a c o n s t r u Ç Ã o d o p e r s o n a g e m n o d o c u...

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Joana de Andrade Pinto Rennó A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO POÉTICAS DO SINGULAR Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Comunicação Social. Área de concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea Linha de Pesquisa: Meios e produtos da comunicação Orientador: Professor Doutor César Geraldo Guimarães Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2005

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Joana de Andrade Pinto Rennó

A C O N S T R U Ç Ã O D O P E R S O N A G E M N O

D O C U M E N T Á R I O

P O É T I C A S D O S I N G U L A R

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Comunicação Social. Área de concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea Linha de Pesquisa: Meios e produtos da comunicação Orientador: Professor Doutor César Geraldo Guimarães

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

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2

RESUMO

A dissertação discute a construção dos personagens no documentário, a partir do conceito de

singularidade, tal como formulado por Giorgio Agamben. Tendo como corpus analítico

quatro filmes brasileiros (A pessoa é para o que nasce, A Alma do Osso, Santa Cruz e Esta

não é a sua vida), o trabalho investiga as estratégias e os recursos expressivos utilizados na

configuração dos personagens, orientando-se pelas noções de fabulação e de auto mise en

scène.

RESUME

The dissertation discusses the construction of characters in documentaries, using as basis the

singularity concept as formulated by Giorgio Agamben. The corpus of analysis is formed by

four Brazilian movies (A pessoa é para o que nasce, A Alma do Osso, Santa Cruz e Esta não

é a sua vida). This academic work investigates the strategies and expressive resources used in

the configuration of the characters, oriented by the notions of fabulação and auto mise en

scène.

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3

SUMÁRIO

UM PERCURSO ................................................................................................................... 4

1. O PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO...................................................................... 7

1.1. A construção de mundos.............................................................................................. 7

1.2. Fabulação.................................................................................................................. 15

2. SINGULARIDADE ......................................................................................................... 24

2.1. O ordinário................................................................................................................ 24

2.2. O qualquer ................................................................................................................ 26

3. ESCOLHAS E AFETOS.................................................................................................. 32

3.1. Um olhar sobre as tendências .................................................................................... 32

3.2. Critérios .................................................................................................................... 34

3.5. Poéticas do documentário.......................................................................................... 36

4. VIDAS ORDINÁRIAS.................................................................................................... 40

4.1. A pessoa é para o que nasce ...................................................................................... 41

4.2. A Alma do Osso......................................................................................................... 58

4.3. Santa Cruz ................................................................................................................ 74

4.4. Esta não é a sua vida................................................................................................. 85

VESTÍGIOS SINGULARES ............................................................................................... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 99

FILMOGRAFIA ................................................................................................................ 102

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4

UM PERCURSO

Como se dá a construção do personagem no documentário? Eis a questão

norteadora de nossa pesquisa, a partir da qual voltamos nossos olhares para esse campo

múltiplo e facetado constituído pelos filmes não-ficcionais. Ao longo deste trabalho,

procuramos apontar certas estratégias que, quando utilizadas, permitem o atravessamento das

representações por uma singularidade. Este conceito, cardinal para a elaboração de nosso

trajeto teórico e analítico, foi cunhado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben e diz respeito à

figura do um qualquer, noção oposta ao típico, aquele que é categorizado e enquadrado a

partir de suas particularidades.

Sob essa perspectiva, tentamos localizar diferentes formas de liberação do

personagem, que, solto das amarras do estereótipo e do clichê, põe-se a fabular e a criar

mundos. Para isso, analisamos quatro documentários - A pessoa é para o que nasce (Roberto

Berliner, 2004), A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004), Santa Cruz (João Moreira Salles,

2001) e Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991) – todos produzidos no Brasil, da década

de 90 em diante.

Antes de empreendermos nossa análise, no entanto, foi preciso que retomássemos,

inicialmente, uma discussão sobre o personagem no documentário, partindo das reflexões de

Anatol Rosenfeld sobre a ficção, mas apropriando-nos de alguns desses fundamentos para

falarmos do filme não-ficcional. Em seguida, fez-se necessário pensar o próprio campo do

documentário e suas especificidades, o que, naturalmente, exigiu a execução de um breve

percurso histórico, como forma de situarmos melhor a questão de que estamos tratando, em

um diálogo com diversos autores.

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Mas precisávamos, ainda, identificar algumas perspectivas e noções que, mesmo

apenas como pano de fundo, nos levassem a lançar um outro olhar sobre o documentário, a

imagem e suas potencialidades. Nesse sentido, resgatamos, dentre outros, os conceitos de auto

mise en scène e de regimes da imagem (orgânico e cristalino), desenvolvidos,

respectivamente, por Comolli e Deleuze.

No segundo capítulo, elaboramos um panorama acerca das duas noções basilares

de nossa pesquisa: o ordinário, tal como foi pensado por Michel de Certeau, e a

singularidade, concepção elaborada por Agamben. O primeiro aborda a questão da linguagem

ordinária, retomando a filosofia de Wittgenstein, segundo a qual estaríamos imersos nas

manifestações linguageiras da vida cotidiana. Já o conceito de singularidade permitiu-nos

pensar a construção dos personagens pelo documentário, para além de uma tipificação que em

muito reduz as potencialidades da obra. Agamben chega a analisar exemplos na literatura e no

cinema e, nessa dissertação, tentaremos apontar, em diferentes documentários, traços de uma

singularidade que perpassa o discurso cinematográfico.

Em seguida, apresentamos o caminho metodológico que nos permitiu chegar à

delimitação de nosso corpus. Por um recorte temático e espaço-temporal, circunscrevemos

nossa empiria em torno de obras produzidas no Brasil, a partir da década de 90, que

abordassem personagens anônimos e seu entorno, em oposição a filmes sobre figuras célebres

e conhecidas. Decidimos nos voltar para o comum, para o homem ordinário. É importante

ressaltarmos, no entanto, que o anonimato não é o que mais nos importa e nem nos deteremos

sobre essa questão ao longo da pesquisa, tendo sido apenas um primeiro recorte temático

dentro de nosso estudo. O que procuramos, a todo tempo, foram vestígios de uma

singularidade capaz de sulcar as representações construídas. Esses traços poderiam ser

encontrados, também, em filmes sobre grandes figuras da humanidade, já que estamos nos

referindo a diferentes formas de construção dos personagens, sejam eles quem forem. Um

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filme que tem como protagonista um anônimo não é, para nós, garantia de que o um qualquer

irrompa. Nossa busca é guiada, na verdade, pela hipótese de que o personagem no

documentário, a exemplo do que já foi feito na literatura, pode, de alguma maneira, ser

singular (ao invés de típico), a partir da articulação de estratégias diversas, colocadas em

andamento pela relação instaurada quando do encontro entre o cineasta e o personagem,

mediados pelo aparato cinematográfico ou videográfico.

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1. O PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO 1.1. A construção de mundos

O personagem, esse elemento tão caro à ficção e essencial à sua gênese, é

amplamente discutido nos mais variados domínios, notadamente na literatura, no cinema e no

teatro. Pode causar estranhamento, em um primeiro momento, um estudo que se propõe a

pensar a construção do personagem no filme documentário, pressupondo-se que esse campo

estabelece uma relação com o real que é marcadamente distinta dos gêneros ficcionais – ainda

que não inteiramente diferente deles em certos aspectos. Ora, uma reflexão como a que

propomos poderia ser completamente descartada se ainda tivéssemos como modelo de

pensamento as teorias acerca do filme não-ficcional da primeira metade do século XX, que

viam no documentário uma objetividade hoje já questionada e abandonada pelos críticos e

pensadores. Na época, essas obras eram tidas, pelo público e pelos próprios teóricos que se

debruçavam sobre o cinema, como um produto audiovisual capaz de apresentar o mundo tal

qual é, captando, pela objetiva da câmera, o que nossos olhos já estariam acostumados a

perceber. O conteúdo das imagens poderia ser diferente, mas a forma de apreensão era

considerada similar àquela experimentada na cotidianidade em que estamos imersos. Nesse

sentido, a própria estrutura dos filmes não-ficcionais se voltava para o apagamento dos

processos de produção, criando uma ilusão de fidedignidade total ao mundo filmado que pode

ser claramente observada, mesmo não tendo sido problematizada na época. Nessa perspectiva,

pensar a construção do personagem no documentário teria algo de incoerente e

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despropositado, uma vez que o personagem seria, segundo essa linha de raciocínio, o próprio

sujeito real, capturado em sua inteireza.

Contudo, esse tipo de entendimento sobre o documentário já foi relegado, a partir

da problematização que diversos aportes teóricos empreenderam acerca da relação entre os

signos e o real. Pensemos, por exemplo, na semiótica de Peirce e seu conceito de signo que,

ao representar o objeto, nunca o alcança na imediatidade da sua presença e nem na plenitude

dos seus aspectos. Outra perspectiva, apontada por Bartolomeu (1999), pode ser observada,

em meados dos anos 60, a partir da corrente semiológica da teoria do cinema. Esse viés

teórico afirmava “[...] que todo filme é um discurso ou um texto – o que implica num

processo de construção [...]”1. A autora retoma, ainda, os estudos recentes de Sílvio Da-Rin

(1995), que enfatizam a mesma questão.

Não existe método ou técnica que possa garantir um acesso privilegiado ao ‘real’ – qualquer referência sobre o mundo histórico terá que ser construída no interior do filme e contando apenas com os meios que lhe são próprios. Sob esse aspecto, o documentário é um constructo, uma ficção como outra qualquer.2

Essa discussão sobre a natureza dos documentários vem acontecendo desde os

anos 60 e 70, quando duas correntes teóricas chocaram-se. Esse confronto se deu, segundo

Xavier (2004), entre a chamada ontologia realista e o antiilusionismo cinematográfico, sendo

que este último propunha uma crítica ao positivismo defendido pela primeira, tal como

explica o autor, ao remeter-se a esse período:

A idéia da nova crítica e do novo cinema, nessa fase mais desconstrutiva, era descartar toda pretensão de legitimidade que se apoiasse na crença de uma vocação especial do meio para revelar a verdade sobre o mundo. Em termos das ciências humanas, tratava-se do descarte da idéia de objetividade do documentário, fossem quais fossem seu método e sua linguagem. [...] No entanto, a versão mais extremada dessa crítica se configurou somente em torno de 1968-69, quando o antiilusionismo passou a não ver nenhuma diferença essencial entre a ficção e o documentário como formas de

1 BARTOLOMEU, 1999, p. 19. 2 DA-RIN, 1995, p. 201.

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impostação do discurso, ambos marcados pela articulação de sons e imagens como fatos inerentes ao domínio da linguagem.3

Xavier, entretanto, procura relativizar a dicotomia entre essas duas posições

extremadas e valida o fato de que os signos do cinema têm vínculos materiais com o real

diferentes da palavra, sem, no entanto, endossar a ontologia da imagem fotográfica.

O filme não é apenas uma sucessão de imagens diante de mim na sala de projeção, momento em que minha percepção pode examinar estruturas, relações; é também a história de uma produção que, socialmente, constrói uma identidade, uma condição fortemente marcada pelo indicial (o rastro do mundo empírico na imagem) que, reconhecido, precisa ser assumido, não como a verdade total do jogo, mas como parte integrante dele.4

Dessa forma, ao pensarmos o documentário como resultado de um recorte

relativamente subjetivo da realidade, condicionado pela relação firmada entre três pólos

específicos (o cineasta, o objeto filmado e o aparato cinematográfico), torna-se pertinente uma

discussão sobre o personagem nesse campo, construído a partir dessa interação comunicativa

que coloca em relação desejos, devires e potencialidades. Sendo assim, é interessante

voltarmo-nos para a teoria da literatura que, desde a sua origem, discute o personagem,

podendo abrir-nos perspectivas relevantes para o entendimento de sua construção no

documentário. Nesse sentido, Anatol Rosenfeld (2004) desenvolve um pensamento que

problematiza a apreensão e representação do real, tanto na ficção quanto na própria

experiência cotidiana.

Segundo o autor, o mundo fictício aponta para a realidade empírica, em um

processo que põe em relação seres “puramente intencionais” e seres “também intencionais”,

aqui entendidos como os signos e a realidade empírica, respectivamente. O procedimento

constituinte da literatura se daria, inicialmente, a partir das orações objectuais, estruturas

sígnicas que projetariam o que o autor chama de contextos objectuais. Esses contextos são

3 XAVIER, 2004, p. 73 4 XAVIER, 2004, p. 75.

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elementos configuradores do universo fictício, formados por seres e mundos ‘puramente

intencionais’ (signos), que só se referem aos seres ‘também intencionais’ (onticamente

autônomos) de forma indireta.

É claro que, para alcançarmos a realidade empírica, em qualquer situação,

precisamos de conceitos e convenções, sujeitos sociais que somos. Mas ao autor interessa uma

reflexão em outra direção, que aponta para as relações que se estabelecem na própria

literatura, relações estas configuradoras do processo de apreensão do fictício como uma

dinâmica diferente da que pode ser observada em situações cotidianas, conectadas à

materialidade do real. Para Rosenfeld, o âmago dessa disparidade deve-se ao fato de que, na

ficção, o foco estaria voltado para os seres “puramente intencionais”, ou seja, para o universo

das construções sígnicas, e não para o objeto que é representado.

Apropriando-nos da perspectiva do autor, podemos afirmar que o documentário

encontra-se em uma zona de interseção, pois, ao mesmo tempo em que se volta para o objeto

empírico, ele também é constituído de signos sonoros e visuais “puramente intencionais” que,

numa tentativa de enfatizar o próprio real que lhes serve de matéria-prima, “[...] procuram

omitir-se para franquear a visão da própria realidade”.5 Com isso, Rosenfeld faz referência às

técnicas muito comuns e aqui já citadas que procuram apagar as características primordiais de

qualquer produção simbólica, inclusive o documentário, notadamente sua objetividade

relativa (pois que obtida a partir de um certo olhar, de uma certa perspectiva) e sua

impossibilidade de captar e apresentar toda a complexidade do real.

Para o autor, a realidade seria completamente determinada, enquanto as

objectualidades “puramente intencionais” não conseguiriam alcançar a inteireza desse real

que se move como uma massa fluida e cinzenta. As pessoas, ao contrário dos personagens,

seriam unidades concretas, dotadas de predicados infinitos e integrados. O movimento da

5 ROSENFELD, 2004, p.18.

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ficção, segundo Rosenfeld, resume-se à seleção e transfiguração de aspectos dessa realidade

em uma configuração esquemática que conseguiria apresentar-nos sujeitos transparentes, uma

vez que essencialmente predicativos, proporcionando, por esse motivo, experiências distintas

da vida ordinária. No entanto, a literatura moderna faz um movimento contrário, ao dotar o

personagem também de zonas obscuras e indeterminadas, deslocando a dinâmica até então

posta em prática. Essa mesma tentativa pode ser percebida em filmes não-ficcionais da

atualidade.

Antes, porém, de pensarmos o personagem no documentário contemporâneo, é

preciso que olhemos para o modelo clássico de construção dessas figuras, tal como

inaugurado por Nanook, o Esquimó (1920-1922). No filme de Flaherty, Nanook aparece como

o exemplar de todos os esquimós, como uma cena particular de um universo geral que é nele

encarnado. O mesmo pode ser observado no documentarismo inglês da década de 30 e em

tantas outras produções que fizeram uso da relação particular / geral para desenvolver uma

história acerca de uma verdade, ilustrada pelo caso individual. Como pontua Consuelo Lins

(2004), os documentários clássicos costumavam referir-se a homens ilustres e feitos

excepcionais ou, então, a figuras exemplares e modelares de uma cultura. Para enfatizar o

olhar unívoco sobre a realidade, a locução em off desempenha, nessas obras, o papel de

legitimar o saber sobre o outro, sendo que a montagem, primordialmente linear, enfatiza esse

olhar externo e a ilusão de verdade dos argumentos utilizados para reforçar ou comprovar a

idéia central do filme.

Esse modelo clássico só foi questionado a partir da década de 60. Como bem

colocou Arlindo Machado:

Tudo, no universo das formas audiovisuais, pode ser descrito em termos de fenômenos culturais, ou seja, como decorrência de um certo estágio de desenvolvimento das técnicas e dos meios de expressão, das pressões de

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natureza socioeconômica e também das demandas imaginárias, subjetivas ou, se preferirem, estéticas, de uma época ou lugar.6

As mudanças sociais, políticas e econômicas, que, nesse período, influenciaram a

descrença numa gramática natural ou específica para o audiovisual, somaram-se ao

desenvolvimento tecnológico de então, responsável pela maior maleabilidade e flexibilidade

da produção audiovisual e pela captação direta de áudio. Conseqüentemente, novas

perspectivas abriram-se e os cineastas puderam, na esteira do cinema moderno (Neo-realismo

na Itália, Nouvelle Vague na França, e Cinema Novo no Brasil), criar novos rumos para a

realização de filmes não-ficcionais, subvertendo a noção de uma verdade pretensamente

conquistada pelos procedimentos fílmicos, tomados até então como objetivos e capazes de dar

a ver de modo transparente a realidade filmada. O cinema-verdade francês e o cinema direto

americano, na década de 60, foram marcos desse período ao permitirem uma nova

apropriação do personagem, com fissuras, opacidades e fragmentações, abrindo espaço para o

imaginário a partir do encontro da câmera com a vida em descontrole. O viés europeu

permitia uma maior intervenção do cineasta, que assumia sua própria subjetividade e também

a dos participantes em geral. Já o formato americano proporcionava ao espectador uma

posição de observador ideal dos eventos. Apesar de essas duas correntes guardarem diferenças

entre si, ambas valorizavam o imediato, a intimidade e uma despreocupação com os cânones

estéticos do cinema clássico. No entanto, é importante frisarmos que, antes desse período,

experimentações as mais variadas, como as conduzidas por Vertov na década de 1920, já

prenunciavam a emersão de um modo de produção como o que se firmou a partir dos anos 60.

No Brasil, no entanto, nessa mesma época, a narração7 clássica permaneceu

6 MACHADO,1997, p.191. 7 Tomamos o conceito de narração da forma como Aumont e Marie (2003) o apresentam: “Fato e maneira de contar uma história, por oposição a essa própria história (o conjunto dos conteúdos narrativos, a ‘fábula’, no sentido dos formalistas) e à narrativa (o discurso que conta a história, a ‘trama’ dos formalistas). A narração é um ato, fictício ou real, que produz a narrativa” (AUMONT E MARIE, 2003, p. 208).

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prioritária, ocasionando uma leva de documentários baseados nesse modelo de construção do

personagem8. Segundo Xavier (2003), essa estrutura clássica de representação, além da

manutenção da relação particular / geral, é firmada pela montagem paralela, que coloca em

relação duas dimensões distintas. A primeira compreende o protagonista, que surge

discursando ou executando ações, e a segunda é constituída por um mosaico de depoimentos

que ajudam a estruturar a figura central do filme. Esse segundo pólo é organizado,

principalmente, pelas falas de observadores teóricos, porta-vozes da opinião pública e

testemunhas tomadas como fonte de dados. É por essa trama de relatos que o personagem,

indiretamente, é construído.

Uma alternativa a esse formato clássico de representação é a configuração

dramática focalizada na entrevista e somente nela, cujo maior representante é o cinema de

Eduardo Coutinho. Segundo Xavier, nesses casos não há um antes e um depois do

personagem e nem uma interação com seu entorno. O que o filme apreende do depoente vem

diretamente de seu encontro com o aparato cinematográfico e com o cineasta. Tudo o que

surge dessa relação triádica só é possível pela aproximação desses diferentes elementos e pela

interação entre eles, sendo que é nesse instante da filmagem que o entrevistado fornece os

principais subsídios para sua estruturação na obra. A câmera é o elemento que configura as

performances fílmicas e permite ao personagem aparecer de maneira diferente da que

apareceria em uma conversa não mediada.

Da década de 60 a 80, no entanto, o cinema documentário nacional permaneceu

preso ao sistema particular / geral, salvo algumas exceções e incursões por representações

mais fragmentadas dos personagens. Como bem mostrou Bernadet (2003), esse período

caracterizou-se, também, pela tendência a buscar o Outro. Inicialmente, como mostra o autor,

os filmes não-ficcionais ficaram presos a uma idéia coletiva desse Outro, procurando

8 Alguns exemplos dessa produção nacional são os filmes Viramundo (1965 - Geraldo Sarno), Maioria Absoluta (1964-66 - Leon Hirzman), Subterrâneos do Futebol (1965 - Maurice Capovilla) e Passe Livre (1974 - Oswaldo Caldeira), dentre outros.

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representá-lo como um tipo, uma classe social, um povo. A dimensão singular dos

personagens era relegada em favor de um cinema que se voltava para grandes noções,

utilizando exemplos particulares para legitimar a caracterização de idéias gerais

desenvolvidas pelos cineastas. Para explicar esse movimento, Bernadet traz a categoria do

“tipo sociológico”, um procedimento levado a cabo pelos filmes, com o intuito de adequar o

‘real’ a um aparelho conceitual, utilizando, para isso, estratégias tais como a produção de

significação pela já mencionada relação entre o particular e o geral e a presença de um locutor

ou narrador implícito que faz uso dos personagens para exemplificar e ilustrar uma teoria

acerca dos homens ou do mundo. Moldada em uma estrutura abstrata, essa construção de

tipos utiliza como matéria-prima as próprias pessoas filmadas, revestindo os conceitos de uma

aparência real, cujo resultado é o que o autor chama de personagem dramático, a encarnação

do tipo sociológico no filme. Como o movimento é sempre, nesses casos, de apresentar o

produto audiovisual como uma janela para o real, todo o esforço se concentra na tentativa de

se apagar qualquer traço de construção que possa se imprimir ao personagem dramático,

realçando, em contraposição, os gestos e expressões dos sujeitos filmados, perpetuando,

assim, a noção de que o documentário traria aos espectadores – direta e espontaneamente - o

mundo e não a representação desse mundo.

É na direção inversa que procuramos ir ao discutirmos, nesta pesquisa, a

construção do personagem no filme documentário. Interessa-nos, antes de qualquer coisa,

descrever e analisar quais as estratégias acionadas, no documentário contemporâneo, que

permitem a constituição dos personagens como figuras singulares (e não típicas).

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1.2. Fabulação

Para entendermos o complexo processo de elaboração de singularidades em obras

audiovisuais não-ficcionais, lançamos mão de diferentes estudos e teorias. Dentre eles, os

escritos de Comolli (2001), particularmente o conceito de auto mise en scène por ele

desenvolvido, auxiliam-nos de forma significativa. Para esse autor, o personagem, ao ser

filmado, se expõe, fazendo do ato de filmagem uma relação intersubjetiva que envolve troca

entre os sujeitos envolvidos. O indivíduo filmado não é apenas um modelo vivo passivo.

Aquele (a) que eu filmo me olha. O que ele (ela) vê me olhando é o meu olhar (escuta) sobre ele (ela). Olhando o meu olhar, isto é, uma das formas perceptíveis de minha mise en scène, ele (ela) me envia no seu olhar o eco do meu, devolve minha mise en scène, tal como repercutiu sobre ele (ela).9

Dessa forma, o olhar é apropriado e reenviado por quem era apenas visto, o que

faz com que toda mise en scène seja definitivamente modificada pela relação estabelecida no

ato de filmagem. Quando um olhar retorna para quem o lançara inicialmente, essa pessoa se

torna também objeto do olhar do outro e, com isso, também entra em cena. Mas Comolli vai

além, ao descrever e identificar dois movimentos diferentes para definir a auto mise en scène:

Um que vem do habitus e que passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou de vários campos sociais. O outro, que tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o sujeito em vista do filme [...] se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia, nela coloca em jogo sua própria mise en scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena).10

9 COMOLLI, 2003, p. 111. 10 COMOLLI, 2001, p. 115.

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Ao problematizar essa relação particular estabelecida pelo ato de filmagem,

Comolli evidencia o caráter construtivo e relacional das obras documentais, uma vez que a

presença da câmera aciona complexidades antes não elaboradas. Penafria (2001) vai na

mesma direção, mas por outro viés, ao questionar o ponto de vista no documentário. Segundo

a autora, “o documentário deve assumir-se e ser entendido sempre como um ponto de vista,

como um filme que apresenta e constrói argumentos sobre o mundo”11. Comolli já havia dito,

nesse sentido, que o cinema seria, então, uma maneira de nos mostrar o mundo como um

olhar, como mise en scène.

Na esteira desses pensamentos, Menezes (2003) apresenta uma perspectiva

instigante, também partindo do pressuposto de que o documentário é um discurso construído e

em construção. O autor tenta se afastar da associação entre o filme não-ficcional e os

conceitos de representação, duplo e reprodução do real e, ao retomá-los, ressalta que, por mais

que os realizadores tenham consciência de que esse tipo de obra é uma construção discursiva,

nem sempre o mesmo acontece com o público em geral que, não raramente, as toma como

capazes de revelar toda a verdade sobre determinado tema. Essa confusão entre a “realidade”

fílmica e a realidade propriamente dita, pressuposto que não é aniquilado por uma mera

operação intelectual, impossibilita a categorização do documentário como uma representação,

na medida em que, para o autor, esse conceito não se confunde com o real em si. Menezes

lembra que a representação, segundo Gombrich, é construída a partir da relação entre

imagens, podendo se estruturar por meio de uma imagem mental, em que a referência é a

idéia concebida sobre o objeto representado, ou por códigos reconhecíveis, constituídos por

formas diversas do mesmo objeto. Sendo assim, a noção de representação não foi cunhada a

partir da semelhança estrita entre a coisa e a sua respectiva imagem, o que também não

acontece no caso dos duplos do real. O duplo não remete a uma relação de semelhança, mas a

11 PENAFRIA, 2004, p. 11.

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uma função ritual que une dois mundos distintos, como acontece com os Kolossós, ídolos de

pedra talhados grosseiramente, cujo objetivo é substituir, duplicar os corpos dos mortos,

transformando-se no lugar objetivado de suas almas. O documentário não poderia, assim, ser

associado a esse conceito, pois também não atua dessa maneira. Por último, o filme não-

ficcional não pode ser pensado como reprodução de uma realidade externa, sem mediações,

pois a operação acionada não é de cópia do real. Em contraposição a essas noções e aos

pressupostos que elas carregam, o autor sugere o conceito de representificação:

Proponho que se entenda a relação entre cinema, real e espectador como uma representificação, como algo que não apenas torna presente, mas que também nos coloca em presença de, relação que busca recuperar o filme em sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em projeção, é percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de sentidos. Sentidos estes que estão na relação, e não no filme em si mesmo. [...] Pensar o cinema como representificação significa poder pensar a sessão de cinema como acontecimento nos termos em que a concebia Foucault, a irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção.12

A representificação destaca o caráter construtivo e relacional do documentário, ao

enfatizar que o filme diz mais sobre as formas de construção do mundo do que do mundo

propriamente dito.

Comolli (2001) concebe esse vínculo entre o filme de não-ficção e o real por um

outro viés, ao dizer que o documentário é construído em fricção com o real, capaz de

apreender fissuras e o próprio mundo em sua opacidade, coisa que o gênero ficcional falha em

alcançar. O autor afirma que, em uma sociedade onde a ficção roteiriza as relações de maneira

totalizadora, o documentário surge como uma possibilidade de apresentação do real

diferenciada, permitindo que o invisível e as potencialidades da experiência permaneçam não

somente contidas na imagem, mas também fora e entre elas, enganando as previsões e

12 MENEZES, 2003, p. 94.

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impossibilitando o roteiro. Para Comolli, cabe à arte e ao documentário “[...] representar a

estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que a ficção

em nossa volta nos esconde escrupulosamente [...]”.13

Em busca de uma forma capaz de permitir a irrupção do que é mascarado pela

ficção, percebemos, da década de 90 em diante, um interesse crescente por histórias do

homem comum e seu cotidiano, em detrimento de uma preocupação mais genérica com a

apreensão das leis explicativas da sociedade como um todo. Ao contrário dos filmes cujos

personagens eram elaborados a partir da relação particular / geral, afirmando tipos

sociológicos exemplares de um todo, vê-se agora uma tendência a criar espaços na obra para

que a singularidade de figuras ordinárias atravesse as próprias imagens e depoimentos.

Deleuze (1990) analisa as possibilidades dessas obras a partir da potência do falso

e da fabulação, refletindo sobre algo que é da ordem do acontecimento e não apenas do relato.

[...] um acontecimento não existe fora das suas efectuações. Mas também não se esgota nelas, não ‘está’ apenas no existir actual. Ele subsiste fora dessa existência sensível, não como uma noção geral, simplesmente inteligível, mas como uma singularidade real estritamente virtual. O acontecimento é virtual, melhor, é ‘o’ virtual.14

Para entendermos o que Deleuze escreve, é preciso que retomemos alguns pontos

de sua reflexão. Ao pensar as imagens do cinema, o autor propõe dois regimes, o orgânico e o

cristalino, sendo que, para caracterizá-los, ele analisa alguns de seus aspectos (a descrição, a

relação entre o real e o imaginário, a narração e a narrativa). No regime orgânico, o que é

descrito aparece como sendo independente, uma realidade que preexiste à sua descrição pela

câmera. Como conseqüência dessa abordagem, esse tipo de regime define situações sensório-

motoras e se coloca como um cinema de actantes, de ação. Segundo Deleuze (1990), ao

contrário do cinema da vidência, em que o personagem parece tornar-se um espectador que,

13 COMOLLI, 2003, p. 108. 14 DIAS, [19--], p. 89.

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por mais que se mexa, está imerso em uma situação que ultrapassa suas capacidades motoras,

fazendo com que ele registre mais do que reaja, no cinema de actantes, o personagem reage às

situações e, mesmo quando se encontra impotente, isso se deve a acidentes da ação,

momentaneamente atada. Reis e Lopes (1988) também discutem o termo actante, retomando

Tesnière, para quem ‘os actantes são os seres ou as coisas que, de algum modo, mesmo a

título de simples figurantes e da forma mais passiva, participam do processo’15. Já no regime

cristalino, a descrição vale por seu próprio objeto, que é constituído ao ser descrito, remetendo

a situações sonoras e óticas puras, desconectadas de seu prolongamento motor. Seria um

cinema de vidente e não mais de actante.

Também a relação entre o real e o imaginário apresenta-se de forma diferente nos

dois regimes. No orgânico, há uma separação entre o que é real, os encadeamentos atuais, e o

que é imaginário, as atualizações da consciência. O real, reconhecido por sua continuidade

(incorporada nos raccords), comporta “relações localizáveis, de encadeamentos atuais,

conexões legais, causais e lógicas”16, sendo que o imaginário é concebido por oposição,

aparecendo sob a forma do capricho e da descontinuidade. Já no regime cristalino, esses dois

modos de existência formam um circuito, de tal maneira que trocam de papel constantemente

e se tornam indiscerníveis.

Outra característica apresentada por Deleuze é a narração que, no regime

orgânico, é verídica, com o tempo sendo apresentado indiretamente, dependendo do

movimento para existir. No outro regime, o que ocorre é o desmantelamento do esquema

sensório-motor e, com isso, as anomalias do movimento, que antes não passavam de erros,

tornam-se essenciais, uma vez que o que importa não é mais o encadeamento de ações e o

movimento, mas a apresentação direta do tempo. Os personagens não precisariam mais agir,

apenas enxergar o que há, signos óticos e sonoros puros.

15 TESNIÉRE, 1965, p. 102. 16 DELEUZE, 1990, p. 156.

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É a condição dostoievskiana como Kurosawa a retoma: nas situações mais urgentes, O Idiota sente a necessidade de ver os dados de um problema mais profundo que a situação, e ainda mais urgente (do mesmo modo na maioria dos filmes de Kurosawa). Porém, em Ozu, no neo-realismo, na nouvelle vague, a visão não é mais sequer um pressuposto acrescido à ação, uma preliminar que se manifesta como condição, ela toma o lugar e faz as vezes da ação.17

Em oposição à narração verídica, Deleuze chama esse tipo de narração de

falsificante, sendo que o falso aqui se refere não à mentira ou ao engano, mas a verdades

possíveis, a virtualidades que complexificam a estrutura de mundo em que nos encontramos.

Enquanto a narração verídica remete a um sistema de julgamento, com conexões legais e um

tempo cronológico, e a uma forma de verdadeiro que busca a identificação de um personagem

(eu=eu), a narração falsificante quebra esse sistema, afetando os envolvidos e sempre se

transformando a partir de lugares desconectados e de um tempo descronologizado. Nesse

novo tipo de narração, podemos dizer que eu=outro, porque a potência do falso remete a uma

multiplicidade de experiências e configurações de sentido, muito além do mero

reconhecimento, colocando, “[...] no presente, diferenças inexplicáveis; no passado,

alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso”.18 Nesse tipo de narração, o falsário

torna-se o personagem por excelência, inseparável de uma série de outros falsários nos quais

ele se metamorfoseia. Ao comentar Verdades e Mentiras (1973), o célebre filme de Orson

Welles, o autor relembra o artista Vermeer de Van Megeeren, o falsário que copiou seus

quadros e o perito que fez a análise, para concluir:

O perito em verdade abençoa os falsos Vermeer de Van Megeeren precisamente porque o falsário os fabricou conforme seus próprios critérios, os do perito. Em suma, o falsário não pode ser reduzido a um mero copiador, nem a um mentiroso, pois o que é falso não é apenas a cópia, mas já o modelo. [...] A diferença entre o falsário, o perito e Vermeer é que os dois primeiros praticamente não sabem mudar. Só o artista criador leva a potência do falso a um grau que se efetua, não mais na forma, mas na transformação.

17 DELEUZE, 1990, p. 157. 18 DELEUZE, 1990, p. 161.

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O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada.19

Quanto à narrativa, o último conceito associado aos dois regimes, Deleuze a

concebe como o desenvolvimento de dois tipos de imagens, as objetivas (quando o

personagem é visto) e as subjetivas (quando o personagem vê), além das relações complexas

que se estabelecem entre elas. A distinção entre objetivo / subjetivo e a busca de uma

identificação do público com esse olhar claramente marcado do personagem, comuns ao

regime orgânico das imagens, passam a não valer em um novo modo de narrativa. Chega-se,

então, a uma simulação de narrativa, com a distinção entre objetivo e subjetivo se esvaecendo.

A simples contraposição entre ficção e documentário não nos ajuda a

compreender o que o autor entende por narrativa simulante. Não basta eliminar a ficção, é

preciso libertá-la do modelo de verdade que a penetra, permitindo que a função fabuladora20

seja encontrada.

Quando Perrault se dirige a suas personagens reais do Quebec, não é apenas para eliminar a ficção, mas para libertá-la do modelo de verdade que a penetra, e encontrar ao contrário a pura e simples função de fabulação que se opõe a esse modelo. O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro. [...] Então o cinema pode se chamar cinema-verdade, tanto mais que terá destruído qualquer modelo de verdade para se tornar criador, produtor de verdade: não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema.21

Nesse sentido, ao pensarmos o documentário, a construção do personagem como

singularidade se dá no momento em que o próprio personagem se põe a fabular, a ficcionar

19 DELEUZE, 1990, p. 178. 20 Bergson explica a função fabuladora do seguinte modo: “Se a inteligência ameaçar [...] romper em certos pontos a coesão social, é preciso que, nesses pontos, haja um contrapeso à inteligência. Se esse contrapeso não pode ser o próprio instinto, dado que seu lugar está tomado pela inteligência, impõe-se que uma virtualidade de instinto, ou, se preferimos, o resíduo de instinto que subsiste em torno da inteligência, produza o mesmo efeito: ele não pode atuar diretamente, mas, dado que a inteligência opera sobre representações, suscitará ‘imaginários’ que resistirão à representação do real e que conseguirão, por meio da própria inteligência, contrapor-se ao trabalho intelectual. Assim se explicaria a função fabuladora” (BERGSON, 1978, p. 99). 21 DELEUZE, 1990, p. 183.

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sobre si mesmo, permitindo que seu devir surja e crie-se, assim, uma verdade. Nesse

momento, ele deixa de ser simplesmente visto objetivamente ou de ver subjetivamente para

fabular e se inventar, afirmando-se tanto mais real quanto mais inventa. Para Deleuze, o devir

do cineasta e o do personagem já pertencem a um povo, o que caracteriza um discurso

indireto livre22. Além disso, por se preocupar mais com os personagens do que com a própria

história contada, a narrativa simulante, formada a partir da noção de que eu é outro, alcança a

potência do falso e destrona a narrativa veraz. Quando comenta a obra de Jean Rouch,

Deleuze desenvolve melhor esses conceitos:

A personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se confunde com um povo. Mas o que dizemos da personagem vale, em segundo lugar e notavelmente, para o próprio cineasta. Também ele se torna um outro, na medida em que toma personagens reais como intercessores e substitui suas ficções pelas próprias fabulações deles, mas, inversamente, dá a essas fabulações a figura de lendas, efetua a sua ‘acessão à legenda’. Rouch faz seu discurso indireto livre, ao mesmo tempo em que suas personagens fazem o da África.23

Ao distinguir os dois regimes de significação (orgânico e cristalino), Deleuze

aponta-nos as possibilidades que se refletem na caracterização do personagem que, quanto

mais fabula e inventa, mais real se torna.

Godard, que muitas vezes reconheceu sua dívida com Rouch, insiste cada vez mais nesse ponto: é preciso que a imagem compreenda o antes e o depois, que reúna assim as condições para uma nova imagem-tempo direta, em vez de ficar no presente ‘como nos filmes ruins’. É sob essas condições de imagem-tempo que uma mesma transformação arrasta o cinema de ficção e o cinema de realidade e confunde suas diferenças: no mesmo movimento, as descrições tornam-se puras, puramente óticas e sonoras, as narrações, falsificantes, as narrativas, simulações. É todo o cinema que se torna um discurso indireto livre operando na realidade.24

22 Segundo Reis e Lopes (1988), o discurso indireto livre “é um discurso híbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos falassem em uníssono, fazendo emergir uma voz ‘dual’. [...] O discurso indireto livre, ao proporcionar uma confluência de vozes, marca sempre, de forma mais ou menos difusa, a atitude do narrador em face das personagens [...]” (1988, p. 277). 23 DELEUZE, p. 185, 1990. 24 DELEUZE, p. 188, 1990.

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É a partir desses diversos olhares acerca do documentário e das potencialidades da

imagem que tentaremos entender como se dá a elaboração dos personagens em filmes não-

ficcionais. Fizemos, até então, uma retomada de diferentes perspectivas e aportes teóricos

que, de formas variadas, pensaram esse tipo de construção simbólica. No entanto, devemos,

ainda, perceber como os conceitos já discutidos relacionam-se com as noções de singularidade

e de ordinário, tal como as apresentaremos em seguida.

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2. SINGULARIDADE

2.1. O ordinário

Michel de Certeau (1994) aponta para um movimento inaugurado nas ciências,

artes e filosofia, a partir da modernidade, em que as musas e os deuses, figuras inspiradoras e

arquetípicas, cederam lugar ao homem ordinário, representante da recente sociedade de

massas. O Outro a que a cultura sempre se refere passa a ser, com isso, não mais o célebre ou

o exótico, mas o anônimo. Essa inversão, no entanto, não foi feita sem que antes se passasse

por uma elevação do próprio homem ordinário a uma instância universal e abstrata do saber,

tratando-o como uma forma generalizante, semelhante às figuras anteriores, e não como uma

nova perspectiva para o pensamento. Segundo Certeau, Freud, ao se voltar para o homem

comum, também o fez aproximando-o de um Deus, procurando, assim, legitimar um saber

particular e, pela generalização, validá-lo por toda a história. Mais tarde, no desenvolvimento

de seus estudos, o próprio Freud criticou sua teoria, justamente por esse motivo.

Esse movimento só vai se completar de forma mais sólida quando o trivial e o

cotidiano deixarem de ser o objeto do discurso para se tornarem seu lugar. O homem

ordinário transforma-se em narrador, definindo “[...] o lugar (comum) do discurso e o espaço

(anônimo) de seu desenvolvimento”.25 Essa operação, entretanto, não é radical, uma vez que o

que importa não é falar sobre o ordinário, indizível para o autor, ou estar em seu lugar, o que,

para Certeau, seria falsa mística, mas permitir uma aproximação de fronteiras entre os

25 CERTEAU, 1994, p. 63.

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procedimentos de análise e esse espaço discursivo da trivialidade. Ao falar desse processo, o

autor pontua:

Mesmo que seja aspirada pelo rumor oceânico do ordinário, a tarefa não consiste em substituí-la por uma representação ou cobri-la com palavras de zombaria, mas em mostrar como ela se introduz em nossas técnicas – à maneira como o mar volta a encher os buracos da praia – e pode reorganizar o lugar de onde se produz o discurso.26

A opção pelo ordinário significa a recusa da fala do especialista ou do perito,

chancelando, dessa forma, um processo em que a repetição comporta a diferença. O familiar e

o estranhamento estão conectados nesse contexto e faz-se uma escolha pela imanência e pela

imersão no cotidiano, sem nenhuma forma de transcendência. Certeau continua suas reflexões

discutindo os conceitos do filósofo Wittgenstein que, numa tentativa de trazer a linguagem

para seu uso ordinário, fez uma crítica radical à figura do perito, elemento que “[...] se

pronuncia em nome do lugar que sua especialidade lhe valeu”.27 Para Wittgenstein, o filósofo

não seria capaz de se tornar um perito da linguagem, pois está dentro dela, não podendo,

então, referir-se a nada fora desse domínio. Nos escritos desse autor, a linguagem é

apresentada como algo verdadeiramente real, não sendo possível a posição de um observador

que, de um ponto distante e com um saber específico, a analisaria, revelando, assim, seu papel

fundamental em nossa historicidade e em nossa própria constituição como seres humanos.

Segundo o filósofo, estaríamos como que imersos na linguagem ordinária e só conseguiríamos

apreendê-la como um conjunto de práticas em que estamos envolvidos e implicados.

Não é mais a posição de profissionais, supostamente cultos entre selvagens, mas aquela que consiste em ser um estrangeiro na própria casa, um ‘selvagem’ no meio da cultura ordinária, perdido na complexidade do que se ouve e do que se ouve comumente. E como ninguém ‘sai’ desta linguagem, nem pode encontrar outro lugar de onde interpretá-la, não há, portanto, interpretações falsas e outras verdadeiras, mas apenas interpretações ilusórias. Em suma, não existe saída, e apenas o fato de se ser um estranho dentro mas sem fora, e na linguagem ordinária, resta ‘lançar-se contra os

26 CERTEAU, 1994, p. 64. 27 CERTEAU, 1994, p. 67.

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seus limites’ – situação próxima da posição freudiana, com uma pequena diferença: Wittgenstein não toma como referência um inconsciente para designar esta estranheza em si.28

A perspectiva desse filósofo, retomada por Certeau, apresenta pontos em comum

com a discussão encabeçada por Agamben (1993), bem como elementos discordantes. Em seu

livro A comunidade que vem, esse autor desenvolve o conceito de singularidade que será, em

breve, por nós apropriado.

2.2. O qualquer

Qualquer é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Idéia.29

Essa figura do um qualquer é constituída por uma indiferença entre o comum e o

próprio, excluindo a antinomia entre o individual e o geral, originada na própria linguagem,

conforme escreve Agamben:

[...] o inteligível, segundo a bela expressão de Gersonide, não é um universal nem um indivíduo enquanto incluído numa série, mas a ‘singularidade enquanto singularidade qualquer’. Nesta, o ser-qual é tomado independentemente das suas propriedades, que identificam a sua inclusão em um determinado conjunto, em determinada classe (os vermelhos, os franceses, os muçulmanos) – e considera-se que ele não remete para uma outra classe ou para a simples ausência genérica de pertença, seja ela qual for, mas para o seu ser-tal, para a própria pertença.30

O ser qualquer livra-nos do confronto entre o caráter inefável do indivíduo e o

universal, a partir da contradição firmada quando pensamos que o ser-dito, também chamado

28 CERTEAU, 1994, p. 73. 29 AGAMBEM, 1993, p. 41. 30 AGAMBEM, 1993, p. 12.

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de ser-na-linguagem, propriedade fundadora de possíveis pertenças (o ser-dito amarelo,

francês, pássaro), é capaz de colocar em cheque essas mesmas condições. Agamben postula

que o qualquer surge em um paradoxo da própria linguagem, evidenciado pelas expressões

não-predicativas, aquelas que definem um conjunto, mas, ao mesmo tempo, fazem parte dele,

quebrando o esforço tipificador dos lógicos e de seu pensamento. Inicialmente, o autor explica

que Russel identificou certas expressões, tal como ‘todos’, ‘cada um’ e ‘qualquer’, que

produziriam antinomias ao nomear classes. No entanto, Agamben pontua que essas palavras

são muito mais numerosas do que as originalmente elencadas pelos lógicos, já que, na

verdade, todas as expressões, ou quase todas, podem referir-se a membros de sua extensão ou

também a si próprias, selando, assim, uma situação paradoxal. O ser-na-linguagem é a

expressão não-predicativa por excelência, na medida em que denota uma classe e,

simultaneamente, diz respeito a si mesmo.

Para solucionar essa contradição imanente, Agamben volta-se para uma teoria das

idéias. Segundo o autor, a idéia de uma coisa é a própria coisa, pois exprime-se e é recuperada

apenas por meio de uma operação anafórica, puro ser-dito.

Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não tem identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas tampouco é simplesmente indeterminada; ela é determinada apenas através da sua relação com uma idéia, isto é, com a totalidade das suas possibilidades.31

Para tentarmos entender melhor o conceito de singularidade, poderíamos pensar

no rosto humano que, ao mesmo tempo, aponta para o universal por meio de seus traços

sempre semelhantes à espécie, mas também para o individual e o próprio, constituindo-se em

uma forma de hiato entre esses dois pólos. Essa dupla face, no entanto, é percebida como

indiferente e não como um traço característico pontual.

31 AGAMBEM, 1993, p. 53.

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[...] o rosto humano não é nem a individuação de uma facies genérica nem a universalização de traços singulares: é o rosto qualquer, no qual o que pertence à natureza comum e o que é próprio são absolutamente indiferentes. [...] a passagem da potência ao acto, da forma comum à singularidade, não é um acontecimento cumprido de uma vez por todas, mas uma série infinita de oscilações modais.32

Nessa perspectiva, a singularidade destaca-se, justamente, por não ter

particularidades observáveis, que possibilitariam o enquadramento do ser em um grupo

específico, como, por exemplo, o conjunto das donas-de-casa, dos excluídos, dos artistas, etc.

O um qualquer é uma estrutura completa e complexa, representada na literatura por homens

cinza, sem particularidades, como no célebre texto de Musil (O homem sem qualidades) ou na

figura de Bartleby, concebida por Melville. O um qualquer dá nome e, ao mesmo tempo, está

dentro do conjunto denotado.

Michael Hanke (2004), ao escrever acerca do romance de Musil, explica que esse

livro conseguiu destituir a ontologia substancialista clássica por meio da ausência de

qualidades. O autor esclarece que, segundo essa corrente filosófica, o mundo constitui-se por

coisas diversas que são determinadas por qualidades e interligadas por múltiplas relações.

Além disso, cada ente, ou seja, tudo o que é ou pode ser, diferencia-se em dois aspectos.

Primeiramente, por meio de sua essência (o que é). Em seguida, por sua existência (o fato que

é). Sendo assim,

Essa ontologia substancialista, defendida por Platão e Aristóteles e levada adiante por Descartes e Hegel, reconhece as substâncias como núcleos da realidade do mundo. A essas substâncias atribuem-se qualidades, isto é, as substâncias servem como substratos ontológicos para suas qualidades (a essência, Wesen). Surge daí a descrição do mundo nos moldes do esquematismo essencialista da metafísica ocidental e seu desdobramento como cosmos ou ordo, começando pelas substâncias sensíveis e acabando no ente supremo, que é Deus.33

32 AGAMBEM, 1997, p. 23. 33 HANKE, 2004, p. 129.

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Todo esse projeto filosófico é colocado abaixo pelo livro de Musil e, da mesma

forma, pelas postulações de Agamben. Segundo esse autor, a transcendência, ao invés de uma

utopia a ser alcançada, é inerente ao próprio ter-lugar das coisas, pura imanência. A

singularidade, nesse contexto, não é constituída de forma abrupta, mas pelo que o filósofo

chama de uma série de oscilações modais geradoras, em uma troca reversível e recíproca, do

ser qualquer. Ao contrário da cisão entre essência e existência, promovida pela ontologia

ocidental, poder-se-ia pensar no ser em sua emergência (manare), um ser que é o seu modo de

ser, e não de uma forma ou de outra. Mesmo permanecendo singular e não indiferente, como

coloca o autor, é múltiplo e valeria por todos. Essa maneira emergente é o lugar da

singularidade qualquer.

Ao debruçar-se sobre a figura de Bartleby, Agamben explica que a “potência

suprema” tanto pode a potência quanto a impotência. O personagem de Melville escreve,

segundo o autor, sua potência de não escrever. Retomando Aristóteles, Agamben postula que

o pensamento é também potência pura, na medida em que pode não pensar. Graças a essa

potência, ele pode virar-se para si próprio e ser pensamento do pensamento. Peter Pál Pelbart

(2000) também analisa o personagem escriturário, a partir da perspectiva deleuziana. Segundo

o autor, a expressão I would prefer not to – Eu preferiria não, proferida pelo copista ao longo

do romance, cria uma força de neutralidade ao cavar uma zona de indiscernibilidade entre o

preferível e o não-preferido. Sendo assim, o neutro torna-se uma estratégia para se escapar do

sentido. Também em Musil, há um apagamento que engendra novas singularizações, uma vez

deslocados os códigos cristalizados, gerando uma espécie de resistência passiva que coloca o

mundo a correr.

O nada de vontade de Bartleby torna-se, então, uma estratégia contra os clichês

que regulam nossas maneiras de ver o mundo. Segundo Deleuze, a expressão pronunciada

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pelo personagem instaura na própria língua uma espécie de língua estrangeira e, ao fazer isso,

confronta toda a linguagem com o silêncio. Além disso,

[...] desarticula os atos de fala segundo os quais um patrão pode comandar, um amigo benevolente fazer perguntas, um homem de fé prometer. Se Bartleby recusasse, poderia ainda ser reconhecido com um rebelde ou revoltado, e a esse título desempenharia um papel social. Mas a fórmula desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo em que faz de Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode ser atribuída. É o que o advogado percebe com terror: todas as suas esperanças de trazer Bartleby de volta à razão desmoronam, porque repousam sobre uma lógica dos pressupostos, segundo a qual um patrão ‘espera’ ser obedecido, ou um amigo benevolente, escutado, ao passo que Bartleby inventou uma nova lógica, uma lógica da preferência que é suficiente para minar os pressupostos da linguagem.34

Pelbart (2003) pergunta-se, ainda, como desafiar as instâncias que expropriam o

comum e que o transcendentalizam. Para o autor, na esteira do pensamento de Agamben, seria

esse o papel da singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade nem faz valer um

liame social, constituindo uma multiplicidade inconstante.

A singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença, do seu próprio ser-na-linguagem, e declina, por isso, toda a identidade e toda a condição de pertença, é o principal inimigo do Estado.35

A partir dessas reflexões filosóficas, podemos, então, chegar ao conceito de

singularidade tal como o estamos utilizando neste estudo, que se confunde, em certa medida,

com o de um qualquer. A singularidade não deve ser pensada como uma essência inerente a

cada indivíduo, recalcada por regras e comportamentos sociais, a ser alcançada ou não pela

representação. Ao contrário, a singularidade é uma figura da linguagem e só existe nela, ou

seja, é construída por signos, sejam eles sonoros, visuais, verbais, quaisquer. Em nosso caso, a

materialidade simbólica do documentário articula estratégias de representação que podem

apresentar uma singularidade ou traços dela. Mas o que seria, enfim, esse conceito? Talvez, a

34 DELEUZE, 1997, p. 85 35 AGAMBEM, 1993, p. 68.

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melhor maneira de defini-lo seja colocando-o em oposição à noção de típico. Este último

remete a uma particularidade que desponta do indivíduo representado, o enquadra em um

grupo e promove facilmente a identificação. A singularidade, ao contrário, atravessaria

representações, permitindo, ao mesmo tempo, a coexistência do particular e do geral de forma

complexa, como um pacote completo.

[...] a singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável. Porque o amor nunca escolhe uma determinada propriedade do amado (o ser-louro, pequeno, terno, coxo), mas tampouco prescinde dela em nome de algo insipidamente genérico (o amor universal): ele quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é.36

Com essas noções em mente, procuraremos encontrar, em documentários

variados, vestígios de uma singularidade que entrecorta a construção dos personagens. Nosso

intuito é perceber como essa forma qualquer consegue liberar os personagens de suas amarras

e abrir espaços para fabulações e invenções.

Para tanto, foi preciso que definíssemos nosso universo analítico, uma vez que o

campo é vasto e diversificado. Elaboramos, então, uma delimitação baseada em critérios

temáticos e temporais, associados a escolhas que procuraram apontar obras que trouxessem

novas questões e ajudassem-nos a entender os conceitos aqui trabalhados. A seguir, faremos

uma breve retomada desse percurso metodológico, como forma de explicitarmos nossas

opções.

36 AGAMBEM, 1997, p. 12.

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3. ESCOLHAS E AFETOS 3.1. Um olhar sobre as tendências

Como pensar a construção do personagem no campo do documentário, uma vez

que este é composto por uma gama variada de possibilidades, com disparidades profundas e

marcantes? Essa é a principal questão metodológica de nosso trabalho e o percurso que

fizemos para a circunscrição de um corpus específico passou por várias etapas.

Nosso trajeto começou a partir da vontade de refletirmos sobre as estratégias de

construção do personagem no documentário brasileiro contemporâneo e os dispositivos

utilizados para dar a ver a singularidade. Utilizamos aqui o conceito de dispositivos tal como

o faz Consuelo Lins, ao comentar o trabalho de Eduardo Coutinho:

[...] ‘Dispositivo’ é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos, ele chamou a isso de ‘prisão’, indicando as formas de abordagem de um determinado universo. Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro – o que, aliás, ele se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado antes do filme e pode ser: ‘Filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário.’ Para um cinema como o de Eduardo Coutinho, que lida com a matéria em movimento, com a desordem da vida e do mundo, o ‘como filmar – coração do trabalho do cineasta – coloca-se como a mais violenta necessidade’ de uma produção.37

37 LINS, 2004, p. 101.

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Apesar de o utilizarmos nesta pesquisa como um sinônimo de estratégia, esse

conceito foi formulado, originalmente, nos anos 70, por Jean-Louis Baudry38, juntamente com

a noção de aparelho de base, que compreendia o conjunto da aparelhagem e operações

necessárias para a produção e projeção de um filme, tais como a película, a câmera, a

revelação, a montagem, dentre outros. Um dos componentes desse aparelho de base é o

dispositivo, que concerne à projeção na qual o sujeito se inclui. Ismail Xavier (1983),

comentando um texto de Baudry39, conclui que esse autor se interessava, principalmente, pela

“participação afetiva”, o jogo das identificações e a constituição do espectador como sujeito a

partir do olhar como uma instância. O artigo faz uma ampla consideração sobre a falsa

neutralidade dos aparelhos óticos, elegendo o olho como elemento central da representação,

convenção que o cinema consagraria e que teve início com a noção de perspectiva na

Renascença.

Jacques Aumont (2004) vai mais adiante, retomando o conceito original para, em

seguida, rearticulá-lo. Segundo esse autor, o dispositivo, para Baudry, concebe o cinema

como sendo constituído por um sistema articulado, compreendendo a tecnologia de produção

e exibição, o efeito psíquico de projeção e o complexo da indústria cultural como instituição

produtora de um certo imaginário. Esse modelo teórico concede uma preeminência ao olhar,

enfatizando, ainda, o caráter ideológico envolvido na circunstância de projeção. No entanto,

para Aumont, o que se chama de “o” cinema teve, na verdade, diferentes modos de

apresentação do filme, o que dificulta a utilização do termo dispositivo, tal como cunhado por

Baudry, para dar conta de todo o campo. Nesse sentido, em oposição às características

previamente elencadas (imobilidade, obscuridade, projetor no fundo da sala fechada, dentre

outras), Aumont opta por uma noção mais aberta.

38 O autor retoma esse conceito em um artigo de 1975, publicado na revista Communications. 39 O texto analisado é o artigo Cinema: os efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base, de 1970, publicado na revista Cinéthique, no. 7/8.

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O dispositivo será, portanto, para mim, antes de tudo, esse traço singularmente significante: o cinema é uma aspiração do olhar pela tela. Não apenas do olhar, é claro (conhecemos o papel da narrativa na captação imaginária do espectador), mas, em primeiro lugar e sempre, do olhar. Não insisto, já que é sobre esse deslumbramento do olhar que está fundada a reflexão ‘clássica’ sobre o dispositivo, a reprodução do sujeito ‘centrado’, o fetichismo etc. Quero salientar apenas, de maneira um pouco defasada em relação a essa reflexão clássica, que o cinema em seu conjunto, para além das diferenças concretas assinaladas agora, é, antes de tudo, um dispositivo genérico, onde o olhar se exerce de maneira durável – contínua ou não, tanto faz -, por isso mesmo variável (no tempo), enfim, isolável.40

Feita essa retomada do conceito de dispositivo, podemos agora continuar a

discutir nossas questões propriamente metodológicas. Ao investigarmos a produção recente de

documentários, deparamo-nos com um universo diversificado e amplo de obras que, dada a

complexidade do campo, transforma em algo pouco producente a tarefa de pensarmos a

construção do personagem e o uso de determinadas estratégias como uma regra única. No

entanto, isto não se apresenta, para nós, como um problema, pois o que propomos, ao

contrário, é uma imersão em filmes que representam uma tendência, mas são únicos e

particulares, não sendo, necessariamente, representantes do todo da produção audiovisual de

não-ficção no Brasil.

3.2. Critérios

Dada a variedade do campo do documentário, optamos por circunscrever nosso

recorte a partir de uma delimitação espaço-temporal e temática das obras. Inicialmente,

escolhemos analisar apenas filmes produzidos no Brasil, da década de 90 em diante, cujos

40 AUMONT, 2004, p. 63.

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personagens sejam anônimos. A escolha por documentários brasileiros foi uma tentativa de

observarmos um fenômeno mais próximo de nossa realidade, sem nenhuma intenção de

traçarmos uma caracterização generalizante da produção nacional. Ao contrário, buscamos

apenas entender como certos cineastas conseguiram construir seus personagens de forma

singular, sem que isso implique a criação de dogmas que devam ser seguidos à risca.

Somente filmes produzidos a partir de 1990 serão analisados, período em que

diversas opções estéticas colocavam-se à disposição dos criadores. Ao olharmos para o

cinema documentário brasileiro das últimas décadas, vemos uma crescente ampliação das

obras que procuram retratar o homem comum em seu cotidiano, ao contrário de histórias

sobre figuras ilustres ou exóticas. É para esses homens comuns que nos voltaremos, a partir de

personagens escolhidos não por serem célebres ou famosos, mas por serem figuras ordinárias.

Essa tendência também é percebida por Karla Holanda (2004), que, ao relacionar o

documentário contemporâneo à micro-história, evidencia sua abordagem particularizada.41

Essa analogia é definida da seguinte maneira pela autora:

[...] é necessário definir a micro-história como a prática historiográfica que utiliza uma reduzida escala de observação, seja na análise da história de indivíduos ou da história de comunidades, diferenciando-se da história-síntese (VAINFAS, 2002, P.115). Privilegiando o recorte minúsculo, a micro-história costuma construir ‘tramas aparentemente banais, envolvendo gente comum’ (VAINFAS, 2002, p. 106). De modo análogo, consideramos a abordagem particularizada no documentário aquela que se refere ao tema por um recorte mínimo, através da história de indivíduos ou pequenos grupos. [...] Agora, o indivíduo destacado não está mais a serviço da representação de um tipo, ele aqui é fragmentado [...] Ele agora é representado na sua pluralidade, ele agora é humano. 42

Nesse contexto, cabe ressaltar que nossa escolha por esse tipo de obra coloca-se

como um recorte temático, devido à emergência de filmes brasileiros em torno do anônimo,

termo que não deve ser entendido como sinônimo de qualquer ou singular. Enfatizamos isso

41 A autora lembra que o mérito de um documentário, no entanto, não é determinado por uma abordagem micro ou macro. Na verdade, o que Holanda considera importante é a proposta de cada filme e a dinâmica do processo que se estabelece entre o filme e o contexto histórico-social em que é realizado. 42 HOLANDA, 2004, p. 91.

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porque esses conceitos, tal como utilizados por Agamben, podem ser associados tanto a

figuras célebres como a homens comuns, uma vez que dizem respeito às articulações que

configuram a construção dos personagens e não aos homens “empíricos”. Quando falamos de

singularidade, não nos reportamos à pessoa do “Seu Fulano”, mas ao personagem do “Seu

Fulano”, tal como nos é apresentado no documentário.

Por fim, podemos dizer que nossas escolhas pautaram-se por restrições temporais,

espaciais e temáticas, incluindo-se nesse processo também o afeto. As obras que se

relacionavam à nossa pesquisa e traziam questões significativas para a discussão da

singularidade, permitindo que esta fosse observada empiricamente, mesmo que de modo

fugidio, foram as que acabaram por nos conduzir ao recorte final.

3.5. Poéticas do documentário

Para desenvolvermos esta pesquisa, voltamos nossos olhares para os mais

importantes festivais e mostras audiovisuais de documentários do país, notadamente

Videobrasil, É tudo verdade, Forumdoc e Fluxus, numa tentativa de elencarmos alguns dos

filmes que despontaram na produção nacional. Com isso, chegamos a uma lista inicial de

cerca de 60 documentários, produzidos da década de 90 em diante, cujos personagens são

pessoas anônimas. Essa primeira seleção foi feita a partir das próprias sinopses fornecidas

pelos festivais. Não ficamos, no entanto, presos a esses centros, uma vez que obras

interessantes para a pesquisa e dentro do recorte proposto chegaram às nossas mãos por outros

caminhos. A seleção dos acervos foi apenas uma maneira de sistematizarmos o estudo, não

excluindo outras formas de coleta que levassem em consideração contatos pessoais e

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profissionais, permitindo o acesso a documentários que, de alguma forma, foram pertinentes à

pesquisa.

Uma vez circunscrito esse primeiro conjunto de obras, fez-se necessária uma

segunda redução. Para isso, escolhemos os filmes que apresentavam o maior número de

questões acerca da construção do personagem no cinema documentário, configurando-se,

dessa forma, nosso corpus expandido, a saber:

1. Juliu’s Bar (Consuelo Lins, 2001)

2. Parabolic People (Sandra Kogut, 1991)

3. Zagati – Mini Cine Tupy (Edu Felistoque e Nereu Cerdeira, 2002)

4. O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003)

5. Casa de Cachorro (Thiago Villas Boas, 2002)

6. O rap do pequeno príncipe (Marcelo Luna e Paulo Caldas, 2000)

7. A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004)

8. O fim do sem fim (Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto

Magalhães, 2000)

9. À margem da imagem (Evaldo Mocarzel, 2003)

10. Santa Cruz (João Moreira Salles, 2001)

11. Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991)

12. A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004)

13. Aboio (Marília Rocha, 2005)

14. Teresa (Kiko Goiffman, 1992)

15. Aurora (Kiko Goiffman, 2002)

Conseguimos, por meio de uma análise prévia, assistir a 12 dessas obras, sendo

que pesquisamos o conteúdo das outras três que não foram encontradas. Pudemos, então,

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restringir ainda mais nosso conjunto, alcançando o número de oito obras para análise, quais

sejam:

1. O rap do pequeno príncipe (Marcelo Luna e Paulo Caldas, 2000)

2. A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004)

3. O fim do sem fim (Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto

Magalhães, 2000)

4. À margem da imagem (Evaldo Mocarzel, 2003)

5. Santa Cruz (João Moreira Salles, 2001)

6. Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991)

7. A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004)

8. Aboio (Marília Rocha, 2005)

Por fim, esse conjunto foi reduzido ainda mais, permitindo uma imersão maior

nos objetos empíricos no momento da análise e um melhor aproveitamento das questões

apresentadas. O formato final da empiria foi, então, delineado:

1. A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004)

2. A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004)

3. Santa Cruz (João Moreira Salles, 2001)

4. Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991)

Esses quatro filmes apresentam diferentes formas de abordagem e construção do

personagem e, principalmente por isso, foram escolhidos para as análises. Cada um deles, à

sua maneira, articula estratégias específicas, permitindo que a singularidade atravesse as

representações. Além disso, é de maneira variada que a relação entre a câmera, o diretor e os

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sujeitos filmados estabelece-se. Dessa forma, além de discutirmos a estrutura montada nas

obras individualmente, podemos olhar também para o diálogo entre elas, estabelecendo

comparações que não são valorativas, mas que ajudam a apontar recursos diversos de

elaboração do personagem, enriquecendo, assim, nossa pesquisa.

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4. VIDAS ORDINÁRIAS

Para a realização das análises que serão apresentadas em seguida, optamos por

seguir uma estratégia deliberadamente descritiva, aliada a uma percepção do filme como

produto de uma montagem articuladora do todo e de cada plano. Ao invés de uma abordagem

sintética dos filmes, acompanhada de uma aplicação de conceitos teóricos, decidimos

empreender uma aproximação mais discreta aos nossos objetos, construindo uma exposição

linear dos acontecimentos, entremeada por apontamentos analíticos e comentários críticos.

Essa predileção busca, principalmente, preservar algo da temporalidade própria de cada um

dos documentários, dimensão presente nos quatro filmes de forma significativa.

Ao acompanharmos a projeção dos documentários, percebemos dois pólos que,

combinados, permitem um entendimento mais amplo das obras. O primeiro deles é

constituído pelo o que vemos ao longo do filme, expresso, na análise, pela descrição linear

dos acontecimentos. No entanto, apenas esse plano descritivo não é suficiente para o

entendimento de nosso corpus, correndo-se o risco uma escrita literalmente espelhada no

decorrer dos filmes. Para evitarmos isso, fizemos um apanhado dos momentos mais

significativos para, em seguida, procedermos à identificação de manifestações dos efeitos de

singularidade, o que só é possível se tivermos em conta uma segunda dimensão, composta

pela montagem do filme como um todo.

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4.1. A pessoa é para o que nasce

O documentário inicia-se ao som de uma composição instrumental do maestro

Ennio Morricone, com a câmera enquadrando o pico de uma subida. Pouco a pouco, homens

pedalando bicicletas entram em quadro e, ao fundo, surgem três figuras caminhando de mãos

dadas, fazendo o mesmo trajeto. Entram os letreiros, com os seguintes dizeres: “Regina,

Maria e Conceição em: A pessoa é para o que nasce”. O plano fixo mostra a caminhada das

três em direção à câmera, até quando estão prestes a sair de quadro. A música cresce e, ao

atingir seu ápice, o rolo de negativo chega ao fim, acabando com o que seria o clímax da

seqüência. As características marcas vermelhas da ponta de uma película dão lugar a uma tela

preta. Ainda no escuro, ouvimos vozes, quase resmungos, uma espécie de ladainha ou coro,

emitindo interjeições e dizendo repetidamente: “Eita! Pelo amor de Deus!”.

A abertura do filme, à semelhança de filmes ficcionais, apresenta os nomes das

três irmãs como os de atrizes que interpretam determinados papéis, remetendo-nos, desde já,

para a dimensão de uma interpretação de si mesmo, confirmada pelo dispositivo. Além disso,

a exibição explícita do fim do negativo, quebrando a seqüência que se firmava pelo crescendo

da trilha sonora, introduz um outro ponto que será continuamente retomado pelo filme, que é

a desconstrução de uma narrativa melodramática acerca dos acontecimentos.

As próximas imagens mostram uma cidade que, pelo letreiro, sabemos ser

Campina Grande, na Paraíba. Em seguida, somos apresentados a duas mulheres, deitadas em

uma cama. Saberemos, mais adiante, que são Poroca e Indaiá, irmãs cegas tocadoras de ganzá,

uma espécie de chocalho cilíndrico com sementes ou seixos em seu interior. O plano seguinte

exibe, em grande angular, os pés de Maroca, a terceira irmã, para, logo depois, mostrar os de

Dalvinha, sua filha, ambas dormindo no quarto ao lado. No primeiro cômodo, Poroca e Indaiá

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acordam, perguntam pela mais velha e começam a tatear a cama em busca de seus vestidos.

Indaiá tenta, de todas as maneiras, se enfiar dentro da roupa, enquanto Maroca e a filha

acordam no outro quarto. A tela enegrece e, em seguida, o título do filme é apresentado. Em

primeiro plano aparece uma placa de madeira com o nome do documentário escrito a mão, de

maneira bem trabalhada. Ao fundo, estão sentadas as três protagonistas, de perfil e em

diagonal, uma ao lado da outra.

Logo no início, as irmãs contam que não têm o bem maior, a visão, mas aceitam

esse destino. Dizem que cada um nasce para uma função, sendo que elas nasceram para bater

ganzá no meio da rua, já que não têm os olhos para executar outras atividades (imagens de

arquivo mostram as irmãs tocando seus instrumentos em diferentes municípios). Maroca

conta desde quando pedem esmola e como era a vida em família. Ela explica que a mãe não

foi boa para elas e começa a falar do padrasto. Enquanto conta que ele abusava sexualmente

de Poroca, a câmera mostra o rosto dessa irmã, suas mãos se mexendo nervosamente. Regina

revela que ficou grávida do tal homem e, quando soube, só conseguiu chorar.

Um corte nos leva para um plano de um céu azulado, com Poroca cantando ao

fundo, acompanhada por instrumentos que agora não aparecem dissonantes como durante os

depoimentos. Ela está em pé, ao lado de um grande cacto, em uma espécie de videoclipe, cuja

função não é indicar sua personalidade, mas, justamente, afastar o público da revelação já

feita sobre sua vida e seu passado, impedindo, de certa forma, que uma dramaticidade

melodramática se instaure após tomarmos conhecimento de sua adolescência conturbada. O

impacto da notícia partilhada não é extinto, só não é explorado como forma de capturar o

espectador. Esse recurso é utilizado em vários momentos e, ao minimizar uma identificação

possível com o sofrimento pelo qual elas passaram e, conseqüentemente, evitar a tipificação

das irmãs, seja como vítimas ou como deficientes visuais, contribui para uma construção

singular do personagem.

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No próximo plano, Maroca conta que a criança morreu logo depois de nascer e

encena o momento em que bateu no padrasto com um pedaço de madeira, após ter sido

ameaçada. Um piano dissonante acompanha a narração do caso, explicitando parte da trilha

sonora original, de autoria de Hermeto Pascoal. O rosto de Maroca aparece em uma fusão

com outra imagem dele mesmo e ela diz que ficou com uma “zonzeira” na cabeça. A tomada

seguinte, agora sem fusões, mostra-a em um close-up, dizendo que pediu à mãe que

escolhesse entre o homem e as filhas. Um plano totalmente branco é inserido rapidamente

sobre a imagem de seu rosto, como se algo explodisse na tela, que depois fica completamente

clara, e ouvimos apenas as interjeições proferidas pelas irmãs, acompanhadas de toques

dissonantes de piano.

Maroca aparece, em seguida, na porta de casa, sendo que as outras duas estão na

janela. A mais velha apresenta seu lar e diz que é ela quem manda em tudo. A próxima

seqüência é toda composta por imagens produzidas por minicâmeras anexadas de alguma

forma ao tronco das irmãs, com lente grande angular, enquadrando seus rostos enquanto

andam pela casa. Uma visão produzida pelo documentário, como uma câmera subjetiva

invertida, já que, se fossem mostradas as imagens realmente vistas pelas depoentes, só

teríamos vultos e escuridão. Primeiramente, Maroca passeia pelos cômodos, mostrando a casa

ao seu redor, enquanto o que vemos é apenas a sua própria figura. O mesmo acontece com

Poroca. Ela caminha e, em um dado momento, coloca a mão nos olhos para espantar um

mosquito. Em seguida, há um corte para uma imagem da lente da câmera sendo tampada, em

alusão à câmera / olho, tal como no célebre O homem e a câmera (1929) de Vertov. Maroca

continua o passeio, intercalado com a caminhada de Poroca pela casa que, quando vai beber

água, coloca o braço em frente à câmera, obstruindo a visão que temos. As três bebem água e

Doda, irmão de criação, surge no documentário pela primeira vez. Nessa rápida seqüência, de

maneira surpreendentemente literal, as imagens objetivas confundem-se com as subjetivas,

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criando uma zona de indiscernibilidade que, no entanto, nos aproxima, de uma certa maneira,

das três personagens cegas, na medida em que tudo o que elas descrevem ao longo do passeio

pela casa não nos é revelado ou mostrado, fadados que estamos a olhar para quem não vê,

devido à posição das câmeras.

Os próximos personagens que se apresentam são Seu Didi, Dona Didi e Dalvinha,

filha de Maroca, posicionada entre o casal. Dona Didi é quem cuida da casa das irmãs cegas,

faz comida e limpa, motivo de admiração para o marido.

Entram duas vinhetas, intercaladas por um plano das três na sala, brincando de

adivinhar o momento em que a luz está acesa ou apagada. A primeira é composta por uma

imagem do sol se mexendo pelo quadro, ao som de pianos e tambores. A segunda mostra os

rostos das três na tela, sobrepostos em um fundo preto. As irmãs vivem juntas, falam em coro,

povoam o mesmo universo, a mesma tela. No entanto, cada uma é construída separadamente e

os conflitos particulares aparecem, mesmo que narrados por outros.

Logo após, surge a abertura do Programa Legal e Regina Casé apresenta as irmãs.

Maroca, em off, fala de seu primeiro marido, Manoel, que era repentista e deficiente visual,

além de extremamente ciumento. Voltamos rapidamente para uma tomada do programa e um

corte apresenta, em seguida, um plano fechado dos olhos de Maroca, que diz ter se casado

porque queria filhos. Em uma imagem de arquivo, ela carrega um neném no colo. A câmera

mostra, na próxima tomada, um pátio enorme, cimentado, um amplo espaço aberto que ocupa

toda a tela. Maroca conta que Dalva nasceu em Campina Grande, mas eles foram morar em

Natal, com a família do marido. Quando ele faleceu, seus parentes não quiseram entregar a

menina à mãe. Vemos, na seqüência, as três irmãs caminhando sobre o pátio e, à medida que

andam, somem e reaparecem em outro ponto, por meio de fades na imagem. Esse efeito se

repete, criando uma composição plástica interessante, enquanto Maroca conta que foi nessa

época que conheceu Silva, seu grande amor.

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As três aparecem sentadas em diagonal na pequena sala da casa. A irmã mais

velha continua a história sobre Silva, dizendo que ele nunca a tocou. Nesse momento, o

diretor se espanta e pergunta, sem entender: “Não tocou?” Ela responde que disse não tocou

no sentido de que ele não era violento, mas percebe que o cineasta havia entendido a

expressão de outra forma, motivo de risadas para Maroca. Todos começam a rir, inclusive a

câmera, que balança e se desestabiliza perante a gafe do diretor. Maroca se vira para as duas

irmãs e diz: “Tá pensando que tá conversando com criança...”, referindo-se, ironicamente, ao

entrevistador. Há um corte para a tela branca e entra a trilha sonora. Essa é a primeira

intervenção direta do cineasta que, até então, não havia se pronunciado, nem mesmo em off.

No entanto, ele começa já mostrando um mal-entendido que, na verdade, ganha funções

múltiplas na construção do filme. Primeiramente, mostra claramente a presença de alguém por

trás da câmera. Em seguida, evidencia que esse alguém não é detentor de uma verdade

absoluta, pois sua primeira fala direta no filme é motivo de chacota pela personagem e pela

própria equipe. A câmera, balançada com as risadas, enfatiza a relação próxima entre os dois

pólos de uma entrevista, ou seja, o depoente e quem pergunta. Isso quebra, de certa forma, a

linearidade narrativa que vinha sendo construída desde o início.

O próximo plano é uma panorâmica de Maroca deitada, segurando a carteira de

identidade de Silvestre (Silva), seu grande amor. Uma música toca ao fundo e um fade nos

leva a uma tela negra no momento em que ela começa a descrever, em off, o seu segundo

marido. Fala de seus cabelos anelados, rosto largo, mãos grandes, voz grossa, porém linda.

Ouvimos suas impressões táteis e sonoras, em uma imersão pelo não visual. Ele também era

deficiente e não enxergava. A câmera volta-se para Maroca, deitada na grama e com os braços

para trás, dizendo que amava e era louca por Silva. A cada frase, o zoom é aproximado e

afastado. O enquadramento seguinte, transversal, mostra sua figura enviesada, como se o eixo,

que é a direção de seu corpo na tela, estivesse em um movimento circular. Ela conta que ele

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se perfumava para chegar perto dela à noite e que achava isso “muito maravilhoso”. Se

pudesse, não teria saído de perto dele, sendo que ainda sente falta do prazer que Silva lhe

proporcionava. Uma música sobre a despedida de um grande amor, que estava a todo o tempo

sendo entoada em off por ela, agora pode ser ouvida em sincronia com seu rosto que canta,

seguindo-se um close de seus olhos e de sua boca. Continuando o caso, a vinheta de um

telejornal local explica que um deficiente visual foi morto pelas costas e Maroca conta que

esperava o companheiro no quarto quando ouviu o começo de uma discussão sobre um sofá

velho. Intercalando imagens do telejornal com os depoimentos da irmã mais velha, de Doda e

de Seu Didi, ficamos sabendo que Silva foi assassinado por um outro irmão de sua mulher,

que estava embriagado. Deitada, Maroca diz que ouviu quando falaram que Silva havia sido

esfaqueado. Há um corte para a tela branca e ela conta que não viu mais nada.

Seu Didi e Doda terminam o caso e Maroca aparece, logo após, deitada, em um

plano mais fechado, contando que, antes de Silva morrer, não teve tempo de falar mais nada.

Ela caminha pelo mato, cantando que não tem mais um amor e aparece em um cemitério,

conversando com o túmulo de seu último companheiro. Nesse momento, a figura forte dessa

mulher não resiste e engasga com o choro preso na garganta. Já em casa, conta que passou 11

anos com o primeiro marido e só dois anos com Silva. Fala, em tom de brincadeira, que, se

arrumar outro, vai ficar apenas um mês casada. Em toda essa seqüência sobre a história de

Maroca e Silva, a personagem passa por uma série de humores e sensações, mostrando-se

múltipla e facetada. Começa como mulher, deitada na grama, falando de amor e prazer. Vai

ao sofrimento, uma dor tão forte que lhe causa um desmaio. Aparece frágil, no cemitério, e

termina cômica, satirizando sua própria vida amorosa. No decorrer de toda essa seqüência,

estamos imersos em um pequeno melodrama, gênero dramático consolidado, segundo Xavier

(2003), pela seguinte característica:

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[...] uma busca de expressividade (psicológica e moral) em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo; na ênfase do gesto, no trejeito do rosto, na eloqüência da voz. Apanágio do exagero e do excesso, o melodrama é o gênero afim às grandes revelações, às encenações do acesso a uma verdade que se desvenda após um sem-número de mistérios, equívocos, pistas falsas, vilanias (...) envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar é convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da virtude e do pecado.43

A maneira como o caso sobre Silva é narrado pelo filme tem inspiração em um

universo melodramático, que é enfatizado, nessa passagem, pela montagem que engendra

fragmentos de depoimentos e cria um suspense acerca da dimensão trágica do acontecimento.

Temos, nesse momento, a melodia que norteia o enredo e o drama que alinhava o discurso a

partir das falas e das imagens. Podemos dizer, tal como afirmou Baltar (2005) acerca dos

filmes de Coutinho, que o “excesso” mobilizado, expresso aqui nos gestos de Maroca, nos

detalhes apresentados e na própria montagem que recorre a diferentes fontes para elucidar a

história, é da ordem do excesso melodramático, apesar de não se ligar a uma exposição do

bem e do mal, tal como o melodrama canônico faz, o que garante que a utilização desse

artifício seja produtiva para legitimar a construção do personagem como singularidade e não

apenas um recurso para enfatizar tipos, tal como é comumente feito pela televisão comercial e

pelo cinema de Hollywood. Por diversas vezes, o documentário analisado consegue escapar

da dicotomia entre o bem e o mal, quebrando uma estrutura melodramática que aprisionaria os

personagens, embora não deixe de aproveitar-se de traços desse gênero para compor sua

narrativa.

Finda essa seqüência, as três irmãs aparecem, em seguida, na lateral de uma

estrada, tateando uma placa. O áudio apresenta ruídos e uma música forte, com batidas.

Maroca diz que há dias em que tem vontade de “[...] ganhar o meio do mundo. Desaparecer”.

A sinalização, podemos ver, indica que estão na Praça do Meio do Mundo. Dalvinha aparece

andando em frente à placa e, em off, ouvimos sua mãe dizer que, após a morte de Silva, Dona

43 XAVIER, 2003, p. 39.

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Didi ajudou-a a buscar a filha em Natal. Ouvimos, em seguida, Dona Didi explicar como

divide o dinheiro das irmãs e vemos o momento em que ela distribui o almoço para as três

que, em off, comentam que a comida não é todo dia assim, tendo sido feita especialmente para

o filme. Mais uma vez, algo quebra a pretensa veracidade comumente associada aos

documentários, evidenciando a montagem interna a cada plano e situação mostrada. Em

contraponto ao depoimento da velha senhora, Doda denuncia que praticamente tudo o que as

irmãs recebem vai para Dona Didi.

O plano seguinte mostra a cidade e, em off, uma locução de rádio diz que as três

irmãs cegas viraram estrelas de cinema e participam de um documentário. Maroca conta que

ouviu a notícia no Matutino Borborema, programa de rádio local, o que lhe causou grande

espanto e deixou-a emocionada. Uma repórter de televisão aparece entrevistando as três

irmãs, perguntando à Poroca o que é ser uma estrela de cinema. Ela responde que não sabe o

que é ser isso. A busca por definir, enquadrar e categorizar, empreendida pela repórter, é

completamente frustrada pela resposta de Poroca, que foge da descrição de um lugar que não

lhe é familiar, mas que, ao mesmo tempo, é onde parece estar e, portanto, não lhe é tão

estranho. A repórter continua e pergunta se elas têm alguma coisa triste da infância para ser

dita, à procura de mais um drama que cative espectadores dispersos pelo zapping televisivo.

Como resposta, a irmã mais velha apenas diz que, se fosse contar, demoraria o dia todo,

negando-se a responder com precisão e evidenciando a incapacidade da reportagem em

capturar todas as nuances do personagem.

Maroca diz que foi com espanto que recebeu a notícia de ter se tornado estrela de

cinema e, dito isso, ela aparece deitada na grama, com o som de um saxofone incidindo ao

fundo. Explica que nunca sonhou em receber tanto carinho e que tudo o que tem lhe

acontecido é um sonho. Nunca pensou que uma pessoa cega pudesse se tornar estrela de

cinema. Quando aparece na tela dessa maneira, sua imagem é semelhante à de grandes divas

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ao se exibirem para a câmera de cinema, uma cena que Maroca nunca viu, já que não vê, mas

que reproduz tranqüilamente. Em um parque, as três brincam com a câmera e filmam. Pelo

olho da máquina, capturam o não visto, o invisível. O fato de não enxergarem faz com que

suas poses de diva e as imagens que produzem ou reproduzem possuam uma certa inocência

que as afasta do tom piegas e do clichê.

Na próxima tomada, ela pergunta a Roberto (Berliner, o diretor), em off, quem

teve a idéia de fazer o filme. Ele questiona: “Por que você está perguntando isso?”. Em casa,

com as mãos na lente da câmera, ela diz que muitos já vieram comentar que o filme está

sendo feito para que os produtores ganhem dinheiro. O rolo do negativo acaba. Ela continua,

dizendo que perguntaram se elas teriam algo em troca, mas que respondeu não estar

trabalhando para ninguém, portanto, se quiserem dar alguma coisa, é por boa vontade. Deixa

claro que não está fazendo por dinheiro, mas para ficar conhecida. Uma questão prática

aproxima o filme da materialidade real que o cerca, construindo um movimento que,

seguidamente, vai do sonho à realidade. Logo após, as três aparecem no topo de uma

montanha e, em off, ela continua: “Fazendo isso, eu vou ficar conhecida em todo canto.” A

música instrumental dá um certo tom dramático a esse momento, ponta de sonho e desejo,

devir. Termina-se com um fade para o letreiro que diz: “Dois anos depois”.

As três irmãs aparecem acompanhadas de Dalvinha e uma outra mulher, entrando

na coxia de um teatro. Chegam a um camarim e Gilberto Gil as recebe. Naná Vasconcelos

entra na sala e as saúda, dirigindo-se a elas por seus apelidos e dizendo que o responsável pela

vinda das irmãs foi Roberto, que, então, aparece para cumprimentá-las. O diretor as abraça e

conta que estava filmando toda a chegada ao camarim. As três vão para o palco, ensaiar sua

participação no festival internacional de percussão Percpam 2000, realizado em Salvador.

Em seguida, no quarto do hotel, Roberto pede que Dalvinha tome cuidado com a

câmera, que está equilibrada sobre um tripé, enquadrando todo o ambiente, e se despede.

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Maroca, após a saída do diretor, diz “Tchau... amor”. Vanêide pede a Poroca e Indaiá que

executem ações para a câmera, utilizando, em um primeiro momento, o telefone ao lado da

cama. Poroca pega a linha, que está ocupada, e imita o som que escuta, enquanto é dirigida

pela acompanhante, em um jogo que promove poses e situações pensadas para o

documentário. Logo após, fora do hotel, as irmãs tocam em uma praça, acompanhadas por um

grupo de percussão. Alguém pergunta a Maroca quem lhe deu o ganzá e ela responde que foi

Roberto, motivo pelo qual não pode trocar o instrumento. A próxima tomada mostra o

espetáculo em que Gilberto Gil canta uma música feita em homenagem a elas, que fala da

claridade e da escuridão. Elas entram segurando os ganzás iluminados por feixes de luz e são

aplaudidas pela platéia. Uma placa manuscrita mostra que ali é a Concha Acústica do Teatro

Castro Alves.

Na seqüência seguinte, vemos uma escadaria com uma igreja colonial ao fundo.

Roberto e Léo (co-diretor) trazem as três no colo até a parte de baixo dos degraus, onde são

novamente entrevistadas, dizendo que vão a São Paulo ver os paulistas. Maroca se corrige a

tempo, já que não poderá vê-los. Mas garante prestar atenção. Quando chegam à cidade,

contam suas expectativas e a câmera mostra o grupo passeando pelas avenidas. Já no quarto

de hotel, Vanêide diz a Roberto que Dalvinha está malcriada e a menina se fecha no banheiro.

O diretor vai até lá e a chama. Todas reclamam de Dalva e ele a encontra choramingando.

Pelo espelho, vemos a imagem refletida de Roberto segurando a câmera. O diretor interfere,

nessa seqüência, de maneira direta no conflito. Ele se torna, com o desenrolar do filme e de

maneira cada vez mais nítida, um personagem no documentário.

Maroca comenta com ele que o filme vai ficar grande. Roberto pergunta: “Vai?”,

e ela confirma que sim, pois começou em Campina Grande, foi para Salvador e agora está em

São Paulo. Ela termina perguntando se os prêmios já ganhos são em dinheiro. É importante

ressaltarmos que, antes desse longa, um curta-metragem sobre as irmãs foi feito pela mesma

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equipe de realizadores. Continuando, o diretor diz que parte do valor recebido foi enviado a

elas e a outra parte está sendo utilizada para fazer o documentário atual. Mais uma vez, a

questão financeira é levantada, de maneira sutil, mas explicitando a falta de uma inocência

total que poderia ser associada às três, seja pelo fato de serem vítimas da cegueira, seja pela

sua origem humilde. Em seguida, a apresentação do trio no Teatro Alfa de São Paulo é

mostrada.

De volta ao hotel, Maroca diz que, se conseguisse o que estava querendo, tudo ia

mudar de verdade em sua vida. Roberto pergunta do que é que ela está falando, se é sobre o

amor. Ela confirma, mas conta que ele, o ser amado, não sabe de nada, pois é casado e, por

isso, ela não lhe contou. As outras duas emitem gritinhos e interjeições durante a fala da irmã

mais velha. Maroca diz que, no entanto, acha que ele já percebeu tudo e termina falando “Mas

as pessoas é para o que nasce...”, em atitude conformada. Elas dormem e a câmera montada

no tripé acompanha a noite de sono, ao som de um piano dissonante, em uma estrutura de stop

motion que conjuga diferentes fragmentos para criar uma seqüência em movimento.

Já de dia, Roberto entra no quarto e diz que precisa que tudo fique muito claro

entre eles. Explica que está fazendo o filme porque gosta delas, que são pessoas especiais. No

entanto, ele reforça que é casado e esse gostar que sente pelas irmãs não é amor. Quer ser

amigo delas. Vanêide diz que já explicou tudo isso à Maroca, que logo pergunta se ele já

havia percebido, o que é confirmado por Roberto. Entendemos, nesse momento, que a

personagem havia se apaixonado pelo diretor. Indaiá e Poroca dizem que gostam dele como

amigo e Maroca avisa que não quer que ele se esqueça dela por causa disso. Ele nega um

possível afastamento, para a alegria da irmã mais velha. Logo após, Roberto diz que precisa ir

à seu quarto comer alguma coisa e que depois volta. Esse momento extremamente delicado é

levado com sutileza pelo cineasta, que se encontra, mais do que nunca, imerso em seu próprio

filme. O documentário sobre a vida das três irmãs cegas da Paraíba acaba se tornando, nessa

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seqüência, um registro das relações, dos desejos, dos afetos que se dão no próprio ato de

filmagem, envolvendo a própria equipe, todos, em certa medida, modificados pelo processo

de produção simbólica em curso.

Ainda no quarto, Maroca canta uma música que fala de quem ama sem ser amado.

Vanêide sintoniza o rádio em uma estação que toca Roberto Carlos e elas escutam a música A

Distância, enquanto Dalvinha passa em frente à câmera e as três emitem interjeições variadas.

A canção, coincidentemente, reflete a situação há pouco vivida em uma balada romântica

sobre o amor não correspondido. Uma certa frustração geral está representada nessa seqüência

e a solidão das irmãs toma proporções mais bem definidas. Ao mesmo tempo, elas se afastam

de uma figura idealizada, pois quebram as conexões lógicas e mostram suas fraquezas. O

filme e os personagens são, literalmente, construídos ao longo das gravações, permitindo que

fissuras do real apareçam em um contexto não roteirizado.

As irmãs estão agora no palco e Maroca canta “Ai, ai, ai, meu Deus, eu não tenho

amor...”, remetendo-nos aos acontecimentos anteriores. No quarto de hotel, passada a euforia

da apresentação, Maroca aparece sozinha, sentada na cama, contando que tem mágoa das

irmãs, pois o primeiro marido era, segundo ela, das três. Diz não tê-lo abandonado para não

“dar gosto a elas”. Logo após, as três aparecem no palco com Gilberto Gil e Maroca termina o

show pedindo para cantar uma música de autoria de seu ex-marido, chamada Segredinho. Um

segredo, no entanto, acabou de nos ser revelado.

Um letreiro sobre a tela preta informa que se passaram dois anos. Em off, Maroca

explica o que fez com o dinheiro do filme e das apresentações e dedica uma música a Roberto

e a seu filho, que não estão lá. Diz ter saudades e informa que as portas estão abertas para

visitas futuras, terminando por cobrar a encomenda que fez e que ainda não recebeu por

esquecimento do diretor: a foto da criança que há pouco nasceu. Passa-se um ano, segundo o

letreiro que segue e, em frente à casa das irmãs, Roberto entra em quadro, com a mulher e o

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filho, cumprimentando a todos, que, até então, não haviam percebido sua presença. O diretor

explica que trouxe a família para que elas conhecessem e, rapidamente, Maroca cobra a

fotografia da criança, que lhe é entregue por Ana Amélia, esposa de Roberto. Ao pegar a foto,

Maroca diz: “Pena eu não ver”, acompanhada pelo coro das irmãs.

Num outro dia, Roberto bate à porta e encontra apenas Maroca, que diz estar

sozinha com o genro. As outras estão no centro da cidade e ele vai ao encontro delas. A

câmera mostra as duas sentadas no chão, apenas pedindo esmolas. Sem se identificar, passa

por elas, que dizem “Esmolinha pras ceguinhas, pelo amor de Deus”. Nesse momento, uma

outra faceta nos é apresentada, pois o que vemos entra em confronto direto com a dimensão

quase romântica mostrada anteriormente, com as três encontrando visibilidade e alcançando

pequenas vitórias ante as agruras de suas vidas. Essa seqüência, no entanto, desespetaculariza

a saga das irmãs e as traz para uma dimensão crua e cruel da realidade social que as cerca. Em

seguida, após um encontro que não vemos acontecer, Poroca explica ao diretor que o dinheiro

que ganham não é o suficiente e, por isso, precisam pedir nas ruas, passando por muitas

humilhações e sendo, várias vezes, enganadas.

Na tomada seguinte, uma mulher conversa com elas e Roberto pergunta do que

falam, descobrindo que um deficiente visual tem enganado Indaiá com freqüência. A irmã

mais nova começa a contar toda a história e Roberto indaga, com sincera preocupação: “Por

que vocês não falaram nada pra mim?” Elas alegam que esqueceram. Em casa, Indaiá resolve

contar tudo. Diz que eles dormiram juntos, mas, no dia seguinte, ele se separou dela. Roberto

pergunta a Maroca se ela gostaria que Indaiá se casasse. A mais velha responde que isso é um

sonho seu, pois, assim, a irmã ficaria protegida e não correria o risco de ficar sozinha. Indaiá

chora um choro calado, doído e apertado. Choro de quem parece conviver com o sofrimento,

mas que, às vezes, ainda se surpreende com ele. Vemos uma estrada de ferro e ela diz que

pensava em viver com esse rapaz até o final de seus dias e que, se ele voltar, pode ser que o

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aceite. Se não aparecer, não há nada que possa fazer. Termina tocando o ganzá, conformada,

na beira dos trilhos, com o acompanhamento de instrumentos variados ao fundo.

Aparece o céu e, em seguida, três árvores bem semelhantes, uma ao lado da outra.

Três irmãs. Maroca diz que não há nada que separe a amizade delas, só em caso de morte ou

se alguém as amparasse, referindo-se a um possível casamento. Mas fala que não aparece

ninguém e as três, junto com Dalvinha, se abraçam. Já em casa, vão dormir e, em off, ouvimos

comentários sobre o que já fizeram e quem conheceram nas viagens, concluindo que as coisas

boas não são esquecidas. Elas sentem falta, mas não se esquecem.

Na seqüência seguinte, a última do filme, vemos os pés das irmãs caminhando em

fila, sobre a areia. Ao longe, as três tiram os vestidos para entrar em um lago, uma ajudando a

outra, ao som da mesma música instrumental ouvida na introdução do filme. Enquanto se

despem, em off, Maroca diz: “A pessoa é para o que nasce, né? Ninguém pode dar jeito.”

Indaiá continua: “A pessoa tem que cumprir com aquele destino que Deus dá.” Maroca

finaliza: “É porque foi feito por ele.” Vemos seus pés sucessivamente entrando no mar. Em

seguida, as irmãs, nuas, banham-se na lagoa. Há um fade e a música prossegue durante os

créditos. Esse banho de nudez é uma lavagem em que preconceitos e estereótipos são

expurgados. Três mulheres, três irmãs, três cegas, três figuras, três personagens atravessadas

pela singularidade, construída em cada contradição, clímax, quebra, fragmento, amor e

mágoa. A história desse trio, mas também de uma equipe de cinema e de uma relação que se

constrói, é uma abordagem qualquer, ao mesmo tempo própria e universal, edificada a cada

seqüência, com a mais singela delicadeza.

O mote, cifrado ao longo do filme, é constituído, basicamente, por duas noções.

Primeiramente, temos a aceitação de um destino, a situação na qual as irmãs estão imersas,

destacando-se a própria cegueira, a pobreza e as esmolas como meio de vida. Afinal, as três

não se cansam de repetir que a pessoa é para o que nasce. Ao lado disso, entretanto, outras

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dimensões nos são oferecidas, como a possibilidade com que o amor acena, a ternura e a

própria música. Somos apresentados a um universo amoroso, do ponto de vista feminino, que

explicita a sexualidade dessas personagens, provocando deslocamentos e novas configurações

que afastam preconceitos e estereótipos. Dentro dos casos narrados e a partir da forma como

são construídas pela própria imagem, as três irmãs crescem para além de qualquer categoria

identificável, dificultando uma possível tipificação.

A maneira como o melodrama é desarmado ao longo do filme promove

alternativas de escape que nos aproximam de uma elaboração singular do personagem. Esses

momentos estão explícitos quando o documentário parece não conseguir conter a força do

real, que irrompe nas mais diversas situações, subvertendo uma possível roteirização das

relações. Podemos observar essa operação quando o diretor se engana e se transforma em

motivo de chacota para as irmãs e a própria equipe e, de maneira mais impactante, quando

Maroca se apaixona por ele. O filme é, definitivamente, construído no encontro com o Outro,

nesse embate que permite a irrupção de situações e sensações diversas, antes não planejadas,

constituindo representações porosas e perfuradas, atravessadas pela singularidade.

Um momento complicado da obra é a fase que mostra a escalada popular das

cantoras no meio musical, quando as três começam a se tornar conhecidas pelo seu trabalho.

Essa configuração das irmãs como estrelas, que portam em si algo do exótico, acaba atraindo

o documentário para a perigosa zona do espetáculo que se forma em torno delas. Mas o filme

consegue escapar dessa relação simplista empreendida pela televisão, personificada pela

figura do repórter, na medida em que não faz um esforço para reduzi-las a celebridades

vitimadas por uma deficiência visual ou pela origem pobre. Caso fosse esse o movimento,

estaria conformada uma espécie de exploração da imagem das três protagonistas, prendendo-

as a tipos e estereótipos que impossibilitariam a fabulação.

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Percebemos, ainda, que o filme segue uma estrutura relativamente conservadora,

não conseguindo desprender-se de um movimento que vai das personagens para o contexto

em que se situam, repetidamente. Uma força centrípeta aproxima-nos da história das três,

como que focalizando em um primeiro plano a construção singular das irmãs. Em seguida, no

entanto, uma dinâmica centrífuga expulsa-nos para fora do universo das protagonistas, em

direção ao entorno que as cerca e à historicidade de suas vivências.

Além disso, há algo de melodramático no filme, como quando Maroca narra sua

história com Silva. Esses fragmentos, no entanto, não se assemelham à exploração do

melodrama tal como a televisão o faz comumente. Quando esse gênero serve de inspiração

para alguma seqüência do documentário, enfatiza-se a dimensão do encontro com uma vida

íntima e não as dicotomias entre o bem e o mal ou outras formas de categorização do

personagem. Ao longo da obra, células melodramáticas são construídas como forma de

enfatizar as emoções sentidas e o significado dos acontecimentos vividos.

Uma das maneiras de evitar essa armadilha é a conjugação entre a trilha sonora e

as imagens. No decorrer do documentário, a música e os ruídos variados desempenham três

diferentes papéis, sendo o primeiro a composição do enredo. Se, por vezes, a música

acompanha as situações vividas, em outras, serve para quebrar uma narrativa dramática que se

criava. Isso pode ser observado quando os acordes dissonantes de piano são tocados, causando

um estranhamento que afasta o discurso de uma possível vitimização das três personagens.

Além dessa função, a trilha também é construída como um comentário, completando o

discurso proferido pelas irmãs, tal como acontece quando Maroca conta o segredo sobre o

primeiro marido. Nessa seqüência, ela termina cantando uma música de autoria do falecido

esposo, que ilustra o depoimento dado poucos minutos antes. O mesmo acontece quando uma

canção de Roberto Carlos é sintonizada no rádio no momento em que a irmã mais velha sofre

uma decepção amorosa, logo após revelar que estava apaixonada pelo diretor. Nessa mesma

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cena, Maroca cantarola outra música, que fala do amor perdido, continuando a canção na

apresentação do Percpam, mostrada em seguida. Em outros momentos, o mesmo acontece, ou

seja, a trilha aparece como que pontuando o que se passa na história, ilustrando ou

comentando as diversas situações da vida das três.

Por último, a trilha sonora consegue colocar-se como um abrigo do imaginário,

para além do retrato da pobreza e da precariedade, servindo como um meio de expansão das

personagens, que conseguem, nessas situações, liberar-se de amarras diversas e, com isso,

aparecer como entidades singulares. Esse recurso é explicitado nas diversas vinhetas ao longo

do filme, todas embaladas por canções das próprias irmãs ou, como na abertura e fechamento

da obra, por composições instrumentais. Na última cena do documentário, por exemplo, a

música tem um papel fundamental, atuando mais do que como simples pano de fundo. Nessa

seqüência, a trilha é colocada como veículo condutor para a amplificação de sentidos,

potencializando o desnudamento dos corpos que assistimos na tela.

O documentário A pessoa é para o que nasce é construído no encontro com as

personagens, englobando elementos sonoros e visuais diversos, sendo que o diretor lida

diretamente com elas, envolvendo-se na própria história que conta. Essa história, porém, abre

um espaço para que as irmãs possam fabular e inventar sobre si mesmas, como nos momentos

dedicados a cada uma delas, ou seja, nas vinhetas sutis que as destacam da cotidianidade em

que estão imersas e promovem uma apresentação de outra ordem, mais próxima do desejo e

dos sonhos que povoam suas vidas. O filme oferece um espaço para a expansão da

subjetividade das personagens, que não são categorizadas nem presas a nada que não seja o

próprio afeto. O filme as libera.

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4.2. A Alma do Osso

O documentário inicia-se com um letreiro sobre um fundo preto, estampando a

frase “Solidão é a gente demais”. Esses dizeres abrem a reflexão sobre o tema da reclusão,

opção de vida escolhida por Dominguinhos da Pedra, principal e único personagem do filme,

cujo nome só conheceremos ao final.

Começamos por ver uma paisagem de cerrado, com passarinhos cantando, quando

um corte nos leva a uma figura peculiar, saindo de uma caverna, com roupas em trapos e uma

espécie de touca de plástico na cabeça, tudo em tons de cinza que se misturam ao próprio

ambiente, árido e repleto de formações rochosas. Esse homem caminha para fora de seu

abrigo, em busca de lenha, e acaba encontrando o que procura. Sem entendermos o que se

passa ao certo, quem é essa figura e onde está, somos levados ao próximo plano, composto

por uma tomada extremamente fechada que inunda a tela de pele e textura. Reconhecemos

traços de um braço, depois de um pé, e percebemos que ele está de cócoras, acendendo com

um isqueiro um fogão improvisado, mais parecido com uma fogueira.

Na parte externa, uma grande quantidade de fumaça é expelida para fora da

caverna e, por meio de um travelling vertical iniciado no topo da coluna de pedras, o ermitão

é mostrado novamente ao lado do fogão, raspando uma panela e iniciando um ritual de

lavagem das mãos que vai se repetir diversas vezes ao longo da primeira parte do filme.

Sentado, ele tem ao seu alcance praticamente tudo de que precisa, com inúmeras latas

cortadas ao meio, ou apenas sem a tampa, dispostas ao seu redor, cada uma com diferentes

quantidades de água ou sem nada. Por vezes seguidas, ele esvazia uma delas e enche outras

tantas, para depois esvaziar o que encheu e encher o que esvaziou, não sem antes

meticulosamente medir o conteúdo transferido.

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O homem se levanta e podemos, assim, conhecer a outra parte de sua moradia,

uma espécie de despensa a céu aberto, com garrafas de água e mantimentos guardados dentro

de tambores e latas, lacrados e pendurados na rocha. Ele continua sua rotina organizada,

entoando uma canção, cuja letra é praticamente indistinguível.

Essa é a primeira parte do filme, apresentada antes dos créditos iniciais. Esse

longo início permite-nos entender quem é o personagem e qual é a relação estabelecida entre

o cineasta e essa figura tão peculiar. Até então, não ouvimos sequer uma pergunta ou esboço

de entrevista. Dominguinhos nem mesmo dirige seu olhar para a câmera. Sentimos, no

entanto, pelos movimentos e cortes, que alguém está presente, observando o que acontece.

Pela peculiaridade do eremita, seja pelas vestimentas, pelas ações repetitivas ou pela própria

condição de isolamento, formulamos diversas questões sobre sua identidade, a razão de se

encontrar sozinho, sua idade, e muitas outras que, curiosamente, não nos são respondidas pelo

filme nesse primeiro momento. Com isso, somos obrigados a acompanhar um fragmento do

cotidiano do ermitão sem sabermos ao certo o que se passa. Esse hiato faz com que a

construção do personagem seja feita simultaneamente à formulação dessas várias perguntas e

à elaboração de eventuais respostas. A importância desse início está, justamente, em sua

vaguidão e na falta de definições precisas acerca do personagem, permitindo o seu

afastamento de rótulos que tão facilmente lhe poderiam ser atribuídos, contribuindo, assim,

para uma construção mais indefinida e lacunar. Uma ausência de fatos e falas permeia todo

esse início, criando signos sonoros e óticos puros44, expressos nas imagens visualizadas e no

som direto que acompanha as ações repetitivas de Dominguinhos.

44 Deleuze (1990) caracteriza os signos sonoros e óticos puros da seguinte forma: “A situação sensório-motora tem por espaço um meio bem qualificado, e supõe uma ação que a desvele, ou suscita uma reação que se adapte a ela ou a modifique. Mas uma situação puramente ótica ou sonora se estabelece no que chamávamos de ‘espaço qualquer’, seja desconectado, seja esvaziado [...]. E sem dúvida estes novos signos remetem a imagens bem diversas. Ora é a banalidade cotidiana, ora são circunstâncias excepcionais ou limites. Mas, acima de tudo, ora são imagens subjetivas, lembranças de infância, sonhos ou fantasmas auditivos ou visuais, onde a personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente do papel que ela própria representa, à maneira de Fellini, ora, como em Antonioni, são imagens objetivas à maneira de uma constatação” (DELEUZE, 1990, p. 14).

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O título do filme é apresentado em seguida, por meio de grafismos sobre um

fundo preto e uma tipografia que mostra e esconde as palavras que dão nome ao

documentário. De maneira esquemática, o filme se estrutura da seguinte forma:

Descrição da seqüência Situação

01 Dominguinhos em sua rotina de afazeres – Vídeo digital Rotina

02 Título Título

03 Eremita imerso na paisagem, imagens abstratas (água) –

Predominância de super-8

Suspiro

04 Dominguinhos faz café – Vídeo digital Rotina

05 Eremita imerso na paisagem, imagens abstratas (água) –

Predominância de super-8

Suspiro

06 Dominguinhos mexendo na fogueira Rotina

07 Imagens abstratas (fogo) Suspiro

08 Dominguinhos toca violão em frente à fogueira Depoimento sobre os sonhos

09 Garrafas dependuradas – Super-8 Suspiro

10 Ermitão em sua rotina, cantando e tocando violão Rotina

11 Imagens abstratas (algo suspenso no ar, flores e capins) -

Predominância de super-8

Suspiro

12 Dominguinhos conta caso Depoimento do corisco

13 Escuridão. Raios revelam garrafas e o eremita Suspiro

14 Dominguinhos fala do choque elétrico Depoimento sobre internação

médica

15 Paisagem com um foco de incêndio. Rio em vista aérea Começa como suspiro e

depoimento sobre inferno entra

em off.

16 Depoimento de Dominguinhos Continuação da fala anterior

17 Imagens abstratas (bola vermelha, flores, escuro) Suspiro

18 Imagem abstrata toma a tela e se transforma em textura

para a entrada de frases escritas

Letreiros

19 Depoimento do eremita Depoimento sobre herança e

economia

20 O ermitão assiste a cenas gravadas Dominguinhos vê e escuta

Dominguinhos

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Durante quase todo o filme, seqüências mostrando o dia-a-dia do personagem são

intercaladas pelo o que chamamos suspiros. Esses momentos permitem, tal como na rotina

mostrada no início do filme, mas de forma diferente, a aparição de signos sonoros e óticos

puros. Após o título, por exemplo, começamos por ver a imagem de sua sombra no chão, em

Super-8, e, logo depois, o ermitão ao longe, no topo de uma montanha rochosa, com um braço

estendido. Quando está nessa posição, a trilha sonora, que havia sido interrompida para dar

lugar ao som ambiente, volta a aparecer, composta por instrumentos de corda variados e quase

dissonantes em alguns momentos. O cineasta utiliza estratos de composições de Bach e

Brahms, bem como músicas instrumentais do grupo O Grivo, especialmente feitas para o

filme.

O som direto volta a incidir quando ele começa a descer o morro, por um caminho

marcado no chão, segurando a lata e um recipiente para armazenar água. O plano seguinte, do

topo da montanha, mostra o trajeto delineado no mato, provavelmente pelo uso constante,

com nosso personagem atravessando a tela. A composição é extremamente plástica, exibindo

um ponto que se move em uma linha tortuosa que vai da parte de baixo ao alto do

enquadramento. Já na beira de um riacho, sentado de cócoras, ele enche e esvazia sua latinha,

deixando pingar as últimas gotas calmamente.

Das gotas que pingam do recipiente, somos levados a gotas sobre a superfície da

água, filmadas extremamente de perto, como que visões de um microscópio que nos remetem,

mais uma vez, a grafismos e formas abstratas. Acompanhamos o movimento lento da bolha ao

som da trilha sonora, que volta a tocar, juntamente com o som ambiente. Seguimos

lentamente a trajetória da esfera até que, ritmada por tambores que batem ao fundo, ela

estoura e cede lugar a outra imagem.

A próxima seqüência continua utilizando um zoom macro para mostrar detalhes

em aparência gráfica, conferindo a objetos e situações banais uma beleza estranha. Vemos

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agora uma teia de aranha coberta por gotas de orvalho, ao som não mais de tambores, mas de

instrumentos de cordas. A primeira teia dá lugar a outra, e a outra, e a outra, continuando a

ocupar toda a tela, pontilhadas por gotas de água, o que causa um efeito de impressionismo às

avessas, pois vemos apenas as partículas que formam o todo, com uma proximidade que

acaba afastando a imagem de sua indicialidade e aproximando-a de uma iconicidade poética45,

menos presa à representação usual e realista de uma teia de aranha. O vento balança a trama

de fios finíssimos, alguns desfocados, outros visíveis e com maior nitidez.

Da teia, somos levados ao fundo do rio, onde cardumes de inúmeros peixes

produzem um efeito plástico e visual semelhante ao das gotas nas teias. Os peixes atravessam

o plano, quase trombando na câmera, voltando em seguida para perto uns dos outros,

mantendo, assim, um grafismo onírico abstrato como base de composição das imagens. Do

fundo do rio, passamos para sua superfície, com a câmera fazendo um travelling que nos

mostra o movimento de pequenas ondas, pontuado pela trilha de cordas. A imagem é quase

toda no mesmo tom, com as bordas mais claras (o rio e o céu), sendo o centro de um azul

mais intenso.Voltamos a ver os peixes no fundo do mar e, mais uma vez, a bolha que passeia

sobre a superfície da água. Seguimo-la até que, no ritmo da música, ela estoura novamente.

A trilha dá lugar ao som direto quando a câmera mostra o personagem sentado na

beira do rio, com a lata na mão, parado, enquanto olha para o lado. Na verdade, o suspiro

proporcionado pela seqüência anterior de composições gráficas, em sintonia com a trilha,

funciona como uma suspensão temporal que o próprio personagem parece experimentar em

sua rotina compassada e morosa de todos os dias. Esse fragmento do filme consegue revelar,

por meio de imagens icônicas, qualidades e sensações da figura retratada, de forma abstrata e 45 Referimo-nos aqui aos chamados qualissignos icônicos que, segundo Júlio Pinto (1995), pertencem à primeira tricotomia dos signos formulada por Peirce, ou seja, aquela que pensa o signo em si, sem considerar a relação entre o signo, o objeto e o interpretante. É uma qualidade que é um signo. O caráter icônico aqui enfatizado diz respeito ao conceito de ícone, signo que compartilha características de seu objeto. Essa semelhança com o objeto não é, necessariamente, especular, sendo suficiente que o signo compartilhe uma única propriedade monádica com o objeto, um traço. Portanto, o qualissigno icônico é um tipo de signo que abrange uma qualidade do objeto, mas, ao mesmo tempo, conserva sua primeiridade e virtualidade, na medida em que constitui uma representação aberta do objeto.

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aberta à construção de sentidos múltiplos. O mesmo acontece nos outros momentos de

suspiro, recorrentes ao longo do documentário, em que a indicialidade da imagem está

presente, sem que seja, no entanto, a detentora da cadeia de significação, composta, na

verdade, pelas articulações internas, pela plasticidade trabalhada, pela exploração dos ruídos e

da maleabilidade da imagem. Essas seqüências têm como característica o fato de se

apropriarem de qualidades do objeto ao qual se lançam, traduzindo tais qualidades em signos

visuais e sonoros.

Em seguida, de costas para a câmera, o ermitão caminha rumo à caverna. A lente

se aproxima e os gravetos se interpõem entre Dominguinhos e o ponto em que a tomada é

feita, criando mais uma intervenção plástica na imagem. Ele chega em casa e, em seguida, o

vemos sentado na frente de uma cerca. Seus braços cruzados envolvem as pernas finas

dobradas, quase raquíticas, e as mãos entrelaçadas as mantêm nessa posição. A mesma

imagem é mostrada de outros ângulos e o plano seguinte trabalha a textura dos dedos e unhas

de seus pés, repousados sobre um pedaço de madeira. Suas mãos movimentam-se em slow

motion e, depois disso, a imagem, aparentemente toda captada em super-8 até o momento, é

substituída pelo vídeo digital, como na primeira parte do documentário. Essa seqüência,

composta por fragmentos do personagem em perspectiva macro, mostra o corpo humano em

sua estranheza, de uma forma que só a máquina nos permite experimentar. Não somos

capazes, nessas imagens, de distinguir o que vemos, já que a tela é tomada pela textura.

Forçamos o olhar para ver algo que não está distante, mas que, justamente pela proximidade,

torna-se estranho.

Na próxima tomada, Dominguinhos mexe em sacos e vasilhas, tirando algo da

pequena bacia de água e cobrindo-a com um plástico. Abre outro pote com água e transfere

seu conteúdo para as latinhas, passando de uma para outra e assim sucessivamente. Continua

nesse ritual até concluir a preparação de um pote de café. Vemos, ao final da seqüência, um

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plano fechado de seus olhos e, na próxima imagem, ele está em pé sobre uma pedra, olhando

a paisagem. Do vídeo, voltamos à super-8 e o som direto dá lugar à trilha sonora. A câmera

acompanha seus pés caminhando e, em seguida, temos um plano subjetivo da visão do próprio

Dominguinhos, terminando com a câmera sendo invadida pela luminosidade do sol.

Daí partimos para mais um plano em que o sol tem papel significativo. Em um

travelling rápido, vemos sua luz ao fundo e copas de árvores e galhos na frente. A trilha

sonora aparece mais uma vez e somos introduzidos em uma nova seqüência em que a

plasticidade das imagens e sua maleabilidade é evidenciada pelos planos. Vemos o reflexo de

galhos refletidos na água, que se movimenta levemente, criando uma onda que distorce a

imagem gravada, simulando uma atmosfera onírica como a em que vive Dominguinhos.

Outros três enquadramentos semelhantes são mostrados, cada vez com menor definição. O

próximo plano eleva à máxima potência a tendência que perpassa o filme de produzir imagens

com forte apelo plástico. Vemos um travelling, também extremamente rápido, que enquadra

apenas a água do rio já apresentado anteriormente. No entanto, dessa vez, a velocidade do

shutter, mais baixa do que o padrão usual, produz uma imagem em que a espuma branca

provocada pelas leves ondas, ou mesmo a claridade refletida na água, deixa rastros que mais

se assemelham a traços claros em um fundo escuro. Puros grafismos, abstração. Riscos que

atravessam a tela e, na medida em que os planos são substituídos pelos seguintes, invertem

suas direções.

Logo após, uma imagem mostra pequenos galhos e ouvimos barulhos de gotas e

pingos sobre essas superfícies. São feitas várias tomadas desse mesmo conjunto, de mais

perto, mais de longe, com maior claridade ou mais escuras. Essas imagens, desgarradas da

caracterização do personagem, não são a representação de uma interioridade, mas de uma

exterioridade que traz vestígios de um universo subjetivo. Não se busca identificar imagens da

consciência ou uma pretensa essência, mas uma subjetividade que é mais ampla do que o

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próprio sujeito individual. Esses suspiros, ao longo de todo o documentário, estariam na

categoria que, segundo Santaella e Nöth (2001), Peirce chama de auto-representatividade do

signo. Os qualissignos icônicos aqui apresentados, signos óticos e sonoros puros, são

referencialmente tanto vazios quanto abertos.

[...] o observador precisa abrir mão da ilusão de referência, da relação com o objeto, concentrando-se somente na materialidade e, assim, no aspecto na primeiridade da própria imagem. [...] livres de qualquer tipo de esquema composicional e sem nenhuma tradição de gênero (regularidade, terceiridade), só têm efeito por sua própria qualidade. Nada se parece com elas e, exatamente por isso, tudo também pode ser semelhante a essas imagens.46

Depois desse momento de suspiro e suspensão dentro do documentário,

Dominguinhos aparece olhando para o horizonte, com uma das mãos sobre a testa para se

proteger da luz do sol que se põe. Na próxima tomada, ele aparece de costas, com os braços

abertos, de frente para a paisagem, ao som de passarinhos cantando. Daí partimos para uma

cena do céu azulado, com uma ave de rapina a rasgá-lo ao meio, planando até sumir por entre

as nuvens. Um corte nos leva a um plano de uma menina que rodopia, mas apenas seu reflexo

sobre uma poça d’água é mostrado. Com os braços abertos, ela roda ao ritmo da trilha

percussiva que é introduzida. Após um pequeno intervalo, essa imagem é invertida e vemos

não mais o reflexo, mas a própria garota, rodando na beira de um rio.

A próxima cena surge em consonância com a ambientação onírica do

documentário, mas não é constituída por imagens distorcidas, fora de foco ou em angulações

pouco usuais. O que a aproxima do universo de sonhos é o próprio objeto representado, já que

o plano apresenta uma casa de madeira flutuante, à deriva em um rio de proporções

gigantescas. Em seguida, é mostrada outra casa como essa, com uma pessoa na beirada da

pequena varanda formada na base de madeira da construção. A trilha sonora de cordas cria a

atmosfera da seqüência, que apresenta ainda outra casa, ou a mesma, agora com um menino

46 SANTAELLA & NÖTH, 2001, p. 146.

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soltando um papagaio transparente, flutuando no céu como a moradia na água. Várias pessoas

aparecem na varanda, e depois apenas um senhor. Na próxima tomada, suspenso no ar, vemos

um estranho objeto no céu. Com cuidado, é possível perceber um fio que o prende, mas o

efeito assemelha-se ao da ave de rapina sobre o fundo azul ou ao do papagaio de plástico

transparente.

A trilha que, em alguns momentos, aparece dissonante, como se cordas a esmo

fossem sendo tocadas em busca de uma melodia, revela-se como mais uma faceta do ermitão,

pois vemos, no plano seguinte, que é ele quem toca um violão velho, sentado no escuro,

cantando uma música cuja letra é, em grande, parte irreconhecível. O filme aproveita esse

talento musical só agora revelado para compor sua trilha, mesmo que o resultado final

incorpore outros elementos que não apenas a canção dedilhada por Dominguinhos. Mas é ele

quem dá o tom.

Em seguida, um círculo de fogo acende-se no chão e fogos de artifícios e chamas

de uma fogueira promovem um espetáculo visual feito por fagulhas e brasas. Dominguinhos

aparece novamente, agora mexendo na fogueira, sem a trilha sonora que tocava no início

dessa seqüência. Senta-se, levanta-se, coloca uma placa de ferro sobre o fogo e improvisa uma

maneira de aquecer sua panela.

O próximo plano, bastante fechado no pescoço e na barba do personagem,

prepara-nos para a primeira fala direta do ermitão. Ele conta que acredita ter sonhado mais do

que qualquer outra pessoa, o que já vem fazendo há 50 anos, sendo que isso não atrapalha sua

mente, segundo acredita. Diz ser difícil passar uma noite sem sonhar, coisa que faz para ele e

para os outros. Sonha com os que já morreram e com os que estão vivos, com pessoas

tentando matá-lo com um revólver e ele correndo. Sonha com eles ‘avoando’. Pela primeira

vez, o eremita aparece conversando articuladamente, mesmo que as palavras não sejam

sempre claras ou inteligíveis. Curiosamente, ele fala do sonho, da importância que essa

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dimensão onírica tem em sua vida, fato que o filme, indiretamente, já nos mostrou, ao criar

sensações e ambientações próximas de um estado inconsciente do ser humano, com figuras

abstratas e lentas, imagens sonoras e óticas puras, em que a ação não mais possui uma

relevância desencadeadora de sentidos. Ao longo do filme, a dimensão objetiva e subjetiva

das imagens esvaece-se, proporcionando uma indiscernibilidade característica do regime

cristalino, tal como já vimos.

Após esse depoimento inicial, o único do filme até então, vemos uma imagem da

fogueira do alto, depois mais aproximada. Ele suspira em off e diz: “Ai, ai...” O quadro entra

em fade e começa a tocar a trilha. Imagens em super-8 mostram garrafas de água

dependuradas por fios em sua caverna. Planos mais abertos intercalados por outros mais

fechados dos mesmos objetos remetem, mais uma vez, a um universo de linhas e contornos,

volumes e sombras.

Na seqüência seguinte, o eremita aparece de costas, olhando a paisagem, com o

som ambiente no áudio. Um novo corte mostra um ônibus passando por uma estrada ao longe,

já com a imagem em vídeo digital. Em casa, ele lava um coador e, no plano seguinte, olha

fixamente para um ponto no horizonte, sentado, com a trilha sonora a tocar. O som ambiente

volta quando a paisagem é mostrada. Ele sai da caverna, circundada por uma cerca de madeira

cuidadosamente construída, olha os objetos dependurados, mexe em um saco de pão e sai de

quadro. No plano seguinte, de cócoras, coloca, aos poucos, água em uma latinha.

De costas, ele toca, canta e dança sozinho. Vemos seus pés em movimento,

entoados por uma canção que fala da lida diária com boiadas. Em seguida, é mostrado um

plano detalhe dos dedos de seus pés, com enormes unhas. Logo após, de cócoras sobre as

pedras, ele olha para o horizonte e a música que cantava continua em off até chegar ao seu

final, quando o som ambiente volta a imperar. A câmera faz um close de seu perfil e ele mexe

no bigode. Há um corte e a câmera aproxima-se mais ainda. Ele coça a barba. O tempo passa,

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mas parece não passar para este homem de sonhos e paisagens. Sentado, ele coça os olhos e

suspira seu já conhecido “Ai, ai...” Posicionado de perfil, a mesma ação é realizada e a

expressão é novamente pronunciada: “Ai, ai...” De outro ângulo, vemo-lo em um estado que

não sabemos ser sono, tédio, ou apenas contemplação. Ele termina coçando os olhos, desta

vez, longamente.

Em casa, sentado, com os braços ao redor das pernas dobradas, como a segurá-las,

ele repousa a cabeça sobre os joelhos e depois levanta o olhar e observa ao redor. Vemos um

plano das garrafas penduradas, com o vento batendo. Um objeto não identificado aparece

dependurado em uma linha, movimentado pela ventania. Essa tomada assemelha-se a outra

anterior, quando algo semelhante aparece como que flutuando no ar. Volta-se com a super-8 e

a trilha. Uma enorme flor de hibisco laranja inunda a tela de cor, balançando sobre o fundo

azul do céu. Esse plano termina e com ele a trilha se vai, dando lugar ao som direto, que

incide sobre imagens de flores do campo ao vento. A câmera parece estar imersa no mato e o

céu apresenta uma tonalidade esverdeada. Tochas de capim balançam em uma direção e, no

plano seguinte, na direção oposta, fazem o mesmo movimento, já com o céu em sua cor

habitual. A trilha volta e franjas do que parecem ser ramos de piaçava se movimentam

extremamente próximas à lente.

Com o som ambiente, podemos perceber sua silhueta em pé, ao lado da caverna.

Ouvimos seu familiar “Ai, ai...”, enquanto ele calmamente olha em várias direções e se senta.

Percebemos, então, na próxima tomada, a silhueta de mulheres, homens e crianças em um

travelling lateral, escutando um caso que Dominguinhos conta em off. A história impressiona

pela riqueza de detalhes e pela articulação com que é contada, além da entonação, sons e

palavras criativamente produzidos. Ele fala da saga de um homem que, quando criança, foi

avisado de que morreria “[...]picado por um corisco”, expressão popular para designar os que

são atingidos por raios durante uma tempestade. Aborrecido com a revelação, o jovem sai

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pelo mundo e só decide voltar quando completa 30 anos. Segundo nosso contador, ele “[...]foi

andando o mundo, andando muito o mundo, andou muito mesmo o mundo.” Quando estava

voltando, viu urubus aproveitando-se de uma ossada humana e, rapidamente, os afugentou e

arrumou uma maneira de enterrar os ossos. Ao chegar em sua cidade, seus companheiros lhe

fizeram uma casa de aço, especialmente construída para aparar o corisco e evitar sua morte

premeditada. “Entendeu? Entendeu?”, pergunta avidamente nosso agora falante personagem.

Uma nova faceta é apresentada. Continuando o caso, diz que um dia, no entanto, caiu uma

tempestade fortíssima e o homem resolveu sair de casa de qualquer maneira. Estava no

descampado quando um raio veio em sua direção. Quando ia ser atacado, algo empunhando

uma espada se jogou sobre ele e atacou o corisco, enviando-o para longe. O que havia lhe

protegido eram os ossos. “A alma do osso. O osso que ele enterrou salvou ele. Acredita nisso?

Isso é que é história, né?”

Durante todo o tempo em que Dominguinhos conta, atua e fabula, vemos apenas

silhuetas variadas olhando em sua direção. Ele tira pequenos objetos de sua roupa e passa para

os outros. Não sabemos o que são, mas parecem papéis rasgados ou panos cortados. As

pessoas passam os objetos umas para as outras, mas não chegamos a descobrir do que se trata.

Afinal, este é um documentário em que várias são as lacunas deixadas, como impulso para a

construção do personagem. Quando a história termina, o ônibus parte. Planos extremamente

próximos dos passageiros entrando e tomando seus assentos parecem pixelar a imagem,

causando um efeito texturizado que particulariza a tomada. O estridular dos grilos e o rufar

das folhas sonorizam a partida do ônibus pela estradinha de terra ao longe.

No plano seguinte, o quadro está totalmente escuro, mas podemos ouvir fortes

trovoadas. Um raio clareia o ambiente e percebemos que a câmera está perto das garrafas

dependuradas na caverna. Escutamos a chuva caindo e mais um raio clareia a tela. Ficamos no

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escuro novamente e, apenas quando relampeja, podemos vislumbrar objetos que são filmados

e o próprio ermitão de perfil.

A próxima tomada apresenta o protagonista em close, de lado, escutando um

radinho de pilha que toca uma música pop. Seu olhar está fixo no horizonte e, em um fade, a

trilha sonora entra mixada aos sons que já tocam. Quando a imagem volta, ele tem um feixe

de luz sobre suas costas e, em seguida, a noite escurece novamente. Mais um raio permite que

o vejamos de perfil. Ele começa a contar outro caso, dessa vez diretamente para os cineastas e

sem a platéia antes observada. Inicia dizendo que acha o choque elétrico “[...] uma coisa

muito extravagante”, que não deveria ser utilizada pela medicina, mas que ele não tem

certeza, no entanto, se ainda se usa essa técnica. Acaba contando que não tomou muitos,

apenas uns cinco ou dez. Com sua expressividade já conhecida, ele conta ser uma experiência

terrível e pergunta ao diretor, interagindo com a equipe, se ele já viu um choque sendo dado.

Rapidamente, começa a descrever o procedimento, explicando que uma borracha é colocada

na boca para proteção e a pessoa fica cerca de 10 minutos “chorona”, quando termina a

intervenção. A cena seguinte mostra suas mãos iluminadas por um feixe de luz e ele imita um

choro ardido e estridente, um ruído que comove pelo timbre exagerado de uma imitação que,

provavelmente, é mais próxima da realidade do que imaginamos.

Depois dessa breve performance, ele continua conversando com a equipe e fala do

cérebro e do coração, que devem ser mantidos fortes. O fosfato, segundo ele, é bom para o

primeiro. Lembra que o tomate contém esse elemento e que o ovo e o leite são ricos em

cálcio. Deduz que o queijo também deve ser. O conhecimento de termos tão distantes de sua

realidade nos surpreende e, mais uma vez, o que fica é a impressão, a sugestão, ao invés da

certeza absoluta. Entendemos agora que ele já passou por uma instituição psiquiátrica, mas

quem é esse homem ainda é um mistério. Ou melhor, sua identidade é um mistério, pois

sabemos, a essa altura, quem é o personagem e quais as sensações que o rodeiam.

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Seu monólogo continua, contando que disseram que ele viveria muito, pois tem as

orelhas grandes. Nesse momento, ele fala que não viveu pouco e que tem 71 anos. Segundo

ele, a associação entre a idade e o tamanho da orelha é pura “[...] superstição”. A vida da

pessoa estaria em outros órgãos e lhe disseram que seria no coração. Mas há pouco tempo, foi

informado de que a vida estaria no cérebro. “Você acredita nisso? Não é no coração que a

pessoa morre”.

Em seguida, um plano mostra a paisagem e um foco de incêndio ao longe.

Ouvimos Dominguinhos contar em off que viu uma fogueira grande, parecida com um forno

de carvão. A próxima tomada, de uma coloração dourada peculiar, mostra os veios de um rio

em uma imagem aérea, plasticamente impressionante por sua beleza. O ermitão continua

dizendo: “Eles falam que é o purgatório, o inferno que abre. Será que é?” Passamos, então, a

um plano do céu e nuvens. “Uma fogueira bem grande daqui lá pra longe. A gente não sabe

como é quando a gente morrer.” A câmera mostra seu rosto enquanto ele continua suas

reflexões, dizendo que já encontrou um conhecido morto uma vez, mas que Deus o modificou

e ele acreditou que o amigo estava vivo. Aproximou-se e disse: “Raimundo, tem tanto tempo

que nós não vê. Onde você tem andado?” Essa é a única vez no filme em que ele faz

referência a laços afetivos do passado.

Volta a trilha e, na tela, um círculo avermelhado, que pode ser tanto a lua quanto o

sol, aparece por entre gravetos. Escurece e são mostradas flores do campo na frente do astro,

que se movimenta. Árvores se interpõem entre a câmera e o grande objeto. Em seguida, há

uma tomada de outro ângulo, até que é feita uma aproximação com zoom, enchendo a tela

com o círculo que, de tão próximo, forma uma imagem pixelada, um fundo laranja para a

entrada do seguinte letreiro: “Dominguinhos da Pedra vive sozinho em cavernas há 41 anos

na região de Itambé do Mato Dentro, MG. Recebe de aposentadoria um salário mínimo do

governo.” É somente aí que o filme nos apresenta informações objetivas sobre o personagem.

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Logo após, na escuridão, percebemos seu rosto dizendo que, se, por acaso morrer

subitamente, os dois membros da equipe ali presentes ficariam sabendo onde ele esconde o

canivete. Em tom de confidência, como a redigir seu próprio testamento, mostra a eles onde

está guardado, bem como os dólares que possui. Dentro de sacos, lacrados e protegidos contra

as agressões do tempo, ele oferece esses objetos como herança. A câmera segue seus

movimentos, alternando entre o rosto que fala e descreve os esconderijos e o movimento das

mãos que tateiam no escuro. Esse episódio o direciona para outro assunto, relativo às

diferentes moedas brasileiras ao longo dos anos e o valor comparativo entre elas. Sempre

dialogando com a equipe de realizadores, ele chega a contar piadas envolvendo a questão, não

sem lhes perguntar: “Entendeu?”.

Na seqüência seguinte, última do documentário, Dominguinhos está sentado, com

um fone de ouvido, vendo, pelo monitor, sua própria imagem. Ele, personagem, presta

atenção nesse duplo revelado pelas gravações, que não é duplo, pois que é construído e

fragmentado, para ele, um personagem dentro da história. Termina o filme por rir de si

mesmo. Com um fade, a trilha entra e os créditos sobem.

Podemos dizer que esse documentário conjuga, basicamente, três dimensões.

Primeiramente, acompanha as durações do cotidiano, obedecendo a uma distância de

observação que preserva a diferença e não sucumbe ao fascínio dessa realidade tão diferente

que é a de Dominguinhos. Nesses momentos, o personagem surge mergulhado na própria

temporalidade e no obsessivo de suas ações (o vaivém do enchimento das latinhas, por

exemplo), tornando-se opaco, a ponto de escapar, por essas ações repetitivas ou meramente

contemplativas, de uma categorização que o enquadre em uma tipologia reducionista.

Uma outra esfera é a composta pelos chamados suspiros, que trazem qualissignos

icônicos capazes de apresentar uma qualidade de sensação que diz respeito a uma experiência

própria do eremita. No entanto, essa qualidade é mostrada por signos de outras experiências,

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recriando visualmente e sonoramente o vivido do personagem, ou melhor, algo do vivido, um

traço, um resquício. A textura própria do vídeo, conjugada com a granulação da película

super-8, alcança a matéria sensível do mundo, luminosa e onírica, compondo imagens

subjetivas que promovem um mergulho na intensidade sensorial desse universo em leve

alucinação.

Por fim, temos os depoimentos de Dominguinhos, formados por uma fala

extremamente rica em detalhes, entonações e expressões populares, capaz de transportar-nos

para uma escuta estranha, que decifra os códigos ao mesmo tempo em que é embalada pela

melodia do relato dessas histórias fantásticas, algumas tão reais e cruas. Essas três dimensões

proporcionam uma construção singular do personagem, tarefa complicada, se considerarmos a

tendência comum, presente em tantos documentários, de se estereotipar o estranho e o louco.

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4.3. Santa Cruz

Santa Cruz, rodado em 35mm, é o quinto filme da série 6 Histórias Brasileiras,

um projeto de co-produção do Canal GNT e da Videofilmes, cujos episódios foram

desenvolvidos livremente por cada um dos diretores convidados. Esse documentário é

estruturado em três blocos, cada um representando um conjunto de três meses da construção

da igreja evangélica Jesus é o General, em um subúrbio do Rio de Janeiro, sendo que há uma

pequena introdução antes do início do primeiro módulo. A tabela abaixo ajuda-nos a perceber

melhor o desenho completo do filme. Mais à frente, nos deteremos nos momentos mais

significativos para a pesquisa.

Bloco Título que inicia o

bloco

Descrição

Santa Cruz Narrador apresenta o pastor Jamil, o Bairro Parque Florestal e as

famílias que ali habitam. Em off, é feita a pergunta que o filme

pretende investigar: Por que uma doutrina que prega a abstinência

de tantas coisas atrai, justamente, os que já têm tão pouco?

00

A história de Zezé Apresentação da personagem e explicação do motivo que a levou a

entrar para a igreja: alcoolismo na família.

Retratos: Os membros da congregação aparecem como em um retrato, encarando a câmera, e alguns

deles, recitando orações. A trilha sonora, uma composição original de Vicente Sálvia / Cardantec,

incide ao fundo e a legenda mostra o nome e a profissão dos personagens.

01 Os primeiros 3 meses

A história de

Veronílson

Veronílson queria ler a palavra de Deus e, por sua causa, foi

montada uma turma de alfabetização na igreja.

A missionária Em off, o pastor explica que a missionária é encarregada de levar

as convicções do grupo para outros lugares. Apresentação de Dona

Noêmia.

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O Espírito Santo se

manifesta

Imagens do culto. Obreiros em transe e explicação do pastor sobre

os diversos dons.

Retratos: outros partícipes da congregação.

02 Os 3 meses seguintes

O pastor faz planos O pastor discute com outro membro da igreja os planos de

construção da nova sede. Paralelamente, vemos um encontro

corriqueiro entre vizinhas.

A história de Carmem Apresentação da personagem, que acredita na cura de sua doença

pela fé.

Jardim Espírito Santo

(outra área de invasão)

Vemos as lamacentas ruas do bairro vizinho ao Parque Florestal.

O pastor tem uma

revelação

Jamil procura um terreno que lhe apareceu em um sonho como

sendo o ideal para a construção de uma nova igreja. As imagens da

busca são alternadas com outras que mostram o entregador de gás

Jorge encarando a câmera.

A história de Rizoneide Rizoneide explica que entrou para a igreja por ter sido acolhida

pelo pastor, o que afastou sua tristeza diária. Por uma fresta, vemos

a movimentação ilegal no bairro.

Um pouco mais tarde Um homicídio no Bairro Parque Florestal, ao lado da igreja.

Retratos: novos membros da congregação.

03 Os últimos 3 meses

Barra da Tijuca Veronílson aparece no trabalho e, depois, em casa, preparando-se

para o batismo.

O dia do batismo Ônibus leva congregação para ser batizada nas águas de um rio.

Na mesma noite Recebimento do certificado de batismo.

O primeiro dia como

missionária

Carmem viaja para arrebatar mais fiéis.

Esses blocos bem definidos cronologicamente organizam a estrutura do filme,

com a ajuda de subdivisões internas. Os personagens, no entanto, não se restringem ao

momento em que são apresentados por intertítulos, aparecendo em outras fases do

documentário, de maneira até mais impactante em alguns casos.

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Dona Noêmia, que começa entoando cânticos religiosos na introdução e surge

mais tarde em A missionária, aparece sempre ao lado do marido, uma figura tímida e

enigmática que porta grossos óculos de grau em seu rosto quase sempre cabisbaixo. Ao contar

sua função dentro da igreja, Dona Noêmia, com voz sóbria e segura, explica o que faz, sendo

que a câmera percebe o marido ao lado e alterna planos da narradora e de seu ouvinte /

testemunha durante todo o depoimento. Ela conta sua história de pobreza e alcoolismo,

quando, ainda sem pronunciar qualquer frase, vemos seu marido soltar um longo suspiro. É

nesse suspiro que o sofrimento já vivido parece emergir, mais do que no próprio relato. Por

um breve momento, é nesse gesto que apreendemos toda a história do casal, quando o marido

fala, sem palavras, de sua dor. Esse bloco termina com Dona Noêmia de braços cruzados,

lembrando-nos um general, atributo que é concedido, no título da igreja, a Jesus (Casa de

Oração Jesus é o General). O marido continua presente, afastado, cabisbaixo, mas presente.

Zezé, também casada, é a próxima personagem apresentada e ficamos sabendo

que é recente sua maior proximidade com o marido, alcoólatra inveterado, como comprovado

por uma fotografia em que aparece fraco e visivelmente alterado. Foi por esse motivo que ela

procurou a igreja, em busca da ajuda e do apoio que não conseguia na família ou com amigos.

Acolhida pelo pastor, acabou levando junto o esposo, que hoje está recuperado e voltou a

trabalhar.

Quando Zezé começa a contar sua história, já havíamos lhe escutado minutos

antes, ao falar da abertura da igreja no bairro, logo na introdução do filme. Imitando o canto

dos grilos e o coaxar dos sapos, únicos ouvintes da pregação do pastor Jamil no início da

congregação, percebemos, desde então, seu lado cômico e extrovertido. Mas sua aparição

mais significativa no documentário acontece, de forma singela, no terceiro bloco, logo após a

passagem que apresenta Veronílson no trabalho. Zezé está no Parque Florestal e nos mostra

onde moram os convertidos do bairro, evidenciando a quantidade de pessoas que fazem parte

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de sua congregação e dizendo que tudo mudou muito, desde o início dos cultos, inclusive a

postura dos maridos em casa. Quando ela começa a relatar, como quem conta um segredo e

foge do roteiro, a maneira como o seu marido, e outros, ficaram mais meigos, ela salta de um

universo de informações técnicas (quem mora onde), dados que o documentário parecia lhe

requerer, para o terreno do afeto. Ao fazer isso, instala-se em uma zona suspensa, mesmo que

por segundos apenas, pois a relação com o marido remete ao passado, fala do presente e do

futuro, dimensões que se encontram quando ela diz que ela está agora mais feliz. É a partir

dessas conversas que o diretor consegue extrair dos estados de fato traços de acontecimentos,

por mais delicados que sejam, e construir figuras singulares. Ao deixar escapar sua vida

amorosa, percebemos uma outra dimensão de Zezé, que, até então, não tinha sido apresentada.

Ela aparece como mulher, faceta que se soma a seu lado maternal, religioso e social. Esse

processo de elaboração dificulta seu enquadramento em categorias e sua tipificação,

movimento que é evitado pelo diretor ao longo do documentário, ao se afastar, a todo tempo,

do fácil caminho da estereotipagem pura e simples.

Em seguida ao intertítulo de Zezé, vemos um recurso de montagem que será

utilizado ao longo do filme, quando os membros da congregação aparecem em uma espécie de

retrato, alguns recitando orações, com a trilha sonora ao fundo. Esse bloco é apresentado

sempre antes das indicações de tempo, como pode ser observado na tabela anterior. Além do

nome de cada um, somos também informados sobre a profissão que exercem. Guardadas as

grandes diferenças, como na passagem final de Les maîtres fous, de Jean Rouch, esses planos

fazem alusão à realidade cotidiana dessas pessoas, para além da vida religiosa, que seria o

tema central do documentário. Esses momentos adicionam arestas e facetas à elaboração dos

personagens, contribuindo para o afastamento de uma caracterização meramente típica. O

filme mostra, ainda, flagrantes da realidade cotidiana, cercando-os com o mundo do tráfico e

da violência que lhes é familiar, mas que parece ser negado pelos próprios moradores. No

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entanto, essas seqüências só aparecerão mais à frente, no segundo bloco, quando então nos

deteremos sobre elas.

Voltando ao início do primeiro módulo, somos apresentados à história de

Veronílson. O plano mostra uma aula de alfabetização acontecendo no barracão da igreja e o

pastor explica que foi por causa desse membro da congregação que o ensino começou.

Veronílson conta que se esforça para ler a palavra de Deus e, em um dado momento da aula,

tenta entender o que está no quadro negro. A professora o encoraja a decifrar as sílabas e eis

que, depois de um tempo em suspensão, o personagem descobre, entre gaguejos, que

conseguiu ler a palavra mamão. É nesse momento, longe dos discursos evangélicos e

envolvido em uma atividade comum, que percebemos Veronílson como um qualquer.

Entendemos aí a sutileza do acontecimento captado, que extravasa o próprio plano e desloca a

construção do personagem para um lugar da singularidade.

Ao final do primeiro bloco, O Espírito Santo se manifesta, o culto é mostrado

mais apropriadamente. Os oradores aparecem rezando em voz alta, as pessoas choram, gritam,

entram em uma espécie de transe, delírio. Aqui, já não importa mais a ação, os personagens

vagueiam por esse universo que não sabemos se é real ou imaginário. São afetados pelo

contato com uma transcendência na qual crêem e, ao mesmo tempo, nos afetam ao se

transfigurarem para incorporar esse papel. Um depoimento do pastor fora do culto explica

como são os dons de revelação e profecia que os obreiros, os mais íntimos de Deus, possuem.

São então mostradas novas imagens da cerimônia e esses membros da congregação, que

dirigem o culto com a ajuda de um microfone, são apresentados. Estão todos ainda em transe.

Mostra-se, novamente, o pastor Jamil na sala vazia, contando que ainda não recebeu nenhuma

dádiva, mas que espera, calmamente, com a certeza de que um dia ela virá.

Do lado de fora da igreja, encontramos um senhor bem arrumado e robusto que

diz estar vindo do trabalho. Para nossa surpresa, já o conhecemos. Há, então, um corte que

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revela tratar-se do marido de Zezé, agora afastado das bebidas. Entrando na igreja lotada,

ouvimos uma ladainha que ainda vamos escutar diversas vezes, cujo refrão repete a frase: “Se

Deus é por nós, ninguém será contra nós!” Ao fim da cerimônia, as pessoas voltam para casa.

É o fim de mais um culto.

O encontro dos fiéis impressiona pela entrega dessas pessoas à sua religiosidade.

É nessa hora que percebemos a ligação em comum entre todos os personagens, além da

proximidade local e da situação financeira precária. O culto é um palco para que as

frustrações, esperanças e convicções aflorem, dando a eles uma voz ativa que não lhes é

permitida socialmente. Dentro daquela igreja, eles são os protagonistas e não os agentes

periféricos da vida social. Será o documentário também um palco para que esses, com tão

pouca voz, se expressem? Caso seja assim, como fazer com que os depoimentos não se

prendam a um discurso institucionalizado e já engessado? É essa a grande questão que

procuramos entender.

Como exemplo de uma seqüência que escapa de uma possível categorização,

podemos mencionar a passagem seguinte, no início do segundo bloco, quando, no momento

em que o pastor faz as contas para a construção de uma nova sede da igreja, com a ajuda de

Antônio (obreiro da igreja e também mestre de obras), uma mulher conversa com Rizoneide.

Em montagem paralela, as duas seqüências são alternadas e o que nos prende não se encontra

na discussão sobre a construção da igreja, pretenso tema central do documentário, mas na

conversa banal entre as duas vizinhas. A mulher conta que um cachorro a mordeu, pergunta

sobre o filho de Rizoneide, que esteve internado, mas já voltou do hospital, ri da mordida que

levou. Tendo a igreja como pano de fundo, nesse momento, os personagens são construídos

como singularidade, uma vez que aí não se busca um julgamento, uma verdade oculta ou a

identificação de tipos. Ao contrário, são apresentados de forma corriqueira, comum, ordinária,

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adquirindo posturas que não necessariamente são configuradoras de um real mais ou menos

verdadeiro, mas que revelam verdades possíveis e uma complexidade própria do singular.

Após uma breve visita a outro bairro, conhecemos a história de Carmem, mais um

membro da congregação. Ela caminha com dificuldade devido a um problema nos pés que,

segundo os médicos, não tem cura. Conta que abriu mão da vaidade para se tornar cristã,

alerta para a importância da honestidade em seu depoimento no culto, diz que tirou o ‘gato’

do relógio de luz de sua casa por causa de sua religiosidade. Surge a imagem do equipamento

de medição de sua casa e o que nos captura a atenção é uma etiqueta colocada dentro do

aparelho, em que está impresso o Salmo 91 da Bíblia, já diversas vezes citado pelos fiéis

como um salmo de extrema força. Em troca da vida cristã que leva, ela espera pela cura de

sua doença, o que, para ela, deverá acontecer logo após o batismo que se aproxima. Sua

convicção ferrenha será testada nesse momento final, ao qual nos reportaremos mais à frente.

No próximo intertítulo, Jardim Espírito Santo (outra área de invasão),é utilizada,

mais uma vez, a montagem paralela, com a alternância de imagens do pastor caminhando e de

Jorge, membro da igreja e entregador de gás. O pastor conta que teve uma revelação, com a

ajuda de anjos, e que nesse bairro em que se encontra está o terreno que deve comprar para

construir uma filial da congregação. Entrecortando a procura do terreno, temos um plano

médio de Jorge, sentado em seu carrinho de gás, olhos fixos na lente, o que cria uma

atmosfera um tanto surreal. A cada vez que aparece, o plano de Jorge se fecha mais. Ele está

sempre encarando a objetiva e como que encarnando uma persona para a câmera,

influenciando e sendo influenciado pelo aparato cinematográfico. Ao final, o pastor não

encontra o terreno, mas encontra possíveis novos membros para sua congregação.

Após mostrar um culto de agradecimento, realizado na casa de quem recebeu uma

graça e caracterizado como uma reunião social pelo narrador do filme, vemos, já de dia, Zezé

com seu filho excepcional e uma vizinha. A aparente calma do bairro só se abala ao vermos

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um grupo de rapazes, que aparecerão também em outros momentos, manuseando o que parece

ser algum tipo de droga. Aqui, a realidade do tráfico e da violência parece não deixar de

emergir e reaparece, novamente, quando Rizoneide conta um pouco de sua história. No final

de seu depoimento, a câmera deriva e captura, por uma fresta, um homem na mesma situação

dos anteriores, bem ao lado do templo. Um pouco mais tarde, como é assinalado por mais um

intertítulo, uma tomada mostra as pessoas paradas perto da igreja, todas com o semblante

sério e olhando fixamente em uma direção. Não sabemos o que se passa, apenas que algo

acontece. Um acontecimento. Escutamos o choro de uma mulher. A câmera então revela um

amontoado de gente ao redor de um corpo no chão. A voz em off do pastor explica que um

rapaz foi morto em frente à igreja. Vestígios de um acontecimento, no entanto, restam apenas

nas feições das pessoas, pois, quando o corpo é filmado na rua, já nos escapou. Está antes

desse acidente e, de certa forma, se prolonga no choro em off, nos rostos encarando algo que

não vemos. O real irrompe de forma agressiva, interrompendo qualquer tentativa de

roteirização, ao impor-se sobre a história que é contada (a criação da igreja evangélica) e

mesclando-se a ela. De longe, os personagens observam essa realidade que lhes é tão próxima,

já de certa maneira acostumados às conseqüências da violência urbana, sendo afastados, por

força do acontecimento, do discurso religioso que proferem ao longo do filme, uma vez que,

nesse momento, também são pegos de surpresa.

No último bloco, vemos o pastor chegando de bicicleta, com uma latinha de tinta

pendurada no guidom, e inicia-se a pintura da igreja. Todos olham e palpitam sobre as cores.

Com o serviço pronto, começa mais um culto. Veronílson, sozinho, ensaia em casa uma

música que fala de auto-estima. É chegada a hora do batismo, ápice da trajetória da casa de

oração Jesus é o General. Um ônibus aproxima-se de um riacho e todos começam a se

paramentar, vestindo túnicas brancas. Há mais um momento de orações e Veronílson canta

para a congregação a canção ensaiada. Todos repetem o hino, que parece aproximá-los ainda

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mais. Eles descem e entram no rio, um por um, para a bênção. A trilha sonora acompanha, ao

fundo, as breves palavras do pastor e o batismo de cada um, bem como as variadas reações.

Do choro ao riso, da calma ao transe delirante. Carmem, que sofria para se movimentar,

emerge da água saltando e se movimentando o tempo todo. Ela sobe a ladeira sozinha, sem a

ajuda de ninguém, o que seria inconcebível anteriormente, e, de alguma forma, parece-nos

estar mais livre como personagem do que antes, quando representava um discurso evangélico

duro e bem decorado. Durante toda essa seqüência, não nos interessa mais se o que as pessoas

personificam na frente das câmeras é real ou imaginário, pois já não podemos distinguir. Aqui

nos lembramos de uma passagem em Deleuze (1990), quando esse autor comenta a quebra do

sistema de julgamento instituído pelo regime cristalino das imagens:

Mas não se trata de julgar a vida em nome de uma instância superior, que seria o bem, a verdade; trata-se, ao contrário, de avaliar qualquer ser, qualquer ação e paixão, até qualquer valor, em relação à vida que eles implicam. O afeto como avaliação imanente, em vez do julgamento como valor transcendente: ‘gosto ou detesto’, em vez de ‘julgo’.47

O filme procura, em diferentes momentos, balizar-se por esse conceito. Um tema

polêmico – a religião – é investigado com atenção pelo diretor, mantendo-se um desejo de

entender, mais do que de julgar. Com extrema delicadeza, os personagens não são resumidos

a fanáticos religiosos ou ignorantes apegados à fé pelas mazelas da vida, como poderia

acontecer, facilmente, caso fosse trilhado o caminho da estereotipagem. Nem tampouco são

transformados em alvos de uma piedade ou vitimização. Ao contrário, é justamente por evitar

uma postura por demais opinativa que o documentário provoca deslocamentos e permite que a

diversidade e a complexidade de seus personagens apareçam, sutilmente, em movimentos

mais sugestivos do que assertivos. A singularidade dessas figuras atravessa seus depoimentos

e falas, irrompendo no afeto que ultrapassa a lógica, na fé que é sentida por cada um deles e

47 DELEUZE, 1990, p. 172.

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em suas facetas variadas, culminando em uma sensação de que não sabemos tudo o que se

passa, não temos todas as noções que pensávamos ter. Não podemos, portanto, julgá-los.

Na mesma noite do batismo, eles recebem o certificado e alguns obreiros são

ordenados. Em meio a muita emoção, ouvimos novamente a ladainha: “A vitória é nossa, pelo

sangue de Jesus. Se Deus é por nós, ninguém será contra nós.” Repetidamente, eles entoam

esses versos e nos vemos diante de uma imagem cujo prolongamento motor já não tem tanta

importância. O documentário termina com Carmem indo trabalhar como missionária,

pregando suas crenças no metrô da cidade. O trem parte e eles continuam a cantoria religiosa.

Os créditos surgem e Veronílson aparece dizendo: “Que assim seja.” É o fim.

Analisando o documentário como um todo, percebemos que é na conversação e

nos pequenos gestos que são construídos os personagens. O cineasta não foi em busca de tipos

ou categorias, mas de um entendimento sobre essas pessoas e suas vidas. Os momentos de rito

formam um circuito em que o real e o imaginário tornam-se indiscerníveis, importando

apenas o devir, em imagens sonoras e óticas puras em que os personagens vagueiam, sentem,

deliram, desejam. Vemos a proliferação de figuras cuja multiplicidade facetada foge do

simples reconhecimento, revelando verdades que vão sendo construídas durante os próprios

depoimentos, fugindo de um roteiro possivelmente já interiorizado aos discursos de cada um.

Traços do acontecimento e a construção singular dos personagens aparecem de forma sutil e

delicada (como na presença calada do marido de Dona Noêmia, nas revelações amorosas de

Zezé, ou nas feições dos fiéis diante da morte do rapaz), carregando toda a sua força,

extravasando o próprio quadro, o próprio tempo.

Os discursos testemunhais sobre a religião, já cristalizados, são colocados em um

registro que promove, ao contrário, um deslocamento da significação. A codificação da fala

religiosa não é desconsiderada pelo filme, que a mostra claramente sem, no entanto, duplicar

os enunciados pura e simplesmente. O filme não corrobora nem desmente a visão apresentada

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nas narrativas dos personagens, muito menos julga a crença de cada um dos fiéis. De maneira

discreta, sem alarde, o diretor consegue penetrar em uma dimensão diferenciada das figuras

retratadas, para além da Casa de Oração Jesus é o General, acolhendo e escutando,

atentamente, pequenos detalhes da vida desses personagens. Tanto a abordagem quanto a

própria composição fílmica é sutil e singela, construindo um espaço para a singularidade. Em

contraposição à rigidez dos discursos religiosos, temos a elaboração de outras facetas,

evidenciadas nos motivos periféricos (principalmente a criminalidade e a pobreza) que, volta

e meia, quebram o discurso seguro dos personagens; ou nos retratos silenciosos de cada

membro, representação poética de pessoas que não são limitadas a uma única categorização

como fiéis, uma vez que são construídas como singularidades possíveis.

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4.4. Esta não é a sua vida

Esta não é a sua vida é um curta-metragem sobre a pessoa comum, anônima e

ordinária. Começamos por ver Noeli, a personagem principal, sentada em um sofá e

encarando a câmera, dentro de um estúdio. Em off, ouvimos sua voz recitando versos infantis,

imagem que é substituída pela vinheta de abertura, composta por formas coloridas em um

fundo preto, simulando pedaços de espelhos partidos, que revelam partes de rostos humanos

na medida em que se movimentam pela tela. A cada momento, um fragmento dá lugar a outro

e ouvimos a trilha sonora e a narração abaixo:

“Eu não sei quem você é. Eu não tenho como saber quem você é.

Eu nunca saberei quem você é. Você está em casa, vendo TV.

O seu anonimato é a sua segurança. Não se preocupe.

Esta não é a sua vida.”

Essas frases se dirigem diretamente aos espectadores e enfatizam que qualquer

processo de identificação constituído a partir do filme é mera ilusão, criando, assim, um

afastamento que permitirá um tipo de envolvimento de outra natureza, mais próximo de um

deslocamento, provocado ora pela ironia, ora por uma espécie de poetização do relato de

Noeli, quando o vivido é reencenado. Logo após, é inserido o letreiro com o título do filme,

justamente quando a trilha musical chega a seu ápice. Vemos, em seguida, vários planos em

movimento de travelling, todos da esquerda para a direita, mostrando diversas pessoas, cada

uma delas com uma narração específica. O quadro abaixo representa essa seqüência:

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Imagem Narração

Cidade ---

Homem encarando a câmera “Este homem não come vidro.”

Cidade ---

Mulher estendendo roupas em varal “Na última quarta-feira, esta mulher não deu a luz

a sêxtuplos.”

Cidade ---

Menina sentada numa escada “Esta criança jamais sobrevoou o Pólo Norte.”

Homem varrendo um passeio, à frente de uma

edificação histórica

“Este homem não utiliza esteróides

anabolizantes.”

Mulher segurando um bebê “Esta mulher tem 25 anos e ainda não é avó.”

Borracheiro, ao lado de pneus empilhados “Este homem não é sósia do David Bowie.”

Senhora florista, sentada ao lado de sua banca “Esta senhora não matou a mãe e o pai a golpes

de machado.”

Silhuetas de pessoas em um ponto de ônibus “Gente comum. Eles não têm nome.”

Essa seqüência é extremamente significativa, pois já aí percebemos o tom irônico

do documentário e as questões a serem trabalhadas mais à frente. Imagens do homem comum

são colocadas em choque com a narração do grotesco, do exótico ou da catástrofre, temas que,

normalmente, são os responsáveis por permitir que essas figuras ordinárias tenham espaço nos

meios de comunicação. Ao fazer isso, o filme questiona um determinado tipo de

representação midiática, exemplificada, principalmente, pelo jornalismo sensacionalista e por

programas de entretenimento e futilidades, que insistem em apresentar excentricidades,

incapazes que são de construir personagens singulares, uma vez que dependem da

espetacularização do real e da tipificação dos personagens para se constituir.

Na seqüência seguinte, encontramos diversas imagens de diferentes pessoas

sentadas no sofá do estúdio, todas apresentadas em movimentos de travelling, ora em uma

direção, ora em outra. A câmera pára quando chega a um senhor que, como os anteriores,

encara as lentes. Em seguida, o movimento alternado para um lado e para o outro da tela, à

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medida que os cortes se sucedem, continua acontecendo, mas, agora, vemos números e tabelas

intercalados com pessoas que caminham em um mercado de compras, ao som de estatísticas

sendo proferidas ao fundo. Em off, ouvimos o narrador: “Números não comem, números não

namoram, não trabalham, não sentem raiva. As pessoas têm nome. Qualquer pessoa.” Mais

uma vez, tenta-se afastar os personagens de uma generalização ou tipificação. Isso se dá,

primeiramente, quando as estatísticas são criticadas em prol da unicidade, por meio da ênfase

na questão dos nomes. Além disso, opta-se pela não-espetacularização do ordinário,

criticando a focalização nas bizarrices da vida humana promovida comumente pelos meios de

comunicação de massa.

Em seguida, roletas de cassino são mostradas e, por fim, um círculo de metal

comum a sorteios de loteria. É extraído um número do conjunto de bolas brancas que se

movimenta na tela. Vemos, então, Noeli, a personagem principal, dizendo para a câmera o seu

nome completo. Em off, o narrador continua: “Uma pessoa é escolhida ao acaso. Qualquer

pessoa.” Essa passagem tenta apresentar os procedimentos metodológicos do documentário,

que não sabemos, comprovadamente, terem sido utilizados. De qualquer maneira, isso pouco

nos importa, pois não nos interessa se a explicação dada é verdadeira ou falsa, mas sim o

papel que exerce no próprio documentário. Ao mostrar a escolha do protagonista dessa forma,

o filme legitima a construção do personagem como singularidade, uma vez que a opção não

teria sido feita unicamente por suas particularidades.

Em seguida, Noeli entra na residência de sua madrinha e a abraça, emocionada.

Um homem lhe pergunta o que aconteceu e ela começa a contar sobre o encontro com o

cineasta. Diz que estava no beco de sua casa quando foi chamada pela equipe. A partir daí, o

que vemos são imagens feitas no momento do encontro e o som direto toma o lugar da

narração em off para ouvirmos o primeiro questionamento do diretor: “A senhora já apareceu

na televisão?” Diante de sua resposta negativa, Noeli conta que eles, então, perguntaram se

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ela não gostaria de participar de um filme. Enquanto ela descreve o que fazia, onde estava, por

onde passava, vemos sempre a imagem correspondente a seu discurso. O que poderia parecer

redundante, é feito de maneira irônica, como uma reconstituição dos fatos que contribui para

enriquecer ainda mais a crítica aos dispositivos telejornalísticos usuais. Ao final, vemos

novamente Noeli com a madrinha, dizendo que revelou toda a sua vida para a equipe durante

a entrevista feita no dia anterior.

Entra a trilha sonora e vemos o beco onde mora e, em seguida, sua casa por

dentro. Seu depoimento começa em off, quando está mexendo no fogão, mas logo é

sincronizado com sua imagem em uma cadeira, sentada de frente para a câmera. Ela conta

que, quando era pequena, pensava em ser uma dona de casa, como é hoje, e ter um bom

casamento. Ao dizer que não possui todos os bens materiais que desejava, Noeli não parece se

abater, pois acaba concluindo que o amor é que faz a felicidade. Em seguida, já do lado de

fora, ela diz que tudo lhe serve. Se alguém a manda para um lugar, ela vai e não se importa,

pois é esse o seu jeito. Aparentemente um sujeito sem vontades, levado pelas circunstâncias

da vida, a personagem principal entra em choque com representações espetacularizadas do

homem ordinário e, assim, nos lembra Bartleby. Como o célebre personagem de Melville,

esse nada de vontade, bem discutido por Peter Pál Pelbart (2000), pode ser entendido como

uma estratégia contra os clichês, viabilizando a crença em um mundo de nós separado por

essas estruturas da linguagem. Uma vida comum, uma mulher comum, um personagem

singular. É justamente por não se fixar nas particularidades de Noeli que o documentário

consegue construí-la como uma figura qualquer.

Abaixo, reproduzimos uma seqüência do filme que, como já mencionado

anteriormente, utiliza a redundância entre imagem e som para criar uma fábula poética da vida

de um qualquer.

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Depoimento de Noeli Imagem

Foi morar com a madrinha desde nova, pois a

mãe não tinha como criá-la.

Imagem simulando um retrato da família da

madrinha.

Conta que chorou muito quando deixou a mãe. Zoom out mostrando uma senhora na sacada de

uma varanda.

Ia de cavalo para a casa da madrinha. Foto de uma charrete antiga e imagens da casa

vazia.

Ficou muito triste e gostava de ficar olhando para

a estrada, esperando que a mãe fosse lhe buscar.

Noeli em uma janela, olhando para uma estrada.

Teve muitas saudades da mãe.

(Entra a trilha sonora)

Ela encontra a mãe. Imagem das duas sentadas

em cadeiras, olhando para a câmera.

Como podemos observar, a cada fala é inserida uma imagem correspondente,

ilustrando o testemunho dado. No entanto, por mostrar exatamente o que é falado ou uma

interpretação disso, o documentário cria, ainda, uma ambientação levemente cômica,

satirizando um recurso comumente utilizado em telejornais e reportagens, mas de forma mais

sensível e atenta ao que é relatado, construindo uma dramatização poética da experiência da

personagem, reencenando o vivido com a ajuda da própria protagonista.

O mesmo procedimento é usado na seqüência seguinte, quando Noeli conta que

passou a infância na casa da madrinha, levando uma vida comum. Ia para a escola, voltava

para a lavoura, comia bergamota escondido do pai, brincava de boneca. A cada etapa relatada,

uma imagem é associada, como se Noeli fizesse a reconstituição de sua vida de menina. Com

isso, ela anda pela estrada, como se estivesse indo para a escola, tira leite de vaca, sobe em

árvore de bergamota, brinca de boneca com a filha e, quando conta que apanhou do pai

porque fazia com a amiga uma barriga falsa e fingia estar grávida, vemos a foto de um recém-

nascido e de uma família.

Essas dramatizações da história de Noeli, recorrentes ao longo do documentário,

parecem apresentar a vida da personagem como um pequeno conto, feito do que há de mais

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prosaico, mas nem por isso banal. Seu relato curiosamente insípido transforma-se, a partir

dessa conjugação de imagens, em algo romanesco, mas sem ser romanceado.

Em seguida, entra a trilha sonora e aparece uma foto da personagem quando

jovem. Em off, ela conta do primeiro baile que freqüentou e, em seguida, que ficou noiva duas

vezes, mas desmanchou porque descobriu que o pretendente não tinha caráter. Ela conclui,

sentada de forma mais relaxada na cadeira, que são os bailes que estragam as pessoas.

Continua o relato, lembrando-se de outra festa em que estava com o segundo noivo, como faz

questão de ressaltar, e se encontrou com um homem que era por ela apaixonado, mas que não

tinha a aprovação do pai. Daí surge a narração de uma cena de ciúmes, sem motivo algum,

segundo ela justifica. No entanto, seus olhares parecem não coincidir com a rápida explicação

dada.

Na próxima seqüência, com uma pontuação da trilha, somos levados a Porto

Alegre e ficamos sabendo, pela voz de Noeli em off, que ela se mudou para essa cidade em

1980. Ela fala da época em que conheceu seu marido, funcionário de uma padaria, e,

novamente, a vemos encenando suas idas ao estabelecimento para encontrar o novo

pretendente. A personagem explica como foi o começo do namoro e diz que sua intenção era

não ter nada sério com ele, apenas deixá-lo completamente apaixonado para depois ir embora.

No entanto, percebeu que ele lhe interessava. Nesse momento, vemos um plano mais fechado

de Noeli, ao contar que seu pai colocou empecilhos, pois era contra o casamento inter-racial e

o namorado da filha era negro. Quando ela começa a falar da não-aceitação paterna em

relação ao namoro com o rapaz negro, vemos uma imagem de um senhor branco, que poderia

ser o pai, mas não sabemos, parado em frente à câmera, sorrindo. No momento em que ela

explica o motivo, ou seja, explicita que seu marido é negro, a câmera faz um rápido

movimento para a esquerda e mostra seu esposo, também sorrindo.

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Ela conta, em seguida, que decidiu terminar o namoro, o que provocou intenso

sofrimento no noivo. Ao pensar melhor, Noeli diz ter percebido que já havia feito de tudo um

pouco na vida e, com isso, resolveu que era hora de parar e se casou. A trilha sonora volta e

vemos fotos do seu casamento e imagens de seus filhos, terminando com uma gravação

recente das crianças ao lado dos pais. Logo após, volta-se à textura televisiva e Noeli diz que,

caso o marido decida largá-la algum dia, não poderá dizer que ela, a primeira mulher, o

tratava mal.

Com sua família, Noeli aparece no estúdio, no mesmo sofá do início do curta-

metragem. Em seguida, fica sozinha e diz que, se não tivesse tudo o que tem na vida, talvez

fosse outra pessoa, pois gosta muito de viajar. Há um corte e ela aparece caminhando em uma

rua de terra, nos fundos de sua casa, descrevendo em off sua vida cotidiana de dona-de-casa,

da residência para o armazém e vice-versa. De volta ao sofá, ela se conforma, dizendo que

Deus quis assim, mas que não é isso que ela quer. Ela queria crescer mais. Vemos aqui, pela

primeira vez, um desejo explícito de Noeli, curiosamente, relacionado à sua participação no

filme. A personagem se transforma e fabula ao longo do documentário. Logo no início, Noeli

recita um poema, primeiramente em alemão e, em seguida, em português, que parece ilustrar

essa situação. Seus versos dizem: “Eu sou pequena, você é grande. Me dá o meu presente que

eu vou embora”. O presente que parece ter ganhado foi a participação no filme que, de certa

forma, a tornou grande sem perder a pequenez.

Continuando, ela diz que, com esses poucos dias de participação nas filmagens,

parece ter saído de um mundo para o outro. Sobre seu depoimento em off, vemos fotos da

produção do documentário, da equipe, de Noeli sozinha e segurando a claquete do filme. Já de

volta ao sofá, conta que fica preocupada em fazer o que é preciso, referindo-se à sua postura

no filme, pois, para ela, ainda é difícil falar o português corretamente. Percebemos que ela

está ciente de sua participação na construção de um discurso audiovisual e que sua

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performance foi realizada, mesmo que inconscientemente, tendo em vista esse objetivo. Noeli

reforça o depoimento anterior e diz que parece ter nascido de novo, pois está sentindo que

deve começar sua vida novamente, da maneira que quer, se Deus quiser. Em seguida, vemos

sua foto três por quatro, em preto e branco, e a câmera faz um movimento de zoom out, até

que a tela se abre completamente e forma-se um mosaico de diversas fotografias semelhantes,

cada uma de uma pessoa diferente. Em off, o narrador termina:

“Noeli tem 1,58 m, pesa 54 quilos. Noeli é dona-de-casa e tem dois filhos.

Desde criança, ela foi educada para ser dona de casa e ter filhos. Noeli tem 38 anos.

Eu não sei quem você é. Eu não tenho como saber quem você é.

Eu nunca saberei quem você é. Não se preocupe.

Esta não é a sua vida.”

Assim termina o documentário, negando, novamente, qualquer identificação

potencial que poderia estar sendo empreendida pelo espectador. Ao citar as particularidades

de Noeli, o narrador enfatiza seu pertencimento a categorias diferentes, mas o filme como um

todo também nos mostra que é impossível que ela faça parte de um ou de outro conjunto

apenas. Como uma expressão não-predicativa, Noeli aponta para grupos e os representa, ao

mesmo tempo em que não se restringe a nenhum deles. Não vemos apenas uma dona-de-casa,

ou apenas uma mulher, ou apenas uma estatística. O que vemos é uma singularidade que

atravessa o filme, construída na singeleza da vida de um qualquer.

Esta não é a sua vida é permeado por um movimento que ora nos remete ao

irônico, ora à poesia. Ao longo de toda a obra, notadamente nas seqüências iniciais destacadas

pelas tabelas, procedimentos utilizados pelo jornalismo e por programas sensacionalistas são

evocados, tais como a definição de rótulos para pessoas comuns e a comparação com dados

estatísticos. No entanto, essas estratégias já desgastadas são rearticuladas e subvertidas pelo

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documentário, por meio da ironia que afasta as imagens das formas codificadas e

dessingularizantes, criando uma articulação que não é meramente auto-reflexiva, mesmo que

seja feito, em certa medida, o jogo metalingüístico. O documentário não abandona uma

proximidade ao relato de Noeli e à experiência qualquer.

Isso nos leva à uma segunda dimensão, evidenciada nas dramatizações que se

reportam a esse relato e à maneira como está fincado na experiência, mas não de forma

realista. Cria-se, nesses momentos, uma atmosfera semelhante à das fábulas infantis,

carregada de poeticidade e lirismo. A encenação acaba por se tornar um comentário visual

acerca do discurso proferido por Noeli.

Ao longo dessas seqüências, a personagem é incentivada a performar sua própria

vida, dentro de uma moldura de gênero (a dramatização), mas sem se reduzir a codificações já

estabelecidas. Por meio desse gesto, o documentário sobre Noeli, uma pessoa comum, acaba

por modificar a própria vida da personagem, na medida em que permite que ela narre, de uma

forma singular, a sua história, escapando, assim, das marcas e amarras de estilo, dando ao

cinema a potência criadora a que tem direito.

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VESTÍGIOS SINGULARES

Os quatro filmes que analisamos em nossa pesquisa tratam do personagem

comum e ordinário de maneiras variadas e revelam, em certos momentos, traços de uma

singularidade qualquer. Durante todo o nosso percurso, tentamos entender como isso se deu e

por meio de quais estratégias, já que as figuras retratadas pelos documentários em questão

poderiam, facilmente, estar presentes nos já conhecidos jornais televisivos sensacionalistas,

nos programas de auditório com suas estratégias de espetacularização ou na extensa indústria

de futilidades que, embora sejam fonte de entretenimento para muitos, dificilmente

conseguem ultrapassar suas próprias molduras engessadas, que enquadram e estereotipam

realidades. Os personagens aqui estudados, guardada essa parecença, não se assemelham em

nada aos personagens comumente tipificados e dessingularizados que encontramos nesses

nichos midiáticos. O que, afinal, permite essa diferença?

As pequenas sagas retratadas nas obras abordadas carregam algo do exótico e do

grotesco, traços geralmente oferecidos por alguns gêneros do discurso midiático como formas

de capturar os espectadores. No entanto, os filmes escolhidos que compõem nosso corpus

analítico não se resumem a isso. Pensemos, por exemplo, em A pessoa é para o que nasce. As

três irmãs são cegas, pobres e desamparadas, oriundas de uma região sofrida e com uma

família desestruturada, sendo que, por meio da música, encontram uma certa fama. As

mazelas de suas vidas, expressas nos adjetivos acima enumerados, já seriam capazes, por si

sós, de despertar a atenção daquelas estratégias midiáticas às quais, por oposição, nos

referimos. Não bastasse isso, Maroca, Poroca e Indaiá tornam-se celebridades, conhecidas por

todos pela forma como tocam seus ganzás e cantam o enredo de suas vidas. Uma composição

melodramática dessa história pareceria ser o caminho natural para contá-la, uma vez que

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temos à mão um material bruto que poderia, facilmente, compor uma narrativa em outro meio

discursivo, que não o documentário, tal como os já assinalados.

Mas, ao contrário disso, o cineasta opta por incorporar os momentos que quebram

esse discurso apelativo do melodrama, ao inserir as falhas de roteiro, as irrupções do real por

entre uma estrutura previamente esboçada, mesmo que sutilmente. Além disso, apresenta-nos

uma dimensão que não anula, mas afasta as personagens desse leque de peculiaridades

destacado. Pelo afeto, pelo amor e também pela explicitação da sexualidade dessas que são

mulheres antes de serem cegas, pobres e desprovidas, são afastados os possíveis preconceitos

que poderiam facilmente vir a emoldurar e a enrijecer a narrativa. Ao fazer isso, Berliner

consegue apresentar-nos facetas que poderiam estar antes escondidas pelo puro estereótipo.

No caso de Dominguinhos da Pedra, um homem que se isolou de tudo e de todos

(de quase tudo e de quase todos), para viver em uma caverna, solitário, imerso em uma rotina

obsessiva e, ao mesmo tempo, contemplativa, a estratégia da particularização também poderia

ter se colocado como uma opção para representá-lo. Mas não é isso que vemos em A Alma do

Osso. Ao nos mostrar a duração de seu dia-a-dia compassado pelos gestos repetitivos e

meticulosos, os momentos em que envereda por histórias fantásticas e as imagens oníricas

abstratas salpicadas ao longo do documentário, o diretor consegue sair de um registro para

outro, do típico ao singular. Quando assistimos ao filme pela primeira vez, sentimos quase

que um incômodo, na medida em que somos apresentados ao personagem, mas sem o

embasamento de dados e informações que nos ajudariam a categorizá-lo de alguma forma. As

lacunas não preenchidas pelo documentário, as deixas sutis que aguçam nosso imaginário,

acabam por nos ajudar a configurar um outro tipo de experiência, na qual estamos

simplesmente presentes, imersos nos fragmentos de vida apresentados. Ao final, não nos

importamos se conseguimos ou não reunir um mosaico de elementos que possam concatenar

um possível julgamento acerca do personagem. Ao contrário, ficamos, também, mergulhados

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nas dimensões obsessivas do cotidiano e nas abstrações dos sonhos desse homem, que nos

aparece cinza, tal como suas vestimentas, sem particularidades, singular.

O mesmo movimento é feito em Santa Cruz, desta vez, a partir das arestas que

revelam um fora do discurso religioso proferido com tanta convicção pelos fiéis. Esse filme,

que envereda por um tema delicado, consegue, pela discrição e sutileza das imagens e da

relação estabelecida entre os personagens e o diretor, alcançar outras dimensões do que é

mostrado, complexificando sua construção e permitindo que singularidades atravessem as

representações. Uma escuta atenta consegue perceber os personagens para além da fala

religiosa, abrindo espaço para pequenas fabulações que se conformam afastadas de uma

instância de julgamento. Não nos cabe mais julgar ou verificar a veracidade do que é

mostrado, pois isso já não importa.

Por fim, em Esta não é a sua vida, acompanhamos um movimento duplo, ora

dirigido pela ironia, ora pela fábula, na tentativa de desconstruir visões estanques acerca do

personagem anônimo. É pela forma que o filme faz essa operação, já que a obra se propõe a

tratar, justamente, do que não se destaca, do comum, do ordinário, sem perder, no entanto, a

capacidade de criar e articular singularidades.

Ao concluirmos nossa pesquisa, percebemos que, na verdade, a maneira como

uma história é contada e como um personagem é estruturado ao longo dos documentários é

definidora do resultado final, às vezes, mais até do que a própria história. Se pegarmos o caso

de Noeli, nada em sua vida é espetacular ou extraordinário, sendo em sua simplicidade que

encontramos a qualqueridade, por meio de um uso específico da imagem e do som, tal como

já explicitamos na análise. Não acreditamos, com isso, que existam personagens bons ou ruins

para a construção de um filme, mas sim formas que funcionam ou não para liberar a

singularidade. É claro que isso não implica um poder totalmente concedido ao cineasta que,

independente da participação do entrevistado, conseguiria manipulá-lo em direção a uma

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tipificação ou a uma singularização. É a partir da articulação promovida pelo encontro entre o

aparato cinematográfico, o personagem e o cineasta que toda a dinâmica é instaurada, tal

como explicitado no conceito de auto mise en scène. Formas de construção dos personagens e

das próprias obras são colocadas à prova e experimentadas, conseguindo, ou não, construir

uma singularidade que, por sua vez, é modular e complexa.

Cada um dos filmes apresenta uma estrutura narrativa diferenciada, sendo que A

pessoa é para o que nasce e Santa Cruz aproximam-se mais de um formato convencional,

enquanto os outros dois voltam-se para o experimental. Recursos expressivos específicos

tornaram manifesta a singularidade em todos eles, de forma diferenciada, evidenciando o fato

de que a criação de poéticas do singular não segue uma receita de preparo. Também a relação

do diretor com os personagens ocorre de modos distintos. No filme de Berliner, o que vemos

é uma gradativa aparição do cineasta, que acaba se envolvendo de tal forma nos conflitos que

passa a ser ele próprio um personagem. Nesse filme, percebemos um afastamento do

melodrama canônico, mas, ao mesmo tempo, aproveita-se uma inspiração melodramática para

configurar o enredo da obra; às vezes, por meio da música, que consegue indicar elementos da

história dos personagens de uma forma sutil.

Em Santa Cruz, Salles utiliza um caminho mais discreto para ir ao encontro dos

personagens, construindo um afastamento que permite que eles fiquem à vontade diante de

uma escuta atenta. Um certo afastamento também pode ser observado no filme de Cao

Guimarães, mas, dessa vez, ele é promovido pela proximidade excessiva com o corpo de

Dominguinhos e com sua rotina, permitindo a construção de uma outra abordagem que diz

mais do personagem do que uma descrição detalhada. Em Esta não é a sua vida, a equipe

envolve-se com a protagonista, o que é revelado pelas imagens e pelo próprio depoimento de

Noeli, sendo que tanto a personagem quanto os realizadores parecem afetados pela

experiência do encontro. Por fim, os casos que analisamos não nos apresentam modelos para a

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construção singularizante dos personagens, mas indicam caminhos possíveis para poéticas do

singular, seja pela dramatização, pela ironia, pela discrição, pela delicadeza ou pelo afeto.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FILMOGRAFIA

BERLINER, Roberto. 2004. A Pessoa É para o Que Nasce. Brasil, cor, 84 min. GUIMARÃES, Cao. 2004. A Alma do Osso. Brasil, cor, 74 min. FURTADO, Jorge. 1991. Esta não é a sua vida. Brasil, cor, 16 min. SALLES, João Moreira e CORREA, Marcos Sá. 2001. 6 Histórias brasileiras: Santa Cruz. Brasil, cor, 62 min.

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