mente–corpo, sem que eladesprenda seus pés da terra, onde deveria mantê-los finca-dos. Sem a questão mente–corpo para lastrear-lhe os porões,a Psicologia corre o risco de se transformar em um navio aosabor das ondas, perdida, cada vez mais, no mar daspsicoexcentricidades. Quanto mais afastada do centro da ques-tão — o reconhecimento da identificação com o ser pensante,em detrimento do corpo —, maior o perigo da inconsistên-cia. Por conseguinte, ela poderia explicar o homem mas nãoo mundo que ele construiu e que, afinal, reflete a própriacontradição interna. Além disso, separar em departamentosdiferentes os problemas humanos só pode ser útil didatica-mente e algum tipo de conciliação entre a ciência e a filosofiadeverá continuar sendo o principal objetivo do trabalho demuitos pensadores, filósofos e cientistas do novo milênio.

Porém, mesmo que o problema MC não fosse deixadode lado, o desenvolvimento da Psicologia em suas diversas li-nhas teóricas e psicoterápicas seria, provavelmente, o mesmo.Principalmente aquela que, oriunda da medicina e tendo comoobjeto de estudo o inconsciente — caso da Psicanálise —, nãoteve a oportunidade de esbarrar com a incômoda questão MC,como as teorias que partiram das experiências de laboratório.Tanto é assim que Freud não parece haver se preocupado mui-to a respeito, e, embora tenha se posicionado como umparalelista psicofísico, podia ser definido — em vários trechosde seu trabalho —, ora em uma, ora em outra posição filosófi-ca, de acordo com Jones, seu discípulo e biógrafo.

É interessante observarmos a relação difícil que os psi-cólogos mantinham com a questão. Profundamente interes-sados em elevar a Psicologia à categoria de ciência, a maioria

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daqueles homens subestimavam o problema que para eles eramais metafísico, porque não oferecia nenhuma solução cien-tífica. Mas como o seu objeto de investigação fosse o homeme esse homem se constituísse de uma parte física e outra men-tal, apesar de todos os cuidados que tomavam para evitá-lo— fazendo a medição rigorosa de seu comportamento —,naturalmente, volta e meia se deparavam com a teimosa ques-tão em seus caminhos. A situação foi problemática para obehaviorismo, especialmente para o seu fundador (John B.Watson, 1878-1959), ao negar a realidade da consciência,provocando na década de 1960 discussões a respeito do as-sunto. Visando unicamente a previsão e o controle do com-portamento que ficava reduzido às secreções glandulares eao movimento dos músculos, o behaviorismo, com o seu ri-gor científico, eliminava a possibilidade de a consciência ser-vir de objeto de investigação. Isso acontecia porque concebi-am as idéias apenas como o produto da complexa organiza-ção da matéria, isto é, era possível fazer delas uma leiturainteiramente fisiológica, retirando-lhes a existência própriacomo idéias, mente, pensamentos ou imagens. Porém, comovimos, os métodos de experimentação exigiam uma defini-ção precisa do objeto de investigação, e, como esse era opróprio homem, o estudo de seu comportamento teria depassar necessariamente pela dificuldade em delimitar as fron-teiras entre o físico e o mental ou, ainda, questionar a reali-dade da própria consciência. Watson, em seu rígido monismomaterialista, lidou com a questão somente para destituir-lheo valor. Realmente, uma questão assim não faz sentido paraa ciência. A não ser para o estudo das perturbaçõespsicossomáticas e somatopsíquicas, o problema mente–cor-po serve apenas para incompatibilizar-se com a ciência. Elesse encontram em campos opostos e reconhecer a questão éinibir a inteira liberdade dos avanços científicos. É conceberoutro caminho para a civilização e isto não interessa a quemvê a ciência como um fim em si mesma.

Esse aspecto nada científico da questão foi o maior res-ponsável pela pouca importância que a maioria dos primeiros

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psicólogos deram a ela, e embora o problema tivesse sidoabordado por outras linhas, para este livro somente interes-sam as posições de Freud e Watson. Seria uma tarefa extenu-ante analisarmos cada uma delas, assim como também imagi-narmos de que modo seria essa disciplina se o problema MCfosse o seu embasamento. Desse modo, só nos resta avaliar oque ela perdeu, ou melhor, o que todos perdemos com a re-jeição à questão. Com exceção da psicanálise, como já vimos,de uma forma ou outra todas as linhas da psicologia tiveramde se posicionar diante do problema, porque era esse o obje-to de estudo de todas elas: o homem por inteiro.

Provavelmente lidando com o aspecto psicossomáticode inúmeros distúrbios e havendo provado sua utilidade naclínica de tantos psicólogos, a psicanálise da abordagem cor-poral, de Wilhelm Reich, assim como tantas outras terapiascorporais, só aparentemente tratam da realidade da carne.Na verdade, se existe algum corpo na Psicologia e na Psica-nálise esse só pode ser o de desejos. Embora a literatura psi-canalítica mencione, exaustivamente, órgãos e funções cor-porais, parecendo desmentir esta afirmação, posso afirmarque isso se trata de uma espécie de psicologismo do corpomaterial, ou seja, a tradução para a Psicologia — feita porFreud —, da maneira como o ser pensante enxerga e se rela-ciona com a carne. Como já deixei claro no primeiro capítu-lo, não é dessa carne que tratamos aqui. A outra não serviriaa subjetivações de nenhuma espécie porque reconhecê-la, ver-dadeiramente, é justamente cuidar para não cair na deliranterede do pensamento que distorce e aliena a percepção darealidade de sua existência. Vê-la com esses olhos foi o mes-mo que mirá-la em seu vestido de cetim e, desse modo, oconhecimento psicanalítico nos passou, infelizmente nesseaspecto, mais a voluptuosidade da seda do que a triste condi-ção da falsa dama que, sob as vestes, se esconde. Além domais, somente um tratado sobre ele — o ser pensante na di-mensão inconsciente —, poderia inspirar tão vasta produçãoliterária e a multiplicação de conhecimentos e teorias, comoaconteceu com a Psicanálise.

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O terreno propício em que se encontra o corpo idealcontemporâneo deve muito de sua fertilidade à atenção exces-siva que os desejos receberam da parte da psicanálise, assimcomo das terapias que a tiveram por base. Isso só fez colabo-rar para um individualismo que se afasta, cada vez mais, dacompreensão e solidariedade para com as necessidades e tris-te condição da carne. O corpo do qual nos alienamos, numprimeiro momento, pertence ao outro, visto que a verdadei-ra conscientização do nosso corpo material passa, necessari-amente, pelo reconhecimento do corpo social. As terapiasque reforçam o egotismo voltado ao corpo ideal fatalmentecontribuem para reduzir a conscientização do corpo social,dele realçando apenas o fator relativo ao dinheiro. Assim,estamos falando de uma contribuição indireta para uma soci-edade mais egoísta, injusta, superficial e consumidora. Eis overdadeiro prejuízo que a visão unilateral do homem sem oembasamento no conflito mente–corpo causou à Psicologia.Se ela é capaz de fazer o bem a um homem — tomado indivi-dualmente —, entretanto, contribui pouco ou quase nada paraa própria humanidade. Pior, às vezes reforça a alienação na-tural da carne, quando deveria nos conscientizar.

A ausência da fundamentação no conflito gera uma es-pécie de cegueira, na prática da Psicologia. Se verdadeiramen-te prestássemos atenção na criança — por volta dos quatroanos —, veríamos as patéticas tentativas em superar a fragili-dade de seu corpo como a idade do florescimento do super-homem. A facilidade da identificação com os poderes de se-res extraordinários tem sido reforçada, também, através domodelo do super-herói, nos desenhos animados e filmes pas-sados na televisão. Um pouco mais tarde, porém, a criançaentra na fase de preocupação quanto ao corpo físico. As do-enças, os ferimentos, os retratos ou gravuras de esqueletos asimpressionam bastante. Às vezes, durante o banho, imagi-nam que seu corpo possa deslizar pelo ralo. Todas essas ansi-edades revelam um temeroso reconhecimento da realidadematerial dos corpos. Mas parece que a Psicologia não conse-guiu enxergar nessa alternância de sentimentos a aparição

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do conflito, já na infância. Ou o fez de certa maneira, como aPsicanálise, tão entranhada em outros complexos que o pro-blema se perdeu antes mesmo de ser destacado em sua impor-tância. Assim, é possível, por exemplo, “lermos” sobre o con-flito mente–corpo em várias passagens dos escritos psicanalíti-cos, e, principalmente em Freud, sem que o conflito tenha sidoeleito, clara e diretamente, como o problema central. Ao con-trário, no final prevalecem as questões sexuais que, emborasejam da máxima importância, não poderiam deixar de lado aquestão primordial da existência humana. Embora o comple-xo conceito de pulsão destrutiva o contradiga, a priori, pareceque a constatação do medo da morte ficou evidente para al-guns pensadores e escritores, leitores especiais de Freud. Den-tre esses gostaria de destacar Ernest Becker, vencedor do Prê-mio Pulitzer, e que escreveu o livro denominado A negação damorte (Ed. Record, 1973). Nesse livro, do qual a extensão dopresente trabalho não permite mais fazer uma análise demora-da, o autor destaca que “o corpo do homem era realmenteuma ‘maldição do destino’, e a civilização estava erigida combase na repressão — não porque o homem procurasse apenassexualidade, prazer, vida e expansividade, como pensara Freud,mas porque o homem procurava, também, primordialmente,fugir à morte” (p.103). Ou seja, a constatação da base do pro-blema, o repúdio ao corpo e a negação da morte, estava lá emseus escritos. Em sua intuição verdadeira. Mas o processo in-telectual erigido sobre essa intuição privilegiou o aspecto se-xual, em detrimento do mais importante deles.

Retornemos a Narciso para que possamos fechar o tex-to. Agora sabemos que seu espelho é também umdecodificador da dualidade aparente que subjaz na realidadedo homem. Se a estreita e harmoniosa interação entre o espí-rito e a carne nos faz seres únicos, isso não parece haver sidoum obstáculo para a consideração do corpo como uma pri-são para a alma. Ora, para a imaginação atual, cheia, até àborda, de todo disparate possível — tal qual a de DomQuixote —, ele bem poderia ser percebido agora como umaverdadeira camisa-de-força.

PARTE II

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FILOSOFIA: CONTANDO UMA

NOVA HISTÓRIA DA QUESTÃO

Se nos dermos ao trabalho de rastrear a questão men-te–corpo ao longo da história da filosofia, poderemos ficarsurpresos com o êxito de tal iniciativa. Veremos que o pro-blema surgido com os primeiros filósofos continua a desen-volver-se e o que parecia inicialmente apenas mais uma ques-tão colocada à divagação filosófica, com uma leitura atentaacaba se revelando um verdadeiro divisor de águas na histó-ria do pensamento: de um lado ficaram os poucos filósofosque reconheceram o corpo, e do outro a maioria que sucum-biu ao fascínio do ser pensante, fascínio esse que desembo-cou em nosso mundo contemporâneo, do homem que cami-nha para o mundo do super-humano.

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A razão de o presente livro dar maior atenção aos pri-meiros filósofos deve-se ao fato de encontrar-se no pensa-mento da antiga Grécia todas as questões mais importantesda humanidade, inclusive essa a que este trabalho se dedica.Essa dívida parece haver aumentado de uma tal forma que,ao falarmos de homens como Protágoras, Sócrates e mesmoda sociedade ateniense como um todo, temos a impressão deestarmos nos referindo aos tempos atuais. A sensação de fa-miliaridade que surge ao tratarmos dessa época talvez sejaconseqüência do fato de podermos interpretar o aumento dademocracia no mundo atual também como uma espécie deapogeu de uma longínqua pólis democrática, mas longínquasomente no tempo, já que Atenas representou o berço dacivilização ocidental, com seus sofistas e a valorização máxi-ma da palavra. Como veremos a seguir, nosso mundo capita-lista, democrático e consumidor teve início em meados doséculo VI a.C., e, mais precisamente, na Atenas que envene-nou Sócrates e que perante a ambigüidade dos sofistas prefe-riu o fascínio da eloqüência, o poder das palavras, às verda-des que elas proclamavam.

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OS PRIMEIROS FILÓSOFOS

Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, acre-ditava que tudo tinha a sua origem na água. Embora simplistaem sua tentativa de englobar o conhecimento, essa busca pelanatureza ou princípio (physis em grego) começa com o teste-munho dos sentidos (a água, a gente vê com os olhos e sentecom a pele), ou seja, o início da filosofia se dá com o reco-nhecimento das coisas materiais. De forma indireta, isso re-presenta na história do pensamento a primeira admissão in-telectual da realidade da matéria. Mas vindo logo depois deTales, Anaximandro, seu discípulo e sucessor, diz que o princípiode tudo era o “ápeiron” que significa o “ilimitado” ou“indeterminado”. Com isso, percebe-se que a filosofia, havendose iniciado com a afirmação da matéria e, conseqüentemente, do

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corpo, logo a seguir os nega, colocando em seu lugar o serpensante, que poderia muito bem ser cognominado de ilimi-tado, indeterminado ou infinito.

Estava assim inaugurada a dualidade MC à luz da ra-zão, com uma acentuada e progressiva tendência ao serpensante. Essa identificação maior com a mente pode ser ilus-trada de uma maneira pitoresca no famoso tombo que levou oprimeiro filósofo, não percebendo no chão a existência de umavala, absorto que estava com os olhos fitos no céu, estudandoas estrelas. Apesar de haver reconhecido indiretamente o cor-po, Tales de Mileto, sendo o primeiro filósofo, simboliza elepróprio a filosofia e sua queda histórica é um exemplo inte-ressante de coincidência significativa entre estar nas nuvenspara depois cair em si (literalmente no chão), isto é, perder-se no mundo mental, só tomando conhecimento do corpo ede seus limites de forma abrupta e dolorosa. Ora, essa será acaracterística predominante na evolução humana e o pensa-mento filosófico, como um produto genuinamente intelectu-al, só faz refletir tal tendência.

Os filósofos seguintes, Anaxímenes e Pitágoras, elegen-do o ar e o número, respectivamente, como o princípio detudo o que há no mundo, vão tornando a filosofia cada vezmais rarefeita e incorpórea, até que com Heráclito e Parmênidesatinge-se a abstração pura, ou seja, a filosofia do ser pensante.Heráclito de Éfeso aparentemente vacila entre um conheci-mento maduro sobre a mente, ao afirmar que a alma é ilimita-da por possuir um logos profundo, e uma tendência a sucum-bir a essa mesma profundidade. Isso acontece quando nos diz,por exemplo, que tudo é composto a partir do fogo, pois ofogo é também um elemento de representação mental.

Se Heráclito nos deixa em dúvida quanto à sua verda-deira posição, com Parmênides e sobretudo Zenão, seu discí-pulo, o pensamento filosófico se rende ao mundo do serpensante, encontrando nele a negação dos sentidos corpo-rais. Em Parmênides, a precisão da lógica formulando a uni-dade do ser desmentia a experiência de multiplicidade dossentidos. Estava lançada a metafísica e a lógica, em que Zenão,

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elevando ao grau máximo seus paradoxos, chegava a negar aexistência do movimento e da pluralidade das coisas, comoabsurdos impossíveis sob o ponto de vista da lógica.

Retirando a filosofia do campo exclusivo do serpensante, os filósofos seguintes Empédocles, Anaxágoras,Leucipo e seu discípulo Demócrito são pensadores que fo-ram buscar outra vez na natureza os elementos necessáriospara “corporificar” uma filosofia abstrata, perdida nos labi-rintos mentais. Empédocles aponta os quatros princípios domundo: a água, o ar, o fogo e a terra. Para que se misturem ese movam são necessárias as forças do amor e do ódio.Anaxágoras apresenta o mundo como resultado de infinitascombinações por interferência do Nous, espírito que possuiuma corporeidade sutil e cuja ação é de natureza mecânica.Finalmente, é com Leucipo e Demócrito que a filosofia, naverdade, troca o ser puramente mental de Parmênides e Zenãopelo átomo, que embora invisível é substância, uma vez quepossui um corpo.

Leucipo e Demócrito resgataram para a filosofia o chãopara os pés, ao invés de mais espaço para as asas. Isso querdizer que no lugar do ser abstrato de Parmênides (que naverdade é o ser pensante) nossos filósofos colocam o corpo,isto é, o átomo. O átomo é o corpo fragmentado mas mesmoassim uma substância formadora dele, e é a partir desta quetem início a sua filosofia. Demócrito, particularmente, so-bressai pela contemporaneidade de suas observações, sob daperspectiva da questão MC. Para começar, ele considerava aalma e a mente como idênticas. Quando nos diz que o ho-mem deve aprender, levando-se em consideração que ele seencontra distante da realidade, nos surpreendemos com aprofundidade da advertência. Ela se casa perfeitamente bemcom a máxima de Protágoras: “O homem é a medida de to-das as coisas”.89

Ambos falavam da deformação que o mundo real sofreao ser intermediado pela percepção do homem. Seu sistemanervoso central, como já vimos, está 99,98% fechado sobresi mesmo, formando quase que uma realidade à parte do

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mundo material. Demócrito, de maneira sábia, nos deixa cons-cientes disso ao afirmar: “As coisas de que o corpo precisaestão à disposição de todos facilmente, sem pena e sofrimen-to; tudo quanto precisa de pena e sofrimento e torna doloro-sa a vida não é o corpo que deseja, mas a má constituição dopensamento”.90 Em outra ocasião, parecendo se referir aomundo atual, consumidor compulsivo, afirmou: “O desejode riquezas, que não é delimitado pela saciedade, é muitomais penoso que a miséria extrema, pois os desejos maioresfazem maiores as carências”.91 Assim aconselha: “É precisoreconhecer que a vida humana é frágil, pouco duradoura emisturada com muitos cuidados e dificuldades, para que hajapreocupação por uma posse moderada e a labuta se meçapelas necessidades de cada um”.92

Parecendo corroborar o que em essência encontramosneste livro, Demócrito acusa a alma — ser pensante — comoculpada pela infelicidade humana, como já mencionamos nocapítulo 1: “Se o corpo instaurasse um processo contra elapelas dores que padeceu e pelos maus-tratos que sofreu e seeu fosse o juiz da acusação, com prazer condenaria a alma,alegando que, de um lado, ela fez perecer o corpo por suasnegligências e o exauriu com a embriaguez e, de outro, odestruiu e dilacerou com o amor do prazer, como se, estandoum instrumento ou utensílio em mau estado, eu acusasse quemo emprega sem cuidado”.93 Com esta sábia conclusão deixa-mos Demócrito, não sem antes incluí-lo juntamente comSócrates, Protágoras e posteriormente Cristo entre os maio-res exemplos de compreensão da verdadeira essência da exis-tência humana.

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A PASSAGEM DAS TROCAS PARA A MOEDA

Nos estudos que efetuei para compor o resumido his-tórico da filosofia — sob um ponto de vista restrito à questãoMC —, as comparações entre o nosso mundo capitalista, con-sumidor e democrático e a pólis democrática, com seu co-mércio de moedas e sobretudo de palavras, foram inevitá-veis. Elas surgiram, de forma surpreendente, na análise dapassagem das trocas para a moeda, como a revelação de queisso se deu mais ou menos na época em que surgiu a filosofia.

A significativa conexão entre a expansão comercialadvinda da utilização da moeda, no lugar da troca de merca-dorias, e a valorização da palavra que propiciou o surgimentodos filósofos e sofistas, merecia atenção. O exame maisaprofundado do problema deixou vir à tona a semelhança

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daquela fase com a tendência atual, onde impera o mercadodos objetos materiais, juntamente com o outro, o do conheci-mento e o das informações, que são em última análise ele-mentos pertencentes ao reino do ser pensante, tanto quantoo foi, da mesma forma, a retórica dos sofistas. Mas para che-garmos a tal conclusão é necessário adentrarmos o mundodemocrático grego, em que o uso das moedas haviaincrementado o comércio, propiciando o surgimento de umaelite cultural voltada à filosofia de Sócrates, assim como àambigüidade dos sofistas.

Foi aproximadamente no século VII a.C., na rica cida-de da Lídia, que as pessoas começaram a substituir por moe-das o sal ou o gado que utilizavam antes, na troca de merca-dorias. Tais moedas traziam o seu peso cunhado nas faces eessa aparentemente simples mudança em seus hábitos agilizoue impulsionou o comércio, trazendo com isso grandes modi-ficações em toda a civilização antiga. Para nós, que em umamercadoria ou prestação de serviço não nos esquecemos dotrabalho físico empregado na sua produção, isto é, o corpoem relação de troca e trabalho, ou simplesmente o corpo emsociedade, essa transferência é de suma importância.

Nunca é demais recordar. Lembremos que a troca dasmercadorias e serviços — mercadorias e serviços que repre-sentam sobretudo o desgaste físico decorrente do atendimentodas necessidades básicas do homem — pela moeda significa apassagem do corpo social ou em sociedade para o dinheiro.Ao contrário da troca que empregando o sal ou o gado lidacom substâncias reais que podem ser pesadas, medidas e cujamaterialidade ainda é útil na própria alimentação, as moedas“apagam” o custo do corpo social embutido nelas, ao mesmotempo que nos acenam com o mágico mundo do poder decompra. Isso logicamente alimenta o egoísmo natural huma-no, deixando-o a serviço da fantasia, em detrimento das ne-cessidades sociais. A coexistência, na idade de ouro da Grécia,entre a democracia, a incrementação do comércio, advinda daoficialização da moeda, e a aparição de Sócrates e dos sofistasna chamada “civilização da palavra”, não parece casual mas

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sim um entrelaçamento previsível, que favoreceria o cresci-mento do ser pensante. Coerente com essa conjunção de fato-res, o trabalho manual era desvalorizado naqueles temposem que o culto à eloqüência da palavra, representado muitobem por Sócrates e os sofistas, andava em alta no mercadoateniense.

Embora não estejamos interessados em datas, é im-portante determinarmos a época aproximada em que faze-mos nossas observações sobre o mundo grego, e, do qual,vamos traçando um paralelo com o mundo contemporâ-neo. Trata-se da Atenas democrática, em que o comérciosuplantara a indústria, passando da economia doméstica paraa urbana e internacional, com as cidades-Estados manten-do entre si um fervilhante comércio. Isso tornou-se possívelcom a implantação, por parte de Sólon, de uma moeda deconfiança, cunhada em Atenas. O período em que nos de-teremos mais será precisamente aquele que compreendeu avida daquele que seria tão importante para a filosofia:Sócrates, 469 a 399 a.C.

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SÓCRATES E OS SOFISTAS

Sócrates foi o filósofo que gostava de discussões equestionamentos, mas dele próprio não temos nada por es-crito. As duas testemunhas que nos fazem um retrato aproxi-mado de sua pessoa são Xenofonte e Platão. Além dessasduas fontes, temos a caricatura dele feita pelo poeta e autorde comédias Aristófanes, em uma de suas peças, As nuvens.Embora historicamente o testemunho de Platão seja o maisconsiderado, para o presente trabalho serão Xenofonte e opoeta quem nos fornecerão uma imagem fidedigna deSócrates, em relação ao problema MC.

Sabemos que Sócrates levava uma vida simples eespartana. Isso contrastava com o consumo da época, que jánaquele tempo devia ser alto e contagioso. Andava descalço

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e usava uma velha túnica durante o ano inteiro, emborapossuísse casa e alguns poucos pertences indispensáveis.Comia e bebia com moderação. Apesar disso tudo aparen-tar completo alheamento quanto às coisas materiais — jáque o filósofo vivia imerso em questionamentos filosóficos—, ficamos sabendo através de seu discípulo Xenofonte quenão era bem assim, no trecho já visto na Parte I e que resol-vemos repetir, dada a importância do episódio para a ques-tão mente–corpo.

Xenofonte, como nos lembramos, conta-nos a con-versa que Sócrates havia tido certa vez com o sofistaAntifão. Dela ficamos sabendo que Antifão critica Sócratespor não cobrar por suas palestras filosóficas, como eracostume dos sofistas. Observa ele que a filosofia de Sócratessendo gratuita não parece trazer-lhe felicidade alguma,porque ele vive miseravelmente, em péssimas condiçõesmateriais. Se as cobrasse teria vida mais independente eagradável. Sócrates responde que, ao contrário, é livre paraconversar com quem lhe aprouver porque não está obriga-do a falar por dinheiro. E acrescenta, as privações não oimpossibilitam sair de casa, pois certos exercícios fortale-cem o corpo. Diminuir o atendimento às necessidades fazo homem mais apto a servir aos amigos e à pátria, do queatendendo aos prazeres do corpo, e isso constitui a verda-deira felicidade.

Numa segunda conversa Antifão disse ainda a Sócratesque se ele era justo não parecia, entretanto, sábio, porquenão aceitando dinheiro por suas lições demonstrava ignoraro que elas realmente valiam, visto que sua casa e seus perten-ces não os daria a ninguém, nem os venderia por um preçoinferior ao real. Sócrates rebate dizendo que aqueles que ne-gociam com a sabedoria se prostituem e são chamados sofis-tas, ao passo que o amigo da virtude ensina gratuitamente,sendo fiel aos deveres do bom cidadão.

Essa conversa havida entre Sócrates e um sofista ensejavárias conclusões interessantes, sob a ótica mente–corpo. Ve-jamos as principais:

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1) Sócrates separa de maneira radical o que é o mundofísico (sua casa e os poucos pertences) do que pertenceao mundo mental (sua prosa filosófica).

2) O ser pensante socrático, o campo exclusivo das espe-culações filosóficas, não tem equivalente físico algum.Para o filósofo existem dois mundos distintos: o cor-poral, que atende apenas para sobreviver; e o mental,ao qual se identifica e se entrega totalmente.

3) Apesar da entrega, percebe-se que ele não mistura nemse confunde com a importância desses dois mundos. Oda matéria tem seu devido preço — sua casa, seus mí-nimos pertences —, porque sabe que precisa deles parasobreviver. O outro, o ser pensante filosófico, emboraseja a sua opção, não tem preço equivalente no mundomaterial, ou seja, seu valor é ambíguo e relativo. Seuverdadeiro valor consiste em utilizar sua argumenta-ção infindável como forma de desmascarar a pretensasabedoria, em busca da virtude que em última análiserepresenta o bem que pode beneficiar a todos.

Como os sofistas, Sócrates considera o mundo do serpensante relativo e perigosamente enganador. Mas os sofis-tas o aproveitavam como arma nas discussões em que exibi-am o poder: o poder da palavra. E vendiam esse produto,que foi aumentando de valor com o passar do tempo. Sócratesnão faz desse saber uma mercadoria. Não engana o outrovendendo gato por lebre. Ao contrário, interfere no mundoda palavra somente para desmistificá-la, tirando-lhe o valorde mercado. Porém sua casa e seus pertences indispensáveisnão podem ser doados nem vendidos a qualquer preço, por-que sem eles, que atendem a um mínimo das necessidadesfísicas, ninguém sobrevive. A grandeza desse homem, o verda-deiro sábio e grande filósofo, foi não se deixar iludir pelo cor-po ideal e atender apenas a seu corpo de carne, embora elepróprio considerasse o corpo responsável pelas paixões dos

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sentidos que corrompiam a alma. Dele achava-se livre, ao sededicar à procura das verdadeiras virtudes. A aplicação dessasvirtudes — tais como a coragem, a justiça e todas as outras —à vida prática e cotidiana reverteriam, ao final, ao bem co-mum, tornando o mundo um lugar melhor para viver. “Oque é” de Sócrates age como um descascamento dasexcrescências que se formam em torno das verdades simplese úteis, e, ainda que se sentisse fascinado pelas palavras, sen-do um tagarela incorrigível tal qual a sociedade ateniense,ele não se rendeu ao mundo do ser pensante. Viveu de ma-neira sóbria e, principalmente, não participou do comérciovantajoso da palavra. É o exemplo perfeito de um verdadei-ro homem.

Agindo assim, Sócrates não perde a liberdade como ocor-re com os sofistas. Esses se renderam diante do mundo dassuperfluidades prazerosas e para sustentar isso necessitam ven-der, e vender caro, o seu produto. Já mencionamos, lá atrás, aparcimônia de Sócrates. Certa vez, vendo a variedade de arti-gos expostos no mercado, exclamou admirado: “Como sãonumerosas as coisas de que eu não necessito!”.94 Diante disso,fica claro que ele não se deixou levar pelo corpo ideal e apenasatendia às necessidades prementes da carne.

A citada observação mais do que nunca parece atual sesuprimirmos o “não” socrático, ao repararmos nos super-mercados e lojas modernas: “Como são numerosas as coisasque pensamos necessitar!”. Vendendo suas idéias como umproduto equivalente ao mundo físico e por um preço bastan-te alto numa sociedade em que o trabalho manual era total-mente desvalorizado, os sofistas contribuíram para tumultu-ar ainda mais a vida nessa sociedade, em que a ordem dosvalores já estava, desde então, trocada.

O “Eu sei que nada sei” de Sócrates transformou-sehoje no “sei que tudo sei”, e continuamos sabendo também,graças a Freud, até quando aparentemente não devíamos sa-ber, já que ficamos conscientes dos motivos pelos quais nãosabemos de algo. Todo esse conhecimento, posto que legítimoe útil, tem o seu lado negativo ao incrementar e incentivar a

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grande rede tagarela. A ela só interessa falar, não importa oquê. A palavra de ordem é despejar nos microfones da aldeiaa torrente continua do ser pensante abundante e inesgotável.Para confirmarmos isso basta sintonizarmos a qualquer horado dia alguns canais de TV e seus debates. É impressionantecomo não percebemos no dia-a-dia a inutilidade da maioriadessas conversas que no entanto devem envolver gastos as-tronômicos, e que contradição elas representam, quando sãoconvocadas justamente para resolver problemas sociais quena maioria das vezes têm sua razão de ser em problemas deordem econômica.

Voltando a Sócrates, sabemos que era um sofista às aves-sas. Tanto ele como os sofistas exploravam o mundo mentalatravés de intrincadas argumentações, mas enquanto estes va-lorizavam sua retórica, não importando o conteúdo — o quecontava era vender o produto “palavra”, já muito requisitadona época —, Sócrates desvalorizava esse mesmo produto, dan-do-o de graça e, além disso, desmoralizando as tradiçõesatenienses. Tanto para um como para os outros, entretanto, as“verdades” dos homens são relativas, meras convenções, por-que o terreno do ser pensante não tem consistência. Seria o“tudo faz sentido” que tanto Sócrates como os sofistas desco-briram intuitivamente, e desse saber fizeram usos distintos.

O que existe de semelhança entre eles é que através daargumentação ambos estimulavam a filosofia, e conquantoSócrates fosse lúcido o suficiente para não se deixar levar, odomínio da palavra sobre a matéria ganhava terreno, che-gando à plenitude com o mundo das idéias, de Platão.

Refaçamos a trajetória do ser pensante que culminarácom o mundo do super-homem, o nosso mundo atual. Inicia-da com Heráclito e Parmênides, a filosofia do espírito se im-põe de uma vez por todas com os sofistas. O florescimentodo comércio facilitado pelo uso da moeda, a democracia coma liberdade de expressão, e o desprezo pelo trabalho manualeram condições propícias ao aparecimento da chamada “ci-vilização da palavra”. Essa época é muito semelhante à nos-sa, em que a democracia vai predominando; a palavra nunca

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esteve tão em alta quanto agora, que contamos com os meiosde comunicação em massa; e o trabalho braçal continua embaixa, embora o seu produto — a mercadoria — esteja valo-rizado ao máximo. Diferimos da civilização grega na exis-tência da espantosa produção capitalista, beneficiada que foipela ciência e tecnologia. À mercê do corpo ideal, essa ines-gotável fonte dos desejos ameaça desequilibrar fatalmente abalança mente–corpo, ao priorizar do corpo social do ho-mem o fator dinheiro, além disso, depredando a própria na-tureza em que vivemos.

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SOFISTAS, UM ESPELHO INDESEJÁVEL

Protágoras é considerado o primeiro e o mais impor-tante sofista. Para o pensamento MC ele é um sábio, porqueresumiu o maior conflito do homem em apenas poucas pala-vras, “o homem é a medida de todas as coisas”.95 Mas o quepode significar isso? A mim parece claro. O homem é o inter-mediário entre todas as coisas e ele próprio. Nada chega aele como é na realidade mas distorcido pelos órgãos de per-cepção intermediados pela sua mente, o ser pensante. Agorasabemos que está aberto ao mundo externo em apenas 0,02%de seus neurônios, ficando o resto por conta de sua fabulosaimaginação, sempre expandindo.

Protágoras diz ainda que não é possível encontrarmosverdade absoluta mas somente verdades relativas, condizentes

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com as condições, com os homens e as ocasiões. Contempo-râneo de Sócrates, coloca-se ao lado dele como a outra via aopensamento do Ocidente. Ele representa a contradição: sede um lado reconheceu a perigosa relatividade e subjetivida-de do pensamento, por outro rendeu-se à sua poderosa atra-ção, ao valorizá-lo com a venda da palavra a preço alto. Senão se rendeu a essa atração, foi pior e enganou o compra-dor, vendendo gato por lebre. Ou ainda, pensando de umamaneira comercial, o que Protágoras e os outros sofistas fize-ram se mostrou coerente com a realidade do mercado — se apalavra era uma mercadoria tão procurada e valorizada edependente do talento de poucos, nada mais natural do quevendê-la bastante caro. Como vimos, embora a filosofia te-nha preferido Sócrates e negado aos sofistas até o título defilósofos, o homem tem caminhado mais pela estrada sofistado que pela socrática, pois os artigos mais cobiçados e emalta hoje em dia são o conhecimento, a idéia e a informação.Na falta deles, não dispensamos os disparates da imaginaçãosem compromisso algum com a realidade, o tagarelar inútilde uma aldeia verborréica, neurastênica, solilóquia. Mas issoá ainda a “civilização da palavra”, ou melhor, o seu apogeu,e o mundo do super-homem só poderia mesmo fazer a opçãopela ambigüidade ao eleger Sócrates como verdadeiro filóso-fo — uma referência digna à consciência ocidental —, quan-do, na realidade, trilha o caminho amoral e mercantilista da-queles que nem mereceram a denominação de filósofos. Adesvalorização dos sofistas — nossos parentes mais próxi-mos — só aconteceu porque sua identificação maior com oser pensante e o decorrente egoísmo fizeram desses homensum espelho fiel demais para que quiséssemos observar nelesa nossa imagem. Embora continuemos perseguindo, agoramais do que nunca, o mundo de ilusões e caprichos de nossocorpo ideal, preferimos nos mirar no espelho da filosofia doideal socrático porque ela representa a eterna e intuitiva bus-ca pelo equilíbrio mente–corpo.

Sócrates é puro desprendimento ao doar para o outroaquilo que ele, peneirando do ser pensante, descobriu como

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verdadeiro: a virtude que, no final das contas, redundará nobem de todos. Aí está a verdadeira diferença entre Sócrates eos sofistas. Se ambos — principalmente Sócrates — pratica-vam à exaustão a arte da perspicácia e do diálogo é porquecomeçavam a descobrir e explorar o poder mágico das pala-vras. Sabiam do perigo que a doxa — a simples opinião —representava, mas fizeram uso diverso com os seus resulta-dos. Enquanto Sócrates destrinchava as opiniões em buscadas virtudes, os sofistas se serviam delas, provavelmente paraalém do ganha-pão, visando ao próprio enriquecimento.

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SÓCRATES NA VISÃO DE ARISTÓFANES

A inclusão de Aristófanes neste trabalho se fez necessá-ria porque ele caricaturou a figura do filósofo em uma desuas peças, As nuvens, conseguindo com isso abordar o con-flito mente–corpo da forma mais natural possível, isto é, atra-vés do cômico. De forma direta e clara, o poeta nos mostra avida e sua tragicômica aventura, ao tentar conciliar pensa-mentos que pela própria natureza sugerem o etéreo e o sutilcom manifestações corporais nada elevadas ou atraentes.Consegue assim, numa comicidade algo grotesca, o reconhe-cimento profundo da humanidade que subjaz atrás disso. Seo autor estava consciente do alcance que a sua obra poderiater, jamais saberemos. Podemos apenas afirmar que essa peça,sob o ponto de vista MC, é muito oportuna.

Façamos um breve resumo de As nuvens, a fim de ana-lisarmos o seu conteúdo. Estrepsíades, um velho nobre, arru-inado pelo filho e suas despesas com cavalos, procura os ser-viços de Sócrates, que se apresenta como um pensador em

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seu “pensatório”, isto é, uma espécie de “balcão” de pensa-mentos. O que deseja é que seu filho e depois ele próprioaprendam a habilidade do raciocínio injusto, que lhes capa-citasse vencer qualquer causa, livrando-os, assim, das dívi-das. Sócrates, aqui, aparece como um sofista, prestando-se aaconselhar Estrepsíades para causas nada justas. Mas ao mes-mo tempo ele representa a própria filosofia, ao ser compara-do aos filósofos que se dedicavam ao estudo da natureza. Dequalquer forma, tanto sofistas quanto filósofos se dedicam,exclusivamente, ao reino do ser pensante e, desse modo, aoapresentar Sócrates entretido com preocupações ridículas taiscomo medir a distância do pulo de uma pulga, ou saber se osmosquitos azoinam pela boca ou pelo rabo, Aristófanes des-preza o objetivo das especulações filosóficas.

O tempo todo a peça desenrola-se em duas linhas an-tagônicas, de efeito cômico e grotesco: de um lado a divaga-ção inútil, as divindades das nuvens, do ar, do éter, do caos eda língua (a palavra), enfim, tudo o que faz parte do univer-so mental, em contraste com as referências feitas a gases, fome,tripas, picadas de pulgas e tudo mais que atormenta um cor-po real, com os pés no chão. Enquanto a figura de Sócratessimboliza o ser pensante por excelência, Estrepsíades repre-senta a carne que é fraca e que deverá sofrer com a fome,ficar suja, enregelada, esfolada. Tudo isso em troca de umdiscurso que é caracterizado como velhaco, dissimulador eastucioso. O velho padece de todos esses males do corpo,oferecendo-se no final, como um prato de tripas. É espanto-so como a peça revela o conflito mente–corpo da forma maisclara possível, numa época em que a valorização da palavradava início à sua longa e bem-sucedida carreira, no seio dacivilização ocidental. Penso até que essa produção deAristófanes mereceria um trabalho à parte, mais detalhado.Por hora, nos basta o resumo e a informação, ao leitor, deque a peça caricaturiza Sócrates antes que sua sabedoria flo-rescesse em plena maturidade. Talvez isso explique a opçãopela pessoa do filósofo como representante nada lisonjeirodaqueles encarregados da prática filosófica.

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POR QUE SÓCRATES FOI CONDENADO?

Conta-nos a História que Sócrates foi condenado pornegar os deuses do Estado, os costumes e as tradições, alémde corromper a juventude. Tais fatos eram considerados gra-ves, e, embora tanto as pessoas que convivessem com ele quan-to sua própria defesa negassem semelhantes acusações, essafoi a razão divulgada para o julgamento e a conseqüente con-denação do filósofo. Do ponto de vista mente–corpo, po-rém, a verdadeira causa reside no fato de Sócrates haver ex-posto — com a sua demolidora máquina de argumentação— a inconsistência e fragilidade do ser pensante, que naque-la época adquiria o seu valor de mercado, através da palavra.

Os sofistas também reconheciam a relatividade das opi-niões (doxas), num mundo de falsas verdades e convenções.

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Porém, não foram além disso. Ao invés de fazer como Sócrates,desacreditando o produto que já andava em alta, valorizaram-no muito mais, ao cobrar por ela — a palavra — um preçosalgado, à altura de seu talento verbal. Sócrates, entretanto,desmoraliza o ser pensante ao destituir a palavra de seu valorintrínseco, esvaziando-a de seu conteúdo. E o que colocou emseu lugar? A essência, que imagina esconder-se dentro daquelaroupagem inútil do falso conhecimento. Essa seria a virtudedas boas qualidades, que no fim reverteriam em ações práticase úteis para todos. Ele próprio, Sócrates, é um exemplo vivoda prática dessas virtudes e só isso já é o suficiente para colo-car à prova a tolerância dessa democracia iniciante. Não serendeu ao corpo ideal, vivenciando exclusivamente o corpode carne e, por isso mesmo, conseguindo ser coerente comsuas convicções. Descascou sem piedade as ilusões deconfiabilidade num ser pensante soberano. Além disso, procu-rou pela essência que no fundo seria nada mais nada menosque o reconhecimento do corpo material e social do homem.Por isso tudo é que, na verdade, Sócrates foi condenado. Comoveremos posteriormente, Jesus Cristo, por motivos semelhan-tes, também foi condenado. Penso que qualquer outro que reu-nisse em si mesmo essas condições, não poderia ter outro fim.

Exceção seja feita à nossa época e isso, compreensivel-mente, devido à expansão do ser pensante que, nos dias dehoje, tudo abarca, inclusive as próprias contradições. Eis porque é possível chegar a sentir “o fim da História”, comoFukuyama sensatamente sugeriu, se entendermos a históriacomo ele próprio a entendeu, uma sucessão de ideologias, in-crustadas numa história maior, mundial. De fato, a democra-cia vai se estendendo por todo o mundo, o que é bastantecoerente dentro da visão MC. Ela não veio — como a dema-gogia dos políticos quer nos fazer pensar — para dar voz atodas as minorias dentro da expressão da maioria, com eqüi-dade e sem nenhuma distinção. Embora na prática demonstreser o regime político mais humano e justo, não representa oapogeu da evolução moral da consciência mas tão-somenteuma abertura necessária e conseqüente à expansão da rede do

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ser pensante. Um continente mais flexível para abarcar toda adiversidade e expansão aparentemente infinita, como a dopróprio universo. Apenas a democracia poderia atender a isso.

Se a biografia de Sócrates se repetisse hoje o enredopoderia ser outro. Nesse hipermercado fabuloso provavel-mente a virtude socrática seria destituída de sua verdade in-trínseca para ser consumida apenas como mais um produtoexótico e certamente engolida sofregamente como costumamser os modismos. Podemos até imaginar a cena: Sócrates sen-do considerado o guru da nova era; os adeptos gastando umbom dinheiro para erguerem acampamentos nas proximida-des da residência do mestre, a fim de imitarem o desprendi-mento dele. Centenas ou quem sabe até milhares de obsessi-vos “chatos socráticos” nos enchendo os ouvidos e a paciên-cia, com seus infindáveis argumentos — sem pés nem cabeça— invadindo nossas casas através da televisão.

Mas naquela época a democracia começava apenas atecer os primeiros fios da rede. A indústria e o comércio, sema tecnologia e a ciência avançada para incrementar o merca-do dos caprichos do corpo ideal, ainda se encontravam dis-tantes do consumo desenfreado e das extravagâncias, do mis-ticismo e das esquisitices, tão comuns nos dias de hoje. As-sim, Sócrates não poderia ser consumido como mais um pro-duto exótico, apesar da embriaguez que causava o tagarelardos sofistas. A palavra ainda mantinha um resquício do pesoe da realidade da matéria do homem.

Podemos entender por que, mesmo diante da inconsis-tência da acusação (demonstrada que foi, pelo próprio Sócrates),ele recebeu a condenação. No fundo, a verdadeira falta que lheimputavam era não se deixar corromper pelo corpo ideal, cor-po esse que àquela época já começava a fazer as cabeças. Alémdisso, ele havia desmascarado a palavra, desvalorizando o valorde mercado de um produto que fora lançado justamente pelafilosofia e pelos sofistas, como o artigo de luxo mais cobiçadodo momento. Ele, Sócrates, era o exemplo vivo da maneira maisdigna de se resolver o impasse mente–corpo e isso incomodavamuito, porque seguir o seu caminho significava renunciar ao

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corpo ideal, assim como à embriaguez pela palavra. Seria pedirdemais a seres humanos comuns.

Assistamos ao final do julgamento, esperando queSócrates, como era costume na época, estabeleça a sua pena.Pode com isso se safar da sentença de morte pedida por um deseus acusadores, bastando, para tanto, que proponha outrapenalidade, como pagar uma multa, por exemplo. Seus ami-gos assim o desejam. Em sua defesa, Sócrates afirma que foideclarado pelo oráculo de Delfos como o mais sábio dos ho-mens. Ora, ele sabe que nada sabe e por isso conclui ser umamissão divina o despertar das pessoas que, por ignorância,acreditam saber alguma coisa. Dessa missão nada lucrou, ali-ás, vive miseravelmente. O fruto do seu trabalho e dos jovensadeptos foi apenas o de granjear o ódio daqueles que, desmas-carados em seu pretenso saber, o acusam de corromper a ju-ventude. Como sabe que se dedicou honestamente em prol dooutro, pergunta que sentença mereceria alguém como ele, eem vez de sugerir pagar uma multa para livrar-se da condena-ção à morte, ao contrário, propõe ser sustentado no Pritaneu!

Isso mesmo. Mais do que o vencedor de uma olimpía-da, ele sim, merece e necessita ser sustentado pelo Estado. Nesseinstante, não deixando outra saída aos juizes senão a sua con-denação à morte, Sócrates, num supremo gesto de coerênciacom seus princípios — pois estipular uma pena a ser paga porele é reconhecer a acusação que lhe fazem —, comete umaaparente contradição. Porque seus princípios, por mais nobrese justos que sejam, são um produto da razão, isto é, uma facul-dade pertencente àquele mesmo ser pensante do qual se desfi-zera por ser pouco confiável, e assim, permitir o aniquilamen-to do corpo material seria o mesmo que negá-lo no final, ouseja, deixar-se morrer por simples idéias! Alguns séculos de-pois, na figura de Cristo, veremos algo semelhante repetir-se efico muito tentada a concluir que os exemplos extremos queguardam a memória da história são, infelizmente, provas ine-quívocas de que o maior conflito humano não tem soluçãoalguma a não ser a morte. Talvez seja essa a verdadeira condi-ção humana, tão falada mas pouco compreendida.

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PLATÃO E O CONFLITO MENTE–CORPO

Ao dar continuidade à filosofia do ser pensante,aprofundando-a até o ponto da identificação plena com aalma, Platão seguiu um caminho diferente de Sócrates. Ima-ginava um mundo constituído apenas de idéias e esse mundoseria a verdadeira realidade do homem. O corpo e seus sen-tidos seriam apenas imitações grosseiras das essências, for-mas ou eidos, que representariam o único mundo real da exis-tência. Apesar de distintos, esses dois mundos se comunicari-am através da alma, cuja natureza pertence ao reino das idéias.Conhecer esse mundo inteligível significa conhecer o bem que,em última análise, teria como conseqüência organizar a cidadeem que vivem os homens não mais de acordo com as merasopiniões mas com o reconhecimento de suas três funções

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primordiais: a satisfação das necessidades vitais de seus habi-tantes, a defesa de seu território e a administração.

Ao repensarmos Platão de acordo com a história doproblema mente–corpo a conclusão mais importante que ti-ramos é que — ao contrário do mestre — o discípulo deSócrates pode ser compreendido como um filósofo que vailegitimar a filosofia do ser pensante, filosofia essa que a prin-cípio nega ou desconhece o corpo.

Para nos aprofundarmos na compreensão do significa-do da negação do corpo precisamos, antes de tudo, nos lem-brar do conceito de corpo ideal. Ora, esse corpo que nasceda forma pela qual o ser pensante apreende o corpo materi-al, quando não reconhecido faz, por exemplo, o mundo dehoje — cada vez mais imaterializado ou espiritualizado —nos parecer, ao contrário, materialista. Essa inversão aconte-ce porque o mundo que se encontra à mercê dos caprichosdo consumidor é constituído de coisas materiais. Ao não dis-tinguirmos os dois corpos tomamos essas coisas apenas pelasaparências, não percebendo que a maioria das mercadoriasexpostas nas prateleiras foram concebidas por um ideal decorpo diferente do que temos na realidade. Leve, etéreo, di-nâmico e possuidor de forças e poderes extraordinários, asqualidades da imagem do corpo que excitaram a imaginaçãodos inventores os fizeram conceber objetos que levam embu-tidos em si esses ideais ou são eles próprios detentores deatributos imateriais, este último o caso dos aparelhos eletrô-nicos e de informática. Retornando ao filósofo, percebemosque algo semelhante acontece a ele em relação às idéias, por-que não distinguindo o corpo real do corpo ideal, o universoda doxa — da simples e enganosa opinião que nasce do mun-do apreendido pelos sentidos e interpretado pelo ser pensante— é atribuído, por Platão, à matéria, ao corpo. E o que fazele a seguir? Reconhece o mundo das idéias como o verda-deiro, negando o mundo dos sentidos como ilusório, paradepois, através da alma, conhecer o bem que, em última análi-se, significa organizar a cidade de acordo com suas três fun-ções, sendo a mais importante delas satisfazer as necessidades

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básicas de seus habitantes. Ora, Platão acabou de negar ocorpo e o mundo materiais, o que agora reconhece como amissão mais importante da alma. Como podemos entenderisso? Se conseguirmos enxergar nessa incoerência de Platãoapenas a repetição do próprio conflito, que é a negação damatéria pelo ser pensante, ficará mais fácil entender por queo discípulo de Sócrates foi muito além do mestre.

Como discípulo e seu intérprete, ao sistematizar a filo-sofia com todos os temas levantados pelos filósofos prece-dentes (que na sua maioria também tendiam ao abstrato, ne-gando o corpo de carne) Platão apenas oficializou a filosofiado ser pensante que se incrustava naquele momento, defini-tivamente, na história do pensamento. Dali por diante, ospensadores seguintes retomariam aqueles temas abordadospor Platão e seu discípulo Aristóteles, num desenvolvimentoprogressivo rumo a uma maior abstração, cada vez mais dis-tantes da carne, como naves perdidas na escuridão do cos-mos, que se distanciam mais e mais de seu planeta de origem.

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ARISTÓTELES E A LÓGICA

Aristóteles tentou recuperar a filosofia, que seu mestrehavia colocado no hipotético mundo das idéias, para o mun-do real e sensível. Ao invés de partir de uma forma abstratadas coisas, por exemplo, da idéia anterior que fazemos decavalo para o cavalo que existe na realidade, propõe o con-trário: captar com os sentidos a coisa existente e suas carac-terísticas principais e, somente daí, abstrair a imagem corres-pondente. Dessas abstrações resulta o conhecimento que podeassim produzir conceitos universais nascidos da realidade enão “idéias” de um mundo intelectual, divorciado do mundodos sentidos. Mas Aristóteles vai além disso. Propõe que ana-lisemos as palavras, pois elas são o corpo do conhecimento.Classifica-as em várias categorias de acordo com a função

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que exercem, dentro de uma proposição. Submete-as ao prin-cípio da contradição, ou não-contradição, e assim, batemosàs portas do que hoje denomina-se lógica. Vejamos atravésde um exemplo tradicional como a coisa funciona e entende-remos por que Aristóteles, apesar do extraordinário bom sensodemonstrado em relação às abstrações de Platão, não conse-guiu lograr êxito, isto é, resgatar a filosofia para o universodos homens de carne e ossos.

“Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo,Sócrates é mortal”: as premissas sendo verdadeiras, é lógicoque a conclusão só poderá ser real. Sócrates era mortal; oshomens morriam... Assim se dava crédito a uma realidadesensitiva que por si só não convencia. Estava inaugurada de-finitivamente a ponte entre o corpo e o ser pensante. Daí emdiante, o pensamento e sua lógica seriam o seu porta-vozoficial. Malograra a tentativa de trazer a filosofia, que comPlatão pairava nas nuvens, ao chão do mundo sensível. Justi-ça seja feita, entretanto, ao filósofo de Estagira que contraba-lançou ao delírio do mestre e seu mundo à parte uma reali-dade mais humana e menos etérea. Embora a filosofia deAristóteles seja extensa e proveitosa, para o nosso resumidohistórico basta apenas a constatação de que as tentativas fei-tas em prol de uma filosofia mais “corporal” redundavamem fracasso, porque negava o corpo em princípio, ao preten-der captar o humano nos domínios da pura linguagem e nãoatravés do testemunho dos sentidos.

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UM POUCO DA CULTURA HELENÍSTICA

Quando a pólis grega cedeu às conquistas de Alexan-dre Magno, o mundo viu difundir-se a cultura helenísticaatravés do ceticismo, epicurismo e estoicismo, correntes filo-sóficas derivadas daquela célebre incredulidade socráticaquanto à veracidade das opiniões. Enquanto Platão e, de cer-ta forma, Aristóteles haviam resvalado para a filosofia do serpensante, ao aprofundarem a busca das essências de Sócrates,mais uma vez os filósofos posteriores tentariam contrabalan-çar o vôo do pensamento com o chão duro da realidade docorpo material.

Os cínicos Antístenes e Diógenes levam suas desconfian-ças no ser pensante ao máximo: o ser procura as idéias gerais,quando o que existe na realidade são coisas singulares. Concluem

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então que todas as atividades desse ser pensante não têm utili-dade alguma e o melhor é viver isolado, junto à natureza. Seme-lhante aos cínicos, o ceticismo imaginado por Pirro de Élidae difundido por Timon e Sexto Empírico também rejeita oconhecimento, com o “olhar cuidadoso”, duvidando. O re-sultado é a afasia, o calar-se, que no fim se traduz pelaexpressão do desejo de conseguir a felicidade, sem nenhumapreocupação da alma a não ser permanecer livre de qualqueragitação, no estado de ataraxia. Essa também será a finalida-de de todo o pensamento epicurista. Para Epicuro e seus dis-cípulos, a felicidade é o “prazer em repouso”, sem nenhumaperturbação da alma. Epicuro retoma o atomismo deDemócrito e vai mais além, incorporando nele o peso e a in-clinação do átomo. A inclinação do átomo, não tendo nenhu-ma causa, só poderia significar a liberdade do homem. Porúltimo, temos o estoicismo, que encontra a felicidade numasituação inversa à precedente: num mundo regido por leis,submetendo-se às mesmas, indiferente aos males, em estadode apatia. Eis o ideal da corrente filosófica inspirada por Zenãode Cício, que irá influenciar por um bom tempo o ImpérioRomano.

Fornecidas as características principais das escolas doperíodo helenístico, passemos ao estudo do desenvolvimen-to do conflito mente–corpo que nessa época sofreu uma gran-de transformação. Vimos que a filosofia dos pré-socráticososcila entre o reconhecimento da natureza (e não do corpo)e a imersão no ser pensante, de que são exemplos os famososparadoxos de Zenão. Assistimos depois, na chamada “civili-zação da palavra”, a apoteose da filosofia do ser pensante seratingida pelo mundo das idéias, quando Platão se dispõe adesenvolver ao máximo as essências de Sócrates. No períodohelenístico observamos mais uma vez a busca pelo equilíbrioMC, agora procurando contrabalançar a excessiva imersão dohomem em seu mundo mental, com a conscientização do cor-po de carne e a realidade material do mundo. Da mesma for-ma que Sócrates, essa filosofia parte da desconfiança para como mundo dos sentidos mas não para negar o corpo como fez

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Platão, nem para reconhecê-lo indiretamente através da análi-se da linguagem, como procedeu Aristóteles, e sim para rejei-tar definitivamente o ser pensante, colocando em seu lugar acarne e suas necessidades básicas. Estariam esses homens re-petindo o grande Sócrates? Penso que de certa maneira sim,porque banindo o corpo ideal de suas vidas tentaram viverdo mínimo indispensável para seus corpos materiais. Por outrolado, cometeram um grande pecado ao negar o ser pensante,porque deixaram passar a oportunidade de peneirar de suasmeras opiniões as essências, das quais Sócrates encontrou asvirtudes, que em última análise reverteriam ao bem comum.Ora, essas virtudes socráticas representam nada mais nadamenos que o reconhecimento do próprio corpo social, o quefaz de Sócrates o filósofo mais sábio e um homem muito dig-no, entre outros.

Não reconhecendo o corpo ideal e com ele o próprioser pensante, os filósofos do helenismo não puderam reco-nhecer o corpo em sociedade. Sendo assim, jogaram fora coma água da bacia a criança, o que os fez semelhantes — pelomenos quanto aos cínicos — a um bando de mendigos inú-teis, que, se entusiasmava seguidores individualmente, nãotinha nada para oferecer para a sociedade como um todo,nenhuma política ou plano original de como melhorar a con-vivência entre os homens. E por que deixaram de ser o “ani-mal político” de que Aristóteles falava? A história conhecidanos diz que a causa disso se deve à mudança da pólis emcosmópolis, ou seja, ao invés de um lugar onde o cidadão sepreparava para futuras atuações políticas, a outro em quepassa a ser apenas mais um número, no universo da espéciehumana. Sob a perspectiva MC a resposta pode ser outra.Poderíamos ver com estranheza o alheamento político numaépoca em que a questão ética da procura do aperfeiçoamentoindividual está mais aguçada do que nunca; em que o reco-nhecimento do corpo de carne com suas necessidades natu-rais de um lado e, do outro, a rejeição ao corpo ideal deveri-am, ao contrário, levar os pensadores desse tempo a um ide-al político de ação comunitária. O que faltou então?

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Se lhes faltavam os objetivos egocêntricos nascidos dosdesejos do corpo ideal, que movera (e sempre moverão) oscidadãos da pólis e da cosmópolis de todo mundo e de todosos tempos às atividades políticas em prol dos próprios inte-resses, em seu lugar deveriam ser colocado os ideais sociaisoriundos do reconhecimento do corpo social. Mas já sabe-mos que eles reconheceram apenas o corpo de carne e porcausa disso se isolaram, ficando à parte da rede social detroca e seus compromissos, direitos e responsabilidades.

Antes de finalizar, é preciso que se faça uma pequenareparação quanto aos epicuristas e, principalmente, aos es-tóicos. Até onde permite tirar conclusões uma época tão dis-tante, com as falhas costumeiras das poucas informações edas muitas interpretações, parece que o estoicismo chegoubem perto desse ideal comunitário, em sua vivência pessoalequilibrada pelo bom senso. Porém, sua notória apatia nãopermitiu que a sua visão do universo fosse capaz de exercerqualquer ação sobre ele. Para eles, então, fica valendo o mes-mo que já foi dito para as outras correntes filosóficas dessaépoca: o que faltou foi o reconhecimento do corpo social.

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A CIÊNCIA LIBERTA-SE,AOS POUCOS, DA FILOSOFIA

Havendo a filosofia, na difusão helenística, voltado asatenções quase que inteiramente ao corpo individual, umpouco mais livre ficou a ciência — ainda que alimentada pe-las mesmas concepções filosóficas tradicionais — para inici-ar seu próprio caminho, isto é, as investigações sobre a natu-reza. Além de a expansão do comércio e as conquistas milita-res exigirem, na prática, a aplicação dos conhecimentos ad-quiridos, a ciência se via, pela primeira vez, desembaraçadade intrincadas abstrações. Mas se olharmos mais de pertoesse novo quadro observaremos que uma mudança funda-mental ocorreu ali e isso talvez represente a causa da supre-macia que a ciência iria adquirir em pouco tempo sobre a filo-sofia. Antes, na civilização da palavra, o homem consumia o

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ser pensante diretamente, nele se embriagava e dele se serviacomo guia e intérprete da realidade, no dia-a-dia da pólisdemocrática. O pouco conhecimento científico produzido nãotinha muita utilidade prática, porque as necessidades do cor-po ideal de então eram mitigadas pela comercialização febrilda própria palavra. Consumia-se o ser pensante, seja o doSócrates ético que rejeitava o corpo ideal à procura das es-sências (corpo social), seja o dos sofistas que, ao contrário,dele se serviam para alimentar a própria imagem, assim comoa de uma sociedade ávida por discursos. Com a mudança deperspectiva da filosofia, abandonando as essências socráticas,em descrédito total ao ser pensante e a favor de um corposimples e limitado, começava a ciência a libertar-se da filoso-fia para atender ao corpo ideal que iniciava a sua escaladacom a expansão do comércio e as ambições imperialistas.Com o término da civilização da palavra chega ao fim o ho-mem profundamente humano e é dado o pontapé inicial àciência que, posteriormente, com o desenvolvimentotecnocientífico, abre caminho para o mundo do super-ho-mem.

O progresso tem início quando o olhar científico vê amatéria não como “um teste da realidade”, um limite às pre-tensões expansionistas do ser pensante mas, ao contrário,como uma provocação que instiga a imaginação a encontrarmeios de “esticar” essa mesma realidade, penetrá-la, dissecá-la e fragmentá-la em busca das leis que a regem. Será assimcom o próprio corpo, objeto de estudo da medicina. O cor-po fragmentado, visto de fora, poderia ser considerado comoum possível reconhecimento do corpo de carne, talvez a úni-ca forma de aceitação. Havendo se desgarrado gradativamenteda filosofia a ciência mudaria a perspectiva, o ângulo comque o homem passaria a observar a si próprio e dessa percep-ção conduzir o seu mundo. Antes olhava-se para os sentidoscom desconfiança em sua imprecisão e mutabilidade e dissoresultava o descrédito das meras opiniões, as doxas. Era maisou menos assim: “Não confie nos seu sentidos, portanto des-confie de seus pensamentos e opiniões”. Aí, vinha Sócrates

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com sua demolidora máquina de argumentações, à procuradas essências que redundariam em verdades úteis e práticasao bem comum. Elas seriam as detentoras do verdadeiroconhecimento. Do outro lado, os sofistas que usufruíam co-mercialmente dessas opiniões para levar vantagens. Finda aembriaguez da palavra (momentânea, por sinal), ingressamoscom a ciência no comércio indireto do ser pensante, atravésda satisfação ilusória e por isso mesmo inesgotável do corpoideal, que se faz com a manipulação da matéria, na buscaincessante por objetos, não somente úteis mas sobretudo fú-teis e agradáveis aos caprichos dos homens. Agora, é comose nos dissessem: “Não confie nos seus sentidos, sua pele,seus olhos, olfato e ouvidos: não confie nos seus instintos;confie na ciência e na tecnologia que desvendarão para vocêoutra realidade, ao ampliar esses mesmos ‘pobres’ sentidos”.Ao oferecer outra resposta à antiga desconfiança no serpensante a ciência desprendeu-se da filosofia, deixando-a dalipor diante e cada vez mais entregue a si própria, ou seja, àpalavra.

O caminho de Sócrates era árduo demais para simplesmortais. Platão, que deveria suceder-lhe, ele mesmo oriundodas classes aristocráticas de Atenas, extrapolou a procura domestre pelas essências, criando o absurdo mundo das idéias.Já os filósofos da expansão helenística, ao contrário, rejeita-ram completamente esse mundo intelectual, colocando emseu lugar o corpo de carne com a sua filosofia limitada pelobom senso. Era pouco demais para o corpo ideal de umapopulação que crescia com as demandas técnicas advindasdas conquistas militares e se alimentava de um comércio tam-bém em expansão. Com sua resposta prática, objetiva eprazerosa, a ciência era muito mais convincente. Estavalançada, assim, a pedra fundamental da futura parafernáliatecnológica que seriam as muletas indispensáveis para noscolocarmos a caminho do mundo do super-homem.

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O DIREITO E A FILOSOFIA DOS ROMANOS

O que se diz comumente como a falta de originalidadeda filosofia dos romanos (Sêneca; Epicteto; Marco Aurélio eCícero) — reformulando as correntes filosóficas do helenismonuma versão sobretudo eclética, moral e prática — parecemuito mais um desfecho natural de uma filosofia cada vezmais corpórea e conseqüentemente menos “ser pensante”.Não havia mesmo o que fazer por uma filosofia que havia sevoltado quase que inteiramente ao corpo individual, não fa-vorecendo o pensamento em expansão, muito pelo contrá-rio, limitando o seu próprio desdobramento. Além do mais,a ambição promovida pela expansão do império inclinava oromano a uma filosofia mais “pé no chão”. A prova disso éque a maior obra do pensamento romano é o direito e não a

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filosofia. E que é o direito senão a tentativa de estabelecerregras de conduta aos homens dentro da grande rede social?Talvez isso até significasse a aceitação indireta mas efetiva docorpo social. Não mais leis sujeitas à religião, política e cos-tumes mas o estabelecimento de regras básicas e escritas, in-dispensáveis ao convívio dos homens em sociedade. O direi-to representa, desse modo, a única forma possível do reco-nhecimento “civilizado” e oficial do corpo em sociedade eda rede de deveres e direitos que se seguem, já que através dafilosofia não havia possibilidade de se chegar lá. Enquanto ascorrentes filosóficas continuariam freqüentemente mudandoo cenário moral para o pensamento, o direito romano nãocairia de moda, ao contrário, passaria a constituir o elemen-to principal das relações humanas em muitas partes do mun-do, até hoje.

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CRISTO E A VIA-CRÚCIS DA CARNE

Rejeitando o corpo ideal, aceitando o corpo material eao mesmo tempo procurando na evasão do ser pensante pe-las essências que afinal de contas reverteriam em benefíciodo corpo social, Sócrates representara um exemplo de digni-dade em relação ao conflito mente–corpo. Mas o que acon-teceu a esse grande homem? Condenado a morrer, o mestre,que dele próprio não deixou nada escrito, é interpretado er-roneamente pelas gerações de filósofos seguintes. Ainda quea filosofia do período helenístico houvesse se posicionadoclaramente a favor do corpo individual, numa demonstração cla-ra de aceitação dos limites materiais do homem, a rejeição de suaparte imaterial, ou seja, do homem como ser intelectual, a levoua desconhecer totalmente qualquer noção de corpo social,

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deixando no pensamento filosófico um vazio que teria de serpreenchido. Assim, se a razão, através da filosofia, não lo-grara conscientizar devidamente o homem de sua carne frá-gil, principalmente dos deveres sociais que nascem da redede trocas advindas de suas necessidades vitais, talvez a reli-gião, operando através da fé, fosse capaz disso. O que fez abalança do equilíbrio MC pesar definitivamente a matériado homem foi a representação do corpo coberto de chagasde Jesus Cristo, encarnado no mito do Deus salvador. Por-que Cristo não morreu tão-somente pelas suas idéias — casode Sócrates — mas sobretudo pelo seu semelhante, enquantocorpo frágil e mortal. Ambos, Sócrates e Cristo, representa-ram em vida o reconhecimento do corpo e a sua aceitação;vivenciaram apenas esses corpos e não suas imagens. Entre-tanto a morte de Sócrates deixa à mostra uma contradição, jáque ao se permitir morrer pelas idéias, algo que passara avida toda tentando desmistificar, parece negar, no últimomomento, a carne que aceitara naturalmente. Isso nos leva apensar na impossibilidade do reconhecimento da carne porparte do homem intelectual, dada a própria oposição entre anatureza da carne (matéria) e a do ser pensante (imaterial) ena única possibilidade existente que seria, justamente, atra-vés da fé.

Algo profundamente humano e ao mesmo tempo trans-cendente já havia preparado o caminho para essa revelaçãomaior. A filosofia da cultura helenística, como vimos, chega-ra bastante perto desse corpo, ao rejeitar o corpo ideal. Masa recusa em procurar no ser pensante pelas essências socráticasnão seria uma demonstração de pessimismo quanto à capaci-dade racional de transpor a distância entre a matéria e oimaterial? Então que fosse deixada à fé a tarefa deconscientizar o homem da via-crúcis de sua própria carne.Com a crucificação e o sofrimento em prol da salvação dahumanidade Cristo deixou à mostra esse corpo frágil e mortal.Sua pregação do amor ao próximo e a caridade para com osnecessitados nos fizeram cientes da dívida social nascida dasnecessidades básicas da carne, o que temos verdadeiramente

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em comum com o outro. A igualdade entre os homens só épossível com o comprometimento e pagamento dessa dívidainerente a todos. Somos iguais perante a carne e não o serpensante. Por isso não importa quem sejamos nós, católicosou ateus, em qualquer tempo e idade, a vida e o exemplo deJesus sempre comoveu e comoverá a todos. Sabemos que eleé verdadeiro mas talvez nem consigamos atinar por quê. Arevelação do corpo material e a conseqüente conscientizaçãodo compromisso social — perante a fragilidade da carne — éalgo tão forte, tão intuitivo que transcende e ofusca qualquerargumento racional por mais brilhante que seja. A bondade ea justiça de Jesus nos atingem em cheio o egoísmo do corpoideal que, espiado cotidianamente no espelho de Narciso,costuma fazer nossas fúteis cabeças. Ele arrebatará sempre aspessoas no que elas têm de mais misterioso, ou melhor, pro-fundamente esquecido dentro de si mesmas.

Na ceia dos apóstolos, Jesus tomando do pão e do vi-nho diz que aquele era seu corpo e o seu sangue, e até hoje oritual de cada missa repete o ato em memória Dele. Por queJesus permitiu ser lembrado através do pão (corpo) e do vi-nho (sangue)? E na cruz, agonizante, pede ao Pai que perdoeaqueles que o crucificaram, porque não sabem o que fazem?E Pedro, o discípulo amado, negando-o três vezes antes docantar do galo? Como compreender todos esses sinais? Se pen-sarmos que todos esses exemplos apontam para a fraquezahumana de negar a própria carne, desconhecendo conseqüen-temente as necessidades do próximo para viver às voltas comos desejos inesgotáveis do corpo ideal que consome todas asnossas energias, penso que podemos assim compreender JesusCristo sob uma perspectiva simplesmente humana e ao nossointeiro alcance. Para quem acha difícil aceitar o transcendentalque existe no homem, talvez isso seja o suficiente.

Nenhum ensinamento obteve tanta propagação quan-to o cristianismo, nem outro exemplo nos tocou tão de pertocomo o Dele. Com Buda é possível até refletirmos na inutili-dade de um ser pensante entregue à própria loucura e incon-sistência, mas apenas com Jesus ficamos assim sensibilizados.

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O corpo social de que ele nos faz conscientes através da fé —nas exortações à prática da caridade e de amor ao próximo— talvez seja a única forma possível de realizá-lo, já que arazão até hoje não conseguiu persuadir os homens a renuncia-rem ao egoísmo em prol de uma sociedade mais justa e igua-litária. Exemplo maior do que o fracasso comunista não existe.A necessidade da liberação do ser pensante parece muito maiordo que a conscientização da igualdade entre os homens e porisso o exemplo de Cristo traz-nos sempre a comovente im-pressão de remorso, como se fôramos nós mesmos os res-ponsáveis pela sua crucificação.

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PLOTINO E A BALANÇA CORPO–MENTE

Em plena decadência do império romano e florescênciado cristianismo, a filosofia busca pelo equilíbrio mente–cor-po, resgatando com Plotino a filosofia de Platão. Além de anova versão platônica ver Deus no princípio de tudo, Plotinoé muito mais inconsistente e etéreo, o que o faz passar aindamais distante do corpo de carne do que ocorrera com seu mes-tre. Era a forma de contrabalançar a aceitação implícita dessecorpo que começara a se plasmar na cultura do helenismo,para ser coroado finalmente com espinhos, em Jesus. Tão vi-gorosa foi a reação a esse corpo martirizado, dilacerado e anun-ciado de forma inequívoca para todos que não podemos en-contrar na filosofia de Plotino nada dele. Esta representa a filo-sofia do puro ser pensante, razão pela qual não nos interessa

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agora esmiuçar tal filosofia. Basta assinalarmos que o confron-to da fé com a razão que ocorreria com a filosofia patrísticaque viria a seguir representa, em essência, o choque entre aaceitação e a negação, respectivamente, de um Deus encarna-do em Cristo, que veio se sacrificar pelo homem. Ou seja, afilosofia como produto genuíno do ser pensante só aceita aexistência do corpo enquanto idéia, de uma forma abstrata,rejeitando a fragilidade e mortalidade do homem demonstra-da de maneira chocante e definitiva na cruz.

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O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA

O que Jesus propunha não era um sistema de governonem uma ideologia a ser polemizada mas sim uma mudançaindividual e extrema no modo como a pessoa vivia. As revela-ções da carne não deixavam ninguém indiferente e diante de-las as reações eram apaixonadas. A história nos conta que aFilosofia Patrística nasceu da tentativa dos padres cristãos emconciliar o que eram simples exortações de amor ao próximoe crença na salvação em idéias sistematizadas e de acordo coma filosofia grega de então. Essa seria uma maneira de a própriadoutrina subsistir, já que se chocava com o pensamento roma-no predominante. Mas nós que estamos nos acostumando comas fortes reações do ser pensante frente à revelação da carnepodemos acrescentar certamente mais um bom motivo para

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que os Santos Padres enveredassem pelos labirintos racionais:essa, na verdade, seria a única maneira de neutralizar a maté-ria cruamente exposta nas chagas de Cristo.

Ao tentar racionalizar aquilo que justamente é negadoe rejeitado pela razão, Santo Agostinho, mesmo fazendo aapologia da revelação e principalmente de forma sincera com-batendo o corpo ideal, deu início ao distanciamento da men-sagem simples de Cristo. Esse distanciamento ficaria flagran-te com a escolástica, já entre os séculos IX e XVII. Oensinamento cristão que se embasava na intuição sobre o re-conhecimento da fragilidade de cada um de nós, ao ser des-dobrado nas escolas, inflaria com problemas supérfluos e es-téreis, que iriam desembocar na questão dos universais. E doque tratavam essas questões? Ao retomar um problema doqual Porfírio, discípulo de Plotino, fizera uma observação àlógica aristotélica, a Idade Média passaria seus dias entretidacom uma questão, cujo desenvolvimento se mostrou estéril einútil, sobre a relação entre a linguagem e a realidade. Pas-sando por Averróis e em parte por Santo Tomás de Aquino— os poucos momentos de lucidez em meio ao delírioescolástico —, será com a “navalha de Ockham” que encon-traremos o instrumento cirúrgico necessário para cortar dopensamento cristão oficial tudo o que abundava no supér-fluo. Guilherme de Ockham era da ordem de São Franciscode Assis e por representar o anseio à volta da Igreja simplesde Cristo suas obras foram proibidas e ele próprio condena-do. Ainda que fosse possível e quiçá aproveitável uma incur-são maior pelo apaixonante terreno do cristianismo, a exí-gua realidade deste resumo não o permite, obrigando-nos adeixá-lo aqui. Separada a fé da razão, chegamos ao fim daIdade Média e ao início do Renascimento.

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O RENASCIMENTO

A filosofia que começou com Tales e sua percepção danatureza mergulhou profundamente no ser pensante deParmênides e Zenão, veio à tona com os sofistas, respirandoem Sócrates. Mas ao invés de voltar à margem subiu à cidadeetérea de Platão e lá ficou, enquanto Aristóteles fazia tentati-vas inúteis para trazê-la de volta. A cultura helenística conse-guiu fazer com que pisasse o chão, de onde avistou o corpode Cristo aberto em chagas, na cruz. Porém, ao invés de acei-tar de uma vez por todas esse corpo preferiu tapar os olhos,divagando no ser pensante. Foi assim que passou toda a Ida-de Média às voltas com as discussões estéreis sobres os uni-versais, que no fundo tratava-se da mesma e antiqüíssimaquestão MC camuflada e levada às últimas conseqüências,

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afastada do bom senso e da simplicidade das coisas reais.Além disso, preocupou-se muito mais com o aspecto divinode Cristo, em detrimento das lições mais humanas de amorao próximo e reconhecimento da triste condição do homem.

Em fins da Idade Média, com o desenvolvimento daeconomia e das cidades, uma nova classe social em ascensão— a burguesia — veio incrementar e solidificar o individua-lismo e egoísmo de um corpo ideal que acabara por se impor,de forma definitiva, ao corpo social cristão. Contra essa ten-dência a declinar de vez para o lado do ser pensante e docorpo ideal, a filosofia ainda iria procurar pelo equilíbrio dabalança MC no corpo social das “utopias” de Tomás Moruse Campanella, entre outros. Porém faltaria a essas utopias oque para o marxismo não faltou: o restabelecimento da liga-ção original entre a mercadoria e o trabalho.

Tratando do problema em suas raízes, Marx resgatariao corpo social que se havia perdido com o advento do siste-ma comercial de moedas, no lugar da troca entre mercadori-as. Enquanto na Utopia de Tomás Morus, por exemplo, to-dos os problemas relacionados com a sobrevivência são abor-dados de uma forma totalmente irreal, baseados numa ingê-nua visão do homem, a teoria marxista expõe o suor queestava embutido na mercadoria ao relacionar o seu valor aotrabalho físico empregado nela. Mas deixemos para falar deMarx em outra ocasião e continuemos pincelando rapida-mente a estrada do pensamento MC.

De Montaigne e Erasmo de Rotterdam, basta recordarque o primeiro ao analisar a si próprio esbarrou com a extre-ma inconsistência e mutabilidade do ser pensante, e o segun-do, refletindo sobre a sociedade, descreveu-nos simplesmen-te a loucura, não apenas a loucura individual mas a loucura-mor, o próprio motor de todas as outras. A análise dessesdois filósofos, como já vimos, nos proporciona uma compre-ensão mais profunda do mundo do super-homem.

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A REFORMA E O CAPITALISMO

Iniciada com o “servo arbítrio” de Lutero, que dispen-sava a prática da caridade em favor unicamente da fé, o cor-po social cristão (da caridade e do amor ao próximo) é subs-tituído finalmente, em Calvino, pelo individualismo. Tal in-dividualismo era incrementado pelo enriquecimento acumu-lado pelo trabalho sistemático e metódico, estimulado pelaReforma. Estava inaugurado o que Max Weber tão bem defi-niu como o “espírito do capitalismo”. Poderíamos desdobraro sentido da expressão, compreendendo o espírito tambémcomo um capitalista.

Dali por diante nem mesmo os rígidos preceitos de com-bate ao corpo ideal conseguiriam deter esse espírito, porquese o consumo era tido como nefasto e mesmo proibido, a

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acumulação de riquezas — o capital —, livre do reconheci-mento do corpo social cristão, tenderia fatalmente adescambar no hipermercado contemporâneo. Ora, tal corposocial, que assim podemos denominar na medida em quecompreende as relações humanas não através da troca demercadorias e muito menos do dinheiro mas sim pelo com-portamento solidário e caritativo, por menor que fosse suainfluência, sempre teve como resultado inibir a disposiçãomercenária, condição indispensável ao espírito do capitalis-mo. A interpretação calvinista sobre a desigualdade socialcomo o resultado de uma eleição divina dos “bons”, e queteve como efeito a resignação da massa de trabalhadores comsua miserável condição, já representava a troca desse corposocial pelo outro, o protestante. Nele, embora o corpo idealfosse contraditoriamente negado pela rigidez das regras deconduta, que proibiam os prazeres resultantes do consumo edas expressões corporais, o capital metodicamente acumula-do ao longo do tempo pelas pessoas, livre da culpa pela dívi-da social, fatalmente teria que desembocar no capitalismo/consumismo dos dias de hoje, pois para que serve o exceden-te do dinheiro senão para atender aos desejos desse mesmocorpo ideal?

A ratificação do corpo social cristão na Contra-refor-ma que a Igreja promoveu não foi suficiente para conter oímpeto da burguesia em ascensão, que se beneficiava com opensamento religioso nascido da Reforma.

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A CIÊNCIA E O RACIONALISMO

Como tornar o mundo material menos material, deacordo com as características e potencialidades do incorpóreoser pensante? Para isso nada melhor que fazer como Galileu:colocar em segundo plano, nomeando como “secundárias”as qualidades que atestam, através de nossos sentidos, justa-mente a veracidade desse mundo material. Doravante, a ci-ência não levaria em conta os olhos que vêem; os ouvidosque ouvem; o olfato que permite sentir o cheiro; e a gustaçãoe o tato que em contato direto com a realidade material po-dem nos convencer de que de fato possuímos um corpo e quea natureza palpável representa enfim os seus limites. O impor-tante seriam as qualidades denominadas “primárias”, aquiloque os instrumentos sofisticados iriam posteriormente medir e

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enxergar, ao fragmentar a realidade material. A nova maneirade ver o mundo, com a aquisição da linguagem matemática,foi tão surpreendente para o próprio ser pensante em desen-volvimento que no primeiro momento a razão desconfia nãoapenas da legitimidade do conhecimento existente, outroraapoiado na autoridade preestabelecida pela tradição, mas doobjeto de sua descoberta: não seria o próprio mundo apenasum sonho? Dentre as tentativas de busca pelo método quepermitirá a validação do conhecimento — por parte de váriospensadores da época — Descartes foi quem expressou essadesconfiança na existência do mundo, através da sistemati-zação da dúvida. Antes de qualquer coisa, seria necessárioque o homem se identificasse primeiro com o próprio serpensante que erigia o mundo à sua imagem e semelhança:“Penso, logo existo”.

Somente após a identificação seria atestada a existên-cia da matéria. Estava lançada oficialmente na história dopensamento a identificação humana com sua imaterialidade,em detrimento do corpo de carne e da natureza ao redor.Como já conferimos exaustivamente nos dois primeiros ca-pítulos, Descartes foi apenas o porta-voz dessa tendência quehá muito se insinuava. Doravante a identificação com sua rescogitans será completa, irrestrita, definitiva e quem sabeirreversível. Não importa mais o quanto se objetive a res ex-tensa, pois que a matéria será apreendida muito mais pelassuas medidas de extensão, largura e profundidade, do queatravés dos sentidos individuais que a reconhecem simples-mente como: “meu corpo, minha carne”. O mundo materialterá uma nova medida e essa medida ocupará o lugar dossentidos. Estes percebem o mundo de uma forma muito ar-caica e seus instrumentos são grosseiros demais para apreen-der a realidade como o ser pensante faz. Dali por diante aciência passaria a intermediar as relações entre o corpo e oser pensante, criando um mundo paralelo ao mundo natural:o mundo do super-homem.

Como já foi comentado ao longo deste livro, os ins-trumentos científicos são muitas vezes perigosos para uma

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matéria tão tenra como a carne e uma natureza frágil para assuas experiências. Mas com tanta leveza, atravessando a ma-téria do corpo como a alma à parede e trespassando a reali-dade material como a agulha no tecido, para a ciência nossocorpo parece grosseiro demais, uma geringonça fora de moda,um estorvo no caminho do super-humano. Além do mais, oque representam 70 a 80 anos de vida para quem nutre pre-tensões à eternidade? Embora estejamos nos referindo a pro-jeções científicas para um futuro próximo, em que se prevêum híbrido de homem e máquina, a impressão que se tem é ade que estamos no terreno da pura ficção. Assim, retornemosao resumido histórico da questão, aproveitando a sugestãopara abordar o próximo capítulo.

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A LITERATURA PEDE A PALAVRA

Enquanto Pascal e Malebranche, filósofos que segui-ram Descartes, apresentavam uma filosofia de cunho pro-fundamente religioso, seria a ficção, através do romance e dogênero dramático, que melhor refletiria a questão mente–cor-po que àquela época tomava o aspecto de uma verdadeiraencruzilhada. Não se pode esquecer que a recente invençãoda imprensa e a conseqüente popularização dos livros e dostemas abordados por eles contribuíram decisivamente paratirar das mãos da filosofia o poder natural que até poucotempo detinha de ser a principal refletora das grandes ques-tões humanas. “Eles eram uma legião em crescimento”,96 nosdiz o historiador Will Durant sobre a grande quantidade delivros no início do século XVII. E cita o que escreveu Barnaby

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Rich em 1600: “Uma das grandes doenças dessa época é amultidão de livros que, sobrecarregando de tal forma o mun-do, o impossibilita de digerir a abundância de matéria inútilproduzida e apresentada diariamente”.97 Cita ainda, o histo-riador, outros testemunhos daquele tempo sobre a grandequantidade de livros e a inutilidade de seus assuntos mas res-saltando, paradoxalmente, o imenso valor que a palavra goza-va naquela época. Realmente, a palavra é o próprio ser pensantee a criação da imprensa só veio intensificar a predominânciadas coisas do espírito, ao divulgá-las de forma maciça. Se aabundância de livros e assuntos desnecessários inundava a épo-ca, foi, entretanto, esse mesmo tempo privilegiado pela ficçãodos maiores nomes da literatura de todos os tempos, Cervantese Shakespeare, representantes do século de ouro espanhol edo teatro elisabetano, respectivamente. Justamente por ha-ver encontrado traços inequívocos do conflito na obra des-ses dois gênios, cheguei à conclusão que naquele momentofoi a literatura e não a filosofia quem verdadeiramente esta-va com a palavra para dar o seu testemunho tanto sobre aspeculiaridades da época, quanto sobre o que de perene existeno homem.

Talvez seja uma idéia romântica imaginar que o mun-do, em determinadas fases, se defronte com encruzilhadaspara as quais terá que naturalmente escolher um caminho.Porém não saberia denominar de forma melhor aqueles mo-mentos em que estando o homem diante de duas ou maispossibilidades ou opções a escolher e seguir prefira uma emvez da outra, ou melhor, em detrimento da outra. Assim éque vejo a era dos gregos — antecessora e formadora da civi-lização ocidental —, no tempo de Sócrates, como estandonum momento peculiar desses. O caminho socrático e o dossofistas se abriam diante não somente dos futuros filósofosmas do próprio homem grego. Embora historicamente o ho-mem tenha desprezado o modo de raciocinar dos sofistas, pre-ferindo o socrático, já constatamos que o mundo acabou fa-zendo a escolha pelo primeiro. Não podemos comparar a ta-garelice e verborréia dos tempos atuais com a loquacidade de

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Sócrates porque, como já vimos, ele a utilizava em busca dasvirtudes. Mas a dos sofistas sim, já que se serviram dela parausufruir lucros, sem nenhum guia que não fosse o interesse domomento, ou seja, o argumento mais brilhante que conven-cesse o interlocutor. Tudo no interesse de seu cliente, porqueeram pagos e alguns até bem pagos para isso. Discorrer sobreo ganha-pão desses homens descreve, em parte, o mundo dehoje e não pensamos apenas em re1ação aos políticos, advo-gados e lobistas. Hoje todos querem vender o seu peixe. Eesse peixe, na maioria das vezes, é tão-somente a própriaimagem. Assim, através dos microfones da aldeia, qualquerum se acha no legítimo direito de propagar sua “verdade”particular, despejando em nossos cansados ouvidos uma ta-garelice sem fim.

Mas a via sofística escolhida por nós não chegou aoapogeu em nossos tempos de repente e sim gradativamente,através de momentos decisivos na história, quando então pa-recia que tínhamos diante de nós ainda outra escolha. Pensona encruzilhada literária da época que tratamos, formada peloséculo de ouro espanhol e pelo teatro elisabetano. É muitointrigante como apenas uma expressão — no caso o “ser ounão ser” shakespeariano — possa ter sido aproveitada comolema e inspiração para o tempo em que vivemos. Entretanto,é necessário prestar atenção num detalhe: o que é citado esempre recordado não é a famosa reflexão como um todomas apenas a sua primeira frase, a que causa maior impacto.“Ser ou não ser, eis a questão” costuma resumir uma espéciede dilema característico de nossos tempos. Porém, ao contrá-rio da lapidar afirmação: “Penso, logo existo”, do filósofocartesiano, a frase shakespeareana expressa uma dúvida, dú-vida essa em relação a um verbo por si só extremamente sub-jetivo. Refletido de maneira separada do resto da reflexão,“ser ou não ser” costuma remeter o sujeito de volta à própriaorigem do conflito, como no caso do cachorro na busca inú-til pela própria cauda. Se nem mesmo a metafísica logrouresultados ao lidar com o verbo, não seríamos nós, pobresmortais, mais bem-sucedidos. Assim, por que eleger apenas

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uma frase, uma idéia e não a essência da profunda reflexão,quando apreendida em sua totalidade? Para responder a essacuriosidade temos que voltar novamente aos gregos.

Nos primeiros capítulos do livro vimos que o conhecidoproblema do ser e do não-ser, abordado desde os filósofospré-socráticos, tratava, no fundo, da antiga questão mente–corpo. Para comprovar essa hipótese transcrevi o diálogo entreo Estrangeiro e Teeteto, de Platão. Também afirmei comoela, a questão MC, tomava na maioria das vezes feições dife-rentes em épocas diferentes. É essa a mesma questão que ve-mos aflorar na famosa reflexão de Shakespeare.

O “ser ou não ser” representa uma das reflexões maislúcidas que o homem já produziu. Porque Hamlet, diante daordem de vingança do fantasma do pai, ou seja, na iminênciade ficar diante da própria morte — posto que assassinar al-guém é sempre um ato desesperado que abriga a hipótese detambém ser morto —, inicia um longo e patético monólogoacerca da existência. Embora o “ser ou não ser” de algumaforma remeta à antiga dúvida dos pré-socráticos, vemos comoo genial dramaturgo se refere não apenas a um ser puramentecarnal ou totalmente descarnado, como era do costume dualistada época dos gregos, mas ao homem total. Assim é que nabelíssima reflexão Hamlet questiona o que poderia ser maisnobre para o espírito, se continuar suportando tanto os rigo-res e sofrimentos da carne quanto as mazelas e dores pertinen-tes à alma ou lutar contra tudo isso colocando um ponto final,isto é, suicidando-se. Se não fosse pelo medo da morte — re-gião desconhecida da qual ninguém retornou — e poderíamostrocar os males já conhecidos por outros ainda por conhecer.

Por que o “ser ou não ser” que tanto citamos hoje paraexpressar nossos conflitos não alude ao drama do ser huma-no, visto de forma integral, diante da realidade inexorávelda carne e de seu fim, como está no próprio texto? Por queele foi escolhido para ilustrar, sobretudo, os dramas da almae não do homem, por inteiro? Penso que talvez o própriodesenrolar da peça seja, em parte, a razão disso. Porque, comoveremos com mais clareza no próximo capítulo, depois desse

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monólogo o príncipe continua seu questionamento, cada vezmais ciente da lúgubre missão que não pode esperar mais e,assim, num crescendo de ceticismo e mesmo de ironia edesprezo pela vida chega ao final apresentando um quadrode certa forma conflituoso em relação à lucidez e consciênciada reflexão do “ser ou não ser”. O tablado cheio de mortes edesagradável à visão do príncipe da Noruega assemelha-semuito à negação da morte através da sua banalização, hojemostrada e reprisada friamente em nossos aparelhos de TV.Mas não podemos esquecer que Hamlet parte de uma paraoutra concepção da existência por puro desespero pessoal emoral. Cabe ao príncipe vingar a morte do pai e a desonraprovocada ao reino pelo matrimônio da rainha com o assas-sino do próprio marido. Mas por que nós, ao invés da refle-xão lúcida do “ser ou não ser”, escolhemos apenas uma facetadela, dentro da visão multifacetada do artista? Também terí-amos todos uma missão a cumprir, tal qual o príncipe?

Talvez não uma missão mas uma tendência, uma atra-ção irresistível pelo caminho trilhado pelo puro espírito. Aque-le que se faz sentir no desdobramento da peça e que malgradoa profunda meditação leva o príncipe à decisão de assassinaro tio, provocando então um morticínio que não trata maisda carne e de seu fim mas simplesmente do drama de umaalma para quem a morte não tem nenhum significado real.Afinal, o espírito não teme a morte pois que é imortal e porisso Hamlet se comunica com o falecido pai. Também hoje ascomunicações cada vez mais rápidas e sofisticadas fizeram datriste realidade do fim da carne apenas um espetáculo, maisapropriado para nos fazer esquecer do que lembrar a exis-tência da morte. Da nossa morte, para ser mais precisa.

Podemos falar de peças teatrais e livros como se esti-véssemos tratando de fatos acontecidos com seres humanos.Isso acontece em razão da importância fundamental da lin-guagem, seja literária ou não, escrita ou falada. É ela o próprioveículo natural do ser pensante, a sua forma de expressão ge-nuína. Isso foi sempre uma garantia para que os livros e emespecial os de literatura de ficção permanecessem fascinando

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o homem, ao longo do tempo. Hoje podemos acrescentar àlista os manuais de auto-ajuda, as biografias, escritos místi-cos e esotéricos para todos os gostos, enfim, tudo o que sejafacilmente digerido junto aos estímulos estridentes do mun-do contemporâneo. É dentro desse contexto que não vejo omundo da informática e o da imagem representarem umaameaça séria à leitura e, por conseguinte, aos livros — é maisprovável que a escrita esteja se adaptando a uma nova formade expressão, a do computador ou, melhor ainda, da redeglobal de comunicações, a internet. Embora a internet não seresuma apenas a seus correios eletrônicos (e-mails) e salas debate-papo (chats), constituindo uma rica fonte de informa-ções e instrumentos de trabalho, é nos primeiros que pode-mos notar o poder que a palavra escrita pode adquirir quan-do utilizada em tom coloquial e em larga escala.

É surpreendente a sensação de proximidade e intimidadeque os internautas experimentam, muitas vezes, na rede. Nãosabemos muito bem por que razão aquele desconhecido do qualcostumamos ter apenas o apelido (nick) e às vezes alguns pou-cos dados (que podem ser fictícios) nos parece de uma horapara outra um amigo íntimo ou em vias de se transformar emum. Alguém prestes a conquistar nosso coração ou, no mínimo,um desconhecido com sabor de velho conhecido, uma pessoadigna da troca de amabilidades e confidências que em situaçõesreais, diante a materialidade das pessoas, jamais nos sentiríamosà vontade para fazer. Em matéria de sensação de intimidade eproximidade instantâneas a internet faz milagres. É um fenôme-no novo que deverá ser ainda muito estudado. Mas algumasconstatações, acredito, já podem ser feitas desde agora por qual-quer um que tenha navegado na rede e experimentado tais sen-sações ao interagir através dos e-mails e chats.

Na rede somos uma comunidade de espíritos unidospela palavra escrita. Ora, a palavra escrita é o homem en-quanto apenas pensamento, a própria alma e assim, neutrali-zados da presença limitadora e incômoda da carne, ficamoslivres para nos aproximarmos imediatamente do outro. Paraparticiparmos instantaneamente dessa deliciosa, embriagante

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e viciosa comunhão dos espíritos. Ou comunidade de corposideais. Sim, porque a rede também proporciona uma exce-lente oportunidade para a apresentação desse corpo idealiza-do por nós mesmos e pelo outro, com o qual interagimos, nomomento. A sensação de proximidade que cria intimidade, oque na realidade demoraria muito para ser alcançado na vidareal, através da net é possível num passe de mágica, a partirda aceitação e troca dos corpos idealizados dos parceiros vir-tuais. Seja em relação à amizade ou à sedução, a possibilida-de de aceitação e proximidade rápidas ficam a cargo do ta-lento para lidar com as palavras e os silêncios (espaços embranco), da tela. Esse o verdadeiro poder do internauta queestiver navegando na rede. Quem possui essa capacidade temmais chances de participar imediata e espontaneamente des-sa alegre e embriagante sociedade espiritual.

Mesmo quem não possui esse talento para o trato comas palavras participa, ainda que de uma forma não tão posi-tiva, dessa associação de espíritos. É impossível não fazer partedela, estando navegando pelos seus chats, mensagens ou e-mails. Porque não existindo ali a prova do crime, isto é, acarne, estamos todos libertos dela e assim somos puros espí-ritos. A carne que no espaço real nos traz a lembrança imedi-ata da fragilidade e do fim e contra a qual tomamos as devi-das precauções. Na presença de um estranho a disfarçamos,porque não tivemos ainda a oportunidade de apresentar aele nosso corpo ideal. Assim é que diante de um desconheci-do fazemos pose estudada. Até a pretensa imagem de indife-rença que desejamos passar foi montada cautelosamente.Diante do estranho não podemos relaxar em nossas defesas ereservas e, desse modo, estabelecemos barreiras para a co-municação. Justamente pelo fato de a internet derrubar asbarreiras da presença física, formando uma curiosa impres-são de proximidade, acredito que os serviços de psicologiaon-line, hoje ainda muito debatidos, deverão aumentar e sepopularizar, num período relativamente curto. Porque comas defesas relaxadas o internauta cliente fica mais acessívelao poder benéfico da palavra escrita.

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Apenas um miserável não teria como cuidar de suasdefesas e reservas diante do outro, apresentando-se na nudezvergonhosa de sua condição de carne. Porque o seu estadode penúria e necessidade — visível no traje esfarrapado esujo, na condição de pedinte — já o denuncia perante o pró-ximo. Mas por isso mesmo, por não conseguir passar algumtipo de corpo ideal decente, parecerá indigno de verdadeiraatenção e consideração. Ele é apenas a sua carne, sem disfar-ces, retoques ou máscaras. Sem um mínimo de corpo idealcorre-se o risco de ser rejeitado e até humilhado. Podemosaté oferecer ajuda e conversar com alguém nessas condições.Mas provavelmente ele despertará somente a nossacomiseração. Apenas isso: compaixão e nada mais.

Na rede não existem barreiras para a comunicação se-melhantes às que existem na realidade. Porque nela nossoscorpos ideais são constituídos de palavras e isso equivaleria aafirmar que ali somos puros espíritos, sobretudo. Ora, liber-tos da carne os espíritos ficam audaciosos, atrevidos. Nãoapenas vagueiam daqui para acolá como fantasiam, seduzem,enganam. Dentro da rede nos procuramos, nos encontramose nos aproximamos imediatamente. Também nos desejamose, às vezes, traímos caso estejamos na realidade já compro-metidos. Mas será mesmo traição o envolvimento que ocorreapenas de forma virtual? Na vida real ninguém se envolveverdadeiramente com alguém se não estiver em jogo o inter-câmbio dos corpos ideais entre os parceiros. Por mais bonita,atraente e sedutora que for essa pessoa. Mas não nos esque-çamos que na rede, como puros espíritos, somos também oscorpos ideais que idealizamos para nós e para o outro, deuma maneira quase que imediata. Até que possamos verificarpessoalmente tanto o corpo real quanto o corpo ideal dessapessoa, a imaginação que reina absoluta nesse tipo de conta-to é que comanda a relação. É quase impossível passar pelogrande poder de sedução das palavras sem ser atingido porelas, de alguma forma. A rede de conexão mundial está plan-tando a semente de uma nova forma de relação entre as pes-soas. É possível que num futuro próximo haja uma maior

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tolerância para com essa nova espécie de “infidelidade”. Por-que diante da ausência material dos internautas fica difícilestabelecer em que ponto ela tem início. Espíritos gozam deliberdades que aos homens de carne e ossos não é dado pos-suir. Até por uma simples questão de bom senso e comodida-de, já que a internet com seus chats e outras formas deinteração caminha para a mesma popularidade e generalida-de de uso que a televisão goza hoje, em todo o mundo.

Vencida a realidade limitadora da carne e do espaçoformamos um alegre e recreativo clube espiritual. Ali dentroimpera não somente uma nova forma de expressão mas tam-bém uma nova ética. Dentro da rede tornamo-nos mais inte-ressantes, sedutores e sobretudo seres especiais. Isso fica evi-dente nas incontáveis mensagens trocadas entre seus mem-bros. Com exceção para as piadas, informações e alguns ser-viços realmente úteis à sociedade, a maioria dessas mensa-gens exorta as pessoas a serem melhores do que são; a repa-rarem no quanto elas podem fazer pelo bem, no mundo; decomo é possível auxiliar o outro na busca por uma evoluçãoespiritual que no final reverterá em melhoria para todos, eassim por diante. Adequadamente musicado e acompanhadode belas imagens, o manual de exortações da rede costumavir repleto de efeitos com o propósito de sedução e magia,mudando conforme o teor da mensagem. Mas subjaz a todaselas a mesma constatação: na assembléia dos espíritosvivenciamos apenas a realidade virtual ou ideal. Ela é perfei-ta. Nela somos todos estimulados a sorrir; a viver alegre-mente o presente; animados à prática do bem ao próximo e anós mesmos; encorajados a mudarmos nossas opiniões des-favoráveis em relação à vida. Hoje. Agora. Já. Tudo num passede mágica. Como convém a uma agremiação espiritual. Umacomunhão perfeita e propícia a seres desprovidos de carne.Felizes entidades a quem a incômoda realidade do corpo edo espaço não importunam mais. Pelo menos enquantointeragem, aparentemente libertos para uma vida e um mun-do melhores. E haja memória no computador e no estômagopara digerir tal literatura canhestra, para deixar-se imbuir desse

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estado de espírito “oficial” da rede. De uma tal maneira essafilosofia incita e remete a um homem perfeito e a um mundoextraordinário que se alienígenas existissem e se fiassem nainternet para nos conhecer acabariam por fazer uma idéiatotalmente equivocada sobre a espécie. Porque estariam di-ante de uma corporação privilegiada, perfeita. Onde imperaum moderno conceito moral e estético, próprio a seres queatravessam paredes e quaisquer obstáculos materiais, vencen-do distâncias inimagináveis, comunicando-se quase que ins-tantaneamente, a uma simples e mágica pressão do mouse.Para além do tempo, do espaço, do bem e do mal reais. Deuma certa forma onissapientes, onipotentes e onipresentes,defronte ao comungatório das telinhas de seu espaçocibernético e infinito. Legiões de querubins, arcanjos e serafinspara quem teoricamente tudo é possível. Uma espécie de so-ciedade de espíritos desencarnados e ao mesmo tempo en-carnados, jamais vista antes. Talvez o tão receado masinstigante e curioso estágio da vida após a morte prometidopor tantas religiões ao longo da história do homem, já à dis-posição dos vivos, aqui e agora. Um milagre possível apenasporque a mais nova tecnologia colocou à disposição de mi-lhares de pessoas, ao mesmo tempo, a mais antiga e podero-sa mágica que se conhece: a palavra escrita.

Para fecharmos este texto retornemos à época que pre-tendíamos analisar: fins do século XVI e o correr do séculoXVII, quando a palavra havia atingido o seu ponto culmi-nante dentro da literatura, através de seus maiores e até hojeinsuperáveis gênios, Cervantes e Shakespeare. Vejamos comoa ficção que trata das mortes de Dom Quixote e de Hamletpode estar relacionada à problemática mente–corpo. Muitoalém de um simples final para os personagens, tanto a mortedo cavaleiro quanto a do príncipe tocam no que existe deimutável na condição humana, não importando a época emque leiamos suas histórias.

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REFLEXÕES SOBRE AS MORTES DE

DOM QUIXOTE E DE HAMLET

As últimas palavras da mais famosa tragédia elisabetanasão proferidas por Fortimbrás, príncipe da Noruega. Ele or-dena que carreguem o corpo de Hamlet como o de um solda-do e que a música marcial e os gritos de guerra ressoem porsua morte. Finaliza a peça mandando retirar os cadáveres dopríncipe e dos outros, visto que semelhante cena não era ade-quada ali no salão do castelo mas a um campo de batalha.

Como vimos há pouco, a maioria de nós conhece deHamlet a já citada e famosa reflexão sobre “ser ou não ser”,conseqüência da dúvida que o príncipe da Dinamarca ali-mentava a respeito da vingança do assassinato de seu pai.Mas não sabe ou não se lembra dos acontecimentos sangren-tos que cercaram a sua morte. Do mesmo modo que em

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Hamlet, a morte de Dom Quixote não é a passagem, do li-vro, que melhor se fixou em nossa memória. A imagem maisforte que ficou do romance de Cervantes foi a dos moinhos,aquela que nos faz recordar o cavaleiro como o louco maisoriginal e adorável que o universo literário já produziu.Quixote tornou-se uma figura tão viva e popular que as pala-vras derivadas de seu nome servem para descrever, nas váriaslínguas do mundo, situações que vão desde a atitude român-tica e ingênua de quem se mete em trapalhadas por solidari-edade ao próximo, até o sentido de ato ridículo, fanfarronada,bazófia. Embora a morte não pareça harmonizar com a lem-brança bem humorada de suas cômicas aventuras, não acre-dito que lendo o último capítulo do romance alguém possaficar insensível à tristeza de seu fim. Diferente do ensangüen-tado final de Hamlet, a morte de Dom Quixote — sem der-ramar sequer uma gota de sangue — atinge-nos o fundo daalma, dolorosamente.

Dom Quixote deitou-se em seu leito para morrer comoAlonso Quijano, o Bom. Reconhecendo a sua loucura e abo-minando a cavalaria andante que lhe havia inspirado tantasações insensatas. “Louco fui, ajuizado estou agora”,98 diz ofidalgo para os familiares e amigos que lhe assistem os derra-deiros momentos. Sancho, aos prantos, suplica-lhe que nãose vá. Que vivesse ainda muitos anos, já que a maior loucuradesta vida seria um homem deixar-se matar não por algummal ou por outro homem mas tão-somente pelas mãos damelancolia.

Como Sancho, também nos sentimos tentados a im-plorar ao cavaleiro que não nos abandone. Porém, o fim deDom Quixote é verdadeiro, definitivo, pungente. O que con-firma essa triste verdade são as lágrimas que costumam ume-decer os olhos, quando da leitura daquelas enternecedorasconfissões. Não há lugar para a esperança. Dom Quixotemorreu e também nós morremos, um pouco, com o final dahistória. Desde o começo do romance vínhamos rindo e nosemocionando com as tentativas desesperadas do cavaleiroem superar todos os obstáculos, principalmente de ordem

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física, impostos ao seu mundo de fantasia. Ríamos e algunsde nós, às vezes, também chorávamos, porque somos todosnós ingênuos cavaleiros andantes sempre dispostos a lutarcontra a matéria, no afã de estender ao máximo nossos limi-tes. Também batalhamos, desde o alvorecer do homo sapiens,com moinhos e exército de ovelhas e tal qual o incorrigívelcavaleiro continuamos a resistir ao teste da realidade materi-al. Dom Quixote é a nossa cara não apenas pelo desejo deignorar ou ultrapassar as fronteiras do real. Ele é o que demelhor existe em nós e o melhor de todos nós e é por essarazão que a sua morte nos deixa tão desamparados.

Tão desamparados que a compensação para essa mor-te seria imaginar o quixotismo de Sancho: o escudeiro sairia,tal qual seu amo, para novas e intermináveis aventuras. Bon-doso engano esse, o de Miguel de Unamuno. Para mim, seexiste uma coisa de que não restam dúvidas, infelizmente, é ade que com a morte de Dom Quixote morre também, nocriado, a parcela de fantasia inspirada no cavaleiro. Essa par-cela, como vimos, fácil de desmoronar diante do teste darealidade, como o sonho de se tornar governador de algumreino. Tudo o mais em Sancho aponta para a triste circuns-tância da carne: a atividade doméstica da profissão de escu-deiro; a preocupação incessante com a satisfação das necessi-dades físicas e a condição de bode expiatório, nas confusõesem que o amo vive se metendo. Até o dócil e gracioso espíri-to que lhe anima as formas roliças se plasmou na densa sabe-doria popular.

O povo é abstrato unicamente para aqueles que delequerem esquecer as questões da sobrevivência. Subtraída aalma de cada homem, considerado individualmente, povo éa eterna interrogação a incomodar o sossego dos governantese poderosos: como alimentar bocas sempre famintas a recla-marem comida, proteger corpos nus das intempéries, admi-nistrar o remédio e o atendimento para as dores e vicissitu-des da carne? É na sabedoria retirada da convivência com esseconjunto de incômodos, ou melhor, na filosofia dessas peque-nas questões — mas pequenas somente para os grandes — que

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foi inspirada a alma do criado. Como então as pernas curtase pesadas da necessidade poderiam seguir o ágil e longilíneodestino do cavaleiro? Ora, o escudeiro não tem razão de sersem o amo, e os membros não sobrevivem à morte da cabeçada qual fazem parte, adaptando a belíssima imagem que opróprio Dom Quixote utilizou, ao considerar a relação entreambos.

Foi o escritor alemão Friedrich Schlegel quem primeirocompreendeu Dom Quixote como obra dual, em que o cava-leiro representa a espiritualidade e Sancho o lado material,existentes na vida humana. O acerto da interpretação de talforma popularizou a dupla imagem que, hoje, não consegui-mos entender como os intérpretes que o antecederam não en-xergaram a dualidade que ali se encontra de forma tão evidente.

Como não poderia deixar de ser, concordo integralmentecom a interpretação mas tenho comigo que a intuição do sá-bio germânico não foi compreendida em todo o seu alcance,nem de maneira adequada, desdobrada. Uma coisa é conside-rar, de uma maneira vaga e generalizada, os dois personagenscomo representantes do par espiritual-material, e outra éenfatizar no cavaleiro a personificação da mente ou espírito eem Sancho a representação da carne. O próprio romance con-duz-nos a esse pensamento. No vol. II, cap. XXXIII, Sancho,justificando-se perante a duquesa a loucura de seguir DomQuixote, assim se expressa: “Fosse eu sensato e dias há quedeveria ter abandonado meu amo. Esta, porém, foi minha sina,meu azar ... Assim, é impossível que nos possa separar outroacontecimento que não seja o da pá e do enxadão do covei-ro”.99 Não poderia estar mais claro. De fato, somente a mortepõe termo à estreita união entre o corpo e a alma.

Acredito que exista uma grande diferença entre os doismodos de encarar a questão. Deixando de individualizar edefinir a oposição espiritual–material, desperdiçamos a opor-tunidade de perceber a dualidade que coexiste à união harmo-niosa do par de personagens. O contrário sucede quando nosidentificamos com Quixote–Sancho enquanto símbolo da com-plexa e estreita interação que existe entre o espírito e o corpo,

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respectivamente. Dessa perspectiva, o romance se revela emtoda a sua grandiosidade e beleza, porque nos tornamos cien-tes, dentre outras coisas, do que se escondia sob a aparência deum cavaleiro enlouquecido e seu escudeiro medroso e glutão.

Sancho não representa a sensualidade da carne. Nãonos deixemos enganar pela avidez que, às vezes, parece to-mar conta do criado. Muito menos devemos imaginar quenas suas fartas carnes se esconda qualquer traço de concupis-cência. Essa maneira de ver o corpo — tão comum em nossosdias — não se encontra presente na história do cavaleiro. Ocriado de Dom Quixote representa o nosso corpo mas so-mente enquanto carne frágil, perecível e sujeita às necessida-des prementes da sobrevivência. Dessa forma, o que nele apa-rentava um apetite feroz não passava de sofreguidão peloalimento, da parte de quem vive atormentado pela sua falta.O que a opulência permite camuflar sob a forma de requinta-da degustação, a condição de pobreza do escudeiro deixa àmostra na realidade triste daquele que depara com as maio-res dificuldades para o atendimento das necessidades físicas,como a fome. Agora podemos entender por que o autor, noromance, defende Sancho de uma possível acusação de gros-seira voracidade. Conscientemente ou não, a própria esco-lha do nome Pança, inspirada no tipo físico do escudeiro,serve como uma caricatura perfeita para aquela que, das ne-cessidades, costuma ser a mais aflitiva.

Se prestarmos atenção às palavras trocadas entre Sanchoe o cavaleiro, compreenderemos que ali dialogam o corpo ea alma. Ele, que é mudo por natureza, toma emprestada avoz do escudeiro para queixar-se dos maus-tratos. Por suavez, a alma tenta infundir-lhe ânimo com suas miragens efantasias. Fala de sua vocação para as aventuras e os atosheróicos e como pagamento e desculpa pelas bordoadas esofrimentos causados pelas estripulias promete-lhe, atravésde uma ilha, o paraíso perdido. A meu ver, a estreita amizadeque une os dois companheiros, assim como a atraçãoirresistível de Sancho pela loucura de Quixote, representama interação e a interdependência entre o corpo e a mente.

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Ao nos identificarmos com o Sancho da fragilidade da car-ne sentimos despertar o valente cavaleiro que jaz adormecido emnossa alma. Mas o cavaleiro da Triste Figura e não outro.Triste porque retrata em seu semblante, justamente, o reco-nhecimento da fragilidade e finitude do corpo. Se não hou-vesse esse reconhecimento e aceitação, restaria apenas umcavaleiro obstinado, egoísta e arrogante, em busca de aven-turas que lhe granjeassem a fama e a vitória. Tendo por com-panheiro Sancho, entretanto, Dom Quixote confirma o quedesde o início do romance ele já demonstrara ser: o defensordos fracos, dos indefesos, dos oprimidos, dos necessitados e,sobretudo, das crianças. Porque maltratar os pequenos seresindefesos é praticar, nas próprias palavras do cavaleiro, “omaior torto e agravo que a injustiça gerou e a crueldade co-meteu...”.100 Certa vez, Jesus chamou as criancinhas para pertode si, dizendo que delas era o reino dos céus. Essa passagemdo romance tem o poder de nos tocar especialmente o cora-ção que vê na figura do Dom Quixote das crianças o ecopiedoso e terno desse chamado.

Se a história do cavaleiro tanto nos comove, tendo comopano de fundo a miserável condição do corpo, devemos credi-tar ao gênio espanhol o mérito de havê-la apresentado sob odisfarce de um escudeiro bonachão, perante a sapiência e no-breza de seu amo. Sentimo-nos irresistivelmente atraídos poressa cômica dupla de protagonistas sem perceber que ali, dian-te de nossos olhos, se desenrola a mais nobre mas tambémmais triste e fidedigna história do conflito: a sofrida oposiçãoque a matéria frágil e finita da carne representa diante do so-nho de força superior e imortalidade de nossas almas. Caso osdois personagens fossem despidos do esplêndido trabalho li-terário teríamos apenas motivo para as lágrimas, ou pior, ra-zão para não gostarmos do romance. Talvez nem lê-lo.

Suponho que somente alguém cuja biografia estivessetão próxima às agruras da carne poderia criar Dom Quixote.Alguém que, como Cervantes, houvesse passado por situa-ções adversas que o fizessem tristemente consciente da realida-de da matéria. E poderiam existir condições mais perversas e

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adequadas para lembrar que se possui um corpo frágil, dolo-roso, limitado e mortal do que sofrer mais de uma vez a afli-ção do encarceramento? Participar em guerras e ferir-se embatalha, tendo como conseqüência a inutilização de um mem-bro? Padecer muitos anos em cativeiro e por causa disso ha-ver sido torturado em tentativas de fuga e, além de tudo, serpobre durante toda a vida, atormentado pelas dificuldades,na luta pela subsistência?

Um pouco diferente parece ter sido a vida do autor deHamlet. O pouco que se sabe da biografia do maior drama-turgo de todos os tempos — uma existência aparentementeisenta de grandes traumas físicos e bem-sucedida quanto aoaspecto financeiro — seria razão suficiente para descartá-lopara a hipótese aventada no início de nosso parágrafo anteri-or. Mesmo levando-se em conta algumas circunstâncias des-favoráveis, a saber, a decadência financeira do pai, quandoele tinha 12 anos; a sua chegada a Londres como um aventu-reiro sem recursos (de acordo com Samuel Johnson) e o fatode haver quebrado a perna antes de retornar à sua cidade,dando como encerrada a sua carreira teatral bem-sucedidaem fama e dinheiro. Porque se Shakespeare provou realmen-te desses dissabores na vida não podemos nos esquecer que ogrande poeta foi devidamente reconhecido em sua época,sendo alvo do respeito e admiração para com a sua obra, nãoapenas por parte do público mas também da própria rainha,de que foi prova a proximidade dele e de sua companhia nacorte elisabetana. Além disso, as boas circunstâncias devemter somado mais pontos já que além do talento genial para aliteratura ele provou ser um bom gerenciador de seus recur-sos financeiros. Seja como for, parece não ser necessário in-vocarmos a boa situação da Inglaterra da época frente à der-rotada Espanha (a Invencível Armada), já que o bardo inglêsfoi mais afortunado do que seu contemporâneo, não haven-do experienciado os graves tormentos sofridos pelo espanhol.De fato, parecendo concordar com a suposição, não existenas obras de Shakespeare, e em Hamlet em particular, ne-nhum personagem que preencha o lugar que Sancho ocupa

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em Dom Quixote. Se não vou longe demais em minhas refle-xões diria que a carne, em Hamlet, devido ao próprio temada peça — a traição e a vingança — ficou mais em evidênciaenquanto desejo, infâmia e devassidão do que pela condiçãode fragilidade e finitude, como acontece na história do cava-leiro. Quando é caricaturada em sua realidade crua e nua,como no gordo e velho Falstaff de Henrique IV e de As ale-gres comadres de Windsor — como já vimos —, parece servirà finalidade da negação e do escarnecimento e não de suaaceitação e conscientização. Ou ainda, em outras peças, mu-tilada, ensangüentada, e até inspirando a antropofagia, comono Timon de Atenas. Tanta evidência de negação merece umexame mais detalhado.

Ao contrário de Dom Quixote, o final de Hamlet nãonos faz sentir abandonados. Apesar da sanguinolenta cenada mortandade, ficamos resguardados da solidão e tristezainerentes à conscientização da morte por uma bela e perspi-caz análise do espírito humano. Análise tão sutil e verdadeiraque ultrapassou os séculos nos ensinando sobre nós mesmos,maravilhando-nos com sua psicologia natural, suas elevadasapreciações sobre o espírito. Adentrar o mundo deShakespeare é penetrar o reino do psíquico. Tudo o que seexpressa ali nos diz respeito de perto, satisfazendo-nos odiscernimento, esclarecendo-nos o que apenas suspeitávamoscomo verdade em nossas almas. Em Hamlet, tudo está nodevido lugar. Cada cena exige para o ápice da situação dra-mática personagens e concepções nobres: reis, súditos, trai-ções e uma sombria reflexão sobre a condição da existência,enquanto o príncipe hesita em assassinar o tio, no cumpri-mento da ordem do pai.

Na cena IV do ato IV, ao questionar sobre o valor dohomem Hamlet conclui que ser grande seria lutar por qual-quer coisa desde que a honra estivesse em jogo, e terminaconclamando que doravante seus pensamentos de vingançaseriam de sangue. Essa me parece a parte decisiva da tragédia.É aqui que Hamlet decide a questão da vingança, assim comoa própria veracidade do morticínio que viria logo mais adiante.

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Havendo transfundido o sangue — da mirrada carne que ain-da lastrava o enredo — para o desejo de vingança, o príncipevolatiliza a realidade material do sangrento e derradeiro ato.Após a mencionada parte voltaremos a vê-lo somente na fa-mosa cena dos coveiros. Mas nessa cena somos surpreendi-dos com as atitudes de Hamlet perante a nossa própria supo-sição. Porque enquanto um dos coveiros aparentemente des-denha dos esqueletos que lhe caem nas mãos, ele reflete so-bre a realidade da morte, através de ironias que deixam àmostra a perplexidade quanto ao pouco valor que a vida pa-rece ter. A maneira como ele reflete sobre essa realidade, in-clusive utilizando trocadilhos com o verbo to lie, sugere queo príncipe — diante da decisão final de vingança contra o tiousurpador — tem necessidade de se convencer da gratuidadeda existência para assim cumprir a ordem do fantasma do pai.

Como sabemos, é impossível traduzir ao pé da letra ojogo de palavras que a língua de Shakespeare colocou à dis-posição de sua genial criatividade. Apesar das dificuldades,entretanto, para alguém que, como eu, vem tentando com-preender Hamlet sob a inspiração da dualidade em Quixote–Sancho, esses jogos delineiam uma possibilidade. A ambigüi-dade proporcionada pelo verbo to lie — mentir e jazer — nocontexto do cemitério, assim como na própria atmosfera fu-nesta do enredo, parece sugerir uma dúvida: a morte existi-rá, realmente? A peça responde-nos que talvez não passe deuma farsa, se a vida é uma quimera, iludindo a todos quedela participam no teatro da existência. Seja o advogado, obobo da corte ou Alexandre o Grande. Essa visão parece con-firmada no já citado ato IV, cena IV, quando o príncipe refle-te sobre a futilidade da guerra empenhada pelo reino daNoruega contra uma parte ínfima de terra polonesa, carnifi-cina que seria empreendida apenas pela glória da própriaconquista. Mas ao invés de se convencer do absurdo da situ-ação como seria de esperar, visto que em tal conflito se per-deriam milhares de vidas, Hamlet conclui que ser grande se-ria deixar-se levar não por verdadeiras razões mas muito maispor ninharias, desde que estivesse em jogo a própria honra.

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Porém o príncipe não chega a essa conclusão por alienação.Não, ao contrário, a sabedoria shakespeareana é muito pro-funda para não reconhecer nessa guerra insensata o verdadeiromal que acomete o reino da Noruega, como sendo o excessode paz e de riqueza. Está lá, textualmente, a compreensãodesse ato de insensatez. Porém, o motor da peça é o pedidode vingança por parte do pai e assim tudo conspira para co-brar de Hamlet o cumprimento do juramento feito. O quepoderia ser compreendido em outras circunstâncias como umaloucura — a ceifa de milhares de vidas, frente às desarrazoadasmotivações de uma guerra inútil como aquela — não passaagora de manifestação de coragem e de grandeza. Porque avida, ela apenas, enquanto animal que come e dorme, não émotivo suficiente para justificar a existência.

Seria tal reflexão uma resposta desesperada já que elesabia que teria que vingar o pai, matando o tio? Tão desespe-rada que ousa desacreditar a própria morte, como se ela nãopassasse de uma mentira, de um “faz-de-conta”, um jogo comoo do trocadilho com o verbo to lie utilizado na cena do cemi-tério. Como se pudesse ser um quadro, uma cena, um espetá-culo. Qualquer coisa que, ferindo a vista, fosse possível afas-tar. Se consideramos como o verdadeiro tema da peça a dú-vida entre o ser e o não ser, podemos entender que diante dainexorabilidade daquele pacto de vingança entre ele e o fan-tasma do pai, quando então teria que se defrontar voluntari-amente com a região misteriosa da qual viajante nenhumretornou, o drama como um todo, tanto nos diálogos quan-to nos monólogos, tem como pano de fundo uma única einsistente dúvida: a morte existe realmente? A mortandadeda última cena, assim como as palavras de Fortimbrás res-pondem que não. Pelo menos não para alguém como Hamlet,que na representação das paixões da alma haverá de se ele-var sobre a miséria da carne, aparecendo como puro espíri-to, imortal como a própria dama inspiradora da peça. Se aalma é eterna a morte, para ela, não existe. Assim, o príncipeda Noruega ordena que levem dali os corpos, porque seme-lhante visão seria mais apropriada a um campo de batalha.

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Por que apropriada a um campo de batalha? Não seriapelo fato de que nas guerras encaramos a morte de frente;açulamos sua ferocidade animal; arrojamo-nos febrilmente àsua procura, como em desafio à mortalidade da carne? Quemacredita, realmente, que irá morrer num campo de batalha?Provavelmente ninguém. A condição para se entrar em com-bate precisa ser a de negar ou ao menos de esquecer que sepossui um corpo. Talvez seja essa a razão para a sanguinolênciade um campo de batalha não nos convencer, de uma vez portodas, da loucura das guerras. Tanta evidência daquela queninguém quer ver tem o poder de produzir, em nós, um efei-to contrário. Desse modo, dou inteira razão a Fortimbrás.Que retirem todos os corpos da última cena se a morte, napeça, não passa de um lamentável equívoco e o príncipe daDinamarca já nasceu sob o abrigo da imortalidade.

Naturalmente, antes dessa leitura deveríamos compre-ender a fala do personagem de acordo com a circunstânciaem que foi proferida. A ordem de Fortimbrás faz sentido:realmente, a quantidade de cadáveres lembra um campo debatalha. Mas não podemos esquecer que em outras tragédiasshakespeareanas a mesma rejeição da morte é sugerida. Paraeste texto não é necessário outro exemplo que o de Otelo.Na última cena, Ludovico, referindo-se à morte deDesdêmona, Emilia e Otelo assim se expressa: “Este espetá-culo envenena a vista. Mandem cobri-lo”.101

Seria uma simples coincidência? Palavras não do bar-do inglês mas da fonte literária na qual ele se baseou? Pensoque jamais saberemos. A solenidade das peças de Shakespearefavorece o despercebimento de tais particularidades quandoas lemos sem nenhuma idéia preconcebida. Aliás, as obrasliterárias devem ser lidas assim mesmo. Porém, suponho queprocurar o rastro do conflito mente–corpo não seja de todouma atitude estranha à verdadeira literatura. Afinal, repararna dualidade é enxergar o homem de forma integral e nãosomente a sua alma ou a sua carne.

Se Quixote representa o espírito, entretanto, esse espí-rito tem um corpo. Não somente o de Sancho mas o seu

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próprio, um tanto descarnado é verdade. Tão seco que astundas e bordoadas doem-lhe mais na alma que nas mingua-das carnes. Mas Hamlet, como acabamos de analisar, é o serpensante em estado puro. A meu ver, essa é a sua maior atra-ção. Na verdade, o homem não aprecia muita dose de realis-mo. Por esse motivo é que penso que a composição de DomQuixote deve ter dado muito trabalho para Cervantes, maisdo que Hamlet para Shakespeare, ou mesmo qualquer outrotrabalho do próprio mestre espanhol.

Não costumamos gostar da realidade que se apresentasem nenhum disfarce. Aceitamos as coisas da carne apenasquando vêm enfocadas pela lente da sensualidade ou do hu-mor e só com muita força de vontade nos obrigamos a pen-sar seriamente em sua grave condição. Porque em pensamen-tos somos, na maior parte das vezes, também puros espíritos.Despidos das medíocres limitações da carne imaginamos umenredo onde podemos nos sentir heróis. Nele lutamos deste-midamente pela liberdade, pela honra e dignidade feridas.Em pensamentos matamos impunemente e jamais morremos.A não ser de “faz de conta”. Somos reis em seus própriosdomínios e do alto de nossa condição apreciamos julgar omundo e avaliar a existência através das mais sublimes con-cepções. Terminada a peça gostaríamos de nos despedir dosatores por meio de ovações e somente a contragosto, perantea fatalidade, somos levados ao desânimo e às lágrimas.

A grandiosidade de uma tragédia suscita na alma o pal-co ideal para a encenação de nossos melhores papéis. Porque aalma, e somente ela, é a verdadeira grande dama do teatro daexistência. Assim é que as questões subjetivas nos absorvemquase que totalmente o interesse e a atenção. Do alto da torregostamos de analisar a paisagem humana mas somente porintermédio das grandes questões do espírito,

colocadas numa

linguagem rica e tom grandiloqüente, à altura do observador.Quanto às questiúnculas — aquelas pertinentes às circunstân-cias da carne —, essas nos aborrecem, sobremaneira.

O saber encontrado tanto nas obras de Shakespearequanto nas de Cervantes evidencia a reflexão de espíritos

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maduros e extremamente sensíveis aos problemas humanos.A distinção que se pode fazer entre as duas é que a primeiradá a impressão de haver sido inspirada mais pelos sofrimen-tos do espírito do que da própria carne. EnquantoShakespeare, de algum solitário recanto da alma medita so-bre a existência e seus profundos significados, Cervantesmergulha fundo dentro de si mesmo para extrair de formadolorosa a filosofia de um dente quebrado a pancadas, a com-preensão aguda que se adquire através de costelas partidas,de mão ferida e inutilizada. Mais do que observações de umespectador, sua sabedoria é resultado da aflição de um espíri-to que toma consciência do corpo ao ansiar pela liberdade,encerrado numa cela de prisão.

O estilo grandíloquo que às vezes toma conta do cava-leiro não deve nos enganar quanto à verdadeira origem dasabedoria na qual o mestre espanhol se inspirou para criarDom Quixote. No prólogo do romance, o autor, ao referir-seà possibilidade de o magro e enlouquecido fidalgo haver nas-cido em um cárcere, nos faz lembrar que realmente parte daobra foi concebida numa cela, numa das várias passagens doautor pela prisão. A Triste Figura do cavaleiro é a maior pro-va disso. Além do mais, certas passagens do romance nãodeixam dúvida, como o diálogo nascido da tentativa do ca-valeiro em consolar o amigo pela dor que estavam sofrendo,após haverem sido os dois moídos de pancadas pelas mãosde malvados arrieiros:

— Apesar de tudo faço-te saber, irmão Pança —replicou Dom Quixote, — que não há lembrança que o tem-po não apague, nem dor que a morte não consuma.

— E que maior desdita pode haver — replicouPança — que aquela que só espera que o tempo a consuma ea morte a acabe?102

Se de Hamlet é possível questionar a veracidade damorte — é bom recordar, o espírito é imortal —, o mesmonão sucede com Dom Quixote. Ao recolher-se em seu leito

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como Alonso Quijano, o Bom, o fidalgo renuncia ao cavalei-ro, isto é, não mais representa o espírito. Diante dos familia-res e amigos ele rejeita todas as aventuras passadas como umerro inspirado nas leituras dos romances de cavalaria. A mortedo cavaleiro parece encerrar, da parte de Cervantes, uma vi-são pessimista da existência. Ou seria realista? MatandoQuixote/Quijano no final de forma verdadeira e não de “fazde conta”, o autor parece não pretender mais nos esconder ocorpo que o cavaleiro vinha tentando esquecer, deixando-oapenas para Sancho.

Em troca de um corpo ideal — próprio a um cavaleiroandante — a materialidade de Dom Quixote fora quase todatransferida para Sancho e por isso todo estrago físico resulta-do das tundas e refregas era sentido fisicamente pelo escudei-ro, enquanto no cavaleiro repercutia com mais intensidade osofrimento espiritual. Agora que chegara o fim, seria neces-sário negar Dom Quixote De La Mancha. E assim aconteceupara que Alonso Quijano pudesse morrer integralmente, emsua mente e corpo, outra vez reunidos. Acabara a longa aven-tura e desse modo era chegado o momento de o fidalgo reto-mar o seu quinhão de matéria, nem que esse fosse tão pouco— na verdade, seco —, como já recordamos outras vezes aoleitor.

Para nós, falantes das línguas neolatinas, o verbo jazernão traz consigo nenhuma ambigüidade e ilusão e por issoDom Quixote “real e verdadeiramente jaz deitado de com-prido, impossibilitado de fazer terceira jornada e saídanova”,103 como nos revela o próprio narrador. Com a mortee não uma promessa de novas aventuras penso ouvir umamensagem. Qual seria ela? “Dom Quixote” — diz-me o ro-mance nas entrelinhas — “não passa da representação de umsonho”. Mas isso todos já sabíamos, respondo à intuição. Elacontinua soprando em meus ouvidos “para viver é precisoestar louco”, ou ainda, “viver é a verdadeira loucura”. Eis amais bela e singular metáfora do romance cervantino.

“Para a frente e para o alto!” — parece ser o grito de guerrado empedernido espírito que hoje nos tem feito arremeter, não

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mais em luta com românticos moinhos de vento mas contra adureza do cimento e do metal. Por razões não tão nobrescomo as de Dom Quixote e de forma intensa, temos negadoa dura realidade de nossas carnes e assim cometido impru-dências muito mais danosas do que o cavaleiro em toda a suahistória. Em nossas mãos a ciência transformou-se em facade dois gumes, pois que tanto restabelece a saúde do corpodoente ou ferido quanto o machuca com os novos e perver-sos gigantes saídos de suas fábricas. Mais uma vez estamosinvocando a sabedoria de Unamuno. Desta vez para concor-darmos com ele sobre os “desaforados gigantes” que hojeestão no lugar dos moinhos. Mas não acredito que seja ape-nas o medo — do Sancho Pança que existe em nós — a razãode venerarmos os portentosos instrumentos modernos. Pare-ce-me que é a força maior da condição sui generis dearremetedor contra moinhos e máquinas o que, na verdade,nos impele ao eterno desafio de impormos perigos e impre-vistos muito superiores à nossa frágil constituição carnal.

À beira do leito de morte de Dom Quixote somos to-dos redimidos de nossas loucuras. Muito mais do que apenashaver poluído e enfeado a natureza com a maquinariatecnológica, necessitamos ser absolvidos por havermos con-tribuído, ainda que indiretamente, para que tantos sucum-bissem na engrenagem. O delírio, a temeridade, a insensateze tudo o mais de que fomos tomados sob o impulso irresistívelde seguir adiante poderá ser compreendido e justificado nofinal da história do cavaleiro. Com a morte dele é que enten-demos o chamado. O caminho de Quixote inunda nossa almade luz. Ao longe, eis que divisamos na longilínea esperançade sua figura mais uma revelação.

Estivéramos enganados. Dom Quixote não renega acarne. Ao contrário, justamente por reconhecê-la em sua ex-trema fragilidade e finitude no outro foi que resolveu sairmundo afora, defendendo os fracos. Não fracos por falta deânimo — que para esses o mundo sempre colocou à disposi-ção um arsenal de exortações, assim como de estratégias —,e sim fracos devido à força física insuficiente para se oporem

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às maldades e perigos reais que circundam a existência. Sereconheceu a frágil condição física do próximo, entretanto,teve de relegar a segundo plano a sua própria, para sair pelomundo combatendo em favor dos indefesos. Agora podemosentender a atitude temerária do cavaleiro frente aos perigose obstáculos enfrentados de forma aparentemente gratuita,em suas aventuras. O que muitas vezes nos parecia uma ne-gação da carne — da parte de alguém fascinado pelo própriomundo de fantasias — não passava de uma desesperada epatética tentativa de superar os limites físicos, em prol da-queles que a seu ver necessitavam de seu braço forte e de suaproteção.

Ainda que a magnitude de uma tal sabedoria seja im-prescindível à natureza sobranceira de nosso espírito, conso-lando-nos em momentos de desânimo, visto daqui de baixo,o mundo parece mais necessitado de cavaleiros andantes doque de príncipes. Quem se dispuser a observar seus dramas emisérias poderá ficar tentado a se inspirar no pensamento deque “se a morte existe e viver é a própria loucura que seja-mos loucos possuidores de um ideal, tal qual Dom Quixote”e mesmo a louvar a cólera do cavaleiro para com as tantasinjustiças, exaltando braços corajosos como os dele, paraquantos seres frágeis e necessitados de proteção. Mas antesde passar por uma autora insensível não somente às tantasmortes que sobre o tablado de Hamlet desabaram mas à pro-fundidade da própria filosofia e psicologia shakespeareanas,gostaria de assinalar que não se trata aqui da preferência porum autor em detrimento do outro. Como psicóloga jamaisdeixaria de me considerar em eterna dívida para com a sabe-doria psicológica intuitiva do bardo inglês, antecessor do paida psicanálise em muitos conhecimentos sobre a alma. Ape-nas deparei, durante a análise da questão mente–corpo naobra cervantina e em comparação com Hamlet, com a suges-tão algo intrigante mas possível de que a pedra fundamentale intelectual do mundo do super-homem poderia ter sidoassentada na obra de Shakespeare — a partir de uma encruzi-lhada literária do século XVI, como já vimos. Logicamente o

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mundo real se move com muito maior desenvoltura, não sedeixando prender nos limites de uma visão psicológica ouliterária, do assunto. Se a questão aqui é tratada de formadidática isso ocorre somente para facilitar a compreensão.

Quando abordada no terreno literário, uma questãotão ampla quanto mente–corpo pode e deve ser tratada coma mesma complexidade de um mito. Assim é que merecemser encaradas as diferenças entre Dom Quixote e Hamletapontadas aqui, não somente com o mesmo cuidado e deli-cadeza com que um neurologista cuidaria do problema mastambém na certeza de que na leitura de ambos as posiçõespodem ser invertidas. Ainda que essa autora continue prefe-rindo a primeira interpretação, comentada logo atrás, asposições poderiam ser trocadas, confirmando o potencial dasgrandes obras literárias para as múltiplas leituras. Essas leitu-ras podem ser em si mesmas contraditórias e não invalidamem nada cada uma delas tomada particularmente, ao contrá-rio, só fazem demonstrar o seu caráter de verdadeira arte.Desse modo, tanto as desvairadas aventuras do cavaleiropoderiam ser encaradas como a mais absoluta negação dacarne da parte de um autor cujos traumas físicos, sobretudo,o impeliram à necessidade do esquecimento, como as hesita-ções do príncipe à mais tocante e lúcida inspiração ética deum escritor que, havendo vivido mais tranqüilamente os seusdias, não tivesse razões para deixar de observar e assinalar atriste condição humana.

Apesar de os trocadilhos com o verbo to lie e o excessode exposição no sangrento final sugerirem uma espécie dedescrédito em relação à realidade da morte, não podemosnos esquecer que a reflexão do “ser ou não ser” trata, naessência, da triste constatação de não haver saída para a con-dição humana difícil e trabalhosa, já que dela não temos co-ragem de nos evadir por temer o mundo sombrio e desco-nhecido da morte. Se à visão multifacetada do artista o mun-do preferiu enxergar aquela que cuida dos aspectos mais sub-jetivos do teatro da existência, ou seja, preferiu recorrer àcélebre dúvida do ser ou não ser apenas para os dramas da

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alma, qualquer um desde que não fosse o maior, o que dizrespeito ao seu aprisionamento em um corpo à mercê damorte, não poderemos jamais culpar o autor da peça. Muitopelo contrário, aplaudi-lo, assim como ao criador de Quixote.Eles são gênios iluminando o caminho singular de seres que,fazendo parte tanto do reino animal quanto do divino, vêmpercorrendo a via-crúcis da carne, com os olhos presos nasmais distantes estrelas da galáxia.

Confesso a dificuldade que senti ao transcrever minhasintuições sobre aquele que tem sido considerado por muitos,e por mérito, o centro do cânone literário no Ocidente. Ain-da mais por estar tratando de uma questão complexa comoessa, um assunto por natureza muito delicado, fácil de escor-regar de nossas mãos todas as vezes que tentamos segurá-lofirmemente através de afirmações. No entanto, não devemosesquecer que a dificuldade advém da própria natureza dainteração que existe entre o corpo e a mente. Tão estreita é arelação entre ambos que não se pode estabelecer o limite ondetermina a carne e se inicia o mental. Foi pensando nessa difi-culdade que me pareceu sensato tentar delimitar. Não a abor-dagem do problema que ainda haverá de ocupar muitos cé-rebros, mais bem equipados para a tarefa do que esse que seapresentou neste livro. Delimitar, sim, as pretensões de quempelejou com o seu tema por anos a fio, que tem esperanças dehaver conseguido nessa aventura ao menos alguns insightsespalhados ao longo do trabalho mas que tem consciência deque expôs nele idéias que talvez devam ser consideradas ape-nas idiossincrasias da autora frente à própria questão. Nãosendo eu uma doutora em nenhum assunto, imprescindívelfoi deixar-me mergulhar e perder-me nele sem nenhuma idéiapreconcebida que interferisse de antemão na colheita dos re-sultados. Caberá ao leitor separar o joio do trigo, se houveralgum.

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CONCLUSÃO

Num artigo extremamente importante tanto para anossa época quanto para a questão mente–corpo, o profes-sor Laymert Garcia dos Santos discorre sobre um livro deensaios de autoria de Hermínio Martins, intitulado Hegel,Texas e outros ensaios de Teoria Social, em que se discute omodelo da evolução tecnológica.104

Discordando da argumentação de que a tecnologia re-presente extensões do corpo humano — como vimos, tesedefendida por McLuhan mas bem mais antiga, de acordocom o próprio Hermínio Martins — o autor parece aceitarque a mesma tenha sido inspirada numa espécie degnosticismo tecnocientífico, tendência anteriormente reco-nhecida por Victor Ferkiss já em 1980, como assinala o arti-go e o livro em questão.

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O gnosticismo, recorda-nos o professor Laymert, ba-seado em Hermínio Martins, é esse horror religioso ao orgâ-nico, ao natural e ao corpo, esse sentimento de que amaterialidade é inimiga do espírito. Assim, conclui ele, re-produzindo o pensamento do autor: “O gnosticismo técnicocientifico é, portanto, o casamento das realizações, projetose aspirações tecnológicos com os sonhos gnósticos de se trans-cender radicalmente a condição humana”. E prossegue: “Nes-se sentido, seu objetivo é promover a desmaterialização...”.

De fato, o modo como a ciência e a técnica vêm evolu-indo parece não tratar de outra coisa, no fundo, do que doapogeu do gnosticismo, se levarmos em consideração esseanseio pela superação da condição humana. Entretanto, nãopodemos esquecer que o corpo rejeitado como fonte de pra-zer e ensinado a se deixar mortificar, pelo gnosticismo, é omesmo com que usufruímos do resultado do avançotecnocientífico. Essa contradição não deixou de ser devida-mente assinalada e comentada por Hermínio Martins, emseu livro. Assim, enquanto desejo de desmaterialização e su-peração da frágil e limitada condição física podemos enten-der e aceitar a explicação, posto que tanto o gnosticismoquanto a evolução tecnológica em seus resultados últimosdão a impressão de pretender a mesma coisa. Mas o mundoda ciência e tecnologia não é apenas aquele dos laboratóriosonde cientistas desenvolvem experiências e projetos avança-dos. Ele é sobretudo o mundo da oferta cotidiana da práticaintensiva dos atributos mentais, à disposição de todos, desdeo aparelho de televisão que qualquer barraco de favela pos-sui, até o mais sofisticado jato acessível apenas aos mais afor-tunados. Muitas vezes essa prática se faz de forma obrigató-ria quando, por exemplo, atravessamos ruas movimentadasou subimos em arranha-céus. A única exigência que se fazpara o usufruto desse admirável mundo do super-homem éestar no pleno gozo da saúde física. Além disso, a prática dosatributos nos aparelhos e máquinas costuma ser mais a ob-tenção de um prazer viciador do que uma mortificação docorpo. Embora o gnosticismo possa desprezar e rejeitar a carne

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e a matéria do mundo sem com isso parecer contraditório,associá-lo ao progresso tecnocientífico já não é possível sim-plesmente porque não se pode fruir dos atributos do serpensante oferecidos pelo mundo do super-homem senão atra-vés dos sentidos,

ou seja, do corpo.

A única maneira de sairmos desse impasse é recordar-mos que de uma certa forma o corpo negado pelo gnosticismoé também rejeitado pela ciência e a avançada tecnologia.Logicamente não se trata do corpo idealizado, imaginadocomo oportuno à fruição de todo prazer inerente ao poten-cial do ser pensante mas do outro, aquele que, como já vi-mos, representa o conjunto de necessidades, limites e fragili-dades por demais frustrantes para o homem. Ou seja, o cor-po real, de carne. Assim, não poderia aceitar a suposição dognosticismo tecnocientífico para a explicação da identifica-ção com o ser pensante sem antes recorrer ao conceito decorpo ideal para solucionar a contradição intrínseca dessahipótese. Isso seria, de minha parte, incorrer numa espéciede sobreposição de racionalizações ou intelectualizações, con-forme a perspectiva com que se enfoquem os conceitos psica-nalíticos.

De acordo com as fontes psicanalíticas a racionaliza-ção e a intelectua1ização são mecanismos semelhantes e mui-to comuns no pensamento geral. A diferença entre ambos osconceitos é irrelevante para a nossa análise, podendo ser uti-lizados sem distinção. Racionalização, nos explica o Vocabu-lário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis,105 seria o “Pro-cesso pelo qual o indivíduo procura apresentar uma explica-ção coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do pontode vista moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, umsentimento etc., de cujos motivos verdadeiros não se aperce-be”; e intelectualização, o “Processo pelo qual o indivíduoprocura dar uma formulação discursiva aos seus conflitos eàs suas emoções, de modo a dominá-los”. Ainda quanto àintelectualização, os autores descrevem um pequeno trechode um texto de Anna Freud a respeito do assunto, em que eladiz que o processo em questão é “um dos poderes adquiridos

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mais generalizados, mais antigos e mais necessários do egohumano”.

Dessa forma, para nós, aceitar a suposição do gnosti-cismo tecnológico representaria uma contradição já que sig-nificaria ignorar a verdadeira razão que subjaz em nossa con-cepção ou ainda uma atitude de defesa frente à revelação doconflito. O certo é que ao invés do reconhecimento individu-al da negação do corpo enquanto fragilidade e finitude, emprol da identificação total com o ser pensante, estaríamosracionalizando ou intelectualizando esse (re)conhecimento,atribuindo-lhe razões externas a nós, ou ainda característicassuperiores que legitimassem nossa rejeição. Além do bem edo mal colocou-se o gnosticismo, como se possuísse um co-nhecimento sublime e libertador e nesse sentido, sim, a ciên-cia verdadeiramente representa o apogeu dessa tendência.De uma certa forma amoral, pela própria natureza de seuconhecimento, seus métodos e objetivos muitas vezesquestionáveis têm provocado mais polêmica e estupefaçãodo que propriamente uma reação ética.

A dificuldade em enxergar a negação da matéria quesubjaz na ciência, tal qual vemos com mais facilidade na filo-sofia, reside no fato de que ela costuma praticar essa rejei-ção, ao invés de simplesmente refleti-la numa racionalizaçãoou intelectualização. Esse é o motivo de normalmente enca-rarmos a ciência e a tecnologia como algo destacado e mes-mo superior a toda expressão tradicionalmente cultivada pelohomem. Mas ambas na verdade representam simplesmente oestágio último de uma tendência crescente de negação. Dessaperspectiva, os avanços tecnológicos poderiam ter sido des-de sempre previsíveis. Aliás, não somente a tecnologia mastambém o capitalismo. Estimulando o consumo e o individu-alismo extremos, essa tendência universal estabelecida nomundo moderno se casa perfeitamente bem com a expansãodo ser pensante e, concomitantemente, com a indiferençapara com as necessidades de sobrevivência dos excluídos deseu sistema. Como muito bem definiu o ensaísta inglês PaulJohnson, em artigo especial para a revista Veja, publicada no

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final do ano 2000, o capitalismo é um acontecimento inevi-tável e natural ao homem. Poderíamos utilizar sua argumen-tação também em relação à ciência e à tecnologia.

De tal forma estamos habituados a praticar os atribu-tos do ser pensante, através do mundo das máquinas, quenão nos damos conta de quanto o desejo oculto pelossuperpoderes vai sendo atendido, ao mesmo tempo que ocorpo é repetidamente negado. Eis o verdadeiro motivo denos calarmos diante da amoralidade que a ciência tem de-monstrado. Podemos algumas vezes até questioná-la, enga-narmos a nós próprios, como se o protesto em nome da eco-logia, por exemplo, se tratasse de uma verdadeira oposição.Mas em defesa do corpo de carne do próximo, corpo essecada vez mais negado e esquecido, não temos muito a ofere-cer, posto que sempre fomos nós mesmos os protótipos parao super-homem. Intimamente satisfeitos com os superpoderesque ela, a ciência, através da tecnologia, coloca-nos todos osdias à disposição; torcendo clara ou secretamente pelo aper-feiçoamento de máquinas e aparelhos, isto é, pelas “exten-sões de nossos sistemas físico e nervoso” (McLuhan), ou doque nesses mecanismos se assemelha aos atributos psíquicos,idéia que a autora deste livro defende e que no final vem adar no mesmo.

Gostaria agora de tecer algumas considerações sobrequestões típicas do pensamento social dos séculos XIX e XX,relacionadas ao domínio ou controle da natureza pela ciên-cia e tecnologia, que foram analisadas no livro de HermínioMartins e citadas no artigo de Laymert. De acordo com oartigo e o livro, podemos detectar duas tradições, a Prometéicae a Fáustica. De uma forma um tanto quanto reduzida pode-ríamos entender a primeira como ligada aos franceses e auma visão romântica do controle da natureza, visto com oobjetivo de favorecer a humanidade, em especial as classesmenos aquinhoadas pela sorte, e a segunda, a Fáustica, deorigem alemã, refutando a primeira, ao ver na técnica nadamais que uma vontade ilimitada pelo poder, a própria ima-gem da vontade como um fim em si mesma.

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Penso ser desnecessário explicar por que esta autoraprefere a tradição Fáustica para a compreensão dos objetivosúltimos da ciência e da técnica na conquista e domínio danatureza. Por mais alentador que seja o discurso Prometéicoa um mundo tão carente de humanização e mais dura nospareça a tradição Fáustica, esta última parece muito bem intuira verdadeira vocação da técnica, como a vontade de poderque “nenhum estado de coisas definitivo pode valer comosatisfação final...”.106 Mas se a tradição Prometéica é france-sa e a Fáustica alemã, o mundo do super-homem é todo omundo civilizado, uniformizado pela tecnologia e peloconsumismo desenfreado, pelo sistema capitalista, a tendên-cia à democracia e sobretudo quanto à globalização e o em-prego cada vez maior da informática e dos meios de comuni-cação. O mundo realmente ficou pequeno em suas preten-sões, sendo possível afirmar que quem está dentro do univer-so tecnocientífico não quer sair e quem está fora anseia porentrar. Se é universal a atração pelo mundo dominado pelatécnica, necessário se faz traduzir essa “vontade de poder”,essa “vontade de vontade” 107 pelo que nesse mesmo mundoé expresso como a sua essência. Mas já vimos por que a tele-visão costuma fascinar o telespectador ao lhe oferecer, alémdo descanso para a interminável atividade do pensar, os atri-butos do potencial da mente tais como a onisciência, a ubi-qüidade e a onividência. De como o computador pode vici-ar, quando, através da internet, traz o internauta para dentroda alegre e recreativa comunidade dos puros espíritos. Dasensação de poderes superiores — inclusive da incrível sen-sação de voar —, que muitos mecanismos e máquinas da eratecnológica podem proporcionar a seu condutor, tais comoum carro em alta velocidade, um vôo em asa delta, uma cor-rida de motocicleta ou mesmo um mergulho em esportes ra-dicais ou em brinquedos nos modernos parques de diversão.Ah, agora sim, agora ficou mais fácil entender por que essemundo vicia, leva seus usuários a fazerem vista grossa aos as-pectos nada éticos de seus objetivos últimos, de suas priorida-des. Enfim, por que todos nós, alemães, franceses, brasileiros

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ou qualquer outro povo ficamos todos irmanados nessa “von-tade de poder”, nessa “vontade de vontade” que “nenhumestado de coisas definitivo pode valer corno satisfação final”.O mundo ficou assim impulsivo como um adolescente por-que a insaciabilidade é o estado natural de um ser pensanteque se expressa diretamente através da prática cotidiana deseus atributos, e muito pouco ou quase nada através dasimbolização. Um mundo sobretudo movente, sem acontrapartida de haver se tornado mais comovente e acimade tudo verborréico, na expressão do atributo divino da onis-ciência, ao despejar cotidianamente em nossos pobres ouvi-dos, através dos microfones da aldeia global, o universo daloucura pensante em infinita expansão.

Nesses 11 anos e meio em que estive intimamente liga-da ao tema, foi possível observar as modificações que o mun-do sofreu ao longo da última década. Pude conferir que aidentificação com o ser pensante só aumentou, conforme oprevisto, o que pode muito bem ser constatado pela análiseminuciosa dos acontecimentos e notícias pelo mundo afora.Através da leitura de reportagens sobre os avanços da ciênciae especialmente o que esses avanços possibilitam em termosde previsão, podemos confirmar a crescente e aparentemen-te infindável escalada da identificação, ao ponto de nos cau-sar arrepio certa antevisão do que poderemos vivenciar den-tro de cinqüenta anos. No exemplar especial da RevistaSuperInteressante,107 por exemplo, somos apresentados, jun-tamente com o que de bom nos espera — tais como remédiosgeneticamente personalizados para cada usuário; carros quenos conduzem sem necessitar serem conduzidos e uma infini-dade de utilidades e comodidades de todos os gêneros —, acoisas monstruosas como a manipulação genética com o ob-jetivo de obter animais esdrúxulos (mistura de dois já exis-tentes). Assustam e ao mesmo tempo provocam uma grandecuriosidade as previsões feitas para a realidade crescente dosgames, que deverão nos proporcionar sensações de medo,angústia, dor, estresse e felicidade, ou seja, tomarão o lugarda própria realidade. Mas o que soa verdadeiramente como

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a trombeta do juízo final para a espécie humana, da maneiraque a temos vivenciado até hoje, vem intitulado, na citadarevista, como “A vez do Homo Ciberneticus”. Embora sim-ples de ser resumida — a previsão da fusão do homem com amáquina —, as antevisões do futurólogo Ian Pearson, entre-vistado nessa revista, deixam-nos boquiabertos pela naturali-dade com que parecem ser encaradas. Inquirido peloentrevistador a respeito da passagem do Homo sapiens parao que Hans Moravec denomina Robô Sapiens, assim se ex-pressou o cientista, entre outras coisas:

Em pouco tempo os robôs farão parte de nossavida cotidiana. Mas é possível que os achemos muito fracose que, para melhorá-los, eles sejam conectados a animais ouà consciência humana. Nessa época, já teremos controle so-bre o código genético humano e poderemos nos configurarpara nos unir mais fácil e diretamente às máquinas. Quandoisso acontecer, o Homo sapiens dará origem ao Homociberneticus. Nossa memória e pensamentos estarão 99% nociberespaço. Logo chegaremos à conclusão de que o corponão é tão importante e poderemos transferir também o nos-so lado biológico para o computador sem perder a sensaçãode ser humano. Essa será a maior conquista de nossa espé-cie. Poderemos fazer inúmeras cópias de nós mesmos, testarpersonalidades diferentes e ter vários pensamentos ao mes-mo tempo. Por estarmos ligados em rede, a humanidade in-teira terá acesso a uma mesma consciência. Ao final, podere-mos transmitir todo o nosso cérebro para as máquinas e nuncamais morrer. Infelizmente, levaremos, no mínimo, 50 ou 60anos para atingir isso. É possível que as crianças de hojevivam eletronicamente para sempre e talvez a minha seja aultima geração a morrer. Quem sabe? 108

Seria erro concluir que por trás de todo o empenho daciência e tecnologia se encontra o desejo maior pela imorta-lidade? Penso que não e talvez aí resida a explicação para aobsessão em prolongar a vida a qualquer custo, que a medici-na demonstra hoje. Obsessão essa que faz da eutanásia umassunto tão visado e polêmico, enquanto das UTIs — que são

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locais geralmente temidos pela falta de humanidade que oambiente isolado e seus tubos e máquinas deixam entrever —um tema aparentemente fora de questão. Quando me referi,linhas atrás, ao fato de o progresso tecnocientífico ter sidodesde sempre algo previsível, quis com isso dizer que a essên-cia dele repousa no anseio concomitante de negar a carne evivenciar apenas o puro espírito, isto é, o ser pensante. Oque pode ser confirmado textualmente nas palavras do cien-tista, transcritas acima, poderia também ser amplamenteexemplificado nos vários produtos do progresso da ciênciaao longo do tempo, desde o anseio pela velocidade e pelovôo e conseqüente invenção dos veículos terrestres e aéreos,até a comunidade espiritual que representa o verdadeiromotivo para o sucesso crescente da internet.

Acho muito difícil, impossível até, escolher dentre osinúmeros produtos do progresso somente aqueles que nosparecem inofensivos e mesmo benfazejos a nós, assim comoà própria humanidade. O kit já vem pronto e seu resultadoúltimo não parece nem um pouco nobre ou altruísta, como évista a vida além da morte pelas várias religiões do mundo.Ao contrário do que essas costumam programar para avivência de seus espíritos desencarnados, o pacote do pro-gresso tecnocientífico visa ao beneficiado apenas o usufrutode um prazer viciador que tem como conseqüência final oindividualismo exacerbado. Além disso, o preço do mundodo super-homem é muito alto. Pensávamos que ele fosse noscustar somente o pulmão da natureza e a natureza da carne,através de sua negação, mas vejo que estávamos enganada.Por mais paradoxal que pareça, o preço da imortalidade poressa eterna juventude é o mesmo cobrado a Fausto, ou seja, anossa própria alma. Sem outra opção, não a Mefistófeles masàs máquinas temos entregado o nosso espírito, desde o fimdo século XIX. Acuados por todos os lados pelo credor, eisque a cada novo chip de computador, a cada possibilidade detransfusão de um pouco de nossa sensibilidade para um robô,vamos nos fazendo mais super-homens e menos homens. Seisso nos desse mais dignidade do que nos fazer cada vez mais

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semelhantes a uma medíocre máquina consumidora, neuró-tica e compulsiva, com o apetite atiçado constantemente pelaexuberância da vitrine, não teríamos nada a reclamar. Masparece que não percebemos que aos poucos vamos trocandode lugar com as máquinas e pretender transferir para elasjustamente aquelas qualidades que nos fazem humanos, en-quanto sentimos a falta delas em nós próprios assim comono mundo que nos cerca, parece-me o cúmulo da insensatez.Por mais que se constate e se louve o que existe de bom e deútil no desenvolvimento da ciência e da técnica, é difícil nãochegar à conclusão de que não existe imortalidade que com-pense tal preço. Talvez apenas crianças e adolescentes — enão me refiro necessariamente à idade cronológica — não secansem nunca de um mundo buliçoso e estridente como esse,a caminho do super-homem. Para os outros, os sobreviven-tes do barulho, da velocidade e dos prazeres imediatos res-tam apenas a perplexidade, a nostalgia, a resignação e talvezaté um pouco de repugnância pela imoralidade da transação.

A fim de contrabalançar as mazelas desse mundo, umlivro inspirado na figura de Dom Quixote não poderia serdado por terminado sem antes evocar o incorrigível espíritoidealista e otimista do cavaleiro. É pensando nele, no Quixotedefensor dos fracos e por isso mesmo das crianças, que deixoregistrada aqui a alegria de também haver constatado nestadécada uma mudança significativa e altamente positiva emrelação aos problemas da infância. Refiro-me à Marcha Mun-dial das Mulheres que, ao invés das tradicionais e repisadasreivindicações feministas, agora se voltam às questões quejamais deveriam deixar de lhes ocupar o espírito. Esse umassunto recente e de destaque do jornal Folha de S. Paulo.109

O engajamento de todas elas no combate à violência, à fomee pelos direitos das crianças merece de todos nós — homense mulheres — não somente o respeito e a admiração mastambém alguma forma de colaboração efetiva.

Desejo especialmente congratular-me com todos aque-les que, como a socióloga e psicanalista apontada no mesmoartigo do citado jornal, Juliet Mitchell, conclamam a todos

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para não pensar nas mulheres nem nos homens mas sim nascrianças. Pensemos e defendamos as crianças não porque elassejam o futuro da pátria — como era costume justificar talpreocupação — mas simplesmente porque num mundo a ca-minho do super-homem seus frágeis corpos e incipientespsiquismos se encontram em flagrante desvantagem.

Diante de tão desolador quadro atual em que o “seique tudo sei” parece reinar absoluto, em que se pratica inten-samente esse Sócrates às avessas, nem quem lhes escreve po-deria se colocar acima de qualquer suspeita. Assim, caro lei-tor, que vamos chegando ao término da aventura de escreverum livro como esse, inspirado que foi na figura de um cava-leiro idealista mas também enlouquecido, só espero não ha-ver cometido o desatino de oferecer motivo para constatarque, afinal, à semelhança dele, findo o périplo de tão com-plexa questão, esta escritora tenha somente dado voltas emais voltas nos domínios de sua própria insensatez. Comono prefácio não pedi que me perdoasse os erros que seriamcometidos livro afora, não pretendo, ao seu final, que as pro-váveis sandices assentadas na obra tenham como atenuante opropósito maior de angariar a sua simpatia, comiseração esolidariedade frente aos problemas da infância. A importân-cia do chamamento em nada poderia contribuir para a quali-dade do trabalho de quem porventura se dispusesse a utilizá-lo visando à conquista do leitor. Isso apenas corroborariacom mais um bom exemplo aquela velha sabedoria à qual obondoso Sancho sempre recorreu e que diz assim: de boasintenções o inferno sempre esteve cheio.

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 O Engenhoso Fidalgo De La Mancha. Miguel de Cervantes. Belo Hori-zonte: Itatiaia, vol. I e II. Grandes Obras da Cultura Universal, vol.5, 1984.

2 História do Pensamento. Ed. Nova Cultural, 1987, vol. 24, p.287.3 Idem, vol. I a IV.4 Os Pensadores. Nova Cultural, 1987. Platão, p.167.5 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed. Ed. Nova Fron-

teira, 1986.6 Os Pensadores, cit., Montaigne; vol. II, p.33, 1988.7 Os Pensadores, cit., Descartes; vol. II, p.26.8 Geneviève R. Lewis. Descartes – uma biografia. Record, 1996, p.98.9 Os Pensadores, cit., Descartes; vol. I, p.63.10 Idem.11 António R. Damásio. O erro de Descartes. Companhia das Letras,

1996 (2a reimpr.).12 Idem, p.282.13 Idem, p.283.14 Idem, p.281.15 Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo: sé-

culos XV-XVIII. Martins Fontes, 1995, vol. I: As estruturas do coti-diano, p.351-352.

16 Idem, vol. 3: O tempo do mundo, p.163.17 Descartes – uma biografia, cit., p.49.18 Os Pensadores, cit., Descartes, vol. II, 1988, p.23.19 Idem, vol. II, 1988, p.26.20 Idem, vol. II, 1988, p.20.21 Enciclopédia Mirador Internacional, 1987, vol. 15, p.8104.22 Descartes – uma biografia, cit.; p.75.23 Idem.24 Idem, p.73.

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25 Os Pensadores, cit.; Descartes, vol. I, p.46.26 Descartes – uma biografia, cit., p.39.27 Entrevista à revista Veja, 1988.28 Os Pensadores, cit., vol. 1, p.42, 1987.29 Descartes – uma biografia, cit., p.53.30 Idem, p.160.31 Idem, p.51.32 Idem, p.43.33 Idem, p.86.34 Os Pensadores, cit. Montaigne, vol. 1, 1987, p.89.35 Civilização Material, Economia e Capitalismo, cit., Os jogos das tro-

cas, p.52.36 Enciclopédia Mirador Internacional, 1987, vol. 3.37 Civilização Material, Economia e Capitalismo, cit., As estruturas do

cotidiano, p.358.38 Enciclopédia Mirador Internacional, 1987, vol. 3, p.773.39 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.40 Idem.41 Marshall McLuhan. Os meios de comunicação (como extensões do

homem). Cultrix, 1988.42 Idem, p.98.43 Idem, p.97.44 Idem, p.108-109.45 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.46 Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete. 5ª

ed. bras. Delta, 1987.47 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.48 Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete.49 Yazigi Dictionary (for high schools). Inglês/Português para 1o e 2o graus;

São Paulo: Inst. Idiomas Yázigi s/c, London: Oxford University Press,1973.

50 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.51 Idem.52 Adam Smith. Riqueza das Nações. Ediouro, 1986, Clássicos de Bolso.53 Os Pensadores, cit., vol. II, 1988, p.26.54 Will Durant. A História da Civilização, vol. VII. Começa a Idade da

Razão.55 Marshall McLuhan. Os meios de comunicação, cit., p.111.56 André Bourguignon. História Natural do Homem, vol. 1. O Homem

Imprevisto. Jorge Zahar Ed., 1989. Ciência e Cultura.57 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.58 O erro de Descartes, cit., p.281.59 O Engenhoso Fidalgo de La Mancha, cit., vol. II, p.115.60 História Natural do Homem, cit., p.164.

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61 Revista SuperInteressante, dez. 1999.62 Veja. Entrevista: Norman Ernest Borlang.63 Jean Lacoste. A Filosofia da Arte. Jorge Zahar Ed., 1986, p.54.64 O Livro da Arte, Martins Fontes, 1996.65 Tom Wolfe. A Palavra Pintada. L&PM, 2ª ed., 1987.66 Os Pensadores, cit., Sócrates.67 Vol.1, p.168.68 William Shakespeare, Obra Completa, vol. III. Nova Aguilar, 1995,

p.187.69 Idem, vol. III, p.169.70 Idem, vol. III, p.198.71 Idem, vol. III, p.198.72 Idem, vol. III, p.282.73 André Bazin. Charles Chaplin. Marigo Ed., 1989, p.47.74 Idem, p.47.75 Idem, p.47.76 Idem, p.49.77 Idem, p.51.78 Idem, p.52.79 Idem, p.16.80 Charles Chaplin. Minha Vida. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1989, p.35.81 Idem.82 Idem, p.256.83 Junito de Souza Brandão. Mitologia Grega, vol. II, 2a ed. Petrópolis:

Vozes, 1988.84 Idem, p.180 (Metamorfoses, Ovídio).85 Idem, p.180 (Metamorfoses, Ovídio).86 Idem, p.181 (Metamorfoses, Ovídio).87 Idem, p.181 (Metamorfoses, Ovídio).88 História do Pensamento, fascículo 4; p.46.89 Os Pensadores, Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.293

(223. id.; III; 10; 65).90 Idem, (219; id. III; 10; 43).91 Idem, p.301 (id. IV; 24; 65).92 Idem, p.286 (id. fragmento de “Sobre o Desejo e a Dor”; 2).93 Will Durant. A História da Civilização — Nossa Herança Clássica,

vol. II. Ed. Record, p.286.94 História do Pensamento, fascículo 4, p.46.95 Idem, fascículo 4, p.47.96 Idem, p.59.97 Idem.98 O Engenhoso Fidalgo De La Mancha, cit., vol. II, cap. LXXIV, p.529.99 Idem, vol. I, cap. XXXIII, p.247.100 Idem, vol. I, cap. IV, p.48.

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101 William Shakespeare, Obra Completa, cit., vol. I, Otelo, O Mouro deVeneza; Ato V, Cena II, p.785.

102 O Engenhoso Fidalgo De La Mancha, cit., vol. I; cap. XV, p.129.103 Idem, vol. II, cap. LXXIV, p.531.104 Folha de S. Paulo, domingo, 19.10.1997, Mais!, p.5-13. Livros do

Mundo. Artigo. “Domínio Ilimitado da Natureza” (Ensaios de Hegel,Texas fazem um mapeamento da evolução tecnológica. Laymert Garciados Santos; especial para a Folha).

105 J. Laplanche e J. B. Pontalis. Vocabulário da Psicanálise. MartinsFontes, 6ª ed., 1967.

106 Hermínio Martins. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social;Ed. Século 21.

107 SuperInteressante (Especial); nov./2000, Ed. Abril.108 Idem, p.11.109 Folha de S. Paulo, Mais!, domingo, 15.10.2000, p.15.

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brasileira, natural de Goiânia, formação acadêmica em Psicologia pelaUniversidade Católica de Goiás em 1984, teve alguns poemas publi-cados em jornais locais, sendo esta obra seu primeiro lançamento.

A CAMINHO DO SUPER-HOMEM

QUIXOTE E CARLITOS, DOIS SÍMBOLOS PARA

A COMPREENSÃO DO HOMEM ATUAL.

Editoração: RoteiroPreparação de original e revisão: Armando Olivetti Ferreira

Diagramação e capa: Sergio Gzeschnik