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A avaliação entre a lógica classificatória e a lógica emancipatória: concepções concorrentes no cenário educacional atual Isabel Letícia Pedroso de Medeiros 1 Resumo O presente artigo apresenta umaanálise sobre o modelo seletivo e classificatório de avaliação escolar, enquanto vertente que se constituiu como dominante no cenário educacional. Evidencia também a emergência da avaliação formativa e emancipatória no novo contexto educacional brasileiro das últimas décadas, em nível discursivo e prático, fazendo um contraponto entre as duas concepções e suas respectivas inserções/filiações em diferentes concepções de escola, ensino e currículo, bem como abordando os diferentes efeitos produzidos pelos dois modelos. Conclui afirmando que, na perspectiva de uma escola democrática e de qualidade social, é necessário superar a logica classificatória, constituindo uma nova hegemonia, na qual a lógica formativa e emancipatória se sobreponham aos modelos tradicionais. A avaliação escolar não é um tema independente do contexto educacional mais amplo e do território do currículo. Ao contrário, ainda que muitas vezes tomado de maneira isolada e autônoma, está intimamente urdido nas diferentes concepções de escola, currículo e conhecimento. É um campo que suscita um debate amplo, complexo, com posições bastante controversas, porém, num percurso quase imperceptível e naturalizado, se constituiu como hegemônico, ainda predominando na escola, um modelo seletivo e classificatório, articulado com a reprovação e repetência escolar. Perrenoud (1999) destaca que a avaliação surgiu inserida na criação dos colégios, por volta do século XVII, e se torna indissociável da escola de massas, desde o séc. XI, já que esta se constitui em um paradigma dual, contraditório, que demanda a seleção e classificação, permitindo a formação de mão de obra para as novas formas de produção econômica, mas impedindo que o conhecimento se transforme em instrumento de conscientização e mobilização das classes populares, 1 Professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre desde 1989, mestre e doutora em Educação pela FACED/UFRGS.

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Page 1: A avaliação lógica classificatória e emancipatória 1

A avaliação entre a lógica classificatória e a lógica emancipatória: concepções concorrentes no cenário educacional atual

Isabel Letícia Pedroso de Medeiros1

Resumo

O presente artigo apresenta umaanálise sobre o modelo seletivo e classificatório de avaliação escolar, enquanto vertente que se constituiu como dominante no cenário educacional. Evidencia também a emergência da avaliação formativa e emancipatória no novo contexto educacional brasileiro das últimas décadas, em nível discursivo e prático, fazendo um contraponto entre as duas concepções e suas respectivas inserções/filiações em diferentes concepções de escola, ensino e currículo, bem como abordando os diferentes efeitos produzidos pelos dois modelos. Conclui afirmando que, na perspectiva de uma escola democrática e de qualidade social, é necessário superar a logica classificatória, constituindo uma nova hegemonia, na qual a lógica formativa e emancipatória se sobreponham aos modelos tradicionais.

A avaliação escolar não é um tema independente do contexto educacional

mais amplo e do território do currículo. Ao contrário, ainda que muitas vezes tomado

de maneira isolada e autônoma, está intimamente urdido nas diferentes concepções

de escola, currículo e conhecimento. É um campo que suscita um debate amplo,

complexo, com posições bastante controversas, porém, num percurso quase

imperceptível e naturalizado, se constituiu como hegemônico, ainda predominando

na escola, um modelo seletivo e classificatório, articulado com a reprovação e

repetência escolar.

Perrenoud (1999) destaca que a avaliação surgiu inserida na criação dos

colégios, por volta do século XVII, e se torna indissociável da escola de massas,

desde o séc. XI, já que esta se constitui em um paradigma dual, contraditório, que

demanda a seleção e classificação, permitindo a formação de mão de obra para as

novas formas de produção econômica, mas impedindo que o conhecimento se

transforme em instrumento de conscientização e mobilização das classes populares,

1 Professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre desde 1989, mestre e doutora em Educação pela FACED/UFRGS.

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ao mesmo tempo em que garante a formação das elites, “evidenciando” sua

excelência intelectual e assim naturalizando as desigualdades sociais e econômicas.

Assim, dadas as contradições do modelo capitalista, a seleção na escola

passou a ser necessária como justificativa da desigualdade social e econômica e da

garantia de mão-de-obra barata. Em decorrência, a reprovação e exclusão

começaram a acontecer naturalmente, explicadas e justificadas pelas diferenças

individuais; cada indivíduo passava a ser responsável pelo seu próprio fracasso, já

que outros conseguiam o almejado sucesso.

No Brasil o paradigma da escola dual se enraizou com muita força. Já nos

seus primórdios, com os jesuítas, a escola teve como objetivo a aculturação e

domesticação de indígenas e colonos pobres. A educação obrigatória em idade

própria, para todos, nunca saiu dos textos constitucionais até a última década do

século XX. A escola pública se constitui e se expande tardiamente, na metade do

século passado, voltada para as classes médias e altas. Somente a partir de 1995

há um empreendimento de todas as esferas governamentais – federal, estadual e

municipal – para a universalização, ainda inconclusa, já que atingimos um

percentual de 98% de cobertura no ensino fundamental.

O país apresenta uma história de baixa escolaridade da população, altos

índices de analfabetismo, reprovação e evasão escolar, ao mesmo tempo em que

figura com os piores índices nas provas internacionais que averiguam

conhecimentos. A exemplo de outros países, o pensamento Liberal - que afirma as

relações entre capacidades intelectuais, rendimento escolar e classes sociais;

aptidões naturais como determinantes do sucesso ou do fracasso do indivíduo-

tomou conta do ideário pedagógico nacional, justificando e naturalizando os altos

índices de fracasso escolar da parcela das classes pobres que conseguiam entrar

na escola.

Percebemos um impulso na problematização acerca do tema a partir da

década de 1960, com a emergência das teorias da reprodução e dos estudos, por

muitos pesquisadores (Bordieu; Passeron, 1975), do fenômeno do fracasso escolar

como produção da escola, não mais como responsabilidade individual e familiar,

instrumento que contribui em justificar as desigualdades na sociedade. Essas

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proposições começam a minar o domínio hegemônico do modelo classificatório, ou

pelo menos chamar a atenção para aspectos antes invisíveis no espaço escolar.

Do mesmo modo, muitos autores surgem defendendo a capacidade de

aprendizagem por todos os indivíduos (Bloom, 1974), creditando à escola a tarefa de

planejar sua ação nesse sentido, assumindo a função de ensinar e organizando o

ensino de maneira a individualizar o conteúdo, o ritmo e as modalidades de

conhecimento; nessa perspectiva:

[...] a avaliação se tornava o instrumento privilegiado de uma regulação contínua das intervenções e das situações didáticas. [...] Para se tornar uma prática realmente nova, seria necessário [...] que a avaliação formativa fosse a regra e se integrasse a um dispositivo de pedagogia diferenciada. (PERRENOUD, 1999, P. 14)

O conceito de insucesso emerge nesse contexto, ao mesmo tempo em que o

ideal de sucesso se impôs para todos, com a aposta na plasticidade e educabilidade

dos indivíduos; há a partir daí um enfoque nos indicadores do atraso:

retenção/reprovação e repetência/atraso.

As ideias correntes (idem) de que: o papel da escola se resume em oferecer a

todos oportunidade de aprender; que as desigualdades de êxito são naturais; que

cabe à pedagogia revelar as desigualdades de aptidão; que a escola não é

responsável pela aprendizagem, mas pela transmissão do conhecimento, passam a

ser fortemente questionadas. Vários pesquisadores no mundo e no país

empreendem estudos tendo como foco aspectos que envolvem a avaliação.

De acordo com Crahay (1996), pesquisas na França e em países anglo-

saxônicos, que comparam grupos de alunos com mesmo nível/padrão de

dificuldades, concluíram por diferenças significativas de avanço no grupo promovido,

em relação aos reprovados; nenhuma análise conduziu a uma diferença a favor dos

alunos repetentes. Programas de medidas individualizadas mostraram significativa

superioridade em termos de eficácia para o alcance da aprendizagem, em

detrimento da mera reprovação. Ainda que haja evolução positiva nas avaliações

cognitivas e sócio-afetivas dos alunos repetentes, se considerarmos o início do ano

repetido e o final, os estudos demonstram uma evolução mais significativa dos

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estudantes promovidos, acompanhados de estratégias diferenciadas de apoio à

aprendizagem.

O mesmo autor enfatiza que o funcionamento da escola é um operador que

produz sucessos/ insucessos escolares, a partir de variáveis tais como: programa de

ensino; tempo diário e anual; gestão do percurso escolar - retenção/progressão

automática; diferenciação de percurso; certificação por exame ou automática;

acesso ao ensino superior automático via exame; escolha dos conteúdos; definição

de dos objetivos e competências mínimas; concepção e elaboração de ferramentas

de avaliação; escolha de métodos de ensino. Portanto, a questão é como organizar

o sistema de ensino de maneira a assegurar tanto um ensino de qualidade como o

sucesso do maior número de alunos, operando com essas e outras variáveis.

Outras contribuições também partiram da área da psicologia. Patto (1984)

esclarece que as pesquisas sobre a carência cultural são um fenômeno tipicamente

norte-americano das décadas de sessenta e setenta, como “resposta científica” à

crise decorrente do abalo do mito da igualdade de oportunidades, já que as minorias

naquele país protagonizaram, à época, um forte movimento reivindicatório pela

igualdade de condições. Assim, as teorias “comprovaram” que as desigualdades

econômicas, em função da não inserção no mercado de trabalho, são decorrentes

da baixa escolaridade, que por sua vez é justificada pela incapacidade das classes

subalternas em lograrem sucesso escolar, devido à sua pobreza cultural.

Nesse sentido, as pesquisas afirmavam que a pobreza ambiental e cultural,

nas classes populares, produziam dificuldades no desenvolvimento psicológico

infantil e causavam dificuldades de aprendizagem e adaptação escolar. Esta teoria

teve ampla aceitação no Brasil, pois confirmava as crenças enraizadas na cultura

brasileira a respeito da inferioridade e incapacidade dos pobres, negros e mestiços.

Ainda que professores mais comprometidos com a educação popular tenham se

preocupado com essas teorias, não alcançaram realizar uma análise crítica dessa

ideologização da psicologia, aliançada com interesses políticos de dominação,

opressão e manutenção do poder pelas elites.

A mesma autora (1999) aponta que uma nova abordagem foi proposta pela

teoria crítica, em meados dos anos setenta, sustentada pelas referências teóricas de

Bourdieu e Passeron. Essa teoria analisou o papel predominante da escola

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numasociedade dividida em classes, qual seja, exercer a dominação cultural e a

reprodução/naturalização das relações de produção, através da imposição de modos

de ser, de falar e de pensar característicos dos integrantes das classes dominantes,

apresentados como padrão ideal.

Nessa perspectiva, o sistema de ensinopassou a ser questionado e analisado

como instrumento da manutenção dos privilégios educacionais e profissionais,

responsável pelo fracasso escolar das crianças das classes pobres. A avaliação

classificatória e seletiva se encaixa nessa engrenagem como mecanismo

fundamental na constituição dessas hierarquias. Conforme Perrenoud (1999, p.9):

“Avaliar é –cedo ou tarde - criar hierarquias de excelência [...] privilegiar um modo de

estar em aula e no mundo, valorizar formas e normas de excelência, definir um

aluno modelo, aplicado e dócil para uns, imaginativo e autônomo para outros...”.

Assim, nos anos setenta as pesquisas sobre o fracasso escolar se

caracterizaram pela investigação da participação do sistema de ensino nos

resultados da aprendizagem, através dos fatores intra-escolares e suas relações de

seleção e exclusão social que se desenvolvem na escola (PATTO, 1999).

Nesse mesmo contexto de análise crítica sobre o fracasso escolar, a

avaliação classificatória é alvo de inúmeros trabalhos desenvolvidos no sentido de

problematizá-la. Vasconcellos (1998) diz que a classificação e a seleção se

constituem no núcleo da distorçãodo processo ensino-aprendizagem e de sua

avaliação, promovendo muitos efeitos: a preocupação da comunidade escolar se

volta para o resultado da avaliação, não para o processo de aprendizagem; o exame

escolar constitui um fim em si mesmo; a escola não centra seus esforços na

intervenção nas dificuldades de aprendizagem, mas se restringe à verificação,

fazendo com que a chamada profecia sobre o desempenho dos estudantes em geral

se confirme. Estudantes e professores ficam condicionados e focados na nota.

Conforme o autor, a lógica da seleção se manifesta desde os primeiros dias

de aula, muitos professores evitam dar uma boa nota no primeiro bimestre, com o

receio de que o aluno não siga um percurso exitoso e a boa nota inicial pareça uma

incoerência. Há quem credite a não reprovação nas classes de alfabetização como o

fator responsável pelas reprovações seguintes. Nos conselhos de classe, a

discussão é centrada nas notas. A avaliação classificatória está incluída no

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paradigma de uma educação transmissiva e cumulativa, caracterizada pela

preocupação com o cumprimento do programa e dos pré-requisitos para a próxima

série. Nesse sentido, a função da escola como promotora de aprendizagens é

totalmente pervertida.

Vasconcellos (1998), a partir de suas pesquisas, identificou alguns mitos que

povoam o debate sobre avaliação, afirmados pelos professores: é o aluno que se

reprova; é normal ter alunos fortes, médios e fracos; contingências individuais;

múltiplos fatores, devidos à organização do sistema, turmas superlotadas, baixos

salários, formação precária. O professor, por estar inserido em uma lógica

totalmente naturalizada, nega estar praticando uma ação ideologizada. A

responsabilidade não é individual, mas de uma conjuntura fortemente estabelecida.

Mas na opinião do autor, a avaliação classificatória é fruto de um sistema

mais amplo, no qual a negação da aprendizagem é uma condição para que se

perpetue. Ao capital financeiro não importa a escola; ao capital vinculado à

produção, importa garantir, contraditoriamente, qualificação de mão-de-obra, sem

que os filhos dos operários se equiparem aos filhos do patronato, nem adquiram

condições de analisar criticamente o modo de produção, e assim não tenham

pretensões de transformá-lo. Essa ausência de criticidade promove um círculo

vicioso; fazendo com que as classes populares também não tenham interesse em

um ensino efetivo. Mesmo quem vai bem na escola tem um ensino formalista,

desligado da cidadania, da criticidade, da politização.

Mais uma vez se evidencia o modelo dual, que inicialmente não permitia o

acesso do povo à escola. Depois, permitiu o acesso, mas sem permanência, com

altos índices de evasão e repetência. Atualmente, o povo vai e permanece, por força

da lei, mas sem aprender. A avaliação meritocrática tem sido uma estratégia para

que a escola siga sem ensinar e sem se preocupar em encontrar solução para o

problema central, que é a não aprendizagem por parte de uma grande parcela.

Pesquisas do mesmo autor, entre outros, revelam a arbitrariedade e

relativismo da avaliação tradicional no sistema: há diferenciação de critérios entre

escolas, entre alunos de turmas diferentes, entre alunos da mesma turma. Outros

fatores, tais como docilidade, simpatia, compadecimento, ou ao invés, antipatia,

agressividade, pesam bastante na decisão sobre a aprovação ou reprovação de um

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aluno. Mas o destaque é para a ineficácia da classificação, seleção e reprovação do

ponto de vista pedagógico: não produz aprendizagem, que deveria ser o principal

objetivo da escola.

A partir da década de 1980, se fortalecem as propostas em torno da educação

para todos, do respeito à diversidade, da inclusão escolar. Emerge um novocontexto

de reformas educacionais, que alteram concepções tradicionais, incorporadas em

legislações e normas. No Brasil, em decorrência também dos elevadíssimos índices

de fracasso escolar, se revitaliza a disputa de uma nova concepção de avaliação,

formativa, emancipatória, regulatória, que tem como objetivo o replanejamento das

situações pedagógicas, a partir do diagnóstico do nível de aprendizagem, a fim de

aprimorar as estratégias dos docentes, adaptar os currículos e individualizar as

intervenções, garantindo a aprendizagem de todos.

No entanto, em nível prático, as mudanças são lentas e quase imperceptíveis.

Conforme Perrenoud (1999) a ideia de que a avaliação possa ajudar o aluno não é

uma ideia nova. Desde que a escola existe, pedagogos defendem que a avaliação

esteja a serviço do aluno. Porém, nada se transforma de um dia para o outro no

mundo escolar, a força da inércia e do imobilismo do sistema se impõe. A indiferença

às diferenças, denunciada por Bordieu (1966), segue com vitalidade. Vasconcellos

(1998) também enfatiza que a denúncia da avaliação autoritária já vem sendo feita

há tempos; no pensamento pedagógico, a avaliação como diagnóstico, processual

sistemática, já não é novidade, há uma vasta elaboração teórica nova sobre a

avaliação; porém, a prática pouco tem mudado, tanto a avaliativa como a didático-

metodológica, apesar da denúncia.

Quais são os fatores que contribuem para a continuidade da hegemonia da

avaliação classificatória? Vasconcellos (idem) elenca alguns fatores: a supremacia

da lógica meritocrática, que resiste à inovação, pois a associa avaliação formativa

com promoção automática; a percepçãoda avaliação classificatória como fator de

qualidade de ensino, apoiada no mito da escola de antigamente como modelo de

boa escola; a especificidade do magistério em vivenciar, como estudante,

determinado modelo educacional que acaba se enraizando em detrimento da

formação profissional posterior; a crença de que é a avaliação classificatória que

garante a qualidade de ensino; o temor da perda da autoridade do professor e do

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descomprometimento do aluno; falta de percepção sobre as profundas mudanças

históricas que ocorreram, transformando a função da escola.

No entanto, cresce a perspectiva de que a avaliação classificatória é um

modelo em crise, cada vez mais percebida como estratégia improdutiva e

indesejável: não produz aprendizagem, mas acomodação e reprodução. A avaliação

formativa, expressa pela progressão continuada, está consolidada em lei (Resolução

007/2010 do Conselho Nacional de Educação) justificada pela necessidade de

melhorar as condições da escolarização nos anos iniciais, na etapa de alfabetização.

A mesma resolução orienta que a lógica da avaliação formativa seja estendida para

todos os anos do ensino fundamental.

Na mesma linha de argumentação, Vasconcellos (2005) afirma que a

reprovação escolar deve ser superada pelos seguintes motivos: é instrumento de

discriminação e seleção social; se constitui em uma séria distorção do sentido da

avaliação; do ponto de vista pedagógico, não é a melhor solução; não é justo o

aluno pagar por eventuais deficiências do ensino; tem um elevado custo social; toda

criança é capaz de aprender.

Em consonância com os autores citados, penso que a avaliação formativa,

ancorada em uma perspectiva democrática e libertadora da educação, que quer

contribuir para a reconstrução de uma sociedade em bases igualitárias e

democráticas, necessariamente passa pela construção de um novo projeto

educacional e social para o país. Nesse sentido, há que se ampliar e aprofundar a

crítica às velhas práticas, refletir criticamente a experiência empreendida pela escola

até o momento atual e buscar uma fundamentação teórico-metodológica que dê

sustentação a um novo modelo, desconstruindo a lógica classificatória tão

profundamente enraizada em nossas experiências.

Em nível de sistema percebemos muitas referências a essa nova lógica. O

Conselho Nacional de Educação, através das resoluções exaradas pela Câmara de

Educação Básica, tem sublinhado o caráter formativo, diagnóstico e regulatório da

avaliação, em todas as etapas da educação básica. O Ministério da Educação

passou a fazer um uso positivo das avaliações externas, tais como o Sistema de

Avaliação da Educação Básica, antes usado apenas para estabelecer o ranking

entre estados, municípios, escolas públicas e privadas, e a Provinha Brasil, que

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constituem o IDEB, usando os resultados para promoção da equidade, destinando

mais recursos para quem tem os índices mais desfavoráveis. Muitos sistemas de

ensino adotaram a organização curricular por ciclos, na qual há um sistema de

progressão continuada ou de restrição da reprovação.

Porém, o salto qualitativo se dará pela eliminação da dicotomia

aprovação/reprovação e a superação da lógica classificatória em direção a uma

nova intencionalidade da educação e, por decorrência, da avaliação: garantir a

aprendizagem de qualidade para todos. Assim, todos os esforços devem ser

canalizados na reorganização de tempos e espaços escolares, criação de

estratégias e mecanismos de apoio à aprendizagem, tais como laboratórios de

aprendizagem, reagrupamentos temporários, projetos, adaptação de currículos,

docência compartilhada, enfim, novas experiências que possam dar conta da

aprendizagem.

O grande desafio é fazer da regulação contínua das aprendizagens a lógica

prioritária da escola. A avaliação formativa desloca a regulação ao nível das

aprendizagens para individualiza-las. As provas escolares tradicionais têm pouca

utilidade, pois são concebidas para a classificação do que para o diagnóstico,

portanto, deve haver uma ampliação e diversificação dos instrumentos avaliativos. A

avaliação deve servir para compreender e trabalhar os erros dos alunos, apontam

para o professor o caminho a seguir. O diagnóstico é inútil se não levar a uma ação

apropriada. A avaliação formativa é acompanhada de uma intervenção diferenciada.

(PERRENOUD, 1999).

Para por em curso esse processo de mudança, o papel do professor é

fundamental. Qualquer política ou proposta educacional está fadada ao fracasso se

não for assumida pelos docentes. Muito embora muitas reformas dependam de

ações externas à escola, um dos principais agentes de mudança é o professor.

Nesse sentido, nós professores devemos reconhecer o caráter social e político do

nosso trabalho, empreendendo ações que fortaleçam uma formação democrática,

cidadã e de qualidade social para todos.

Vivemos novos tempos em educação, que demandam novas práticas. Ainda

que devamos reconhecer os limites, pois como nos diz Perrenoud, “Não há exemplo

de mudança significativa que não se tenha ancorado em uma visão bastante realista

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das restrições e das contradições do sistema educativo.” (1999, P. 11), para inovar a

escola temos de superar a inércia e o desperdício da reflexão e darmos curso a um

novo paradigma, no cotidiano do nosso trabalho. Como nos ensinou Paulo Freire, o

fato de algo ser inédito não significa que seja impossível. Homens e mulheres fazem

a história, sempre nova, inédita e viável.

Referências

SAUL, A. M. Avaliação emancipatória. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema

de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975

CRAHAY, M. Podemos lutar contra o insucesso escolar? Lisboa, Instituto Piaget,

1996.

PATTO, M. Psicologia e ideologia: uma introdução critica à psicologia escolar.

São Paulo: TAQ Editor, 1984.

_________. AProdução do Fracasso Escolar: histórias de submissão e

rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

PERRENOUD, P. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens –

entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - SAEB Extraído do "site" do

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP

http://www.inep.gov.br/saeb

VASCONCELLOS, C. Superação da lógica classificatória e excludente da

avaliação: do é proibido reprovar ao é preciso garantir a aprendizagem. São

Paulo: Libertad, 1998.

__________________. Avaliação: Concepção Dialética Libertadora do Processo

de Avaliação Escolar. 15. ed. São Paulo: Libertad, 2005.