a cachoeira de paulo affonso : poema original brasileiro ...castroalves acachoeira de pauloaffonso...

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"L I B RARYOF THE

UN IVER.51TYOr ILLINOIS

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A CACHOEIRAos

PAULO AFFONSO

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CASTRO ALVES

A CACHOEIRADE

PAULO AFFONSOPOEMA

ORIGINAL BRASILEIRO

Fragmento dos — ESCRAVOS — sob o titulo de

HMUscRiPios DE mm

GONZAGAou

A REVOLUÇÃO DE MINAS

-fi» -^- -

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

109, RUA DO OUVIDOR, 109

RIO DE JANEIRO

6, RUS DES SAINTS-PBRBS, 6

PARIS

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7Ku

Je ne sais vraiment si J'aur»l mírlté qa'on

ilépose un jour un laurler gur mon cercuell. L»

. poésie, quel que solt mon amour poiír elle, ii'a

toujours été pour mol qu'un moyen consacré

' pour un but eain.

> Je n'ai jamais altaché un trop grand prlx à

U gloire de mes poèmes, et peU m'importe qu'on

C les lone, ou qu'on les blâme. Mais ce será nn

glalre, que vous devez placer sur ma tombe,

oar 5'ai été un brave soldat da :.s la guerre de

déllTranoa de rhamanite.

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A TARDE

Era a hora em que a tarde se debruça

Lá da crista das serras mais remotas...

E d'araponga o canto, que soluça,

Acorda os echos nas sombrias grotas ;

Quando sobre a lagoa, que s'embuça,

Passa o bando selvagem das gaivotas..

E a onça sobre as lapas salta urrando,

Da cordilheira os visos abalando.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Era a hora em que os cardos rumorejam,

Como um abrir de bocas inspiradas,

E os angicos as comas espanejam

Pelos dedos das auras perfumadas...

A hora em que as gardenias, que se beijam,

São timidas, medrosas desposadas;

E a pedra... a flor... as selvas... os condores

Gaguejam... faliam... cantam seus amores!

Hora meiga da tarde í Oomo es Delia

Quando surges do azul da zona ardente!

— Tu és do céo a pallida donzella,

Que se banha nas thermas do oriente...

Quando é gotta do banho cada estrella.

Que te rola da espádua refulgente...

E — prendendo-te a trança a meia lua,

Te enrolas em neblinas semi-núa!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito !

Tu me lembras o tempo em que era infante.

Inda adora-te o peito do precito

No meio do martyrio excruciante;

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A CACHOEIRA DB PAULO AFFONSO

E se não te dá mais da infância o grito,

Que menino elevava-te arrogante,

É que agora os martyrios foram tantos,

Que mesmo para o riso só tem prantos !...

Mas não me esqueço nunca dos fraguedos

Onde infante selvagem me guiavas,

E os ninhos do soffrer que entre os sylvedos

Da embaíba nos ramos me apontavas;

Nem mais tarde, dos languidos segredos

Do amor do nenuphar que enamoravas...

E as tranças mulheris da granadilha!...

E os abraços fogosos da baunilha !...

E te amei tanto — cheia de harmonias,

A murmurar os cantos da serrana,

A lustrar o broquel das serranias,

A dourar dos rendeiros a cabana...

E te amei tanto — á flor das aguas frias

Da lagoa agitando a verde canna,

Que sonhava morrer entre os palmares,

Fitando o céo ao tom dos teus cantares !.

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10 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Mas hoje, da procella aos estridores,

Sublime, desgrenhada sobre o monte,

Eu quizera fitar-te entre os condores

Das nuvens arruivadas do horizonte...

— Para então — do relâmpago aos livores,

Que descobrem do espaço a larga fronte,

Contemplando o infinito... na floresta,

Rolar ao som da funeral orchestra !

!

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(pi

MARIA ^-^

Onde vais á tardesinha,

Mucama tão bonitinha,

Morena flor do sertão ?

A grama um beijo te furta

Por baixo da saia curta,

Que a perna te esconde em vão,

Mimosa flor das escravas !

O bando das rolas bravas

Voou com medo de ti!...

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ia A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Levas hoje algum segredo.

Pois te voltaste com medo

Ao grito do hem-te-vi.

Serão amores deveras ?

Ah ! Quem dessas primaveras

Pudesse a flor apanhar !

E comtigo, ao tom d'aragem,

Sonhar na rede selvagem...

Á sombra do azul palmar !

Bem feliz quem na viola

Te ouvisse a moda hespanhola,

Da lua ao frouxo clarão...

Com a luz dos astros — por cirios,

Por leito — um leito de lyrios...

E por tenda a solidão !

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o BAILE NA FLOR

Que bellas as margens do rio possante,

Que ao largo espumante campêasem par !.

Aili das bromelias nas flores douradas

ila sylphos e fadas, que fazem seu lar...

E em lindos cardumes,

Subtis vagalumes

Accendem os lumes

P'ra o baile na flor.

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14 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

E então nas arcadas

Das petlas douradas

Os grilos em festa

Começam na orchestra

Febris a tocar...

E as breves

Phalenas

Vão leves,

Serenas,

Em bando

Gyrando,

Walsando,

Voando

No ar \*<,

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NA MARGEM

Vamos ! vamos ! Aqui por entre es juncos

Eil-a a canoa em que eu pequena outr'ora

Voava nas marêtas... Quando o vento,

Abrindo o peito á camisinha húmida,

Pela testa enrolava-me os cabellos,

Ella voava qual maréta brava

No dorso crespo da feral enchente I

Voga, minha canoa ! Voga ao largo !

Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos

Como na matta os caititús bravios...

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16 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Filha das ondas ! andorinha arisca !

Tu, que outr'ora levavas minha infância

— Pulando alegre no espumante dorso

Dos cães marinhos a morder-te a proa—Leva-me agora a mocidade triste

Pelos ermos do rio ao longe... ao longe...

Assim dizia a escrava...

Iam cahindo

Dos dedos do crepusc'lo os véos de sombra.

Com que a terra se vela, como noiva,

Para o docehymeneu das noites límpidas...

Lá no meio do rio, que scintilla,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escôa-se a canoa;

Parecia, assim vista ao sol poente,

Esses ninhos, que tombam sobre o rio,

E onde em meio das flores vão chilrando

Alegres sobre o abysmo — os passarinhos !...

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A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO 17

Tu guardas algum segredo ?...

Maria, estás a chorar !

Onde vais ? Por que assim foges

Rio abaixo a deslisar?

Pedra, não tens o teu musgo ?

Não tens um favonio — flor?

Estrella — não tens um lago ?

Mulher — nâo tens um amor r

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A QUEIMADA

Meu nobre perdigueiro ! vem commigo.

Vamos a sós, meu corajoso amigo,

Pelos ermos vagar

!

Vamos lá dos geraes, que o vento açoita,

Dos verdes capinaes n'agreste moita

A perdiz levantar !...

Mas não !... Pousa a cabeça em meus joelhos.

Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos

O cóo se illuminou.

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20 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Eis súbito, da barra do occidente,

Doudo, rubro, veloz, incandescente,

O incêndio que acordou

!

A floresta rugindo as comas curva...

As azas foscas o gavião recurva,

Espantado a gritar.

O estampido estupendo das queimadas

Se enrola de quebradas em quebradas

,

Galopando no ar.

E a chamma lavra qual giboia informe,

Que no espaço vibrando a cauda enorme

Ferra os dentes no chão...

Nas rubras roscas estortega as mattas...

Que espadanam o sangue das cascatas»

Do roto coração !...

O incêndio — leão ruivo, ensanguentado,

A juba, a crina atira desgrenhado

Aos pampeiros dos céos !...

Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...

Queimado... retorcendo na hecatomba

Os braços para Deus.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 21

A queimada ! A queimada é uma fornalha

!

A hirara pula ; o cascavel chocalha...

Raiva, espuma o tapir

!

E ás vezes sobre o cume de um rochedo

A corça e o tigre — náufragos do medo —Vão trémulos se unir

!

Então passa-se ali um drama augusto...

No ultimo ramo do páo d'arco adusto

O jaguar se abrigou...

Mas rubro é o céo... Recresce o fo^ò em mares.

E após tombam as selvas seculares...

E tudo se acabou !...

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LUCAS

Quem fosse naquella hora.

Sobre algum tronco lascado,

Sentar-se no descampado

Da solitária ladeira,

Veria descer da serra,

Onde o incêndio vai sangrento,

A passo tardio e lento.

Um bello escravo da terra,

Cheio de viço e valor...

Era o filho das florestas !

Era o escravo lenhador

!

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24 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Que bella testa espaçosa,

E sob o chapéo de couro

Que cabelleira abundante

!

De marchetada giboia

Pende-lhe a rasto o facão...

E assim... erguendo o machado ..

Na breve e robusta mão...

Aquelle vulto soberbo,

— Vivamente alumiado,

Atravessa o descampado,

Como uma estatua de bronze,

Do incêndio ao fulvo clarão.

Desceu a encosta do monte,

Tomou do rio o caminho...

E foi cantando baixinho,

Como quem canta p'ra si.

Era uma dessas cantigas

Que elle um dia improvisara,

Quando junto da coivára

Fez-se o escravo — trovador;

Era um canto languoroso,

Selvagem, bello, vivace,

Como o caniço que nasce

Sob os raios do Equador.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 25

Eu gosto dessas cantigas,

Que me vem lembrar a infância;

São minhas velhas amigas,

Porellas morro de amor...

Deixai ouvir a toada.

Do captivo lenhador.

E o sertanejo assim solta a tyrana.

Descendo lento p'ra servil cabana :

TYRANNA

Minha Maria é bonita,

Tão bonita assim não ha;

O beija-flor quando passa

Julga ver o manacá.

Minha Maria é morena ^Como as tardes de verão

;

Tem as tranças da palmeira

,

Quando sopra a viração.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Companheiros ! o meu peito

Era um ninho sem senhor

;

Hoje tem um passarinho

P'ra cantar o seu amor.

Trovadores da floresta

!

Não digam a ninguém, não!...

Que Mana é a baunilha

Que me prende o coração.

Quando eu morrer só me enterrem

Junto ás palmeiras do vai,

Para eu pensar que ó Maria

Que geme no taquaral...

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A SENZALA

Qual o veado que buscou o aprisco,

Balindo arisco, para a serra corre...

Ou como pombo, que os arrulos solta,

Se ao ninho volta quando a tarde morro,

Assim, cantando a pastoril balada,

Já na esplanada o lenhador chegou.

Para a cabana da gentil Maria

Com que alegria a suspirar marchou

!

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28 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Eis a casinha... tão pequena e bella

!

Como é singela com seus brancos muros!

Que liso tecto de sapé dourado!

Que ar engraçado ! que perfumes puros 1

Abre a janella para o campo verde,

Que além se perde pelos cerros nús.

A testa enfeita da infantil choupana

Verde liana de festões azues.

É este o galho da rolinha brava.

Aonde a escrava seu viver abriga...

Canta a jandaia sobre a curva rama

E alegre chama sua dona amiga.

Aqui n'aurora, abandonando os ninhos,

Os passarinhos vêm pedir-lhe pão

;

Pousam-lhe alegres nos cabellos bastos,

Nos seios castos, na pequena mão

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 29

Eis o painel encantado,

Que eu quiz pintar, mas não pude..

Lucas melhor o traçara

Na canção suave e rude...

Vede que olhar, que sorriso

S'expande no brônzeo rosto,

Vendo o lar do seu amor...

Ai ! da luz do Paraíso

Bate-lhe em cheio o fulgor.

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DIALOGO DOS ECHOS

E chegou-se p'ra vivenda.

Risonho, calmo, feliz...

Escutou... mas só ao longe

Cantavam as juritis...

Murmurou : — Vou sorprendel-a

E a porta ao toque cedeu...

— Talvez agora sonhando

Diz meu nome o lábio seu,

Que a dormir nada prevê... —

E o echo responde : — Vê !. .

.

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32 A CACHOEIRA DB PAULO AFFONSO

— Como a casa está tão triste

!

Que aperto no coração...

Maria!... Ninguém responde!

Maria, não ouves, não?...

Aqui vejo uma saudade

Nos braços de sua cruz...

Que querem dizer taes prantos.

Que rolaram tantos, tantos

Sobre as faces da saudade,

Sobre os braços de Jesus?

Oh ! quem me empresta uma luz ?.

.

Quem me arranca a anciedade,

Que no meu peito nasceu?

Quem deste negro mysterio.

Me rasga o sombrio véo ?... —

E o echo responde : — Eu !...

E chegou-se para o leito

Da casta flor do sertão...

Apertou co'a mão convulsa

O punhal e o coração !. .

.

Stava inda tépido o ninho

Cheio de aromas suaves...

E — como a penna, que as aves

Deixam no musgo ao voar. —

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 33

Um annel de seus cabellos

Jazia cortado a esmo

Como relíquia no altar I...

Talvez prendendo nos elos

Mil suspiros, mil anhelos,

Mil soluços, mil desvelos,

Que ella deu-lhes p'ra guardar!..

E o pranto em baga a rolar.

— Onde a pomba foi perder-se ?

Que céo minha estrella encerra ?

Maria, pobre criança,

Que fazes tu sobre a terra ?—

E o echo responde — Erra

— Partiste ! Nem te lembraste

Deste martyrio sem fim!...

Não! perdoa... tu choraste

E os prantos, que derramaste,

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84 A CÁCHOBIBA DE PAULO AFFONSO

Foram vertidos por mim. .

.

Houve pois um bra^o estranho,

Robusto, feroz, tamanho,

Que pôde esmagar-te assim ?. •

.

E o echo responde— Sim!

E rugiu : —Vingança! guerra

i

Pela flor, que me deixaste,

Pela cruz, em que rezaste,

E que teus prantos encerra

!

Eu juro guerra de morte

A quem feriu desta sorte

O anjo puro da terra. .

.

Vê como este braço é forte!

Vê como é rijo este ferro

!

Meu eolpe é certo., não erro.

Onde na sangue, sangue escorre !

Vilão! Deste ferro e braço,

Nem a terra, nem o espaço,

Nem mesmo Deus te soccorre !!...

E o echo responde — Corre!

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 36

Como o cão elle em torno o ar aspira,

Depois se orientou

;

Fareja as hervas... descobriu a pista

E rápido marchou.

No entanto sobre as aguas que scintilam.

Como o dorso de enorme crocodilo

Já manso e manso escõa-se a canoa;

Parecia assim vista — ao sol poente —Esses ninhos, que o vento lança ás aguas,

E que na enchente vão boiando átôa!...

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o NADADOR

Eil-o que ao rio arroja-se;

As vagas bipartiram-se

;

Mas rijas contrahiram-se

Por sobre o nadador...

Depois s^entreabre lúgubre

Um circulo symbolico...

É o riso diabólico.

Do pego zombador!

r .

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38 A CACHOEIRA DE i>AULO AFFONSO

Mas não ! Do abysmo indómito

Surge-me um rosto pallido,

Como o Neptuno esquálido

Que amaina a crina ao mar;

Fita o batel longinquo

Na sombra do crepúsculo,

Rasga com férreo musculo

O rio par a par.

Vagas ! Dalilas pérfidas

!

Moças, que abris um tumulo,

Quando do amor no cumulo

Fingis nos abraçar

!

O nadador intrépido

Vos toca as tetas cérulas...

E após — zombando — as pérolas

Vos quebra do coUar.

Vagas, curvai-vos timidas i

Abri fileiras pávidas

As mãos possantes, ávidas

Do nadador audaz,

Bello de força olympica^

— Soltos cabellos húmidos —Braços hercúleos, túmidos...

É o rei dos vendavaes!

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 59

Mas, ai! Lá ruge próxima"

A correnteza hórrida,

Como da zona tórrida

A boicininga a urrar...

E lá que o rio indómito,

Como o corsel da Ukrania,

Rincha a saltar de insânia,

Freme e se atira ao mar.

Tremeste ? Não, qu'importa-te

Da correnteza o estridulo?

Se ao longe vês teu idolo,

Ao longe irás também...

Salta á garupa húmida

Deste corsel titânico...

— Novo Mazeppa oceânico —Além ! Além ! Além

!

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NO BARCO

— Lucas ! — Maria ! murmuram juntos...

E a moça em pranto lhe cahiu nos braçoa.

Jamais a parasita em flóreos laços

Assim ligou-se ao pequiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cahir no basto,

Os esparsos festões da granadilha...

Tépido aljôfar o seu pranto brilha,

Depois rwiívaia no moreno seio...

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42 A CACHOEIRA DE PAULO AFF0N60

Oh ! doces horas de suave enleio

!

Quando o peito da virgem mais arqueja,

Como o casal da rola sertaneja,

Se a ventania lhe sacode o ninho.

Contai, 6 brizas, mas contai baixinho

!

Passai, ó vagas... mas passai de manso!

Não perturbeis-lhe o plácido remanso,

Vozes do ar! emanações do rio !

— Maria, falia! — Que acordar sombrio,

Murmura a triste com um sorriso louco,

— No Paraiso eu descansava um pouco...

Tu me fizeste despertar na vida...

— Porque não me deixaste assim pendida

Morrer co'a fronte occulta no teu peito ?

Lembrei-me os sonhos do materno leito

Nesse momento divinal... Qu'importay...

Toda esperança para mim 'stá morta...

Sou flor manchada por cruel serpente,..

Só de encontro nas rochas pôde a enchente

I)aYar-me as nódoas, m'esfolhando a vida.

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A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO 4»

Deixa-me ! deixa-me a vagar perdida...

Tu! — parte! volve para os lares teus.

Nada perguntes... é um segredo horrível !...

Eu te amo ainda... mas agora — adeus !—

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ADEUS

Adeus — Ai! criança ingrata!

Pois tu me disseste — adeus?

Loucura ! melhor seria

Separar a terra e os céos.

— Adeus ! — palavra sombria'.

De uma alma gelada e fria

És a derradeira flor.

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46 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

— Adeus! — miséria! mentira

De um seio, que não suspira,

De um coração sem amor.

Ai, senhor! A rola agreste

Morre se o par lhe faltou.

O raio que abraza o cedro

A parasita abrazou.

O astro namora o orvalho :

— Um é a estrella do galho,

— Outro o orvalho da amplidão.

Mas, á luz do sol nascente,

Morre a estrella — no poente!

O orvalho — morre no chão

!

Nunca as neblinas do valle

Souberam dizer-se — adeus

Se unidas partem da terra,

Perdem-se unidas nos céos.

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A CACHOEIBA DE PAULO AFFONSO 47

A onda expira na plaga,

Porém vem logo outra vaga

P'ra morrer da mesma dor...

— Adeus! — palavra sombria!

Não digas — aaeus — Maria

!

Ou não me falles de amor.

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iS^^&^^Ê^-^

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MUDO E QUEDO

E calado ficou... Do pranto as bagasPelo moreno rosto deslisaram,

Qual da b'raúna, que o machado fere»

Lagrimas saltam de um sabor amargo.

Mudos, quedos os dous neste momentoMergulhavam no dédalo da angustia,

No labyrintho escuro da desgraça...

Labyrintho, sem luz, sem ar, sem fio .-

fttf^IBi^

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50. A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO

Que dor, que drama torvo de agonias

Não vai naquellas almas !... Dòr sombria

De ver quebrado aquelle amor tão santo,

De lembrar que o passado está passado...

Que a esperança morreu, que surge a morte !.

Tanta illusão !... tanta caricia meiga

!

Tanto castello de ventura feitow

A beira do riacho, ou na campanha !...

Tanto êxtase innocente de amorosos!...

Tanto beijo na porta da choupana,

Quando a lua invejosa no infinito

Com uma benção de luz sagrava os noivos !..,

Não mais ! não mais ! O raio quando esgalha

O ipê secular, atira ao longe

Flores, que ha pouco se beijavam n'hastea,

Que unidas nascem, juntas viver pensam,

E que jamais na terra hão de encontrar-se.

Passou-se muito tempo... Rio abaixo

A canoa corria ao tom das vagas.

De repente elle ergueu-se hirto, severo,

— O olhar em fogo, o riso convulsivo—Em golfadas lançando a voz do peito '...

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 51

Maria! diz-me tudo.. . Falia ! falia

Emquanto eu posso ouvir... Criança, escuta !

Não vês o rio ?... ó negro !... é um leito fundo..

A correnteza estrepitando arrasta

Uma palmeira, quanto mais um homem !...

Pois bem! Do seio túrgido do abysmo

Ha de romper a maldição do morto;

Depois o meu cadáver, negro, livido,

Irá seguindo a esteira da canoa

Pedir-teinda que falles, desgraçada,

Que ao morto digas o que ao vivo occultas!...

Era tremenda aquella dôr selvagem,

Que rebentava emfim, partindo os diques

Na fúria desmedida....

Em meio ás ondas

ia Lucas rolar..

Um grito fraco,

Uma tremula mão susteve o escravo...

E a pallida criança, desvairada,

Aos pés cahiu-lhe a desfazer-se em pranto.

fNIVEJ^SITY OF UmWIIBRARV

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5S A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

EUa encostou- se ao peito do selvagem

— Como a violeta, as faces escondendo

Sob a chuva nocturna dos cabellos !—

Lenta e sombria após contou desfarte

A treda historia desse tredo crime I...

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NA FONTE

— Era hoje ao meio dia.

Nem uma briza maciaPela savana bravia

Arrufava oshervaçaeí...

Um sol de fogo abrazava

;

Tudo a sombra procurava

;

Só a cigarra cantava

No tronco dos coqueiraes.

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54 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

II

Eu cobri-me da mantilha,

Na cabeça puz a bilha,

Tomei do deserto a trilha,

Que lá na fonte vai dar.

Cansada cheguei na matta

:

Ali na sombra, a cascata

As alvas tranças desata

Como úa moça a brincar.

[II

Era tão densa a espessura!

Corria a briza tão pura

!

Reinava tanta frescura,

Que eu quiz me banhar ali.

Olhei em roda... Era quedo

O mattc, o campo, o rochedo.

Só nas galhas do arvoredo

Saltava alegre o sagui.

IV

Junto ás aguas crystalinas

Despi-me louca, traquinas,

E as roupas alvas e tinas

Atii-ei sobre os cipós.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 55

Depois mirei-me innocente,

E ri vaidosa... e contente...

Mas voltei-me de repente...

Como que ouvira uma voz

!

Quem foi que passou ligeiro,

Mexendo ali no ingazeiro,

E se embrenhou no balseiro,

Rachando as folhas do chão ?...

Quem foi ? — Da matta sombria

Uma vermelha cotia

Saltou timida e bravia,

Em procura do sertão.

VI

Chamei-me então de criança

;

A meus pés a onda mansa

Por entre os juncos s'entranQa

Como uma cobra a fugir !

Mergulho o pé docemente;

Com o frio fujo á corrente...

De um salto após de repente

Fui dentro d'agua cahir.

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56 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

VIÍ

Quando o sol queima as estradas,

E nas várzeas abrazadas

Do vento as quentes lufadas

Erguem novelos de pó;

Como é doce em meio ás cannas,

Sob um tecto de lianas,

Das ondas nas espadanas

Banhar-se despida e só f...

VIII

Rugitavam os palmares...

Em torno dos nenuphares

Zumbiam pejando os ares

Mil insectos de rubim...

Eu naquelle leito brando

Rolava alegre cantando...

Súbito um ramo estalando

Salta ura homem junto a mim 1—

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NOS CAMPOS

Fugi desvairada

!

Na mouta iiiírincada,

Rasgando uma estrada,

Fugaz me embrenhei.

Apenas vestindo

Meus negros cabellos,

E os seios cobrindo

Com os trémulos dedos,

Ligeira voei

!

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68 A CACHOEIRA DB PAULO AFFONSO

Saltei as torrentes.

Trepei dos rochedos

Aos cimos ardentes.

Nos Ínvios caminhos,

Cobertos de espinhos,

Meus passos mesquinhos

Com sangue marquei

!

Avante ! corramos

!

Corramos ainda!...

Da selva nos ramos

A sombra é infinda.

A matta possante

Ao filho arquejante

Não nega um abrigo ,.

Corramos ainda

!

Corramos ! avante

!

Debalde ! a floresta

— Madrasta impiedosa

A pobre chorosa

Não quiz abrigar

!

Pois bem ! Ao deserto

!

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFOlTiO

De novo é loucura

!

Seguindo meus traços

Escuto seus passos

Mais perto ! mais perto

!

Já queima-me os hombros

Seu hálito ardente.

Já vejo-lhe a sombra

Na húmida alfombra...

Qual negra serpente,

Que vai de repente

Na presa saltar!...

Na douda

Corrida,

Vencida,

Perdida,

Quem me ha de salvart

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NO MONTE

Parei... Volvi em torno os olhos assombrados...

Ninguém ! A solidão pejava os descampados 1...

Restava inda um segundo... um só p'ra me salvar;

Então reuni as forças, ao cóo ergui o olhar...

E do peito arranquei um pavoroso grito,

Que foi bater em cheio ás portas do infinito

!

Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte emmonte,

Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte f . .

Depois a solidão ainda mais calada

Na mortalha envolveu a serra destampada

!

4

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62 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Ai ! que pôde fazer a rôla triste

Se o gavião nas garras a espedaça?

Ai! que faz o cabrito no deserto,

Quando a giboia no potente aperto

Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

Fazem como eu... Resistem, batem, lutam

E finalmente expiram de tortura...

Ou, se escapam trementes, arquejantes,

Vão, lambendo as feridas gottejantes,

Morrer á sombra da floresta escura!

E agora está concluída

Minha historia desgraçada.

Quando cahi — era viigem,

Quando ergui-me — deshonrada

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SANGUE DE AFRICANO

Aqui sombrio, fero, delirante,

Lucas ergueu-se como o tigre bravo...

Era a estatua terrivel da vingança...

O selvagem surgiu... sumiu- se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!

Do olhar sangrentos raios lhe resaltam,

Qual das janellas de um palácio em chammas

As labaredas, irrompendo, saltam.

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«4 A CACHOEIRA DE PAULO AFFCNÇO

Com O gesto bravo, sacudido, fero,

A dextra ameaçando a immensidade...

Era um bronze de Achilles furioso

No punho concentrando a tempestade ?

No peito arcando o coração sacode

O sangue que da raça não desmente,

Sangue queimado pelo sol da Lybia,

Que ora referve no Equador ardente.

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AMANTE

- Basta, criança! Não soluces tanto..

Enxuga os olhos, meu amor, enxuga

!

Que culpa tem a clicia descabida

Se abelha envenenada o mel lhe suga?

Basta! Esta faca já contou mil gottas

De lagrimas de dor nos teus olhares.

Sorri, Maria ? Ella jurou pagar-t'as

No sangue delle em gottas aos milhares.

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66 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Por que volves os olhos desvairados?

Por que tremes assim, frágil criança?

Esfaima é como o braço, o braço é ferro,

E o ferro sabe o trilho da vingança.

Se a justiça da terra te abandona,

Se a justiça do céo de ti se esquece,

A. justiça do escravo e^tá na força...

E quem tem um punhal nada carece!.

Vamos! Acaba a historia... Lança a presa.

Não vês meu coração, que sente fome?

Amanhã chorarás ; mas de alegria !

Hoje ó preciso me dizer — seu nome !—

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ANJO

— Ai! que vale a vingança, pobre amigo.

Se na vingança a honra não se lava?...

O sangue é rubro, a virgindade é branca,

O sangue augmenta da vergonha a bava.

Se nós fomos somente desgraçados,

Para que miseráveis nos fazermos ?

Deportados da terra assim perdemos

De além da campa as regiões sem termos.

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M A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Ai ! não manches no crime a tua vida,

Meu irmão, meu amigo, meu esposo 1...

Seria negro o amor de uma perdida

Nos braços a sorrir de um criminoso!... —

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DESESPERO

- Crime ! Pois será crime se a giboia

Morde silvando a planta, que a esmagnra?

Pois será crime se o jaguar nos dentes

Quebra do indio a pérfida taquara?

E nós que somos, pois ? Homens ? Loucura!

Familia, leis e Deus lhe coube em sorte.

A familia no lar, a lei no mundo...

E os anjos do Senhor depois da morte.

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A CACHOEIRA DE rAULO AFFONSO

Tres leitos, que succedem-se macios,

Onde rolam na santa ociosidade...

O pai o embala... a lei o acaricia...

O padre lhe abre a porta á eternidade.

Sim! Nós somos reptis... Qu'importa a espécie?

— A lesma é vil — o cascavel é bravo.

E vens fallar de crimes ao captivo ?

Então não sabes o que é ser escravo!...

Ser escravo — é nascer no alcouce escuro

Dos seios infamados da vendida...

Filho da perdição no berço impuro

Sem leite para a boca resequida...

É mais tarde, nas sombras do futuro,i

Não descobrir estrella foragida...

É ver — viajante morto de Ccnsaço —A terra — sem amor!... sem Deus — o espaço!

Ser escravo — é, dos homens repellido.

Ser também repellido pela fera;

Sendo dos dous irmãos pasto querido,

Que o tigre come e o homem dilacera...

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 71

— É do lodo no lodo sacudido

Ver que aqui ou além nada o espera,

Que em cada leito novo ha mancha nova...

No berço... após no toro... após na coval...

Crime! Quem te fallou, pobre Maria,

Desta palavra estúpida?... Descansa!

Foram elles talvez?!.. É zombaria...

Escarnecem de ti, pobre criança!

Pois não vês que morremos todo dia

Debaixo do chicote, que não cansa?

Emquanto do assassino a fronte calma

Não revela um remorso de sua alma?

Não 1 Tudo isso é mentira ! O que ó verdade

E que os infames tudo me roubaram...

Esperança, trabalho, liberdade

Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.

Quizeram mais... Fatal voracidade!

Nos dentes meu amor espedaçaram...

Maria ! Ultima estrella de minh'alma

!

O que é feito de ti, virgem sem palma

.

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72 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Pomba — em teu ninho as serpes te morderam.

Folha — rolaste no paul sombrio.

Palmeira — as ventanias te romperam.

Corça— afogaram-te as caudaes do rio.

Pobre flor— no teu cálice beberam,

Deixando-o depois triste e vasio...

— E tu, irmã! e mãi! e amante minha!

Queres que eu guarde a faca na bainha!

O' minha mãi! ó martyr africana,

Que morreste de dôr no captiveiro

!

Ai! sem quebrar aquella jura insana,

Que jurei no teu leito derradeiro,

No sangue desta raça impia, tyrana

Teu filho vai vingar um povo inteiro!...

Vamos, Maria! Cumpra- se o destino...

Dize! dize-me o nome do assa.ssino !... —

— Virgem das Dores

Vem dar-me alento,

Neste momento

De agro soíTrer I

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 7S

Para occultar-lhe

Busquei a morte...

Mas vence a sorte,

Deve assim ser.

Pois que seja ! Debalde pedi-tt;,

Ai! debalde a teus pés me rojei...

Porém antes escuta esta historia.

Depois delia... o seu nome direi I

r. A-

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HISTORIA DE UM CRIME

Fazem hoje muitos annos

Que de uma escura senzala

Na estreita e lodosa sala

Arqueja 7a úa mulher.

Lá fora por entre as urzes

O vendaval s'estorcia...

E aquella triste agonia

Vinha mais triste fazer.

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76 A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO

A pobre soífria muito.

Do peito cansado, exangue,

A's vezes rompia o sangue

E lhe inundava os lençóes.

Então, como quem se agarra

As ultimas esperanças,

Duas pávidas crianças

Ella olhava... e ria após.

Que olhar ! que olhar tão extenso !

Que olhar tão triste e profundo l

Vinha já de um outro mundo,

Vinha talvez lá do ceo.

Era o raio derradeiro,

Que a lua, quando se apaga,

Manda por cima da vaga

Da espuma por entre o vóo.

Ainda me lembro agora

Daquella noite sombria,

Em que úa mulher morria

Sem rezas, sem oração !...

Por padre — duas crianças...

E apenas por sentinella

Do Christo a face amarella

No meio da escuridão.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO H

Ás vezes naquella fronte

Como que a morte pousava

E da agonia aljofrava

O derradeiro suor...

Depois acordava a martyr,

Como quem tem um segredo...

Ouvia em torno com medo,

Com susto olhava em redor.

Emíim, quando noite velha

Pesava sobre a mansarda,

E somente o cão de guarda

Ladrava aos ermos sem fim,

EUa nos braços sangrentos

As crianças apertando,

N'um tom meigo, triste e brando

Poz-se a faliar assim :

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ULTIMO ABRAÇO

— Filho, adeus ! Já sinto a mor e,

Que me esfria o coração.

Vem cá... dá-me a tua mão...

Bem vês que nem mesmo tn

Podes dar-lhe novo alento L.,

Filho, é o ultimo momento...

A morte — a separação !

Ao desamparo, sem ninho,

Ficas, pobre passarinho,

Neste deserto profundo,

Pequeno, captivoenú'....

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80 A CACHOEIRA DE PAULO AEFONSO

Que sina, meu Deus ! que sina

Foi a minha neste mundo !

Presa ao céo — pelo de ejo,

Presa á terra — pelo amor !...

Que importa ! é tua vontade ?

Pois seja feita, Senhor!

Pequei !.,. foi grande o meu crime,

Mas é maior o castigo...

Ai! não bastava a amarguraDas noites ao desabrigo

;

De espedaçarem-me as carnes

O tronco, o açoute, a tortura,

De tudo quanto soífri.

Eram precisas mais dôres,

Inda maior sacrifício...

Filho ! bem vês meu supplicio..

Vão separar-me de ti

!

Chega-te perto... mais perto;

Nas trevas procura ver-te

Meu olhar, que treme incerto.

Perturbado, vacilante...

Deixa em meus braços prender-te

P'ra não morrer neste instante;

Inda tenho que fazer -te

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A CACHOEIKA DE PAULO AFFONSO 81

Uma triste confissão...

Vou revelar-te um segredo

Tão negro, que tenho medo

De não ter o teu perdão!...

Mas não !

Quando um padre nos perdoa,

Quando Deus tem piedade,

De um filho no coração

Uma mâi não bate á tôa.

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MÂI PENITENTE

Ouve-me, pois!... Eu fui uma perdida

;

Foi este o meu destino, a minha sorte...

Por esse crime é que hoje perco a vida,

Mas delle em breve ha de salvar-me a mortel

E minh'alma ; bem vês, que não se irrita,

Antes bemdiz estes mandões ferozes.

Eu seria talvez por ti maldita,

Filho ! sem o baptismo dos algozes!

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84 A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO

Porque eu pequei., e do peccado escuro

Tu foste o fructo cândido innocente,

— Borboleta, que sahe do lodo impuro...

— Rosa, que sàhe de — pútrida semente

!

Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes

— Criei um ente para a dôr e a fome

!

Do teu berço escrevi nos brancos vimes

O nome de bastardo — impuro nome.

Por isso agora tua mãi te implora

E a teus pés de joelhos se debruça.

Perdoa á triste — que de angustia chora,

Perdoa á martyr — que de dôr soluça!

Mas um gemido a meus ouvidos sôa...

Que pranto é este que em meu seio rola?

Meu Deus, é o pranto seu que me perdoa...

Filho, obrigada pela tua esmola

'

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o SEGREDO

Agora vou dizer-te porque morro

;

Mas has de jurar primeiro.

Que jamais tuas mãos innocentes

Ferirão meu algoz derradeiro. .

Meu filho, eu fui a victima

Da raiva e do ciúme.

Matou-me como um tigre carniceiro,

Bem vês.

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86 A CACHOEIRA DB PAULO AFFONSO

Uma branca mulher, que em si resume

Do tigre — a malvadez,

Do cascavel— o rancor!...

Deixo-te, pois...

— Um grito de vingança ?

Não, pobre criança!...

Um crime a perdoar... o que é melhor?...

Depois, teve razSo... Esta mulher

É tua e minha senhora!.

Lucas, silencio ! que por ella implora

Teu pai... e teu irmão!...

Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dôr !)

Teu pai— que é seu marido... e teu senhor !..

Juras não te vingar? — 0'mâi, eu juro

Por ti, pelos beijos teus

!

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 8J

Obrigada ! agora... agora

Oh! nada mais me demora..

Deus ! — recebe a peccadora

!

Filho ! recebe este adeus

!

Quando, rompendo as "barras do oriente,

A estrella da manhã mais desmaiava.

E o vento da floresta ao céo levava

O canto jovial do bem-te-vi

;

Na casinha de palha uma criança,

Da defunta abraçando o corpo frio,

Murmurava chorando em desvario :

— Eu não me vingo, ó mãi... juro por ti !... —

Maria calou-se... Na fronte do escravo

Suor de agonia gelado passou

;

Com riso convulso murmura : Que importa

Se o filho da escrava na campa jurou ? !...

Que tem o passado com o crime de agora?

Que tem a vingança, que tem com o perdão?

E como arrancando do craneo uma idóa

Na fronte corria-lhe a gélida mão. ..

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88 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

— Esquece o passado!... Que morra no :)lvido.

Ou antes relembra-o cruento, feroz !

Legenda de lodo, de horror e de crimes

E gritos de victima e risos de algoz

!

No frio da cova que jaz na esplanada,

— Vingança — murmuram os ossos dos meus

!

— Não ouves um canto, que passa nos ares ?

— Perdoa! — respondem as almas nos céos

!

São longos gemidos do seio materno

Lembrando essa noite de horror e traição I

É o flebil suspiro do vento, que outr'ora

Bebera nos lábios da morta o perdão!...

E descahiu profundo

Em longo meditar...

Após sombrio e fero

Viram-n'o murmurar

:

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 89

— Mãi 1 na região longínqua

Onde tua alma vive,

Sabes que eu nunca tive

Um pensamento vil.

Sabes que esta alma livre

Por ti curvou-se escrava;

E devorou a bava...

E tigre — foi reptil

!

Nem um tremor corrêra-me

A face fustigada

!

Beijei a mão armada

Com o ferro que a feriu...

Filho, de um pai misérrimo

Fui o fiel rafeiro...

Caim, irmão traiçoeiro

!

Feriste... e Abel sorriu.

De tanto horror o cumulo,

O' mãi, alma celeste,

Se perdoar quizeste,

Eu perdoei também.

Sanctificaste os miseros

;

Curvei-me reverente

A elles tão somente,

Somente... amais ninguém

!

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90 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Ninguém ! que a nada humilho -me

Na terra, nem no espaço!...

Pôde ferir meu braço...

— Lucas ! não pôde, não !

Misero ! a mão que abrira

De tua mãi a cova...

O golpe hoje renova !..

Mata-me !... É teu irmão !... —

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CREPÚSCULO SERTANEJO

A tarde morria ! Nas aguas barrentas

As sombras das margens deitavam-se longas ;

Na esguia atalaia das arvores seccas

Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria ! Dos ramos, das lascas,

Das pedras, doliclien, das heras, dos cardos,

As trevas rasteiras com o ventre por terra

Sahiam, quaes negros, cruéis leopardos.

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92 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

A tarde morria ! Mais funda nas aguasLavava-se a galha do escuro ingazeiro..

Ao fresco arrepio dos ventos cortantes

Em musico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante I

Talvez um silencio !... Talvez uma orchestra...

Da folha, do cálix, das azas, do insecto...

Do átomo á estrella... do verme — á floresta !..

As garças mettiam o bico vermelhoPor baixo das azas — da briza ao açoite

;

E a terra na vaga de azul do infinito

Cobria a cabeça co'as pennas da noite

!

Somente por vezes, dos jungles das bordas

Dos golfos enormes daquella paragem,

Erguia a cabeça sorpreso, inquieto,

Coberto de limos — um touro selvagem.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 93

Então as marrecas, era torno boiando,

O vôo encurvavam medrosas, á tôa...

O timido bando pedindo outras praias

Passava gritando por sobre a canoa !. ..

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o BANDOLIM DA DESGRAÇA

Quando de amor a Americana douda

A moda tange na febril viola,

E a mão febrenta sobre a corda fina

Nervosa, ardente, sacudida rola,

A guzla geme, s'estorcendo em anciãs.

Rompem gemidos do instrumento em pranto..

Choro indizivel... comprimir de peitos...

Queixas, soluços... desvairado canto!

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96 A CACHOEIRA DE PAULO AFF0N30

E mais dorida a melodia arqueja !

E mais nervosa corre a mão nas cordas f...

Ai ! tem piedade das crianças louras,

Que soluçando no instrumento acordas!...

— Ai ! tem piedade dos meus seios trémulos.

Diz estalando o bandolim queixoso.

E a mão palpita-lhe, apertando as fibras...

E fere, e fere em dedilhar nervoso !...

Sobre o regaço da mulher trigueira

Douda, cruel, a execução delira

!

Então — co'as unhas côr de rosa, a moça,

Quebrando as cordas, o instrumento atira!...

Assim, desgraça, qunndo tu,maldicta,

As cordas d'alma delirante vibras...

Como os teus dedos espedaçam rijos

Uma por uma do infeliz as fibras 1

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A CACHOEIRA DE PAtJLO AFFONSO 97

— Basta — murmura esse instrumento vivo.

— Basta — murmura o coração rangendo.

E tu, no entanto, n'um rasgar de artérias,

Feres lasciva em dedilhar tremendo.

Crença, esperança, mocidade e gloria,

Aos teus harpejos — gemebundas morrem

!

Resta uma corda... — a dos amores puros...

E mais ardentes os teus dedos correm i...

E quando farta a cortezã cansada

A pobre guzla no tapete atira,

Que resta?... — úa alma, que não tem mais vidai

Olhos sem pranto ! desmontada lyra

!

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4^-

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CANOA FANTÁSTICA

Pelas sombras temerosas

Onde vai esta canoa?

Vai tripolada ou perdida?

Vai ao certo ou vai á tôa ?

Semelha um tronco gigante

De palmeira, que s'escôa...

No dorso da correnteza,

Como bóia esta canoa!...

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100 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Mas não branqueja-lhe a velai

N'agua o remo não resôa!

Serão fantasmas que descem

Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio,

Gelado, immovel na proa?

Dir-se-ia o génio das sombras

Do inferno sobre a canoa !...

Foi visão ? Pobre criança!

Á luz, que dos astros côa,

É teu, Maria, o cadáver,

Que desce nesta canoa ?

Cabida, pallida, branca I...

Não ha quem delia se dôa?í.

Vão-lhe os cabellos a rastos

Pela esteira da canoa/...

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 101

E as flores róseas dos golfos,

— Pobres flores da logôa,

Enrolam-se em seus cabellos

E vão seguindo a canoa I...

e.

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o SÃO FRANCISCO

Longe, bem longe dos can^fcões bravios,

Abrindo em alas os barrancos fundos

;

Dourando o colo aos perennaes estios,

Que o sol atira nos modernos mundos

;

Por entre a grita dos feraes gentios,

Que acampam sob os palmeiraes profundos

;

.Do São Francisco a soberana vaga

Léguas e léguas triumphante alagai

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i

í04 A CACHOEIBA DE PAULO AFFONSO

— ^

i

Ante-manhã, &ob o sendal da bruma,

Elle vagia na vertente ainda.

— Lympha amorosa — co'a nitente espuma

Orlava o seio da Mineira linda;

Ao meio-dia, quando o solo fuma

Ao bafo morto de uma calma infinda,

Viram-no aos beijos delamber demente

As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo

O deleite da indígena lasciva...

Vem — â busca talvez de desafogo

Bater á porta da Bahiana altiva.

Nas verdes cannas o gemente rogo

Ouve-lhe á tarde a tabarôa esquiva...

E talvez por magia... á luz da lua

MoUe a criança na caudal fluctua.

Rio soberbo ! tuas aguas turvas

Por isso descem lentas, peregrmas...

Adormeces ao pé das palmas curvas

Ao musico chorar das casuarinas !

Os poldros soltos — retezando as curvas,

Ao galope agitando as longas crinas.

Rasgam alegres — relinchando aos ventos

De tua vaga os turbilhões barrentos.

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 106

E tu desces, 6 Nilo brazileiro,

A.S largas ypoeiras alagando,

E das aves o côro alviçareiro

Vai nas balsas teu hymno modilhando !

Como pontes aéreas — do coqueiro

Os cipós escarlates se atirando,

De grinaldas em flor tecendo a arcada

São arcos triumpbaes de tua estrada !..

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A CACHOEIRA

Mas súbito da noite no arrepio

Um mugido soturno rompe as trevas...

Titubeantes - no alveo do rio —Tremem as lapas dos titães coevas 1...

Que grito é este sepulchral, bravio,

Que espanta as sombras ululantes, sevas ?.

É o brado atroador da catadupa,

Do penhasco batendo na garupa!...

Quando no lodo fértil das paragens

Onde o Paraguassú rola profundo,

O vermelho novilho nas pastagens

Come os caniços do torrão fecundo

;

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lOÔ A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

[nquieto elle aspira nas bafagens

Da negra suc'ruiuba o cheiro immundo...

Mas já tarde... silvando o monstro vôa...

E o novilho preado os ares troa I

Então doudo de dôr, sanie babando,

Com a serpente no dorso oarte o touro...

Aos bramidos os valles vao clamando,

Fogem as aves em sentido choro...

Mas súbito ella ás aguas o arrastando

Contrahe-se para o negro sorvedouro...

E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,

Quebra-o nas roscas donde jorra o sangije.

Assim dir-se-ia que a caudal gigante

— Larga sucuruiuba do infinito —Co'as escamas das ondas coruscante

Ferrara o negro touro de granito!...

Hórrido, insano, triste, lacerante,

Sobe do abysmo um pavoroso grito..,

E medonha a suar a rocha brava

As pontas negras na serpente crava

!

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A CACHOEIEA DE PAULO AFFONSO 109

Dilaxserado o rio espadanando

Chama as aguas da extrema do deserto. .

.

Atropela-se, empina, espuma o bando...

E em massa rúe no precipicio aberto...

Das grutas nas cavernas estourando

O coro dos trovões travam concerto...

E ao vel-o as águias tontas, eriçadas,

Cahem de horror no abysmo estateladas...

A cachoeira ! Paulo Affonso ! O abysmo I

A briga colossal dos elementos

!

As garras do Centauro em paroxismo

Raspando os flancos dos parceis sangrentos.

Reluctantes na dôr do cataclysmo

Os braços do gigante suarentos,

Aguentando a ranger (espanto ! assombro!)

O rio inteiro, que lhe cahe no hombro I

Grupo enorme do fero Laocoonte

Vira a Grécia acolá e a luta estranha f...

Do sacerdote o punho e a roxa fronte...

E as serpentes de Ténedos em sanha!...

f. A.

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110 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

Por hydra — um rio! Por augure — um monte

!

Por aras de Miiierva — uma montanha

!

E em torno ao pedestal laçados, tredos,

Como filhos chorando-lhe— os penedos.

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UM RAIO DE LUAR

Alta noite elle ergueu-se, hirto, solerane,

Pegou da mão da moça. Olhou-a fito...

Que fundo olhar

!

EUa estava gelada, como a garça

Que a tormenta ensopou longe do ninho

No longo mar.

Tomou-a no regaço... assim no mantoApanha a mãi a criancinha loura,

Tenra a dormir.

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il2 A CACHOEIRA DK PAULO AFFONSO

Apartou-lhe os cabellos sobre a testa

Pallida e fria... Era talvez a morte...

Mas a sorrir.

Pendeu-lhe os lábios. Como treme

No somno aza de pombo, assim tremia-lhe

O resonar.

E como o beija-flor dentro do ovo,

la-lhe o coração no niveo seio

A titilar.

Morta não era! Entanto um rir convulso

Contrahira as feições do nomem silente

— Riso fatal.

Dir-se-ia que antes a quizera rija,

Inteiriçada pela mão da noite

Hirta, glacial!

Um momento de bruços sobre o abysmo

EUe, embalando-a, sobre o rio negro

Mais s'inclinou.

Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,

E um riso á flor dos lábios da criança

Á flux boiou I

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A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 113

Qual O murzelo do penhasco á borda

Empina-se e cravando as ferraduras

Morde o escarcéo

;

Um calafrio percorreu-lhe os músculos.

O vulto recuou! .. A noite em meio

lanocóol

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DESPERTAR PARA MORRER

— Acorda!

— Quem me chama ?

— Escuta!

— Escuto...

— Nada ouviste ?

— Inda não... —— É porque o vento

Escasseou.

— OuQO agora... da noite na calada

Uma voz que resona cava e funda

E após cansou 1—

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116 A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

— Sabes que voz é esta ? —— Não f semelha

Do agonisante o derradeiro engasgo,

Rouco estertor... —E calados ficaram, mudos, quedos,

Mãos contrahidas, bocas sem alento... ^

Hora de horror !...

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LOUCURA DIVINA

— Sabes que voz é esta ? —EUa scismava!...

— Sabes, Maria ?—— É uma canção de amores.

Que além gemeu !—

— É o abysmo, criança !. . ,—

A moça rindo

Enlaçou-lhe o pescoço

:

^— Oh ! não ! não mintas,

Bem seique é o céo !—

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lis A CACHOEIRA DE PAULO AFFONBO

— Douda! douda ! é a voragem que nos chama !...

— Eu ouço a Liberdade !—— É a morte infame !

— Erraste. É a salvação !—

— Negro fantasma é quem me embala o esquife !

— Loucura ! É tua mãi... O esquife é um berço,

Que bóia n'amplidão !...--

— Não vês os pannos d'agua como alvejam

Nos penedos ?... Que gélido sudário

O rio nos talhou !—

— Veste-me o setim branco do noivado...

Roupas alvas de prata... alventes dobras...

Veste-me!... Eu aqui estou! —

— Já na proa espadana, salta a espuma... '—

— São as flores gentis da larangeira

Que o pego vem nos dar...

Oh ! névoa ! Eu amo teu sendal de gaze!..

Abram-se as ondas como virgens louras,

Para a esposa passar !...

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Á CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO 119

As estrellas palpitam ! — São as tochas l

Os rochedos murmuram ! — São os monges

!

Reza um órgão nos céos

!

Que incenso! — Os rolos que do abysmovoami

Que thuribulo enorme — Paulo Aífonso

!

Que sa«erdotel - Deus...—

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A BEIRA DO ABYSMO

K DO INFINITO

A celeste Africana, a virgem — Noite

Cobria as faces... Gotiaa gotta os astros

Cahiam-lhe das mãos no peito seu...

Um beijo infindo suspirou nos ares...

A canoa rolava !... Abriu-se a um tempo

O precipício !... e o céo !...

FIM

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MANUSCRIPTOS BE STENIO

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Ê preciso esperar cem annos.

H. Hirns.

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o SÉCULO

Do alto daqnellas pjramides qaa-

renta Mcuk» tm ccnieniplam |

(BOKAPARTK.)

O seclo é grande. No e&paço

Ha um drama de treva e luz

!

Gomo Christo — a liberdade

Sangra no poste da cruz.

Um corvo escuro, anegrado,

Obumbra o manto azulado,

Das azas d'aguia dos céos.

Arquejam peitos e frontes...

Nos lábios dos horizontes

Ha um riso de luz. É Deus.

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128 OS ESCRAVOS

Ás vezes quebra o silencio

Ronco estridulo, feroz.

Será o rugir das mattas,

Ou da plebe a immensa voz ?...

Treme a terra hirta e sombria..

São as vascas da agonia

Da liberdade no chãc ?..

.

Ou do povo o braço ousado

Que sobre montes calcado

Abala-os como um Titão ? !,..

Ante esse escuro problema

Ha muito irónico rir...

P'ra nós o vento da esp'rança

Traz o pólen do porvir.

E emquanto o scepticismo

Mergulha os olhos no abysmo,

Que a seus pés raivando tem,

Rasga o moço os nevoeiros,

P'rados morros altaneiros

Ver o sol que irrompe além

.

Toda noite— tem auroras,

Raios — toda a escuridão.

Moços, creiamos, não tarda

A aurora da redempção !

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 129

Gemer — é esperar um canto...

Chorar — aguardar que o pranto

Faça-se estreíla nos céos

!

O mundo é o nauta nas vagas...

Terá do oceano as plagas

Se existe justiça e Deus.

No emtanto inda ha muita noite

No mappa da creação !

Sangra o abutre— tyranno

Muito cadáver — nação !

Desce a Polónia esvahida,

Cataléptica, adormida,

A' tumba do Sobieski,

Inda em sonhos busca a espada...

— Os reis passam sem ver nada..

— O César olha... e sorri

!

Roma inda tem sobre o peito

O pesadelo dos reis !

A Grécia espera chorando

Canaris... Byron talvez'...

Napoleão amordaça

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Idtí Ob iiSCBAVOS

A boca da populaça

E olha Jersey com terror

;

Como o filho do Sorrento,

Que fita por um momentoO Vesúvio aterrador.

A Hungria é como um cadáver

Ao relento exposto e nú;

Nem sequer lhe abriga a sombra

Do foragido Kossú.

Aqui o México ardente,

Vasto filho independente

Da liberdade e do sol,

Jaz por terra... e lá soluça

Juarez, que se debruça

E diz-lhe : — « Espera o arrebol

!

O quadro é negro. Que os fracos

Recuem cheios de horror.

A nós, herdeiros dos Gracchos,

Traz a desgraça — valor!

Lutai ! Ha uma lei sublime

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MANUSCRIPTOS DE STBNIO 131

Que diz :— Á sombra do crime

Ha de a vingança marchar ! —Não ouvis do Norte um grito,

Que bate aos pés do infinito,

Que vai Franklin despertar ?

É o grito dos Cruzados

Que brada aos moços — De pé !

É o sol das liberdades

Que espera por Josué!

São bocas de mil escravos

Que transformaram-se em bravo»Ao cinzel da abolição.

É a voz dos libertadores :

Reptis — que saltam condores

Ao topetar n'amplidão !...

E vós, arcas do futuro,

Chrysalidas do porvir

!

Quando o vosso braço ousadoLegislações construir.

Levantai um templo novo,

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J32OS ESCRAVOS

Porém não que esmague o povo,

Mas lhe seja o pedestal

;

Que ao menino dê-se a — escola.

Ao veterano — uma esmola...

A todos — luz e fanal 1

Luz! sim! que a criança é uma ave

Cujo porvir tendes vós.

No sol — é uma águia arrojada,

Na sombra — um mocho feroz l

Libertai tribunas, prelos...

São fracos, mesquinhos elos,

Não calqueis o povo-rei

!

Que este mar d'almas e peitos,

Com as vagas de seus direitos,

Viráquebrar-vos a lei.

Qaebre-se o sceptro do papa,

Faça- se delle— uma cruz l

A purpura sirva ao povo

P'ra cobrir os hombros núsl

Que aos gritos do Niagara

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 133

— Sem escravos — Guanabara

Se eleve ao fulgor dos soes

!

Banhem-se em luz os prostíbulos !

E das lascas dos patíbulos

!

Erga-se a estatua aos heróes

!

Basta ! Eu sei que a mocidade

E o Moysés no Sinai :

Das mãos do Eterno recebe

As taboas da lei ! — Marcliai!

Quem cabe na lula com gloria,

Tomba nos braços da historia,

No coração do Brazil

!

Moços, do topo dos Andes,

Pyramides vastas, grandes.

Vos contemplam sec'los milJ

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A VISÃO DOS MORTOS

Nas horas tristes, qiie em neblinas densas

A terra envolta n'um sudário dorme,

E o vento geme na amplidão celeste

— Cupola immensa d'um sepulchro enorme,

Um grito passa despertando os ares.

Levanta as lousas mvisiveí mão;

Os mortos saltam, poeirentos, lividos,

Da lua pálida ao fatal clarão.

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136 OS ESCRAVOS

Do solo adusto do africano Sáhara

Surge um fantasma com soberbo passo,

— Presos os braços, laureada a fronte...

Louco poeta como fora o Tasso !—

Do sul... do norte... do oriente irrompera

Dorias, Biqueiras e Machado então;

Vem Pedro Ivo no cavallo negro

Da lua pálida ao fatal clarão.

O Tiradentes sobre o poste erguido

Lá se desata das cerúleas telas,

Pelos cabellos a cabeça erguendo,

Que rola sangue, que espadana estrellas!

E o grande Andrada, esse architecto ousail'.,

Que amassa um povo na robusta mão...

O vento agita do tribuno a toga,

Da lua pálida ao fatal clarão.

A estatua range... estremecendo move-se

O rei de bronze na deserta praça...

O povo grita : — Independência ou morte !—

Vendo soberbo o imperador que passa.

Duas coroas— seu cavallo pisa,

Mas— duas cartas elle traz na mão ?

Por guarda de honra tem — dous povos livres

Da lia pálida ao fatal clarão.

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MANfTSCRIPTOS DE STENIO 137

Então, no meio de um silencio lúgubre,

Solta este grito a legião da morte :

— Aonde a terra que talhámos livre ?

— Aonde o povo que fizemos forte ?

Novas mortalhas o presente inunda

No sangue escravo que nodôa o chão...

Anchietas, Gracchos, vós dormis na orgia

Da lua pálida ao fatal clarão.

Brutus renega a tribunicia toga,

O aposflo cosp^e no Evangelho Santo,

E o Christo Povo, no Calvário erguido.

Fita o futuro com sombrio espanto !

Nos ninhos d'aguias que nos restam? — Corvos,

Que vendo a pátria se estorcer no chão,

Passam, repassam como alaA''os crimes

Da lua pálida ao fatal clarão

Oh ! é preciso inda esperar cem annos

!

— Cem annos ! — brada a legião da morte,

E longe, aos echos nas quebradas tremulas,

Sacodeo grito, soluçando, o norte...

Sobre os corseis dos nevoeiros brandos

Pelo infinito a galopar lá vão...

Erguem-se as névoas como pó do espaço

Da lua pálida ao fatal clarão.

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VOZES D'AFRICA

Deus! 6 Deus! onde estás, que não respondes!

Em que mundo, em qu'estrella tu fescondes

Embuçado nos céos ?

Ha dous mil annos te mandei meu grito,

Que embalde desde então corre o infinito...

Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometheu, tu me amarraste um dia

Do deserto na rubra penedia,

Infinito fialé!...

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140 OS ESCRAVOS

Por abutre — me deste o sol ardente

!

E a terra de Suez — foi a corrente

Que me ligaste ao pé...

O cavallo estafado do beduíno

Sob a vergasta tomba resupino,

E morre no areal.

Minha garupa sangra, a dôr poreja,

Quando o chicote do simoun dardeja

O teu braço eternal.

Minhas irmãs são bellas, são ditosas...

Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas

Dos haréns do Sultão,

Ou no dorso dos brancos elephantes

Embala-se coberta de brilhantes

Nas plagas do Indostão.

Por tenda — tem os cimos do Hymalaia...

O Ganges amoroso beija a praia

Coberta de coraes...

A briza de Mysora o céo inflamma;

E ella dorme nos templos do deus Brahma,

Pagodes colossaes...

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 141

Europa — é sempre Europa, a gloriosa 1...

A mulher deslumbrante e caprichosa,

Rainha e cortezã.

Artista — corta o mármore de Garrara

;

Poetisa — tange os hymnos de Ferrara,

No glorioso afan ! . .

.

Sempre o laurel lhe cabe no litigio

;

Ora uma c'rôa, ora um barrete phrygio

Enflora-llie a cerviz,

E o Universo após ella — doudo amante —Segue captivo o passo delirante

Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste, abandonada

Em meio dos desertos esgarrada,

Perdida marcho em vão !

Se choro... bebe o pranto a arêa ardente!

Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus cleaiente,

Não descubras no chão !

E nem tenho uma sombra de floresta

Para cobrir-me, nem um templo resta

No solo abrazador...

Quando subo ás pyramides do Egypto,

Embalde aos quatro céos, chorando grito :

c Abriga-me, Senhor!... »

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142 OS ESCRAVOS

Como o propheta em cinza a fronte envolve,

Velo a cabeça no areal que volve

O siroco feroz...

Quando eu passo no Sáhara amortalhada,

Ai ! dizem : « Lá vai a Africa embuçada

No seu branco albornoz... »

Nem vêem que o deserto é meu sudário,

Que o silencio campêa solitário

Por sobre o peito meu.

Lá, no solo onde o cardo apenas medra.

Boceja a Sphynge colossal de pedra,

Fitando o morno céo.

De Thebas nas columnas derrocadas

As cegonhas espiam, debruçadas,

O horizonte sem fim...

Onde branqueja a caravana errante

E o camelo monótono, arquejante,

Que desce de Ephraim...

Não basta inda de dôr, ó Deus terrivel?!

È pois teu peito eterno, inexhaurivel

De vingança e rancor?

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 148

E O que é que fiz, Senhor ? ! que torvo crime

Eu commetti jamais, qu« assim me opprime

Teu gladio vingador?!

Foi depois do Diluvio .. Um viandante,

Negro, sombrio, pálido, arquejante.

Descia do Ararat...

E eu disse ao peregrino fulminado :

« Cham, serás meu esposo bem amado..

Serei tua Eloá... »

Desde este dia o vento da desgraça

Por meus cabellos, ululando, passa

O anathema cruel

;

As íribus erram do areal nas vagas,

E o nómada faminto corta as plagas

No rápido corsel.

Vi a sciencia desertar do Egypto.

Vi meu povo seguir — Judeu maldito

Trilho de perdição...

Depois vi minha prole desgraçada,

Pelas garras d'Europa — arrebatada,

Amestrado falcão I ..

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m os ESCEAVOS

Christo ! embalde morreste sobre um monte.

Teu sangue não lavou da minha fronte

A mancha original.

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos — alimária do universo...

Eu— pasto universal!...

Hoje em meu sangue a America se nutre :

— Condor, que transformára-se em abutre,

Ave da escravidão.

Ella juntou-se ás mais... irmã traidora!

Qual de José os vis irmãos, outr'ora,

Venderam seu irmão

!

Basta, Senhor! De teu potente braço

Rola atravez dos astros e do espaço

Perdão p'ra os crimes meus!

Ha dous mil annos — eu soluço um grito...

Escuta o brado meu lá no infinito.

Meu Deus! Senhor, meu DeusI...

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TRAGEDIA NO LAR

Na senzala húmida, estreita.

Brilha a chamma da candêa,

No sapé esgueira o vento

E a luz da fogueira atêa.

Junto ao fogo, uma africana,

Sentada, o filho embalando,

Vai lentamente cantando

Uma tyrana indolente.

P. A.

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U6 VS ESCEA\"Ofe

Repassada de afflicção.

E o menino ri contente...

Mas treme e grita gelado,

Se nas palhas do telhado

Ruge o vento do sertão.

Se o canto pára um momento,

Chora a criança imprudente. .^

Mas- continua a cantiga...

E ri sem ver o tormento

Daquelle amargo cantar.

Ai ! triste, que enxugas rindo

Os prantos que vão cahindo

Do fundo, materno olhar,

E nas mãosinhas brilhantes

Agitas como diamantes

Os prantos do seu penar...

E a voz como um soluço lacerante

Continua a cantar :

« Eu sou como a garça triste

« Que mora á beira do rio

;

o As orvalhadas da noite

« Me fazem tremer de frio.

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MANDSCEIPTOS DE STENIO IH

« Me fazem tremer de frio.

« Gomo os juncos da lagoa;

« Feliz da araponga errante

« Que é livre, que livre vôa.

» Que é livre, que livre vôa

« Para as bandas do seu ninho,

E nas braúnas á tarde

« Canta longe do caminho.

«

« Canta longe ão caminho

« Por onde o vaqueiro trilha;

« Se quer descansar as azas

« Tem a palmeira a baunilha.

« Tem a palmeira a baunilha,

« Tem o brejo a lavadeira,

« Tem as campinas e as flores

,

« Tem a relva a trepadeira.

« Tem a relva a trepadeira,

« Todas têm os seua amores,

« Eu não tenho mãi nem filhos,

« Nem irmão, nem lar, nem flórea. »'

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148 OS ESCRAVOS

A cantiga cessou... Vinha da estrada

A trote largo linda cavalhada

De estranho viajor.

A' porta da fazenda elles paravam,

Das mulas boleadas apeavam

E batiam á porta do senhor.

Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,

Sorrisos sensuaes, sinistro olhar,

Os bigodes retorcidos,

O cigarro a fumegar,

O rebenque prateado

Do pulso dependurado,

Largas chilenas luzidas,

Que vão tinindo no chão,

E as garruchas embebidas

No bordado cinturão.

A porta da fazenda foi aberta;

Entraram no salão.

Porque tremes, Diulher ? A noite é calma

Um bulicio remoto agita a palma

Do vasto coqueiral.

Tem pérolas o rio, a noite lumes,

A matta sombras, o sertão perfumes,

Murmúrio o bananal.

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MANUSCRIPTOS DE STENIO U9

Porque tremes mulher ? Que estranho crime,

Que remorso cruel assim te opprime

E te curva a cerviz ?

O que nas dobras do vestido occultas ?

E' um roubo talvez que ahi sepultas ?

É seu filho... Infeliz!...

Ser mãi é um crime, ter um filho é um roubo !

Amal-o uma loucura ! Alma, de todo

Para ti — não ha luz.

Tens a noite no corpo, a noite na alma,

Pedra que a humanidade pisa calma,

Christo que verga á cruz !

Na hyperbole do ousado cataclysma

Tjm dia Deus morreu... fuzila um prisma

Do Calvário ao Thabor 1

Viu-se então de Palmyra os pétreos ossos,

De Babel o cadáver de destroços

Mais lividos de horror.

Era o relampejar da liberdade

Nas nuvens do chorar da humanidade,

Ou sarça do Sinai,

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150 OS ESCRAVOS

Relâmpagos que ferem de desmaios..

Revoluções, vós delles sois os raios,

Escravos, esperai !...

Leitor, se não tens desprezo

De vir descer ás senzalas,

Trocar tapetes e salas

Por um alcouce cruel

;

Vem commigo, mas... cuidadu 1

Que o teu vestido bordado

Não fique no cimo manchado,

No chão do immundo bordel.

Náo venhas tu, que achas triste

Ás vezes a própria festa.

Tu, grande, que nunca ouviste

Senão gemidos da orchestra..

Porque despertar tu alma,

Em sedas adormecida,

Esta excrescência da vida

Que occultas com tanto esmero

E o coração tredo lodo.

Fezes d amphora doirada,

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MANDSCRIPTOS DE STB:NI0 151

Negra serpe, que enraivada

Morde a cauda, morde o dorso,

E sangra ás vezes piedade,

E sanara ás vezes remorso ?...

Não venham esses que negam

A esmola ao leproso, ao pobre.

A luva branca do nobre

Oh ! senhores, não mancheis...

Os pés lá pisam a lama.

Porém as frontes são puras ;

Mas vós nas faces impuras

Tendes lodo, e luz nos pés.

Vinde ver como rasgam-se as entranhas

De uma raça de novos Prometheus,

Ai '. vamos ver guilhotinadas almas

Da senzala nos vivos mausoléos.

« Escrava, dá-me teu filho !

Senhores, idel-o ver :

É forte, de uma raça bem provada,

Havemos tudo fazer. »

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152 OS ESCRAVOS

Assim dizia o fazendeiro, rindo,

E agitava o chicote...

A mãi que ouvia

ímmovel, pasma, douda, sem razão 1

Á virgem santa pedia

Com prantos por oração

;

E os olhos no ar erguia

Que a voz não podia, não.

« Dá-me teu filho ! » repetiu fremente

O senhor, de sobr'olho carregado.

— Impossivel!...

Que dizes, miserável ? !

— Perdão, senhor! perdão i meu filho dorme...

Inda ha pouco o embalei, pobre innocente.

Que nem sequer presente

Que ides

Sim, que o vou vender !

Vender ? ! . . . Vender meu filho ? !

Senhor, por piedade, não,..

Vós sois bom... antes do peito

Me arranqueis o coração !

Por piedade, matai-me 1 É impossivel

Que me roubem da vida o único bem

!

Apenas sabe rir... é tão pequí no !

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MANUSCRIPTOS DE STBNIO 165

Indanão sabe me chamar?,.. TambémSenhor, vós tendes filhos... quem não tem?

Se alguém quizesse os vender

Havíeis muito chorar,

Havieis muito gemer,

Dirieis a rir — Perdão ? !

Deixai meu filho... arrancai-me

Antes a alma e o coração I

Cala-te— miserável ! Meus senhores,

O escravo podeis ver...

E a mãi em pranto aos pés dos mercadores

Atirou-se a gemer.

— « Senhores ! basta a desgraça

« De não ter pátria nem lar,

« De ter honra e ser vendida,

« De ter alma e nunca amar !

« Deixai á noite que chora

o Que espere ao menos a aurora,

a Ao ramo secco uma flor;

« Deixai o pássaro ao ninho,

« Deixai á mãi o filhinho,

a Deixai á desgraça o amor.

a.

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164 OS ESCRAVOS

(c Meu filho é-me a sombra amiga

« Neste deserto cruel...

« Flor de innocencia e candura,

cc Favo de amor e de mel

!

« Seu riso é minha alvorada,

« Sua lagrima doirada

« Minha estrella, minha luz !

a É da vida o único brilho

« Meu filho ! é mais... é meu filho !

« Deixai-m'o em nome da Cruz !..

Nada porém commove homens de pedra,

Sepulchros onde é morto o coração

A criança do berço eil-os arrancam

Que os bracinhos estende e chora em vão !

Mudou-se a scena. Já vistes

Bramir na matta o jaguar,

E no furor desmedido

Saltar, raivando atrevido,

O ramo, o tronco estalar,

Morder os cães que o morderam . .

.

De victima feita algoz.

Em sangue e horror envolvido

Terrível, bravo, feroz?

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 155

Assim a escrava da crianga ao grito

Destemida saltou,

E a turba dos senhores aterrada

Ante ella recuou.

« Nem mais um passo, cobardes !

« Nem mais um passo ! ladrões

!

« Se os outros roubam as bolsas,

« Vós roubais os corações !.. «

Entram três negros possantes,

Brilham punhaes traiçoeiros...

Rolam por terra os primeiros

Da morte nas contorsões.

Um momento depois a cavalgada

Levava a trote largo pela estrada

á A criança a chorar.

Na fazenda o azorrague então se ouvia

!e aos golpes — uma doida respondia

]Com frio gargalhar!...

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o NAVIO NEGREIRO

TRAGEDIA NO MAR

I

'Stamos em pleno mar!... Doido no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após elle correm... cansam

Como turbas de infantes inquieta

!

'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas d'ouro...

0;mar em troca accende as ardentias,

— Constellação do liquido thesouro!...

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158 OS ESCRAVOS

'Stamos em pleno mar !... Dous infinitos

Ali se estreitam n'um abraço insano...

Azues, dourados, plácidos, sublimes !

Qual dos dous é o céo ? Qual o oceano ?

'Stamos em pleno mar... abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre á flor dos mares.

Como roçam na vaga as andorinhas !

Donde vem ? onde vai ? Das náos errantes

Quem sabe o rumo,se ó tão grande o espaço !

Neste Sahara os corseis o pó levantam,

Qalopam, voam, mas não deixam traço

!

Bem feliz quem ali pôde nesfhora

Sentir deste painel a magestade!...

Em baixo o mar... em cima o firmamento...

E no mar e no céo — a immensidade !

Oh 1 que doce harmonia traz-me a briza !

Que musica suave ao longe soa !

Meu Deus ! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando á tôa !

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MANUSCRIPTOS DE STBNIO 15*

Homens do mar' O' rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos

!

Crianças que a procella acalentara'

No berço destes pélagos profundos

!

Esperai !... Esperai !... Deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia;

Orchestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento que nas cordas assobia!...

Porque foges assim, barco ligeiro?

Porque foges do pávido poeta?

Oh ! quem me dera acompanhar a esteira

Que semelha no mar — doido cometa!

Albatroz! Albatroz ! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens^ntre as gazas.

Sacode as pennas, Leviathan do espaço I. .

Albatroz ! Albatroz ! dá-me essas azas!...

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160 OS ESCRAVOS

II

Desce do espaço immenso, ó águia do oceano

!

Desce mais... ainda mais... não pôde olhar humanoComo o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu ahi ?! Que quadro d'amarguras !

Que funéreo cantar!... Que tétricas figuras !...

Que scena infame e vil, meu Deus! meu Deus! Que[horror 1

III 7

Era um sonho dantesco! .. o tombadilho,

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar!...

Tinir de ferros, estalar de açoute...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dansar...

Negras mulheres, suspendendo ás tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mais :

Outras, moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas.

Em anciãs e magoas vãs

!

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MANUSCRIPTOS DE STENIO 161

E ri-se a orchestra irónica e estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doidas espiraes...

Se o velho arqueja... se no chão resvala,

Ouvem-se gritos, o chicote estala.

E voam mais e mais !.

Presa nos elos de uma só cadêa,

A multidão faminta cambalêa,

E chora e dansa ali

!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que de martyrios embrutece,

Cantando, geme e ri!

No emtanto o capitão manda a manobra,

E após, fitando o céo, que se desdobra

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros :

« Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dansar!... »

E ri-se a orchestra irónica, estridente '..

E da ronda fantástica a serpente

Faz doidas espiraes...

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163 OS ESCRAVOS

Qual n'um sonho dantesco, as sombras voam!.,.

Gritos, ais, maldições, preces reso-aml

E ri-se Satanaz

!

IV

Senhor Deus dos desgraçados ,^

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se é mentira... se é verdade

Tanto horror perante os céos? !

O' mar, porque não apagas

Com a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?

Astros ! noites! tempestades !

Rolai das immensidades !

Varrei os mares, tufãq !...

Que importa do nauta o berço.

Donde ó filho, qual seu lar?

Ama a cadencia do verso

Que lhe ensina o velho mar.

Cantai ! que a morte é divina!

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MANUSCRIPTOS I>E STENIO ^^

Resvala o brigue á bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

Ás vagas que deixa após

!

Do hespanhol as tjantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor

!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

— Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso

Junto ás lavas do volccão

!

O inglez — marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou,

(Porque a Inglaterra^ um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glorias,

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164 os ESCRAVOS

Lembrando orgulhoso historias

De Nelson e de Aboukir...

O francez — predestinado —Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir

!

Og marinheiros hellenos,

Que a vaga ionia creou,

Bellos piratas morenos

Do mar — que Ulysses cortou;

Homens — que Phydias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos — que Homero gemeu!...

Nautas de todas as plagas.

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do cóo!...

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós,

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são ? Se a estrella se cala,

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MANUSCEIPTOS DE STENIO 165

Se a vaga oppressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, — audaz!...

São os filhos do deserto

Onde a terra esposa a luz,

Onde vive em campo aberto

A tribu dos homens nús.

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão !...

Hontem simples, fortes, bravos.

Hoje miseros escravos

Sem ar, sem luz, sem razão !...

São mulheres desgraçadas.

Como Agar o foi também,

Que sedentas, alquebradas.

De longe .. bem longe vêm!

Trazendo, com tibios passos,

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Ififi 05 ESJC-ftAVOS

Filhos e algemas nos braços,

N'alma — lagrimas e fel...

Como Agar soffrendo tanto,

Que nem o leite do pranto

Tem que dar para IsmaeL

Lá... nas arêas infindas, ^^

Das palmeiras no paiz,

Nasceram — crianças lindas

,

Viveram — moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na caban.i

Scisma da noite nos véos...

Adeus, ó choça do monte,

Adeus, palmeiras da fonte,

Adeus, amores... adeus!...

Depois-, o areal extenso,

Depois... o oceano de pó :

Depois — no horizonte immenso

Desertos... desertos só!

E a fome, o cansaço, a sêde^

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MANUSCBlPTOo DE 3TENI0 16?

Al ! quanto infeliz que cede,

E cahe p^ra não mais s 'erguer,

Vaga um logar na cadêa,

Mas o chacal sobre a arêa

Acha um corpo que roer.

Hontem a — Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O somno dormido á tôa

Sob as tendas d'amplidão !

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, iramundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o somno sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar.

Hontem — plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cumlo de maldade.

Nem são livres p'ra morrer...

Prende-os a mesma corrente

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168 OS ESCKAVOS

Férrea, lúgubre serpente,

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dansa a lúgubre cohorte

Ao som do açoute... Irrisão !...

Senhor Deus dos desgraçados !

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se é mentira... se é verdade

Tanto horror perante os céos ? I.

O' mar, porque não apagas

Com a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão ?

Astros ! noites ! tempestades !

Rolai das immensidades

!

Varrei os mares, tufão !...

E existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia !...

E a deixa transformar- se nessa festa,

Em manto impuro de bacchante fria ! . .

.

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MANUSCBIPTOS DE STENIO 169

Meu Deus ! meu Deus ! mas que bandeira é esta.

Que imprudente na gávea tripudia?

Silencio, Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!...

Auri-verde pendão de minha terra,

Que a briza do Brazil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que da liberdade após a guerra

Foste hasteado dos heróes na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

IFatalidade atroz que a mente esmaga

Extingue nesta hora o brigue immundo

O trilho que Colombo abriu na vaga

Como um iris no pélago profundo !

Mas é infâmia demais!... Da etherea plaga

Levantai-voa, heróes do Novo Mundo !

Andrada ! arranca este pendão dos ares !

Colombo ! fecha a porta dos teus mares !

u

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ADEUS, MEU CANTOI

Adeus, meu canto! é a hora da partida...

O oceano do povo s'encapela.

Filho da tempestade, irmão do raio,

Lança teu grito ao vento da procella.

O inverno envolto em mantos de geada

Cresta a rosa de amor que além se erguera.

Ave de arribação, voa, annuncia

Da liberdade a santa primavera.

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172 OS ESOKAVOS

É preciso partir, aos horizontes

Mandar o grito errante da vedeta.

Ergue-te, ó luz ! estrella para o povo,

Para os tyr9.nos, — lúgubre cometa.

Meus, meu canto! na revolta praça

Ruge o clarim tremendo da batalha.

Águia — talvez as azas te espedacem,

Bandeira — talvez rasgue-te a metralha.

Mas não importa a ti, que no banquete

O manto sybarita não trajaste, —Que se os louros não tens na altiva fronte,

Também da orgia a c'rôa renegaste.

A ti que, herdeiro d'umaraça livre,

Tomaste o velho arnez e a cotad'armas,

E no ginete que escarvava os valles,

A corneta esperaste dos alarmas.

')

É tempo agora p*ra quem sonha a gloria

E a luta... e a luta! essa fatal fornalha,

Onde referve o bronze das estatuas,

Que a mão dos séculos no futuro talha...

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MANUSCKIPTO& DE STENIO 173

Parte, pois, solta livre aos quatro ventos

A alma cheia das crenças do poeta!...

Ergue- te, ó luz! estrella para o povo,

Para os tyranos — lúgubre cometa.

Ha muita virgem que ao patíbulo impuro

A mão do algoz arrasta pela trança;

Muita cabeça d'ancião curvada,

Muito riso afogado de criança.

Dirás á virgem : — Minha irmã, espera

;

Eu vejo ao longe a pomba do futuro;

Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo

Que atropela-te o passo mal seguro...

A cada berço levarás a crença,

A cada campa levarás o pranto !...

Nos berços nús, nas sepulturas razas,

— Irmão do pobre — viverás meu canto.

E pendido atravez de dous abysmos.

Com os pés na terra e a fronte no infinito,

Traze a benção de Deus ao captiveiro,

Levanta a Deus do captiveiro o grito

!

1».

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1X4 OS ESCRAVOS

il

Eu sei que ao longe, na praça,

Ferve a onda popular,

Que ás vezes ó pelourinho,

Mas poucas vezes — altar...

Que zomba do bardo attento,

Curvo aos murmúrios do vento

Nas florestas do existir.

Que baba, fel e ironia

Sobre o ovo da utopia,

Que guarda a ave— o porvir.

Eu sei que o ódio, o egoismo,

A hypocrisia, a ambição,

Almas escuras de grutas.

Onde não desce um clarão

;

Peitos surdos ás conquistas,

Olhos fechados ás vistas,

Vistas fechadas á luz;

Do poeta solitário

Lançam pedras ao Calvário,

Lançam blasphemias á cruz.

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MANUSCRIPTOS D:E STENIO 175

Eu sei que a raça impudente

Do scriba, do phariseu,

Que ao Christo eleva o patibulo,

A fogueira o Galileu,

È o fumo da chamma vasta,

Sombra— que o século — arrasta,

Negra, torcida, a seus pés :

Tronco enraigado no inferno,

Que se arquêa, escuro, eterno,

Das idades atravez.

E elles dizem reclinados

Nos festins de Balthazar :

— Que importuno é esse que canta

Lá no Euphrate a soluçar ?

Prende aos ramos do salgueiro

A lyra do captiveiro,

Propheta de maldição,

Ou, cingindo a augxista fronte

Com as rosas d'Anacreonte,

Canta o amor e a creação...

Sim ' cantar o campo, as selvas,

As tardes, a sombra, a luz

!

Soltai su'alma com o bando

Das borboletas azues,

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176 OS ESCEAVOS

Ouvir o vento que geme,

Sentir a folha que treme,

Como um seio que pulou,

Das mattas entre os desvios

Passar nos antros bravios

Por onde o jaguar passou;

É bello... e já quantas vezes

Não saudei a terra — o céo,

E o universo — biblia immensj^

Que Deus no espaço escreveu 'f. ,.

Que vezes nas cordilheiras.

Pelas selvas brazileiras

Eu lancei minha canção,

Escutando as ventanias,

Vagas, tristes prophecias.

Gemerem na escuridão ?!...

Já também amei as flores,

As mulheres, o arrebol,

E o sino que chora triste

Ao morno calor do sol

;

Ouvi saudoso a viola,

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MANUSCKIPTOS DE STENIO 177

Que o sertanejo consola

Junto á fogueira do lar;

Amei a linda serrana

Cantando a molle tyranna.

Pelas noites de luar!

Da infância o tempo fugindo.

Tudo mudou-se em redor,

Um dia passa em minh'alma

Das cidades o rumor...

Sôa a idéa, sôa o malho,

O cyclope do trabalho

Prepara o raio do sol —Tem o povo — mar violento—Por armas o pensamento,

A verdade — por pharoi l

E o homem, vaga que nasce

No oceano popular,

Tem que impellir os espiritos

Tem uma plaga a buscar.

Oh ! maldição ao poeta,

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178 OS E8.CRAV.OÍ5

Que foge, falso prophet3i,

Nos dias áo provação !

Que mistura o tosco iambo

Com o thyrio dythirambo

Nos poemas d.'aíílicQão I...

« Trabalhar ! » brada na sombra

A voz immensa — de D-eus!

« Braços, voltai-vos p'ra t^irra,

Homens, voltai-vos p'ra os céos '.

Poetas, sábios, selvagens,

Sois as santas equipagens

Da náo — civilisação.

Marinheiro — sobe aos mastros.

Piloto, estuda nos astros,

Gageiro, olha a cerração !»

Uivava a negra tormenta

Na enxárcia, nos mastaréos.

Uivavam nos tombadilhos

Gritos-insontes de réos.

Vi a equipagem medrosa

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MANUSCRIPTOS Tfm BTENIO 17»

Da morte á vaga horrorosa

Seu próprio irmão sacuíMr...

E bradei : « Meu canto, vôa,

Terra ao longe, terra á prôal...

Vejo a terra do porvir!... »

III

Companheiro tfa noIt« mal dormida,

Que a mocidade vela sonhadora,

Primeira folha d'arvore da vida^

Estrella que annuncia a luz da au.ora !

Da harpa do meu amor nota perdida,

Orvalho que do seio se evapora,

É tempo de partir... vôa, meu canto,

Que tantas vezes orvalhei de pranto I...

Tu foste a estrella Vésper que alumia

Aos pastores d'Arcadia nos fraguedos I

Ave — que no meu peito se aquecia,

Ao murmúrio talvez dos meus segredos...

Mas hoje... que sinistra ventania^

Muge nas seivas, ruge nos. rochedos,

Condor sem rumo, errante, que esvoaçai,

Deixo-te entregue ao vento da desgraça!

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180 OS E53CRAVOS

Quero-te assim ; na terra o teu fadário

É ser o irmão do escravo que trabalha,

É chorar junto á cruz do seu Cahario,

É bramir do senhor na bacchanalia...

ge — vivo — seguirás o itinerário.

Mas, se — morto — rolares na mortalha,

Terás, selvagem filho da floresta,

Nos raios e trovões hymnos de festa.

Quando a piedosa, errante caravana,

Se perde nos desertos, peregrina,

Buscando na cidade musulmana

Do sepulcro de Deus a vasta ruina,

Olha o sol que se esconde na savana,

Pensa em Jerusalém, sempre divina,

Morre feliz, deixando sobre a estrada

O marco milliario d'uma ossada.

E mesmo quando a turba horripilante,

Hypocrita, sem fé, bacchante impura,

Possa curvar-te a fronte de gigante,

Possa quebrar- te as malhas da armadura'

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MANOSCRIPTOS DE STÍ5NI0 l»l

Tu deixarás na liça o férreo guante,

Que ha de colher a geração futura...

Mas, não... crê no porvir, na mocidade,

Sol brilhante do céo da liberdade 1

Canta, filho do sol da zona ardente,

Estes serros soberbos, altanados !

Emboca a tuba lúgubre, estridente,

Em que aprendeste a rebramir teus brados I

Levanta — das orgias do presente,

Levanta — dos sepulchros do passado,Voz de ferro ! levanta as almas grandesDo sul ao norte... do oceano aos Andes f...

FIM DOS « MANUSCRIPTOS DE STENIO »

11

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NOTA

Lê-se no Dezeseis de Julho :

a. Depois de 14 léguas de viagem, desde a foz do rio

S.Francisco, chega-se a esta cachoeira, de que se contam tan-

tas grandezas fabulosas.

« Para bem descrevel-a, imaginai uma colossal figura de

homem sentado, com os joelhos e os braços levantados, e o

rio S. Francisco cahindo-lhe com toda sua força sobre as cos-

tas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços,

ou em qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavalleiro

sobre a cabeça.

<t Parece arrebentar debaixo dos pés, como a formosa cas-

cata de Tivoli junto àRoma. Um mugir surdo e continuado,

como os preparos para um terremoto, serve de acompanha-

mento á musica estrondosa de variados e diversos sons, pro-

duzidos pelos choques das aguas. Quer ellas venham correndo

volocissimas ou saltando por cima das cristas de montanhas;

quer indo em grandes massas de encontro a ellas, e delias

retrocedendo : cahindo em borbotão nos abysmos e delles se

erguendo em húmida poeira, quer torcendo-se nas vascas do

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184 KOTA

desespero, ou levantando-se em espumantes escarcéos;quer

estourando como uma bomba;quer chegando-se aos vai-vens,

e brandamente e com espadanas ou em flocos de escuma alvís-

sima como arminhos, — é um espectáculo assombroso e ad-

mirável.'« A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos,

fia 17 cachoeiras, que são verdadeiros degráos do alto throno

onde assentou-se o gigante de nome Paulo Affonso.

« Muitas grutas apresentam os rochedos deste logar, som-

orias, arejadas, arruadas de crystalinas arêas, banhadas de

frigidas lymphas.

« Sua Magestade o Imperador visitou esta cachoeira na ma-

nhã de 20 de Outubro de 1859. O presidente das Alagoas, EK.

Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a idéa de erigir ummonumento á visita imperial. »

íTranscripta do Diário da Bahia.)

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CARTA DE CASTRO ALVES

Ás SENHORAS BAHIANAS

Pedem-se donativos para uma aeciedade abolicionista.

Quem pede ?

Quem pede são homens, que vos dizem simplesmente :—

Para nossos irmãos

!

São escravos, que vos repetem com a monotonia da verdade

;

— Para nossos filhos

!

E a quem se pede?

Não é a vós, banqueiros ou millionarios, ricos ou poderosos

Não ! Ha um instincto e um pudor neste pedido.

O pudor diz— a esmola de uma moça não humilha.

O instincto diz — o coração de uma virgem não faz eco-

nomias.

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186 CAR7 A

Pede-Be a vób, senhoras ! a vós, donzellas ! a vós crianças I

A caridade pede a vós, que sois a caridade.

É que o nosso coração acostumou-se a encarnar a virtude

primeira do christianismo na fórm:i puris&ima da mulher —Charitas.

Symbolõ divino... esta íigura, cujos braços semelham duas

ramas pesadas de fructos, em cujo regaço as crianças aban-

donadas se entrelaçam como as aves de um só ninho... sob

cujo manto cobrem-se os nús-, e dormem os cansados... esta

figura benéfica — • é a synthcse de uma religião... é a deifica-

ção de uma classe !

Acolá está todo o espirito do christianismo, todo o futuro

da mulher nas sociedades modernas.

De século - em século os homens ganharam um palmo no

terreno da liberdade e do pensamento. As victorias da mulher

foram no terreno do amor.

O Christo disse aos apóstolos : — Ensinai a todas as gen-

tes ! — Mas disse ás mulheres : — Amai a todas as gentes !

O amor era uma coroa ; desde então a caridade foi um res-

plendor. Houve dilatação no circulo dos affectos.

A estatua da esposa grega tinha os pés sobre uma tartaruga

para lembrar-lhe a immobilidade do coração.

Teu universo é o — lar,

eo •

Vêde-lhe a antithese ! Um vulto ideal de moça traz nas san-

dálias o pó de todos os hospitaes para lembrar-lhe a universa-

lidade de seu coração. — A irmã de caridade tem por lar o

mundo inteiro.

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CARTA W.

— é que ofl antigos mal tinham soletrado neste livro myv-

tico, que se chama a virgem.

Para que fizeram, os deuzes a rosa lúbrica doa labio» ?

— Para o beijo, — diziam, ellesl Nós dizemos, — tazubem

para a prece

!

 mão alabastrina da musa saphicavai bem na lyra ebúrnea,

mas é divina levando uaa crucifixo á boca de um maribund»,

Achais formosos os cabellos da Vénus marinha, ainda rore-

jantes das pérolas do oceano ? !

Eu chamo de sublime á cabellei» loira da Magdalena,

quando enxuga os pés do Chriato.

— Depois... Quereis que vos diga a verdade? Vós tendes,

minhas senhoras, o direito e o dever de protestar econdemnar

nesta questão.

Porque sois as bellas filhas desta idade, que se illustrou poi

George Sand e Emilia Girardin, por M™ de Stael e Harriet

Stowe.

Ainda mais : porque sois filhas d'esta magnifica terra da

America — pátria das utopias, região creada para a realização

de todos 08 sonhos da libei-dade, — de toda extincção de pre-

conceitos, de toda conquista moral.

A terra que realizou a emancipação dos homens, ha de rea-

lizar a emancipação da mulher. A terra que fez o suffragio

universal, não tem direito de recusar o voto de metade da

America.

E este voto é o vosso.

É o voto dessas mais de famílias que aprenderam no amor

de seus filhos a ternura pelas crianças,.. ai7ida que negras.., Éo voto dessas virgens puríssimas que choram de ver soenaa

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188 CARTA

repugnantes da escravidfio turbando a poesia da família.

O' mais 1 O' virgens

!

Protestai em nome de Maria — Mater Creatoris !

Protestai em nome de — Maria a virgem — Virgo cas-

tissima

!

Houve um tempo em que a matrona de Sparta levava o

filho ao banquete do opprobrio e da miséria moral.

O ilota ébrio tinha a significação de distico espartano :

Enoja-te

!

Hoje a matrona leva o filho ao ergástulo da escravidão. —O escravo aviltado tem porém a significação de um verso

biblico :

Compadece-te I

•••

Nas horas sérias da humanidade, no berço ou no tumulo

das grandes cousas;quando uma raça expira, quando um povo

se ergue, quando um reino desaba, quando uma revolução sg

forja, um vulto eleva-se banhado nessa belleza mystica da

fraqueza feminil, e por cima do turbilhão das almas indecisas

passa a inspiração febrenta de Cassandra — a prophetisa de

Hypathia — a metaphysica ! — o punhal de Judith — a re-

gicida ! de Joanna d'Arc— a donzella ! ou a penna fulgurante

de Beecher — a aboUcionista !

E não terá chegado um desses momentos ?

Oh ! que sim !

As ondas hiantes do século já apagaram ao longo das duaa

Américas todas as instituições escravocratas.

O diluvio da abolição veiu lavar os continentes pari aa no-

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CARTA 189

vas gerações. Só em torno desta terra brazileira é que roem

as vagas a base do ultimo rochedo, que abriga as cousas que

hão de morrer.

Ha uma pagina assim no — Céo e Terra — de Byron

Ao clarão sinistro e lívido que tomou conta dos ares, os vultos

dos archanjos amorosos elevam-se do abysnio, carregando nas

azas refulgentes as noivas, que adoraram sobre a terra !. .

O' virgem ! O cataclysmo rebrama. Vamos ! Estendei essas

mãos alvíssimas ! Carregai para o céo dos livres estas crian-

cinhas agonisadas que vos chamam balbuciando !

e

— E depois, vós bem sabeis, senhoras ! A bondade é tam»

bem uma belleza.

E quereis que vos diga ? Eu penso que uma acção bonita

deixa sempre ura irradiamento no olhar, um relâmpago na

fronte. "C

Ha dias em que a formosura deslumbra... é quando o anjo

da guarda beijou contente a face da donzella.

Demais, o que é que vos pedem ?

Pouco e muito.

— Pouco, pelo que vos ha de custar... Porque, emfim, as

flores de um bordado nascem melhor sob vossas mãos ligeiras

do que os lilazes aos affagos da primavera... Ao vosso hálito

suavíssimo o veludo amoroso rebenta em lyrios e em borboletas

de seda... e o Dastidor estrella-se de missangas, como se tec©

de constellações uma noite luxuosa do Equador.

— Muito, pelo resultado que isto importa.

11 .

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190 CARTA

••o

— Imagino que estais só.

Acabastes de ler a ultima pagina de um livro querido, do

V' 680 escriptor predilecto, a Pata da gazela, talvez... e

f cais scismando... em que ? no heróe, no desfecho (que soi

eu ?) nessas visões seraphicas que povoam os corações das

virgens... Depois, como se a tristeza vã vos ficasse de matar

nesta cabeça espirituosa, sacudis a onda magnética dos cabel

los e deixais cahir entre perfumes a scisma que vos pesava

como um diadema... que fazer ?

Um desenho ? Uma aquarella ? Mas a palheta está guar-

d da? o álbum vos foi pedido por alguém. Emfim,é impossível.

Se ao menos fosseis tocar aquella musica tão beUa de

Gottschalk — Ojos criolos. que o maestro compoz adivinhan-

do 08 vossos olhos ?!.. Aias nestes dias de inverno o piano

está húmido e preguiçoso : demais, sois nervosa e as teclas

geladas produzem um arrepio irresistível.

Vamos, senhora, não ha remédio. Tirai de vossa cestinlia

de costura esses fios de seda ou de ouro. Sentai-vos ahi junto

dessa j mella por onde o céo vos mira sorrindo nessa limpidez

do azul. Trabalhai, criança... assim !

Meu Deus 1 como sois bella ! Sabeia ? Sois a parodia celeste

da Parca.

Tendes noa dedinhos côr de rosa o fio de uma vida... ma»

um fio de seda... uma vida de liberdade, tecida por vossa»

mãos angélicas, ó Génio de Caridade!

E agora eu vou concluir : mas antes deixai que vos lembra

nma historia.

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CARTA 191

Dizem que houve uma rainha, em cujo regaço as moedas

que levava aos pobres transformavam-se em flores.

DoDzella I Vós também fazeis milagres. Em vossas mfioB as

flores vão-se Iransformar em ouro para a remissão dos cap-

tivos.

S. Salvador, Abril da^71.

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GONZAGAou

A REVOLUÇÃO DE MINASDRAMA HISTÓRICO BRAZILEIRd

Precedido de uma caria de José de Alencar e de outra

de Machado de Assis

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o

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CARTA

DE JOSÉ DE ALENCAR A MACHADO DE ASSIS

Illm. Sr. Machado de Assis, Tijuca, 18 de Feve-reiro de 1868.

Recebi hontem a visita de um poeta.

O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muitobreve o ha de conhecer o Brazil. Bem entendido,fallo do Brazil que sente; do coração e não do resto.

O Sr. Castro Alves é hospede desta grande cidade,

de alguns dias apenas. Vai a S. Paulo concluir ocurso que encetou em Olinda.

Nasceu na Bahia, a pátria de tão bellos talentos

;

a Athenas brazileira que não cança de produzir esta-

distas, oradores, poetas e guerreiros.

Podia accrescentar que é filho de um medico illus-

tre. Mas para que? A genealogia dos poetas começacom o seu primeiro poema. E que pea-gaminhos va-lem estes sellados por Deus ?

O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta doDr. Fernandes da Cunha, um dos pontitices da tri-

buna brazileira. Digo pontifice, porque nos carac-

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196 CARTA

teres dessa tempera o talento é uma religião, a pa-lavra um sacerdócio.

Que jubilo para mim ! Receber Cicero que vinhaapresentar Horácio, a eloquência conduzindo pelaníião a poesia, uma gloria esplendida mostrando nohorizonte da pátria a irradiação de uma límpida au-rora!

Mas também quanto, nesse instante, deplorei

minha pobreza, que não permittia dar a tão caroshospedes régio agazallio. Carecia de ser Hugo ouLamartine, os poetas-oradores, para preparar essebanquete da intelligencia.

Se ao menos tivesse nesse momento junto de mima plêiade rica de jovens escriptores, á qual perten-cem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocayuva,Muzio, Joaquim Serra, Varella, Rozendo Moniz, e

tantos outros ! . .

.

Entre estes, porque não lembrarei o nome deLeonel de Alencar, a quem o destino fez ave de arri-

bação na terra natal? Em litteratura não ha suspei-ção; todos nós, que nascemos em seu regaço, nãosomos da mesma família?Mas a todos o vento da contrariedade os tem des-

folhado por ahi, como flores de uma breve prima-vera.

Um fez da penna espada para defender a pátria.

Alguns têm as azas crestadas pela indifferença;

outros, como douradas borboletas, presas da teia

d'aranha, se debatem contra a realidade de uma pro-

fissão que lhes tolhe o vôo.

Felizmente estava eu na Tijuca.

O senhor conhece esta montanha encantadora

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CASTA 197

A natureza a collocou a duas léguas da corte, comoum ninho para as almas cansadas de pousar nochão.Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em

aguas crystalinas, como o espirito na limpidezdeste céo azulRespira-se á, larga, não somente os ares finos

que vigoram o sopro da vida, porém aquelle hálitoceleste do Creador, que bafejou o mundo recem-nascido. Só nos ermos em que não cahiram aindaas fezes da civilisação, a terra conserva essa dirin-

dade do berço.Elevando-se a estas eminências, o homem appro-

7.ima-se de Deus. A Tijuca é um escabello entre opântano e a nuvem, entre a terra e o céo. O cora-ção que sobe por este genuflexório, para se prostraraos pós do Omnipotente, conta três degráos ; emcada um delles, uma contrição.

Na alto da Boa Vista, quando se descortina longe,serpejando pela várzea, a grande cidade reptil, ondeas paixões rastejam, a alma que se havia atro-phiado nesse foco de materialismo, sente-se homem.Em baixo era uma ambição ; em cima contemplação.Transposto esse primeiro estádio, além, para as

bandas da Gávea, ha um logar que chamam VistaChineza. Este nome lembra-lhe naturalmente umsonho oriental, pintado em papel de arroz. É umatela sublime, uma decoração magnifica deste inimi-

tável scenario fluminense. Dir-se-hia que Deus entre-

gou a algum de seus archanios o pincel de Apelles,

e mandou-lhe encher aquelle panno de horizonteEntão o homem sente-se religioso.

Finalmente, chega-se ao Pico da Tijuca, o ponteculminante da serra, que fica do lado opposto.D'ahi os olhos deslumbrados vêm a terra, comouma vasta ilha a submergir-se entre os dous ocea-

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198 CARTA

lios, O oceano do mar e o oceano do ether. Pareceque estes dous infinitos, o abysmo e o céo, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio dessasimmensidades, um átomo, mas um átomo rei detanta magnitude. Ahi o im.pJo é christão e adora oDeus verdadeiro.

Quando a alma desce destas alturas e volve ao póda civilisação , leva comsigo uns pensamentossublimes, que do mais baixo remontam á sua nais-

cença, pela mesma lei que faz subir ao nivel primi-tivo a agua derivada do topo da serra.

Nestas paragens não podia meu hospede soífrer

jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse a na-tureza que puzesse a mesa, e enchesse as ampborasdas cascatas de limpha mais deliciosa que o falerno

do velho HorácioA Tijuca esmerou se na hospitalidade. Ella sabia

que o joven escriptor vinha do norte, onde a natu-reza tropical se espaneja em lagos de luz diaphana,e, orvalhada de esplendores, abandona-se las<iiva

como uma odalisca ás caricias do poeta.

Então a natureza fluminense, que também, quan-do quer, tem daquellas impudencias celestes, fez-

se casta e vendou-se com as alvas roupagens dasnuvens. A chuva a borrifou de aljôfares ; as névoasdelgadas resvalavam pelas encostas como as fím-

brias da branca túnica roçagante de uma virgemchristã.

Foi assim, a sorrir entre os nitidos véos, com umrecato de donzella,que a Tijuca recebeu nosso poeta,

O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor ealguns poucos amigos, de uma antiguidade deminha vida; que eu outr'ora escrevera para o tbea-

tro. Avaliando sobre medida minha experiêncianeste ramo difficil da litteratura, desejou ler-me umdrama, primícia de seu talento.

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CAJITA 199

Essa producQão passou pelas provas publicas jáem scena competente para julgal-a. A Bahia ap-plaudiu com júbilos de mãi a ascensão da nova es-

trella de seu firmamento. Depois de tão brilhantemanifestação, duvidar de si, não é modéstia unica-mente, é respeito á santidade de sua missão depoeta.Gonzaga é o titulo do drama que lemos em breve»

horas. O assumpto, colhido na tentativa revolucio-

naria de Minas, grande manancial de poesia histó-

rica ainda tão pouco explorado, foi enriquecido peloautor com episódios de vivo interesse.

O Sr. Castro Alves é um discípulo de VictorHugo, na architectura do drama, como no colorido

da idéa. O poema pertence á mesma escola doideal ; o estylo tem os mesmos toçjues brilhantes.

Imitar Victor Hugo só é dado ás intelligencias deprimor. O Ticiano da litteraturapossue uma palhetaque em mão de colorista medíocre mal produz bor-rões. Os moldes ousados de sua phrase são comoos de Benevenuto Celiini; se o metal não for desuperior afinação, em vez de estatuas sabem pasti-

chios.

Não obstante, sob essa imitação de um modelosublime desponta no drama uma inspiração origi-

nal, que mais tarde ha de formar a individualidadelitteraria do autor. Palpita em sua obra o poderososeatimento da nacionalidade, essa alma da pátria,

que faz os grandes poetas, como os grandes ci-

dadãos.Não se admire de assimilar eu o cidadão e o

poeta, duas entidades que no espirito de muitosandam inteiramente desencontradas. O cidadãoé o poeta do direito e da justiça ; o poeta é o cida-dão do bello e da arte.

Ha no drama Gonzaga exuberância de poesia.

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200 CARTA

Mas deste defeito a culpa não foi do escriptor; foi

da idade. Que poeta aos vinte annos não tem essaprodigalidade soberba de sua imaginação, que se

derrama sobre a natureza, e a inunda ?

A mocidade é uma sublime impaciência. Diantedelia a vida se dilata, e parece-lhe que não tempara vivel-a mais que um instante. Põe os lábios

na taça da vida, cheia a transbordar de amor, depoesia, de gloria, e quizera estancal-a de umsorvo.A sobriedade vem com os annos ; é virtude do

talento viril. Mas, entrado na vida, o homem aprendea poupar sua alma. Um dia. quando o Sr. CastroAlves reler o Gonzaga, estou convencido que elle

ha de achar um drama esboçado, em cada person-nagem desse drama.Olhos severos talvez enxerguem na obra peque-

nos senões.Maria, achando em si forças para enganar o

governador em um transe de suprema angustia,parecerá a alguns menos amante, menos mulher,do que devera. A acção, dirigida uma ou outra vezpelo accidente material, antes do que pela revolu-ção intima do coração, não terá, na opinião dosrealistas, a naturalidade moderna.Mas são esses defeitos da obra, ou do espirito

em que elle se reflecte ? Muitas vezes já não sor-prendeu seu pensamento a fazer a critica de umanor, de uma estrella, de uma aurora? Se o deixasse,creia que elle se lançaria a corrigir o trabalho dosupremo artista. Não somos homens debalde : Deusnos deu uma alma, uma individualidade.

Depois da leitura de seu drama, o Sr. Castro Alvesrecitou-me algumas poesias. A cascata de PauloAffonso, As duas ilhas e A vissío dos mortos^ nãocedem as excellencias da lingua portugueza neste

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CAETA 201

género. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo dessemetro natural, dessa rima suave e opulenta.Nesta capital da civilisação brazileira, que o é

também da nossa indiíferença, pouco apreço tem overdadeiro mérito quando se apresenta modesta-mente. Comtudo, deixar que passasse por aqui igno-rado e despercebido ojoven poeta bahiano, fora maisque uma descortezia. Não lhe parece ?

Já um poeta o saudou pela imprensa;por('m não

basta a saudação; é preciso abrir-lhe o theatro, ojornalismo, a sociedade, para que a flor desse talentocheio de seiva se expanda ás auras da publicidade.Para Virgílio do joven Dante nesse invio cami-

nho da vida litteraria, lembrei-me do senhor. So-bram-lhe os titulos. Para apresentar ao publicofluminensejo poeta bahiano, é necessário não só ter

foro de cidade na imprensa da corte, como havernascido neste bello valle de Guanabara, que aindaespera seu cantor.Seu melhor titulo, porém, é outro. O senhor foi o

único de nossos modernos escriptores, que se dedi-

cou á cultura dessa difficil sciencia que se chamacritica. Uma porção do talento que recebeu da na-tureza, em vez de aproveital-o em creações próprias,não duvidou applical-o a formar o gosto e desen-volver a litteratura pátria.

Do senhor, pois, do primeiro critico brazileiro,

confio a brilhante vocação litteraria que se reveloucom tanto vigor.

J. DE Alencab.

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CARTA^

DE MACHADO DE ASSIS, EM RESPOSTAA JOSÉ DE ALENCAR

Rio de Janeiro, 29 de Fevereiro de 1868.

Exm. Sr. — É boa e grande fortuna conhecerum poeta • melhor e maior fortuna é recebel-o dasmãos de V. Ex., com uma carta que vale um diploma,com uma recommendação que ó uma sagração. Amusa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz

intróito na vida litteraria. Abre os olhos em plenoCapitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o applausode um mestre.Mas se isto me enthusiasma, outra cousa ha que

me commove e confunde, é a extrema confiança deV. Ex. nos meus préstimos htterarios, confiança

que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho paramim. De orgulho, repito, e tão inútil fora dissimularesta impressão, quão arrojado seria ver nas pala*vras de V. Ex. mais do que uma animação generosa.A tarefa da critica precisa destes parabéns ; ó tão

âL^dua de praticar, já pelos estudos que exige, já

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204 CARTA

pelas lutas que impõe, que a palavra eloquente deum chefe é muitas vezes necessária para reavivar asforças exhaustas e reerguer o animo abatido.Confesso francamente que, encetando os meus

«nsaios de critica, fui movido pela idéa de contri-buir com alguma cousa para a reforma do gostoque se ia perdendo e effectivamente se perde.Meus limitadissimos esforços não podiam impediro tremendo desastre. Como impedil-o, se, por in-fluencia irresistível, o mal vinha de fora, e se im-punha ao espirito litterario do paiz, ainda malformado e quasi sem consciência de si ? Era dif-

ficil plantar as leis do gosto, onde se havia esta-belecido uma sombra de litteratura, sem alentonem ideal, falseada e frivola, mal imitada e malcopiada. Nem os esforços dos que, como V. Ex.,sabem exprimir sentimentos e idéas na lingua quenob legaram os mestres clássicos, nem esses pude-ram oppor um dique á torrente invasora. Se a sa-bedoria popular não mente, a universalidade dadoença podia dar-nos alguma consolação, quandonão se antolha remédio ao mal.Se a magnitude da tarefa era de assombrar espí-

ritos mais robustos, outro risco havia; e a este jánão era a intelligencia que se expunha, era o carac-

ter. Comprehende V. Ex. que, onde a critica não ó

instituição formada e assentada, a analyse litte-

raria tem de lutar contra esse entranhado amorpaternal que faz dos nossos filhos as mais bellas

crianças do mundo. Não raro se originam ódios ondeera natural travarem-se aífectos. Desfiguram-se os

intentos da critica, attribue-se á inveja o que vemda imparcialidade ; chama-se antipathia o que ó

consciência. Fosse esse, poróm, o único obstáculo,

estou convencido que elle não pesaria no animo dequem põe acima do interesse pessoal o interesse

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OABTA 205

perpetuo da sociedade, porque a boa fama das mu-sas o ó também.Cansados de ouvir chamar bella á poesia, os

novos athenienses resolveram banii-a da republica.

O elemento poético é hoje um tropeço ao successode uma obra. Aposentaram a imagmação. As musas,que já estavam apeadas dos templos, foram tambémapeadas dos livros. A poesia dos sentidos veiu sen-tar-se no sanctuario, e assim generalisou-se umacrise funesta ás lettras. Que enorme Alpheu nãoseria preciso desviar do seu curso para limpar estepresepe de Augias ?

Eu nem sei que no Brazil, como fora delle, severosespíritos protestam com o trabalho e a lição contraesse estado de cousas ; tal é porém a feição geral dasituação, ao começar a tarde do século. Mas sempreha de triumphar a vida intelligente. Basta que setrabalhe sem tregoa. Pela minha parte, estava e estáacima das minhas posses semelnante papel ; com-tudo, entendia e entendo — adoptando a bella de-finição do poeta que V. Ex. dá em sua carta — queha para o cidadão da arte e do bello deveres impres-criptiveis, e que, quando uma tendência do espirito

o impelle para certa ordem de actividade, é suaobrigação prestar esse serviço ás letras.

Em todo o caso não tive imitadores. Tive um an-tecessor illustre, apto para este árduo mister, eru-dito e profundo, que teria proseguido no caminhodas suas estréas, se a imaginação possante e vivaznão lhe estivesse exigindo as creações que depoisnos deu. Será preciso accrescentar que alludo aV. Ex. ?

Escolhendo-me para Virgílio do joven Dante quenos vem da pátria de Moema, impõe-me um devei',

cuja responsabilidade seria grande se a própria cartade V. Ex. não houvesse aberto ao neophyto ag

13

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â06 CARTA

portas da mais vasta publicidade. A aaalysc pçdeagora esmerilhar nos escriptos do poeta bellezas edescuidos. O principal trabalho está feito.

Procurei o poeta, cujo nome havia sido libado aomeu, e com a natural anciedade que nos produz a

noticia de um talento roJausío, pedi-ihe que me lesse

o seu drama e os seus versos.

Não tive, como V. Ex., a fortuna de os ouvir

diante de um magnifico panorama. Não se rasgavamhorizontes diante de mim : não tinha os pés nessaformosa Tijucá, que V. Ex. chama um escabe lio entre

a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Emtorno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade.Não era o ruido das pai^xões nem dos interesses ; os

interesses e as paixões tinham passado a vara áloucura : estávamos no carnaval.No meio desse tumulto abrimos um oásis de soli-

dão.Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.V. Ex. já sabe o que é o drama e o que são os

versos, já os apreciou comsigo, já resumiu a suaopinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo publico,conterá as impressões que recebi com a leitura dosescriptos do poeta.Não podiam ser melhores as impressões. Achei

uma vocagão litteraria, cheia de vida e robustezdeixando antever nas magnificências do presente as

promessas do futuro. Achei um poeta original. Omal da nossa poesia contemporânea é ser copista— no dizer, nas idéas e nas imagens — Copial-as é

annullar-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feiçãc

própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vic-

tor Hugo, não é porque o copie servilmente, maeporque uma Índole irmã levou o a preferir o poetsdas Orientaes ao poeta das Meditações. Náo Ihf

aprazem certamente as tintas brandas e desmaiadas

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GAEta 207

da elegia;quer antes as cores vivas e os traços vi-

gorosos da odiB.

Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. CastroAlves canta simultaneamente o que é grandioso e oque é delicado, mas com igual inspiração e methodoidêntico : a pompa das figuras, a sonoridade do vo-cábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-sepor baixo desses lavores o estro, a espontaneidade,o Ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duasqualidades da poesia : a forma e o estro. Os verda-deiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o

Sr. Castro Alves as possue ; veste as suas idéascom roupas finas e trabalhadas. O receio de cahirem um defeito não o levará a cahir no defeito con-trario ? Não me parece que lhe haja acontecido isso

;

mas indico-lhe o mal, para que fuja delle. É possívelque uma segunda leitura dos seus versos me mos-trasse alguns senões fáceis de remediar ; confessoque os não percebi no meio de tantas bellezas.

O drama, esse li-o attentamente ; depois deouvil-o, li-o e reli-o, e não sei bem se era a neces-sidade de o apreciar, se o encanto da obra, que medemorava os olhos em cada paginado volume.O poeta explica o dramaturgo. Reapparecem no

drama as qualidades do verso ; as metaphoras en-chem o período; sente-se de quando em quando oarrojo, da ode. Sophocles pede as azas a Pindaro.Parece ao poeta que o tablado é pequeno ; rompe océo de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.

Esta exuberância, que V. Ex. com justa razãoattribue á idade, concordo que o poeta ha de repri-

mil-a com os annos. Então conseguirá separar com-pletamente a lingua lyrica da lingua dramática ; e

do muito que devemos esperar temos prova e fiança

no que nos dá hoje.

Estreando no theatro com um assumpto histo-

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208 CARTA

rico, e assumpto de uma revolução infeliz, o Sr.

Castro Alves consultou a indole do seu génio poé-tico. Precisava de figuras que o tempo houvesseconsagrado ; as da Inconfidência tinham além dissoa aureola do martyrio. Que melhor assumpto paraexoitar a piedade ? A tentativa abortada de umarevolução, que tinha por fim consagrar a nossa inde-

pendência, merece do Brazil de hoje aquella vene-ração que as raças livres devem aos seus SpartacusO insuccesso fel-os criminosos; a victoriatel-os-hia

feito Washingtons. Condemnou-os a, justiça legal

;

rehabilita-os a justiça histórica.

Condensar estas idéas em uma obra dramática,transportar para a scena a tragedia politica dosInconfidentes, tal foi o objecto do Sr. Castro Alves,e não se pôde esquecer que, se o intuito era nobre,o commettimento era grave. O talento do poetasuperou a difficuldade ; com uma sagacidade, (jue euadmiro em tão verdes annos, tratou a historia e aarte por modo que, nem aquella o pôde accusar deinfip], nem esta de copista. Os que, como V. Ex.,conhecem esta alliança, hão de avaliar esse primeiromerecimento do drama do Sr. Castro Alves.A escolha de Gonzaga para protogonista foi cer-

tamente inspirada ao poeta pela circumstancia dosseus legendários amores, de que é historia aquellafamosa Marília, de Dirceu. Mas não creio que fosse

só essa circumstancia. Do processo resulta que o

cantor de Marilia era tido por chefe da conspiração,em attençáo aos seus talentos e letras. A prudência .

com que se houve desviou da sua cabeça a pena Wcapital. Tiradentes, esse era o agitador ; serviu áconjuração com uma actividade rara; era mais umconspirador do dia que da noite. Ajustiça o escolheupara a forca. Por tudo isso ficou o seu nome ligadoao da tentativa de Minas.

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CARTA 209

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente aotheatro o elemento feminino, e de um lance casa-vam-se em scena a tradição politica e a tradiçãopoética, o coração do homem e a alma do cidadão.A circumstancia foi bem aproveitada pelo autor; oprotogonista atravessa o drama sem desmentir a suadupla qualidade de amante e de patriota ; casa nomesmo ideal os seus dous sentimentos. QuandoMaria lhe propõe a fuga, no terceiro acto, o poetanão hesita em repellir esse recurso, apezar de serimminente a sua perda. Já então a revolução expira

;

para as ambições, se elle as houvesse, a esperançaera nenhuma ; mas ainda era tempo de cumprir odever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velhoHorácio corneiUiano ; entre o coração e o dever aalternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e

consola o coração. Nem a pátria nem a amant^.podem lançar-lhe nada em rosto.

O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma • rtí

em relação aos outros conjurados. Para avahar utidrama histórico não se pôde deixar de recorrer áhistoria; supprimir esta condição é expor-se a cri-

tica a não entender o poeta.

Quem vê o Tiradentes do drama não reconhecelogo aquelle conjurador impaciente e activo, nobre-mente estouvado, que tudo arrisca e emprehende,que confia mais que todos no successo da causa, epaga emfim as demasias do seu caracter com amorte na forca e a profanação do cadáver ? E Cláu-dio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e

f

generoso, fazendo da conspiração uma festa e daiberdade uma dama, gamenho no perigo, cami-nhando para a morte com o riso nos lábios, comoaquelles emigrados do Terror? Não lhe rola já nacabeça a idóa do suicídio, que praticou mais tarde

quando a espectativa do patíbulo lhe despertou a

19.

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210 CARTA

fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se

não podia casar com a liberdade ? Não é aqueile odenunciante Silvério, aqueile o Alvareng^a, aqueileo padre Carlos ? Em tudo isso é de louvar a cons-ciência litteraria do autor. A historia nas suasmãos não foi um pretexto ; não quiz profanar asfiguras do passado, dando-lhes feições caprichosas.Apenas empregou aquella exageração artística, ne-cessária ao theatro, onde os caracteres precisam derelevo, onde é mister concentrar em pequeno espaçotodos os traços de uma individualidade, todos oscaracteres essenciaes de uma época ou de um acon-tecimento.Concordo que a acção parece ás vezes desenvol-

ver-se peio accidente material. Mas esses raríssimoscasos são compensados pela influencia do principio

contrario em toda a peça.

O vigor dos caracteres pedia o vigor da acção

;

ella é vigorosa e interessante em todo o livro

;

pathetica no ultimo acto. Os derradeiros adeuses deGonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade,e uns bellos versos fecham este drama, que pôdeconter as incertezas de um talento juvenil, mas queé com certeza uma invejável estréa.

Nesta rápida exposição das minhas impressões,vê V. Ex. que alguma cousa me escapou. Eu nãopodia, por exemplo, deixar de mencionar aqui afigura do preto Luiz. Em uma conspiração para aliberdade, era justo aventar a ideada abolição. Luizrepresenta o elemento escravo. Comtudo o Sr.

Castro Alvos não lhe deu exclusivamente a paixãoda liberdade. Achou mais dramático pôr naquellecoração os desesperos do amor paterno. Quiz tornarmais odiosa a situação do escravo pela luta entre anatureza e o facto social, entre a lei e o coração.Luiz espera da revolução, antes àa. liberdade, a res-

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CARTA Zn

tituição da filha ; é a primeira aíRnnação da perso-nalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso,

quando no terceiro acto Luiz encontra a filha já ca-dáver, e prorompe em e^amações e soluços, ocoração chora com elle, e-^^emoria, se a memoria

Eóde dominar taes commoções, nos traz aos olhos aella scena do rei Lear, carregando nos braços

Cordelia morta. Quem os compara não vê nem o rei

nem o escravo ; vê o homem.Cumpre mencionar outras situações igualmente

belias. Entra ness« numero a scena da prisão dosconjurados no terceiro acto. As scenas entre Mariae o governador também são dignas de menção,posto que prevalece no espirito o reparo a que V. Ex.alludiu na sua carta. O coração exigiria menos valore astúcia da parte de Maria; mas, não é verdadeque o amor vence as repugnancias para vencer osobstáculos ? Em todo o caso uma ligeira sombranão empana o fulgor da figura.

As scenas amorosas são escriptas com paixão : aspalavras sahem naturalmente de uma alma paraoutra, prorompem de um para outro coração. E quecontraste melancólico não é aguelle idylio ás portasdo desterro, quando já a justiça e«tá prestes a vir

separar os dous amantes ?!

Dir-se-ha que eu só recommendo bellezas e nãaencontro senões? Já apontei os que cuidei ver.Acho mais — duas ou três imagens que me nãoparecem felizes ; e uma ou outra locução susceptívelde emenda. Mas que éisto nomeio das louçamas daforma? Que as demasias do estylo, a exuberânciadas metaphoras, o excesso das nguras devem obtera attenção do autor, é cousa tão segura que eu melimito a mencional-as ; mas como não aceitar agra-decido esta prodigalidade de hoje, que pôde ser asabia economia de amanhã ?

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212 OÂM&

Resta-me dizer que, pintando nos seus persona-gens a exaltação patriótica, o poeta não foi só fiel álição do facto, misturou talvez com essa exaltaçãoum pouco do seu próprio sentir. É a homenagem dopoeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentospessoaes aos dos seus personagens, é inútil distin-

guir o caracter diverso dos tempos e das situações.

Os successos que em 1822 nos deram uma pátria e

uma dynastia apagaram antipathias históricas quea arte deve reproduzir quando evoca o passado.Taes foram as impressões que me deixou este

drama viril, estudado e meditado, escripto comcalor e com alma. A mão é inexperiente, mas asagacidade do autor suppre a inexperiência. Estudoue estuda ; é um penhor que nos dá. Quando voltaraos archivos históricos ou revolver as paixões con-temporâneas, estou certo que o fará com a mão naconsciência. Está moço ; tem um bello futuro diantede si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos quedevem trabalhar para restaurar o império das musas.O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o

successo coroará a obra? É um ponto de interroga-ção que ha de ter surgido no espirito deV. Ex.Contraestes intuitos, tão santos quanto indispensáveis,eu sei que ha um obstáculo, eV.Ex.o sabe também:é a conspiração da indifferença. Mas a perseverançanão pôde vencel-a? Devemos esperar que sim.Quanto a V. Ex., respirando nos degráos da nossa

Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vaimeditando, sem duvida, em outras obras primas comque nos ha de vir sorprender cá em baixo. Deve fa-

zel-o sem temor. Contra a conspiração da indiffe-

rença, tem V. Ex. um alliado invencivel : é a cons-piração da posteridade.

Machado de Assis.

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PERSONAGENS

O Dr. Thomaz António Gonzaga.

D. Maria Dorothéa de Seixas Brandão.

O Governador Visconde de Barbacena.

O Coronel Joaquim Silvério dos Reis.

O Tenente Joaquim José da Silva Xavier.

(Tiradentes)

O Dr. Cláudio Manoel da Costa.

Ignacio José de Alvarenga Peixoto.

O Vigário Carlos Correia de Toledo.

O Tenente-coronel João Carlos Xavier da Silva

Ferrão.

Luiz.

Carlota.

Paulo.

Um carcereiro.

Um criado.

Damas, cavalheiros, conspiradores

e soldados.

(Do drama passam -se em Minas os três primeiros

actos, no Rio de Janeiro o ultimo.)

ÉPOCA — 1789 a 1792.

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GONZAGAoa

A EEYOniçIO DE MINAS

iCTO I

Os escravos

(A «cena repteieiita um besqne brazU^iro, dependente da ohaeara 4»

teuente-coronel João Carlos. Á direita e á esquerda .gmndes measiços de

arvores. Ku fundo, a planície que se perde n'um horizonte 4e montanlMa.

Ko primeiro pluio, á esquerda, um tronco partido. — É ao romper &o

dia).

SCENA I

GONZAGA e LUIZ

Gonzaga [entra vestido de caçador) : — Luiz,amarra ahi as rédeas deste cavallo e vem ouvir-ma

Luiz : — Ora,eiiifim,meu senhor moço me dá umapalavra. Ha duas horas que o sigo a trote largo,como a sombra de um mudo, ou antea, ha longosdias que o vejo assim.

Gonzaga : — Vem cá, Luiz, que tenho muito afallar-te : deixa os teus ciúmes, meu velho.

Luiz : — Ciúmes não, yoyô, mas vendo Vm. af-flicto, preoccupado como agora, sempre a escrever,

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216 GONZAGA

sempre a trabalhar, sempre a angustiar-se e semdizer uma palavra, o pobre escravo diz comsigo :

Luiz, velho Luiz, foi detalde que o pai desta criançate estimou, foi debalde que o carregaste nos hom-bros, que lhe ensinaste as tyrannas na viola e lhesentaste tuas historias na senzala.

Gonzaga : — Não tens razão, meu amigo.

Luiz : — Não a tenho, sim; eu nào a tenho, meusenhor, não posso pedir confiança ; mas é que dóemuito dever tudo e não poder pagar-lhe nada, nemuma consolação. Vm. me deu a liberdade e eu souinútil.

Gonzaga : — Gala-te, tu não me deves nada. Nãoachas que um amigo vale mais que alguns cruzados ?

Luiz : — Eu não sei o que custei ; sinto o bem queVm. me deu

;quem é branco, quem é féUz, não pôde

coinprehender esta palavra — liberdade. Não passade uma bonita cousa, mas para nós, não. Sabeis oque ella é para o pobre captivo ? — E ouvir pela

madrugada o canto dos passarinhos de Deus, sem ocanto do chicote do feitor — é guando o sol tine nopino do meio-dia não sentir o fogo lavrar a pelle noscannaviaes, e á noite, em vez da embriaguez daaguardente que mata a vergonha, beber o ar puro

da familia, que mata o vicio.

Gonzaga : — E entretanto, meu amigo, a escra-

vidão é uma parasita tão horrivelmente robusta,

que, deslocada do tronco, vai fanar os ramos da vi-

da. Tu és livre, mas eu ainda não pude restituir-te

a tua familia

Luiz : — Ah! sucuruyuba do inferno, engole-nos

pela sombra, devora-nos os filhos, porque sabe quemorreremos

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OD A REVOLUÇÃO DE MINAS 21T

Gonzaga : — Acalma-te, ou antes, preciso\é mes-mo que nos lembremos do passado. Paliemos ae tuamulner que tanto bem me queria, de Cora, que meenfeitava de flores os cabellos, que tinha sempreninhos de pássaros a dar-me. Lembro-me muito datua infeliz mulher.

Luiz : — Minha mulher, oh! sim, ella era minhamulher... e tão minha que um dia levaram-m'a.

Gonzaga : — Pobre homem

!

Luiz : — Ah ! é que foi loucura do triste escravoquerer ter um leito abençoado por Deus, querer quea mulher que amou, no momento de receber o pri-

meiro beijo, fosse bemdita pelos anjos e chamadapelo santo nome de esposa!... mas ah! queguereis?Aos desgraçados só resta o amor e eu dizia entãocommigo : amemo-nos infelizes, amemo-nos capti-

vos. Ainda nos resta uma ventura. Soífremos, luta-

mos, temos o chicote nos hombros, a ignominia naalma, mas ainda ha na terra um bálsamo para ocorpo, um bálsamo para o coração — o amor deuma mulher — o amor de uma esposa.

Gonzaga : — Não te recordes agora da pobreCora. Embalde minha mãi quiz compral-a ao seubárbaro senhor. Paliemos de tua filha.

Luiz : — Minha filha, que talvez se afogasse nadeshonra para fugir á morte, como sua mãi, queafogou-se na morte para fugir á deshonra. Oh ! santoDeus ! Ter uma criancinha pequena, risonha, gor-dinha, que chora tanto qiíB faz a gente se zangar,<}ue ri tanto que faz a gente rir, que nos trepa nosjoelhos, que nos puxa a barba, que corre nuasinhapara nos tomar a enxada com que não pôde, que nosconta mil tolices, que ri, que salta até fazer brotara alegria na cara e a felicidade na alma... para um

P.-A- f II

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218 GONZAGA

dia o senhor arrebatal-a, arrancal-a do meio dasveias do coração...

Gonzaga : — Luiz, se houvesse um homem quete prometesse tua filha?

Luiz : — Minha filha !... Eu cahiria de joelhos, coma minha cabeça branca varrendo o pó de seus pés,

eu lhe diria : oh! da-me a minha pequena, dai-m'apor piedade, pela capeila de vossa irmá, pelas lagri-

mas de vossa mãi.

Gonzaga. : — E se esse homem fosse bastante máopara esquecer o teu pedido e só lembrar-se dos seusinteresses ?

Luiz : — Eu lhe pediria, como suprema ventura,que me deixasse ser seu escravo, ser a sombra doseu corpo, sempre humilde e rasteira, ser seu cãopara lamber-lhe os dedos, mesmo quando me feris-

sem.

Gonzaga : — E se esse homem quizesse aindamais?

Luiz : — Que me resta mais, meu Deus? Mas não,

ainda posso dar alguma cousa, inda tefiho uma faca

na cinta, uma mão no pulso, um coração no peito,

uma cabeça nos hombros... E se esse homem exis-

tisse, eu lhe diria : esta faca é vossa, este braço é

vosso, este coração é vosso, esta cabeça é vossa,

mas em troca do pouco que vos dou, dai-me minhafilha.

Gonzaga : — Mas, se para obtel-a fora mistermais do que morrer... sim, trabalhar nas sombras,affrontar a luz ; de noite ser o reptil do charco, dedia ser o tigre das serras... mentir, lutar, ferir coma promptidão do raio, desapparecer com a prompti-dào do relâmpago; se fora mister lutar contra um

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 219

homeiíi) entra uma província, contra um paiz, contra

dous mundos?

Luiz : — Basta, senhor. Por maior que fosse

esse inimigo, não seria tão grande^como o meuamor. Vêr minha filha, ouvil-a chamar-me pelo nomede pai... depois seria nada arrancar a cabeça dasespadoas e atiral-a ensanguentada aos pés do meusalvador.

Gonzaga : — Pois bem, Luiz, em nome da revo-

lução, tua cabeça é minha.

Luiz : — Sua,, senhor!... Então vai já restituir-me

a minha pequena? Oh! meu senhor, dê-m'a que já

me tarda este momento.

Gonzaga : E cedo.

Luiz : — Cedo I... cedo para vêl-a ! Não!... é umeng;ino, ha longos annos eu a procuro : estou velho,

de cabeça branca... moribundo, e ainda é cedo paravêl-u! Oh! senhor, nunca é cedo para ver minhafilha.

Gonzaga : — Espera, Luiz.

Luiz : — E=;pera,.. espera... mas não vê que estoucansado de esperar? Vinte annos... vinte annos, ca-hindo minuto por minuto... vinte annos... vinte,

sem luz nos olhos, sem orvalho n'alma... vinte an-nos... eme diz que espere... a mim, cego moribundo,diz : espera a luz — a mim, afogado agonisante, diz :

espera a salvação — a mim, pai solitário, diz :

espera tua filha {De joelhos). Mas não, meu senhor,Vm. va, entregar-m'a, restituir-m'a, pelo amor deDeus.

Gonzaga : — Luiz, eu não posso.

Luiz {levantn-se) : — Então, por ultimo, não m'adá?... E pois verdade que todos os brancos são

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220 GONZAGA

tyrannos? [Arrependendo-sé] . Perdôe-me, perdôe-me, meu senhor moço, mas ó que eu não compre-hendo que desgraças possam trazer as lagrimas deum velho e os risos de uma criança... o sol conti-

nuará a brilhar para todos, as arvores darão sempresombra... tudo será o mesmo. Pois é crime um pai

6 uma filha se abraçarem?

Gonzaga : — Luiz, só posso agora chorar com-tigo, mas ainda que não esteja nas minhas mãos.j^jro que terás a tua felicidade.

Luiz : — Mas quando poderei vêl-a?

Gonzaga: — Talvez breve.

Luiz : — Então, por que meios abraçal-a?

Gonzaga: — Pelo teu heroísmo.

Luiz : — E quem m'a restituirá ?

Gonzaga : — A revolução.

SCENA II

GONZAGA, CLÁUDIO, ALVARENGA e o PADRECARLOS

Gonzaga : — Ainda bem, meus amigos, chegaisa tempo, failava de vós. (a Luiz) Vai vèr que nin-

guém nos interrompa. iLuiz sahe.)

Cláudio : — Emfim^ não ó verdade, meu caroGonzaga ? Por Júpiter, já me faltava a paciência.

Ah ! senhores da metrópole, ides emfim saber queeste chão é nosso, que a America é dos americanos,como o céo é da ave, como a espingarda é da pól-

vora. {Volíãndo-se para os outros que conversambaixo.) Ah ! mas agora vejo que conversam em par-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 221

ticular, e nem se quer dão-me attenção. Em summa,é o mesmo, creio que nada perderão. Vejamos deque se trata.

Alvarenga (a Gonzaga) : — Tens razão, o mo-mento é excellente. Já dóe-me ver a raça dos tyran-nos ferir com o chicote a face de um povo immenso.{Ao padre). Padre, realizaram-se as tuas prophe-cias... Um dia dizias-nos em nossos pequenos serõeslitterarios que a liberdade dos povos seria uma ver-dade, porque o Christo não era uma mentira.

Padre Carlos : — Não era uma prophecia... eraa lettra da Biblia : foi o Mestre quem o disse : Euvim quebrar os ferros a todos os captivos e elles serãoquebrados.

Cláudio : — Padre, Christo era um bello revolu-cionário {Interrompendo -se). Enganei-me... sim. .

quero dizer, padre, que se eu não fosse christão, bas-

tariam para catechisar-me estas palavras sublimes.

Padre Carlos : — Palavras sublimes, disseste,

que em breve serão factos divinos.

Gonzaga : — E o que importa, meus senhores, eupedi-lhes que viessem para receber os seus conselhos.Sabem perfeitamente o estado geral das cousas. Aimpaciência alcança todos os espiritos, a tyranniafere toda a colónia.

Cláudio : — Eu creio que só temos a atacar. Jábasta de vêr cortadas todas as aspirações dos brazi-

leiros. Cada um tem uma offensa a vingar. Ondevedes, meus senhores, eu tenho assistido a mil des-graças em minha familia. Quando o coração de umbrazileiro bate, ha uma mão de ferro que lhe estancaas pulsações. — E a metrópole.

Alvarenga : — Quando* um braço brazileiro vai pe-

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'222 GONZAGA

^ar o fructo de seu trabalho, ha uma voz que lhediz : — É meu. É ainda a metrópole.

Padre Carlos : — Quando a plebe brazileira

quer empolgar um punhado de insírucção, ha umsopro máo que lhe apaga a luz. — É a metrópole.

Gonzaga : — Sim ! Quando o escravo quer serlivre, quando o trabalhador quer ser proprietário,

quando o colono quer ter direitos, quando a cabeçaquer pensar, quando o coração quer sentir, quando opovo quer ter vontade, ha um fantasma que lhe diz

:

Loucura, mil vezes loucura ! O escravo tem o azor-

rague, o trabalhador o imposto, o colono a lei, aintelligencia o silencio, o coração a morte e o povotrevas. É a metrópole! é sempre a metrópole'. Engora, senhores, é preciso que isto acabe. É preciso,

mas como ?

Cláudio : — Meus amigos, á propaganda. Falía-

mos ao povo ! Digamos : — Revolução ! e os echosisLS nossas serranias repetirão também — Revo-lução !

Gonzaga : — Não. O echo do governador nos re-petirá — Prisão.

Alvarenga : — Façamos clubs occultos, espa-lhemos o descontentamento nos soldados, o deses-pero na população. Mostremos-lhes a fonte de todasas misérias, é talvez o único meio. O imposto óuma calamidade.

Gonzaga : — O povo não se moverá. Dirá : Tendesrazão. Tirai-me deste poste, soccorrei-me, porqueeu estou cobarde como o escravo grego. Oh ! meussenhores, é horrível o dominio de um povo sobreoutro. Como a anca do cavallo, a face de uma na-ção também caleja. E demais, espera-se que o go-verno da metrópole Derdôe os dizimos ; quem o diz ó

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 22S

O governador. Já vêm que nada conseguirão porabi.

Padre Carlos : — Meus senhores, nós chegámosá grande época da regeneração e da liberdade. Alémdo Atlântico ha um povo livre, grande pela força,

sublime pelo pensamento, divino pela liberdade, que,

atravez dos mares, nos estende a mão. É a França.A Revolução Franceza protege a revolução de Mi-nas; esta é filha daquella, ou antes, ambas sao fi-

lhas de Deus. Quando um povo levanta- se do cap-tiveiro, Deus\do topo dos Alpes ou do cimo dusAndes empresta-lhe uma espada, como dava as leis

no cimo de Sinai. Pois bem, peçamos a este povoirmão auxilio e caminhemos.

Gonzaga:,— Ainda bem. No exterior temos aFrança e a União Americana; ellas nos protegerão,ou pelo menos esta idéa dará forças aosnc^sos com-panheiros,, mâs eu vou dizer-lhes os nossos verda-deiros recursos É preciso em primeiro logar que ogoverno conspire.

Cláudio : — Será diJBBcil resolvel-o. Deve seruma bella extravagância, um governo que conspirecontra si.

Gonzaga : — E eu te digo que é sempre o gover-no quem conspira. Quem esporêaumcavalloá beirade um precipício ha de rolar nelle. A metrópolesangra as ilhargas da colónia

;pois bem, ella ha de

cahir na revolta.

Cláudio : — Mas como decidirmos o diabo do go-vernador a conspirar...

Gonzaga : — Não é o visconde governador... é oDr. intendente geral. Eu me incumbo disso. Porémnão basta.

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224 GONZAGA

Alvab enga : — Que mais ?Gonzaga : — Eu vou dizer-lhes já. Luiz ! ó Luizl

SCENA III

os MBSMOS e LUIZ

LuTz :— Senhor

!

Gonzaga : — Vem cá. {Aos comp-dnheiros.) Vêmeste homem?Cláudio : — Por Deus ! é um negro.

Gonzaga: — Sabem a quedasse pertence ?

Cláudio : — Um escravo ou um liberto.

Gonzaga : — Que é ainda um escravo, se estehomem tiver a desgraça de ter Qiãi, filho, irmã,amante, uma mulher, uma familia, emfim, algumdesses fios que prendem o homem á vida como aestrella ao firmamento. E sabeis porque? É que amãi de cujo seio elle sahiu, é escrava e o fructomurcha quando o tronco soffre, é que a mulher queelle tem no coração ó escrava e o verme que mordeo coração mata o corpo, é que o filho de seu amoré escitvo, e o ninho desaoa quando o passarinhoestrebucha na agonia. E sabem o que este homemquer? Qual é o único sonho de sua noite, a únicaidéa de seu cérebro ? Perguntem-lhe.

Cláudio : — Talvez o amor, a ventura sob aforma de um beijo.

Luiz : — Perdoe, meu senhor. Engana-se. Não 1

Cláudio : — Riqueza para realizar estes castel-

los doudos de uma imaginação da Africa ?

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ou A PvEVOLUÇÀO DE MINAS 225

Luiz : — Ainda não.

Cláudio : Mulheres, como nos haréns do Oriente,

como os principes da Africa sabem ter ?

Luiz : Não, mil vezes não.

Cláudio : — Posição, grandeza, talvez uma farda

de governador. Ainda não ? com mil diabos, és dif-

ficil de contentar.

Gonzaga : — Enganas-te. Elle quer pouco, quero que todos nós temos, quer sua familia, quer suafilha.

Cláudio : — Então não quer dizer nada. Com-prehendo : é preciso talvez libertal-a. Ahi tens mi-nha bolsa e fallemos do que mais importa.

Gonzaga : — Guarda a tua bolsa, ella não basta.

Admiras-te? Eu vou contar-te esta pequena histo-

ria. Havia, quando eu era criança, meus amigos,em nossa fazenda, uma mulata. Chamava-se Cora.Era uma bonita e boa mulher, que um dia appare-ceu-nos, dizendo ser livre, e que minha mái acolheu.Pouco tempo depois . .

.

Luiz : — Eu lhes contarei esta historia, meus se-

nhores. Eu a tenho aqui (apontando o coração) e émemoria que nunca falha... Foi muito simples. Amulher amou um homem... enganei-me, amou algu-ma cousa que está entre o cão e o cavallo, amouum homem de pelle preta. Para que fallar destesamores ? O pobre diabo adorava-a, e ella, ella querialhe muito. Oh ! nunca comprehendeieis o amor dedous entes que não têm nada no mundo, nem mesmoo palmo de terra em que pisam, nem o céo que oscobre... Não tinham propriedade — um era afazenda do outro. Não tinham familia — um era

13.

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226 GONZAGA

a familia do outro... Nem mesmo Deus elles tinham,sim ! porque um resto de idolatria pelos fetiches doCongo, misturado com um bocado de historia defeiticeiros e um copo d'agua benta que um padrelhes atirou á cabeça, não era religião... O Deus del-

les ? !... tinham-n'o aindaum no outro... nesses lon-

gos suspiros em baixo das bananeiras da fonte, nes-sas conversações mudas nas horas do luar nassolidões, nas lagrimas que cabiam juntas para o

elião, nos olhares que se levantavam juntos parao céo. [^Enxuga itma laffiHma, com voz precipitadae irónica.) Depois não quizeram ser prostituídos..

Ah ! ah ! ah ! que doudos ! Casaram-se... Deus pare-cia também estar n'um dia de ironia. . Deu-ihes umaolha... {Cada vez mais sombrio.] Um dia um ho-mem chegou á fazenda... Era á tarde... ainda melembro. Cabiam as sombras por detrás da serra—o sabiá cantava nos coqueiros da matta, e uma doe»tristeza rodeava as senzalas. O negro e a mulherde volta do trabalho, sentados aporta da senzala,brincavam com uma criancinha que esperneavarindo no chão- Como era linda ! Nesse momentotocavam as ave-marias. A mulher levantou-se,apa-nhando a criança e começou risonha e feliz a ensi'

nar-lhe uma oração... O pai olhava este quadro, lou-

co de felicidade... De repente uma chicotada inter-

rompeu o nome de Deus na boca da pobre mãi o

uma chuva de sangue inundou a criancinha quecontinuou a rir.

Alvarenga, Cláudio e Padre Carlos : — Mise-rável!...

Luiz : — Era o que ia dizer-lhe a ponta de umafaca, mas no ouvido das entranhas... quando muitosbraços agarram o negro pelas costas. Amarram-n'oali mesmo e então, emquanto o sangue e a loucura

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ou A IlEVOLUÇÃO DE MINAS -«27

subiam-lfee aos olhos, elle ouviu isto. O estrangeirodizia : tu vais ser castigada com teu filho. A desgra-çada ousou ajoelhar-se. . . creio que despirain-n'a eali mesmo os açoutes estalaram... Sim... lembro-meque de vez em quandoum borrifo de sangue acordava-me do meu delirio. E eu... só tinha ao alcance o

meu braço, por isso estrafegava-o com os dentes...

Alvarenga, Cláudio e Padre Carlos : — Erastu, infeliz ?

Luiz : — Parece-me que sim... [mostrando-lheiuma Qrande cicatriz no braço^parece-mequeéisto...

Alvarenga e Cláudio : — E tua mulher ?

Luiz :— Poucos dias depois, emquanto eu estavapreso, soube que se havia afogado n'um rio.

Cláudio : — E tua fllha, tua pobre filha ?

Luiz : — Seu senhor morrendo, venderam-n'a,não sei a quem

;procuro-a desde então... procuro-a,

meus senhores... eis tudo o que eu sei. Perdi-a, eis

tudo quanto sinto...

Cláudio : — E nunca mais tiveste um só iíidicio

de tua filha ?

Gonzaga : — Eu te digo. Ha dias fallava eu comJoaquim Silvério, um dos nossos melhores compa-nheiros...

Luiz (á parte) : — Um homem com cara de traidor

Gonzaga : — Epor acaso a conversação cahiu so-

bre Luiz. Dizia-lhe eu que este era ura homem forte,

intelligente e dedicado, e quejá aqui, já em Coimbrame havia acompanhado e talvez, para consolar-se de

suas desgraças, tinha aprendido a ler, fazendo- se

muito inatruido para sua triste condição... Continueicontando-lhe a sua pequena historia e a perda de

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228 GONZAGA

sua filha. Então disse-me Joaquim Silvério : eu po-

deria entregar- lhe esta rapariga. Luiz é teu amigo,mas é mister que o seja da revolução... eu guardo a

pequena como penhor de sua fidelidade.

Cláudio : — E porque não o fizeste entregar ao

Eobre escravo sua nlha ? Isto é uma infâmia. Aquelleomem, meus senhores, cuidado com aquelle homem.

Olhar desconfiado, mão traiçoeira.

Alvarenga : — Não é talvez um pensamento ge-neroso, mas é um meio prudente, se é que Luiz temde tomar carte nos nossos segredos e de ser um doscompanheiros...

Luiz : — Não! mil vezes não! Dêm-me minha filha,

porque eu serei calado como um tumulo, írio comoo ferro de minha faca, terrível como a fatalidade.

Mas se nãom'a entregam, eu digo : este senhor Silvé-rio é um mentiroso, um miserável que quer que o

sirva era suas machinaçOes ; mas que eu não acom-panharei, porque nesta têa horrível, nunca encon-trarei minha filha . . . [com desespero). Digam-me, meussenhores, quem me dará minha filha?

Gonzaga : — Ainda a revolução.

Todos : — Como ?

Gonzaga : — Eu vol-o digo, meus senhores. Umdia (já lá vão séculos), era ao cahir da tarde. Nasruas soberbas de Jerusalém a turba desenfreiadaulula, tinem os arnezes dos soldados de César, estri-

dulam as gargalhadas da plebe louca : e uma vozdizia nas praças : Passai, phariseus, envoltos emvossas ricas togas; passai, soldados escravos deRoma; passai, grandes da terra — tendes por toroo Calvário, por vinho o sangue de Deus. Mas umaoutra voz levantava-se do deserto e clamava :

—Chorai, lyrios do valle de CedroD; chorai, pallidas

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ou A REVOLUÇÃO DB MINAS 229

lilhas de Sião... chorai, desgraçados; chorai, ca p-

tivos — o moço de Nazareth, o louro manceboque nos enxugava os prantos da ignominia, quepromettia quebrar os ferros de todos os escravosjá não existe. O amigo da desgraça morreu... Masquando o ultimo hálito do Deus vivo rasgou a cortinado templo, guando na luz de seus olhos eclipsou-seo sol do universo, então o anjo da igualdade, agi-tando as azas ensopadas em sangue, sacudiu overbo da liberdade aos quatro ventos do céo.

Cláudio : — Oh I mil bênçãos a ti, mancebo deNazareth

!

Luiz : — Maldição sobre vós, senhores, queesmagais vossos captivos.

(Ouve-se uma voz que canta ao longe)

Eu sou a pobre captiva,

A captiva d'aléiu-mar.

Eu vago em terra estrangeirn,

Ninguém me quer escutar.

Tu que vais a longes terras,

O* viajeira andorinha,Vai dizer a minha mãiQue «1 rivo triste e sósinha

Mas diz á pobre que espere,

Que o vento me ha de levar.

Quando eu morrer nesta terra.

Para as terras de além-mar.

Gonzaga : — Não, pobre captiva, tu não gemerásaté á morte. Não, tu não irás como tuas compa-nheiras atirar-te um dia nas lagoas, crendo que vaisreviver em tua pátria. Não, infeliz ! Era breve, sobestas selvas gigantescas da America, a familia bra-zileira se assentará como nos dias primitivos... Nãomais escravos I não mais senhores! Todas as frontes

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2SO eONZÂQA

livres poderão mergulhar o pensamento nos infinitos

azulados, todos os braços livres hão de sulcar o

seio da terra brazileira. [A Luiz.) Luiz, pobre des-graçado ! deve ser um dia sublime aquelle em queas crianças souberem o nome de seus pais, porquesuas raãis serão esposas e não meretrizes... em queas virgens murmurarem serp pejo o nome de seusamantes, porque não serão mais polluidas pelo beijo

dos senhores devassos... em que os velhos sentadosá beira dos túmulos abençoarem sua geração, porquea túnica da ignominia deixará de acompanhal-osatravez dos séculos, como o ferrete do judeu mal-dito !...

Luiz : — Oh ! venha este santo dia.

Gonzaga : — E elle virá em breve, porque o san-gue de Christo não cahiu embalde sobre a terra.

Almas de moços, frontes cheias de fó, nós juramospelo martyr do Golgotha a remissão de todos os

captivos.

Luiz (a Gonzaga] : — Senhor, eu procurava umafilha, agora procuro duas : — Carlota e a Revolução.

Gonzaga : — Sim : liberdade a todos os braços !

Liberdade a todas as cabeças.

SCENA IV

08 MESMOS menos LUIZ

[Ouve-se um rumor ás prim.eiras palavras de Gon-zaga. Luizsahe.)

Gonzaga [caminhando precipitadamente para o

fundo) : — Um homem que se dirige para aqui... É

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ou A REVOLUÇÃO DK MINAS 2»*

talvez alguma cousa extraordinária. . . qiie carreira

desabrida., l não ha duvida.(ruindo á boca da scena.).

O que teremos de novo ? Aquelle cavallo e aquellehomem parecem-me conhecidos. Meus amigos, creio

que temos uma cousa imprevista {dirige-se aofundo] ; vai passar-se uma desgraça.

Cláudio : — Olá ! que formidável salto

!

GrONZAGA : — Ah ! mas o homem está salvo !

[Todos estáo por algum tempo olhando fixameniepara a direita.)

SCENA Vos MESMOS, LUIZ e blLVERIO

Todos : — Silvério '

Silvério : — EUe mesmo, meus amigos, quandome julgavam talvez muito ionge. Ah ! e por poucoque me não acho agora inda mais do que esperava,porque, a faliar-lhes a verdade, chego em linharecta das plagas do outro mundo, da província deSatanaz, capital das mutheres bonitas e dos homensde bom gosto. [A Gonzaga ) Ah ! meu caro, semprete direi que o teu cavalío é tenivel e dá tão bellospulos que bem pôde atirar um homem atravez dasestrellas, nem mais nem menos que nas barbas daEternidade. Safa ! que a não ser o Luiz, a estashoras não poderia mais molhar minha espada nosangue de um tyranno, nem minha boca n'um beijo

de mulher...

Luiz : — Nada, Sr. Silvério, é que eu e o murzelojá somos conhecidos velhos... mas o bom do cavallo

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232 GONZAGA

parece que foi ferido mais do que esperava no seuoreulho ou nos seus flancos... do que Vm. nãotinna muita necessidade, honra lhe seja feita.

Silvério : — Não tinha necessidade!.,. Achasque só por prazer eu me arriscaria no lombo daquellemaldito animal. Imaginem, meus senhores, que euchegava a toda brida da Cachoeira do Campo. [A

Gonzaga.) Ao bater em tua porta minha montadacahe estafada. Safo os pés dos estribos, procuropor ti, disseram-me que estavas em Villa Rica.Mando sellar outro animal e parto. O cavallo fogosoe esperto começa a caracolar e a escarvar o chão.Impaciente com a demora, cravo as esporas... omais não sei... três galões terríveis... e os ventosme assobiavam nos ouvidos e as crinas açoutavam-me o rosto e a terra era engulida pelas patas deferro que a devoravam. Arvores, nuvens, planícies

6 valles dansavam uma sarabanda vertiginosa, oupassavam galopando a assobiar-me pela cabeça.Ora, no topo de um monte, já no fundo de um valle,

rápido como o vento, nós rolávamos desvairados ..

De repente vejo um fosso. Upa! murzelo ! Upa! o

salto foi mortal, partiu-se a silha e eu iria rebentara cabeça n'uma lapa, se um braço de Hercules nãotivesse soífreado o cavallo e outro me amparado najuéda.

Gonzaga : — Mas felizmente estás salvo...

Silvério : — Gratias tibi^ Domine.

Gonzaga: — O que é uma grande felicidade;

jorque neste momento...

Silvério :— Maior mesmo do que podem suppôr.

Cláudio (comironiaj : — Que diz, Sr. Silvério.'

Parece que se lisongeia.

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ou A ítEVOLUÇÃO DE MINAS 23S

Silvério : — Nada, quasi nada. É que afinal

metteu-se-me na cabeça prestar para alguma cousa.É uma extravagância como qualquer outra.Imaginem, meus senhores, que sou homem que nãomerece muita confiança nem mef=mo sympathia,porque emfim sou um pouco o favorito do governa-dor na algum tempo... mas que tenho o capricho defazer gratos mesmo os que me odeiam... [olhandoCláudio) e de gozar do seu embaraço... Ah ! ah ! ah !

mas que diabo! deixemo-nos de palavras perdidas...O tempo urge... Dizias tu, Gronzaga, que estemomento...

Gonzaga : — É o que ha longo tempo esperamos.Os ricos que protegem suas propriedades, como aonça os cachorrinhos, urram e amolam os denies...

Nós açularemos a onça !

Alvarenga : — Os pobres que sentem o suor detodas as agonias pela testa, desesperam e preparam-se a morder. Nós animaremos o cão.

Luiz : — Os escravos sonham com a liberdadecabalam com sinistro movimento suas cadêas. Nóslevantaremos os escravos.

Silvério : — Mas eu lhes digo que para o tigreha o raio. Para o cão a pedra. Para o escravo aforca.

Gonzaga : — Mas quem vibrará o raio ? quemlançará a pedra ? quem erguerá a forca ?

Silvério : — O governador.

Gonzaga e todos : — Maldição ! O governador

!

Gonzaga : — E que fará o governador ?

Silvério ; — Chegará em breve a Villa Rica.

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134 GONZAGA

Gonzaga : — Oh ! desespero ! {Todos grupam-seno fundo.)

Silvério (á parte, á boca da scena) : — PorDeus ! Parece que joguei a maravilhas. O momentoera desesperado. Era preciso intimidai os, porquetalvez estes endiabrados conseguissem o seu fim. Eneste ponto, quanto mais cedo melhor. O viscondeestará aqui em breve, talvez hoje mesmo ; entre-

tanto, antes disto poderia romper a revolução,contando elles com a sua ausência. Bravo ! Dest'-

arte plantei a confiança nestes e a gratidão na-quelle.

Gonzaga : — Quando chegará o governador ?

Silvério : — Breve. Talvez d'aqui a dous dias.

{A' parte.) Talvez d'aqui a duas horas.

Gonzaga : — E sabe-se para onde vai?

Silvério : — Orê-se que para o Rio de Janeiro.

Gonzaga : — Bem, È preciso partirmos, meus ami-

gos. Até lá seremos os mineiros da revolução, os

trabalhadores das trevas, e quando o visconde de-

sapparecer, desapparecerá o poder de Portugal.

Cláudio : — Vamos prevenir o Tiradentes.

Gonzaga : — Sim... (Todos grupam-se em tornodelle, na boca da scena, fallando baixo. Gonzagaescreve por algum tempo.)

Silvério : — Doudos que não sabem que cadapasso que dão para a liberdade ó um degráo quesobem do patibulo.

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ou A KE?OLDÇÃG DE MINAS 25J

SCENA VI

os MESMOS e no fuMto CARLOTA

Silvério [dirigindo-se a ella rapidamente] :—

Daqui a instantes te espero.

Carlota : — Sim, meu senhor.

SCENA VII

OS MESMOS, menos CARLOTA

Gonzaga : — Partamos, meus amigos, cheios deconfiança e de coragem. Nós temos a pátria daliberdade sobre nossas cabeças e a pátria escravisadasoh nossos pós. Viva a America independente!

TODOS

Viva a America independente ! (Vão sahindo poucoa pouco, em differentes direcções.)

Gonzaga:— Oh! Maria! amanhã serás minha eo teu amor far-me-ha inviolável como Achilles

[Sahe por ultimo.)

SCENA VIII

SILVÉRIO e CARLOTA

Silvério : — Passa para aqui, vamos com isso.

Depressa, depressa. O que ha de novo? Ah! [gest

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2^ GONZAGA

de Carlota), parece-me que ainda estás com escrú-pulos ! Pois tu queres ter virtudes ?

Carlota : — Meu senhor

!

Silvério : — Vamos f O que ha?

Carlota : — Basta, meu senhor, basta pelo amorde Deus. Não me obrigue a fazer tanta traição.Eu jánão posso mais. Espiar, vender as pessoas que amoque me abençoam, que me querem, que lavam todasas minhas humilhações com o seu amor! Ah! pie-

dade!... Sim 1... As vezes, quando eu os escuto, descansados como se fallassem junto a uma irmã, voupouco a pouco esquecendo-me de mim naquellaaDoas confidencias, mas de repente parece que uni

braço de ferro me agarra o pulso e uma voz me grita

aos ouvidos — « Denunciante! » Oh! então estre-

meço... e olho em torno de mim para ver se nin-guém ouviu este grito ! mas elles continuam risonhos

e felizes a fallar... Sim... é assim ; tenho ímpetosenfão de arrancar esta mascara negra e dizer-lhes :

— Perdão ?... mil vezes perdão.

Silvério : Pois bem, arranca a mascara e me fa-

rás conhecer a minha escrava Carlota.

Carlota : E verdade. Eu sou sua escrava, meusenhor ; mas, para que me faz passar por livre, gozarde todos os prazeres da independência, ser a irmãquasi de D. Maria ? Não ! Eu não quero mais ; n'este

instante irei dizer-lhe: Minha senhora, eu roubei asua confiança, roubei o seu amor; pois bem, Carlota,

a escrava, vem denunciar Carlota livre; amaldiçoeesta, mas lembre-se daquella.

Silvério : — Bem ! Aposto que foi algumconfessor que te pregou este lindo sermão... E umbello pedaço. Em que livro furtaste isto, Carlota?

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS Í37

Carlota : — Aqui. [Apontando o coração.)

Silvério : — É verdade ! Tu tens coração ? Nãosei, mas o que é certo é que és bem linda...fal.avas com tanta animação que fizeste notar abelleza de teus olhos, e que lindas mãosinhas

!

(jpegando-lhe nas máos) parece que estás tremendo!que pelle sedosa ! és bonita, Carlota. Ora, seria

tyrannia fazer com que estes dedinhos de rosaempunhassem uma enxada e esta formosa odaliscafosse para a senzala.

Carlota : — Oh ! Empregue-me em outrotrabalho ; mas, pelo amor de Deus, arranque-mede tanta maldade.

Silvério : — De facto, agora penso. .. nisto.

Tu tens ura amante, não é assim ? Um namorado ?

Creio que um dia me fallaste nisto... Queriascasar... ou cousa que o valha !...

Carlota : — Sim, meu senhor, com um pobreescravo como eu !

^Silvério : — Ah ! o tratante tem gosto de senhor.

Creio também que tens um pai, que procuras hamuito tempo. Gomo será lindo!... Casada, feliz...

com seu velho pai para amparar e uma porção defilhinhos nos joelhos, e teu marido....

Carlota {dejoelhos) : Oh ! obrigada ! obrigadameu senhor ; Deus o abençoe !

Silvério : — E o diabo te leve, estúpidacreatura ! Basta de comedia

!

Carlota : — Ah

!

Silvério : — Sim, vai ser honrada, arranca amascara e tu serás a mais desgraçada de minhas

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238 GONZAGA

escravas. Terás em recompensa o chicote dofeitor.

Carlota : — Piedade I. .

.

Silvério : — Creio que voltas á razão.

Carlota [com voz forte) : — Pois bem, meusenhor, o chicote não me deshonrará ! Inda haum Deus no céo..,

Silvério (ameaçando) : — Mas sabes o que hana terra ? Creio que fallaste agora na tua honra.Pois bem, o teu noivo saberá que tu és minhaamante... porque amanhã o serás, e depois te

entregarei aos mais repugnantes negros de minhassenzalas.

Carlota : — Oh ! meu Deus, meu Deus ! dá-meforça. Pois bem, Sr Silvério, ouço uma voz que mediz que a minha desgraça será contada como umavirtude no céo e me dará a vida eterna.

Silvério : — E a morte a teu pai.

Carlota ; — Que diz ? O que ó que diz ? Maselle nunca o saberá.

Silvério : — Não ? Pois então sabe que eu o

conheço e que, quando estiveres mais negra dedeshonra do que a lama de rainhas botas, eu farei

com que o pobre velho venha morrer de vergonhaao ver sua filha. Ah ! agora me ouves ? Tu matarásteu pai, desgraçada !

Carlota : — Meu pai ! meu pai !...

Silvério : — Escolhe... ou denunciante... ouparricida ! . .

.

Carlota : — Ah ! Quebrou-me emfim ! [En-xuga os olhos.) Bem, estou prompta.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 239

Silvério : — Diabo I fizeste perder tempo.Falia.

Carlota : — Um dia destes será a revolução.

Silvério : — Nãx) será. . . já sei. Adiante.

Carlota : — Esperam-se as tropas de Tirsi-

dentes.

Silvério : — Adiante. Adiante.

Carlota : — Nada mais sei.

Silvério : — Fazes-te estúpida. E Maria eGonzaga ?. .

.

Carlota : — Casam-se.

Silvério : — Quando ?

Carlota: — Daqui a três dias, pelo menos oesperam.

Silvério : — Que estás dizendo ? Vê bem o queestás dizendo... não mintas. Não vês que isto éimpossível ? Ha dous annos que elles pedem oconsentimento da corte de Portugal e ainda nãoreceberam resposta alguma, graças á influencia dogovernador. Agora é impossível que elles oobtenham. . . e vens tu dizer-meqiie este casamentose fará d'aqui a três dias. Por Deus ! parece quenada sabes. Pois então aprende que as pessoasimportantes do Brazil não se podem casar semprévio consentimento do governo portuguez.

Carlota : — Sim ! isto é alei de Portugal, masque se esquece de uma lei não menos poderosa —a do desespero

.

Silvério : — Oh {passeia agitado.) E o gover-nador ! Estou perdido !... Esta revolução. {Rápidoa Carlota.) Carlota, é preciso que me sorprendas

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240 GONZAGA

qualquer papel compromettedor. Lembra-te de teuamante e de teu pai.. . estes papeis ! e elles serãoteus. Vamos prevenir o visconde. Agora guardabem estas palavras : No dia em que eu cahir dagraça do governador, essa cabeça cahirá de teusnombros.

SCENA IX

CARLOTA, depoia MARIA

Carlota [cahindo sohre o tronco) : — Oh !

minha mãi, por que não me afogaste ao nascer ?

Maria {fallando dentro) : — Carlota ! como te

fiz^te esperar ! Vem cá ! vou descansar um instante

nesta sombra. [Senta-se sobre o tronco.) Meu Deus

!

como estou triste... Oh ! ha muito tempo que o nãovejo, não é verdade, Carlota?

Carlota : — Não, minha senhora, ha apenastrês dias.

Maria : — Mas que dias longos, diz antes três

séculos. Vem tocar-me aquella melodia... vai bus-car a guitarra na mão das escravas que esperamacolá... {Aponta a D. E. — Carlota vai k E. A. e

volta com uma guitarra. Senta-se aos pés de Ma-ria e começa um preludio ). Oh ! como estes versos

são lindos, meu Deus ! Haverá maior felicidade doque ser amada por elle. .. ha uma apenas— é amal-o... A minha única consolação é lembrar-me destes

cantos, que elle me murmurou a medo, de joelhos,humilde e orgulhoso, tremulo como uma criança;

elle, o poeta, soldado ; elle, o grande homem ; elle.

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ou A BEVOLUÇÃO DE MINAS 241

O heróe. Vamos, Carlota, acompanha-me a cançãoda fonte. {Carlota, acompanha,^ Maria canía aseguinte lyra )

:

Junte a uma clara fonteA mâe de amor se assentou.Encostou na mão o rosto,

No leve somno pegou.

Cupido, que a viu de longe,Alegre ao logar correu.Cuidando que era Marilia,Na face um beijo lhe deu.

Acorda Venua irada :

Amor a conhece ; e entãoDa ousadia que teve,

Assim lhe pede perdão :

« Foi fácil, 6 mãe formosa,Foi fácil o engano meu

;

Que o semblante de MariliaE todo o semblante teu. »

(A's ultimas coplas Gonzaga tem entrado e se

approxima silenciosamente de Maria.)

SCENA X

AS MESMAS e GONZAGA

Maria : — Gonzaga

!

Gonzaga (que tem entrado ás ultimai notas docanto] : — Maria

!

Maria : — Ohl óstu?

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212 GONZAGA

Gonzaga : — Eu mesmo, Maria, eu, que ouvi

tudo. Ah ! tua voz cantava-me no coração como umsussurro das aves no céo ! Toda a minha alma tre-

mia como a flor cheia de orvalhos. Mas tu me amas ?

Não ? Sim, meu Deus !_ eu o sinto... Ai ! se tu nãome amasses, eu morreria.

Maria : — Amar-te !... Mas eu sou o peito, tu és

o ar, eu sou o ninho, tu és o pássaro, eu soua lagoa,

tu és o céo, eu sou a alma, tu és o amor... Amar-te !

meu Deus ! mas é tão máo perguntar-me estas lou-

curas ! Ah ! meu senhor, tu és um homem, podes ser

um heróe;tu és um homem, podes ser um génio ; tu

és um liomem, pódesser um rei e eu sou uma mulher;

meu heroismo é ver-te, meu génio é escutar-te, minhacoroa é o teu amor. Mas eu estou te dizendo milloucuras. Tudo isto não diz nada... Tu me perguntasse eu te amo. Ah! eu sou uma pobre orphã, masquando á noite murmuro baixinho o nome de minhamãi, pergunto á minha virgem que palavras é queeu suspiro como o hálito de minha alma! É teunome... tu não sabes o que é um amor de americana?E alguma cousa grande como estas florestas, som-brio como estas brenhas, ardente como as flores

escarlates do sertão, luminoso como o sol dos tró-

picos. E alguma cousa que entumece o coração, algumacousa que illumina a cabeça. Não o sentes aqui?(Lera a mão ao coração.) (Não o sentes aqui?) [Levaa mão á cabeça.)

Gonzaga : — Oh ! Maria, meu anjo, eu o sinto-

mas precisava ouvir-te, agora. Tu não sabes quanta

força ás vezes nos dá uma voz fraca de mulher... é

alguma cousa flexível como a canna dos brejos que

ameiga a face do rio nas horas da enchente.. Por-

que eu soffro... Vejo nossa pátria escravisada, nos-

sos irmãos captivos e tu Maria, e tu, sempre arran-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS SÉS

cada de meus braços... por esse poder estúpido dametrópole... Vês Jt)em ? tu não sabes que horas dedesalento passam-se então no espirito... Corre-meum suor de vergonha no rosto, am frio de morte nocoração e minha espada de cavalleiro tressúa san-gue na bainha... e eu desmaio de abatimento. Oh !

mas quando eu te escuto...

Maria :— E eu não &ou mais que uma pobre mu-lher.Dizem que as mulheres são a fraqueza. É men-tira. Não ha nada tão forte quanto uma mulher (jue

ama. Eu tremo ao menor riiido;para que mentir ?

Sou timida e medrosa, mas ao pé de ti eu desafiaria

o mundo.

Gonzaga : •— Ainda bem. Eu preciso de toda atua energia. Amanhã eu quero que sejas minha... Ogovernador deve chegar d'aqui a dous dias. É pre-ciso que ellenos encontre casados... Hoje escrevereia teu tio e amanhã, oh ! amanhã, Maria, seta o diaaiais feliz de minha vida.

Maria : — Sim ! Amanhã... Não sabes, meuamigo ; tenho pena de que minha mâi não me veja,

porém ella neste momento de uma felicidade tãopura ha de levantar as cortraas do céo e lá de ermanos abençoar, não é assim ? Meu Deus, como eusou feliz ! O governador não virá. Oh ! aquelle ho-mem é o corvo negro da desgraça. Eu tenho medodaquelle homem. Mas não. Teu amor é um escudo.Não te esqueças que é amanhã. Não sei o que mediz o coração, mas é preciso que corramos atrás dafelicidade, porque tenho medo !

Gonzaga : — Oh ! obrigado. Mas tens razão,Maria ! Nestes dias tempestuosos eu receio a cadainstante um compromettimento. Vês estes papeis?São todos os planos da revolução, tudo quanto eu

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244 GONZAGA

30SSÚO de mais perigoso. Só ha um homem que osDossa guardar :é o tenente-coronel João Carlos, é,en tio. Eu sei que elle deixar-se-ia matar sobre omeu deposito. É um typo severo e honrado — bustode Catão n'um coração de Sparta. [Dà-lhe os papeis.)Entrega-lh*os, e agora, Maria, agora, eu já tepossochamar minha noiva ! Ouves bem ? minha noiva.

Maria : — Sim ; chama-me assim... Parece queagora me vibrou na alma a aza de um cysne brancofugitivo !... Falia ! Falia ! como o céo está puro !

como os campos estão lindos ! Maio enfeitou-se deflores para o nosso noivado. Deus nos olha na lim-pidez deste céo azul. Oh ! como sou feliz 1 Falia,falia, Gonzaga !

Gonzaga : — Maria, tu és um anjo.

Maria : — Oh ! não, os anjos não sabem amarcomo eu te amo. Ouves bem?eu te amo ! meu Deus !

cu não sei dizer outra cousa. Olha, ha pouco eu tive

medo ; mas agora já estou forte. Que me importa ovisconde ? o corvo tem medo da águia e tu és aáguia, meu amor.

Gonzaga : — Porque tu és o sol ! meu anjo.

{Câhe de joelhos e dà-lhe um beijo na mão. As ul-timas palavras deMariano governador e Silvériotêm entrado.)

SCENA XI

CAELOTA, MAKIA, GONZAGA, o GOVERNADORe SILVÉRIO

O Governador [vestido de preto, ao fundo) :—

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 245

Oh! miserável ! [Puxa, de um punhal e dá douspassos.)

Silvério [detendo-lhe o braço) : — Náo dareis

um passo.

O Governador {prevenção) : — Pois tu ousas ?

Canalha

!

Silvério : — Salvar o governador e sua vin-gança.

[Ouvem-se ao longe as trompas de caça e o motimde muitos cavalleiros.)

Gonzaga e Maria [voltando-se) : — O governa-dor

!

O governador [comprimenta de leve a Gonzaga

:

faz um passo para Maria, beijando-lhe a mão) :—

Senhora ! o corvo ó o pássaro das trevas, masquando a águia dorme, vela o corvo ! H i instantes,

houve uns lábios que se molharam aqui n'um beijo,

amanhã haverá uma corda que se molhe em sangue.

Maria : — Ah ! [Desmaia sobre o tronco ; ao cahirdeixa rolar após si um maço de papeis : todos gru-pam-se em torno, emquanto que Carlota os apanha.)

Carlota [erguendo os papeis na máo) : — Estespapeis perderam minha alma ; mas estes papeis sal-

varão meu pai '• • • •

fim do primeiro acto

14.

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ACTO n

Anjo e Demónio

Sala ricamente mobiliada legando a épooa. Ao fundo Jardim illuminaiio-

a giorno.)

SCENA I

TIRADENTBS, CLA.UDIO, ALVARENGA, padre GARLO»

{Varias cavalheiros e senhoras passeando aofundo.)

Cláudio : — Ora havemos de concordar, meussenhores, que a isto chama- se atirar-se á boca do-

lobo. É a historia do pagem que dansava á beira deum precipício. Pois bem. Nós agora dansamos sobrea escada do pelourinho... Falseie o pé... e ficaremos

' suspensos pelo pescoço.

TiRADENTES : — É mesmo. As vezes um baraço, no colo de um homem é o tosão de ouro da suarealeza de martyr.

Cláudio : — Ah! meus senhores, eu nunca o

Iquereria. Deve machucar as rendas, es.tragar aelegância dos nossos vestidos... e, demais, é umpouco ridiculo passear de robe-de-chambre pela rua

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248 GONZAGA

com um pregoeiro que nos soletra horrivelmente

o nome... e o carrasco immundo como o carniceiro

a fallar com um certo ar de protecção. . . Nada ! nada

!

abomino a forca... E se temos alguma dama quenos olha nessa tão irrisória posição, ouvil-aThemosdizer talvez ao moço com quem conversa navaranda : — Sabe quem vai ali ? Um condemnado.Meu Deus... como éfeio um condemnado i... — Merssenhores... um condemnado é uma espécie de rezbipede... nada ! fora com a forca.

Padre Carlos : — Mas Christo morreu sobre aforca.

Cláudio : — Mas Catão apunhalou-se. Viva opunhal. A arma das sultanas e das hespanholas,das mulheres mais lindas do mundo. Padre! bemvês que eu tenho o direito de escolher o punhal. Égalhardia de cavalheiro. Mas agora vejo que esta-mos lúgubres como a mascara do governador quandose ri, ou como uma velha que mlla de amores ; é

preciso que estejamos alegres, meus senhores,reparem que viemos aos lindos esponsaes. Ah ! Aépoca é de esponsaes. Breve os convidarei aosmeus. Glauceste espera emfim vencer a tyrania desua Eulina.

TiRADENTES i — Bem ; mas a nossa verdadeiranoiva, Cláudio, é esta pobre terra, que é nossapátria.

Cláudio : — Não implica! O coração a uma, aoutra o braço. É puro Rouget de Vlsle, meus se-

nhores, plena Marselheza... dá meimçetos de cantal-

a nas barbas do viso-rei. E a propósito do viso-rei,

viste-o ?

TiRADENTES : — Pudcra não. Se eu volto agorado Rio de Janeiro. Vi Luiz de Vasconcollos, meus

^

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 249

enhores. E bem Ihesdigo que não duvidei mais umnstante. Levantei as tropas, que ergueram-se áQinha voz como um só homem e a não ser a von-ade timida dos senhores, a estas horas...

Alvarenga : — Diga antes, Sr. Tiradentes, que, presença do governador estragou tudo.

Tiradentes : — O governador? E que me importa> governador ? Esta espécie de homem crocodilo,iste ridiculo Tito do estado, este devasso viscondele Barbacena ? Ah ! eu não sou mais que um pobreenente do exercito, mas affirmo-lhes que, a não &er'. prudência infantil ou grande politica dos senhores,omo lhe chamam, eu játer-lhe-hia surrado as costas;om o panno da mesma espada.

Cláudio : — Olá! seria diíRcil... O visconde é umlomem terrível, que traz sempre á sua frente alypocrisia, ás suas costas o carrasco.

Tiradentes : — E nós, senhores, nós [dirige-se

E.B. a uma: janella, cujo reposteiro levânta),

emos á nossa frente o direito, sobre nossos passosI povo. Vejam, meus senhores, estas luzes brilhan-es e multiplicadas.

Cláudio : — São os cem olhos de Argos.

Tiradentes : — São os cem olhos do povo i

Juando os homens dormem, fecham as palpeoras

;

uando as cidades dormem, abrem os olhos ; é Deusuem vela. Oh ! parece-me que neste instante Villa-^ica, que nos espia das trevas, é a cabeça destesertões immensos, que por ahi além se estendemomo um corpo de Adamastor... e esta cabeça temlibares que nos queimam o sangue nas veias, e ougido do vento nas florestas seculares é a voz deima nação immensa que dialoga comnosco I E nós

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850 GONZAGA

descansamos... quando meus soldados pegam os co-pos da espada, quando os escravos empunham o cabodo machado, quando a capitania agarra o facho. Ah

!

senhores! fogo aos quatro cantos do continente, afouce aos troncos do despotismo, a espada, aocoração dos tyrannos e deste incêndio tremendo voarácomo das hecatombes romanas, não a águia que leve

a alma do imperador, mas o condor que levante aliberdade do meu paiz.

Cláudio : — Inda bem ! Inda bem ! Eu estouprompto.

Alvarenga : -— Isto é uma imprudência e umafalta de confiançfi. Goazaga nos pediu dous dias de

demora.

Padre Carlos : — Dous dias passam depressa,

Tiradentes : — Dous dias! Emfim seja! Pesasobre vós a responsabilidade do acto ! Eu lavo as

mãos

!

Cláudio : — Então! Amanhã á revolução, hoje

ao baile ! E emquanto não podemos dar o braço á

pátria, offereçamol-o ás damas. Copos por copos,

meus senhores , amanhã os da espada, hoje os do

reino ! Oh ! eis que a propósito passa um pagem I

Olál

SCENA II

os MESMOS e LUIZ

Cláudio : — És tu, Luiz ?

Luiz [vestido de pagem com uma salva, de copos)

:

- Eu mesmo, meu senhor, que procurei um pretexto

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OD A DEVOLUÇÃO DE MINAS S61

para vir dizer que Vms. faliam muito alto e que lia

muitos ouvidos que escutam.

Cláudio : — É talvez verdade, mas pouco im-porta.

Luiz : — Não queiram que a imprudência igualeo animo. Ah! são palavras de um preto, mas sãotambém palavras de um velho... E perdoem! mas avelhice tem o capricho de nos fazer um pouco bran-cos {Apontando os cabellos.)

Cláudio : — Olá, velho Luiz, pareces hoje umtanto alegre?... Hein?

Luiz : Hoje sim... mas amanhã».. [Olhaem tornode si.) Bebam, meus senhores ! Gritem, porém nãofallem ; cantem, porém não gemam. Cada janellí»

espia... cada echo denuncia, cada cortina escondeum traidor, cada taboa um cadafalso... E a almadamnada do governador que se multiplica. [Temenchido os copos.)

Cláudio : — Pois bem, meus amigos, ergamosum brinde á liberdade !

(Todos chocam os copos e

bebem.) E á morte do governador! Ah! ah! ah!

SCENA III

os MESMOS, o GOVERNADOR, o TBNENTB-COKONELSILVÉRIO e UM PAGEM

O PAGEM inaporta central do fundo, annuncian-do) : — S. Ex. o Sr. António Furtado de Castro doRio de Mendonça, visconde de Barbacena, do con-selho de Saa Magestade, governador e capitáo-ge-

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252 GONZAGA

neral da capitania de Minas Geraes... (O tenente-

coronel colloca-se na porta central.)

O TENENTE- CORONEL : — Por aquí, Sr. visconde.

O GOVERNADOR [uo fundo,em frente da primeiraporta à direita, a Silvério) : — Então, Sr. Silvedo,ainda desta vez nada. [Faliam baixo.)

TiRADENTES (á boca da scena) : — Então, meussenhores'?Os copos estão cheios... Os braços sãofirmes. Bebamos ! seria vergonha dizer-se que ca-valheiros não sabem beijar os lábios de crystalde uma taça, os lábios de rubim de uma dama ! Amorte do governador 1

Cláudio : — Cheguemos os copos ! E se o vis-

conde nos ouviu, bebamos um punhal em cadagolel

TiRADENTES : — Teus medo?

Cláudio : — Por Baccho ! Eu já lhes disse quetencionava suicidar-me. É o mesmo. Ophalerno leva

a morte ao peito, mas dá prazer aos lábios. Á mortedo governador... [Bebem^

O GOVERNADOR {710 fuudo, a SUverio) : — Pareceque faliam no meu nome.

Silvério : — Deixe estas boca.s fallarem ; ama-nhã ellas estarão mudas ! Vê estas bellas cabeçasde cavalheiros? Vivos, ousados, moços, com estas

duas bellezas : a da alma, que sahe do coração e bri-

lha no rosto , a da mocidade, que scintilla na face e

enseiva o coração. Amanhã serão um pouco de lamarepulsiva.

O GOVERNADOR : — Ah ! fizeste-me vontade dorir!... Silvério, o gato tem destas alegrias... o rato

pôde brincar... elie dorme... Eu também vou dor-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 253

mir... brinquem, meus senhores , minha mão porora está aberta.

SCENA IV

os MESMOS, menos OS PAGENS e SILVEBIO

Cláudio : — Retiremo-nos.

TiRADENTES i — Isto tsria ares de fuga. Eu fico.

O GOVERNADOR [que se tem sentado ao pé do te-

nente-coronel) : — Temos um lindo baile, Sr. te-

nente-coronel. E' uma verdadeira illusão, faz-mecrer que estou em Portugal ; bem se vê que o senhoré um official do rei.

O TENENTE-GORONEL : — Muito me honra, Sr.

visconde, o elogio de V. Ex.

O GOVERNADOR : — O meu... Oh! Sr. coronel.Eu sou um rústico como Tito ; amo o retiro e a so-

lidão; para pensar nas cousas do estado, vivo lá naminha cachoeira do camoo, e mal me recordo aindado modo por que se pisam as tapeçarias de umbaile. Mas, se vale a memoria de cavalheiro, creio

que temos hoje uma linda noite. Falta- lhe entre-tanto nas salas a mais linda filha de Ouro Preto...

Ainda não vi a Sra. D. Maria. {Olhando para o jar-

dim). Oh! mas creio que a vejo chegar... ali vempelo braço de um bello cavalheiro... Sim, é o noivo..-.

Que lindo par... Dir-se-hia que Daphnis e Cloè renas-

ceram de um idylio virgiliano.

P. A. 15

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254 GONZAQA

SCENA VGONZAGA, MARIA, o GOVERNADOR, o TENENTB-CORO-

NEL, TIRADENTES e CLÁUDIO

O GOVERNADOR [comprimentãndo risonho] :—

Minha senhora, Sr. Dr. Gonzaga

!

Maria (á parte) : — Oh ! Este homem ri-se : é

porque os lábios sabem-lhe a sangue ! [Aos outroscavalheiros comprimcnta e senta-se.)

O GOVERNADOR : Dizia ha pouco, Sra. D. Maria,que faltava V. Ex. ás salas ; mas agora que a vejodigo-lhe queseV.Ex. está fazendo falta, é de certoao firmamento.Maria : — V. Ex. é sempre lisongeiro.

O GOVERNADOR : — Eugano, senhora. O espirito

é um jogo muito difficil. É a esgrima, não dos bra-ços mais fortes, porém dos znais ligeiros. A velhice

torna-nos pesados, o retiro torna-nos esquerdos.Mas a culpa é de V. Ex., que deixa o velho rústicosorprendei-a em todo o resplendor de sua belleza.

Endymião desvaira na floresta ao fitar Diana, a ca-çadora... Ah! ah! ah! Não é assim que se diz,

Sr. Gonzaga ? Os srs. poetas são os que sabemdizer destes lindos nadas. Mas é bonito! É bonito !

Gosto destes pastorinhos gravando suas loucurasno tronco de uma olaia.

Gonzaga : — Diga antes, Sr, visconde, os seusamores

.

O GOVERNADOR ( com foQO, olhaudo Maria ) : —Gravar o seu amor. O amor... mas era preciso umburil de fogo para escrevel-o sobre uma lamina debronze. (Risonho.) Gracejos de velho, meus se-

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ou A REVOLUÇÃO DB MINAS 255

nhores;eu morro pela poesia e pelos poetas. Sr. Gon-zaga, quando irá ao nosso retiro ? É uma verdadeirailha dos amores. As dryades cantam á sombra dosmyrtos, saltam as nayades fugitivas na lympha clarado rio, emçjuanto a flauta de Pan sussurra nos cana-viaes queixosos e os pastores enfeitam as pasto-rinhas de virentes pâmpanos...

TiRADENTES (com ironio) : — E os satyros? Sr.

visconde, V. Ex. esqueceu os satyros.

O GOVERNADOR : — Sc falia destas divindades queparticipam um tanto da natureza caprina... Oh! nesta

boa terra os ha de sobra.

TiRADENTES (á parte): — Este miserável me in-

sulta no meu paiz. {Alto.) Não ; fallo destas creaçõesque o paganismo ideiou para symbolisar o ridicuio

de outros typos.

O GOVERNADOR : — Acho quo interpreta commuito fogo a fabula, Sr. Tiradentes. E estimariaassas encontral-o no retiro dos bosques, lá onde amythologia pôde ser melhor comprehendida parapedir a explicação de alguns pontos para mim obs-curos. {Clãudio detém Tiradentes) Oh ! como eudizia ha pouco, proporcionar-me-hia um grande pra-

zer... Não quer ir também á nossa quinta ? É umlogar ameno onde a natureza selvagem e estúpidadestes climas amainou o bravio e insolente da vege-tação

Cláudio (a Tiradentes) : — Tu não te pertences.Um momento de reflexão, meu amigo.

O GOVERNADOR : — Não rospoudo ? Oh ! não re-

ceie encontrar por lá os botocudos repulsivos dasua terra... nem esta população grosseira e alvar doseu Brazil, que de certo afugentariam os meus deu-ses lares. Os meus feitores têm bons pulsos, as mi-

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256 GONZAGA

nhãs matilhas têm bons dentes... Aceite, Sr. Tira-dentes

;parece que está tremendo... Será receio

dos cães ?...

TiRADENTEs i — Eu não receio OS cães... Sr. vis-conde; mas quando tenho a infelicidade de encon-tral-os, mesmo ás vezes n'uma sala, assim comoaqui estamos, costumo atirar-lhes á cara algumacousa em que mordam. (Vai atirar-lhe com a luva.O tenente-coronel segura-lhe o braço).

O GOVERNADOR : — Prendam este homem.

SCENA VI

os MESMOS e SILVEKIO

O TENENTE-CORONEL : — Um momento, Sr. vis-

conde. Eu tenho uma espada que foi sempre fiel evotada ao rei. Pois bem, esta espada quo V. Ex.mesmo honrou, eu quebrarei no joelho no momentoem que a pessoa do meu hospede não seja sagrada.

Silvério {baixo ao governador) : — Perdoe,senhor, este homem ó nosso... o perdão é o degráoda vingança...

Maria ; — Sr. visconde, permittir-me-ha queaceite o braço deste cavalheiro. (Dá o braço aTiradentes.)

O GOVERNADOR :— Mil pordões, minha senhora. ..

O TENENTE-CORONEL :— Obrigado, Sr. visconde.V. Ex. acaba de salvar a minha honra.

O GOVERNADOR : — Desculpas peço eu, meussenhores, de meter esquecido um momento de quoestava n'um baile de esponsaes.-.tVai seníar-se ao

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 267

lado, sobre o sofàt entre Gonzaga e o tenente-co-

ronel).

Cláudio {no fundo, a Maria) : — Ah! minha,senhora; se o seu olhar é um raio, a sua bondade éum manto.

Maria : — Ah I Sr. Cláudio, parece que faz de ga-lante. Pois volte-se ; vê quem está ali ?... é Eulina...Se me disser mais uma palavra,está perdido.

Cláudio:— Ah ! minha senhora, eu me arrependode não lhe ter dito que é um anjo... pois bem vê queme aponta o cóo. (Vai sentar-se ao pé de Eulina).

Gonzaga (ao governador) : — É esta a minha opi-nião... O Sr. Dr. intendente creio que pensa lam-bem assim. Se S. S. requerer a derrama de toda adivida á junta da fazenda, reconhecendo a impôs -

sibilidade do arrecadamento, representará á rainha.

O GOVERNADOR : — Mas, Sr. Gonzaga, creio queeste é um péssimo meio. O povo sujeitar-se-ha facil-

mente a pagar as cem arrobas de um anno, ao passoque o requerimento da divida por inteiro levará osânimos ao desespero. Toda a capitania não possúeos nove milhões a que monta este debito.

Gonzaga : — Engano, Sr. visconde!... Eu peço

o requerimento de toda a derrama, para que ella nãose faça de sorte alguma. Demais, para um motim,bastaria© lançamento de um único anno, que ó deperto de sessenta arrobas de ouro.

O GOVERNADOR : — Eutão, Sr. Gonzaga, O melhofé que o Sr. intendente represente á soberana sobrea impossibilidade do pagamento, e não vejo a razãopor que deva requerer a derrama. Basta que a rainhaconheça a divida e o estado da terra, para que cessea vexação, ao passo que este falso jogo pôde com-prometter a segurança publica.

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268 GONZAGA

Gonzaga : — Perdão, Sr. visconde, o Sr. Dr.intendente pediu-me um parecer. Ora, o Sr. inten-dente, como procurador da coroa, já foi repreher-dido pelo governo, por não ter cumprido com o seudever ; e, como é preciso, emfira, que elle faça orequerimento, creio que um requerimento impossi-velé o melhor meio de salvara sua responsabilidadee a felicidade do povo.

O GOVERNADOR : — Concordo, emfim. Dou-mepor vencido, Sr, Gonzaga, pelo seu grande talentopolitico e nãO(Jir-se-haque um tão bom súbdito seja

esquecido por Sua Magestade.

Silvério (ao governador) : — É ainda um com-promettimento. A mosca enrola-se na têa.

Gonzaga (á parte) : — Ainda bem. Tudo está

prompto.

O GOVERNADOR : — Agora, uma divida que entenho a pagar, meus senhores. Em toda a partoonde vejo o talento curvo-me. [A Maria que se temaproximado.) Em toda a parte onde vejo a belleza,

ajoelho-me. Não se dirá, minha senhora, que o velhoimprudente que um momento perturbou a alegria

destas salas, deixasse de pagar a sua divida.

Gonzaga : — Como, Sr. visconde, tanta bon-dade!

O governador (a Maria) : — Não é verdade,minha senhora, que a corte de Lisboa tem bemfataes delongas ? Oh ! eu o leiv^ nos olhos de V. Ex .

.

[Vivo.) Quando dous corações contam as horas deespera... os ponteiros g.ram muito rápidos ; e depoio oceano é muito largo, as velas muito preguiçosas,

a corte muito indolente. Cansa esperar, sim! espe-

rar dous annoso momento da felicidade... contal-os

por suspiros de anciedade, por gc!midos de desa-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 269

lento... É longo... é terrível! Não é verdade, minhasenhora, que esta ampulheta vai muito precipitada6 aquelles homens muito lentos ?

Maria : É verdade, Sr. visconde.

O GOVERNADOR (áparíe) : — Maldição, como el3a

o ama! {Alto.) Pois bem, minha senhora, o gover-nador paga a divida do cavalheiro. Pôde V. Ex.marcar o dia do seu noivado... eu me enccarrego depedir a acquiescencia de Sua Magestade a Rainha e

entrego em suas mimosas mãos todo o meu credito.

Gonzaga : — Oh! obrigado, Sr. governador. V.Ex. pôde dispor de mim. [Aperta-lhe a máo.)

Maria (ao governador) : — Mil graças, senhor.

O GOVERNADOR : — Agora, minha senhora, acei-tará para recompensar-me o meu braço.

Maria : — Muita honra, Sr. visconde.

Silvério {baixo) : — Sr. governador, uma pala-vra. {Sahe.)

Gonzaga (baixo) : — Preciso de ti um momento,Maria.

SCENA VII

CLÁUDIO e TIRADENTES

[Durante a scena todos vão sahindo uns a^ôsoutros).

Cláudio (a Tiradentes] : — Ficas?

TiRADENTES I — FÍC0.

Cláudio : — És um original. Quanto a mim,meu caro, assesto as ultimas baterias... Vou con-

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Í60 GONZAGA

vidal-a ao passeio no jardim. As flores da noite, as

alamedas sombrias, as luzes por entre as arvores,uma musica ouvida ao longe... uma mão tremulaque se aperta, uma confissão que sussurra pelos lá-

bios... não conheço coração que resista .. Vesta,nestes casos, faz-se de Vénus. O amor triumpha dogelo e o olhar mais severo termina no estalido deum beijo... Oh! tu que és um coração de bronze,fica... e inveja-me,que eu corro após a felicidade...

TiRADENTES '. — Está bem, vai que te seguirei.

SCENA VIII

GONZAGA e MARIA

Gonzaga : — Emfim, Maria, a felicidade nos es-tende os braços.

Maria : — Ou a desgraça.

Gonzaga : — Que dizes ? A desgraçai...

Maria (á parte) : — Que loucura ! meu Deus ! Oh

!

e eu que não lhe posso dizer nada 1

Gonzaga : — A desgraça! Mas tu não vês comotudo nos auxilia, o nosso casamento... a liberdadeque breve se proclamará... O governador que estácego...

Maria (a parte) : — De ódio e de vingança

!

Gonzaga : — Maria, como eu sou feliz ! Queressaber? Já não tenho desconfianças nem receios... euestou descansado sobre o nosso futuro... Ah! tenhode fazer-te uma sorprêza. Breve te enfeitarei com ovestido que bordei a ouro para a minha noiva.

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ou A EEVOLUÇAO DE MINAS 261

Maria : — Sim, eu vestil-o-hei. Estás bem des-cansado, meu amigo, tens razão. Eu sou umalouca... Tanta felicidade me admira e, como n'umsonho, receio gue me fuia. Oh I é que ella é umaborboleta muito caprichosa... amanhã é muitasvezes o reverso de hoje. [Dà-lhe a mão). Mas foi

uma loucura, passou... tu esiás feliz... eu estou ra-

diante.

Gonzaga : — É que possuir-te, Maria, é sentir quea terra se azula, porque se transforma no céo; queas estrellasscintiilam, porque tremem nas tuas pál-

pebras, que Deus é melhor, porque se reflecte nalimpidez da tua alma! (Vai a beijar-lhe a mão. Sil-

vério passa, ao fundo.)

Maria [com pudor) : — Ohl espera que eu soja

tui.

Gonzaga : — Tens razão. Perdoa, Maria, mas ó

que eu me esqueço de mim junto de ti. É verdade,fazes-me lembrar o que te queria dizer... Ouves?A musica soa. [Ouve-se ao longe a musica.) Todosf,e esperam anciosos. Dá-me ainda um instante.

Dize-me, Maria, entregaste aquelles papeis a teutio?

Maria {confusa) : — Aquelles papeis!... Não, eunão os entreguei.

Gonzaga : — Sim ? Tanto melhor. Já não tenhoreceios... O governador é meu amigo, elles estarãoem segurança em minha casa, que de certo não serásuspeita. Não os deste ainda a teu tio! Muito bem.Dar-m'os-has logo que puderes. São-me precisos tal-

vez muito nreve.

Maria (á paríe) : — Meu Deus! [Alto.) Eu voubuscal-os.

16.

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262 GONZAGA

SCENA IX

os MESMOS e CARLOTA

Maria : — Ah! ali passa Carlota... (Chamando)Carlota!

Carlota : — Minha senhora?

Maria : — Vai ao meu toucador e traz-me ospapeis que lá estiverem na gaveta. Toma a chave.Corre ! depressa, Carlota.

Carlota : — Sim, minha senhora. [Sahe.)

SCENA XMARIA e GONZAGA

Maria : — Creio que são uns papeis brancoslacrados em três pontos , não, meu amigo? No meioda minha perturbação, eu os tinha mesmo esque-cido, julguei que os havia apanhado. Mas agoralembro-me que vi alguma cousa semelhante no meutoucador. Sim ! creio que Carlota, quando eu des-

falleci, os tomou e depois escondeu no meu quar-to... Deve ser isto

!

Gonzaga : — Não te impacientes, minha amiga.Carlota ahi vem que os traz.

Maria : — Ah I Tirou-me de um supplicio horrí-

vel!

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OD A REVOLUÇÃO DE MINAS 268

SGENA XI

os MESMOS e CARLOTA

Carlota : — Aqui os tem, minha senhora.

Maria : — Obrigada. Toma-os,meu amigo, guar-da-os bem guardados J Vê ! nãc, são estes ? Oh? nãoos vás perder...

Gonzaga (tem quebrado o lacre dos papeis) :—

Maria, o envolucro é quasi idêntico, mas contémapenas cartas minhas, tu as havias ajuntado,talvez..,

não ó assim? Toma, ^uarda-as que um dia havemosde lel-as juntos, bem juntos, diz-m'o o coração .,

Maria (á parte) : Oh! meu Deus! que presenti-mento horrível! {Alto.) São tuas cartas, são! eu asamo muito, hontem ellas estavam espalhadas nagaveta e eu disse a Carlota que as ajuntasse... ella

lacrou-as assim... e eis ahi o engano... São tuascartas... porque os papeis .. oh! estão guardados...não receies nada, eu os guardei... é tua vida que eutenho em minhas mãos... Demais, quem os quere-ria ? .. Mas aquelle maldito desmaio! Que culpative eu?. ..Foi tão subi ta a entrada do governador!...{como tomada de uma desconfiança) o governador!Ah ! {Atira ospapeis sobre a mesa da direita e vem. áboca da scena.) Meu Deus! Meu Deus! E' uma idéahorrível! Teria eu comprehendido a alegria immensadaquelle homem ! Oh ! ó que aquella boca só ri

quando tem saibo de sangue !... (Vai a sahir preci-pitadam.ente. A Gonzaga.) Espera, meu amigo, euvou bucal-os... espera! {Sahem Marias Carlota.)

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264 GONZAGA

SCENA XII

GONZAGA, TIRADENTES, CLÁUDIO,

ALVARENGA, depois SILVÉRIO e CARLOTAao fundo

Gonzaga {aos que entram) : — Entrem, meussenhores, precisava fallar -lhes.

TiRADENTEs : — E CU queria dizer-te que já nãopodemos esperar

!

Cláudio : — Sim ! Eu não espero mais que 24 ho-

ras. Devo morrer, meus amigos ; sou o mais infeliz

dos homens. Nem a brisa, nem a noite, nem a mu-sica enterneceram o coração de minha Eulina. Ah !

senhores, imaginem que em meio de uma decla-

ração de amores, quando minha voz era mais ter-

na... (e tão terna que eu mesmo quasi me apaixo-

nava pela minha garganta), quando ensaiava umbeijo... mas um beijo que infelizmente ficou só emhypothese, foge ligeira a rainha nympha e deixa-me chamando embalde.Nem ao menos o echo me responde.

Ah! como é certa a minha desventura.

Nize, Nize, onde estás, aonde, aonde?!...

É de desesperar ! meus senhores ; eu, por con-sequência, não espero!

Gonzaga : — Goncedes-me um instante ?

TiRADENTES : — Enláo?

Gonzaga : — O intendente acaba de dizer-meque vai requerer a derrama immediatamente. Este

homem vai requerer a revolução. Em 24 horas tudo

deve estar prompto.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 265

Silvério [no fundo a Carlota) : — Fizeste comote disse ?

Carlota : — Sim, meu senhor. Imitei o sobres-cripto e colloquei-o no seu toucador, para, no casodelia se recordar dos papeis, acreditar que eramaquelles.

Silvério : — E ainda não sabe?

Carlota:— A estas horas deve sabel-o.

Silvério: — Já era tempo. Olha, Carlota, deste-me a cabeça daquelle lindo cavalheiro. Vai chamaro governador.

Carlota : — Deus me perdoe... meu pai.

Senhor?

Gonzaga (aos conjurados á boca da scena) : —Amanhã em minha casa ao levantar da lua.

Todos : — Ao levantar da lua.

Silvério (a Carlota] : — EUes o disseram : terás.eu pai, amanhã ao levantar da lua.

SCENA XIII

SILVÉRIO e o GOVERNADOR

O GOVERNADOR : — Entáo os papeis ?

Silvério : — Aqui os tem.

O GOVERNADOR [precipitando-se sobre elles) :—

Oh ! é isto, ó isto .. [Abre.) « Lista dos conspirado-res, cartas sobre a revolução, planos sobre as lei»

da nova republica. » Tudo, tudo que bastaria paralevar á forca meio mundo. É isto ! Muito bem, meu

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366 GONZAGA

Silvério, muito bem... Olha, vês este papel ?é fraco,

muito fraco, um sopro de vento o levaria... Poisbem, estas folhas flexiveis encerram em si mais con-demnados que todas as masmorras da rainha... éum calabouço este papel... é um patibulo este pa-pel... é um antro... Quando eu o aperto, parece quesinto o estertor de mil agonias... quando eu o aspi-ro, sinto o cheiro de sangue... Oh! deve ser bello^

Sr. Silvério, entregar todas estas vidas á mãorosada de uma criança e dizer.... « Faze o que bemte parecer... Queres um circo como os imperadoresdavam ás patricias de Roma? Abre o... Queres o

espectáculo de mil escravos que te devam a vida.^

Queima-o. »

Silvério : — Como, Sr. visconde ? Nada com-prehendi.

O GOVERNADOR : — Fizcsto bem. .. Silvério, obrigado. . . Se minha mão tem o ferro para os inimigos,temo ouro para os amigos... Vai, Silvério.

Silvério : — Eu voltarei em breve. (Sahe.)

O GOVERNADOR : — Oh! Ella será minha... indaque Deusm'a queira roubar... É um duelo de morte.Vejamos quem vale mais, se o velho governador, ouo moço poeta... Entretanto, parece-me que tremo...É a primeira vez ! Não importa. Conde, dizem, quetambém tremia antes de entrar nas suas grandesbatalhas, e no emtanto Conde sempre vencia.

SCENA XIVo GOVEENADOE e MARIA

Maria [entra pallida e perturbada. Vem à bocada scena sem ver o governador :— Oh ! meu Deus,

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 267

revolvi tudol nada! nada ! meu quarto estava vaziocomo um tumulo... o coração saita-me como a ca-beça ainda quente de um condemnado... Meu cérebroferve como uma fornalha... Oh! meu Deus, minhavida inteira por aquelles papeis...

O GOVERNADOR [que se tem collocado atrásdelia) : — Eu conteuto-me que a reparta comigominha senhora.

Maria : — Este homem! sempre este homem !...

Dir-se-hia que é a sombra da desgraça. Todas asvezes que um vulto invisivei me fere, eu vejo estamão que se enxuga.

O governador : — Este coração que sangra...

Maria :— E que me importa o seu coração, senhor,se é que o tem? Que me importa? Ah! é precisoque eu lhe faça lembrar que sou uma noiva. Ouviubem, Sr. visconde? uma noiva!... Tenho atrás demim o meu berço de virgem, á minha frente o meuleito de esposa... estas duas cousas santas, umaguardada por uma mãi, outra velada por Deus I Ah !

é preciso que cessem estas temeridades... Falla-mede seu coração .. da mesma sorte que me falia doseu ódio, do seu ciúme, de sua vingança. Oh ! hade concordar, Sr. visconde, que á primeira vista

dir-se-hia que sua alma é um covil, é uma jaula ondetodos estes animaes ferozes se mordem e estrangu-lam. E depois, fosse a sua alma pui^a para o céo,

iliuminada apenas pela minha imagem, que meimportaria tudo isto?... Eu já lhe disse, Sr. gover-nador, duas palavras, que bastam. Eu amo a Gon-zaga!... E se o senhor sabe o que é o amor, devesentir que eu não posso ter o ofíicio de olhar cora-ções... Ouça bem, Sr. governador. Eu amo a Gon-zaga! .. E embebida num. dos seus olhares, nem

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268 GONZAGA

sequer mover-me-hia, mesmo se o mundo inteiro

desabasse em torno de mim.

O GOVERNADOR (como que a si próprio] : — Éverdade! Que te importa o meu amor? Que te

importa a minha morte?... Oh! mas í^ a fatalidade!

É sempre a fatalidade!...

Maria : — Ainda ameaças, senhor ; mas isto alémde inútil, é cobarde...

O GOVERNADOR Uerrivel) : — Não me insulte,

senhora. (Brando.) Pôde insultar-me, Maria, masao menos escute-me um momento, um instante ; é

alguma cousa de serio, de terrível, que eu voudizer-lhe; é sua vida, a minha, e a de mais alguémque se joga nesta fatal partida... Ouça Maria...

Maria [altiva] : — Senhor

!

O GOVERNADOR : — Oh ! deixe-me chamal-a poreste nome, porque é assim que eu costumei-me ainvocal-a nas mmhas horas sombrias, nas minhashoras de condemnado; quando o céo era negro,como a abobada de uma catacumba, e a terra fria

como a lagea de uma sepultura. Oh! era este nomeque eu invocava como aragem bemfazeja» quando acabeça me escaldava, e no emtanto era elle que mederretia bronze em lava pelas veias... Oh! é umahistoria sombria, mas que ó preciso que escute...

Maria [irónica] : — Eu o escuto, Sr. visconde;as mulheres são curiosas, e affirmo-lhe, a minhacuriosidade está por demais excitada. Quero veraté que ponto chega este assombro de impertinência.

O GOVERNADOR [sem ouvil-á) : — Um dia passavauma cavalgada pelas ruas de Villa-Rica... Soavamas trompas, turbilhonava a multidão, as janellasresplandeciam de colchas e de physionomias ani-

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ou A BKYOLUÇÃO DE MINAS 26»

madas, os cavalleiros caracolavam sobre lindos

ginetes, emquanto as damas se inclinavam paraseguir com os olhos este esplendido cortejo... Eraum dia de festa... ou um dia de maldição.. E tudoisto era por um homem... Este homem orgulhoso,cônscio de sua força, terrível na sua grandezatyranna... sorria de desdém, como um soberanorodeado de escravos... e sentia-se feliz porque erapoderoso. . Sim! elle era feliz. O poder tinha sido asua única paixão... a virgem... dos seus sonhos demoço, o amigo de sua virilidade ; a esposa de suavelhice... Oh ! elle era feliz... Não se impaciente,senhora, eu vou dizer-lhe tudo... De repente ahomem levantou os olhos para uma gelosia... Ahiestava uma mulher... ou talvez um demónio de bel-leza... EUa era bella ! sim, muito bella... tinha umafronte soberana e larga como um firmamento dealabastro, as sobrancelhas curvas e delicadas comoo arco-iris do amor, uma boca que pedia beijos,

uma alvura, que se teria manchado, mesmo coma brancura de uma lagrima. E os cabellos eramnegros. Oh! na noite daquelles cabellos a próprialuz quizera transformar-se... e os olhos, meu Deus...pretos, rasgados, brilhantes eavelludados eram comouma pérola sob a concha rosada das pálpebras...

O Creador invejaria um dos raios da(|uelles olhospara resplandecer no diadema da Virgem... EraV. Ex.% minha senhora. Eras tu, Maria! O homemera eu... Era, porque já o não sou... Que longasnoites de vigília povoadas de mil formas de volúpia,

de beijos insensatos, de lagrimas lascivas cavaramme rugas na fronte, abysmos no coração, aquellascheias de trevas, este cheio de amor! Porque dizer-

te mais? O demónio amou o anjo. [Movimento deMaria.) A treva quiz abraçar a luz, o reptil perdeu-86 pela flor : ohl não precisa fallar... Eu sei o que

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270 GONZAGA

vai dizer. Sim, eu... devia ter afogado este filho

maldito de minha alma; devia devorar este amor,como o cascavel engole os filhos, mas era impossí-vel. .. Depois... uma noite... era uma noite de sen-sualismo e de loucura, uma noite que devia ser bemnegra (negra, como o pensamento horrível que lhe

sahiu das entranhas ) Eu ouvi uma voz que merepetia : Ella será tua ! Sabes tudo o que encerraesta palavra? Oh! nunca o saberás; pois bem! Eusonhei-o, e sonhei-o tanto que ao despertar destepesadelo, levantou-se em mim um outro homem quetinha uma cabeça de condemnado e um braço deassassino... Então soltei uma gargalhada que hor-rorisou a mim mesmo e jurei cjue serias minha.ÍJRiso de Maria.) Tu ris? pois jurei, não sobre o

meu crucifixo, mas sobre a cruz do meu punhal. Eo homem que cumpriu o juramento, que tem agoranas garras corao o gavião o passarinho, tua vida,

e tudo quanto tu amas, vem dizer-te : Maria, eu souo senhor, eis me feito escravo... deixa-me apenasfanar com os meus beijos as flores que tu roçaresde leve com a aza dos teus pésinhos ! Escuta, eusou bem desgraçado ! Ouve ! amo-te com um amorúnico, immenso e virgem como tul...

Maria : — O seu amor virgem! Sim, é isto..

Uma mulher é moça, é feliz, é talvez mesmo bella. ..

Tem a primavera que lhe canta nos olhos, o amorque lhe suspira no coração... Ella ama! E os pobresamantes embalados em seus sonhos de esperançaembriagam-se, respiram-se,olham-see vão correndosobre os dias, acreditando que o cóo é uma arvorede saphyra, de onde a terra pende como um ninhoembalado entre as estrellas. E este ninho Deus ocreou para elle! Sim... para o seu amor... Mas derepente vêem alguma cousa boquiaberta, negra,horrível, que boceja a seus pés... e isto lhe diz : Tu

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 271

és bella, ó virgem, ta és pura, ó noiva; pois bem, eusou horrivel. mas eu te amo ! eu sou tão negro comoé alva a tua capella, mas eu te amo ! Vem que eusou a fatalidade. Vem! queeu sou a sepultura, eu te

oífereço a minha virgindade de lama ! [Ao governa-dor ) A virgindade de seu coração! mas é a virgin-dade da cova... Um pouco de lodo sacia a terra, umcorpo de mundanaria deve fartar-lhe a fome. .. {Gesto

do governador.) Oh! Não me interrompa... eu ouvi-

0, deixei-o derramar do seio toda essa baba que osenhor chama amor! o amor, meu Deus! mas é oponto onde se fundem os raios de duas estrellas...

a fusão de duas gottas de orvalho sobre um lyrio...

uma cousa pura, diaphana, luminosa, sobre a qualos anjos passam voando sem corar... Não ! não é oabraço da larva com a escuridão, o coito do limocom o lodo. Amar ! Mas Deus só concede isto ásalmas puras. Isto que o senhor diz amor é um deses-pero de abraços, é uma raiva de beijos, é a invejasombria de Satanaz vendo a felicidade no céo... É oódio do cego que apaga a luz que não vê... Egoismoinfame! [Gesto do governador.) Sim! infame! O se-

nhor disse comsigo : ali ha duas mocidades que secobrem com flores — fanemol-as... Ali ha duas au-roras que sorriem — turbemol-as... Ah!... Eu osei!... Mas é loucura! Porque eu amo a Gonzaga.Sim ! a elle, bello, moço, com um coração illuminadopela grandeza, com a cabeça radiante de génio... Eelle me dá tudo isto. Ouve bem? Eile tem tudo isto

a dar-me, por isso o amor que eu lhe voto é estreme-cido como o primeiro beijo de Vénus, puro como aprimeira lagrima de Eva... E o senhor é velho! é

ieio...tem o coração mais envelhecido que o corpo,a cabeça mais caduca do que o coração. Eu o ano-mino... eu o desprego!..

.

O Governador : — Ah ! tu me abominas... Ah *

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272 GONZAGA

tu medespresas... Pois bem, o teu desprezo e o tenfdio eu os quebro entre os dedos, como o brinco devima criança... porque tubas de ser minha. .

Maria : — Ah ! ah ! ah ! Pobre homem

!

O GOVERNADOR ! — Ri! ri! Porque vais chorar!Sim, é isto... eu sou velho, feio; tu me repelles. Elleé bello, é mo^^o; tu o amas E se eu disser que tu

has de ser minha, rirás como agora o fazias... Ah!tu o amas... Tanto melhor!... Ah! tu o adoras...Muito bem !... Ah! tu te matarias por elle .. A mara-vilhas ! Eu quero mesmo que tu o ames, porque, senão mentes, o teu amor é quem ha de perder-te.

Maria : — Faz-me piedade! Julguei-o um mise-rável... vejo que não passa de um idiota.

O governador [tira lentamente os papeis dobolso : — Vê... {tem-nos na mão.) Conhece-os per-feitamente...

Maria (horrorisada) :— Ah! ..mas isto é horrível,

senhor I Isto é monstruoso,meu Deus! Estes papeis I

Dê-m^ estes papeis, senhor

!

O GOVERNADOR : — Sabe V. Ex.' que a cortede Lisboa dar-me-hia muito dinheiro por elles?...

Bem vê seria muita generosidade... Eu não passode um pobre homem.

Maria : — Oh I mas o senhor roubou-m'os. O se-

nhor é um infame, é um miserável.

O GOVERNADOR : — Não, eu sou um idiota.

Maria ! — Mas é a vida de mil pessoas... que ahitem em sua mão ! Abafe a revolução, mas poupetantas victimas. Que força o pôde levar a este hor-rível sacrifício ?

O GOVERNADOR : — Eu amo-a.

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ou A REVOLUÇÃO DB MINAS 273

Maria : — Meu Deus!.. Eu amo-a, eu amo-a,porém sua vida mesmo corre perigo... De todas es-

tas fair.ilias despovoadas não poderá sahirum braçoque o apunhale ? Para que se entrega a esta vin-gança tremenda ?

O GOVERNADOR : — Eu amo-a

!

Maria [com fingido enternecimenio) : — Sim

!

Deve ser um amor tremendo este ! Ah ! eu ainda nãotinha visto este lado monstruoso, porém formidávelda paixão .. esta loucura que,á força de espantosa,torna-se grande... É alguma cousa vertiginosacomo o abysmo... mas profunda como um céo detempestade... Oh 1 eu começo a comprehender o queseja a desgraça... É preciso que o coração soffra

muito para entregar assim sua vida ao remorso, suaalma ao inferno... Mas, senhor, por piedade ! Eu nãoposso ainda amal-o; mas bem vê que não o odeio...

Meu Deus! eu desejaria enxugar todas as lagrimas...

eo senhor... sim, eu devo consolal-o, porque o fiz

muito infeliz... tão infeliz que já não lhe posso que-rer mal, o senhor assombra-me !... {Chorando.)

O governador : — Maria, escuta... São as mi-nhas ultimas palavras.A senhora tem nas suasmãosa vida de muitas pessoas que estima, a desse homem1 quem ama, e deste outro que a adora. Pois bem,Maria !... todos estes olhos estão íixos em ti, todasestas bocas tremulas de condemnados murmuram-te piedade... todos estes soluços de agonisantesclamam-te compaixão... são elles todos que t'o di-

zem : Salvae-me a vida ! sou eu, Maria, que te digo— salva-me a alma... Sim ! que eu sou o maior con-demnado !... Salva-os, Maria... çoraue a benção demão que já se aproxima da eternidaae é santificadapor Deus. Do contrario creio que aqui haverá al-

guma cousa horrivel, enorme, medonna... um cada-

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274 GONZAGA

falso levantado por ti, muitas cabeças derrubadaspor ti... e estas caras lividas passarão nos sonhos doteu travesseiro e repetirão : Mataste-me... mataste-me... e a minha face mais livida ainda que a dosmortos te repetirá: Perdeste-me, perdeste-me !...

Escolhe... e tudo estará terminado !...

Maria {chorando) : — Oh ! meu Deus ! meuDeus !

O GOVERNADOR '. — Eu amo-a, Maria.. . não zombede mim ; eu talvez que a faça feliz. E depois, maiorprazer pôde ter uma alma como a sua do que entor-nar a felicidade por onde passa?... É esta a missãodas mulheres... e tu és um anjo... Depois tu me fa-

rás bom, talvez me purifiques .. Oh ! um raio de sol

faz de um paul um valle... Este amor que me fez

horrível me fará também sublime... Escolheescolhe..

Maria [enxugando os olhos) : — Eu- escolhi...

O governador {sôfrego) : — Então, amas-me,Maria ?

Maria {fingindo pudor) : — Oh ! não me per-

f

junte isto... Eu devo mesmo, sim... devo affirmar-

he que o não amo... mas admiro tanta loucura queimaginou por minha causa, tenho remorsos de tei-o

feito desgraçado... Mas bem vê... não era minha aculpa... Eu nem sequer sabia-o... É talvez horrível

tudo quanto eu digo,.. Agora eu comprehendo esta

palavra— Fatalidade

!

O GOVERNADOR : — E outão, Maria?

Maria : — Ainda não comprehendeu, meu Deus 1

Mas isto é tyranno ! Deixe-me ao menos ver quan-tas victimas nós salvamos... Dê-me estes papeis...

O GOVERNADOR : — Não brinquo, Maria ; ó bor-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 275

rivel brincar com a serpente. Então, é minha ? Éminha... diga I

Maria : — Ah ! eu bem o sentia, fiz talvez malem dizer-lhe tudo isto... De facto, eu mesma já menão comprehendo... Já não lhe posso inspirar con-fiança, desgraçada de mim ! Eu já não a inspiro a

mim mesma... Oh I eu creio que fiz um grande crime,mas deixe-me ao menos lembrar que misturei-o comuma virtude .. Dê-me estes papeis... (Gesto negativodo governador.) Bem vê ? Vai ainda desconfiar demim. Meus Deus, cedo começa o meu castigo, masnote que eu sou uma fraca mulher ; estamos sós...

E antes que eu tivesse rasgado estes papeis já o

senhor m os teria arrebatado...

O GOVERNADOR (olhã em torno de si, desconfia-do... depois entrega-os lentamente] : — Aqui os tem,Maria

!

Maria {tem-se approximado pouco a pouco damesa da direita onde estão as cartas; vai., abrindolentamente os papeis) : — Meu Deus, meu Deus, eujá não tenho remorsos I... Salvei-os a todos... per-doa me, Senhor

!

O governador : — Oh ! tu me salvaste...

Maria {faz um falso jogo. Tendo-se approximadoda mesa, agarra os papeis que estavam sobre ella

e atira-os á vela, emquanto recua para a esquerdacom os verdadeiros : — Não ; eu zombei de ti...

O GOVERNADOR [precipita-se para a mesa da di-

reita, de onde tira as carias) : — Ah ! ah ! ah ! Asenhora queria illudir-me... Louca. [Ajunta-as ra-pidamente sobre a mesa.) Agora é um duelo demorte... Oh ! Eu sahirei com as mãos cheias de san-

gue...

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276 GONZAGA

Maria {que tem queimado na vela os papeis ver-

dadeiros^ da revolução) : — E eu de cinzas...

O governador : — E tu verás que o anjo... [vol-

tando-se). Oh ! maldição

!

Maria : — Ah ! ah ! ah l Que o anjo queimou as

azas do demónio l...

TM DO SEGUNDO ACTO

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ACTO III

Os martyres

(O theatro representa o exterior de nma casa. Á direita amm lu ga Taruida,

cujas oolamnas chegam guasi ao meio da scena. A' esquerda ai bosqne. Aofundo brilliam em dlatanoia varioa íogoa que alamiam aensaUa de escravos

É xtoite.

SCENA I

o GOVERNADOR e SILVÉRIO

O GOVERNADOR i — Eiitão, Silverio ?

Silvério : — Tudo está prompto.

O GOVERNADOR i — Os meus homens ?

Silvério : — A hora em que falíamos nos têmdentro das unhas. Oh ! ninguém imaginaria queneste logar está no centro de um circulo de ferro...

Olhe, Sr. visconde, aqui {apontando para a esquer-da) cada arvore esconde um vulto, cada vulto umpunhal. Acolá (aponta o fundo) a noite do céo con-funde-se com a noite da pelle dos seus escravos. AUi[aponta a D. A.) pôde V. Ex. bater com o pé em terra,

como dizia Pompeu, e delia saltarão legiões... E tudocoberto, amparado, mascarado... Deus teve a bene-volência de enviar a noite, este grande dominó do

16

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278 GONZAGA

carnaval eterno... E não gastou debalde a seda. Eume incumbo do espectáculo.

O GOVERNADOR '. — Bem, bem, desta vez não meescapará.

Silvério : — Oh ! não tanto I não tanto ! Épreciso que vamos mais de vagar. .

.

O GOVERNADOR : — O que dizes ? heiíi ? Falia

depressa ! Vamos ! Então desconfias ?

Silvério : — Estes homens ainda não estãoaqui.. . e mesmo se estivessem poderiam sahir.

O GOVERNADOR : — Não acabarás ? Que diaboestás a dizer ? Sahir ? Mas por onde ? Porventuranão tenho soldados ? estes soldados não têm espa-das,estas espadas não têm fio ? Ah ! parece que quertambém zombar, Sr. Silvério...

Silvério : — Perdão, meu senhor, mas nadadisto basta.

O GOVERNADOR : — E que mais ? Mas é o sup-plicio do fogo lento. .

.

Silvério : — Deixe-me V. Ex. fallar um ins-

tante... Vê esta casa ? Aqui é o lado,. . (aponta, aparte visível do edifício.) Acolá a frente. (Apontapara o fundo á direita.) Além o outro flanco...

todos sitiados...

O GOVERNADOR : — Vai agora fazer-me a topo-graphia. Mas eu conheço-a perfeitamente... e portrás fica o rio... que mais ?

Silvério : — Sobre este rio passará um barco,sobre este barco os conspiradores.

O GOVERNADOR : — Mas ahi não ha barco.

Silvério. — Collocaram-n'o hoje.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 27t

O GOVERNADOR.— É preciso que o tomemos.

Silvério : — Impossível! Ha vigias que o guar-dam do lado opposto. Demais, isto levantaria a des-confiança e ficaríamos desconcertados... Accresceainda que é preciso, para tomal-o, passar por estacasa. h V. Ex. sabe que seria perder-nos.

O GOVERNADOR ." — Oh! Ea daria a minha fortunapor este barco.

Silvério : — Eu espero dar-lhe o barco semtomar sua fortuna, Sr. visconde... Para atravessaraquelle limiar é preciso ser amigo, para servir-nosé preciso ser inimigo. Temos, pois, necessidade deencontrar um amigo inimigo...

O GOVERNADOR : — Compreheudo o enigma.Trata-se de um traidor... sim!... mas onde encor-tral-o ?

Silvério : — Um amigo do estado!... Eu t-^^cho

a honra de pol-o á sua disposição, Sr. governador.

O GOVERNADOR : — Mas quem é? quem é? Diga-Ihe que terá uma larga recompensa, porque deverasvai salvar-nos esse homem.

Silvério : — Não, é uma mulher. É Carlota,uma escrava minha. V. Ex. sabe esta historia ; tenho-Ihe fallado já desta heroina de romance, bella comouma serpente, pregando sermões como um frade,

roubando uns papeis como um bandido; no mais,bonita e quasi tão branca como qualquer um denós... Oh! fará um lindo effeito vestida de rapaz,como espero apresental-a em breve a V. Ex.

O GOVERNADOR : — E ella será capaz?

Silvério : — De fazer tudo que lhe ordenarmos,sem que comprometta o resultado que esperamos.

k

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280 GONZAGA

Oh ! responao pôr ella. Ha um talento todo especialnosexo feminino para a mentira. É o segredo quea 8eri)ente da Bíblia confiou-lhes. Verá. Esta linda

rapariga entrará naquella porta levando a Gonzagauma carta que retardou de propósito... depois desii-

sará pelos corredores. Chegará ao barco, dirá aosfeitores que vai guardar alguma provisão ali. . . abrirácom toda presteza uma fresta no costado, por ondepossa entrar agua a valer, e se escapará n'um ins-

tante , deixando apenas sobre o chão um rasto tãoligeiro como o de uma aza, tão pequeno como o

de uma cabra. Ainda um ponto de contacto entre amulher e Satanaz. Ah ! n'um dia de pachorra escre-verei um tratado sobre este assumpta!

O GOVERNAi>OR : — Muito bem. Mas, por minhafél se começa a publicar o primeiro capitulo, creioque vai ter muita extracção, porque sinto passos.Bem ! Ver sem ser visto é uma semelhança comDeus. [Sahe pelaE. B.)

Silvério (ao desapparecer pelo fundo, apontandoòs conspiradores) : — Ser visto sem ver ó umasemelhança com os fuzilados. Ah! ahl ah!

SCENA II

TIRADENTES e CLÁUDIO

TiRADENTES : — Nada ouviste?...

Cláudio : — Apenas o grito do bacoráo na soli-

dão da noite.

TiRADENTES :— Entretanto dirse-hia que uma gar-

galhada humana ou diabólica estridulou agora ás

nossas costas.

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00 A REVOLUÇÃO DE MLNAS J81

Cláudio : - Alguma coruja que se ri dos homense quer intimidar as velhas.

TiRADENTES ! — Mas ali, entre os juncos, comoque vi brilhar um sabre ao raio das estrellas...

Cláudio : — É a lua que faz espadas com as fo-

lhas esguias das cannas.

TiRADENTES : — E aqucHes passos que estala-

ram os ramos á nossa esquerda, ao entrarmos namatta?

Cláudio : — Alguma cascavel que espantámoscom a nossa passagem. E depois... que importa?Tens medo ? Seria a primeira vez?

TiRADENTES : — Teuho, como o noivo antes dedesfazer o véo de sua esposada. Tenho medo porella, a minha virgem promettida. E, a propósito,parecemos verdadeiros namorados. Chegámos bemcedo á entrevista.

Cláudio : — É verdade. A lua ainda está portrás das sicupiras do Itacolomi. Entretanto entre-mos. [Prestando o ouvido.) Creio que alguém ca-

minha deste lado.

TiRADENTES : — Então fiquemos. É talvez uraespião que precisamos abreviar. Vejamos. Segurao punhal.

SCENA III

CLÁUDIO, TIRADENTES, ALVARENGA, o PADRE CARLOSe três HOMENS encapotados

TiRADENTES (a um dos que entram) : — Compa-nheiro, a noite está negra como a escadaria do in-

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ferno... Deste passo irei parar ao palácio de Sata-naz.

O HOMEM EMBUÇADO : — Que importa, se ahi en-contrar o que eú procuro?! Porém mesmo nastrevas o génio quebra as cadeias.

TiRADENTES : — Libertãs quoe será lamen. Loucomodo de procurar um homem... tacteando as tre-

vas!

O HOMEM EMBUÇADO : — São as dobras do mantode Deus, e eu quero acordal-o.

TiRADENTES : — E quc lhe queres tu?

O HOMEM EMBUÇADO : — Saber o caminho doCalvário...

TiRADENTES : — Companheiro ! Deus já não osabe! Ha muito que desceu da montanha... O Gol-gotha está tão negro como o inferno, para onde tucaminhas.

O HOMEM EMBUÇADO : — A liberdade vela no seutopo.

TiRADENTES : — Compauheiro, venha o abraçode irmão [Toca-lhe a mão.) Olá! estavas armado.[Cláudio bate três pancadas á porta da casa.)

O HOMEM EMBUÇADO : — E tu também.TiRADENTES : — Oh! nestes trilhos tão estreitos

é preciso algumas vezes apartar os ramos...

SCENA IV

os MESMOS e LUIZ

IjUIz (á porta da casa) : — Quem bate ?

Cláudio : — Eu, Cláudio...

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 283

Luiz : — Entre, senhor... Quem são esteshomens ?

Cláudio : — Amigos... [Os conjurados faliambaixo a Luiz e vão entrando para a casa.)

TiRADENTES ." — Irmão, de que lado vens ?

O HOMEM : — Do rio...

TiRADENTES .' — E que ha lá?

O HOMEM : — Um barco.

TiRADENTES i — Bem. Se fossemos trahidos pel&terra, a agua nos salvaria... Entremos, a menos quenão prefiras ficar ao relento.

O iiOMEM : — Nada ! A noite é uma tenda muitofria. Eu também entro. {Todos desapparecem ; ascena fica um momento vasia.)

SCENA \

SILVÉRIO e CARLOTA

Carlota [entra vestida de homem, envolta n'umacapa. Traz umapequena mascara preta] : — Então,meu senhor, onde está meu pai ? É verdade que vouconhecel-o ?

Silvério : — Ai ! abaixo a anciedade. Ao levantarda lua.

Carlota : — Meu Deus 1 como esta lua tarda

!

1^Quanto tempo esperarei

!

Silvério : — Diz anies quanto tempo traba-lharás :.. Parece que, com a maldita idéa de encon-trares teupaijte esqueces do officio. Vê bem se vais

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estragar tudo quanto tens feito!... E, se nestaultima prova não deslustrares o conceito que de ti

faço, de bom tratante, terás em premio até as minasda capitania... do contrario, travarás conhecimentocom outro personagem menos sympathico. Então?Ficas estúpida como uma pedra? Vai com todos os

diabos emquanto é escuro, e despacha.

Carlota : — Ainda uma infâmia, meu Deus !

Silvério : — Ah! cahes na mania das lamurias!...

Sabes que mais, Carlota ?já estás mo aborrecendocom o maldito vicio que tens de ser velhaca entrelagrimas. Emfim, pouco importa. Toma estes ins-

trumentos e abre uma fenda tão larga que te deixepassar para a felicidade.

Carlota : — É que estes homens, logo que des-cobrirem a traição... podem talvez matar-me e eunão poderei sequer ver uma vez meu pai.

Silvério : — Sim, tens ra':ão. Todos podem aquientrar, ninguém d'aqui sahirá só. É preciso que te-

nhas um salvo conducto. É verdade... esta mascaraserá um signal, mas não basta, todo o mundo temmascara .. É preciso alpuma cousa que ninguém possúa. Vê lá, procura outro meio de seres reconhecidapelo tenentecoronel João Carlos.

Carlota : — Eu tenho este rosário de prata quefoi de minha mãi.

Silvério:—Bem!Bem!nuncaum rosário pensouprestar para tanto! DVm'o, espera um instante.

[Vslí ao fundo.)

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OD A RE^OLQÇÃO DE MINAS 28b

SCENA VI

os MESMOS e o TENENTE-COEGNEL JOÃO CARLOS

Silvério (no fundo) : — Sr. tenente-coronel, nin-guém sahirá d'ahi, á excepção da pessoa que está ali

coberta de uma mascara, e que lhe apresentará este

rosário. São as ordens do governador,

O TENENTE-CORONEL : — Sim, Sr. Silvério.

(Sa/ie.)

Silvério : — Ahi tens, Carlota... Esta mascarae este rosário to darão passagem... Agora vai bateráquella porta. Adeus.

SCENA VII

CARLOTA, depois LUIZ

[Carlota, vai á poria e bate duas pancadas.'^

hviz [sahindo] : — Quem bate aqui a estas horas?

Carlota : — Sou eu, Sr. Luiz.

Luiz : — Quem quer que pejas, estás preso n'umatenaz de ferro... {Pega-lhe o braço). Diz o que queres.

Carlota : — Entregar uma carta.

Luiz : — Dá-m'a.

Carlota : — Não posso, quero fallar ao Sr. Gon-zaga, deixe-me passar. Não vê quem sou? Sou Car-lota, senhor, esta porta sempre me foi franca.

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286 GONZAGA

Luiz [tira uma lanterna furta fogo desoh a capae alumia-a) : — Ah ! então entra. Meu senhor te es-

pera ha muito. Diz-me : o sr. tenente coronel aindaestá decidido a prohibir o casamento? Oh! é umadesgraça .. O Sr. Gonzaga vai talvez enlouquecer,porque de facto creio que ha em tudo isto uma in-

triga horrivel... No momento do casamento rompersem mais attençõescomo noivo .. Diz-me, rapariga,a Sra. D. Maria nada conseguiu?

Carlota : — Nada. O Sr. Gonzaga já não pôde lá

ir. A muito custo minha senhora pôde escrever-lhe,

e assim mesmo é porque obtive alguns vestuáriosque me mascarassem...

Luiz : — É celebre! Vem, minha filha, que euvou conduzir-te. Emfim é sempre uma boa novaqin tenho a levar-lhe. [Sahe deixando a lâmpada.)

Carlota : — Que loucura!. ..

SCENA VIII

Maria [mascarada] : — Meu Deus ! que noitenogra! Como eu tremo de susto! Ah! desgraçadade mim, se alguém mo sorprende! Não; mas nin-guém imaginará que embaixo deste capote de ban-dido bate um seio de virgem, e que esta mascaranegra occulta a pelle branca de Maria !... Oh! comoeu tenho medo ! Mas sinto que ninguém me faria

recuar... é que o vão matar... e por mim, santoDeus ! Eu vou fazel-o morrer, quando daria toda annnha vida para conservara sua!... Essa carta!oh t essa maldita carta!... Parece que o meu anjoda guarda dormia quando eu a escrevi. Entretantoeu já não podia esperal-o, eu preciso delle. meu

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 287

Deas, e marquei esta maldita entrevista que meutio descobriu... Como? Eis o mysterio! um punhalirá neste momento fatal tomar o logar do amor...

Mas, não, não, e não ! Fosse preciso quebrar meucorpOj minha alma, minha honra entre o ferro deum miserável e seu coração... eu fal-o-ia e faço...

Ah! a culpa é da couraça que nasceu para estalar

gor seu dono. Eu me perco. Talvez arrisco minhaonra, meu nome... meu Deus !... eu o amo... parece

que isto vale mais que todas essas cousas... E depoisé preciso salval-o... Sim, que me importa cahir?...

É talvez ás vezes uma virtude... Se as estatuas nãocahem é que ellas não amam... E eu não sou umaestatua, sou uma mulher*, e uma mulher que amaéalguma cousa menos brilhante, porém maisscintil-lante que um : njo. É preciso bater áquella porta.

Vejamos. Ninguém estará de certo aqui... Bem?muito bem! estou só...

SCENA IX

MARIA e o GOVERNADOR

O GOVERNADOR [tem entrãdo a estas ultimas pala,-

vras) : — Só com um homem

!

Maria : — Meu Deus 1 estou perdida I (fíecúa

dous passos.)

O GOVERNADOR : — Nada de medo !... porém tar-

daste muito!...

Maria : — E o senhor sabia que eu tinha de vir

aqui?

O GOVERNADOR : — E que vais para ali. E ainda

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288 GONZAGA

mais, que se tu faltasses... perderias a única pessoaque amas no mundo ! !

!

Maria : — Meu Deus! quem lhe disse? Mas istoé de enlouq lecer.. porém não me perca pelo amoráe Deus... não diga quem eu sou, se é que o sabe...pqraue parece que o senhor sabe tudo... tudo... vêminha cara atravez desta mascara, meu coraçãoatravez de minha carne.

O GOVERNADOR : — E tão bcm... que sei queembaixo dessa seda ha um lindo rosto, embaixodesse capote um seio avelludado, dentro dessas botas

um pésinho côr de rosa, sob esse disfarce umamulher...

Maria: — Basta, basta, por piedade... não vádizer meu nome, podem ouvil-o, e seria uma grandedesgraça. Oh ! tenha pena de mim. Mas quem é osenhor ? Quem é?

O GOVERNADOR : — Ali tous uma lâmpada...

vô?...

Maria : {vai precipitadamente á direita,pega dalâmpada e alum^ia a face do governador) ; o gover-nador !. . oh!... (Deixa cahir a lâmpada que se

apaga.)

O governador : — Fizeste mal em apagar estaluz. Eu quizera a retribuição, mas ainda peior emgritar tão alto... Tens realmente medo de mim? bemsabes que eu sou teu amigo.

Maria :— Amigo ? ! . .

.

O GOVERNADOR :— E porquo não, Carlota ?

Maria : — Carlota?!...

O GOVERNADOR : — Sim, eu sei teu nome. Aindamais o que vens fazer. Ainda mais quem te enviou...

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Tu és uma escrava... vais por ordem de Silvério

(sob pretexto de trazer uma carta) entrar nesta casa,donde chegarás ao rio, e um instante depois abrirásuma fenda no barco que lá postaram e desfarte cor-tarás o único meio de fugida dos revolucionários, sei

mais que tu és um génio de prudência, um demóniode astúcia. Então... estás contente?

Maria (esíupida) : — Muito contente... é isto...

Foi o Sr. Silvério quem o disse... (Rápido.) Masdeixe-rae passar. Eu voltarei já, Sr. governador...Adeus! Creio que não enganou- se quando disse queeu sou um demónio de astúcia !...

O Governador :— Adeus, minha bella, alua vemdespontando, eu gosto da treva. Até já. (Sahe.)

Maria : — Oh ! meu Deus ! meu Deus I nem umraio de luz neste céo !... nem um raio de luz

nesta cabeça... tudo é negro... negro... tão negroque tu não verás o trama horrível destes miseráveisnem a dor dilacerante de uma fraca mulher...{A luavai-se levantando por entre asarvores.— Comuma idéã súbita.) Ah ! eu salvarei. {Vai ácasa, ma»pára ao abrir-se a poria.)

SCENA XMARIA atráa de umacolunma, GONZAGA na varand».LUIZ i

porta.

Gonzaga {com. um papel na máo, lendo) : —« A uma hora da noite, sob os jasmineiros que es-« cutaram as nossas primeiras juraS; vem receber as« minhas primeiras lagrimas. 'íua Maria. » Sim, euirei... Eu já não posso viver sem ti, Maria. A vida

P. A, 17

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me desmaia no seio como o ultimo canto de umcysne moribundo. Eu definho de languidez e deabandono... de martyrio e de angustia... Sem ti euj>erco a força, a alma e a vida... Longe de teu olharo céo parece um craneo immenso que me abafa comoao verme... Mas não ! Este papel é minha pomba deesperança... Pobre amiga!... Nós somos como Ro-meu e Julieta... Temos um jardim banhado de luar, e

duas almas banhadas de amor. Eis tudo o que nosresta... Oh! mas ainda é muito! É tudo quantobrilha na vida... é a luz da terra e a luz do céo.

Adeus, TjUÍz, Adeus! {Luiz entra.)

Maria {sahindo de trás dacolumna) : — Não da-rás um passo daqui.

Gonzaga : — E quem ousará prohibir-m'o !

Maria : — A tua vida...

Gonzaga : — Minha vida !... mas eu corro a bus-cal-a, porque esqueci-a aos pés delia.

Maria : — Nem poderás ir morrer ahi... Fica,

eu o quero !...

Gonzaga : — Ah ! tu o queres ?!... mas tira foraessa mascara, que eu desejo conhecer a cabeça des-vairada que ella esconde... Tu o queres? !... masnão sabes que ninguém poderia dizer-me duasvezes esta palavra ? E só ha uma pessoa...

Maria {tirando a mascara) : — Que sou eu !...

Gonzaga [sorpreso] : — Maria ! [Reconhece'a.)

Maria I Maria ! tu vens trazer-me a vida !...

Maria [soluçando) : — Oh! não, náo ! desgra-çada de mim ! venho-te annunciar a morte...

Gonzaga : — Mas ó ainda a vida, pois que parte

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 291

de tua boca... Sim, não chores, Maria! Eu seria omais desgraçado dos homens se uma só de tuaslagrimas cahisse por mim desses olhares. Não cho-res, Maria!.. . Fallas-me em morrer... mas a peiorde todas as mortes é ver-te chorar...

Maria : — Sim ! não devo chorar I... e eu já nãochoro... vês? Se meu coração quizesse soluçaragora, eu sinto que teria coragem de estrangulal-ocom os dedos... porque Os momentos estão conta-dos, e é preciso que te salves... [Movimento deGonzaga.) Oh ! não me interrompas. Escuta e obe-dece... Sim ! eu sou uma mulher, eu sou tua escrava,mas quando se trata de tua vida, eu peço-te aomenos para não me veres morrer de desespero...{Movimento de Gonzaga.) Cala-te... ouve... o tempocorre, voa... Toma esta mascara, esta capa, estechapéo, e foge... não como um fugitivo... A astúciaaqui perderia tudo. Audácia e só audácia!... Encon-trarás a alguns passos soldados...

Gonzaga : — Soldados

!

Maria : — Sim, sim. Dirás que és um enviado dogovernador.

Gonzaga : — Do governador! Espera, Maria. Épreciso que me expliques isto.

Maria : — Mas eu não tenho tempo... vai, vai!...

Gonzaga : — Não, eu fico emquanto não com-prehender este mysterio horrivel.

Maria : — Ficas! Ficas! Mas tu queres ver-mecahir morta a teus pós?!...

Gonzaga : — E tu queres ver-me cahir deshon-rado aos teus ?

Maria : — Meu Deus ! meu Deus !,..

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•2\n GONZAGA

Gonzaga : — Maria, escuta .. Ali (aponta a casa;

estão todos os meus amigos... que vão talvez morrer... Queres que eu os abandone?... Ali estámmhapátria. Queres que eu a venda? Não! tu não mequererás deshonrado... tu me preferirás morto...Maria, o que me dizes é solemne e tremendo... émuito grande para que pertença a mim só... é pre-ciso que estes homens o saibam. Perdoa, mas, pelomeu amor, quando tu fazes um heroismo, não meprohibas, Maria, que eu cumpra um dever.

Maria {impaciente) : — Pois bem, vai, vai...

chama-os, porém depressa, muito depressa... Eulhes direi tudo... tudo

;quanto eu sei... Vai

!

SCENA XI

Maria [só) : — E o tempo que caminha !...

e os soldados que vão talvez chegar... e a mortedelle que se aproxima! Oh! e eu não esperavaisto, entretanto devia prevel-o... Se eu soubesse!...

Mas que poderia fazer ?... Como estes homenstardam! Dir-se-hia que espero ha séculos... Sefossem as gotas do meu sangue que corressem...mas é a arêa que vai passando na ampulheta dotempo... é seu corpo que vai talvez se inclinandopara a morte... Ah ! eil-os emâmi

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS iííj

SCENA XII

M .RIA, GONZAGA, TIRADENTES, CLÁUDIO, ALVARENGA,PADRE CARLOS, LUIZ e mais CONSPIRADORES.

Gonzaga : — Meus amigos, creio que Deusainda não marcou a liberdade deste povo... Oque nós julgávamos uma aurora é talvez um relâm-pago sangrento.

Alguns : — Então o que temos ?

Gonzaga : — Não sei.

TiRADENTES : — E quem o sabe ?

Maria [adiantando-sé) : — Eu.

Alguns : — Como ó o nome deste homem ?

Maria : — Que importa o nome ? Chamai-mea morte, se quizerdes, porque eu venho dizer-vosque estais trahidos, vendidos, presos, condemna-dos, mortos. Oh 1 é terrível, eu bem o sei, masé a verdade ! Outra era de certo a nova que eusonhava, mas as espadas nos cercam de todos oslados... O governador nos espia de seu antro, eDeus não nos vê do céo !...

Todos : — Traição !

TiRADENTES : — Mas temos ainda um barco

!

Meus amigos, ao remo! Os espias farão fogo daoutra margem; mas a correnteza nos levará devencida ! Aos remos e ás pistolas, e salvemos a

liberdade de nossa pobre terra !

Maria : — Já não tendes barco.

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294 GONZAGA

TiRADENTES : — Mas é impossível ao menos queentre nós não esteja um Judas...

Todos : — Quem é o traidor ?

Maria : — Carlota, ou antes Silvério. Obarco deve ter ido a pique a estas horas

;porque a

miserável, sob um pretexto infame, veiu executaras ordens do governador.

Cláudio : — Oh ! eu sempre previ !...

Alguns : — Estamos perdidos I...

TiRADENTES : — Oh ! nossa pátria foi vendida I

e em que momento ! quando a revolução levantavaa cabeça, quando a America despertava, quandoeu sentia o vagido do futuro nas fachas da liber-

dade, quando iamos agarrar o fogo sagrado. comoo Prometheu escalando o céo ! Sonho sublime !...

despertar tremendo !... O povo vai gemer ainda nocaptiveiro ! os vampiros vão beber a ultima gottade sangue desta nobre terra... e as selvas secula-

res que viram o homem primitivo atravessar as

brenhas no trilho da onça bravia, vão ver agora o

tigre estrangeiro correr á cata da pobre raça bra-zileira... E os rafeiros hão de dilacerar-lhe a pelle

como a besta brava ! Raça desgraçada ! Deus nosfadou para a liberdade, temos a escravidão,., deu-nos o oceano — temos a masmorra... deu-nos os

Andes — temos a forca !.., Eis tudo o que nosresta \...

Gonzaga : — Pois bem, senhores, é ainda algumacousa. Nós temos o cadafalso,., é quanto nos basta!

O cadafalso!... mas é um pedestal.,. Para o tyrannoali o martyr se levanta como um fantasma, para ocaptivo como um Christo. O cadafalso!... Os ho-mens pensam que levantaram um parapeito sobre o

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OD A REVOLUÇÃO DE MINAS 295

nada, não, levantai^am um degráo para o céo... e lá

decima... eládo alto. . como a águia que rola mortado topo do seu rochedo, como a avalanche que de-

saba do cimo dos Alpes... será grande, soberbo, gi-

gantesco o tombar das cabeças revolucionarias nosbraços do povo, o espadanar do sangue de titães naface dos tyrannos! Sim,não nos deixaram viver paraa pátria, morreremos por ella. . . Meus amigos, nestemomento solemne nós escutamos um rumor su-blime... é o futuro que nos sorri... E uma campa eum berço — campa enorme de nossos avós escravosque nos diz — Vingai-nos ;

— berço enorme denossos filhos que nos diz— Libertai-nos. . . Saiba-mos morrer — entre estes dous concertos divinos

um da aurora da vida, outro da aumra da eterni-

dade ! Morramos.

Maria : — Morrer ! morrer ! Eis tudo que eualcancei parati !... Morrer !...

Gonzaga (recua e encostase a uma columna) :

-Ah !...

Cláudio (aproximando-se de Maria) : — Mor-rer... e porque não ? Escuta, bello pagem ! Tu vais

ver que a morte não é tão feia como se pinta. Sabesa historia de Roma ? Talvez não, mas vais conhe-cer quanto perdeste... Diz-me cá, nunca ouviste fal-

lar no banquete da morte que aquelle soberbo povodava aos condemnados ?... pois bem, escuta... éomeu segredo ... [Falla-lhe baixo.) Então ainda tensmedo de morrer ?

Maria (como que acordando) : — Morrer !... {Ati-

rando-se a Gonzaga.) Mas eu não quero que elle

morra...

Cláudio : — Mas tu disseste que todos estávamosperdidos.

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296 GONZAGA

Maria : — Todos ; menos elle;porque... ouvi

bem, talvez d'aqui possa sahir um homem, masum só, e este homem será Gonzaga. Ah ! vós fallais,

fallais, fallais, e quando eu penso que tudo isto vaiconcluir num meio de salvação, terminais com estapalavra — morramos í Pois bem, morramos ; masque elle se salvo I... Não ó verdade, meus senhores,que elle deve partir, que deve sahir neste instante ?

E eu que lhe tinha dito isto, mas elle não quer...

tem a loucura de tentar contra sua vida, a mal-dade de esquecer o meu tormento ! Mas os senhoressão bons, são seus amigos, peçam-lhe por mim quefuja... Oh ! por piedade ! Para que uma cabeça demais no cepo do carrasco ? ! Emíim, bem se vê queeu tenho razão... peçam-lhe que vá, peçam-lhe...

TiRADENTES (a GoTizãgã) : — E tu que podes sal-

var-te, queres morrer comnosco I... Onrigado, meuamigo ; ó uma grandeza de tua alma, mas nós nãoaceitamos o sacrifício. Parte.

Gonzaga : — Eu fico. Não se dirá que rejeitei omeu cálice de dor.

TiRADENTES : — Mas tu nos podes talvez ser útil

lá fora, e aqui não farás mais que te abysmar noegoismo de sonhar a gloria de martyr, esquecendoque podes servir o povo..

.

Gonzaga : — Pois bem, vai tu que eu fico . Temoso mesmo direito.

TiRADENTES : — Não, enganas-te. Silvério é umtraidor que nos perdeu por nossa confiança. Aestas horas estamos compromettidos e já nãotínhamos outra esperança de viver senão com orompimento da revolução,mas contra ti não ha umsó documento, porque soubeste sempre unir a tuadedicação á prudência. Oh ! talvez que a nossa

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ou A EEVOLUÇÃO DE MINAS 297

leviandade tenha sido a fonte desta catastrophe, e

nós que doudamente procedemos, não consentimosque sofifras por nossa causa.

G0NZA3A : — Não, eu fico.

Cláudio (a Tiradentes, que vai faliar depois aosoutros companheiros) : — É preciso salval-o contrasua vontade. (Approxima-se de Gonzaga ) : Queresficar ? Neste caso salve-se alguém. ..ejáque temosiguaes direitos, entreguemos á fortuna a escolha doinfeliz.

Maria [agarrando Cláudio) : — Não, a sorte nãodecidirá de sua vida.

Cláudio (baixo) : — Perdão, senhor, eu vou fazer

um acaso premeditado. Vou escrever o seu nomeera todas as sortes.

TiRADENTES : — luscreve-uos todos e tiremos oeleito da fortuna.

Todos [menos Gonzaga) : — Sim.

Cláudio : — Oh ! que soberba idéa !... É umagrande banca em que apostamos ! É uma paradasublime ! [Emquanto rasga um papel e escreve empequenas tiras.) Viva o jogo ! o grande rei da lou-

cura com seu cortejo de emoções, sua corte decalafrios, seu povo de possessos ! Viva o jogo ! Omonarcha mais democrata, o grande pontifice dosdisparates, o republicano por excellencia que faz

uma careta ao rei, e uma caricia ao cavalheiro deindustria, e cantando e dansando ao compasso dosdados, vai gritando — Abaixo a razão, abaixo aforça, viva a loucura !... Viva o jogo, parceiros 1. .

e apostemos... Vem tirar o nome do desgraçado,lindo pagem ! (Maria tira um papel de dentro dochapéo.) Espera [rindo) esta carta é de filar, vejamos

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O nome que bica... [Todos fingem pnsta.r muitaattenção^menos Gonzaga.)

Maria : — « Gonzaga » !

Todos : — Muito bem f

Cláudio : — Bravo ! A sorte agarra pelas orelhasa quem lhe nega a mão.

Gonzaga [adiantando-se] : — Um momento,senhores, não se dirú que os homens da razãoeutregaram-se ao deus do acaso. Ah ! meus amigos,quando ha famílias que gemem, interesses queclamam, dores que podíamos curar, lagrimas qaepodemos enxugar, e ludo isto com uma escolhareflectida, com um pensamento nobre, iremosarriscar na cegueira de um papel, como pródigos,responsabilidades que nos pertencem, mas comolairões, dores que não são nossas ? Não I todosconcordaram ; mas eu calei-me, contando protestarse a sorte me escolhesse. [Movimento geral.) Nãome interrompam. Ha homens que vivem como ocedro de nossas florestas, donde a parasita mimosase alhnenta, a cuja sombra crescem as madresilvascampestres , arrancar-lhe a vida seria matar atrepadeira sem arrimo, o arbusto sem abrigo !... Haoutros, porém, que nascem como o cardo na rochado descampado, como o musgo no seixo do rio...

sua morte não ó um cataclysmo, ó uma extincçãosolitária. Pois bem (a um dos que o cercam, e

depois a cada um dos outros], tu tens talvez umairmã virgem, — pobre moça que sorri ainda aoberço, e cora scismando no leito... E que seria dapobre creatura fraca, timida e casta, sem um braçode irmão ao entrar da vida ? Tu tens talvez umafilhinha, loura criança que olha espantada e risonhapara o mundo, porque ainda tem o olhar des-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 2.9

lumbrado pelo céo. E que seria da liuda meninaque balbucia teu nome como uma prece, e que nãopôde sequer comprehender que vai ser orphã ? Tutens talvez a mãi decrépita — sublime velha quetem os cabellos brancos como as serranias os têmde neve, porque ambas se approximam de Deus... Eque seria da fraca mulher sem amparo que viveporque tu vives, que morrerá se tu morreres?...{Cruzando os braços.) Digam-me agora, e é aoacaso que entregam como pais suas filhas, comoirmãos suas irmãs, como filhos suas mais ?

Digam-me, senhores !...

Cláudio : — Oh ! em verdade tu tens uma irmã !

[A Tiradentes.)

TiRADENTES (a Alvavenga) : — E tu tens umamãi

!

Alvarenga ( a outro) : — E tens filhos ?

(Os conjurados passeiam sombrios um momento).

Maria [olha desvairada em. torno de si, depoisadianta-se) : — Em verdade, meus senhores, creio

que este homem tem razão, mas esqueceu-se de umacousa... Acima da orphã sem arrimo, acima da irmãsem protector, acima da mãi sem amparo... está anoiva sem honra !... Sim, a criança crescerá, amoça será feliz, a velha pensará em Deus, e quandomesmo todas morressem... morressem, sim, queimportaria?... Nenhuma delias seria deshonrada I

(Pausa.) E a noiva, senhores, a pobre virgem queentregou seu coração ao homem, sua reputação aocavalheiro, que guardou todos os seus sonhos deamor para elle, que amou a pureza de seus lábiospara entregar-lh'a, a belleza de saa fronte paralazel-o feliz, a vida para queimar a seus pés... sabeiso que será delia? Eu lhes digo... sem fallar de seus

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300 GOÍíZAGA

sonhos perdidos, de suas esperanças mortas, de suaalma para sempre condemnada... a pobre moça serávendida amanhã a outro senhor ! Amanhã sua capella

de virgem será desfolhada pelos dedos trémulos deum velho perdido !... sua boca, manchada como afolha em que o reptil espojou-se !... seu pudor ati-

rado á lama como o tablado de um amor horrendoentre um carrasco e uma victima ! Sim, porque ella

será desse homem que ella vê sempre sobre seuspassos, espiando, caminhando, anelando, destacan-do-se no vermelho da aurora como uma cousa san-grenta, na escuridão da noite como uma cousa indamais negra. Sim, ella será dos beijos e dos amoresdesse homem... desse miserável, cujo olhar sequerjá é uma mancha de lama !...

Gonzaga : — O que é que tu dizes ?

TiRADENTES : — O quo queres com isto?

Maria : — Nada, quasi nada, senhores : entregaruma mascara a alguém que tem obrigação de defen-der uma mulher. Esta mascara salvará duas vidasinda mais,duas honras. [Cláudio sahe.)

SCENA XIII

os MESMOS e CaELOTA menos CLÁUDIO

Carlota [tendo entrado a estas ultimas palavras— Á parte] : — Esta mascara não salvará ninguém.Falta-lheo rosário. [Deslisa por trás dos conspira-dores para fugir.)

Gonzaga (a Maria) : — O que é isto ? diz, oque é isto ?

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 301

Maria : — É uma historia, senhores, é a historiadeste homem (a Gonzaga), de um rival, e a minha.

Gonzaga : — Ah ! estou prompto para partir.

Maria ; — Emíim ! Pois então vem. {Todos en-tram para a casa.)

Luiz [vem do fundo dascena arrastando Carlotapelo braço) : — Tu vais morrer !...

Carlota : — Mas, senhor...

Luiz : — Cala-te, eu sei tudo. Reza a tua ultimaoração, desgraçada, e pede a Deus que te perdoe,como eu te castigo.

Carlota : — Meu pai I meu pai

!

Luiz : — Não, teu pai não virá, mas teu juiz estáaqui.

Carlota : — Então deixe-me rezar um instante.

Sr. Luiz... eu precisoque Deus tenha pena de mim...Elle teráporque eu fui muito desgraçada... muito !..,

Os homens me perderam, e eu fui apenas seu instru-

mento, porgueeu sou escrava, porque mataram-meavergonha, tiraram-me a responsabilidade dos crimes,

sem me arrancarem o remorso. Oh ! é uma cousahorrível ter de escolher entre infamiaeinfamia!... ouperdida, ou traidora !... Eu fui traidora... não, nãofui eu... foi meu senhor... porque eu sou escrava,meu Deus, eu sou escrava 1...

Luiz [confuso) : — Cala-te e reza depressa quevais morrer.

Carlota [depois de um momento) : — Eu já re-

zei. Agora deixe-me beijar pela ultima vez o rosáriode minha mãi... [Em pranto.) Oh ! minha mãi! tu

já não podes proteger-me! Oh! meu pai! tu nem se-

quer me vês!...

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802 GONZAGA

Luiz [voltando-separaella) :— Estás prompta?...{Carlota levanta-se.) Pois então morre !... [Ergue opunhal ; mas, vendo o rosário, abaixa pouco apoucoo braço tremulo — atirando-se sobre o rosário.)

Que é isto ? quem te deu isto ? como tens este rosá-rio ? Ah ! falia... falia... se não queres que eu enlou-queça... Carlota... Carlota... a historia deste rosá-rio... eu quero saber de quem o roubaste... diz em-quanto eu posso ouvir.

Carlota : — Oh ! que lhe importa este rosário ?

Foi-me dado por uma pobre mulher na hora damorte, foi a mão tremula de uma mãi quando ia

afogar-se que m'o atou ao pescoQo .. é a historia deuma defunta e de uma condemnada... historia triste

como tudo que sahe do captiveiro I... Foi minhamãi que ra'o deu com estas santas palavras : « Porelle terás teu pai. » Ai ! minha mãi esquecia-se deminha condição quando sonhava tanta felicidade !

Pobre mãi I E depois quanto soífri para desmentir-te !... Fui para o Rio de Janeiro, onde meu senhorvendeu-me ao Sr. Silvério. « Compre-a, disse en-tão, já não tem mãi, quanto ao pai é um escravo deMinas, que ella nunca poderá encontrar. » Eu eramuito pequena, porém bem me lembro que conti-

nuou contando-lhe uma historia ao ouvido... deviaser bem horrível, porque ambos esses homens riam-se... Eeu... eu apertava chorando o meu rosário deprata contra o peito, e chamava baixinho por meupai ! Depois passaram-se annos, cresci na miséria,íiz-me moça na desgraça... Um dia o Sr. Silvériodisse-me : — Queres teu pai ? Eu não tive gue res-

ponder-lhe ; abracei-me, chorando, aos seus joelhos.Elle entendeu-me e rio-se. « Pois então ouve bem,Carlota, tu és uma moça livre, honesta, que vai ser

aia da mais linda senhora de Minas. » Eu beijei-lhe

os pés, mas ouvio-o continuar n'uma gargalhada

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 303

(c Teu oííicio ali será apenas de denunciar. » Euestaquei de horror. Até então tinha os vicios deminha casta, mas nenhuma, infâmia da alma. Elle

voltou as costas : « já vejo que não queres teupai ! »

Luiz : — Ah I E teu pai ? teu pai por quem cha-mavas ha pouco ?

Carlota : — Oh! elle não virá!... Debalde eufiz-me infame, falsa, traiçoeira e indigna para encon-tral-o 1 Vê todas estas victimas [aponta a casa), euas immolei, porque ia agora conhecer meu pai

!

Luiz [ancioso] : — Carlota ! Carlota ! como se cha-

mava tua mãi ?

Carlota : — Cora. Mas, porque me interrogatanto, Sr. Luiz?

Luiz {desvairado) :— Pois ainda não entendeste,Carlota? Não sabes por acaso o nome de teu pai ?

Carlota : — Luiz ?

Luiz : — É o meu nome, Carlota, eu sou teu pai,

minha filhai...

Carlota [atirando-se a elle) : — Meu pai I .

Luiz : — Minha filha !... [Ouve-se ao longe o toquede corneta.) Pára.

Carlota [solta um grito e cahe nos braços deLuiz) : — Ah !

Luiz [sustentando-se e erguendo uma faca) :—

Venham arrancar os cachorrinhos ao tigre!...

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304 GOIÍZAGA

SCENA XIV

os MESMOS e CLÁUDIO

Cláudio : — Meus amigos, a trombeta de Josa-phat nos evoca ao festim da liberdade ! As taçasestão promptas, o vinho nos espera ! É o banqueteda morte, meus senhores : nós somos como os escravos gaulezes ; amanhã o circo, hoje o falerno !...

TiRADENTES : — Sim, meus irmãos ! e que obrinde dos martyres moribundos da terra soberbada America levante-se ao cóo com o som da trom-beta dos tyrannos estrangeiros ! O futuro os es-cutará ambos... E agora um ultimo abraço aoirmão que parte, um aperto de mão aos compa-nheiros que ficam. Bom dia aos viajantes damorte, boa noite ao peregrino da vida.

Gonzaga : — Meus amigos, adeus !... um ul-

timo abraço... venham, que pela ultima vez querosentir o coração de cada um destes bravos batersobre o meu. {Um dos conspiradores vai abraçal-o.)

O CONSPIRADOR : — Falia de mim a meus filhos.

Gonzaga : — Sim, eu lhes direi que são os des-cendentes de um heróe.

Alvarenga : — Consola minha pobre mãi. Diz-lhoque lá em cima Deus nos espera.

Gonzaga : — Oh! Alvarenga, meu amigo,meu companheiro ! Eu te chamava primo, ésagora meu irmão. Ella terá outro filho em mim.Adeus ! {A Cláudio.) E tu, Cláudio, meu Gli-u-»

ceste, vem cá... não queres alguma cousa paraa vida ? não queres abraçar teu amigo ?

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 305

Cláudio : — Meu irmão ! meu irmão ! Diz aella que receba os últimos versos do moribundo..Adeus

!

TiRADENTES (muito commovidó) : — Adeus !

(Enxuga os olhos.) Diz ao povo que eu morri.

Gonzaga : — Oh ! teu tumulo será seu cora-ção. Adeus ! adeus, meus amigos ! [Vai a sahir.)

Luiz [deixando Carlota) : — E eu, meu se-

nhor moço, e o pobre negro que o carregou emcriança, que lhe deve sua liberdade e sua vida,

e os poucos momentos de felicidade que teve suapobre mulher, não poderá ao menos beijar-lhe

a mão?

Carlota [que tem escutado) : — Ah ! compre-hendo agora. Minha mãi fallava sempre de umacriança que tinha sido o seu anjo. É elle.... e afilha de minha mãi é quem o mata ?... Não, nãoserá assim.

Gonzaga : — Luiz, dá-me um abraço, meuvelho. [Abraçam-se.)

Luiz : — Vá, meu senhor, e Deus o acom-panhe.

Carlota (a Gonzaga e Luiz que estão abraça-dos.) : — Um momento. Esta mascara não basta.Tome este rosário, senhor, e apresente-o ao Sr.tenente-coronel, que só assim passará !... do con-trario está perdido. Vá por ali. Foi a criança queo deu a minna mãi, sua filha vem entregal-o aohomem. (Dá-lhe o rosário.) Vá, meu senhor, eperdôe-me... perdoe á pobre filha de Cora.

Gonzaga [olha interdicto um momento paraella, depois para o rosário, depois para Luiz) :

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3.% GONZAGA

Carlota ! Ah ! pobre Luiz ! Deus emfim te es-

cutou !

Carlota [a, Maria) : — E Vm., minha senhora,tome sua mascara e fuja. Não leve tão longe c

seu heroísmo. (Baixo.) Eu sei que enganou o

Sr. Gonzaga., que disse-lhe que podia sahir, e talvez

o possa se o governador ainda não descobriu o

laço em que foi preso. Ah ! é verdade... vá poraqui. (Aponta a esquerda.)

IVIaria: — Obrigada, Carlota, eu te agradeço avida, porque elle está salvo ! . ..

Carlota: — E agora, meus senhores, perdôem-rae, porque eu vou morrer ; meu pai, abra-me seusbraços, porque eu vou viver.

Gonzaga : — Oh ! nós te perdoamos, porque tu

foste escrava...

Maria : — Eu te perdoo, porque tu amaste muito.

Gonzaga [olha um momeato interdicto o grupode Carlota e Luiz^ depois o dos conspiradores navaranda; faz dous passos para estes, depois paraaquelles): — Meus amigos, adeus... a gloria vosprende ali, a honra me arrasta além ! Adeus !... até

o cadafalso ou acé á gloria ! {Todos acenam-lhe como lenço. — Elle saheprecipitadamente pelo fundo.—Maria acompanha as palavras de Gonzaga e sahepela esquerda,)

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 307

SCENA XV

os MESMOS menos GONZAGA e MARIA

[Ouve-se mais próximo o toque das cornetas)

TiBADENTES .* — É O rebate da gloria, meus ami-gos!

Cláudio : — É a alvorada da eternidade !

Luiz : — É o dobre de tua morte, minha filha !

Carlota: — É o perdão de meus crimes, meupai

!

Luiz [aperta o coração desesperado, depois olhandoocéo): — É a vida que foge, mas éa honra quevem.

Cláudio: — Todos ao banquete da morte, revo-lucionários !

TiRADENTES : — Ao pedestal da liberdade, brazi-leiros. [Todos vão entrando.)

Luiz: — E nós também somos brazileiros, e nóstambém somos revolucionários, e nós também somosmartyres ! Carlota, ao banquete da morte ! porque osangue dos escravos dos homens é irmão do sanguedos escravos dos povos, ambos cahem na face dosaltjozes, ambos clamam vingança ao braço do futuro.{Todoa sekem.)

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808 GONZAGA

SCENA XVI

SILVÉRIO, depois o GOVERNADOR

Silvério {vem do fundo) : — As onças estão natoca. (Aponía a casa.) As matilhas estão na pista.

{Aponta ao fundo. ] É a hora dos caçadores dehomens.

O GOVERNADOR : — É a hora das aves de rapina{A Silvério.] Elle é meu, Silvério, e agora não meescapará. Oh ! eu morria de impaciência ; meu cora-ção saltava-me no peito como uma fera na jaula.

Pobre amigo ! elle tinha fome e sentia o cheiro dapresa que tardava muito.

Silvério : — Era preciso esperar Carlota, e ape-nas ella fallou ao tenente-coronel marchámos logo.

Quando ella sahiu por ali, nós entrámos por cá.

{^ponía o fundo á direita^ depois o fundo á es-

querda.)

O GOVERNADOR : — Mcntos ! ella acaba de sahir

pela mata.

SCENA XVII

os MESMOS e CARLOTA

Carlota {abrindo pre<'ApitadamGnte aporta) :—

Mentem ambos, senhores, Carlota está aqui.

O governador : — Carlota ? !...

Silvério :— Carlota ? !...

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 30»

O GOVERNADOR : — Então a quem deixei eu es-< iipar ?

Carlota : — A D. Maria, Sr. governador.

Silvério : — E quem fugiu por ali ?

Carlota : — Gonzaga, Sr. Silvério.

O governador (a Silvério) : — Eu pensei que tu

eras o mais indigno dos homens, conheço agora queés o mais estúpido dos malvados. Tu m'o fizeste

perder, porém estás também perdido.

Silvério : — Senhor !...

O GOVERNADOR : — Cale-se ! [Dirige-se para ofundo.

Silvério (a Carlota) : — Ouviste, Carlota, euestou perdido ; é a tua condemnação que escutaste.Lembras-te do que eu te disse um dia ? Quando cahirda graça do governador, esta cabeça te cahirá doshombros, sem que tenhas ao menos conhecido teupai

!

Carlota : — Engana-se, senhor, eu acabo de re-

ceber seu perdão e sua benção.

Silvério : — Pois bem : agora é que serás... des-honrada !.... Ah ! tu o conheces ? !... tanto melhor.Eu quero que vivas... É verdade, tu tens um namo-rado... queres te casar... depois, encontraste teu pai

que procuravas ha tanto tempo... Tens razão !...

Como será lindo, Carlota! Feliz !... com seu velho)ai para amparar uma porção de filhinhos nos joe-

hos \... {rindo) e uma porção de maridos nas senza-as ! . . . Oh ! será soberbo ! é um quadro patriarchal ! . .

.

Carlota : — Ah !

Silvério {chamando para o fundo) : — Paulo I

Paulo 1

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810 GONZAGA

SCENA XVIII

os MESMOS e UM NEGRO que apparece ao fundo

Silvério : — Paulo, vês esta mulher? É tua.

Leva-a para tua esposa.

Carlota : — Não, eu irei mais longe... Meu pai

!

meu pai !... tua filha não prostituirá a boca que tu

purificaste. [Sahe com Paulo.)

Silvério :— Vinguei-me, mas estou perdido !

SCENA XIX

o GOVERNADOR, SILVÉRIO, depois todos os CONSPIRADORESe os SOLDADOS ao fundo.

Silvério {vai rapidamente á casa, batendo á porta)

— Senhores, em nome de Sua Map;estade a Rainha,

estais presos. {Abrem-se todas as portas com

estrondo. Vários pagens seguram archotes e os cons-

piradores entram todos lenta e solemnemente)

.

TODOS

Agoraó que somos livres. (Tác passando diante do

Silvério, que se encosta a uma das columnas. Ouve-

se ao longe o canto da escrava durante a. scena que

se segue).

Eu sou a pobre captiva,

A captiva de além mar;

Eu vago em terra estrangeira.

Ninguém me quer escutar.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 311

Tu, que vaia a longe» terraa,

O' viajeira andorinha,Vai dizer a minha mãi,Qoe eu vivo triste e sósinha.

Mas diz á pobre que espere;

Que o vento me ha de levar.

Quando eu morrer nesta terra,

Para as terras de além mar.

Cláudio (a Silvério) : — Retirem isto d*aqui...

Não vêm que queremos passar ? Sr. , governador

!

é máo expor homens de bem a roçarem por cousastão vis!...

Silvério : — Ah! o senhor me insulta?! Poisbem ; tire desta espada. {Puxa a espada.)

Alvarenga : — Criados ! tragam chicotes paraumduello com este homem.

Cláudio : — Não, são rapazes honestos... nãoexponham os chicotes a mancharem-se nesta es-pada.

Silvério : — Desgraçados {Caminha para a eS'

querda.) Sr. governador, estes homens me insul-tam ! V. Ex. vê... Vingue-mede meus inimigos.

O GOVERNADOR .* — E tu me vingaste do meu ?

Silvério : — Eu vingal-o-hei, senhor.

O GOVERNADOR : — Eutão CU te ouvirei, agoraestou surdo.

Silvério : — Oh I {Recua horrorisado para olado direito, onde fica aniquilado ]

Um conspirador {passsando pela frente de Silvério,

que estremece) : — Brazileiro, tu atraiçoaste tua

jiatiia.

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812 GONZAGA

Alvarenga : — Homem, tu immolaste nossasfamílias.

Padre Carlos : — Judas, que é feito de teu mes-tre ? Tu tens os trinta dinheiros na mão.

Cláudio :—

• Caim, limpa o sangue de tuadextra.

Silvério : — Ainda não basta ? ainda não termi-naram? [A Tiradentes) : — Sim, agora o senhorinsulte-me também, lance também a sua pedra ..

Vamos... [Tiradentes mede-o de alto abaixo e passa.)

Ah !. . despreza-me ? !... é o ultimo insulto. (Voí-tando-se para Luiz) : — Vem tu agora, Luiz ; vemtu também; negro, vem tu também; escravo, vem tu

também, pae de Carlota !...

Luiz : — Não manche segunda vez o nome deminha filha !. . [Ouve-se um grito ao longe.) Quegrito é este? quem soltou este grito? [A Silvério).

Falle miserável, falle.

Silvério : — Ah ! ah ! ah ! Eu não posso dizer,

Luiz, eu não guero deshonrar este nome... bem vêsque é impossível... Ah! ah! ah I

Luiz : — É minha filha que o senhor mandou ma-tar ?... Jure neste instante a verdade... se não querque eu o esmague como um reptil.

Silvério: — Emfim, já que o exige... Eu juro,

sim, por Deus ou pelo contrario ; eu quero-a viva,muito viva... Oh ! não sabes quanto eu daria paraque ninguém lhe tocasse sequer n'um cabello !...

Eu quero-a bella, com alma pura para pensar, comcoração para sentir. Estúpida, presa, é um cadáver J

a sussuarana bebe o sangue quente... eu quero asdores requintadas.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 313

Luiz : — Miserável ! O que me passou agora nacabeça é horrível ! Qual é a sorte a que destinasminha filha ? Falia... arranca esta idéa que memorde o cérebro...

Silvério [lento] : — Eu destino-lhe o logar deesposa de todos os meus escravos. {Luiz vai a ati-rar-se a elle.)

SCENA XX

os MESMOS, PAULO e CARLOTA

{Paulo entra rapidamente, trazendo ás costas Car-lota morta, com os vestidos em, desordem e atestacheia de sangue.)

Todos : — Carlota !

Luiz [Desvairado, tomando-a nos braços) :—

Minha filha! minha filha !... Tu te suicidaste, es-

tás morta... já não ouves !... [Todos rodeiam-n'o áboca da scena.) Carlota ! tu eras uma escrava !

Carlota ! tu eras uma mulher ! Carlota 1 tu erasuma virgem ! Deus te escolheu para a primeira vic-

tima ! Pois bem;que o teu sangue puro,cahindo na

face do futuro, lembre-lhe o nome dos primeiíosmartyres do Brazil.

fim DO TERCEIRO ACTO

M

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A€TO IV

Agonia e Gloria

(O theatro reqpreienta nma gala da prlsfto da ima das Cobras. Qnatro portas

lateraes com reposteiros. Ao fundo três grandes arcos fechados com rspns-

teiros pretos, que a seu tempo se abrem deixando ver ao longe o mar e umbarco.)

SCENA I

Gonzaga (só) : — Prisioneiro de estado!... Eis oque eu sou !... condemnado á morte !... eis o que se-

rei... Hoje a masmorra — amanhã a cova... Dilemmaterrivel ! — Uma boca de pedra que tem fome de umcadáver — Uma boca de granito que tem fome deuma alma ! Oh ! mil vezes a cova!... Ellaé fria, ne-gra, solitária, immunda... mas, o defunto é mais frio,

mais negro, mais immundo... É um par igual— umapedra e um osso. Mas a prisão ? !... — Deus fez acova — o homem fez a masmorra ! É uma cousa quevos esmaga, vos ouve, vos vê ;,sem vos apertar, semvos escutar, sem vos olhar. É a immobilidade, é ofrio, é a estupidez, é a morte abraçando, rodeando,aniquilando a actividade, o fogo e a vida... Dir-

se-hia que o homem é uma mosca dourada de-

batendo-se na garganta de um sapo morto!!...Olha-se — é a cegueira ! canta se — ó a surdez

!

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316 GONZAGA

— Grita-se — apenas algum morcego vôa comouma idéa negra pela fronte da abobada ! Chora-se— e a lagrima transforma-se em Iodo no chão.Então um pensamento estranho, mão fria... umaduvida visionaria, mas terrível, passa pela cabeçado homem, que diz com um riso de louco :

« Quem sabe se eu já morri?!... » mas, para con-vencer-se, faz tremendo alguns passos — nadaouve... o chão é húmido... Espantado encosta-se áparede — ella é gelada, mas seu peito ainda é mais...« Eu estou tão frio como um defunto », murmurapassando a mão pelo rosto — o que elle toca é umacaveira... « Ah ! » clama o desgraçado, ecahe sobrea lagea mais estúpido que ella... Então escuta...

escuta... escuta!... Começa a ouvir um ruido surdoera seu peito, e uma cousa que se agita lentamenteem seu cérebro... — É o verme que róe aqui {leva amão ao coração], é a larva que morde cá ! [leva amão á cabeça.) Sim, desgraçado ! É o desespero quese apascenta no coração, é a loucura que mastiga ocereoro^ é a alma que apodrece... Desesperar I en-

louquecer ! apodrecer ! eis meu destino. Oh ! é hor-iivei ! É o pesadelo do cataléptico... Lá fora está avida — um punhado de homens que rasgam, rindo,minha mortalha, que preparam os cirios de minhaagonia, as tochas de meu sahimento. E eu osescuto... quero gritar ! mas parece que a voz nãosahe da garganta. — Elles continuam a fallar paci-ficamente... Cá dentro um outro dialogo ainda maissombrio — « Eu tenho frio, diz a pedra — Eu tenhofome, diz a terra — Esperemos, elle nos virá aque-cer e saciar! » E eu, que os escuto, quero fugir ;masa immobilidade me agarra, emquanto ellas conti-nuam a conversar na sombra!... Ah ! eu não tenhomedo de morrer!... mas não aqui — sentindo aescuridão e o silencio em torno de mim... e sobre

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 317

minha cabeça este outro fantasma ainda maisnegro — o esquecimento!... Não, eu não sou oreptil que morre no charco, nem o fogo fátuo quese extingue no pântano... Eu quero a praça, o povoque turbilhona, a acha que scintilla, o sol queresplandece... Eu quero também o meu cortejo,

o cortejo da minha realeza de martyr... Lá, sim, euquero morrer!...

SCENA II

GONZAGA e LUIZ

{Percebem-se um instante os soldados que o trazempelaE. A.)

Luiz : — E sua pobre pátria, e sua noiva ?

Gonzaga [estremece) : — Ah ! és tu, meu velhoprisioneiro ?

Luiz : — Eu mesmo que ainda ha pouco rocei porVm. no corredor dos segredos.

Gonzaga : — É verdade. Creio que será hoje oterceiro interrogatório. Desde pela manhã conce-deram-me que viesse para a sala da audiência... E ati também ?

Luiz : — A mim não concederam... ordenaram...O casoó simples. Trata-se de um destes reposteirosfalsos, de uma destas portas mascaradas, que sãooutras tantas armadilhas n'uma prisão de estado...Oh ! aqui não escapa um meio de sorprender o pen-samento de um preso... mas como o trabalho pediamão de artista, empregam-me n'elle ; no mais del-

iu.

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318 GONZAGA

xam-me trabalhar ali [aponta aporta da E. B.) dia enoite ; certos que a sentinella não me deixará fugir,

e de que aquella porta esconde, mas não deixa es-capar. . . Oh ! é felizmente um meio que tenho deencurtar estes longos dias de prisão...

Gonzaga : — Sim ! porque estes miseráveis vãolento... lento como a maré que sobe em torno deum homem atado.

Luiz : —Mas isto acabará.

Gonzaga : — Por matar-me.

Luiz : — Não, por livral-o. Vm. está, ha quasi umanno, preso, encerrado nestes negros segredos da— ilha das Cobras.

Gonzaga : — E então ?

Luiz : — O processo não pôde continuar.

Gonzaga : — Enganas-te : ainda não vieram asdeclarações que o juiz exigiu de Minas.

Luiz : — É verdade... isto é que demora; mascomo foi este miserável Basilio de Brito que o de-nunciou, sendo seu inimigo, o juiz desembargadorTorres vai em falta de provas dar talvez por nuUoo processo.

Gonzaga : — É bemdifficil... Entretanto eu estoupreso, só, abandonado... Passo os dias a escutar aslagrimas que cabem do tecto da masmorra... as noi-

tes a escutar de horas em horas o grito monótonoda sentinella. que brada « alerta !... » Eu me sinto

envelhecer, sinto que o meu corpo perde as forças

e restam-me bem poucas esperanças... Oh ! se ella

vi3sse... talvez eu renascesse... Escuta, Luiz. Tume vês bem triste e queres consolar-me, não é ver-dade ?... Pois falla-me d'ella... Se soubesses ha

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS S19

quanto tempo não recebo uma palavra, uma letra !...

Cada manhã eu me levanto e digo, sorrindo «hoje»;

cada tarde eu me deito e murmuro chorando « ama-nhã «.Entretanto se ella soubesse que eu vou morrer,talvez viesse!... Luiz, deixa-me escrever... Talvezpossas enviar-lhe esta carta... é a ultima... a

derradeira esperança... o extremo clarão de minhavida que se apaga. [Escreve rapidamente sobre a

mesa.)

Luiz (á boca da scena) : — Quem sabe, é talvezainda um desengano. D. Maria é uma mulher, seutio um inimigo, o governador um homem terrivel,

Silvério um mfame. A luta é desigual... Ella quejá não escreve é porque enxugou as lagrimas...

Mas, não; seria melhor abafar-lhe o ultimo soproda vida ! Póde-se assassinar um homem ; mas ummoribundo... O diabo se em tal pensasse choraria.

Gonzaga [lendo]

Já, já me vai, Marília, branquejandoLouro cabello que circula a testa :

Este mesmo que alveja vai cahindo,E pouco já me resta.

As faces vão perdendo as vivas cores,

B vão-se sobre os ossc»s enrugando;

Vai fugindo a viveza de meus olhos

;

Tudo se vai mudando.

No calmoso verão as plantas seccam,

Na primavera que os mortaes encanta

,

Apenas cabe do céo o doce orvalho,

Verdeja logo a planta.

A doença deforma a quem padece

,

Mas logo que a doença faz seu termoTorna, Marília, a ser quem era d'antes

O definhado enfermo.

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?80 GONZAGA

Suppõe-me que doente, ou qual a plantaNo meio da desgraça que me altera

;

Eu também te Bupponho qual eaudeOu qual a primavera.

Se dão esses teus meigos, vivos olhos.Aos mesmos astros — luz, e vida ás flores.

Que effeito não farão em quem por elleg

Sempre morreu de amores?...

Luiz {que se tem aproximado com,mov)ido, pe-gandO'lhe nas m,ãos) : — Meu senhor, ella virá.

Gonzaga : — Tu o crês ? [Ouve-se em distanciaum, grito d'arm.as.)

Luiz [indo precipitadamente a E. A.): — Se-nhores soldados, que ruido é este ? Os juizes nãotêm grito d'armas.

Uma voz {dentro) : — É o Sr. governador quechega.

Gonzaga : — O governador! Emíim.eu o encon-tro. {Procura na cinta a espada) : — Ah! estoudesarmado ; não tenho mais espada; é o mesmo, aespada é para os homens... para os lacaios bastauma outra arma

!

Luiz : — Não, meu senhor, é preciso que Diseprimeiro neste pobre velho, no coração de suaterra, no seio de sua pobre noiva.

Gonzaga : — Minha pátria ! Maria ! Ah ! (indo

ao fundo) : Sr. carcereiro, os juizes ainda nãovieram, conduza-me á prisão... Luiz... tu tens ra-

zão... Visconde de Barbacena, podes entrar. Estoupeado... ha entre mim e ti o nome de uma mulher,

é um abysmo que eu não salto... amanhã haveráapenas entre minha mão e o teu rosto um passo...

(Sahe precipitadamente pela E. A).

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 821

Luiz : — Quanto a mim, não. Doas malvadosque faliam, são duas cobras que geram. Occultemo-nos. [Sahe pela E. B.)

SCENA III

o GOVEENADOE e SILVÉRIO

Silvério : — Creio que estamos sós. Lá vão osprisioneiros. Ainda bem.

O GOVERNADOR i — Queres saber, Silvério, tu

me fazes horror...

Silvério : — Senhor ! Eu não faço mais queadivinhar-lhe os pensamentos. V. Ex.é a cabeça,eu sou o braço...

O GOVERNADOR : — Um braço que agarra peloscabellos e me impelle para o crime.

Silvério : — Mas, senhor, o que tenho eufeito ?

O GOVERNADOR : — Como és innocente I... Tume perguntas ! Quem prometteu um dia entregar-me Maria?

Silvério : — Eu ! mas V. Ex. amava-a. Equando um homem como o Sr. visconde ama,possúe. Bem vê que ahi estava a cabeça aqui obraço...

O Governador : — Sim ! tu sabes ligar-me atodos os teus crimes. Tu me sopras todos os pen-samentos máos, tu me apontas o abysmo... e quandoeu sou presa da vertigem, da raiva e do ciúme,

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S2-2 GONZAGA

dizes : « V. Ex.,que tem este humilde servo ás

suas ordens...» Ah ! servo do diabo... Dir-se-hiauma sucuruyuba que arrasta um touro para o rio...

e que lhe diz, rindo : « senhor, se quer ter a bon-dade de afogar-se, eu o carregarei. » Miserável !...

Diz-me agora, quem urdiu esta calumnia infame ?

Quem disse ao tio de Maria que Gonzaga pedirasua cabeça ? Quem foi ?

Silvério : — Mas, senhor, creio que V. Ex..

.

O GOVERNADOR : — Eu ?

Silvério : — Entendamo-nos. Gonzaga era umrevolucionário... ao passo que o tenente-coronel umdedicado súbdito de Sua Magestade. V. Ex. disse

um dia : « A revolução quer a cabeça dos vassalosde Portugal. » — Eu repeti : « Gonzaga quer acabeça do Sr. Carlos. » É ser lógico. A minhaproposição contém-se na de V. Ex., que medesculpará não aceitar glorias que me não perten-cem...

O GOVERNADOR : — E quem forjou a denunciade Basilio de Brito, que por si só não tel-a-hia

feito ? Fui também eu ?

Silvério : — V. Ex. pediu-me que o vingasse.Eu o vinguei.

O GOVERNADOR : — Silverio ! Tu accendes emmim um amor criminoso, como o incendiário. Tucortas o destino de uma pobre moça, como o cei-

fador. Tu decepas as cabeças de teus irmãos comoum carrasco e ris sobre todos estes destinosmutilados, como o génio do mal. E dizes que és

meu instrumento. Não Itués o braço do inferno...

se não o próprio Diabo !...

Silvério [aparte] : — Comedia ! comedia ! come-

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 3»

dia ! Este homem será sempre um máo actor. Mis-tura Satanaz com Christo e não sabe ser bom, damesma sorte que não presta para máo. Digo- lhe vin-gança, grita — remorso !... se eu lhe fallo em perdãoclama — exterminio. Vejamos (ao governador.) Éverdade, íár. governador, agora reflicto e tenho penado que hei feito... felizmente ainda é tempo de arre-

pendermo-nos. V. Ex. sustará acorrespondenciasecreta que têm cora a corte de Lisboa, na qualpede a perseguigão dos criminosos e a morte de to-

dos... Eis uma acção brilhante pela qual começare-mos a expiação.

O GOVERNADOR : — Na verdade, é bem possível !

Silvério: — Não basta... É preciso ainda que odesembargador Torres continue a ser juiz nesteprocesso ;éum homem severo, mas que não condem-nará sem provas... ao passo que o conselheiro Vas-concellos Coutinho morre por uma condemnação econdecora-se com o sangue de um réo... É um ho-mem malvado, artificioso, terrível e de mais, amigo,intimo de V. Ex. Oh ! se elle viesse preencher ologar que o Sr. visconde lhe destinava, os conspira-dores estariam de certo perdidos. É uma bella con-tinuação do nosso arrependimento. Este homem nãovirá, não é assim, Sr. visconde ?

O GOVERNADOR : — Talvez !

Silvério : — Quanto ás declarações que o advo-gado exigiu de V. Ex.' e do Sr, intendente de Mi-nas... favoráveis como devem ser, darão a liberdadeimmediatamente ao Sr. Gonzaga...

O GOVERNADOR [rapido) : — E depois ?

Silvério : — Depois ?... Depois nada... Perdão !

Depois teremos a consciência calma e pura que nos

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S24 GONZAGA

abençoe... a gloria de ver as vidas que salvamos —a felicidade de olhar a alegria dos outros... e maistarde... e pouco mais tarde a recompensa de Deus.Ah ! tem razão ? Sr. governador ! Já estou cheio deprazer, mas de um prazer celeste... Este pobre Gon-zaga quesoífre, c[ue está quasi moribundo... voltaráávida.,, será feliz... E Maria, e Maria que está pal-

lida como uma estatua !...

O GOVERNADOR : — Viste-a ? Falia ! Viste-a ?

Silvério : — Via-a ainda ha pouco, quando levei-

Ihe esta maldita carta de V. Ex." Quando encarou-me, estremeceu... Oh ! como era bella... pallida

como uma virgem druidica na hora do sacrifício...

com os olhos alumiados de um fogo tremulo comoo das estrellas, com a boca palpitante decommoção,como uma folha pesada de orvalhos... ella leu esta

carta, ou antes, devorou-a. Estava arrebatadora depaixão e de amor, mas quando terminou a leitura,

levantou-se de súbito... Nunca acreditei em prodi-

gios... mas ao vel-a... altiva, soberba, atirar ^omunigesto sublime os cabellos negros para as costas e

dizer com uma voz argentina e vibrante : « Digaque eu irei », pareceu-me que não escutava umamulher... Era o anjo da paixão e da belleza deslum-brante na hora de um sacrifício divino...

O GOVERNADOR : — Oh ! falia-me, falla-me de Ma-ria...

Silvério : — É fallar de uma santa... Feliz o

homem que estremecer, apertando aquella mão-sinhaá sombra de uma murta, que desmaiar de amornos raios daquelles olhos, que roçar de leve com umbeijo tremulo aquella boca perfumada e linda, auesuspirar pelas noites de luar no tremor daquelles

seios e mergulhar na sombra daquelles cabellos

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ou A REVOLUÇÃO DE MINA» 326

negros. Oh ! bem feliz ! Que harmonia não teráuma palavra de amor que ella suspire... um ge-mido de languidez que ella soluce... os dous aman-tes passearão com as mãos enlaçadas pelos campose se enlaçarão sobre a grama cheirosa dos outei-

ros... Oh ! éum amor do céo que os anjos invejarão

O GOVERNADOR {apãixonado) :— Que Deus mesmoinvejará...

Silvério : — E os homens e os anjos e Deus inve-

jarão a Gonzaga...

O GOVERNADOR {ergue-se de repente levando amão ao coração : — Tu me mordeste... no coração,Silvério. Silvério ! eu quero esta mulher. Ninguémlhe tocará sequer na sombra, eu a quero para mimsó. Que me importa o inferno e o crime ?... Eu souum condemnado... mas eu levantal-a-hei mais or-

gulhoso nos meus braços do que Deus levanta a suacoroa deslumbrante.. . Ah ! tu fazes demim Tântalo. .

.

é preciso que me mates a fome... Ouves bem ? Obe-dece ou escolhe !... se ella não for minha, tu serás'da forca, mas se m'a deres eu serei teu.

Silvério [humilde):— Senhor, V,Ex."é a cabeça,eu sou o braço.

SGENA IV

MARIA, O GOVERNADOR «glLVERIO

Maria : — Sr. goveraador, eu disse que vinha.

.

Aqui estou.

O GOVERNADOR : — Minha senhora ! eu nâo con-tava com tanta pontualidade.

P. A. 1»

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326 GOÍÍZAGA

Silvério (ao governador : — Eu contava, porqueella ama aquelle homem.

O GOVERNADOR (a SUverio) : ~ Tu ós o demónio.Vai-te.

Silvério : — Minha senhora, creio que o tio deV. Ex." não chegará tão cedo... entretanto, logoque o faça virei prevenil-a.

Maria. :— Obrigada.

Silvério (ao governador) : — Lembre-se do queme disse : se ella não fôr minha, tu serás da forca

;

mas se ma deres, eu serei teu. [Sãhe.)

SCENA Vo GOVERNADOE e MARIA

O GOVERNADOR : — Seuhora, eu afastei um ins-

tante o meu ajudante de ordens, para dizer-lhe umapalavra.

Maria : — Eu o escuto.

O GOVERNADOR {vãi ao fuudo^ 6 dejoois voltarapidamente) : — Recebeu minha carta? Leu, pesoucada uma d'aquellas palavras? Sentiu, senhora, tu-

do quanto ha alli de Fatal, calculou que um homempôde fazer o sacrificio da sua vi Ia, mas nunca o dafelicidade ? E que eu, que a tenho nas mãos, nãodeixal-a-hei fugir? Diga, Maria o que resolveu ? Euespero como um condemnado a minha salvaçáo ou aminha morte.Marta : — O senhor me pergunta se li sua carta ?. .

.

Li-a, senhor, e ainda trago-a aqui (Tira um papei

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 327

do seio.) Vi o pacto infame que me propõe, o crimesobre o qual pretende levantar o seu leito de núpciasa traição com que quer coroar a cabeça de sua noiva..

.

Li sua carta, Sr. visconde!... Li sua carta, mise-rável !

O GOVERNADOR : — Senhora ! Já não é a pri-meira vez que me insulta, mas será aultr^ia.

Maria : — Perdão, senhor... ha em qualquert^anto da terra um cepo em que uma mulher possavender seu corpo... mas a entrega de uma almaprecisa de toda a largura do céo para balcão, e sôDeus éo mercado...

O GOVERNADOR : — E eutâo ?

Maria : — Então ?... Eu quero ainda escutal-o...

creio que me fallou do seu poder... na... morte deGonzaga... Mas, ainda duvido de tudo isto...

Duvido, sim ! porque creio em Deus.

O governador : — E não acredita no demónio ?

Maria : — Eu o conheci, senhor.

O governador : — Para nossa desgraça...

Porque a senhora é hoje uma condemnada, indaque do céo ; esse homem um condemnado da terra, e

eu um condemnado do inferno... Todos três desgra-çados, mas somente eu réprobo maldito U\ Sim !

porque eu o sou... Se o não fosse !... mas seria o

mesmo. Ah ! como tudo isto fez se horrível !... Tuseguias risonha pelo trilho do céo, mas tropeçasten'uma pedra e sangram teus joelhos pisados !... Eucaminhava calmo á beira de um precipício, masferido de uma aza luminosa rolei no abysmo . Oh !

Maria, a aza que me enleiou foi a ponta diaphanado teu vestido, a pedra em que tropeçast-e foi o

meu coração...Não amaldiçoes a pedra, como eu não

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S28 GONZAGA

amaldiçoo a aza !. . . Maldito seja quem me lançou noteu caminho... maldito! (Passeia um instanie agi-tado.) Entretanto eu te encontrei... Dizer-te que te

amei seria pouco... Desde este momento acrediteique o que havia de mais luminoso na vida era aprópria sombra do teu corpo... Entretanto a mari-posa ainda lutou contra a attracção da lâmpada —fugiu... Oh ! nunca saibas a historia desta luta...

Era um espectáculo horrível ! Verias, como eu vianas minhas horas de allucinação, um covil escuro...

em cujas paredes debatia-se, um doudo furioso. —Era a torre e o Conde Ugoiúio — era meu craneo e

minha alma. Um dia não puae mais — Disse-te quete amava. Tu voltaste as costas. O primeiro passoestava dado. O mais era uma gravitação. Eugravitei, mas na minha queda peguei-me a umpanno de teu vestido. .. Quando firmei... os dentese as unhas, julguei-me bem firme... ordenei-te quefosses minha... maldição !... tu me tinhas deixadoa capa entre os dedos !... e eu ouvia a tua garga-lhada crystalina e uma voz que bradava no céo —O anjo queimou as azas do demónio. — Desde este

momento começou uma phase terrível... Era o

orgulho ferido, era o coração sangrento... era avingança, e era o amor. . . Eu te amava com toda atenacidade do ódio .. com todos os delírios daraiva... Para que dizer-te mais ? Eu comecei outravez o fio roto de minha machinação... bem seguroque desta vez a mosca não fugiria. Tu me vencesteainda uma vez... Ser duas vezes o brinco de umacriança. Pensar, reflectir longas noites, espiar,

prever... longos dias... prostituir-se, perder-sesempre... por um beijo de mulher e no momentode bradar victoria... sentir- se vencido, ridículo,

pequeno e desprezado... Ah ! é horrível... Masngora, Maria, tudo está concluído. Tu... ou este

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 329

homem. Eu quero levantar um leito de esposa ouum patíbulo de sentenciado... Ah! eu o tenhoaqui nos meus dedos. Queres saber como ? Fil-odenunciar. Foi preso. Pedem-me documentos. — Euos nego. Escreve para Lisboa — Eu o desacredito.— Espera no juiz — Eu o substituo.E um denunciadodo crime de alta traição, que não pôde allegar umaprova em seu favor, e que tem sobre si o ódio deLisboa, a animosidade de um juiz, e a minhavingança... não pôde sustentar por muito tempo acabeça sobre os hombros... Bem vês, Maria, quedesta vez eu venci... Ha destas posições terri-

veis na vida em que o homem é o naufrago... obraço estendido o salva... o menor impulso o

abysma. Senhora, pôde estender o braço — docontrario, eu darei o impulso. — Bem vês, Maria,que desta vez venci.

Maria : — É bem verdade que não ha outro meiode salval-o... Oh! meu Deus!... Eu já não tenhominha mãi, eu já não tenho meu pai, eu já nãotenho meu noivo !... Todos os meus sonhos, todasas minhas preces, todos os meus anhelos, meus pen-samentos, minha vida, morreram. Ah ! Gonzaga !...

[Chora, um instante, depois com energia.) Enxugaos olhos, desgraçada ! é preciso que tuas pálpebrasestejam brancas quando tua alma está em sangue...Ri, desgraçada ! é preciso que tua boca ria comoteu coração chora... Levanta a cabeça, desgraçada:é preciso que ella supporte o peso da sua coroa demorte, como o Christo levantou a sua de marty-rio... {Ao governador.) Sr. governador, eu estouprompta. Quaes são as condições do contrato ?

O GOVERNADOR : — Em primeiro logar eu conser-varei o juiz.

Maria : — Não basta.

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330 GONZAGA

O GOVERNADOR : — Pedirei á corte a absolvição dosréos.

Maria : — Dê-me a sua correspondência.

O GOVERNADOR (Ura do bolso uns papeis) : — Aquia tem, minha senhora. Eu estava prevenido paraqualquer eventualidade.

Maria : — Não basta.

O GOVERNADOR : — Finalmente, entregarei a V. Ex,as declarações, minha e do Sr. intendente de Minas,com todos os documentos precisos para a soltura deGonzaga.

Maria : — Basta. Dê-me esses papeis.

O GOVERNADOR : — Pcrdôc, minha senhora; eu osti oco, não os dou.

Mi RIA : — O que quer dizer, senhor?

O GOVERNADOR : — Quero dizer que V. Ex., logo

que tenha estes documentos em seu poder, não acei-

tará minhas condições. E bem claro...

Maria . — Diga o que ordena, Sr. governador.

O GOVERNADOR : — Apeuas uma garantia. V. Ex.vai escrever-me. Bem sabe que não mostrarei essacarta... Seria vingar-me, porém perder o seu amor.

Maria (chega-se a uma mesa e escreve n'um,a tira

de papel, que rasga) : — «. Senhor Visconde ». Dicte

o resto.

O GOVERNADOR — « Eu mc cntrcgo, emfim, a V.Ex. Venha {movimento de Maria) á meia noite entre-

gar-me a soltura de Gonzaga. Eu o espero anciosa. »

Agora tenha a bondade de datar. « Rio de Janeiro,

13 de Julho de 1791 ».

Maria : — Mas, senhor, estamos a 15...

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS «Ôl

O GOVERNADOR : — Escreva, minha senhora, euquero assim.

Maria : —Está escripto...

O GOVERNADOR :— Dê-me essa carta.

Maria: — Perdão, senhor; eu troco, porém nãodou-a.

O GOVERNADOR : — É justo. [Trocãm-se OS papeis,accionando com a caria.) Agora, senhora, aquellehomem não poderá ser seu marido.

Maria {gesto supra) : — Agora, senhor, aquellehomem não poderá ser sua victima

!

O governador ;— Mas tu serás minha. (Sahe).

Maria : —Não, eu não serei tua, visconde deBarbacena. Não, eu não serei tua, Gonzaga I... omeuesposo é outro. (Lera a mão ao seio.)

SCENA VI

Luiz {levantando o reposteiro da esquerda) : — Tucontavas com o segredo, visconde de Barbacena, nóso guardaremos. [Aponta a esquerda.) Este homembate-se, porém não assassina. {Aponta o fundo.)Aquella mulher morre, porém não mata. Contraaquelle t^is por escudo a honra de cavalheiro : con-tra aquella defende-te a sua pureza. O jogo foi bemdisposto : o cobarde não se bate em duello, o vilão nãose peia com escrúpulos. Mas eu não sou nem cava-

lheiro, nem dama, sou um negro; quando enconíiouma cobra, esmago-a, sem me importar se a face é dehomem. Inda bem : quando este homem estiver

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832 GONZAGA

salvo, quando aquella mulher estiver a perder-sa,tutoparás n'uma cousa bem insignificante. O que será ?

Nada, quasi nada. Algum objecto preto como umapedra, mas duro também como ella; será o meubraço e este braço segurará um instrumento branco,porém frio. Oh ! tu lhe verás a alvura, tu lhe senti-

rás a frieza (Faz o gesto de tiraruma faca e dirige-se

para o fundo, donde volta precipitadamente). Ahivem D. Maria e um carcereiro. Condemnam-me aosocego, entremos na toca. Quando fôr preciso, euappareço. {SahepelaE. B.)

SCENA VII

MARIA, UM CARCEREIRO e depois GONZAGA

Maria (ao carcereiro) : — Senhor, vá depressa,diga-lhe que alguém o espera ancioso.

O CARCEREIRO : — Neste instante. {Sahe.i

SCENA VIII

GONZAGA e MARIA

Gonzaga (dentro) : — Obrigado, senhor, eu oacompanho.

Maria : — Ah ! é sua voz !...

Gonzaga {entra vagarosamente, depois fita Ma-ria) : — É impossivel ! eu creio que enlouqueci, meuDeus !

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 333

Maria : — Não, não enlouqueceste, sou eu, soueu mesma... sou eu.

Gonzaga : — Maria

!

Maria : — Gonzaga ! [Atiram-se aos braços umdo outro).

Gonzaga : — Es tu, Maria? Ès tu, meu Deus! Ah!como estás linda !... mas como estás pallida! Maria,tu soíTres? Tu tens soffrido muito, não é verdade?mas eu não o quero... Oh! é máo padecer quandoalguém nos ama. . E eu te amo... ouves bem ? Eu te

amo. Ha quanto tempo eu não posso repetir-te estaspalavras...! Pouco importa... eu estou pago... Comosou feliz. Acreditas? E\i esperava que viesses, masparecia-me impossível. Oh! quando esta idéa des-cia-me na alma, havia um irradiamento em torno demim — o criminoso sentia-se purificado por teuolhar, o moribundo voltava á vida num teu riso... ocovil transformara-se no céo... Ah! tu não sabes o

que é ser preso... um dia eu t'o contarei, temosmuito tempo. Porém olha-me um pouco, eu querosentir teu olhar, — falia. . . eu quero escutar tua voz. .

.

Maria : — Ah! meu amigo, como estás mudado!Elles te matavam. Não é assim?

Gonzaga : — Não, elles deixavam-me sem ver-te.

Maria : — Ah! era pois por mim que tu morrias...

{À parte). E eu que ainda duvidava em vir (Alto).

Perdoa, eu não sabia... Não me julgues má,.. Eu t'o

repito,., eu não sabia... porque se eu o tivesse imagi-nado um só momento, teria saltado mesmo sobre o

cadáver de minha mãi para vir morrer-te aos pés...

Gonzaga : — Pois não fallemos mais disto...

Quando se caminha para o céo, não se olha para aterra. Quando eu te vejo estou face á face com Deuse o pobre condemnado de joelhos no chão está mais

19.

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Í4 GONZAGA

em pé do que o tyranno no throno. Desde que eu te

vejo, Maria, não sou mais prisioneiro.

Maria : — E tu já não o és... {Tira do seio uyis

papeis dos quaes um cahe no chão).

Gonzaga : — O que é isto, Maria ? O que é queme dás ?

Maria : — Tua liberdade.

Gonzaga [lê os papeis rapidamente ; depois, se-

vero) : — Maria, ser preso é horrivel, ser deshon-rado é peior. Um braço na calceta pôde ser virtuoso,uma alma na galé é immunda... Maria, eu não soumais que um desgraçado, não faças de mim um mise-rável. Que me importa a liberdade ? Deixa-me en-cerrar meu brio em quatro paredes; não queiras, quepasseie a minha ignominia por toda a parte.

Maria : — Não, tu não tens razão. Não, tu nãopediste nada. Estes papeis foram exigidos pela jus-tiça. Ella precisava esclarecer tudo isto. É antesum triumpno !... Não me acreditas ?... O viscondenão t'os deu. . arrancaram-lh'os... Pois tu não meacreditas ? Eu te juro que não haverá nem umanódoa de deshonra sobre teu nome, nem tambémsobre o meu. (Á parte.) Eu o juro.

Gonzaga : — Bem, obrigado, Maria ! Agoraeu posso tocar nestes papeis... tu me disseste.

E os anjos não mentem. Oh ! meu Deus ! não hapois mais desgraça alguma em torno de minhacabeça. Eu estou livre, eu te possuo. Parece quea infelicidade cavou-me na alma um abysmo bemprofundo para que possa conter tanta felicidade.

Maria, como eu sou feliz... como nós seremos feli-

zes. (Deixa cahir os papeis que se confundem coma carta, que está no chão.)

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 335

Maria, (irónica) : — Como nós seremos fe-

lizes...

Gonzaga : — E pois uma realidade tudo que eusonhei... verei de novo a minha herdade, conversa-remos baixo sob as casuarinas, escutando o sussurrodo vento da tardinha ! daquella casinha levantada nolombo da ladeira como um ninho de pássaros nosramos, cum sua collina suave como um collo demulher; e abaixo um cannavial immenso, verde edourado como um mar de esmeraldas, e longe... aolonge aquelle horizonte de montanhas, onde os cre-púsculos talhavam-se n'um céo de sangue. Lem-bras-te ?

Maria : — Lembras-te dos coqueiros da fonte,

onãe nós escutávamos o chocalhar da cachoeira ?

Foi ahi...

Gonzaga : — Oh ! foi ahi que pela primeira veztu me disseste, timida como uma criminosa, co-

rada pela aurora do amor que te subia do coração,

estas palavras : — Eu te amo — Oh ! se lembroEra quasi noite... A estrella dos amores... espiavado fundo de um céo de opala... ao longe oavia-se

a tyranna de um violeiro das mattas... e as flores

do sertão abriam os thuribulos perfumosos... Oh !

mas a estrella que mais brilhava era o teu olhar

a mirar -se na lagoa azul de minha alma, e as

flores mais balsâmicas eram a tua boca, dondependia, tremula, uma gota de orvalho — o amor...

Lembras-te, Maria, lenibras-te?...

Maria : — Lembras-te daquelle pequeno valle,

onde eu te dava a mão para não pisares nasflores lembras-te daquelle monte escalvado que

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336 GONZAGA

eu subia presa no teu braço para não pisar naspedras ?

Gonzaga : — E a janella do teu quarto... queeu via de longe iluminada nas noites escurascomo uma estrella perdida no horizonte ? Eraahi que ao romper da aurora tu apparecias-mebella, com os cabellos soltos no desalinho de umanjo sorprendido pela alvorada que acorda espan-tada nas nuvens.

Maria : — E tu então repetias baixinho :

A porta abria

Inda esfregrandoOs olhos bellop.

Sem flor, nem fita

No8 seus cabellos.

Ah I que assim meinio,Sem compostura,É mais f rmosaQue a estrella d'alva,

Que a branca rosa.

Oh ! como nós éramos felizes.

Gonzaga : — E como nós sel-o-hemos. Oh

'

agora eu amo a liberdade. É que ser livre époder apanhar as madresilvas agrestes para fazer

uma coroa para os teus cabellos... sonhar com-tigo nos cerros soberbos do Itacolomy, bordarna cachoeira do rio o teu vestido de noiva, ouvircantar o sabiá nas bananeiras da fonte, admiraros prismas do sol nas folhas verde-negras dosertão... Oh ! eu já não sabia se o sol brilhava.,

nem se os passarinhos cantavam, nem se o céose iriava de azul nas horas do crepúsculo... É quaeu tinha apenas por céo uma abobada negra, pofsol a luz sombria de uma candêa... por cantos otinir de meus ferros.

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 337

Maria : — Mas amanhã. .

.

Gonzaga : — Amanhã... Maria!... Se a felicidadematasse,eu estaria morto... Eu terei flores para en-laçar nos teus cabellos, campos para vagar comtigo,o murmúrio de um ribeirão para fallar-te de meusamores... e lá em cima... e lá no alto... Deusaccen-derá a lâmpada eterna para o noivado de meus amo-res...

Maria [meio desvairada) : — Sim ! Sim ! amanhãnós seremos felizes... Oh ! muito felizes... Eu te di-

rei que te amo... e se a minha voz vier de muitolonge,não te admires, porque ella vem do fundo deminha alma.. . Eu te olharei com um olhar bem longo,bem firme., e se este olhar for muito fixo, não te ad-mires... é que nunca mais olharei senão parati...Terei talvez uma lagrima nas pálpebras... será aderradeira .. eu não chorarei mais...e se tu me bei-

jares, não te espantes da frieza de minha boca... óque meu sangue refluirá ao coração nesta hora deexfcasis... Sim! Sim! nós seremos muito felizes!

Vem cá. [Toma-lhe as mãos e olha-o fixamente.)Olha bem para mim... Tu nunca olharás assim paraoutra mulher... não é verdade ?

Gonzaga : — Maria ! Eu te amo.

Maria : — Sim, tu me amas. Nunca digas estaspalavras a outra... Seria horrível... eu me perderiamesmo no céo...

Gonzaga : — Maria

!

Maria {e:)caZfada) : - Sim, chama-me tua Maria...e nunca esqueças este nome, nunca ! porque eu te

amei muito, porque eu te amo ainda e sempre... [Oc-

culta a cabeça, chorando.)

Gonzaga : — Deixa as lagrimas para a desgraça..

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3.3 QOÍÍZAOA

É provocar a Deus chorar quando se é feliz... Dá-mea tua mão... vê como meu coração canta, olha-me...vê como minha alma ri... Canta e ri, Maria ! Oh !

ter o amor e a liberdade !... O que queres mais ?...

Eu tenho tua mão nas minhas — a liberdade a meuspés... Vê bem .. Teu amor ó o céo e isto é a chave.Oh ! deixa- me abrir a porta da vida e dos amores,(apanha no chão os papeis.)

Maria: — Emquanto eu abro a do tumulo... [OcCíilta a cabeça nas mãos.)

Gonzaga (olha-a sorrindo um. instante, depoisabre um papel que está no chão, que lê precipita-damente, com. assombro] : — Uma carta !. .. e é dog:overnador !... (Lendo ) Maria ! meu amor... Ah !

{Raiva e desespero.,, recua á medida que a lê, e, aoacabar, solta uma gar^galhada de doudo.) Ah ! ah !

ah! ah! ah! ah! ah! ah: ah! ah!

Maria :— Gonzaga ! Tu enlouqueceste 1...

Gonzaga : — Não... é a alegria, é a felicidade, é

teu amor. Ah ! ah ! ah !

Mauia : — Gonzaga ! o teu riso dóe-me como a

e^^pada da loucura. Gonzaga '

Gonzaga : — Não ! é que a felicidade é do mais,eu enganei- me, a felicidade mata. Porque amanhãnós passearemos nos valies, não é verdade, Maria?Eu ouvirei o canto do sabiá nas mattas ; apanhareias madresilvas agrestes para a cabeça de minhanoiva... Tu me amarás e me dirás baixinho... Eu te

amo... Oh ! é muita felicidade. [Com uma idéa sú-

bita] Ah ! o governador deve estar ainda ahi ! Oh !

este homem émeu salvador, é preciso que lhe agra-deça, que eu beije a mão leal de um inimigo que merestitue a liberdade, a vida e teu amor !... teu amor!

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OD A REVOLUÇÃO DE MINAS S39

Maria ! os beijos castos da esposa, os risoa tiiuidos

da virgem, a belleza casta da moça... todos estes

thesouros... todos... uma boca innocente, um seio

puro, uma alma apaixonada.., porque tu és muitopura, muito innocente, e me amas muito, oh ! mui-to !... tanto que me faz rir... tanto que me faz cho-rar... não vês como eu rio... Ah ! ah ! ah ! [Diriçie-se

precipitadamente para a D. A. onde abre um repos-

teiro. Maria o acompanha desvairada.) Venham,meus senhores, venham ! Sr. Silvério, Sr. tenente-coronel, meus senhores, venham. Sr. visconde deBarbacena, ainda um rasgo de generosidade. Nãofurte a sua modéstia á mmha gratidão ; venha Sr.

visconde.

SCENA IX

GONZAGA, MARIA, o GOVERNADOR, o TBNBNTE-COfiONEL

e MAIS MILITARES e CAVALHEIROS

Gonzaga : — Meus senhores, eu os chamei, por-

que precisava que muitas pessoas assistissem ao

quesevae passar neste logar. Eu desejava que neste

instante o mundo inteiro nos visse. Sr. visconde, a

grandeza de minha gratidão é preciso que seja igual

á grandeza do seu cavalheirismo... Sim, meus se-

nhores ! porque este homem éum heróe, um bravo,

um typo de honra e de lealdade. Declaro-lhes mesmoque o Sr. visconde era meu inimigo e meu rival...

mas sabem o que elle fez quando me viu preso

pobre desgraçado, quasi louco de dôr, quasi morto

de desespero? Vou dizer-lhes. Um homem vulgai

esquecer-se-hia de mim ; um malvado far-me-hia

morrer; um cavalheiro talvez que esquecesse a

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340 GONZAGA

minha única felicidade — o coração de uma mulher...Pois não foi nada disso, nada... O nobre fidalgo

agarrou o pobre réo e disse-lhe : — Viverás, és li-

vre !... Ah! é um heroísmo, uma generosidade, umaacção incrível !... Não é verdade, meus senhores ?...

O GOVERNADOR :— Scnhor !...

Gonzaga : — Oh ! nada de modéstia, Sr. vis-

conde ! mostre-se qual é... V. Ex. éum cavalheiro...

deu-me a vida ! V. Ex. é um cavalheiro... prostituiuminha noiva... mas praticou uma infâmia.

Maria : — Ah!...

O governador : — Senhor !...

Gonzaga : — Nem uma palavra, miserável ! Uminfame ter-me-hia assassinado, — um cadáver nãocora... Tu me deshonraste... Ah ! o immundo pactoque aqui se fez I... Cobarde ! e estes papeis têm la-

ma... não devem manchar a mão honrada de umhomem de bem... Meus senhores, é minha liber-

dade (acena com os papeis), mas estes papeis dormi-ram n'um coito repulsivo com uma cousa torpe e

vil... com esta carta... esta carta em que elle propõea minha mulher a deshonra para salvar-me !...

Ah !... como tudo isto é negro, é repulsivo, é im-mundo 1 Sim. ..eu não devo tocar em tanto lodo... Sóha um logar para a lama, é o charco, miserável

!

[Atira-lhe á cara com os papeis rotos).

O governador : — Desgraçado ! tu rompesteestes documentos,., tu serás meu I...

Maria :— Gonzaga!... tu teperdeste...

Gonzaga : — Perdão, senhora. Houve um diauma mulher que me chamava assim. Esta mulhermorreu. Eu vi-a amortalhar-se n'um sudário deinfâmia... e descer a uma cova de torpezas...

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS nií

Maria : — Gonzaga ! Gonzaga ! E se esta mulherfosse pura ainda, como um anjo, casta como a vir-

fem, immaculada como Deus ? Se ainda ella guar-asse tudo isto, tudo... para dar-te ?... Sim... para

ti, meu amor, meu amigo, meu noivo!... Diz, o quefarias ?

Gonzaga : — Um reptil teria dormido na folha...

o pensamento de ser de outro teria prostituído tuaalma.

Maria : — E se esta mulher nunca tivesse pen-sado nisso ?

Gonzaga : — Ella não traria no seio aquelle pa-pel... Oh! quando uma pasta de lama como aquellaapega-se á brancura de um seio de virgem, não halagrimas (jue a lavem... senhora, eu não a odeio... eua esqueci... Não foi a senhora que amei... Amulher de minh'alma era uma virgem que não seperderia para salvar-me, porque sabia que minhacabeça cahiria mais alto quando me rolasse aospés com a sua coroa de martyrio, do que se le-

vanta agora sobre os meus hombros com o seu dia-

dema de escarneo... senhora ! coroas destas não sefizeram para minha cabeça, mas já que amarraramahi toda esta infâmia, eu entregal-a-hei ao carrasco.(Vai a sahir.)

Maria : — Meu Deus I meu Deus I tudo estáperdido... Eu posso emfim fallar !... (a Gonzaga

)

Senhor I... {lento.) Aquella carta não tocou em meuseio. .. havia entre meu corpo e ella a largura de umpunhal [mostra-lhe um punhal) a extensão de ura

tumulo !...

Gonzaga :— Maria! Maria! Perdôa-me. Eu te

encontro emfim...

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3'i2 GOíiZAGA

Maria : — Ah t tu não me deixaste morrer... éstu que morres!... [Atiram-se aos braços um dooutro).

O GOVERNADOR [que se tem conservado ao fundode braços cruzados, faz alguns passos] — Estamulher mente. EUafoi minha amante.

Maria [detendo Gonzaga, que faz um movim.entopara o governador) : — Espera... eu tenho algumacousa a dizer a este homem. Miserável! eu te abor-reço! Tu só me inspiras ,desprezo e repugnância.Ah ! velho immundoL. Olha tua cabeça^é uma cousarepulsiva como uma cabeça de vibora. Olha tuamão... é a garra de um corvo... Olha tua alma... éum lupanar de orgia... Velho, pois tu pensaste quebeijaria a tua hediondez... que eu apertaria os teusdedos sangrentos... que eu seria a mulher dessatascai... Estúpido!... Quando tu me fallavas eusentia por ti nojo e desprezo... Eu... tocar-te!. .

eu!... Quando a sola dos meus borzeguins corade roçar onde passaste I... Ah ! agora como estás

ridículo ! Vamos : mente, calumnia... nós vamosrir de ti... vamos, falia... Oh! que ridículo gover-nador, que estúpido visconde !

O GOVERNADOR (a Gonzagá) : — Leia : ó a únicaresposta. [Dá-lhe um papel que Maria havia ras-gado. A Maria ) Ainda uma vez eu venci.

Maria [precipita-se sobre o papel) :—Não leias...

não leias... É uma carta falsa que escrevi hojemesmo para obter estes papeis.

O governador : — Hoje são 15, este papel foi

escripto a 13. Senhora, o seu relógio parou hamuito tempo

Gonzaga [olha desvairado em torno de si] : —

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ou A REVOLUÇÃO DE MINAS 348

vleu Deusl meu Deus ! onde estará a verdade ? Ah

!

que duvida horrível ! Maria !...

Maria : — Olha para mim... Vê bem que eu nãominto.

O GOVERNADOR : — Olha para esta carta... Vêbem que ella não mente.

UoNZAG> • — Meu Deus ! nem sequer eu podereimorre. aescanQò.do !... Quem me arrancará estaduvida que mata ?

!

SCENA Xos MESMOS e LUIZ

Luiz {levanta o reposteiro da direita e sahe) :

Eu! (Todos conservam-se pasmos. Elle arranca obilhete da mão de Gonzaga e dirige-se á mesa ondeo ajunta ao papel de que fora rasgado.) Este papelfoi rasgado d'aqui ha poucos instantes.

O GOVERNADOR : — Oh ! maldição ! só me restaagora o cadafalso ou o desterro.

Maria [Gonzaga e Maria conservam-se abraça-dos) : — Oh ! não te resta mais que morrer !

Gonzaga ; — Não, fica-me o teu amor.

Luiz : — E a gloria para o heróe... e o céo parao anjo,

O GOVERNADOR : — Ah ! (Vae a sahir precipi-tadamente, mas topa com Silvério.)

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S44 GONZÂQÂ

SCENA XI

os MESMOS e SILVÉRIO

Silvério : — Senhor, eu estou perdido. Queremprender-me, querem assassinar-me. Eu quero fugir,

eu quero salvar-me, venho pedir a V. Ex. a suaprotecção. Minas me odeia. Minas me esmagará, seV. Ex. não me defende. Eu estou desacreditado,pobre, mas em paga de tudo quanto lhe hei feito,

de toda a felicidade que lhe dei, de todos os crimesque commetti por V. Ex... salve-me... salve-me...

O GOVERNADOR [peçã-o pelo brãço, aponta,ndo o

grupo de Gonzaga) : — Eis tudo que me deste...

o crime, a deshonra, o remorso... a condemnaçãodos homens, de minh'alma e de Deus... a perda deMaria na terra, no céo, no inferno. Tu me per-deste... porém rainha queda ha de perseguir eter-

namente a tua no abysmo em que rolámos. (Saeprecipitadamente.)

Silvério : — Ah ! o inferno se conspira contramim... Estou perdido!...

Luiz (caminhando ao fundo): — Não, desgra-çado ! É o sangue de minha filha que cahe sobretua cabeça ; é o sangue de todos os martyres quete clama — vingança ! Vai... são todas as tuasvictimas... é o cortejo de teus crimes que te

acompanhará de solo em solo, como o ferrete deCaim !... Caminha, maldito... caminha sobre o solode tua pátria !... a terra que tu pisares te morderános pés ; o desprezo de teus cúmplices e o ódio deteus irmãos te morderão na alma... Caminha...

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ou A EBVOLUÇAO DE MINAS 345

quando tu tropeçares, será nas caveiras de teuspatrícios

;quando a chuva te açoutar o rosto, será

o sangue dos martyres. Gaminha, maldito I...

Silvério : — Ah ! {Sahe horrorisadoj

SCENA XII

GONZAGA, MAKIA e LUIZ

Gonzaga : — Agora, Maria, adeus ! Nós so-nhámos com a gloria, com o amor, com a felicidade !

Que importa ? ! Ha uma outra pátria onde as flores

são sempre viçosas, onde o amor se transforma emastro. Lá ha longos extasis para duas almas que seamam ; lá nós seremos noivos ! Não chores, Maria,não chores... eu sou feliz !... Oh ! ó uma cousamuito pura... um amor como o teu ! uma memoriacomo a de um povo!... Ah ! minha pobre pátria !ah!minha pobre noiva ! amanhã nós todos seremoslivres ! Ella terá sua coroa de liberdade... o futuroha detar-lh'ana fronte!... Tu terás a tua capellade noiva. Ueus ha de collocal-a em tua testa. Euterei o meu diadema de gloria., o carrasco mesagrará martyr... Cala-te, Maria; quando se tem aeternidade do amor, de uma nação, de uma mulhere de Deus... o homem caminha para o cadafalsocomo para um leito de núpcias... Não chores,Maria, adeus !...

Maria : — Lembra-te de mim, Gonzaga...

Gonzaga: — E agora um ultimo pedido... falia

de mim ás crianças desta pobre terra, lembra aospobres captivos que ficam o nome de nossa pátria,

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346 GONZAtiA

dize-lhes qne eu morri por ella, e que elles yivampara ella.

Maria : — Sim, sim ! o mundo inteiro saberá teu

nome ; e quando os sertanejos embalarem seusfilhos á sombra das florestas da America, cantarão osmartyres de Minas ; lembrarão o poeta e tribuno, o

revolucionário e o libertador. K eu. .. eu.. . vivereipara apertar tua lembrança no meu seio.. . comouma mãi aquece um filhinho moribundo.

SCENA XIII

o GOVERNADOR, o TENENTE-COROÍÍEL e muitas CAVA-LHEIROS, GONZAGA, MARU e LUIZ

O GOVERNADOR :— Sr. Dr. Thomaz AntónioGonzaga, ó tempo de partir... Espera-o ali umamasmorra, além Moçambique ou o cadafalso...

Gonzaga : — Não, espera-me aqui o amor deMaria, além a gloria e o céo .. Luiz, meu velhoamigo, adeus !... venha o ultimo abraço, meucompanheiro de infância... meu companheiro dedesgraça... Adeus !...

Luiz : — Não. senhor, a ordem deve ser paratodos os presos. ..Eu que o apanhei no berço, só olargarei no tumulo .. Minha senhora, elle terá umamigo junto ao seu leito de agonia, ou ao pó de seucadafalso. Adeus... minha senhora... (Passa.)

Gonzaga : — Maria l

Maria : — Gonzaga ! {Abraçam-se chorando.)

O governador : — Oh ! desespero ! EHes são

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OD A REVOLUÇÃO DE MINAS 847

ainda mais felizes na sua degraça do que eu narainha vingança ! Eis o meu castigo 1... Deus eellesse vingaram...

Maria : — Meu noivo... meu esposo, meu únicoamor ! lembra-te de mim nas tuas noras de agonia.

Gonzaga : — Adeus, Maria. Lembra-te de mimquando estiveres em Villa Rica. Lembra-te de mimquando te sentares na encosta do rio, quando escu-tares o sabiá cantando á tardinha nas palmeiras,quando vires minha casinha deserta e fechada...

Quando caminhares por onde nós passeiavamos jun-tos... Lembra-te de mim... lembra-te de mim!...

Maria : — Ah f eu suffoco f Ah I dá-rae o ultimoabraço I dá-me o primeiro beijo...

Gonzaga :— Adeus ! (Desíaca-se dos braços delia,

e vai precipitadamente para o fundo, donde voltapela ultima vez.) Maria ! até á terra ou até ao céo !...

{Sae.J

Maria : — Adeus! Teu cadáver será da pátria,

teu coração meu, tua alma de Deus... parte para aagonia e para a gloria.

{Todos formam um quadro ao fundo. - A or-chestra toca ohymno nacional em surdina. Mariaolha Gonzaga eLuiz que atravessam ao fundo 71'um

barco... depois vem inspirada á bocadascena, onderecita a seguinte poesia)

:

Desgraça 1 Bis tudo o que resta

Da raça dos Proraetheus 1

Um mundo Mm liberdad* t

Um infinito lem Deua 1

No dorso das cordilheiras

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348 GONZAGA

Batem rijas, agoureiras

As marteladas do algoz :

É o carrasco negro, immundo,Pregando o esquife de um mundoNo seu sudário de heróes.

Eil-o sublime por terra.

Qual no occaso é grande o sol.

Fez dos Andes travesseiro,

Do firmamento lençol 1—

Condor soberbo da America,Morreu; mas na garra ibérica

Não sangra um grito de dor,

B o oceano — cão enorme,Pergunta sa o Brazil dorme,Uivando aos pés do senhor.

Dormir... não 1 que esses tripúdiosSão de um povo os funeraes,Mas ninguém veia-lhe em torno l

Grandes da pátria, onde estais ?

Ah I lá os vejo altanados,

Fortes, soberbos, alçados,

Se erguendo mesmo ao cahir.

Bravo ! bravo 1 heróes... olhai-o« I

Se tombam^são como raios

Que mergulham no porvir.

Cada qual na hora extremaSobre a ossada da nação,È como o busto de Hercule»Do incêndio ao rubro clarão...

P'ra aqui um vulto se chega,Na taça a cicuta grega,

Na mão romano punhal;És tu, Cláudio, o suicida.

Trocando o andrajo da vidaPela purpura eternal.

Eil-o, o gigante da praça,O Christo da multidão

;

È Tiradentes quem passa.

Deixem passar o Titão.

Subiu... um raio o í"hiiJna.

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ou A EEV^OLUÇlO DE MINAS 349

Mas tombou na guilhotina,

Nesse throno do Senhor,

Foi como a águia fulminadaPela garra pendurada,Como um trophéo do Thabor.

Longe... por plagas infindas,

Lá onde é de fogo c céo.Surge do mar uma .lha.

Da ilha um homem se ergueu.Ao surdo rugir das vagasBatem-lhe d'alma nas fragasAs ondas no seu pensar...E o sol que tomba sangrentoÉ o adeus, o pensamento,Que elle nos manda do mar.

Profundo olhar no horizonte,Ao vento exposta a cerviz,

E Tasso, olhando Eleonora?Dante, fitando Beatriz?Lá no rochedo escalvadoQuem é o grande desterradoMaior que Napoleão?...Silencio... uma voz sombriaMurmura : Brazill... Maria I

É Gonzaga... Oh! maldição!

FIM DO DRAM4

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índice

A CACHOEIRA DE PAULO AFFONSO

A tarde 7

Maria II

O baile na flor 13

Na margem 15

A queimada 19

Lucas 23

A senzala 21

Dialogo dos echos 31

O nadador 3T

No barco 41

Adeus 45

Mudo e quedo 49

Na fonte 53

Nos campos 51

No monte 61

Sangue de africano 63

Amante 65

Anjo 67

Desespero 69

Historia de um crime 75

Ultimo abraço 79

Mãi penitente 83

O segredo 85

Crepúsculo sertanejo 91

O bandolim da desgraça 95

A canoa fantástica 99

8. Francisco 103

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352 índice

A cachoeira 107

Um raio de luar 111

Despertar para morrer 115

Loucura divina 111

A beira do abysmo e o infinito 121

MANUSGRIPTOS DE STEMO

o século 121

A visão dos mortos 135

Vozes d'Africa 139

Tragedia no lar 145

O navio negreiro . 157

Adeus, meu canto 171

Nota 183

Carta as senhoras Batiianas 185

GONZAGA OU A REVOLUÇÃO DE MINAS

Carta de José do Alencar a Machado de Assis 195

(ÍARTA de Machado de Assis, era resposta a José de Alencar . 203

Personagens do drama 213

Acto I. — Os escravos 215

Acto. II. — Anjo e demónio 247

Acto III — Os martyres 277

Acto IV. — Agonia e gloria 315

Parií. Typ. H. Garribr. 6, rua des Saints-Pères. 302.1.1910.

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