a lei maria da penha e uma abordagem emancipatÓria · a lei maria da penha e uma abordagem...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A LEI MARIA DA PENHA E UMA ABORDAGEM EMANCIPATÓRIA
Juliana Fontana Moyses1
Resumo: O presente trabalho analisa a Lei Maria da Penha e as principais abordagens com
que trata as mulheres em situação de violência doméstica, objetivando discutir em que medida
esta Lei estende a estas mulheres uma perspectiva emancipatória. Parte-se de uma perspectiva
feminista, entendendo-se que a violência contra as mulheres é fruto de uma organização social
patriarcal, com homens em posição de dominância e mulheres em posição de subordinação, e
para combater tal situação deve-se partir de uma visão que coloque a mulher em situação de
violência em posição de sujeito, ouvindo a sua voz, buscando promover mudanças nos
padrões sociais sexistas. A partir do trabalho de Carol Lee Bacchi, percebe-se que existem
muitas narrativas possíveis sobre a posição da mulher em situação de violência, desde o
retrato desta mulher como vulnerável e indefesa até o retrato do agressor como
patologicamente violento. A partir da abordagem da autora, conclui-se que as principais
convenções internacionais sobre o tema – CEDAW, Convenção de Belém do Pará,
Convenção de Pequim – reconhecem as assimetrias de poder entre homens e mulheres, e
prezando pela emancipação destas. Conclui-se que a Lei Maria da Penha, apesar de apresentar
importantes avanços em diversos aspectos e incorporar diversos pontos das referidas
convenções, apresenta abordagens não emancipatórias, especialmente quando aplicada na
esfera criminal.
Palavras-chave: Violência doméstica; Mulher em situação de violência; Emancipação; Lei
Maria da Penha; Feminismo
Introdução
Emancipação e empoderamento são termos bastante utilizados quando se pensa ou fala
sobre feminismo. A busca por mudanças na estrutura social que emancipem mulheres das
condições desiguais em que vivemos em relação aos homens é algo que une feministas no
mundo inteiro.
Não é diferente quando se fala em violência contra as mulheres: perspectivas
feministas as mais diversas entendem a violência contra as mulheres como fruto da assimetria
de poder entre homens e mulheres, e busca-se pensar em leis, instrumentos e políticas que
deem conta de empoderar as mulheres, garantindo-nos uma vida livre de violência.
Com base nisso, me pus a refletir sobre as contribuições da Lei Maria da Penha, o
maior instrumento do país de combate à violência contra as mulheres, para o empoderamento
feminino. Será que as disposições deste instrumento são suficientes para emancipar mulheres
da desigualdade de gênero - especialmente mulheres em situação tão delicada quanto a
violência?
1 Mestranda da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
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Eu já havia realizado algumas análises sobre o tema da violência doméstica contra as
mulheres e o empoderamento, analisando as convenções internacionais sobre o tema, a Lei
Maria da Penha e a lei portuguesa de combate à violência doméstica, no meu Trabalho de
Conclusão de Curso junto à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, sob orientação do
Professor Márcio Henrique Pereira Ponzilacqua2. Revisitei o tema em artigo publicado no
livro O Lugar da Vítima nas Ciências Criminais, organizado pelo Professor Eduardo Saad-
Diniz, desta vez focando apenas na Lei Maria da Penha3.
No presente artigo, revisito várias das reflexões já realizadas nestes trabalhos como
forma de dar continuidade e aprimoramento a elas, de modo que a investigação sobre a
violência doméstica contra as mulheres e o empoderamento esteja sob constante evolução.
Dada a extensão de tal instrumento legal e do amplo leque de análises possíveis, o
recorte realizado neste trabalho se refere à concepção das mulheres nas disposições iniciais e
penais da lei, em especial, procurei abordar também as mulheres sujeitos, ou "sujeitas", da Lei
Maria da Penha: quem são as mulheres para quem a lei é voltada? Quem são as mulheres que
está lei "constrói" como receptores de sua tutela? Será que a construção destas sujeitas facilita
seu empoderamento?
Está reflexão é importante porque, assim como nos dois trabalhos já realizados, utilizo
o trabalho de Carol Lee Bacchi, que explica a importância do enquadramento de determinado
problema para a determinação de seus efeitos. Esta autora explica que o discurso sobre
determinado problema traz, subjacente, uma interpretação sobre seu(s) aspecto(s) mais
importantes, e por consequência, o que se priorizará em sua resolução. Trago elementos de
sua análise no segundo capítulo deste trabalho.
Assim, é importante descobrir se o modo como a Lei Maria da Penha descreve as
mulheres que sofrem a violência contribui para seu empoderamento, sua emancipação das
desigualdades de gênero e da violência.
As Mulheres e o Empoderamento Emancipatório
2 MOYSES, Juliana Fontana. Análise comparativa de ações de enfrentamento à violência contra as mulheres, no Brasil e em Portugal, em vista do empoderamento da mulher em situação de violência. Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP. Disponível em: <http://www.tcc.sc.usp.br/tce/disponiveis/89/890010/tce-05092016-082949/?&lang=br> acesso em 28 jun. 2017. 3 MOYSES, Juliana Fontana. Um olhar sobre a mulher em situação de violência na Lei Maria da Penha. In: SAAD-DINIZ, Eduardo (org.). O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2017.
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Apesar de ser um termo que está “na moda”, é necessária a conceituação de
“empoderamento”, dados os diferentes significados que lhe são atribuídos. Horochovski e
Meirelles explicam que, a despeito de sua origem nos movimentos sociais negros e feministas
na década de 70, que o utilizavam com uma conotação emancipatória, o termo
“empoderamento” passou a ser utilizado com outras intenções, que vão desde uma conotação
assistencialista de apoio a grupos excluídos, até uma conotação individualista, que preza o
sucesso e esforço individual e se opõe a políticas estatais de intervenção e assistência,
conotação própria de setores conservadores4 (HOROCHOVSKI, MEIRELLES, 2007).
Uma perspectiva emancipatória de empoderamento se diferencia destas concepções
porque foca na coletividade e na emancipação de grupos excluídos, ou seja, não se busca
prestar mero assistencialismo a tais pessoas, e sim promover a sua autonomia, bem como a
mudança das condições materiais de suas vidas (GOHN, 2004). Tal perspectiva busca intervir
na distribuição não igualitária de poder entre os grupos, buscando-se superar a subordinação
de um grupo em relação ao outro.
Dentro de uma perspectiva feminista, o empoderamento, nas palavras de Sandenberg,
significa “o processo da conquista da autonomia, da auto-determinação (...), na libertação das
mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal” (SANDENBERG,
2006). Isto significa, por consequência, a alteração dos padrões sexistas em que a sociedade é
estruturada.
Adotando-se uma (necessária) perspectiva interseccional, isto também significa
atentar-se para o fato de que a experiência vivida pelas mulheres não é única, sendo na
verdade bastante diversa, dependendo dos diversos marcadores de diferença experimentados
pelas mulheres. Kimberlé Crenshaw explica que, de maneira dominante, as análises de
discriminação se baseiam em apenas um eixo de discriminação, apagando a experiência de
pessoas que se encontram em mais de um eixo, com as mulheres negras. Desta maneira, a
análise acaba se limitando às experiências das pessoas que, tirando o único eixo de opressão,
são privilegiadas (CRENSHAW, 1989, p.150-152).
Segundo a autora, tais análises invisibilizam experiências de pessoas que acumulam
mais de um eixo de opressão, pois suas experiências são híbridas, não podendo ser explicadas
pelas análises centradas em um eixo só, tomando-se a pessoa que sofre apenas aquele eixo de
opressão como base, como se sua experiência fosse universal. Não é; no exemplo das
4 Desenvolvo uma exposição mais aprofundada de cada uma destas conotações no meu TCC, acima citado.
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mulheres negras, uma análise focada apenas na categoria gênero ou na categoria raça levará
em conta apenas os sujeitos que experimentam apenas aquele eixo de opressão: mulheres
brancas e homens negros. Esta análise, portanto, não dá conta de explicar as experiências de
mulheres negras, pois estas enfrentam o racismo e o machismo enquanto mulheres negras,
com machismos e racismos específicos direcionados a elas (CRENSHAW, Op. Cit., p.153). E
com esta análise não sendo suficiente, as políticas dela derivada privam as mulheres negras de
proteção, pois esta só lhes seria ofertada quando a discriminação vivida se aproxima do
sujeito universal mulher-branca ou homem-negro.
O mesmo raciocínio se aplica em relação a mulheres lésbicas, indígenas, deficientes,
trans, idosas, rurais, entre outras características oprimidas, e todas as combinações possíveis
entre elas. Todas estas experiências devem ser levadas em conta, pois, quando se busca um
empoderamento na perspectiva emancipatória, o que se busca é a emancipação das mulheres
enquanto grupo das assimetrias de poder patriarcais. Em outras palavras, não há emancipação
das mulheres se apenas as mulheres privilegiadas são beneficiadas por leis, instrumentos e
políticas de empoderamento.
Enquadramentos da Violência – As Análises de Carol Lee Bacchi
O enquadramento dado a determinado problema por uma lei ou política pública
é, de acordo com a cientista política Carol Lee Bacchi, fator determinante dos resultados
de tal lei ou política. E isto porque, para se descrever determinado problema,
necessariamente se está interpretando-o e determinando seus pontos mais importantes, e
com isso, quais os caminhos a se tomar para a sua resolução. Está-se, em última
instância, criando o problema: dando-lhe uma existência separada das demais situações,
moldando como se enxerga tal problema e quais as prioridades em relação a ele. Ela
defende, assim, uma análise focada no discurso sobre os problemas, para que se
descubra os efeitos derivados de cada discurso. (BACCHI, 2007, p. 1-13).
No caso da violência doméstica contra as mulheres, a autora compila
enquadramentos deste problema e suas consequências, como o enquadramento da
violência doméstica como “violência familiar”, uma interpretação conservadora na qual
a preocupação centra-se proteger a instituição da família e sua conservação, o que tem
por resultado até o desrespeito aos direitos das mulheres, se estes ameaçarem a família.
Destacam-se também o discurso psicodinâmico, que enquadra a violência como causada
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por indivíduos patologicamente agressivos, sem dar enfoque às relações sociais, e o
discurso psicossocial, que embora veja a violência como derivada de regras sociais que
autorizam a violência, não realiza a análise desta com base no gênero. Ambos têm como
resultado o apagamento das questões de gênero que envolvem esta violência. (BACCHI,
Op. Cit., p. 166-169).
Um enquadramento bastante relevante é o da “síndrome da mulher agredida”,
enquadramento que descreve a vítima de violência doméstica como vulnerável, instável
e fragilizada, incapaz de responder por seus próprios atos ou tomar decisões. Bacchi
explica que, se por um lado este discurso foi utilizado por advogadas feministas na
defesa de mulheres que matavam maridos violentos, com algum êxito, por outro ele faz
com que as mulheres que sofrem violência tenham de se silenciar para se enquadrar
nesta concepção de “mulher agredida”, não podendo demonstrar visão de futuro,
planejamento, capacidade de agir por si própria – o que inclusive faz com que mulheres,
que não querem se ver despidas de sua autonomia deste jeito, ou não querem se ver
retratadas como objeto de pena, deixem de denunciar a violência sofrida. (BACCHI,
Op. Cit., p. 169-170).
Outro enquadramento que se destaca é o que coloca a violência doméstica contra
as mulheres como assunto “público”, e que, portanto, deve sair da invisibilidade da
esfera privada e tratado com a mesma seriedade que qualquer outro crime. Se esta
perspectiva tem o resultado de tirar a violência doméstica contra as mulheres da
obscuridade da esfera privada, também pode trazer, segundo Bacchi, resultados não tão
desejáveis: ela dá o exemplo do foco excessivo na “criminalidade”, levando ao maior
investimento de recursos em segurança pública e em força policial, ao invés de abrigos
para mulheres agredidas (BACCHI, Op. Cit., 172-175).
A partir destes exemplos, vê-se que a interpretação sobre a violência doméstica é
assunto complexo, que tem implicações determinantes nos resultados obtidos. A seguir,
passo a estudar a interpretação dada à violência doméstica contra as mulheres dentro de
alguns aspectos da Lei Maria da Penha, tentando mapear as representações que fazem
do problema e possíveis consequências.
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Os enquadramentos da violência doméstica contra as mulheres na Lei Maria da
Penha
A Lei Maria da Penha já traz, em seu nascedouro, a interpretação de que a
violência doméstica contra as mulheres é fruto de uma organização social patriarcal: isto
se vê na própria exposição de motivos, que justifica a delimitação da aplicação da lei
apenas às mulheres “por entender que a lógica da hierarquia de poder em nossa
sociedade não privilegia as mulheres” (BRASIL, EM n° 016, item 6). A própria história
da Lei Maria da Penha, como fruto de um consórcio de organizações feministas
buscando enfrentar a violência “seguindo os marcos dos direitos humanos das
mulheres” (SEVERI, 2017, P. 118), também contribui para lhe dar esta dimensão.
No texto da lei, esta interpretação está consubstanciada no artigo 1º, que se
refere à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a
Mulher e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, ambas adotantes desta perspectiva de ser a violência contra as
mulheres decorrentes da estrutura de poder assimétrica entre homens e mulheres5.
É interessante notar que a primeira referência deste artigo é ao § 8º do artigo 226
da Constituição Federal, que dispõe, em textual: “O Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”, sendo que o caput do artigo lê “a família, base
da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Apesar deste artigo, não há dúvidas de
que a Lei Maria da Penha não interpreta a violência doméstica contra mulheres como
um problema familiar, até pela própria história da lei, as seguintes referências às
convenções, e ao fato de que a lei claramente se refere a mulheres e violência contra a
mulher em seus artigos seguintes. Neste contexto, a referência a este dispositivo
constitucional indica uma interpretação de forma a aprofundar a ideia de coibir a
violência no âmbito das relações familiares, em um contexto de história tolerância,
inclusive jurídica, à violência doméstica contra as mulheres (CAMPOS, 2011, p. 174).
O enquadramento da questão da violência como parte de uma estrutura social
patriarcal é bastante presente em toda a lei, podendo ser notada em dispositivos que
5 Fiz uma análise mais completa no meu TCC, acima referenciado.
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preveem “cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias
para o efetivo exercício dos direitos [fundamentais das mulheres]” (art. 3º, § 2º), que o
poder público deve promover estudos com perspectiva de gênero e raça/etnia sobre as
causas e consequências da violência doméstica (art. 8º, II) e que nos meios de
comunicação devem ser coibidos os papeis estereotipados que legitimem a violência
contra a mulher (art. 8º, III), entre outros.
A questão do foco nas mulheres como forma de igualar o tratamento desigual em
relação aos homens, encontra-se bastante presente na exposição de motivos da lei6, no
texto da lei (em especial em seu artigo 4º), e no julgamento da constitucionalidade da
Lei Maria da penha pelo STF. Para a análise de enquadramentos que procuro fazer aqui,
analisar a decisão do STF é particularmente importante, dado o poder deste de
“pacificar” as questões que lhes forem suscitadas, fazendo valer o seu discurso e sua
interpretação (e assim, seu enquadramento) dos assuntos que julga.
No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19, que declarou
a constitucionalidade da lei Maria da Penha, da criação de anexos de violência
doméstica, e do afastamento da lei 9.099/95 (juizados especiais), fica bastante clara a
interpretação pela qual uma lei que trata especificamente das mulheres é necessária para
corrigir sua desigualdade em relação aos homens, inclusive para que seja possível
cumprir a proteção aos membros da família, estampada no § 8º do artigo 226 da
Constituição.
O voto do relator, Ministro Marco Aurélio, traz importantes interpretações a
respeito da violência doméstica contra as mulheres: ele se refere ao “histórico de
discriminação e sujeição enfrentado por ela [mulher] na esfera afetiva”, aduzindo que
quando homens sofrem violência doméstica, esta “não decorre de fatores culturais e
sociais e da usual diferença de forma física entre os gêneros” (STF, ADC n° 19, p. 14-
15).
A despeito desta última frase, que denota um essencialismo em relação às forças
físicas de homens e mulheres, tais trechos são bastante representativos dos votos do
restante dos Ministros e Ministras. Votando unanimemente pelo reconhecimento da
constitucionalidade da Lei, reconheceram que o tratamento diferenciado a homens e
6 Ver em especial os itens 12 e 16.
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mulheres no caso da violência doméstica justifica-se, tendo por objetivo compensar a
subordinação enfrentada pelas mulheres, garantindo assim a igualdade material. Em
geral, apesar de algumas referências à necessidade de proteção da violência dentro da
família7, os votos foram bastante focados na necessidade de garantir a igualdade
material das mulheres, subalternizadas e (por conta disso) mais vulneráveis a este tipo
de violência. Destaco trecho da Ministra Carmen Lúcia: “quando há violência, não há
nada de relação de afetividade; é relação de poder, é briga por poder, é saber quem
manda. E mulher não manda e não pode mandar” (STF, Op. Cit., p. 47).
Uma vez que se está falando das relações desiguais entre homens e mulheres, é
importante trazer a perspectiva interseccional. Como vimos, o patriarcado é
experimentado de diferentes maneiras pelas mulheres, a depender de suas
características. Como a Lei Maria da Penha lida com a multiplicidade de mulheres e
opressões vividas por estas? Quem é a mulher sujeito desta Lei?
O artigo 2º da Lei prevê a garantia dos direitos fundamentais às mulheres
independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível
educacional, idade e religião, já indicando, como explica Carmen Hein de Campos, o
reconhecimento de que estes marcadores podem aprofundar o grau de vulnerabilidade
das mulheres, e dispondo que não devem “impedir ou dificultar o exercício ou o gozo
dos direitos fundamentais” (CAMPOS, Op. Cit, p. 178). Esta autora afirma também que
a incorporação do conceito de “gênero” permite estender a proteção desta lei às
mulheres transexuais (CAMPOS, Op. Cit., p. 179).
Em relação à orientação sexual, a Lei Maria da Penha taxativamente prevê que
as relações pessoais nas quais se dá a violência doméstica independem de orientação
sexual (art. 5º, parágrafo único), reconhecendo, assim, a sua aplicabilidade a mulheres
lésbicas e bissexuais. Quanto à raça/etnia, o artigo 8º da Lei determina que as pesquisas
acerca da violência, a capacitação dos profissionais elencados no inciso VII, os
programas educacionais e os conteúdos escolares relativos aos direitos humanos, todos
têm de incorporar a perspectiva de raça ou etnia.
7 O voto do Ministro Ayres Britto, por exemplo, refere-se à mulher como “o eixo em torno do qual gravitam os núcleos domésticos a que chamamos de família” (referência, p. 54).
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Percebe-se, portanto, haver um enquadramento da Lei que se afasta da visão de
mulheres como um “sujeito-universal-mulher” (representando a mulher privilegiada,
branca, abastada, hetero, cisgênero, etc), buscando incorporar mulheres diversas, com
diferentes marcadores de desigualdades. É preciso refletir, porém, acerca destas
referências genéricas a estes marcadores, sem a menção a formas específicas de
violências interseccionais contra as mulheres, ou a ações específicas para combate-las.
Talvez isto acabe por mascarar que o enquadramento dado por esta lei acabe caindo no
“sujeito-universal-mulher”.
Em análise sobre a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, Meghan Campbell percebe que nesta convenção
também não há referências a formas interseccionais de discriminação. Embora a autora
conclua que há o comprometimento de combate a todas as formas de discriminação
contra a mulher, defendendo que a CEDAW aborda a interseccionalidade de forma
fluida (inclusive de forma pioneira), a análise das Recomendações Gerais emitidas pelo
Comitê CEDAW mostram um uso bastante inconsistente da perspectiva interseccional
(CAMPBELL, 2015).
Muito embora não seja possível aprofundar esta análise no presente artigo, é
necessário refletir se o mesmo se dá em relação à Lei Maria da Penha, e se as mulheres
são protegidas de maneiras diferentes sob sua égide. Há indícios de que sim: o Dossiê
Mulheres Negras, por exemplo, demonstra que “a agressão física obedece padrões
diferenciados para as mulheres segundo raça/cor. As dinâmicas familiares e de gênero
pareceram diferentes nas justificativas, nos contextos e nos perfis de vitimização”
(MARCONDES et. al., 2013, p. 154). É necessário aprofundar esta análise, inclusive
em relação a outros marcadores de diferença.
No que diz respeito ao enquadramento das mulheres na questão penal desta Lei,
sabe-se que a Lei Maria da Penha buscou afastar a ineficiência com que a violência
doméstica contra as mulheres era tratada sob a égide da lei 9.099/95 – a lei dos Juizados
Especiais. Nestes, havia verdadeira banalização desta violência, com a grande maioria
dos casos terminando audiências de conciliação “que pouco (ou nada) consideravam as
relações desiguais de poder baseadas em gênero que marcam esse tipo de violência”
(SEVERI, Op. Cit, p. 115).
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A Lei Maria da Penha, desta maneira, determina o afastamento da Lei 9.099/95
aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
de seu artigo 41. Percebe-se, pela exposição de motivos, a intenção de superar a falta de
soluções adequadas, oferecidas nos Juizados Especiais Criminais, para este tipo de
violência. A exposição defende que a conciliação era “um dos maiores problemas dos
Juizados Especiais Criminais”, muitas vezes induzida pelo conciliador e levando a uma
avaliação errônea da violência com eventos únicos. Também se afirma que não havia
escuta da vítima, pois esta não opinava sobre a possibilidade de transação penal ao
agressor (BRASIL, EM n° 016, p. 17). Entre outras, a defesa da criação de Varas e
Juizados Especiais da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (hoje no artigo
14 da lei) demonstra uma preocupação em garantir uma maior proteção às mulheres em
situação de violência, eis que varas especiais, com competências cível e penal,
facilitaria às mulheres o acesso à justiça e a solução dos conflitos (BRASIL, EM n° 016,
p. 18).
Percebe-se, assim, a tentativa de enquadrar o problema da violência doméstica
não apenas como relevante (em oposição aos Juizados Especiais Criminais, que o
banalizavam), mas também como dotado de especificidades, necessitando de uma
atenção especial quanto às questões que o envolvem, em especial as de gênero, como
vimos.
A questão do afastamento da Lei 9.099/95 foi levada ao STF. A ADI 4424/DF
foi proposta pelo Procurador Geral da República, buscando que se declarasse a
inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes de lesão corporal praticados com violência
doméstica, mesmo em sua dimensão leve, pois, apesar da Lei Maria da Penha
determinar o afastamento da Lei dos Juizados Especiais em seu artigo 41, faz referência
à representação nos artigos 12 e 16, levando à dúvida doutrinária e jurisprudencial
acerca do afastamento ou permanência da representação em casos de lesão corporal
leve.
Os votos dos Ministros e Ministras do STF neste caso demonstram uma
preocupação com o alto índice de renúncias à representação em casos de violência
doméstica na égide da Lei 9.099, defendendo que, nas palavras do Ministro Marco
Aurélio (relator), “isso se deve não ao exercício da manifestação livre e espontânea da
vítima, mas ao fato de vislumbrar uma possibilidade de evolução do agente” (STF, ADI
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4424, p. 8-9). O ministro defende que não é razoável deixar a atuação estatal a critério
da mulher, “cuja espontânea manifestação de vontade é cerceada por diversos fatores da
convivência no lar, inclusive a própria violência a provocar o receio, o temor, o medo de
represálias” (STF, Op. Cit. p. 12).
Percebe-se nos votos dos ministros e das ministras bastante forte a ideia de que a
vontade da mulher que sofreu a violência é uma vontade viciada, que não deve ser
levada em conta, incorrendo eles e elas em um enquadramento similar à “síndrome da
mulher agredida”, ao enxergar as mulheres agredidas como vulneráveis demais
inclusive para decidirem representar ou não em caso de lesões leves. Chama a atenção a
ideia, defendida pela Ministra Carmem Lúcia, de que as mulheres agredidas sofreriam
da “Síndrome de Estocolmo”8 (STF, Op. Cit., p. 78-79), e a fala do Ministro Ayres
Britto: “na verdade, a lei, aqui, protege a agredida dela mesma, da sua excessiva
condescendência” (STF, Op. Cit., p. 79).
Esta interpretação, de que há que se “proteger a mulher dela mesma” tem como
embasamento, nos votos dos Ministros e Ministras, a ideia de garantir a efetiva proteção
e atuação estatal, proteção e atuação estas que se traduziriam no seguimento da ação
penal. Mesmo o Ministro Cezar Peluso, único voto divergente, só diverge por ter a
preocupação de que, sendo a ação penal decorrente de lesão corporal leve independente
de representação, fiquem as mulheres inibidas de denunciar a agressão: “Vossa
Excelência não receia que, voltando ao regime anterior da ação civil pública
incondicionada, caiamos na mesma inibição, que tinham antes as mulheres, de dar a
notícia-crime?” (STF, Op. Cit., p. 19).
Outro argumento, utilizado pelos Ministros e Ministras, é que sendo a ação
incondicionada, o agressor saberia que a instauração de ação penal não necessariamente
partiria da mulher agredida, evitando-se, assim, intimidação ou retaliações (STF, Op.
Cit., p. 19). Percebe-se, assim, que a interpretação dada pelo STF vai no sentido de
conferir maior proteção às mulheres – mesmo que estas tenham que ser protegidas de si
mesmas.
8 Nas palavras da ministra, “é o que ocorre nos sequestros nos quais o refém, num dado momento, acredita que a vida dele depende tanto do sequestrador que chega a imaginar que gosta do sequestrador... E, essa síndrome – que é estudada só para os casos de sequestro –, hoje, eu leio na neurociência, também se aplica às mulheres que sofrem, durante muito tempo” (p. 78-79)
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Com esta análise de alguns dos elementos da Lei Maria da Penha, percebem-se
diferentes enquadramentos a respeito da mulher sujeito desta lei.
Conclusão
A partir da análise acima realizada, é possível delinear alguns enquadramentos
dados pela Lei Maria da Penha às mulheres em situação de violência doméstica. O
reconhecimento das mulheres como sujeitas a um sistema patriarcal, ocupando uma
relação de subordinação em relação aos homens, é um enquadramento que se pode
entender como consistente com o empoderamento emancipatório, conforme definido
anteriormente: o reconhecimento de uma situação de subordinação de determinada
categoria social e a busca pela alteração desta realidade, através de discriminação
positiva. Há uma intenção em se dar um enquadramento interseccional à lei, abarcando
a diversidade de mulheres, mas talvez esta intenção deva ser melhor desenvolvida, o
que será aferido em futuras análises. Percebe-se também o enquadramento da mulher
agredida, tão vulnerável que sua vontade é considerada automaticamente viciada, o que
não contribui para favorecer sua voz e independência. Conclui-se, então, que há vários
enquadramentos dados às mulheres sujeitos da Lei Maria da Penha, inclusive
enquadramentos que não favorecem à emancipação da sujeição patriarcal. Levando-se
em conta que a própria lei determina que será interpretada de acordo com os fins sociais
a que se destina (art. 4º), e que suas primeiras disposições, as convenções em que se
baseia, e toda a sua história apontam para um enquadramento de emancipação, é preciso
alterar as interpretações desconformes a este fim.
Referências
BACCHI, Carol Lee. Women, Policy and Politics. The Construction of Policy Problems.
SAGE Publications, 2007
BRASIL, Exposição de Motivos n° 016 – SPM/PR. 16/11/2014. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/expmotiv/smp/2004/16.htm> acesso em 28 jun
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
The Maria da Penha Law and an Emancipatory Perspective
Abstract: This article analyses the Maria da Penha Law and some of the main frameworks it
treats women under domestic violence, with the purpose of discussing to which extent this
Law gives these women an emancipatory perspective. I stand from a feminist perspective,
understanding that violence agains women is a consequence of women’s subordination, and,
in order to oppose this situation, there must be a framework in which women under violence
are put in a subject position, with an active voice, and which intends to promote changes in
the sexist social patterns.
Coming from Carol Lee Bacchi’s work, it is perceived that there are many possible
frameworks about women under violence’s position. Using the author’s analysis, it is
concluded that Maria da Penha Law presents, at the same time, a framework of domestic
violence as result of a patriarchal organization from which women must be emancipated, one
intersectional framework, and one framework that silences women, treating them as
vulnerable and defenseless.
Keywords: Domestic violence; Women under violence; Emancipatoy framework;
Empowerment; Maria da penha Law; feminism