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A CÂMERA DE PANDORA

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A camera de pandora

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  • A CMERA DEPANDORA

  • Editorial Gustavo Gili, SLRossell 87-89, 08029 Barcelona, Espanha. Tel. (+34) 93 322 81 61Valle de Bravo 21, 53050 Naucalpan, Mxico. Tel. 55 60 60 11Praceta Notcias da Amadora 4-B, 2700-606 Amadora, Portugal. Tel. (+351) 21 491 09 36

  • GG

    A CMERA DEPANDORAA FOTOGRAFI@DEPOIS DAFOTOGRAFIA

    JOAN FONTCubERTA

  • A Gustau Gili i Torra (1935 - 2008)

    in memoriam

  • Esta obra foi publicada com uma

    subveno da Direo Geral do Livro,

    Arquivos e bibliotecas do Ministrio

    de Cultura da Espanha.

    TTuLO ORIGINAL: La cmara de Pandora. Publicado por Editorial

    Gustavo Gili, SL em 2010.

    TRADuO: Maria Alzira brum

    EDIO: Flavio Coddou

    PREPARAO DE TEXTO: Andreia Moroni

    REVISO: Patrcia Sotello

    DESIGN GRFICO DO LIVRO E DA CAPA: Pau Aguilar

    ILuSTRAO DA CAPA: Autorretrato, Joan Fontcuberta

    Qualquer forma de reproduo, distribuio, comunicao

    pblica ou transformao desta obra s pode ser realizada

    com a autorizao expressa de seus titulares, salvo exceo

    prevista pela lei. Caso seja necessrio reproduzir algum

    trecho desta obra, seja por meio de fotocpia, digitalizao

    ou transcrio, entrar em contato com a Editorial.

    A Editorial Gustavo Gili no se pronuncia, expressa ou

    implicitamente, a respeito da acuidade das informaes

    contidas neste livro e no assume qualquer responsabilidade

    legal em caso de erros ou omisses.

    da traduo: Maria Alzira brum

    do texto: Joan Fontcuberta, 2010, 2011

    Editorial Gustavo Gili, SL, barcelona, 2012

    Printed in Spain Impresso na Espanha

    ISbN: 978-85-65985-06-2

    A ficha catalogrfica desta obra encontra-se disponvel

    na editora

  • NDICE

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    INTRODuO

    FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

    O OLHO DE DEuS

    A IMAGEM INVISVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    O GNIO DA CMERA MARAVILHOSA

    O CEGO PERFEITO

    Eu CONHECI AS SPICE GIRLS

    EuGNICOS SEM FRONTEIRAS

    IDENTIDADES FuGITIVAS

    FICES DOCuMENTAIS

    ODE A uM REI SEM PERNAS

    O MISTRIO DO MAMILO DESAPARECIDO

    A DISTNCIA JuSTA

    PALIMPSESTOS CSMICOS

    ARQuEOLOGIAS DO FuTuRO

    RuDOS DE ARQuIVO

    POR QuE CHAMAMOS DE AMOR QuANDO QuEREMOS DIZER SEXO?

    REFERNCIAS bIbLIOGRFICAS

  • Nicphore Ni

    pce,

    Vis

    ta d

    a j

    an

    ela

    de

    Gra

    s, Hel

    iogr

    afia, 1826.

  • Este livro segue o rastro de O beijo de Judas. Fotografia e verdade, uma seleo de ensaios breves publicada em 19961,2 que propunha medir o pulso da fotografia no contexto cultural e ideolgico do fim de milnio. Embora aquelas anotaes rastreassem questes de representao e verossimilhana, partiam em geral de vivncias pessoais e careciam de pretenses tericas; aspiravam apenas a contribuir para uma potica da fotografia, embora entendida como forma de mediao intelectual e sensvel com o mundo. Inicialmente partia da pre-missa de que estvamos imersos e estamos cada vez mais em uma cultura visual dominada pela televiso, pelo cinema e pela internet. As imagens que todos estes meios proporcionam tm como base, como caldo primordial ou clula primitiva, a fotografia. Poderamos concluir, portanto, que a fotogra-fia constitui sua metafsica. Este papel transforma os produtos da cmera em materiais que transcendem o meramente documental como discurso de verificao para assumir, em compensao, um valor simblico cuja anlise pertinente empreender ao examinar os regimes de verdade que cada socie-dade se autodesigna.

    INTRODuO

    A verdade deste mundo; se produz nele graas a mltiplas coeres. E detm nele efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua poltica geral da verdade: ou seja, os tipos de discurso que acolhe e faz funcionar como verdadeiros ou falsos, o modo como uns e outros so sancionados; as tcnicas e os procedimentos que se valorizam para obter a verdade; o estatuto dos que tm a tarefa de dizer o que funciona como verdadeiro.

    MIChEl FouCAulT, Vrit et pouvoir, 1977

    1. Foi inicialmente publicado em francs (Le baiser de Judas. Photographie et verit, Arles, Actes Sud). A verso espanhola foi publicada pelo Editorial Gustavo Gili alguns meses depois, em 1997.

    2. A verso portuguesa, tambm do Editorial Gustavo Gili, de 2010. (N. da T.)

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    Sentimos o mundo contemporneo como uma sobreposio de simulacros. Em O beijo de Judas eu insistia em que as aparncias substituram a realidade e que a fotografia, uma tecnologia historicamente a servio da verdade, continuava exer-cendo uma funo de mecanismo ortopdico da conscincia moderna: a cmera no mente, toda fotografia uma evidncia. A fotografia tornava-se assim uma tica da viso. Naquela poca eu argumentava contra a ingenuidade com que tais princpios axiomticos estavam fundamentados, restries histricas para simples crenas e convenes culturais que sugeriam que a sociedade no se seculariza: simples-mente transforma (em f e crenas) sua necessidade de verdades. No final, tentava desvelar a natureza construtiva e, portanto, intencional da fotografia, por mais automtica que parecesse sua gnese e em oposio queles que a consideravam um simples reflexo mecnico da realidade. Eu dizia ento que talvez a fotografia no minta, mas os fotgrafos, definitivamente, sim. E o extraordinrio que mesmo assim, mesmo sabendo dessa inevitvel interveno humana, as manifestaes deles continuavam a ser acolhidas com uma ampla necessidade de acreditar, atra-vs de uma credulidade generalizada, sem dvida devido fatalidade de sua prpria genealogia tecnocientfica.

    Como na magnfica encenao da Paixo, o realismo fotogrfico escondia sua traio em um beijo. uma traio como a de Judas, anunciada e consentida, e, no entanto, terrivelmente eficaz. Alguns discursos crticos, tmidos porm crescentes, tentaram nos prevenir da fatalidade que subjaz no corao do dispositivo fotogr-fico, e em alguns casos tiveram certa repercusso. Mas foi somente com o advento das tecnologias digitais que no apenas os especialistas, mas tambm os leigos, definitivamente o grande pblico, descobriram a inevitvel manipulao que opera no processo de toda imagem fotogrfica. Talvez estejamos assistindo morte da fotografia. Seguindo o smile bblico, poderamos falar mais propriamente de sua crucificao. Isso porque tambm nesse caso se trata de um requisito, doloroso mas imprescindvel, para uma ressurreio. No mistrio da Redeno, o beijo de Judas constitua um gesto plenamente justificado que abria a porta da salvao. No sabemos se a nova fotografia, a ps-fotografia, salva ou condena a velha foto-grafia, mas com certeza ela nos situa em uma posio conveniente para fazer uma radiografia do mundo em que estamos.

    Esta nova remessa de textos retoma essa ideia quase uma dcada e meia depois com a mesma incumbncia e modstia. S que, em certa medida, a nvoa sobre a paisagem pela qual ento discorramos parece se dissipar: como se a histria e

  • 11 > A CMERA DE PANDORA > INTRODuO

    a tecnologia tivessem decidido colocar as cartas na mesa, renunciando a escon-der ases na manga. Com respeito aos agentes dominantes que monopolizam a produo de discursos, a poltica aparece como a principal fbrica de realidade. Nos anos de turbulncia internacional, presididos pelo inefvel George W. Bush, aprendemos que diretrizes para invadir pases e provocar milhes de vtimas no eram estabelecidas tanto por razes geopolticas quanto pela perseguio de uma misso mais ambiciosa: criar uma falsa realidade. Nesse sentido, um assessor do presidente Bush declarou sem se ruborizar: o estudo judicioso da realidade discernvel no mais a forma como o mundo realmente funciona [] Agora somos um imprio e quando agimos criamos nossa prpria realidade. E, enquanto outros estudam conscienciosamente essa realidade, ns voltamos a agir, criando outras novas realidades que voltaro a ser estudadas, e assim que as coisas caminham. Ns somos os atores da histria [...] e vocs, todos os outros, se veem reduzidos a simples espectadores daquilo que ns fazemos. Como rplica, Frank Rich, colunista do jornal The New York Times e autor do livro em que esto reunidas essas declaraes,3 obstinava-se justamente no estudo consciencioso da realidade, no de como estas fices reais foram cria-das, mas de como ficaram a descoberto quando a realidade, seja no Iraque ou no nosso pas, ficou evidente demais para ser ignorada. uma aspirao meri-tria que gostaramos de compartilhar aqui e premente, porque, alm da arrogncia demirgica das palavras do assessor presidencial, verdade que a histria recente nos aflige com demonstraes, tanto do microcosmo do pri-vado quanto do macrocosmo do pblico, que evidenciam a aptido da imagem que no esconde ser extenso da poltica e da economia para basicamente construir outro plano da realidade. um plano para o qual nossa experincia est voltada na maioria das vezes e que s viria confirmar, em suas declaraes e atos, o capitalismo de fico germinalmente categorizado por Vicente Verd. Depois dos capitalismos de produo e de consumo, ocupados em satisfazer o bem material e psquico abastecendo a realidade de artigos e servios, a oferta do capitalismo de fico seria articular e servir a prpria realidade: produzir uma nova realidade como mximo interesse.4

    Por outro lado, no que se refere mudana de paradigma tecnolgico, a ltima dcada do sculo representou um cenrio de confrontao e incerteza em rela-o ao engaste entre velha e nova fotografia, entre fotografia argntica e foto-grafia digital. Deveramos falar de transio ou de ruptura? No estvamos sendo

    3. Rich, Frank. The Greatest Story Ever Sold. The Decline and Fall of Truth from 9/11 to Katrina [A histria mais bem vendida de todos os tempos. Declnio e fim da verdade, do 11 de setem-bro ao Katrina]. Nova York, The Penguin Press, 2006. Resenha de Ekaizer, Ernesto. Es Irak, estpido. El Pas, Madri, 6 de novembro de 2006.

    4. Verd, Vicente. El estilo del mundo. La vida en el capitalismo de ficcin. Barcelona, Anagrama, 2003.

  • 12 > A CMERA DE PANDORA > INTRODuO

    testemunhas de uma transio cuja prpria envergadura descomunal impedia seu reconhecimento? Que provavelmente se inscrevia ao mesmo tempo em uma irrefrevel transformao social e cultural da qual a tecnologia constitua seu espelho lgico? A perspectiva dos anos ajudou a esclarecer a situao. Por um lado, admitimos que a fotografia digital assumiu as antigas aplicaes da fotografia tradicional, a qual ficou descartada para resolver funes essenciais indispensveis e que s perdura hoje em prticas minoritrias e artesanais. Na perspectiva de uma sociologia da comunicao, cabe entender isso, portanto, em termos de continuidade, de adaptao ou de darwinismo tecnolgico, como proponho adiante. os valores de registro, verdade, memria, arquivo, identidade, fragmentao etc. que tinham apoiado ideologicamente a fotografia no sculo xix foram transferidos para a fotografia digital, cujo horizonte no sculo xxi se orienta, por sua vez, para o virtual.

    Mas a imagem no se reduz sua visibilidade, a visibilidade no o critrio determinante nem o nico; os processos que a produzem e os pensamentos que a sustentam participam, e nesse sentido sim podemos constatar uma mudana de natureza. E lgico que seja assim: cada sociedade necessita de uma imagem sua semelhana. A fotografia argntica contribui para a imagem da sociedade industrial e funciona com os mesmos protocolos que o resto da produo desen-volvida em seu cerne. A materialidade da fotografia argntica corresponde ao universo da qumica, ao desenvolvimento do ao e da ferrovia, maquinaria e expanso colonial incentivada pela economia capitalista. A fotografia digital, por sua vez, consequncia de uma economia que privilegia a informao como mer-cadoria, os capitais opacos e as transaes informticas invisveis. Tem como material a linguagem, os cdigos e os algoritmos; compartilha a substncia do texto ou do som, e pode existir em suas prprias redes de difuso. Responde a um mundo acelerado, supremacia da velocidade vertiginosa e s exigncias do imediatismo e da globalidade. Insere-se definitivamente em uma segunda rea-lidade ou realidade de fico que, em equivalncia com as cibervidas paralelas como Second life, antitrgica, expurgada de sentido e de destino, transfor-mada em comprovante e cultura da distrao.5

    Assistimos a um processo irrefrevel de desmaterializao. A superfcie em que a fotografia argntica se inscrevia era o papel ou material equivalente, e por isso ocupava um lugar, fosse um lbum, uma gaveta ou uma moldura. Em compensa-o, a superfcie de inscrio da fotografia digital a tela: a impresso da imagem

    5. Verd dixit.

  • 13 > A CMERA DE PANDORA > INTRODuO

    sobre um suporte fsico j no imprescindvel para que a imagem exista; a foto digital, portanto, uma imagem sem lugar e sem origem, desterritorializada, no tem lugar porque est em toda parte. Muda tambm o contrato visual. A fora da foto argntica radicava em que no podamos retoc-la sem recorrer a uma inter-veno externa, intrusa ao seu funcionamento tcnico (desenhista, aergrafo, tinta, tesouras etc., ou seja, materiais e ferramentas emprestadas de outro meio). A foto digital, em compensao, sempre est retocada, ou processada, pois depende de um programa de tratamento de imagem para ser visualizada: o computador relegou a cmera em importncia, a lente se torna um acidente na captao da imagem. A fotografia convencional vinha definida pela noo de rastro luminoso produzido pelas aparncias visveis da realidade. Sistemas de sntese digital fotorrealistas substituram a noo de rastro por um registro sem rastro que se perde em uma espiral de mutaes.

    Assim, nos debatemos entre a melancolia pela perda dos valores ntimos da fotografia argntica e a inquietao pelas deslumbrantes possibilidades do novo meio digital. Essa diviso nos faz reviver com o corao partido o mito de Pandora,6 a mulher que Zeus mandou criar como castigo a Prometeu por ter transgredido sua vontade de entregar o fogo aos homens. Diversos deuses contriburam para seu alumbramento, e hermes colocou em seu peito mentiras, palavras sedutoras e um temperamento volvel. At ento a humanidade tinha vivido uma vida totalmente harmoniosa no mundo, mas Pandora abriu a nfora que continha todos os males (a expresso caixa de Pandora no lugar de jarra ou nfora uma deformao renascentista) e liberou todas as desgraas humanas. Pandora fechou a nfora justo antes que a esperana sasse. No entanto, uma verso oposta afirmava o con-trrio: a vasilha que Pandora levava consigo como presente de Zeus continha na verdade os bens que, no momento da abertura, aproveitaram para escapar todos para o olimpo, exceto a esperana.

    Como cmera de Pandora, a tecnologia digital proporciona calamidade para uns e libertao para outros. Atribui-se a ela o descrdito irrecupervel da veracidade, mas o certo que simultaneamente ela instaura um novo grau de verdade: o horror de Abu Ghraib nunca teria aflorado opinio pblica com a fotografia analgica; ao contrrio, a tecnologia digital torna impossvel evitar a disseminao da informa-o. os seguidores de Cartier-Bresson podem lamentar o fim do instante decisivo como valor definitrio porque hoje a fotografia se reduz a um corte, a um frame de uma sequncia de vdeo. A fotografia digital, no obstante, nos transporta para um

    6. Precursora helnica da Eva bblica, Pandora considerada a primeira mulher, e o mito lhe impe a culpa pelos males da humanidade (da mesma forma que Eva culpada de apanhar o fruto proibido em outro relato cosmognico igualmente caracterstico da sociedade patriarcal). No sculo xvi, Erasmo de Rotterdam confundiu o mito de Pandora com o de Psique, convertendo o pithos original (nfora) em uma pyxis (caixa). A partir desse erro se imps a popular expres-so caixa de Pandora. Se a Erasmo desculpam esse deslize, espero que me seja concedida a licena de imaginar Pandora com uma cmera.

  • 14 > A CMERA DE PANDORA > INTRODuO

    contexto temporal que privilegia a continuidade e, em consequncia, a dimenso narrativa no necessariamente empobrecendo a expresso fotogrfica. As foto-grafias analgicas tendem a significar fenmenos, as digitais, conceitos.

    Definitivamente, neste livro tento em parte destrinchar perdas e ganhos, mas a partir da constatao de que no possvel voltar atrs. Pandora consumou a dramaturgia do seu gesto. Talvez tenha aberto o pote das essncias ou a caixa dos troves, mas em qualquer das hipteses a esperana no escapou e permanece. Esse vislumbre de otimismo ilumina os textos que seguem. Textos que evocam o que resta da fotografia, o que resta da autenticidade da fotografia, o que resta, enfim, de alguns valores que fizeram com que a fotografia contribusse para a nossa felici-dade. No toa que aqui se defende que necessrio repensar a teoria da fotogra-fia, to obcecada com discusses sobre filosofia da arte e ontologia, soprando-lhe um ar de transversalidade, ou seja, colocando os ps no cho.7 S assim conseguire-mos destacar os modos como a fotografia satisfaz muitas de nossas necessidades e expectativas. Como consequncia, este no um livro autorreferencial e estanque, mas um livro que sente prazer em redirecionar o leitor curioso para exemplos rela-cionados do cinema e da literatura e, obviamente, para a explorao de numerosas manifestaes fotogrficas. , enfim, um livro que, regendo-se por essa esperana retida na cmera de Pandora, procura colocar ordem e transparncia nos sentimen-tos, na memria e na vida. Que a fotografia que resta, mais que a arte da luz, seja a arte da lucidez.

    7. Consultar as atas do simpsio SCAN 09: Vicente, Pedro (org.). Fotos instantneas de la Teora de la Fotografa. Tarragona, Arola Editores, 2009.

  • Googlegrama: Nipce, 2005.

    Primeira fotografia da histria, realizada por Nicphore Nipce em

    1826. A fotografia foi reconstruda mediante um programa freeware

    de fotomosaico conectado on-line ao buscador Google. O resultado

    final se compe de 10 mil imagens disponveis na internet,

    localizadas aplicando-se como critrio de busca as palavras foto

    e photo.

  • Todos ns temos relaes particulares com a fotografia: eu lhe devo a vida. No porque ela tenha me salvado, mas porque me deu a vida. Existo graas fotografia. ou por culpa dela.

    No pensem que se trata de uma frase figurada. Embora na verdade tambm pudesse ser, j que h mais de um tero de sculo a fotografia me apaixona e cons-titui a atividade que preenche minha vida de sentido. Tampouco invoca um fundo filosfico apesar das ressonncias que espontaneamente suscita no nosso esp-rito. Descartes props o cogito, ergo sum, e seu contemporneo Gassendi respon-deu ambulo, ergo sum. Descartes existia graas ao pensamento, Gassendi graas ao movimento e ao. hoje existimos graas s imagens: imago, ergo sum. A adaptao desse corolrio nossa condio de homo pictor deriva em fotografo, logo existo, porque no cabe dvida de que a cmera se transformou em um arte-fato fundamental que nos incita a nos aventurarmos no mundo e a percorr-lo tanto visual quanto intelectualmente: percebamos ou no, a fotografia tambm uma forma de filosofia. Talvez por esse motivo devamos afinar o alcance dessa proposta recortando pelo menos duas verses: no modo perifrstico exortativo, fotografo, logo fao existir (porque a cmera de fato certifica a existncia), e na forma pas-siva, sou fotografado, logo existo, com o que o aforismo passar a soar familiar para quem est s voltas com as reflexes tericas que comeam com Benjamin ( a presena da cmera que torna historivel um acontecimento).

    FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

    Na fotografia que seus olhos tornam doceh seu rosto de perfil, sua boca, seus cabelos,mas quando vibrvamos de amorsob o fluxo da noite e o clamor da cidadeseu rosto uma terra sempre desconhecidae essa fotografia o esquecimento, outra coisa.

    JuAN GElMAN, Foto, Velorio del solo, 1961

  • Mas adiemos por enquanto esses argumentos. Gostaria de comear, como dizia ao princpio, com uma coisa menos metafrica e mais prxima. Refiro-me a que na origem da minha vida h uma fotografia. Se em uma bendita noite de junho de 1954 um intrpido espermatozoide do meu pai alcanou um vulo acolhedor da minha me dando lugar ao meu humilde ser, na concatenao das razes desse encontro fundamental para a minha concepo est um prosaico retrato fotogrfico em preto e branco tamanho carteira. Trata-se de uma bela e ntima histria familiar; permitam-me relat-la.

    J no final da Guerra Civil, meu pai se salvou de ser chamado s filas e incor-porado Quinta del Bibern.1 Mas, recm-terminado o combate e com o novo regime instalado no poder, no conseguiu evitar um longo e penoso servio militar que lhe coube cumprir em Melilla. Concretamente, no Regimento de Caadores de Villaviciosa n 14 de Cavalaria. No muito longe, todo o norte da frica tinha se transformado em um sangrento palco de operaes entre os Aliados e as foras do Eixo, e a guarnio espanhola j no precisava se dedicar tanto a proteger as pos-sesses espanholas de possveis aes insurgentes das cabildas quanto de sim-plesmente garantir uma razovel tranquilidade a Franco, que temia que algum dos dois lados em luta sentisse a tentao de ocupar o Protetorado. Mas nunca chegou a acontecer nada alm da passagem de formaes de avies de combate ou de desinteressadas misses atrs de algum piloto abatido e extraviado.

    o tempo transcorria lenta e tediosamente. A turbulncia da guerra mundial alongava consideravelmente a substituio dos recrutas, apesar de o texto da lei de recrutamento de 1940 limitar a dois anos o servio nas fileiras. Alm disso, as folgas costumavam escassear. o batalho do meu pai passou trs anos fechado em um quartel cercado pelo subrbio de Melilla, pelo mar e pelo deserto, sem outro entretenimento alm de subir no monte Gurug e ler as aventuras do Zorro sombra das figueiras, ir beber vinho no centro antigo ou assistir sesso dupla de cinema com No-Do2 nos fins de semana. No estranha que a saudade e o tdio fomentassem outro tipo de atividade: entre os jovens surgiu a ideia de trocar ende-reos de garotas em idade de compromisso. Era preciso aproveitar o capital de contatos femininos que todos deviam manter nos seus respectivos lugares de pro-cedncia. o mais dotado em literatura epistolar escreveu uma carta exagerando o sentimento comum de saudade e solido com o fim de fomentar compaixo e carinho no corao daquelas moas em flor que tinham a sorte de continuar nos seus lares com o calor de suas famlias. No final solicitava uma inocente troca de

    18 > A CMERA DE PANDORA > FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

    1. Quinta del Bibern (Quinta da Mamadeira) foi o nome que as levas republicanas de 1938 e 1939, formadas em grande parte por jovens com menos de 19 anos, receberam em vrias cida-des da Catalunha durante a Guerra Civil Espanhola. (N. da T.)

    2. No-Do, acrnimo de Noticieros y Documentales, eram as notcias projetadas obrigatoriamen-te nos cinemas espanhis antes dos filmes, entre 1942 e 1981. (N. da R.)

  • correspondncia. Durante muito tempo meu pai foi capaz de recitar de cor vrias passagens desse texto brega e melodramtico cuja posterior evocao provocava hilaridade nos nossos encontros familiares:

    Senhorita: no quero entrar em detalhes sobre a forma como obtive seu ende-reo por ser um segredo na relao que trato de conseguir com voc. o que lhe direi da minha pessoa? Saiba apenas que sou um soldado do exrcito espanhol para quem, separado dos seus e dos amigos mais alm do calmo mar, os dias no passam com a velocidade desejada...

    os endereos das moas foram distribudos entre os rapazes, que se apressaram em copiar vrias vezes o manuscrito original. As cartas partiram deixando um halo de iluso.

    Minha me, que se encontrava entre as mltiplas destinatrias, achou que a carta escrita, alm do mais, em uma lngua que para ambos, emissor e receptora, era alheia e imposta3 tinha um estilo acanhado e ingnuo. Ela respondeu, porm exigiu que se renunciasse quele tom amaneirado. As cartas que durante algu-mas semanas iam e voltavam constataram uma sintonia recproca. Em uma delas, meu pai, que depois se tornaria um exmio publicitrio, teve a feliz ideia de incluir uma foto sua. Minha me gostou muito do atraente personagem que irrompia com tamanha desinibio em sua vida e mais de sessenta anos depois ainda explica com brilho nos olhos como o simples descobrimento do rosto dele sups amor primeira vista. Alm da curiosidade, alguma coisa daquele retrato a seduziu. As palavras na correspondncia que veio depois terminaram de apaixon-la, e vrios anos mais tarde se casaram. obviamente uma relao amorosa que ultrapassou meio sculo no se constri to facilmente, mas esse episdio sen-tenciou o incio. No me surpreende que hoje em dia haja casais que estabele-am relaes sentimentais atravs da internet, como tampouco devemos nos esquecer de que desde o Renascimento muitos retratos foram pintados como embaixadas de apresentao para propiciar unies entre membros de diferen-tes dinastias ou linhagens da nobreza.

    Embora meu pai no se lembre com preciso, seu retrato foi certamente feito por um fotgrafo ambulante de Melilla, um daqueles fotgrafos chamados carinhosa-mente de minuteros porque se comprometiam a entregar a foto em um minuto. De fato essa especialidade de fotografia de rua desapareceu diante do embate com os avanos tcnicos, mas h algumas dcadas ainda estava presente nas regies tursticas movimentadas. Seu modus operandi resulta agora bem curioso.

    19 > A CMERA DE PANDORA > FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

    3. o idioma materno de ambos era o catalo, cujo uso foi coibido durante o franquismo, que impulsava o espanhol como lngua oficial. (N. da R.)

  • Dispunham de uma cmera de grande formato que servia ao mesmo tempo como quarto escuro. Com a cmera apoiada em um trip, enquadravam o modelo; a ima-gem era projetada invertida em um vidro esmerilhado que permitia controlar um instvel foco e frequentemente, na falta de obturador, a exposio era feita colo-cando e tirando a tampa da lente durante alguns segundos. utilizava-se papel e no filme para o negativo, que era revelado e fixado em cubetas situadas no interior da prpria cmera. Em seguida, o negativo, ainda mido, era colocado em frente obje-tiva para ser reproduzido. Esse segundo disparo voltava a inverter os tons, com o que, repetindo-se o processo qumico, obtinha-se um positivo que restitua os tons do original. o papel era enxaguado em uma bacia com gua para eliminar apenas os resduos cidos, e o cliente levava uma foto ainda molhada e cuja fixao precria no augurava longa vida.

    Nosso retrato fundacional, no obstante, ainda perdura, com a ptina ama-relada que comprova um envelhecimento primoroso. A tinta da dedicatria que meu pai estampou posteriormente, revelando os nomes dos protagonis-tas, sobressai nos sais de prata j em retirada. Embora um retrato desse tipo requeresse do modelo que permanecesse bom tempo imvel para os prepara-tivos e o disparo, o rosto aparece relaxado e natural: testa larga, sobrancelhas povoadas (marca de famlia acolhida com desigual satisfao segundo o gnero dos descendentes), olhos risonhos, sorriso entre espontneo e postio, como que aguentando estoicamente e sem irritao o transe de uma longa pose. Provavelmente, o minutero conhecia de sobra a luz e o enquadramento ade-quados; com uma suavidade envolvente, resguardado sombra de um dia que se intui calorosamente ensolarado, um muro liso que atua como fundo, um leve descentramento... A tez bronzeada contrasta com a brancura da camisa, preser-vando as qualidades da gama tonal. o olhar se desvia para um lado, fugindo com acanhamento do eixo da cmera, um eixo que paradigma de todos os olhares que no futuro se dirigiriam contra ele prprio, contra sua imagem depositada no pequeno pedao de papel.

    o que faz com que um rosto assim fixado desperte esse tipo de arrebatamento? Quais foram as caractersticas determinantes sem as quais o efeito no se produ-ziria? o que teria acontecido se a fotografia tivesse resultado tecnicamente defei-tuosa? ou, ao contrrio, se tivesse sido objeto de um daqueles retoques lambidos que gals e atrizes glamorosos tinham colocado na moda? Em que se apoiam as leis da fotogenia?

    20 > A CMERA DE PANDORA > FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

  • Foram os primeiros cineastas franceses de vanguarda que cunharam o termo fotogenia. louis Delluc e Jean Epstein sugeriam no incio dos anos 1920 que a alma (a verdade interior que tambm obcecava Dziga Vertov com seu Kinopravda) podia ser captada e isolada por uma imagem potente. Para ambos a cmera osten-tava um poder de transformao quase mgico, uma capacidade de condensar uma intensidade efmera que, uma vez revelada, estava destinada a brilhar por alguns segundos antes de desvanecer. Esse resplendor concentrado e fugaz podia acon-tecer tambm na fotografia: A lente capaz de invocar a fotogenia e destil-la nos planos focais. A fotogenia no uma propriedade exclusiva da realidade, no um simples efeito do dispositivo ptico, nem resulta de um truque do operador; brota, em compensao, de uma aliana necessariamente a trs partes entre o modelo, a cmera e o fotgrafo. A fotogenia somente se manifesta como o brilho de um poder latente sublimador que no pode ser controlado. Pode ser convocado, convidado, implorado, podem-se preparar algumas circunstncias propcias, mas, como nas rezas ou nas invocaes dos espritas, que a fotogenia atenda ao chamado depende somente dos intuitos da providncia. logicamente muitos crticos posteriores con-denaram a debilidade excessivamente subjetiva e o misticismo quase inaceitvel dessa formulao. Por exemplo, pode-se falar do pitoresco como categoria esttica, argumentam eles, mas o fotognico escapa a um exame cientfico rigoroso tanto quanto a alma resiste a qualquer objetivao.

    E, no entanto, insistimos em que o rosto humano o espelho da alma, o lugar ao mesmo tempo mais ntimo e mais externo do sujeito, a tela em que se funde sua interioridade psicolgica com as coeres a que a vida pblica o submete. o rosto , ao mesmo tempo, a sede da revelao e da simulao, da indiscrio e da ocul-tao, da espontaneidade e do engano, ou seja, de tudo aquilo que permite a confi-gurao da identidade. Diante de uma cmera sempre somos outros: a objetiva nos transforma em arquitetos e administradores de nossa prpria aparncia. Roland Barthes anuncia essa inevitvel mutao: Quando me sinto observado pela obje-tiva, tudo se transforma: eu passo a posar, fabrico instantaneamente outro corpo, me transformo a priori em imagem.4 Consequentemente, o retrato que resulta apenas uma mscara possvel, uma mscara que fica grudada no personagem como um escudo levantado na confrontao dos olhares e que expressa estados alm da expresso. Ecoa atravs dessa mscara escreve Eugenio Tras no cat-logo de La ltima mirada. Autorretratos de las postrimeras5 o silncio hiertico do sagrado que invade o rosto e os olhos at fix-los em uma espcie de repouso

    4. Barthes, Roland. A cmera clara. Notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. [Verso original: La chambre claire. Note sur la photographie. Paris, Cahiers du Cinma/Gallimard/Seuil, 1980]. Aviso aos navegantes: Barthes vai nos acompanhar constantemente ao longo destes textos e sua tutela nos permite recuperar uma histria, referida por Bas Vroege, diretor da revista Perspektief em Rotterdam, entre 1980 e 1993. o conselho de redao dessa publicao se reunia periodicamente para decidir contedos, e seus membros costumavam se envolver em discusses nas quais o nome de Barthes saa luz com profuso. Tanto era assim

    21 > A CMERA DE PANDORA > FOTOGRAFO, LOGO EXISTO

  • rgido e majestoso. No h o menor indcio de movimento nem de dinamismo ou de fora potencial que possa ser desatada nesses rostos transformados, em sua travessia do limite, em autntico material sagrado.

    o recruta Fontcuberta, sem dvida, era completamente alheio aos vislumbres de sacralizao bem como ao resto destas reflexes, mas, guiado pela neces-sidade, sabia recorrer a esse instinto humano de inteligncia acelerada que a intuio: concedeu mais providncia do que ao minutero annimo o governo da sesso fotogrfica. Por trs do rosto risonho, percebe-se a anuncia de uma ordem oculta; da sublimao sobrevm uma espcie de afabilidade, uma suspen-so no tempo, um dar-se sem condies ao olhar do outro. Nas feies do seu rosto se entrev um eco afetivo resplandecente e aurtico que desencadeia seu poder de seduo. Material sagrado? Quem sabe. Catalisada talvez por um sopro divino ou por uma epifania inexplicvel, a alquimia daqueles sais de prata ia gerar aqui mais consequncias do que o j em si prodigioso milagre da imagem.

    o que cativou minha me no retrato? Insistindo no Barthes de A cmera clara, o que desencadeia a sequncia de reflexes que o leva a explicar o conceito de punctum e de studium outro retrato, o de sua me em uma estufa. Mas Barthes renuncia a reproduzir o retrato no livro e se limita a descrev-lo, porque entende que o punctum informado por vivncias pessoais que no so transferveis. o punctum, aquilo que nos dado como um ato de graa, s interage com a natureza privada da experincia de um observador particular. A imagem da estufa substitui simboli-camente uma pessoa amada desaparecida, e, portanto, fracassaria na tentativa de ilustrar para o resto do mundo a ideia de um punctum que condensa, justamente s para Barthes, um profundo sentimento de perda.

    Para o nosso matre penser a fotografia encarna uma morte simblica. o clique do obturador guilhotina o tempo, congela o gesto, fossiliza o corpo Toda fotografia constitui uma promessa de eternidade, ao custo de nos revelar como futuros cadveres: a imagem permanece quando o corpo desvanece. E, se para Barthes a fotografia mata, para Kracauer o que ela realmente pretende desterrar a lembrana da morte. Em um ensaio muito anterior,6 Kracauer j havia se fixado no retrato de sua av na juventude, quando era uma diva do cinema, e o comparara com a imagem que guardava dela. A fotografia, para Kracauer, no ajudava a lembrar o essencial, e sim, ao contrrio, distorcia a memria. o ser humano no quem aparece na sua fotografia, mas a soma daquilo que se pode extrair dela. A fotografia o destri enquanto o retrata [] os traos dos homens

    que decidiram que a meno a Barthes seria penalizada com uma multa: toda vez que um mem-bro do grupo o citasse, seria obrigado a pagar uma cerveja aos outros. Imagino que o sistema introduziu certa conteno. No meu caso, espero que me livrem dessa obrigao, caso contrrio, vou ter que investir quase todos os direitos autorais deste livro s em pagar cervejas para os leitores.

    5. MACBA, Barcelona, 1997.

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  • s se conservam na sua histria. Se fotografamos para nos apegar a instan-tes da vida de tal forma que esqueamos que existe a morte. A fotografia teria portanto como misso eclipsar a prpria ideia da morte.

    longe destas sombrias necrolatrias, para mim, ao contrrio, a fotografia se vincula vida e no morte, e por isso no tenho nenhum problema em publicar o retrato do meu pai. E no s porque o cerquem circunstncias que so efusi-vas, no dramticas, mas porque tenho certeza de que ali onde a fotografia como manifestao de vida no chega, resta a palavra, que outra forma eficaz de nos construir. E resta tambm, sobretudo, a capacidade de empatia do especta-dor. Definitivamente, os humanos tendem a compartilhar experincias bastante comuns: alegria e dor, felicidade e sofrimento, amor e desamor...

    Mas no acho preocupante se, mesmo com os antecedentes proporcionados, os leitores no forem capazes de figurar a condio de punctum no retrato de meu pai. Para esse captulo especfico da histria a nica coisa que importa que esse punctum foi cravado diretamente no corao da minha me. Como se Cupido e Barthes tivessem se aliado. Desse punctum so herdeiros (por enquanto e que se saiba) trs geraes de Fontcuberta. E no que lhe diz respeito, caro lei-tor, tambm graas a esse punctum que voc hoje pode ter este livro nas mos e ler estas linhas.

    E constru o seu rosto.Com adivinhaes do amor, construa seu rostonos longnquos quintais da infncia.Pedreiro envergonhado,eu me escondi do mundo para esculpir sua imagem,para lhe dar a voz,para pr doura em sua saliva.

    JuAN GElMAN, Fbricas de amor, Velorio del solo, 1961

    (esse verso est assinado pelo poeta, mas poderia ter sido

    assinado pelo minutero de Melilla)

    6. Kracauer, Siegfried. la fotografa. In La fotografa y otros ensayos. El ornamento de la masa 1. Barcelona, Editorial Gedisa, 2008. [Verso original: Die Photographie, Frankfurter Zeitung, 28 de outubro de 1927. Reproduzido em Das Ornament der Masse. Frankfurt, Suhrkamp, 1963].

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  • No novo milnio a cmera passou a enveredar a pulso vivificadora do punctum por outros caminhos. o procedimento dos retratos ao minuto (como o que plasmou o rosto do meu pai) se inseria na vontade de reduzir o lapso necessrio para chegar a visualizar a imagem, e nesse sentido pode ser considerado um sistema precursor das cabines de fotografia instantnea, da Polaroid e outras efmeras modalidades de fotografia instantnea.

    Depois que a Polaroid venceu a Kodak nos tribunais, o outrora grande colosso amarelo da indstria fotogrfica, em uma ao multimilionria sobre a patente da fotografia instantnea, todos auguravam um feliz futuro para a mtica empresa fun-dada por Edwin land. Mas em meados dos anos 1990 comeou a ser implantada a fotografia digital, que no s cumpria a mesma promessa da Polaroid imedia-tismo, como tambm proporcionava vrias vantagens adicionais.

    o sucesso inicial da Polaroid tinha se fundamentado em um fator tcnico bvio: a reduo da espera entre o momento do disparo e o momento de sua plasma-o visvel. Com isso desapareciam o quarto escuro e a obscura magia que ali se gestava. o milagre da imagem se tornava mais acessvel. No metafsico se desva-necia tambm a noo de imagem latente, com sua aura potico-filosfica, e se rompia aquela espera de incerteza o tempo entre o disparo e as fotos reveladas que encobria tanto esperanas quanto temores (e qual me dedicarei com maior extenso no prximo captulo).

    Embora estas elucubraes no preocupassem os usurios, que se guiavam por estritos critrios prticos e de comodidade, era indubitvel que a Polaroid repre-sentava um avano em certas parcelas documentais da fotografia, suprindo, por

    O OLHO DE DEuS

    Chegar um dia em que a objetiva Zeiss superar o olho de Zeus, que tudo v, mas de muito longe.

    MRIuS GIFREDA, El ojo de Zeiss y el ojo de Zeus,

    Mirador, 1930

  • 26 > A CMERA DE PANDORA > O OLHO DE DEuS

    exemplo, o que poderia ser uma agenda ou uma caderneta de anotaes, um auxlio para a memria.

    Se nos atermos ao mundo do cinema como indicador sociolgico, muitos ttulos se ocupam de nos lembrar disso. Pensemos, por exemplo, em Memento (2000), a desconcertante experincia de narrao cinematogrfica de Christopher Nolan que conta a histria de um personagem que, apesar de se ver afligido por uma alterao da memria (amnsia antergrada), deseja vingar o estupro e assassi-nato de sua esposa. leonard Shelby incapaz de armazenar novas lembranas; mas possui memria sensorial e se lembra de como realizar as aes cotidianas. A fim de se lembrar dos acontecimentos de sua vida enquanto sofre do trans-torno, estabelece, graas a fotos instantneas, um protocolo com o qual obtm um registro consultvel das pessoas com quem se relaciona, as pessoas que so de confiana e as que no, o hotel onde se hospeda, qual a matrcula do seu carro e outros elementos bsicos para o transcurso da sua vida. o frentico ritmo dos acontecimentos com que o filme se desenvolve teria tornado invivel o uso da fotografia convencional: a instantaneidade da Polaroid que permite sustentar a narrao de modo convincente.

    Em sntese, o xito popular da Polaroid radicava nessa prontido de poder comprovar os resultados, que por sua vez acrescentava maior pedigree docu-mental. Para muitas aplicaes, a Polaroid parecia estar dotada de uma qua-lidade testemunhal superior, j que garantia mais proximidade verdade ao eliminar as probabilidades de trapaas que viessem a amparar os manejos do laboratrio. Mas a Polaroid tambm se implantou no mercado por outros fatores colaterais. Dois deles eram evidentes. Por um lado, a apario de uma cmera Polaroid introduzia uma dimenso de brincadeira e coloria o ato fotogrfico de aspectos ldicos. Por outro, o sistema instantneo garantia a privacidade, e, portanto, se adequava a situaes de intimidade. Quem alguma vez no temeu que os balconistas dos estabelecimentos fotogrficos ou os tcnicos do labo-ratrio bisbilhotassem indiscretamente os materiais que levamos para revelar? De fato, dessa desconfiana nasceu o argumento do thriller psicolgico Retratos de uma obsesso (traduo muito livre do ttulo original One Hour Photo, 2002) que o diretor Mark Romanek levou tela com Robin Williams como protagonista. o fato de que os roteiristas de hollywood se dediquem a esse assunto indica at que ponto a privacidade nas imagens, inclusive em uma esfera estritamente domstica, uma questo de domnio pblico preocupante.

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    o mbito do pessoal e do familiar sups um territrio privilegiado para a Polaroid, que tambm se transformou em uma valiosa ferramenta nas mos dos artistas pop e conceituais. Mas as cmeras digitais acabaram sentenciando o que deveria ter sido a idade de ouro da Polaroid, que hoje pode ser considerada uma espcie extinta. Quais so as razes desse selvagem darwinismo tecnolgico no ecossistema da comunicao visual? No se tratava s da instantaneidade, mas tambm de outros fatores, tais como custos mais reduzidos, formatos menores, menos peso, imagens fceis de transmitir e compartilhar. Evidentemente estes fatores tcnicos tiveram grande importncia na mudana de hbitos dos consu-midores, mas no explicam por si s as transformaes substanciais que se deram na nossa relao com a fotografia.

    observamos que no ontolgico a fotografia se dissolve na imagem, e esse fen-meno de dissoluo leva ao descrdito crescente de sua proverbial representao naturalista. A fotografia est perdendo o aval de suas razes empricas, e sua credi-bilidade passa a depender da confiana que os fotgrafos adquirem. A autoridade da tecnologia relegada venerabilidade dos prprios fotgrafos, coisa que no deve nos afligir nem alarmar de nenhuma maneira, porque o que acontece em qualquer outra faceta da expresso humana. Portanto, mais do que um ajuste de contas da semitica e da tica com a fotografia, podemos ver isso como a correo daquilo que foi at agora uma descomunal anomalia histrica no curso da comuni-cao com imagens.

    Por outro lado, a fotografia esteve tautologicamente ligada memria, e na atua- lidade esse vnculo comea a ser rompido. No mais que memorvel Blade Runner (1982), de Ridley Scott, os replicantes carregam fotos de famlia falsas nos bolsos para recriar a iluso de lembranas que ancoram seu prprio passado. Ns sabe-mos que esse passado inexistente tanto quanto que sua vida artificial, mas nos circuitos cerebrais daqueles robs quase humanos as fotografias constituem uma prova de convico (basicamente, um estratagema para se autoconvencer). A memria lhes d identidade, e a identidade os torna reais. Durante quase dois scu-los a fotografia nutriu arquivos e colees, acumulou informao da qual algum dia provavelmente algum se servir, mas o outro grande destino das fotos, os lbuns familiares e de viagens, remetem ao episdio dos replicantes no seu af por cons-truir um passado sobre o qual se assentar e edificar uma identidade.

    Esse constitui justamente um dos mbitos em que se percebe como a fotografia se separa da memria. E talvez de novo se possa afirmar que um ato de justia

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    com a prpria origem da fotografia. Isso porque a memria, muito mais do que a esttica, sups o fio condutor do relato dominante da histria da fotografia tal como a conhecemos. Franois Arago glosou memria e olhar no batismo pblico do daguerretipo em 1839, sem dvida clarividente com respeito ao pletrico futuro utilitrio do novo meio, mas passou por alto a importncia de outros padrinhos, como a curiosidade e o espetculo. Nesse sentido caberia rever a evoluo da foto-grafia e inscrev-la tambm tanto em uma histria da curiosidade quanto em uma histria do espetculo. No toa que Daguerre procedia do mundo do espetculo, e depois de idear o diorama concebeu o daguerretipo como uma atrao de feira: algo assombroso que o pblico pagaria para ver. os caminhos da histria fizeram com que o cinema se tornasse, de fato, um espetculo de massas, e que a fotogra-fia, em compensao, assediada pela urgncia e por uma enormidade de exigncias documentais, se limitasse a ser uma ocupao de massas.

    outro aspecto radicalmente distinto da prtica fotogrfica atual sua extraordi-nria massificao. h alguns anos fazer uma foto ainda era um ato solene reservado a ocasies privilegiadas; hoje disparar a cmera um gesto to banal quanto coar a orelha. A fotografia se tornou onipresente, h cmeras por toda parte captando tudo. o que h meio sculo teria parecido uma sofisticada cmera de espio hoje um padro comum que carregamos no bolso. Seja o beijo furtivo de dois apaixonados ou o choque de um avio contra um arranha-cu, nada escapa voracidade e indiscrio desse olhar vigilante que iguala o olho onividente de Deus. Em 1932 o escritor Mrius Gifreda vaticinava na revista Mirador que as objetivas Zeiss (ento a marca ptica de referncia) chegariam a superar o olho de Zeus, o pai dos deuses.1 Gifreda no podia nem imaginar as repercusses do progresso e da tecnologia digital que usufrumos hoje, mas intuiu que cmeras e imagens alcanariam uma implantao onipresente.

    No pice dessa onipresena a imagem estabelece novas regras com o real. hoje tirar uma foto j no implica tanto um registro de um acontecimento quanto uma parte substancial do acontecimento em si. Acontecimento e registro fotogrfico se fundem. Aplicando a interpretao indexial da fotografia achvamos que alguma coisa do referente se incrustava na fotografia; pois agora devemos pensar o con-trrio: algo da fotografia que se incrusta no referente. No existem mais fatos desprovidos de imagem, e a documentao e transmisso do documento grfico j no so fases indissociadas do mesmo acontecimento.

    Nessas circunstncias de absoluta saturao icnica, por que continuamos foto-grafando? Por que levar as imagens at essa proliferao infinita? Quais so hoje

    1. No romance A caixa. Histrias da cmara escura, lisboa, A Casa das letras, 2009, Gnter Grass traa uma fantasiosa biografia familiar centrada em uma tia fotgrafa e retoma essa ideia da cmera como artefato divino:E a nossa Mariechen? Em que acreditava? Na sua Box, claro. A Box era milagre suficiente para ela. Inclusive a considerava sagrada. verdade! Certa vez me disse: A minha Box como o Deus,

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    os usos predominantes da fotografia? Para responder, vamos a dados sociolgicos disponveis. Tanto pesquisas de mercado efetuadas por empresas do setor quanto estudos acadmicos demonstram que antigamente o grosso da produo de fotos instantneas compendiava cenas familiares ou de viagens: era uma forma de proteger vivncias felizes, osis no deserto de uma existncia tediosa. hoje os que mais fazem fotos j no so os adultos, mas os jovens e os adolescentes. E as fotos que eles fazem no so concebidas como documentos, mas como diverso, como exploses vitais de autoafirmao; j no celebram a famlia nem as frias, mas as salas de fes-tas e os espaos de entretenimento. Constituem a melhor plasmao das imagens--kleenex: usar e descartar. Produzimos tanto quanto consumimos: somos tanto homo photographicus quanto simples viciados em fotos, quanto mais fotos melhor, nada pode saciar nossa sede de imagens, o soma da ps-modernidade.

    Em um curso recente na universidade, uma estudante me entregou uma resenha em que fundia vivncia e anlise: Quando Sontag escreveu o livro [Sobre fotografia] no podia prever o boom das cmeras digitais e dos celulares com cmeras inte-gradas. hoje em dia todo mundo leva consigo uma cmera fotogrfica e, alm disso,

    Nosso Senhor: v tudo o que , o que foi e o que ser. Ningum pode engan-lo. Simplesmente, penetra tudo. [Verso original: Die Box. Dunkelkammergeschichte. Gttingen, limitierte Erstausgabe, 2008.]

    blog fotogrfico.

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    as novas tecnologias permitem fazer tantas fotos quanto queiramos, v-las imedia-tamente e, se no nos agradarem, apag-las e fazer outras. Essa evoluo tecno-lgica e as consequncias nos hbitos da sociedade contempornea favoreceram a noo de fotografia como captao de um instante. A necessidade de capturar tudo acentuada. Tudo fotografvel e, alm do mais, tudo mostrvel. Criaram-se photologs, blogspots, Flickr, Facebook, Twitter, Myspace uma variedade de sites na rede em que as pessoas colocam suas fotografias para que todos possam ver e comentar. Ns nos acostumamos a fazer fotografias de acontecimentos a que assistimos, viagens, encontros com os amigos. Quanto mais fotos voc tem, mais vivo e mais divertido . Estamos, assim, diante da necessidade de confirmar a rea-lidade e dilatar a experincia.

    Definitivamente, as fotos j no servem tanto para armazenar lembranas, nem so feitas para ser guardadas. Servem como exclamaes de vitalidade, como extenses de certas vivncias, que se transmitem, compartilham e desaparecem,

    Annimo, Autorretrato diante do espelho, 2009.

  • 31 > A CMERA DE PANDORA > O OLHO DE DEuS

    mental e/ou fisicamente. As fotos que os adolescentes trocam de modo compulsivo percorrem um amplo espectro de cdigos de relao, de simples cumprimentos reclamando a ateno de um interlocutor (como quando dizemos a algum ol, estou aqui, penso em voc, pense tambm em mim) a expresses mais sofisti-cadas que traduzem afeto, simpatia, cordialidade, encanto ou seduo.

    Transmitir e compartilhar fotos funciona ento como um novo sistema de comu-nicao social, como um ritual de comportamento que est igualmente sujeito a normas particulares de etiqueta e cortesia. Entre estas normas, a primeira esta-belece que o fluxo de imagens um indicador da energia vital, o que nos devolve ao argumento ontolgico inicial do fotografo, logo existo. o olhar de Deus, ou seja, o olhar de Zeus, ou seja, o olhar de Zeiss, ou seja, o olhar da cmera, torna-se hoje um sopro de vida. Podemos agora nos regozijar em emendar o plano de um Barthes que no pde conhecer a supremacia dos pixels: na cultura analgica a fotografia mata, mas na digital a fotografia ambivalente: mata tanto quanto d vida, nos extingue tanto quanto nos ressuscita.

    Bem-vindos, pois, ao mundo real, bem-vindos ao mundo das imagens!

  • A fotografia arrasta ainda uma srie de elementos que so consequncia de uma sensao melanclica experimentada principalmente por quem a praticou na etapa analgica como o meu caso. Por exemplo, o desaparecimento da imagem latente: a fotografia fotoqumica tradicional impunha um tempo, um intervalo angustiante entre o clique e a experincia consumada da imagem e, durante esse adiamento, intervinha a projeo da iluso e do desejo. Isso desaparece com a velocidade. Frente a essa dissoluo emerge um sentimento de perda que vai alm da questo potica e simblica, um aspecto que corresponde tambm possibilidade de reter a lembrana.

    A IMAGEM INVISVEL(NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    Et comme les nuitsQui mritent nos silencesCette page aurait dRester blanche

    Elle tait belleElle tait elleElle tait blanche

    JIM CORCORAN, loge de la page blanche,1 2005

    o lATENTE. Na medida em que a iluso envolve uma antecipao, uma expectativa, em que tem um carter futurista, pertence-lhe intrinsecamente uma referncia ao que est ausente; pelo menos, ainda ausente, porque no chegou um dia, por exemplo ou porque no cheguei eu ao objeto da iluso. Nesse sentido, sempre h na iluso um elemento de latncia, que uma incitao a que esse latente se patenteie e manifeste.

    JulIN MARAS, Breve tratado de la ilusin, 1984

    1. Elogio da pgina branca (cano): E como as noites/ que merecem nossos silncios/ essa pgina deveria ter/ permanecido branca.// Ela era bela./ Ela era ela./ Ela era branca.

  • 34 > A CMERA DE PANDORA > A IMAGEM INVISVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    A primeira vez que vi revelar uma foto foi no colgio. Foi como presenciar um feitio, um momento estelar que nunca esquecerei e que decidiu minha voca-o posterior. Cursei o ensino mdio em uma daquelas escolas progressistas da Barcelona dos anos 1960. o ltimo ciclo era coordenado por um professor cha-mado Francesc Garriga, que reservava para si as preceptivas aulas de literatura e histria da Arte. Garriga era poeta e fumava cachimbo, no sei qual das duas categorias me parecia mais fascinante aos quinze anos. Praticava o ensino como um apostolado sem horrios, e sua sala estava sempre cheia de grupos de alunos com inquietaes para continuar fazendo descobertas. Entre as pai-xes de Garriga se encontravam, no necessariamente nessa ordem, a msica, o mundo clssico e o Renascimento, a literatura germnica, a boa mesa, o Bara e a fotografia.

    Na disciplina de histria da Arte do sexto ano, Garriga nos levava para conhe-cer runas gregas e romanas, igrejas romnicas ou palcios gticos, e pedia que durante a visita tomssemos fotografias dos detalhes que achssemos mais chamativos para poder depois ilustrar nossos trabalhos escolares. Com a inten-o de facilitar nossas tarefas, improvisou um modesto laboratrio no colgio. lembro-me de que dispnhamos de um velho ampliador fotogrfico com mola de suspenso, um Carranza 6 9 de segunda mo com objetiva Schneider Componar de 50 mm.

    Para essas lies eu utilizava ento uma cmera Canon Dial emprestada do meu pai. Era uma cmera com um design curioso que hibridizava a morfologia de um barbeador com a de um telefone: supostamente um alarde ergonmico to avanado quanto incompreendido. Tinha o corpo quadrado e um punho cilndrico que devia ser girado para dar corda e carregar automaticamente a passagem do filme. Dispunha de fotmetro incorporado e exposio automtica com seleo de diafragma. o mais caracterstico eram os pequenos fotogramas obtidos, de 24 18 mm, a metade do formato habitual em filme de rolo universal. Isto significava que de um carretel tpico de 36 poses, saam 72, o que proporcionava uma considervel autonomia sem ter que bobinar um novo rolo. Quando adquiri um pouco mais de destreza, tambm experi-mentei com uma cmera Kodak Retina, a cmera nobre da minha casa, uma rel-quia dotada de ptica magnfica e com funcionamento totalmente manual. Mas um incmodo sistema de foco telemtrico e seu manejo em geral excessivamente lento me fizeram desistir. Em qualquer dos casos, depois de expor o filme, mandava-o para revelar e tirar cpias em um estabelecimento comercial.

  • 35 > A CMERA DE PANDORA > A IMAGEM INVISVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    o laboratrio na escola abriu perspectivas inditas. Na poca eu no tinha a mais remota ideia do que acontecia entre um rolo exposto e as imagens em papel que me entregavam em um envelope nos estabelecimentos fotogrficos, era um mistrio ao qual no prestava ateno. Deduzia que havia uma relao de causa e efeito, mas desconhecia os detalhes. Sabia que era preciso preservar o filme da luz para que no velasse e com isso bastava. A primeira vez que entrei no quarto escuro, um colega, Jordi Giralt, o primeiro da classe em qumica que alis dois anos antes tinha me contado o segredo de uma poderosa frmula de plvora preta com a qual depois quase fiz saltar pelos ares minha prpria mo esquerda: uma detonao bem-sucedida na potncia, mas desacertada no desenlace, estava fazendo uma demonstrao. Banhados em uma penumbra avermelhada vrios alu-nos seguiam boquiabertos as evolues de Giralt. Tirou uma folha de papel branco de uma caixa, colocou-a no margeador embaixo do ampliador, acendeu a luz do ampliador e esperou alguns segundos enquanto se projetava no papel uma ima-gem com os tons invertidos. Apagou a luz e introduziu o papel em uma bacia que continha um lquido. Em poucos segundos algumas reas do papel comearam a escurecer, uma imagem ia emergindo devagar. Tive a imediata sensao de estar presenciando o assombroso jogo de mos de um prestidigitador ao tirar o coelho branco da cartola: nada aqui, nada ali, e de repente na virginal superfcie do papel se formou a elegante figura de um capitel do claustro de Sant Miquel de Cuix. S que nesse caso no havia truque.

    Reprimi a surpresa para no fazer alarde da minha inexperincia, mas no meu foro interno estava maravilhado. Como cada aluno tinha que levar uma cpia, Giralt repetiu a operao vrias vezes. Eu j tinha me oferecido para a tarefa de agitar a bacia do revelador para no perder nenhum detalhe do milagre. Durante meio minuto no acontecia nada, como se o papel se apegasse sua imaculada aparncia, mas de repente comeavam a se vislumbrar algumas sombras que iam tomando corpo. Em um minuto a imagem j estava identificvel, embora os pretos carecessem ainda da intensidade que iam adquirindo nos segundos seguintes. Em dois minutos Giralt introduzia com habilidade uma pina e passava a cpia para a outra bacia que exalava um indefectvel cheiro de vinagre. Agitao de novo, dessa vez sob responsabilidade do colega que estava ao meu lado, e outra vez mudana de bacia. Nesse estgio j podamos acender a luz e avaliar o resul-tado. Nestes instantes ouvi pela primeira vez frases como est superexposta, ou falta contraste, ou precisa fazer uma reserva, que ento me pareciam muito

  • 36 > A CMERA DE PANDORA > A IMAGEM INVISVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    enigmticas. Relato com pormenores estas passagens porque ainda me lembro delas vividamente e porque assim desejo transmiti-las a leitores que, elevados j na atual tecnologia digital, certamente foram completamente alheios a essa experincia enfeitiante.

    FOTOQuMICA ELEMENTARA verdade que essa seo remete a um dos fundamentos mais poticos da fotogra-fia: a noo de imagem latente. Para quem no muito experiente em terminologia tcnica fotogrfica, rememoremos brevemente seu significado. Ao impressionar o filme ou o papel fotogrfico, a luz que incide nas substncias fotossensveis deixa um leve rastro, que a imagem em potncia, mas que permanece ainda invisvel ao olho. Falando de forma mais precisa: a luz afeta os sais de prata suspensos na emulso fotossensvel oxidando um certo nmero de molculas, as quais se decom-pem e produzem por sua vez molculas de gs halognio e tomos de prata. o desprendimento destes tomos de prata que ocasiona um efeito de escureci-mento: o haleto uma substncia branca, e a prata em quantidades nfimas, ao contrrio, preta. A casustica detalhada dessa reao qumica suscitou diferen-tes hipteses at que em 1938 os cientistas britnicos Gurney e Mott este ltimo Prmio Nobel em 1977 expuseram os princpios que posteriormente, entre 1945 e 1959, seriam corroborados pelo neozelands John Wesley Mitchell por meio de diferentes modelos experimentais: os ncleos de prata se formam devido pre-cipitao da prata em um cristal de haleto de prata por sua vez supersaturado pela prata que absorveu a energia de uma radiao luminosa.

    louis-Dsir Blanquart-Evrard foi quem, por volta de 1850, descobriu que uma breve exposio luz j gerava uma leve impresso na emulso, que podia ser mais tarde intensificada proporcionalmente por meios qumicos (que o que se conhece como revelado) at se tornar completamente tangvel. Ao princpio o escurecimento era obtido simplesmente mediante uma contnua ao da luz e, em consequncia, para produzir um resultado consistentemente visvel a exposi-o deveria durar vrias horas. Por conseguinte, a inovao de Blanquart-Evrard proporcionava duas vantagens: por um lado, diminuir substancialmente os tempos de exposio, e, por outro, separar a fase da exposio da do tratamento qumico. Tanto essa imagem latente (latens, em latim, escondido) quanto esse processo de revelao se prestaram a vrias conjeturas simblicas que, insisto, devemos considerar quase arqueolgicas no nosso presente digital.

  • 37 > A CMERA DE PANDORA > A IMAGEM INVISVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE)

    A imagem latente se assemelha a uma imagem que existe como embrio ou semente, ou, se preferirmos, como corpo criopreservado espera de condies favorveis que lhe permitam voltar vida. Mas, sobretudo na ordem do simblico, a imagem latente constitui para a fotografia a porta para sua dimenso mgica: trata-se nem mais nem menos do primeiro estgio do contato fsico que a reali-dade e sua representao estabelecem. De fato, nesse estgio ainda no existe representao como tal, mas, como sugere Barthes, um resduo ou, melhor ainda, um contgio de pura emanao do real. o impacto direto das emisses luminosas de um objeto em uma superfcie fotossensvel determina o vnculo sobrenatu-ral entre a realidade e a fotografia, e fundamenta dessa maneira o pilar de sua metafsica realista: o real parece se transferir e aderir na imagem, ou inclusive se transmutar nela. o que o fotgrafo, como o xam, faz no quarto escuro explicitar o contedo latente dessa transmutao. Todo esse potencial significativo d mar-gem a numerosas metforas que impregnam nossa vida cultural em mbitos muito diversos, com smiles que abarcam desde a psicanlise (os modelos freudianos do latente e do manifesto) a todo tipo de evocao da memria inconsciente ou repri-mida. o cineasta chileno Pablo Perelman intitula justamente de Imagen latente (1988) sua emotiva crnica sobre a tragdia dos desaparecidos; nesse filme, o protagonista, um fotgrafo publicitrio de Santiago, tenta superar com uma normalidade artificial o bloqueio da lembrana do desaparecimento de seu irmo, ativista poltico vtima da represso pinochetista. Mas a aguda imagem latente da lembrana e da dor acabar empurrando-o a indagar e confrontar uma verdade indevidamente perturbadora.

    CENOGRAFIA DO DESEJO Impressionar uma placa ou um papel sensvel implica um investimento emocio-nal. A latncia da imagem atua ento como uma aposta e, como tal, nos lana a expectativas que a maioria dos fotgrafos confessa ter sentido como expe-rincias contrapostas. Como a enorme frustrao quando um rolo exposto extraviado ou partido durante o processo de revelao e frustra todas as nossas esperanas ou, ao contrrio, a satisfao de comprovar que o resultado preen-che, ou at supera, essas expectativas.

    De modo geral, a presena da imagem latente como mediao entre a experin-cia visual e a imagem consumada nos fala de esperana e desejo: das esperanas e desejos que depositamos em um ato de expresso cujo resultado permanece

  • no terreno da incerteza. A intensidade desse desejo pode ser exemplificada por um caso recente e comovedor das histrias entrecruzadas da fotografia e do alpi-nismo. o fio dos fatos o seguinte: usualmente se aceita que foram Edmund hillary e o xerpa Tenzing Norgay que conquistaram pela primeira vez o Everest, em 1953. No entanto, persiste a dvida de se outra expedio britnica poderia ter se adian-tado a eles em nada menos que 29 anos. Nessa precursora escalada quem tentou a gesta de coroar o pico foi George Mallory e Andrew Irvine. Segundo a crnica dos acontecimentos, os dois alpinistas foram vistos pela ltima vez atravs de um claro entre as nuvens por um companheiro de escalada no momento em que iniciavam o ataque ao cume. Isso aconteceu s 12h50 de 6 de junho de 1924; depois desapareceram e no se soube mais nada deles, e ficou aberta a incgnita: conse-guiram pisar o topo e morreram durante a descida ou morreram tentando superar o chamado Segundo Degrau?

    Em 1999, ao celebrar os trs quartos de sculo dessa dramtica aventura, uma equipe de busca dirigida pelo alpinista americano Eric Simonsen encontrou a 500 metros do cume os restos congelados de Mallory, com a pele branca como mr-more e uma perna quebrada. De Irvine, nem rastro. o achado do cadver permitiu elaborar diversas hipteses esperanosas, mas que infelizmente no dissiparam nenhuma dvida. S havia uma prova que poderia oferecer a certeza necessria: localizar a cmera que os alpinistas levavam consigo e com a qual se compromete-ram a documentar o sucesso de sua proeza. Tratava-se de uma Kodak Vest Pocket modelo B, uma pequena cmera de fole dobradio que utilizava filme de formato 127 e realizava negativos de 4,5 cm 6 cm. Em condies climticas to adversas no se podiam prever grandes maravilhas, principalmente quando naquela poca Mallory e Irvine se viam forados a empregar filme ortocromtico, e a Vest Pocket era to simples quanto limitada (estava dotada apenas de quatro diafragmas e duas velocidades de obturao possveis, uma para foto instantnea e outra em modo T para pose). Mas qualquer disparo realizado no cume, por mais deficiente que fosse, teria servido como evidncia irrefutvel. Portanto, s as impresses que esse rolo de filme pudesse conter poderiam esclarecer se Mallory e Irvine alcana-ram ou no o teto do mundo. A dvida to importante para a histria do alpinismo, bem como para os princpios sagrados do cdigo dos gentlemen, que para averiguar a verdade foram organizadas diversas expedies, com elevados recursos e grande aparato miditico (inclusive dois meios de comunicao se uniram nata do alpi-nismo espanhol com patrocnio do programa de televiso Al filo de lo imposible).

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  • Por enquanto todas estas tentativas resultaram infrutferas, e a cmera legendria permanece sepultada nas neves do himalaia (embora no se possa descartar que esteja em poder do abominvel homem das Neves...).

    os laboratrios qualificados da George Eastman house de Rochester foram consultados sobre o melhor procedimento a seguir no caso de o rolo ser recupe-rado. Supe-se que as baixas temperaturas tero preservado a emulso, mas no h precedentes que permitam determinar para um lapso de tempo to amplo a eventual degradao do filme e o grau de velao gerado, nem a resistncia da car-caa potente radiao ultravioleta, to abundante nas grandes altitudes. At que a provvel imagem latente que esse rolo contm seja encontrada, ele capitaliza o desejo e reaviva a iluso da comunidade de alpinistas ansiosa por ver confirmada a faanha de seus heris. Por isso, alm de uma simples troca de eltrons que os qumicos afirmam ter sob controle, a imagem latente no somente o esboo de um registro, uma promessa de felicidade: uma promessa de felicidade que pulsa sem sair superfcie, sem ultrapassar a soleira da visibilidade, espera da consumao de um clmax.

    RITuALIZAO DA ESPERA Cabe nos perguntar na atualidade: a fotografia digital renuncia carga mgica da imagem latente? Afirmam os especialistas que tecnicamente no se pode separar de forma radical a tecnologia microeletrnica da fotoqumica, pois nos sensores das cmeras digitais se d um fenmeno parecido com o da imagem latente: nos cristais de silcio tambm necessrio que a luz produza algumas partculas de impureza quase imperceptveis para permitir o que se conhece como desenvolvi-mento epitaxial. Sem necessidade de entrar nestes complexos processos, o que resulta bvio por simples senso comum que toda imagem infogrfica armaze-nada em uma matriz numrica e s se torna perceptvel ao olhar quando passa a suportes como a tela ou o papel. ou seja, todo arquivo digital em formato grfico de fato uma imagem latente. o mecanismo dessa latncia eletrnica se carac-teriza, alm disso, por ser reversvel, ou seja, por poder devolver a imagem final sua fase latente prvia. Aprofundando nessa diferena, a foto em tela costuma ser provisria e a foto em papel se considera um consumvel, pelo que o rastro eletrnico o que se tende a preservar com nimo de permanncia. No falamos mais em revelar as imagens, mas em abri-las, porque de fato estamos cons-tantemente abrindo-as e fechando-as. No sistema digital, alm disso, imagem

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  • latente e imagem manifesta no se sucedem como duas etapas programadas consecutivamente e obrigadas a uma continuidade temporal, mas podem existir simultaneamente, como a alma e o corpo. Definitivamente podemos afirmar que na fotografia analgica a imagem latente est escondida e na fotografia digital est fechada. E bvio que, se por acaso fssemos piratas e tivssemos perseve-rana em um tesouro, no daria na mesma se o prezado cofre estivesse escondido ou simplesmente estivesse fechado. o acesso ao contedo parece muito mais livre no segundo caso.

    No obstante, mesmo aceitando a semelhana na gnese constitutiva dos dois tipos de rastro icnico, o lapso que media entre a imagem invisvel e a imagem mani-festa provoca efeitos muito distintos segundo o procedimento de que se trate, ana-lgico ou digital. Est claro que na imagem fotoqumica intervm um fator relevante a que ainda no prestamos ateno, que a espera, o intervalo temporal que separa o rastro luminoso da foto revelada; a foto digital, em compensao, foto instant-nea, ou pelo menos funcionalmente imediata.

    A tradio literria e terica no desprezou o papel importante que a espera ocupa na economia da seduo. Em Fragmentos de um discurso amoroso,2 Barthes explica que a espera daquilo que se ama uma figura central do programa amo-roso (o apaixonado passa sua vida esperando). De fato, Barthes se espraia referindo angstia suscitada pela espera do ser amado como um ingrediente imprescindvel para a recompensa do amor e como sublimador do prprio sen-timento amoroso. Como no amor, a imagem latente submete o fotgrafo a uma espera que catalisa e amplifica suas inquietaes enquanto vai acrescentando o prazer vindouro em um ritual rigidamente codificado. Aponta Barthes: h uma cenografia da espera: organizo-a, manipulo-a, destaco uma poro de tempo em que vou imitar a perda do objeto amado e provocar todos os efeitos de um pequeno luto, o que se representa, portanto, como uma pea de teatro. Essa cenografia contm trs atos: em primeiro lugar, foto instantnea, est a captura (sou rap-tado por uma imagem); vem ento uma srie de encontros (conversas, telefone-mas, cartas, pequenas viagens) no curso dos quais exploro com embriaguez a perfeio do ser amado, ou seja, a adequao inesperada de um objeto ao meu desejo: a doura do comeo, o tempo prprio do idlio. Esse tempo feliz toma sua identidade em oposio (pelo menos na lembrana) continuao: a con-tinuao uma longa cascata de sofrimentos, feridas, angstias, desamparos, ressentimentos, desesperos, penrias e armadilhas de que sou prisioneiro...

    2. Barthes, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. So Paulo, Martins Editora, 2003. [Verso original: Fragments dun discours amoureux. Paris, ditions du Seuil, 1977].

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  • No ato fotogrfico essa sequncia se transfere, comeando com a flechada (o cli-que, o disparo, o momento decisivo), prossegue com o encantamento (a fase de ambivalncias entre nsias e iluses) que culmina no idlio (perodo feliz de gozo, traduzvel como a consumao da imagem), fatalmente seguido em geral por dvi-das e decepo (uma crtica exigente, a crise postpartum que sucede toda criao). As pautas desse trajeto emocional imprimem um tempo particular ao esprito do fotgrafo, uma durao que se contrape instantaneidade com que habitu-almente se d a reao qumica. Antecipando-se a Barthes, leopold Schaeffer j tinha escrito: A espera por si mesma uma felicidade. Na espera se centuplica toda imagem daquilo que se espera. De fato, da imagem latente imagem manifesta se sedimentam nossas esperanas multiplicadas por cem. E, durante o transcurso dessa espera, concedamos de passagem o benefcio do descanso tambm aos el-trons, para que desfrutem igualmente da tarefa bem cumprida.

    PHOTOLATENTEA imagem latente inspirou propostas artsticas variadas. Em agosto de 2008 Gabriel Mario Vlez, professor da universidade de Antioquia e diretor dos Encontros Fotogrficos de Medelln, Colmbia, lanava a convocatria de Visado de artista: Imagen latente. Nessa proposta convidava fotgrafos de todo o mundo a buscar uma cmera descartvel, impressionar o filme com o qual vinha provida e, sem mais, faz-la chegar aos organizadores; na exposio seriam mostradas as cmeras recebidas sem extrair o filme, mas anexando uma descrio por escrito do contedo das imagens invisveis, proporcionada por seus autores.

    Enquanto realizavam as fotos para sua contribuio, os participantes eram con-vidados a considerar as perguntas o que se v? o que se pode ver? o que voc quer ver? o que se deve ver? o que proibido ver? o que impossvel ver?. A latncia equivalia nesse caso a uma imposio provisria da ignorncia e da confidencia-lidade. Em uma situao de turbulncia poltica e social, Visado de Artista des-locava o debate para o reservado e o encoberto, e definitivamente para os limites, pblicos e privados, da visibilidade.

    Sem sair do mbito espanhol, o heterodoxo Isidoro Valcrcel Medina nos ofere-ceu em 1974 uma proposta de mail-art conhecida como Fotografa sin positivar na qual a imagem latente se compara a uma mensagem escrita que se mantm secreta e no permitido desvelar. Tratava-se de uma carta que o artista enviava de forma annima a um nmero determinado de pessoas. Em uma folha tamanho

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  • carta vinha colado um envelope de plstico escuro. Na parte inferior do papel se podia ler o seguinte texto datilografado, como instrues para o destinatrio:

    Este envelope, preto e hermtico, contm um papel fotogrfico N BN1 sensvel, impressionado em branco e preto, mas sem positivar.

    Voc pode escolher entre: - mandar o envelope a um laboratrio, obtendo uma foto assinada, - guard-lo fechado indefinidamente, ignorando o contedo, - simplesmente abri-lo, e assim ter uma obra de arte destruda. Se o papel fotogrfico fosse revelado, em todos os casos aparecia a mesma

    imagem de uma composio na qual estavam dispostos os elementos utiliza-dos para confeccionar a obra: ampliador, envelope de papel fotogrfico, cola, mquina de escrever e um carimbo com o nome de Valcrcel Medina. o eventual processo de revelao comportava, portanto, uma dupla revelao: a da imagem e a de sua autoria.

    Valcrcel Medina nos confronta de fato com a curiosidade. o dilema entre satis-fazer ou liquidar essa curiosidade nos leva necessidade de participar de um pro-cesso que o artista deixa deliberadamente inconcluso. o espectador j no um simples observador passivo, mas o agente em quem recai a responsabilidade de consumar o ato criativo com a deciso que tome. A indeterminao, a inao, deixa todas as portas abertas em um marco infinito de liberdade; em compensao, qualquer ao reduz ou esgota esse marco de liberdade. Na bela folha branca que a cano do cantor e compositor canadense Jim Corcoran celebra tudo est por fazer e tudo possvel.

    Por outro lado, a interao com o receptor, segundo o triplo protocolo de atua- o nessa obra, possibilita a no consumao (guard-la indefinidamente) e, assim, a resistncia sua fossilizao. Quando Isabel Tejeda e Pedro Medina curaram em 2003 uma mostra de Valcrcel Medina, avaliaram diversos reparos na forma de apresentar a pea tentando respeitar a fora do seu gesto original. Preocupava-nos como mostrar esse fragmento documental de uma obra que se havia iniciado em 1974, mas, na verdade, sem prazo de validade, em latncia em muitos dos lares aos quais havia sido enviada. Dava-se o paradoxo de que a obra se mantinha viva j que a folha nmero 29, que pertencia ao prprio Valcrcel Medina e que o mesmo cedia para a mostra, ainda permitia as trs opes. As possibili-dades que Valcrcel Medina oferecia estavam em conflito com o formato expo-sitivo que, em todo caso, somente podia mostrar restos documentais: ou a folha

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  • tal e qual ou o resultado da primeira opo; o carter vital de uma pea feita para ser manipulada ficaria encapsulado e em estado de latncia se a colocassem em uma vitrine; e o anonimato da pea chocava de frente com o cartaz indicativo.3

    uma possibilidade teria sido produzir mais envelopes, mas isto significaria repe-tir ou refazer a obra. Acabaram adotando uma soluo intermediria, dispondo o envelope que Valcrcel conservava em um suporte-vitrine, mas acrescentando um cartaz explicativo que atualizava a pea. o cartaz explicava que a terceira opo (velar o papel e destruir a obra) j no era possvel, mas ainda se podia escolher entre as outras duas, e, caso o usurio decidisse processar o papel, devia solicitar a foto j revelada ao vigia da sala. Sobre essa adaptao, que evitava o remake por mais funcionalmente justificado que estivesse, o autor se perguntava: Como se pode, tratando-se de obras antigas, no manipul-las e, como consequncia inevitvel, fazer uma obra nova?

    Sem dvida, quem mais proveito tirou das mltiplas implicaes filosficas da imagem latente foi scar Molina no seu projeto Photolatente, cujo funcionamento foi regido pelos seguintes passos: Molina distribuiu cartuchos de filme em preto e branco TX400 a um nmero indiscriminado de fotgrafos; entre eles podiam figu-rar profissionais ou simples amadores, especialistas ou iniciantes, ningum estava proibido de participar. Em qualquer caso, os participantes tiveram que assinar um contrato em que se comprometiam a no reclamar paternidade autoral sobre os cli-chs cedidos. Depois de um tempo Molina recuperou os rolos j expostos e os reve-lou. Em seguida, ampliou cada um dos negativos impressionando a correspondente folha de papel fotossensvel. Entretanto, como na proposta de Valcrcel Medina, estas folhas no foram processadas, mas preservadas na escurido e guardadas em um envelope opaco luz. Cada envelope era portador de uma imagem latente, estava prenhe de uma imagem sobre a qual no sabamos nada: como em uma loteria, poderia ser um retrato, uma paisagem ou um nu... poderia estar desfocada, tremida ou desenquadrada... poderia ser obra de um personagem reputado ou de um espontneo annimo. Estes envelopes misteriosos foram finalmente distribu-dos entre os interessados que, ao adquiri-los, adotavam a imagem e decidiam se a faziam nascer ou a abortavam.4

    Com a sequncia de gestos simblicos operados, Molina refora o carter de casualidade e surpresa introduzindo um modus operandi de performance cole-tiva que coloca na mesa o problema do anonimato e da dissoluo do autor. Photolatente, portanto, transtorna a poltica geradora de sentido ao desestabilizar

    3. Martn, Isabel Tejeda. El montaje expositivo como traduccin. Fidelidades, traiciones y hallazgos en el arte contemporneo de los aos 70. Madri, Fundacin Arte y Derecho/Editorial Trama, 2006.

    4. scar teve a amabilidade de me convidar tambm, e poucos dias depois de receber meu rolo de Tri-X eu j tinha a ideia decidida: procurei na minha biblioteca o livro Histria da Fotografia de Beaumont Newhall e reproduzi 36 ilustraes, um compndio de obras-primas da fotografia. Quem recebesse um dos envelopes contendo as imagens realizadas por mim poderia ser agra-ciado com um Man Ray ou um Cartier-Bresson, entre outros. Mas no final decidi no entregar

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  • a prpria noo de autoria. Recebemos ao acaso uma imagem latente que tem um pai biolgico e, ao nos apropriarmos dela, nos tornamos seu pai adotivo e seu pai legal. o artfice do projeto poderia ter efetuado ele mesmo a captao des-tas imagens latentes, ou obt-las por algum mecanismo infeliz. Mas preferiu, em contraposio, estabelecer regras de jogo precisas, detalhadas em um texto de instrues que os participantes recebem contratualmente, segundo as quais uma srie de voluntrios annimos impressiona, cada qual segundo seu arbtrio, um rolo comercial de 36 poses. Ao carter annimo e apcrifo destas possveis ima-gens, acrescenta-se dessa forma a dimenso especulativa: nada sabemos sobre aqueles que impressionaram os negativos nem para quais sujeitos dirigiram suas objetivas, mais do que nunca tudo possvel, e o imprevisto aqui um dos princi-pais elementos de fascinao.

    Poderamos, pelo contrrio, levar a reflexo a uma perspectiva inversa. Diante destes resultados no previsveis, tentemos calcular doses de previsibilidade. A exposio pstuma que o Museu de Arte Moderna de Nova York dedicou a Garry Winogrand em 1988 se aproximava dessa tentativa. Winogrand morreu deixando centenas de rolos de filme exposto e sem revelar. Milhares e milhares de imagens ainda invisveis. John Szarkowski, diretor do Departamento de Fotografia, tomou uma deciso arriscada: mandar revelar todos os filmes expostos, positivar folhas de contato de todo o material e selecionar alguns disparos tentando se colocar na pele (e no olho) do prprio Winogrand. Na mostra foram apresentadas tanto as folhas de contato quanto ampliaes dos instantneos selecionados. Winogrand poderia ter considerado essa escolha acertada ou no, nunca saberemos. Tambm no saberemos se, no af de descobrir possveis obras-primas, Szarkowski afinou em seus critrios. o mais interessante foi certamente a polmica que se originou e como os conceitos cannicos da arte institucionalizada, edio grfica, assina-tura, estilo, autoria, cambalearam. Em fotografia, especialmente, a questo da edio grfica premente: pode-se impressionar milhares de negativos e no reconhecer como obra nenhuma destas imagens. Ento, essa enorme produ-o de imagens so somente experincias, tentativas, ensaios, esboos, ou seja l o que for, o pedgio iconogrfico que se deve pagar para alcanar aquilo que o fotgrafo que atua como autor avalia como a obra.

    Todas estas questes esto tambm implcitas em Photolatente. Mais que isto, aparecem inclusive amplificadas, porque desconhecemos por completo a identidade de quem impressionou os negativos e porque scar Molina nos libera

    o filme exposto, e no por desobedincia mas para outorgar uma extenso adicional do conceito de Photolatente: guardar o filme na gaveta do meu escritrio era uma forma de acrescentar um segundo nvel de latncia ao prprio potencial significativo do projeto.

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  • expressamente das tarefas e responsabilidades que o curador do museu teve que confrontar dizendo: Faam o que quiserem com elas! Com isto, receber uma imagem latente um convite criatividade (a uma criatividade compartilhada, a uma criatividade interativa). No nvel da resposta individual, as opes com estas imagens latentes so ilimitadas. Podemos mant-las tal e qual, em estado de latncia permanente, guardando todas as suas promessas implcitas, todos os seus segredos. ou, para saciar nossa curiosidade, podemos revel-las por um pro-cedimento padro. ou revel-las de forma heterodoxa, modificando os protocolos habituais e introduzindo variaes experimentais. Podemos pint-las ou colori-las. Desenhar ou escrever em cima. Podemos cort-las e fazer um collage com os peda-os. Coloc-las no microondas. Queim-las e refotografar as cinzas. Cobri-las com emulso fotogrfica e voltar a impressionar em cima outra imagem latente

    scar Molina nos leva a uma deriva infinita em um projeto multifactico que afeta inmeros aspectos da criao, sem se limitar a sentenciar uma nova verso da to falada morte do autor. Aqui as imagens, latentes ou visveis, so contin-gentes como obras, so adivinhaes ou armadilhas colocadas para o espec-tador, seja esse participante ativo ou no. A razo de ser terica de Photolatente se encontra na elaborao do prprio processo: um processo gerador de interro-gantes disfarados de imagens. Em todo caso, portanto, a obra o processo em si, e as imagens resultantes, meros acidentes. E o autor? o autor quem manda. o autor quem controla, quem fixa as regras, quem fiscaliza a gesto. Mesmo que, como nesse caso, o autor nos ceda cotas de participao, porque precisa de ns como atores do dispositivo conceitual que criou. Nossa inevitvel e fascinada confuso parte necessria do seu jogo. ou seja, da sua obra.

    Gosto de fabular agora com o que teria acontecido naquela sesso inicitica do quarto escuro se, em vez de positivar prosaicas vistas de um mosteiro romnico, eu e meus colegas estivssemos providos de um bom punhado de envelopes de Photolatente. Com certeza o vcio na arte da luz se estenderia como a plvora que quase me deixou maneta.

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  • Pouco depois da morte de henri Cartier-Bresson, em 2 de agosto de 2004, uma destas mensagens em corrente circulou por vrios fruns fotogrficos da internet e rezava: Nietzsche tinha razo: Deus morreu. o adgio caa como uma espcie de epitfio: para muitos no mundo da fotografia, Cartier-Bresson era deus, e sua partida deixava desamparado o particular olimpo da arte da luz. Para outros, alm da imortalidade de sua obra, Cartier-Bresson no chegava categoria de deus, mas certamente de gnio: um dos poucos gnios que foram capazes de modelar o olhar moderno do sculo xx.

    h alguns anos Alain Desvergnes me contou um caso que vem a calhar como nota necrolgica. Desvergnes, fotgrafo e docente, foi o fundador e primeiro diretor da Escola Nacional de Fotografia de Arles, na Frana, e durante um tempo exerceu essa funo paralelamente direo do Festival Internacional de Fotografia reali-zado nessa localidade toda segunda semana de julho desde 1969. Pelas primeiras edies, antes que o pblico as massificassem, passaram figuras legendrias da histria da fotografia como Ansel Adams, Eugene Smith e o prprio Cartier-Bresson. Este possua junto com sua esposa, a tambm fotgrafa Martine Frank, uma casa de campo, le Claux, em Creste, na Alta Provena, no muito distante de Arles, onde passava temporadas no vero fazendo visitas furtivas s exposies e proje-es que podiam atra-lo. A manso se transformaria previsivelmente em um foco de seleta peregrinao a que muitos admiradores iam para render homenagem,

    O GNIO DA CMERAMARAVILHOSA1

    uma obra humana apenas a longa caminhada para encontrar nas curvas da arte as duas ou trs imagens simples e grandes que fizeram com que nosso corao se abrisse pela primeira vez.

    AlBERT CAMuS, Lenvers et lendroit, 1937

    1. No original de As mil e uma noites, quando Sherazade narra o conto de Aladim, a prodigiosa lmpada concede um nmero ilimitado de desejos. Em compensao, nas verses infantis que li quando criana, em espanhol, que foram de fato as que cativaram minha imaginao, o gnio, seja porque miservel, seja porque quer instruir Aladim na economia do desejo, restringe o nmero de pedidos a trs. Me refiro aqui a estas verses.

  • 48 > A CMERA DE PANDORA > O GNIO DA CMERA MARAVILHOSA

    bem como em um lugar de encontro entre velhos camaradas de profisso. Quando Eugene Smith foi certa vez o convidado de honra do Festival, Desvergnes o levou para visitar seu velho amigo. os dois mximos expoentes do documentalismo social tinham compartilhado no passado causas e aventuras, e o afeto que se professa-vam no chegou nunca a dissipar uma humana rivalidade. Ambos, por outro lado, tinham fama de conversadores apaixonados e enrgicos: loquazes, agudos e inci-sivos. Eugene Smith no avantajava Cartier-Bresson em mordacidade e ironia. No calor de uma discusso, Smith perguntou: E, voc, henri, quantas fotografias boas, realmente boas, acha que conseguiu fazer na sua vida?

    Diante dessa pergunta-armadilha se produziu um silncio de expectativa entre os presentes. os dois fotgrafos tinham publicado ao longo de sua carreira dzias de livros, com milhares de imagens. Como condensar estes milhares de instan-tes decisivos em um nmero reduzido de obras primas? o que parecia presu-mvel dialeticamente era que, fosse qual fosse a resposta, Smith ia repreender seu oponente rebaixando o nmero, censurando assim um eventual baixo nvel de autoexigncia. Por isto, em previso, Cartier-Bresson optou por uma cifra j ostensivamente exgua e modesta: Acho que umas doze. Talvez s dez. o outro no esperou para replicar impetuoso: ora! Que exagero! No mximo voc fez trs boas, realmente boas. No mais de trs.

    Cartier-Bresson viveu 95 anos. Tamanha longevidade e uma dedicao intensa no permitiam aos olhos de Smith mais que trs limitadas boas fotografias. Talvez todo o resto no constitusse mais que esforadas tentativas e esboos, sem dvida valiosos, mas sobretudo decididamente necessrios para chegar suprema exce-lncia destes trs resultados finais. homologvel essa teoria a outras disciplinas da arte? Ser que Picasso chegou a realizar mais de trs obras realmente primas?

    Gosto de imaginar aquele Aladim fotgrafo espera de suas trs oportunidades mgicas, andando pelo mundo de