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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Suzana Filizola Brasiliense Carneiro A articulação entre escola e comunidade do entorno em um projeto de literatura marginal: um olhar fenomenológico MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO São Paulo 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Suzana Filizola Brasiliense Carneiro

A articulação entre escola e comunidade do entorno em um

projeto de literatura marginal: um olhar fenomenológico

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

São Paulo

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Suzana Filizola Brasiliense Carneiro

A articulação entre escola e comunidade do entorno em um

projeto de literatura marginal: um olhar fenomenológico

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profa., Doutora Heloisa Szymanski.

São Paulo

2011

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

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Dedico este trabalho aos educadores e

artistas da periferia; ao José Mario e a

todos os que se doam pelo bem comum na

construção de uma sociedade mais humana

e justa.

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AGRADECIMENTOS

Àquele que me sustenta e guia, dando sentido a minha vida. Ao José Mario, pela presença amorosa, sensível e solícita. A Tereza, João e Anna, por me mostrarem novos modos de ver o mundo e pela alegria e entusiasmo encorajadores. Aos meus pais, Beti e Rubens, pela acolhida incondicional que me ajuda a encontrar e concretizar caminhos de realização pessoal como este. Aos meus irmãos, cunhados, sobrinhos e familiares, pela vida comunitária que nos sustenta, tornando o dia-a-dia menos hostil e mais solidário. A Helena, por me ensinar a saborear as coisas simples, dando leveza ao caminhar. A minha orientadora professora Heloisa Szymanki, por me fazer sentir profundamente respeitada e encorajada neste percurso, como pessoa e pesquisadora. À querida professora Vitória Helena Espósito, pela parceria e ousadia no modo de ver e viver. Ao professor Miguel Mahfoud, pela generosa colaboração. À irmã Jacinta Turolo e à professora Angela Ales Bello pelas preciosas contribuições em relação à fenomenologia e Edith Stein. A Anete Busin Fernandes, pelo incentivo neste projeto. À professora Marília Ancona pela acolhida. À professora Ana Bock pelo apoio na qualificação. Aos participantes desta pesquisa, em especial a Knup Acrata, Francisco, Alice, e aos alunos da oficina de literatura marginal, pela confiança e abertura em partilhar suas experiências vividas. A Cecília Duprat, pelo olhar de esperança que me ajuda a avançar. Às amigas Lucia, Mariam, Eliane e Rúbia, pela partilha de vida. Aos colegas do Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Família, Escola e Comunidade. A todos os colegas de mestrado. A Cristiane Duarte Daltro Santos pela revisão do português e pelas palavras de incentivo. A Gustavo Adolfo Pedrosa Daltro Santos pela tradução do resumo para o inglês. A Luciana Barbosa de Souza pela colaboração na entrevista.

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Ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa. Aos irmãos da Comunidade Emanuel, minha família espiritual. A Edith Stein, pela riqueza de seu pensamento e por sua intercessão.

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O dia e a noite

Alguém perguntou a um mestre:

– Mestre, como saber o exato momento em que a noite termina e o dia começa?

O mestre dirigiu-se a seus discípulos, perguntando se algum deles gostaria de responder

à pergunta.

– É quando, ao nascer da aurora, já se consegue distinguir uma macieira de uma pereira

– disse um deles.

– Não, meu caro – retorquiu o mestre. – Não é isso.

– Então, é quando já conseguimos reconhecer um cavalo ao longe, na estrada – arriscou

outro discípulo.

– Também não é isso – repetiu o mestre.

– Eu sei – afirmou outro. – É quando conseguimos distinguir um fio de cabelo branco

de um fio de cabelo preto.

– Nada disso – tornou a dizer o mestre.

– Então quando? – indagaram todos, curiosos.

– É quando olhamos qualquer ser humano e o reconhecemos como nosso irmão. Nesse

momento, não importa que horas sejam, podemos ter certeza de que a noite terminou.

(conto de tradição oral, de origem judaica)

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RESUMO

O objetivo deste trabalho foi compreender como o fenômeno da articulação entre escola e comunidade do entorno se desvelou ao longo de um projeto de literatura marginal, coordenado por jovens da comunidade (coletivos), envolvendo alunos do Ensino Fundamental II da escola. Utilizou como referencial para a compreensão deste fenômeno a visão de pessoa, comunidade e formação de Edith Stein. Trata-se de um estudo em Psicologia da Educação dentro de uma abordagem qualitativa fenomenológica. Inseriu-se numa pesquisa mais ampla que visava acompanhar o processo construtivo de ações articuladas entre diferentes contextos educativos, em um bairro da periferia de São Paulo, com a finalidade de implantar uma proposta de educação em tempo integral. A situação de pesquisa constituiu-se na observação das oficinas de literatura marginal, em encontros com educadores e gestores da escola, e numa entrevista reflexiva com o grupo de alunos que participou do projeto. A compreensão do fenômeno da articulação foi feita segundo a perspectiva da análise compreensiva, tendo como base narrativas elaboradas a partir das observações, dos encontros e da entrevista reflexiva, em diálogo com o referencial escolhido. O fenômeno da articulação mostrou-se como possibilidade de formação de vivências comunitárias, compreendidas por Edith Stein como unidades de vida que se formam em torno de núcleos de sentido comum. Uma vivência comunitária entra em vigor quando os indivíduos se oferecem espontaneamente uns aos outros, estão abertos uns em relação aos outros. O diretor, a coordenadora pedagógica da escola e o educador responsável pelas oficinas partilharam uma vivência comunitária em relação ao sentido do projeto. Neste caso, o núcleo de sentido comum foi a busca pela transformação social através do conhecimento, da cultura; e a compreensão da literatura e da articulação como possíveis caminhos para isto. As oficinas de literatura marginal também se configuraram como uma vivência comunitária na qual o sentido partilhado foi, principalmente, a produção literária. O fenômeno da articulação mostrou-se também como uma possibilidade educativa à medida que provocou mudanças pessoais nos participantes do projeto, tanto no educador responsável, como nos alunos. Estes passaram a se ver como parte da comunidade do entorno e a ter um olhar mais positivo acerca da periferia. Passaram a compreender o conhecimento como ferramenta para transformação pessoal e social. Além disso, aproximaram-se da literatura, produziram e divulgaram seus próprios poemas em saraus da escola. O responsável pelas oficinas, por sua vez, “se descobriu” como educador. Estas mudanças pessoais repercutiram nas suas comunidades de origem, enriquecendo tanto a escola como os coletivos.

Palavras-chave Articulação escola e comunidade do entorno Comunidade e educação Edith Stein Fenomenologia e educação Literatura marginal

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ABSTRACT

This work has aimed to understand the unfolding of the phenomenon of school-local community articulation during the development of a marginal literature project, coordinated by local community youth (collectives), involving middle-school students at the school. Edith Stein’s views of the person, community, and education have been utilized as the chief theoretical reference for that phenomenon’s understanding. This is a study in Psychology of Education, within a qualitative phenomenological approach. It has been part of a comprehensive research project that aims at following the constructivist process of articulated actions that are developed between different educational contexts, in a peripheral neighborhood of São Paulo, with a view to implementing a full-time educational approach. The research situations consisted of observation of the marginal literature workshops, meetings with school educators and management staff, and a reflexive interview with the group of students who took part in the project. The understanding of the phenomenon of articulation followed the perspective of comprehensive analysis, and was based on narratives constructed from the observations, meetings, and the reflexive interview, in dialogue with the selected theoretical reference. The phenomenon of articulation was shown to be a opportunity of construction of community life experiences, understood by Edith Stein as life units that are shaped around cores of shared meaning. A community life experience is established when individuals spontaneously offer themselves to one another, find themselves open toward each other. The principal, the school pedagogical coordinator and the educator in charge of the workshops shared a community life experience concerning the project’s meaning. In this case, the core of shared meaning was the search of social change through knowledge and culture; and the understanding of literature and articulation as possible paths to that goal. The marginal literature workshops also turned out to be a community life experience in which the shared meaning was constituted chiefly by literary production. The phenomenon of articulation also proved to be an educational opportunity to the extent that it triggered personal changes in the project’s participants, in the cases of both the educator in charge and the students. The latter came to regard themselves as a part of the local community and to hold a more positive outlook on the urban periphery. They came to consider knowledge as a tool for personal and social change. Moreover, they drew near literature, producing and divulging their own poems in school soirées. The person in charge of the workshops, in his turn, “found himself” as an educator. These personal changes affected their communities of origin, enriching both the school and the youth collectives. Keywords School-local community Articulation Community and Education Edith Stein Phenomenology and Education Marginal Literature

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SUMÁRIO

1. Introdução .................................................................................................... 12 

1.1 Trajetória ................................................................................................. 12 1.2 Apresentação .......................................................................................... 16 1.3 Contexto de pesquisa ............................................................................. 18 

1.3.1 Projeto Articulação e Diálogo ........................................................... 19 1.3.2 O bairro ............................................................................................ 20 1.3.3 A EMEF Igarapé ............................................................................... 21 1.3.4 Ações de articulação ........................................................................ 23 1.3.5 A oficina de literatura marginal e o grafite ........................................ 29 

1.4 Objetivos do estudo ................................................................................ 31 2. Edith Stein .................................................................................................... 32 

2.1 Biografia .................................................................................................. 32 2.2 Visão de pessoa em Edith Stein ............................................................. 37 2.3 Comunidade ........................................................................................... 43 2.4 Formação ................................................................................................ 66 

3. Pessoa, Comunidade e Escola .................................................................... 80 4. Referencial metodológico ............................................................................ 91 

4.1 A pesquisa fenomenológica .................................................................... 91 4.2 Caminhos para a emergência do fenômeno ........................................... 98 

4.2.1 Entrevista reflexiva ........................................................................... 99 4.3 Caminhos para a compreensão do fenômeno ...................................... 104 

4.3.1 Narrativa ......................................................................................... 104 4.3.2 Análise compreensiva .................................................................... 108 

5. Constituição da situação de pesquisa ........................................................ 113 5.1 Andanças .............................................................................................. 114 5.2. Narrativa da entrevista com os alunos ................................................. 152 

6. Análise dos participantes do projeto de articulação ................................... 161 6.1 Francisco, diretor da EMEF Igarapé ..................................................... 161 6.2 Alice, coordenadora pedagógica da EMEF Igarapé .............................. 172 6.3 Knup Acrata, educador da oficina de literatura marginal ...................... 181 6.4 Alunos ................................................................................................... 208 

6.4.1 Alunos nas oficinas ......................................................................... 209 6.4.2 Alunos na entrevista ....................................................................... 214 

6.5  Professora de artes .............................................................................. 223 6.6  Professor de português ........................................................................ 224 

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6.7 Coletivos ............................................................................................... 225 7. Uma visão integrada dos participantes: discussão da articulação ............. 233 

7.1 Sentidos desvelados ............................................................................. 234 7.2 O vivido ................................................................................................. 237 7.3 Desafios ................................................................................................ 241 7.4 Repercussões ....................................................................................... 248 

8. Considerações finais .................................................................................. 260 Anexo - Aprovação no Comitê de Ética .......................................................... 283 

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1. INTRODUÇÃO

1.1 Trajetória

O presente trabalho é fruto de meu interesse em estudar e relacionar os temas

comunidade e educação. O interesse pelo primeiro surgiu a partir da constatação da

importância que algumas experiências comunitárias tiveram e têm na minha vida e

formação.

Venho de uma família grande, sou a caçula de cinco irmãos. Uma das lembranças mais

significativas que tenho da infância são os jantares às quintas-feiras na casa de minha

avó paterna. Matriarca italiana, sentava-se à cabeceira de uma enorme mesa rodeada dos

filhos, genros e noras, netos e bisnetos. As conversas circulavam entre histórias de sua

juventude na Itália, rodadas de piadas e narrativas do cotidiano de cada um. Quando o

jantar acabava, todas as crianças iam para “o quartinho do fundo” pular na cama de

mola. Ali aprendi com meus primos e irmãos mais velhos a dar cambalhota, a jogar “gol

a gol” e a cantarolar o hino do Palmeiras. Quando tinha batata doce minha avó vinha

satisfeita me avisar. Trazia no rosto um sorriso de cumplicidade, mostrando que havia

pensado especialmente em mim. Éramos muitos e ela conhecia o gosto pessoal de cada

um.

Ao me casar, a comunidade familiar se ampliou. Meu sogro foi uma figura importante

para mim. Gostava de uma boa prosa. Tinha um interesse especial pelas pessoas e fazia

quem estava ao seu lado sentir-se à vontade como se fosse um irmão. Gostava de contar

histórias, narrar “causos” dos antepassados, da política, dos amigos, da vida do campo.

Narrava a vida. Narrava por que vivia. Em qualquer roda rompia com a cerimônia e

trazia uma naturalidade que me encorajava a viver. Lembro-me de um dia em que fui

visitá-lo no hospital, um pouco antes de ele falecer, quando ele disse ao enfermeiro que

já havia aceitado sua finitude. E de fato era isso que ele me passava. Ele me fez

enxergar e experimentar, através do seu processo de adoecimento e morte, a

naturalidade da condição humana tão ameaçadora. Homem de fé, aceitava sua finitude e

confiava na eternidade. Apontava para o Criador.

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A experiência de fé também me levou a experimentar a dimensão comunitária. Aliás,

foi um dos pontos centrais que me despertou para o tema da comunidade e o interesse

pela fenomenologia. Se tivesse que transformar minha trajetória em uma imagem,

apresentaria a cruz. Por que a cruz?

Fechada em mim mesma, busquei abertura e relação no silêncio contemplativo através

do qual encontrei-me com o Outro-Cristo. Na adoração silenciosa, iniciei o percurso

vertical da cruz. Caminho seguro e confortável do amor incondicional. Minha vontade

no início era permanecer ali. Mas não. Percebo que, quanto mais avanço nesse caminho

de ser-com-Outro, mais ele me impulsiona a querer ser-com-os-outros, a abrir-me para a

mesma entrega e doação que recebo na relação com Deus. O percurso vertical da cruz

me impulsiona a percorrer seu trajeto horizontal, a querer abrir-me para as pessoas que

estão à minha volta acolhendo-as e deixando-me acolher num processo ininterrupto, que

anima e que amedronta, que ora regride, ora avança, mas que aponta para um caminho

de realização pessoal. A sede de ser-com-o-outro – próximo ou distante, pobre ou rico,

judeu ou grego, negro ou branco – é o que me move a querer compreender e ser

comunidade. E essa mesma sede me move a buscar essa compreensão com o auxílio da

fenomenologia, que me desafia a sair da bolha das teorias e preconceitos, a abaixar as

armas da crítica para deixar que o outro se desvele a mim.

Foi também no contexto de fé que vivi a experiência importante de morar no exterior

com meu marido e filhos em uma casa de estudantes universitários. Éramos um grupo

bastante heterogêneo, com pessoas de diferentes países, idades e estados de vida. Nosso

convívio, nem sempre sereno, mas muito rico, me questionava o tempo todo quanto a

hábitos, valores e tradições. Refletíamos em conjunto a respeito do sentido de nossas

ações cotidianas, cada qual impregnada de sua própria cultura. A exigência de abertura

e compreensão do mundo daquelas pessoas me ajudava a compreender meu próprio

mundo. Surgiam questões como: O que é ser uma família brasileira? Como educamos

nossos filhos? Qual o sentido de nossas práticas com eles? E, ao mesmo tempo em que

as diferenças culturais eram evidentes, a experiência comum de estar longe de casa, de

ser estudante, de ser pai e mãe lembrava-nos da semelhança de nossa condição humana,

e nos ajudava a nos colocar no lugar do outro e a nos abrir para o diálogo.

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Foram experiências importantes na medida em que geraram oportunidade de abertura e

encontro gratuito com o outro e comigo mesma. E neste sentido eu me pergunto: Será

que toda experiência comunitária contribui para o crescimento das pessoas que dela

participam? O que sustenta uma vida comunitária? A comunidade possui um papel

educativo?

Nessa mesma época descobri Edith Stein. Meu interesse pelo estudo da Antropologia

Teológica e, na ocasião, pela compreensão do processo de conversão, me fizeram

mergulhar na sua autobiografia. Aos poucos fui descobrindo a riqueza de seus escritos,

a abrangência de seus estudos, que me despertaram interesse tanto pelos temas

abordados (filosofia, psicologia, educação, comunidade etc.), quanto pela possibilidade

de compreendê-los à luz da fenomenologia e de uma visão de ser humano que se

afinava à minha experiência de fé. Animada com a perspectiva de estudar Edith Stein,

voltei ao Brasil com seus livros “embaixo do braço”, esperando uma oportunidade para

tal. Esta oportunidade se deu com o mestrado em Psicologia da Educação e a acolhida

da professora Heloisa Szymanski.

Meu interesse pelo tema da educação começou quando me tornei mãe e ganhou uma

dimensão mais social no âmbito profissional. Trabalhei como psicóloga em uma escola

de educação infantil e esta experiência sensibilizou-me para o papel educativo da

comunidade. No início desse trabalho minha atenção estava focada no processo de

ensino formal, na relação professor-aluno e nos conteúdos dados em sala de aula. Como

psicóloga, era solicitada a “apagar incêndios”, resolver o problema de uma criança “em

crise” ou atender às famílias “difíceis” com o objetivo de mostrar-lhes qual a “melhor

maneira de educar seus filhos”.

Aos poucos, entretanto, meu olhar foi se ampliando e extravasando da sala de aula e das

situações emergenciais. As próprias crianças me mostravam que seu universo era muito

mais amplo e rico do que aquele contexto particular. Lembro-me de um menino em

especial que adorava ficar no pátio ajudando o rapaz responsável pelo jardim e pela

faxina da escola. Gostava de varrer o chão, podar as plantas ou ajudar a organizar o

material para o circuito de psicomotricidade. O Zé – como o chamávamos – era a

referência daquele aluno. Seus encontros pareciam mais significativos para aquela

criança do que qualquer atividade em sala. A partir daí comecei a enxergar uma

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comunidade escolar, com seus mais diversos atores. O Zé tinha um papel educativo

assim como a secretária da escola e todas as outras pessoas que participavam daquele

contexto. Mas as coisas pareciam não ser vistas assim. Cada um exercia seu papel de

modo bastante “compartimentado” e o local da aprendizagem era delimitado pela sala

de aula ou pela presença das professoras. Embora existisse o desejo de se criarem

projetos em conjunto, havia uma grande dificuldade de trabalhar em grupo. E desta

experiência surgiram outras questões: Para que educamos? Como podemos ensinar as

crianças a conviverem, a se abrirem para si mesmas, para o outro e para o mundo se é

difícil viver isto entre os educadores? E, ao mesmo tempo, que tipo de suporte eles têm

no seu dia-a-dia para ajudar nessa integração?

Pensando nisso, iniciamos um grupo semanal com as professoras com o objetivo de

oferecer um espaço onde as dificuldades de relacionamento, de comunicação pudessem

ser discutidas; onde pudéssemos nos conhecer melhor como pessoas, exercer a escuta e

ampliar nosso olhar para o outro, rompendo com as conclusões precipitadas e

preconceituosas das nossas observações cotidianas.

A mesma dificuldade de abertura e integração que eu percebia em mim e dentro da

comunidade escolar fazia-se presente também na atitude da escola em relação à

comunidade familiar, à comunidade do entorno e, de um modo geral, à realidade

externa ao seu contexto particular. Percebia que, muitas vezes na aproximação com as

famílias ou mesmo com outros grupos, a escola posicionava-se como a “detentora do

saber”, numa relação unilateral. Acredito, no entanto, que, assim como os pais não têm

o monopólio da educação dos filhos, a escola isoladamente, fechada em si mesma,

também não consegue dar conta de um projeto educativo com a riqueza e a

complexidade que isto implica. E, mais do que isso, pensando no sentido que a

experiência comunitária teve e tem na minha vida, me pergunto se a abertura da escola

para as famílias e a comunidade do entorno não seria ela própria uma situação

educativa.

A importância do estudo da articulação entre escola e comunidade é percebida por

autores contemporâneos. Guará (2003), por exemplo, discute a necessidade de uma

educação em tempo integral e reconhece a existência de inúmeras iniciativas extra-

escolares de ONGs, empresas, centros comunitários que contribuem para a educação

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brasileira. Entretanto, percebe que falta articulação entre elas e com a escola. Cada

grupo parece agir de forma isolada em um clima muito mais de competição que de

colaboração; e, neste processo, a maior prejudicada é a criança.

Surge então a questão: ao lado da escola e das famílias, como a comunidade do entorno

pode participar do processo educativo de maneira efetiva? Ela tem um papel na tarefa

educativa? Como ela pode se articular com a escola? Quais os ganhos e desafios dessa

articulação? A partir dessa reflexão, surgiu o interesse pelo tema da articulação entre a

escola e a comunidade do entorno e, dentro deste, o interesse específico por uma oficina

de literatura marginal oferecida por jovens dessa comunidade.

A literatura também não foi escolhida ao acaso. A escrita sempre foi para mim um canal

privilegiado de expressão, de abertura, uma forma de sair da casca e me mostrar para o

mundo. Vejo a escrita como uma ponte que me convida a sair do anonimato da massa

para ser. Neste sentido, intuía que a literatura pudesse ter uma contribuição importante

para o tema da educação e da comunidade.

Este foi, portanto, o percurso e o pano de fundo a partir do qual a presente pesquisa se

delineou. Definido o grande tema da articulação, traçamos o seguinte objetivo:

compreender como a articulação entre escola e comunidade do entorno se desvelou em

um projeto de literatura marginal.

Passaremos a seguir para uma apresentação geral da pesquisa.

1.2 Apresentação

O presente trabalho pretendeu investigar o fenômeno da articulação a partir de um

projeto desenvolvido entre uma escola municipal de ensino fundamental (EMEF) e um

grupo de jovens da comunidade do entorno, que coordenaram oficinas de literatura

marginal1 oferecidas aos alunos do Ensino Fundamental II desta EMEF.

1 Segundo Nascimento (2006), a expressão “literatura marginal” se disseminou no cenário cultural contemporâneo para caracterizar a produção de autores que vivenciam situações de marginalidade (social, editorial, jurídica) e estão trazendo para o campo literário os termos, os temas e o linguajar igualmente

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No primeiro capítulo, além de explicitarmos a trajetória da pesquisadora de forma a

ilustrar a emergência do tema de pesquisa a partir de sua experiência vivida,

apresentamos o contexto desta pesquisa tanto do ponto de vista acadêmico, situando-o

dentro de um grupo de pesquisa do programa de pós-graduação em Psicologia da

Educação/ PUC-SP, quanto em relação ao contexto geográfico e social da região

pesquisada. Além disso, procuramos descrever a própria escola e as diversas iniciativas

de articulação que a envolvem, explicitando, com esta descrição, a visão de educação da

equipe gestora e a importância atribuída à abertura para a comunidade do entorno.

Finalizamos esta parte com a apresentação dos objetivos do estudo.

O segundo capítulo foi dedicado à descrição de aspectos da biografia e do pensamento

de Edith Stein, autora de referência para a compreensão do fenômeno em questão.

Dedicamo-nos especialmente a sua visão de pessoa, comunidade e formação, mostrando

a inter-relação entre esses temas e a centralidade da pessoa para a compreensão dos

agrupamentos humanos e das suas repercussões do ponto de vista educacional. A

articulação entre pessoa, comunidade e escola também foi abordada no terceiro capítulo

ao apresentarmos visões de autores contemporâneos a respeito do assunto.

No capítulo quatro, pontuamos os princípios centrais da fenomenologia e descrevemos

o caminho percorrido para a emergência e compreensão do fenômeno da articulação. No

primeiro caso (emergência), destacamos o procedimento da entrevista reflexiva e, no

segundo (compreensão), a utilização da narrativa e da análise compreensiva,

fundamentadas respectivamente em Benjamin (1994) e Szymanski (2004).

O quinto capítulo foi composto pela apresentação das duas grandes narrativas que

serviram de base para a análise da articulação. A primeira, denominada Andanças

descreve o processo de imersão da pesquisadora no contexto de pesquisa e retrata

relatos dos participantes do projeto, observações das oficinas de literatura marginal e

produções dos alunos e educadores, descritas segundo a ordem cronológica dos

acontecimentos. A segunda constituiu-se a partir da entrevista reflexiva em grupo com

os alunos participantes do projeto.

“marginais”. A literatura marginal visa à expressão do que é peculiar aos espaços tidos como marginais, especialmente em relação à periferia. Para aprofundar este tema sugerimos a referida autora.

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O capítulo seis foi dedicado à análise individual dos relatos do diretor, da coordenadora

pedagógica e dos professores de artes e português da EMEF a respeito do projeto, e

também do educador da oficina de literatura marginal. Além disso, apresentamos duas

análises realizadas por grupos: uma dos alunos da oficina, e outra dos “coletivos”

(grupo de jovens do bairro que participaram do projeto).2

No capítulo seguinte, discutimos a articulação traçando pontos convergentes e

divergentes que teceram o percurso dos participantes do projeto. Discutimos também as

repercussões do ponto de vista dos dois grupos envolvidos: a escola e a comunidade do

entorno, representada pelos coletivos. Tal discussão foi elaborada na forma de quatro

grandes constelações, que abordaram respectivamente os sentidos da articulação, a

articulação vivida pelos participantes, seus desafios e repercussões.

Finalmente, o oitavo capítulo abordou as considerações finais da pesquisadora,

apresentadas não como um fechamento conclusivo a respeito da articulação, mas como

uma reflexão que permitiu traçar sínteses, compreensões, sugestões e novos sentidos

para a pesquisadora surgidos a partir deste percurso.

Feita esta apresentação inicial, damos continuidade ao trabalho com a descrição do

contexto de pesquisa.

1.3 Contexto de pesquisa

Esta introdução tem como objetivo apresentar o contexto geral onde a presente pesquisa

foi realizada. Buscamos situar o leitor tanto em relação ao grande projeto que envolve

esta e outras pesquisas (de iniciação científica, mestrado e doutorado), quanto em

relação ao contexto social e geográfico da mesma.

2 O termo “coletivo” está explicado no item 1.3.4 Ações de Articulação. Além disso, o sentido destes grupos ou movimentos culturais de jovens está descrito no Capítulo 6, item 6.7.

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1.3.1 Projeto Articulação e Diálogo

O presente estudo insere-se dentro de um projeto maior intitulado Articulação e

Diálogo, cujo objetivo é acompanhar uma proposta de educação em tempo integral

segundo uma perspectiva dialógica e participativa de ensino, fundamentada na

pedagogia de Paulo Freire e sob o olhar da fenomenologia existencial. Coordenado pela

professora Heloisa Szymanski, a partir de seu grupo de pesquisa em Práticas Educativas

e Atenção Psicoeducacional à Família, Escola e Comunidade (ECOFAM) do programa

de pós-graduação da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC-SP), este projeto visa compreender o processo construtivo de propostas

articuladas entre diferentes contextos educativos de um bairro situado na zona norte da

cidade de São Paulo. Busca compreender como as diferentes instituições que participam

do projeto organizam-se em ações articuladoras para além da sala de aula.

Participam atualmente do Projeto Articulação e Diálogo um Centro de Educação

Infantil (CEI), uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF), o Centro

Comunitário que oferece educação complementar aos jovens da região e os

pesquisadores do ECOFAM.

O presente estudo foi realizado na EMEF participante do Projeto Articulação e Diálogo,

a qual nos referirmos ao longo da dissertação com o nome fictício de EMEF Igarapé.3

Este nome não foi escolhido ao acaso. Buscamos explicitar, através da imagem do

igarapé, um movimento importante da EMEF que veio ao encontro do tema geral da

pesquisa, ou seja, a articulação escola-comunidade local. A palavra igarapé segundo

Houaiss (2004) significa pequeno rio, estreito e navegável, que nasce na mata e deságua

em um rio maior. Igarapé é o caminho das igaras, pequenas embarcações escavadas no

tronco de uma árvore. Os igarapés são braços estreitos de rios ou canais existentes em

grande número na bacia amazônica, caracterizados por pouca profundidade, e por

correrem no interior da mata. Desempenham um importante papel como vias de

transporte e comunicação, servindo como fonte de abastecimento para muitas famílias.

Ao entrar em contato pela primeira vez com o diretor4 e a equipe de coordenação da

EMEF, percebemos um movimento forte de abertura em relação à comunidade local.

3 Ao nos referirmos à EMEF Igarapé, utilizamos os termos “EMEF Igarapé”, “EMEF” ou “escola”. 4 Ao nos referirmos ao diretor da EMEF Igarapé utilizamos o nome fictício “Francisco” ou “diretor”.

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Apesar do pouco tempo de funcionamento, já que suas atividades foram inauguradas no

início de 2009, a escola abriu várias frentes de contato com pessoas e grupos do

entorno, buscando ser canal de comunicação e procurando encontrar meios para integrar

esses diferentes atores no seu projeto educativo. A fala do diretor de que é importante

uma aproximação com a comunidade,5 somada ao grande número de iniciativas

concretas de articulação com a mesma, permite-nos associar esta escola à imagem do

igarapé, pequeno rio capaz de chegar a lugares de difícil acesso, interligando diferentes

realidades. Em suma, a EMEF Igarapé nos remete à ideia de uma escola aberta à

comunidade. Abertura que confirmou o nosso tema de pesquisa e favoreceu a sua

escolha como local rico em possibilidades para a realização da mesma. Com essa

mesma abertura a equipe da EMEF Igarapé nos acolheu e se dispôs a refletir conosco

sobre o processo de articulação da escola com a comunidade e o sentido dessa

experiência para os seus participantes.

1.3.2 O bairro A EMEF Igarapé localiza-se em um bairro de classe média baixa no extremo norte da

cidade de São Paulo. Situada ao pé do morro, é cercada por ruas estreitas com grande

movimento de carros, ônibus, peruas e bicicletas. As ruas são asfaltadas, com exceção

de algumas vielas estreitas, que saem de avenidas ou ruas maiores.

Há uma avenida próxima à EMEF onde vemos um grande número de lojas de carros

usados e também concessionárias, supermercado, agências bancárias e restaurantes

pertencentes a redes de fast food. Ao final dessa avenida, quando nos aproximamos da

rua da EMEF, a paisagem começa a mudar. Seus últimos metros são marcados por um

número maior de árvores que acompanham o meio fio. Aos poucos adentramos em ruas

mais estreitas, com pequenas lojas que vendem mercadorias bem variadas e que

integram o comércio local.

Ao redor da EMEF observamos um grande terreno baldio e casas de tijolo ou alvenaria.

Algumas casas são coloridas, raramente vemos uma parede branca. Predominam cores

em tons pastéis como laranja, amarelo, verde, azul turquesa. Em outras, a falta de

5 Durante nosso primeiro contato, quando conhecemos a escola e a equipe gestora.

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acabamento e de cor nas paredes é compensada pelo colorido das roupas penduradas do

lado de fora. Algumas casas têm mais de um andar e é comum vermos terraços com o

para-peito feito em colunas de concreto pré-moldadas.

O terreno da EMEF é alto e de seu estacionamento ou da quadra externa avistamos o

morro que fica atrás. A cidade vai invadindo o morro... Na parte mais baixa deparamo-

nos com o telhado das casas, com suas caixas d´águas aparentes azuis e cinzas e

também com as rabiolas de pipas que dançam em volta dos fios e postes. Mais ao longe,

à esquerda avistamos alguns poucos prédios e, no alto do morro, uma mata linda, que dá

vida e descansa o olhar.

Os sons que predominam são as vozes das crianças, as brecadas de ônibus e o latido de

cães. Nas ruas mais próximas da EMEF, além das casas residenciais vemos bares,

padarias, centros comunitários, como o Centro da Criança e do Adolescente, e igrejas. O

movimento de peruas escolares é grande, pois muitas crianças vêm de bairros distantes.

1.3.3 A EMEF Igarapé A EMEF Igarapé iniciou suas atividades em janeiro de 2009, com o objetivo de atender

às famílias da redondeza e de bairros pobres mais distantes, cujas condições não

permitem a instalação de uma escola. Seu pouco tempo de vida se faz notar tanto pelas

suas instalações, novas e bem cuidadas, quanto pelo ânimo da equipe gestora, aberta e

disposta a encontrar caminhos para construção de uma escola humana, como a definem

esses profissionais.

O prédio da EMEF é claro e arejado. Ao entrarmos no estacionamento deparamo-nos

com árvores plantadas entre as vagas de carros e outras espalhadas pelo pátio externo.

Essas árvores, ainda em crescimento, estão protegidas com cercas e revelam o cuidado

com aquele ambiente, pensado e mantido para acolher as crianças, suas famílias e a

comunidade de um modo geral.

Entrando na escola, deparamo-nos com um pátio coberto e o refeitório. O movimento de

crianças é grande. É hora da entrada. Enquanto alguns tomam o café da manhã, outros

brincam de pega-pega ou se escondem embaixo da escada. Os mais velhos conversam

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em pequenos grupos. De vez em quando observamos o inspetor chamar a atenção de

algum desses grupos devido a bate-bocas ou empurrões.

As salas de aula são amplas e as séries, divididas por andares. O prédio possui três

andares que podem ser acessados por uma escada ou elevador. No primeiro andar ficam

os primeiros anos e, no segundo, as crianças maiores. Além das salas de aula, a escola

possui sala de leitura, sala de artes, sala multiuso, laboratório de informática, sala de

vídeo, brinquedoteca, pátio externo com quadra poliesportiva, sala de reuniões, sala dos

professores e área de secretaria e Direção. Cada andar possui banheiros feminino e

masculino adaptados para inclusão.

Em 2009, a escola oferecia o Ensino Fundamental Regular de 8 anos6 com capacidade

para atender um total de 1108 alunos, sendo 554 no turno da manhã e 554 no turno da

tarde. Atualmente presta atendimento a 575 alunos, sendo que aproximadamente metade

deles vem de bairros distantes e utiliza o transporte escolar gratuito. No Ensino

Fundamental I, possuía doze turmas de 1° ano; duas turmas de 2° ano, uma de 3° ano e

uma de 4º ano. No Fundamental II, possuía duas turmas de 5° ano, uma de 6°, uma de

7° e uma de 8° ano. O número de alunos por turma variava entre 20 e 30 crianças.

Segundo o diretor da EMEF, suas ações estão pautadas por princípios como promoção

do diálogo, atitude reflexiva, respeito mútuo, organização, participação, saber ouvir,

falar e agir, fortalecer os valores humanizadores e a diversidade, motivar o

compromisso com a aprendizagem de qualidade e desenvolver a consciência ecológica.

Como dissemos anteriormente, a EMEF Igarapé possui uma preocupação com a

abertura e integração à comunidade local. Desde o início de suas atividades, além do

currículo formal, a escola conta com vários projetos de articulação com a comunidade.

Alguns desses projetos já se transformaram em ações concretas e outros estão em

processo de construção ou avaliação das possibilidades de viabilizá-los.

Apresentaremos a seguir os projetos que já estão em andamento a que chamaremos de

“ações de articulação”.

6 Segundo a coordenadora pedagógica, (a qual nos referimos com o nome fictício “Alice” ou pela sigla “CP” ao longo do trabalho), a partir de 2010 a escola passou a oferecer o Ensino Fundamental de 9 anos.

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1.3.4 Ações de articulação O termo articulação é utilizado nesta pesquisa com dois sentidos que se complementam.

O primeiro relaciona-se à visão de comunidade de Edith Stein, que será apresentada no

segundo capítulo deste trabalho. À luz desta visão, compreendemos a articulação entre

EMEF Igarapé e a comunidade do entorno como o encontro entre duas “comunidades”

no sentido steiniano do termo.7 Discutiremos esta visão mais adiante.

Por ora, ficamos com um segundo sentido de articulação que corresponde à

compreensão dos participantes do Projeto Articulação e Diálogo a respeito de uma

“ação articulada”. A definem da seguinte forma:

um encontro dialógico entre pessoas que compartilham objetivos comuns, para a construção de conhecimento com a participação de representantes de idades, gênero, escolaridade, experiências, origens diferentes, envolvendo a criação de vínculos entre protagonistas e compartilhamento de responsabilidade entre eles. Essas ações resultam em ganhos para todos os que dela participam e um sentimento de satisfação pessoal.8

Desde o seu nascimento, a EMEF Igarapé integrou o Projeto Articulação e Diálogo, que

realiza encontros mensais na sede de algumas das instituições participantes. Nesses

encontros, a EMEF Igarapé é representada por seu diretor, uma coordenadora

pedagógica do Ensino Fundamental I, uma coordenadora pedagógica do Ensino

Fundental II (Alice) e uma auxiliar de Direção.

A participação no projeto, bem como as diversas iniciativas que descreveremos a seguir,

ilustram que a abertura da escola para a comunidade local não era apenas um discurso

“politicamente correto” da EMEF Igarapé, mas refletia-se na sua postura desde o início,

através da busca concreta de encontrar caminhos para esse diálogo.

Algumas ações de articulação que integram a EMEF Igarapé decorrem do Projeto

Articulação e Diálogo. Existem seis iniciativas nesse contexto. A primeira é o Projeto

Travessia, um grupo de estudos que ocorre uma vez por semana na própria EMEF e que 7 Utilizamos inclusive o termo “comunidade do entorno” no título desta pesquisa para diferenciá-la da ideia de comunidade apresentada por Edith Stein, discutida no Capítulo 2, item 2.3 Comunidade. 8 Definição apresentada pelos participantes do Projeto Articulação e Diálogo em reunião ocorrida em agosto de 2009.

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reúne as educadoras da CEI e da EMEF Igarapé, juntamente com duas estagiárias do

curso de graduação em Psicologia da PUC-SP a fim de refletirem a respeito da transição

das crianças da CEI para a EMEF.

A segunda ação de articulação é a existência de um grupo de discussão sobre

expectativas em relação à escola. Nesse grupo reúnem-se representantes da CEI, jovens

que dão oficina de capoeira na educação complementar (oferecida pelo Centro

Comunitário) e representantes de alunos, pais e funcionários da EMEF.

Há ainda o Projeto Escuta e o Projeto de Articulação Escola-Família, ambos realizados

em parceria com a PUC. No primeiro, estagiários da Psicologia ficam de plantão por um

período na escola, uma vez por semana, com o objetivo de oferecer uma escuta aos

adolescentes que assim o desejarem. O segundo tem como objetivo criar uma relação

dialógica entre a escola e a família. Para tanto, pesquisadoras da PUC e representantes

da escola (equipe gestora e professoras) e de pais iniciaram encontros para pensar e

preparar futuras ações de articulação entre a escola e a família.

A quinta ação de articulação faz parte do Movimento Atos de Paz que reúne outras

instituições do bairro e promove estudos, denúncias de violências e ações de paz com o

foco nos direitos da criança. E, por fim, a oficina de capoeira, que é oferecida aos

alunos da EMEF Igarapé, acontece dentro da escola e é coordenada pelos jovens do

Centro Comunitário.

Com a finalidade de fornecer uma visão geral dessas ações, no âmbito da articulação,

apresentamos a seguinte ilustração:

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PROJETO ARTICULAÇÃO E DIÁLOGO AÇÕES DE ARTICULAÇÃO DA EMEF IGARAPÉ

Além dessas ações decorrentes do Projeto Articulação e Diálogo, ao longo do ano de

2009 a EMEF Igarapé iniciou outras atividades de articulação com a comunidade do

entorno. O terreno onde a escola foi construída era utilizado anteriormente como local

de ensaio pela escola de samba do bairro. Sabendo desse fato, o diretor da EMEF cedeu

o estacionamento da escola para os ensaios e fez um acordo através do qual a escola de

samba ajudaria a EMEF a cobrir sua quadra, a qual seria cedida como local de ensaio

aos finais de semana. Esse contato com a escola de samba acabou gerando uma nova

ação que é a Oficina de Percussão às sextas-feiras e sábados para os alunos da EMEF.

Há ainda a parceria com o Telecentro, onde as crianças têm aulas de computação; e

parcerias com outras instituições no sentido da utilização do espaço. Como exemplo

desse tipo de ação, temos o Centro da Criança e do Adolescente (CCA), que fica em

frente à escola e que utiliza sua quadra às terças e quintas-feiras, em um período do dia.

Além disso, a EMEF cedeu seu espaço para eventos pontuais como a celebração do

Crisma por uma igreja que fica na rua ao lado da EMEF e a formatura dos alunos de

capoeira

Travessia

Escola-Família

Expectativa em relação

à escola

Escuta

Movimento Atos de Paz

Centro Comunitário

CEI

PUC

EMEF Igarapé

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uma EMEI situada nas proximidades. Essas ações têm em comum o fato de a

comunidade do entorno utilizar o espaço da escola ou os alunos da escola utilizarem o

espaço da comunidade do entorno (como é o caso do Telecentro).

A seguir, ilustramos as ações de articulação com a comunidade do entorno:

AÇÕES DE LONGA DURAÇÃO

Por fim, podemos citar, além das Oficinas de Percussão, mais seis ações de articulação

entre a EMEF Igarapé e a comunidade local, que acontecem dentro da EMEF e que

envolvem diretamente os alunos. São elas: uma escolinha de futebol masculina e

feminina, coordenada por jovens do bairro; o Projeto Leitura para Todos, que consiste

AÇÕES PONTUAIS

EMEF Igarapé

CCA TELECENTRO

Aulas fora da escola

IGREJA Crisma

EMEF Igarapé

EMEI formatura

OFICINA DE PERCUSSÃO

ESCOLA DE SAMBA

ensaios

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na criação de uma biblioteca comunitária, a partir da doação de 1044 livros feita por

uma instituição do Rio de Janeiro (e mais o acervo de literatura marginal trazido pelos

coletivos9 do bairro); o Projeto Sabor das Sombras que, em parceria com a Secretaria do

Verde e do Meio Ambiente, tem como objetivo cuidar do espaço escolar e da redondeza

para um ambiente mais verde e saudável;10 o Espaço Cultural, criado pelos coletivos do

bairro para promoção de atividades culturais com os alunos e com a comunidade local.

Como ações promovidas pelo Espaço Cultural (ou seja, pelos coletivos) em parceria

com a EMEF Igarapé temos o Cineclube Alastre que projeta e discute filmes no

estacionamento da EMEF uma vez por semana à noite (evento aberto aos alunos,

familiares e à comunidade em geral), os empréstimos da biblioteca comunitária, e as

oficinas de grafite e literatura marginal que, por serem o foco de nosso estudo, serão

detalhadas separadamente no próximo item.

A seguir, ilustramos as ações de articulação que envolvem diretamente os alunos:

9 Os coletivos são grupos de jovens que se reúnem com o objetivo de produzir e divulgar a cultura da periferia, buscando com essas iniciativas promover uma transformação social a partir das pessoas, da conscientização de seu papel político. Coletivo é o nome utilizado pelos próprios membros desses grupos e, por isso, utilizaremos também este termo para referirmo-nos a eles durante o trabalho. O sentido desse termo encontra-se descrito de forma mais detalhada no Capítulo 5. Constituição da situação de pesquisa, dentro do item 5.1 Andanças. 10 Este projeto envolveu uma turma de quarta série que arrecadou assinaturas de moradores do bairro que tinham interesse no plantio de árvores em seus terrenos; além disso, os alunos participaram do plantio das mudas doadas à escola pela Secretaria.

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AÇÕES DE ARTICULAÇÃO QUE ENVOLVEM DIRETAMENTE OS ALUNOS

Como podemos perceber na descrição acima, as ações de articulação da EMEF Igarapé

com a comunidade local são muitas e bem variadas. As inúmeras iniciativas

demonstram que a escola teve um movimento inicial de abrir totalmente as portas,

deixando transparecer, com esta atitude, que a forte vontade de construir projetos

comuns e de se mostrar à comunidade com esta marca pessoal era maior do que a

necessidade de estruturar cada uma dessas ações. Isto não significa que não houve um

planejamento ou organização, mas que, no início, o sentido que parecia predominar era

o de se abrir, conhecer, deixar entrar de forma quase caótica, para, em um segundo

momento, organizar. De fato, com o tempo, algumas dessas iniciativas permaneceram e

cresceram na parceria e na articulação, enquanto outras acabaram se restringindo a

projetos pontuais, ou por ser desde o início a sua proposta, ou por compreenderem ao

longo do caminho que os princípios que os norteavam eram diferentes e que não

interessaria uma parceria a longo prazo.

Vemos, portanto, que o campo de pesquisa é amplo e rico. Entretanto, por se tratar de

uma pesquisa de mestrado, optamos em nosso estudo por focar em uma dessas ações e

buscar acompanhá-la de perto, a fim de ter uma visão aprofundada do processo.

LEITURA PARA TODOS

OFICINA DE LITERATURA MARGINAL

OFICINA DE GRAFITE

SABOR DAS SOMBRAS

ESCOLA DE FUTEBOL

CINE CLUBE

EMEF Igarapé

COLETIVOS

ESCOLA DE FUTEBOL

VIZINHOS DA EMEF

SECRETARIA DO VERDE E

DO MEIO AMBIENTE

INSTITUTO DO RIO DE JANEIRO

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Escolhemos como foco do nosso trabalho a oficina de literatura marginal,11 fruto da

articulação da EMEF Igarapé com os coletivos do bairro. Acompanhamos também,

embora não com a mesma proximidade, a oficina de grafite, devido a sua ligação com à

de literatura.

1.3.5 A oficina de literatura marginal e o grafite A oficina de literatura marginal é oferecida aos alunos do Ensino Fundamental II e tem

como principais objetivos, segundo a equipe gestora da escola, incentivar a leitura,

produzir textos, refletir sobre as relações sociais e desenvolver senso crítico nos alunos.

Quem coordena essa oficina é um jovem do bairro, Knup Acrata,12 membro de um

coletivo que trabalha com literatura marginal e que promove saraus e eventos de cultura

periférica na região. Ainda segundo os gestores, os temas estudados nas oficinas dão

ênfase aos princípios definidos pela escola dentro do seu PPEP (Projeto Político Eco-

Pedagógico). O que é discutido na literatura é expresso pelos alunos posteriormente nas

oficinas de grafite, que acontecem duas vezes por semana fora do período de aula, e são

ministradas por jovens do bairro que foram trazidos por Knup Acrata. As duas oficinas

estão interligadas.

A escolha da oficina de literatura como foco da presente pesquisa foi fruto de diferentes

fatores. Em primeiro lugar, este foi o primeiro projeto apresentado pelo diretor da

EMEF o qual nos pareceu bastante entusiasmado com a iniciativa. Na época em que nos

encontramos pela primeira vez (PUC e equipe gestora da EMEF Igarapé), o diretor nos

falou da importância que ele via no fato de a escola se abrir para a comunidade e de

como o coletivo de Knup Acrata estava se aproximando da escola. Tinham participado

da festa junina e naquele momento a equipe gestora estudava a possibilidade de

oferecer-lhes uma sala para realizarem seus encontros,13 além da possibilidade de

criarem uma oficina de literatura para os alunos. O fato de o coletivo ser acolhido

dentro da escola com uma sala para realizar seus encontros parecia-nos já um

movimento inicial importante de articulação. 11 Utilizaremos os termos “oficina de literatura marginal”, “oficina de literatura” ou simplesmente “oficina” ao nos referirmos a esta ação de articulação. 12 “Knup Acrata” foi o nome escolhido pelo jovem para ser referido nesta pesquisa. Este termo significa punk anarquista, e expressa a forma como ele define seu modo de ser. Utilizaremos tanto o nome “Knup Acrata” como a sigla “KA” ao longo do trabalho. 13 Esta sala viria a ser tornar o Espaço Cultural, referido nas ações de articulação.

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Além disso, o fato de ser um trabalho com literatura marginal aliava à articulação a

questão da cultura local e isso fazia da oficina, ao nosso ver, uma situação privilegiada

para o estudo do tema em questão: a articulação entre e a escola e a comunidade local.

Segundo Knup Acrata, a escola denominou roda de leitura as oficinas de literatura

marginal em função de uma intenção inicial de associar este projeto a uma outra oficina

oferecida pelo professor de português que tinha o mesmo nome. Intenção que acabou

não se concretizando por entenderem posteriormente que se tratava de dois projetos

com objetivos distintos. Apesar disso, o nome roda de leitura permaneceu, mas para

Knup Acrata o nome que melhor expressaria o seu trabalho seria produção suburbana,

já que o objetivo não era apenas ler, mas também produzir textos. Conforme afirmamos

anteriormente, escolhemos chamar de oficina de literatura marginal, a fim de explicitar

o diferencial da proposta, colocando em evidência a influência da cultura local no

trabalho desenvolvido. A oficina de literatura acontecia uma vez por semana, sempre às

quartas-feiras, das 7:00 às 9:00h, durante um semestre, e foi coordenada por KA.

Seu coletivo, juntamente com outros coletivos da região, estava utilizando um cinema

abandonado do bairro para realizar seus encontros, mas, devido a alguns problemas,

precisaram desocupar o lugar. Segundo Knup Acrata, o diretor EMEF Igarapé,

interessando-se pelo seu trabalho, propôs que eles viessem para a escola. Ofereceu-lhes

uma sala e, a partir daí, começaram as atividades de oficina com os alunos.

A oficina de literatura marginal não era uma atividade obrigatória. Os alunos (da quinta

a oitava série) interessados em participar se inscreviam. Em um primeiro momento, esta

atividade esteve atrelada à oficina de grafite. Só podia participar do grafite quem

participasse também da oficina de literatura. Por esse motivo, incluímos em nossa

pesquisa as oficinas de grafite.

A atividade de grafite acontecia duas vezes por semana, no período da tarde. Os

educadores responsáveis eram jovens do bairro convidados por KA para assumirem este

projeto com a escola. Ao todo eram cinco grafiteiros que pertenciam a diferentes

crews14 mas que se conheciam por frequentarem um espaço comum onde faziam aulas

de grafite.

14 Nome utilizado pelas pessoas do grafite para se referirem ao grupo a que pertencem.

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Traçado um panorama geral do contexto de pesquisa, descreveremos a seguir os

objetivos definidos na realização da mesma.

1.4 Objetivos do estudo

O tema desta pesquisa é a experiência de articulação entre escola e comunidade do

entorno. Definido o contexto de estudo, traçamos como objetivo geral compreender

como a articulação entre escola e comunidade do entorno se desvelou em um projeto de

literatura marginal.

Aliado a este objetivo geral, apontamos como objetivos específicos:

1) Compreender os sentidos que se desvelaram para os participantes do projeto,

incluindo, além dos sentidos relacionados diretamente ao tema da articulação,

todos aqueles desvelados no contexto de pesquisa pelo diretor da EMEF, pela

coordenadora pedagógica, pelo educador da oficina de literatura marginal e

pelos alunos participantes;

2) Investigar, junto aos professores de artes e português do Ensino Fundamental II,

como foi percebido o projeto e que repercussões foram observadas na sala de

aula quanto ao desempenho acadêmico e atitudes dos alunos participantes;

3) Investigar se houve contribuições do projeto para o processo educacional dos

alunos participantes.

Passaremos agora à apresentação de Edith Stein, autora de referência para a análise

deste estudo.

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2. EDITH STEIN

Este capítulo tem como objetivo expor ao leitor aspectos da biografia e do pensamento

de Edith Stein (1891-1942) que contribuíram para a análise do processo de articulação.

Iniciamos com uma breve apresentação de sua história do ponto de vista da articulação

e, em seguida, passamos à descrição das visões de pessoa, comunidade e formação da

autora.

2.1 Biografia A vida e a obra de Edith Stein são bastante ilustrativas do ponto de vista de nosso tema

de pesquisa: a articulação. Ao abordar sua postura como filósofa, a professora Ales

Bello15 afirma a grande contribuição da autora ao apresentar uma visão integradora da

filosofia. Stein nos ensina a ter uma visão ampla e relacional, criticando a postura de

filósofos que tendem a absolutizar seu ponto de vista. A autora vê a história da filosofia

não como uma galeria de quadros sucessivos, mas como um trabalho comunitário

intersubjetivo. Nos convida a imaginar diferentes autores discutindo em uma grande

roda de conversa, como se fossem pessoas humanas colocadas juntas, ainda que não

estejam no mesmo tempo e espaço. Coloca o pensamento de vários filósofos em diálogo

porque acredita que eles podem conviver; não como uma simples somatória ou pelo

choque de opiniões, mas de forma articulada, aproveitando a contribuição de cada um.

Esta parece ser, de fato, uma caraterística de Edith Stein, ou seja, a capacidade de

articular coisas que parecem opostas; de fazer da multiplicidade riqueza e não ameaça,

amplitude e não fechamento. Ales Bello chama esta característica de harmonia, e a

descreve como a capacidade de encontrar um elemento unitário na dispersão. A autora

afirma que Stein coloca harmonia nos vários temas em que trabalha, como por exemplo

hebraísmo e cristianismo, corpo e alma, feminino e masculino, filosofia e religião e

pessoa e comunidade. Poderíamos acrescentar que esta harmonia, ou, se quisermos, esta

capacidade de articulação, se apresenta de forma bastante concreta e encarnada em

várias passagens de sua vida. Como fenomenóloga, compreende que o conhecimento é

15 No minicurso Introdução ao Pensamento Filosófico de Edith Stein, realizado na Universidade Federal de São Paulo, 12 horas, out. 2010.

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possível a partir de um mergulho nas nossas experiências cotidianas. Como

fenomenóloga, portanto, foi coerente ao articular vida e obra, deixando em ambas a

marca da harmonia.

Edith Stein nasceu em Breslau na Alemanha em 12 de outubro de 1891, no seio de uma

família judia. Era a caçula de onze irmãos, dos quais apenas sete sobreviveram. Seu pai,

comerciante de madeira, faleceu pouco antes de ela completar 2 anos de idade. Em sua

autobiografia (STEIN, 1999), relata a relação estreita que a mãe tinha com ela e atribui

esta proximidade a dois fatores. Em primeiro lugar, Edith nascera no dia da festa

hebraica da Expiação e conta como sua mãe atribuía um grande valor a este fato e fazia

questão de comemorar seu aniversário no dia da festa, mesmo quando ela não coincidia

com a sua data de nascimento. Em segundo lugar, relata como ela significava para a

mãe, “a última herança de seu pai” (STEIN, 1999, p. 67). Conta que estava no colo da

mãe quando o pai se despediu pela última vez ao partir em uma das suas frequentes

viagens para regiões de floresta, onde buscava madeira. Foi achado morto no meio de

um bosque por um carteiro que passava pelo local.

Com a morte do pai, sua mãe assumiu os negócios, indo contra o conselho de amigos e

familiares que, por duvidarem da possibilidade de ela sustentar um comércio tendo

pouco conhecimento do assunto, além de ter uma grande família para cuidar, a

encorajavam a vendê-lo. Trabalhava dia e noite sem descanso com a ajuda dos filhos

mais velhos, que cuidavam das finanças. Ao falar a respeito da mãe, Edith afirma que

“toda a vitalidade e o calor que havia em sua casa vinham dela” (STEIN, 1999, p. 54).

Judia fervorosa, a mãe procurou educar os filhos de acordo com sua crença. Em sua

autobiografia, escrita após a conversão ao cristianismo, Edith descreve detalhadamente

as festas judaicas e com isso revela uma de suas intenções ao escrever, entre os anos de

1933 e 1939, esta obra intitulada História de uma família hebraica. Queria divulgar o

quanto sabia da humanidade hebreia, buscando torná-la conhecida aos estrangeiros e

vendo nesta possibilidade um meio de combater a visão nazista sobre este povo. Stein

relata que a ideia de escrever sobre os hebreus lhe veio com muita força quando, com a

revolução nacional, foi introduzida na Alemanha a luta contra o hebraísmo (STEIN,

1999, p. 23). Vemos nesse ato como Edith Stein aproveitou de sua experiência familiar,

ou seja, do fato de ter sido criada em uma família hebreia, para dar voz a este povo –

seu povo – que sofria a perseguição nazista. Desta forma, Stein articula vida pessoal e

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vida social, propondo com essa articulação dar sua contribuição pessoal à história da

humanidade. Ao fazer isso, ela explicita a articulação entre pessoa e comunidade e

mostra, através da ação, como o indivíduo pode contribuir para a transformação social.

A autobiografia de Stein revela ainda outra articulação que ela experimentou

pessoalmente e que queria evidenciar com seus escritos: a articulação entre hebraísmo e

cristianismo. Mesmo após converter-se ao cristianismo, Stein continua afirmando e

vivendo sua pertença ao povo hebreu. Aponta, em seus escritos, o elemento unitário

entre as duas vivências: Cristo hebreu. Cristo hebreu que celebrou a páscoa com os

discípulos da mesma forma como os hebreus a celebram ainda hoje. Stein afirma que “a

maior parte dos cristãos não sabem que a festa dos pães ázimos, em recordação ao

êxodo dos filhos de Israel do Egito, é festejada ainda hoje da mesma forma como o

Senhor a festejou com os discípulos, quando introduziu o mais sagrado entre os

sacramentos” (STEIN, 1999, p. 63).

Em 1938 Edith fez os votos solenes na ordem carmelita. A entrada no Carmelo foi

interpretada pela família como fuga da situação difícil de perseguição nazista, mas o seu

empenho político demonstrou o contrário. A luta pelo povo hebreu a fez intervir

também no meio católico. Pouco antes de ir para o Carmelo, escreveu uma carta ao papa

Pio XI denunciando os nazistas por se camuflarem com um verniz católico. Lembrou a

origem hebreia do cristianismo e afirmou que a perseguição aos hebreus era também

uma perseguição aos cristãos.

Edith sempre foi curiosa. Tinha um espírito desbravador. Relata que gostava de

caminhar pelo entorno e explorar lugares novos. Essa curiosidade se revelava também

no interesse e dedicação ao estudo, presente desde a infância. Um relato se sua irmã

mais próxima em idade, Erna (STEIN, 1999, p.11), afirma que o irmão mais velho,

Paul, se ocupava de Edith na época em que ela ainda não ia à escola. Paul mostrava-lhe

os livros de literatura e lhe dava aulas sobre Goethe e outros autores, ensinando-lhe

coisas que ela gravava com muita facilidade. Aos 5 anos a mãe decidiu colocá-la na

“educação infantil” e Edith ficou desmotivada por estar mais avançada do que os

colegas. Pediu à mãe para ir à escola e ingressou no meio do ano letivo, ao completar 6

anos. Nesse mesmo relato, Erna conta como na fase da universidade eles tinham um

grupo de amigos que se reunia frequentemente para discutir questões científicas e

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sociais, e como a presença de Edith era fundamental nessas discussões, tanto pela sua

lógica, quanto pelo seu vasto conhecimento no âmbito literário e filosófico (STEIN,

1999, p. 13).

Após graduar-se em língua alemã, história e filosofia, Edith Stein mudou-se, em 1913,

para Göttingen a fim de estudar a fenomenologia sob orientação de Edmund Husserl.

Nessa época, já havia lido o segundo volume da obra de Husserl denominada

“Investigações Lógicas” por indicação de um professor de Breslau. Ao entrar em

contato com a obra de Husserl Stein afirma sua convicção de que “Husserl era o filósofo

do nosso tempo!” (STEIN, 1999, p. 200).

O grande interesse pelos estudos e o gosto pela vida intelectual não a afastaram,

entretanto, de seus compromissos com a experiência prática cotidiana e com as grandes

questões de seu tempo. Durante sua estada em Göttingen, Stein decidiu interromper

seus estudos, mesmo contra a vontade da mãe, para servir como enfermeira na época da

guerra. Foi enviada pela Cruz Vermelha para a Áustria, onde serviu aos doentes de tifo.

Relata como, por serem alemãs, muitas enfermeiras eram mal vistas pela população

local e o hospital raramente recebia contribuições destas pessoas. Conta que, quando

paravam alguém na rua para pedir informação, normalmente eram ignoradas. Seu

comprometimento com as pessoas, sua compaixão pelo sofrimento alheio a tornava

sensível à passividade dos habitantes locais. Relata, por exemplo, que “enquanto nós

[alemãs] cuidávamos dos seus doentes, as meninas de Weisskirchen [cidade onde

estava] íam, todas bem vestidas, ao concerto” (STEIN, 1999, p. 294).

Esta mesma sensibilidade e abertura para o outro a motivaram na escolha de seu tema

de estudo em fenomenologia. Em 1916 defendeu a tese de doutorado na qual abordou o

tema da empatia, mostrando o interesse pela intersubjetividade. Tal interesse surgiu a

partir dos seminários com Husserl em Göttingen. Conta como logo se sentiu atraída

pelo estudo da empatia ao escutar de Husserl que o mundo externo objetivo só poderia

ser conhecido de maneira intersubjetiva, ou seja, por um grande número de indivíduos

que conhecem e que fazem entre eles uma troca cognoscitiva recíproca.16 Husserl

denominava esta experiência intersubjetiva empatia (Einfühlung), mas, segundo a

16 Em outras palavras, Stein compreendeu que, para conhecer a realidade, era preciso compreender o sujeito que a conhece, que se pergunta sobre ela.

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autora, não descrevia em que consistia tal experiência (STEIN, 1999, p. 246). Após o

término do doutorado, Stein mudou-se para Friburgo onde trabalhou como assistente de

Husserl.

Toda a obra de Stein está centrada na compreensão da pessoa humana. Segundo

Mahfoud (2005), Stein faz sua contribuição filosófica como possibilidade de crítica e

enfrentamento dos grandes temas culturais e políticos da época. Após a conversão ao

catolicismo, que ocorreu sob influência da obra de Tereza D´Avila, a autora articulou

sua visão de homem e de mundo à experiência pessoal de fé. Articulou fenomenologia e

escolástica, encontrando no pensamento de Tomás de Aquino e da mística carmelita

(Tereza D`Ávila e João da Cruz) elementos que contribuíram para a sua visão de pessoa

e formação humana. Segundo Mahfoud (2005), Stein assume uma concepção de sujeito

intencional e inter-relacional como caminho para um juízo crítico em relação ao

contexto vigente. Edith Stein, em Psicologia e Ciências do Espírito (1920), reconhece

no ser humano a dimensão da liberdade, sua capacidade de decidir e posicionar-se de

maneira consciente perante a realidade.

Foi a partir desse contexto que a autora desenvolveu sua visão de comunidade,

compreendida como um tipo de agrupamento pautado sobre relações de reciprocidade,

diálogo e solidariedade, onde os sujeitos são tratados como tais e podem crescer e

realizar-se como pessoas. Mais do que uma visão teórica, Edith Stein nos ensina o que é

comunidade através de sua própria vida. Vimos como ela articulou dentro de si as

comunidades hebreia e católica e, posteriormente, expressou uma abertura e

solidariedade radical para com o outro ao oferecer sua morte pelo povo judeu. Antes de

ser executada na câmara de gás, Edith encoraja sua irmã Rosa – que se encontrava na

mesma situação – dizendo: “Vamos, pelo nosso povo!”. Edith Stein morreu em

Auschwitz, em 9 de agosto de 1942.

Veremos agora, em linhas gerais, a compreensão de pessoa desenvolvida por Edith

Stein e, a seguir, a sua visão de comunidade, cuja base encontra-se na concepção de

pessoa.

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2.2 Visão de pessoa em Edith Stein

A visão de pessoa em Edith Stein é apresentada neste item tendo como base a obra A

estrutura da pessoa humana e um curso ministrado pela professora Angela Ales Bello

na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto em 2009, cujo tema era a referida obra.

A estrutura da pessoa humana17 é fruto de um curso que Edith Stein deu no Instituto de

Pedagogia de Münster, onde lecionava Filosofia da Educação. Diferentemente da

Pedagogia, cujo objeto de estudo são os processos educativos, a Filosofia da Educação

pergunta-se sobre a definição de educação. O que quer dizer educação? Esta era a

pergunta de base de seu curso e, para abordá-la, a autora afirma a necessidade de partir

de um processo de reflexão anterior e perguntar-se sobre quem é educado, ou seja, a

quem a educação se destina.

Segundo a autora, toda ação educativa é acompanhada por uma visão de mundo e de ser

humano, ou seja, por uma metafísica. Stein acha necessário explicitar esta visão para

não perder de vista o todo. Para tanto, ela propõe um colóquio entre as disciplinas

Psicologia e Pedagogia e a Filosofia. Para Ales Bello, esta é uma grande contribuição da

autora já que, segundo seu ponto de vista, a importância desta fundamentação

metafísica é deixada de lado por aquelas disciplinas. Ales Bello pensa que as disciplinas

estão fechadas em seu próprio ângulo e que acabam sendo reduzidas a técnicas práticas

e imediatistas. Ela afirma que a parte técnica é necessária mas precisa estar

contextualizada na visão de ser humano.

17 A obra Der Aufbau der menschlichen Person foi traduzida para o italiano como Estrutura da Pessoa Humana, embora o título original não usasse o termo “estrutura” e sim “constituição”. A palavra Aufbaun significa uma construção que tem muitas partes e que deve ser analisada, daí a ideia de constituição. Apesar da tradução utilizar o termo estrutura por motivos didáticos, preferimos utilizar no presente trabalho o termo “constituição”, por achar que ele é mais fiel ao sentido da investigação fenomenológica. O termo “estrutura” passa uma ideia de algo rígido e acabado, o que não condiz com a posição de Edith Stein em relação à sua visão de pessoa. A pessoa é sempre estudada a partir da sua experiência, não há um quadro estrutural rígido sobre ela, mas uma descrição vivencial, que nos passa uma ideia de dinamismo, de movimento. Além disso, concordando com Husserl, Stein deixa claro que não tem a pretensão de esgotar a compreensão da pessoa, mas afirma a sua inesgotabilidade. Segundo Ales Bello, Husserl, ao falar sobre a interioridade do ser humano, cita Heráclito, que afirma que qualquer caminho que se percorra jamais chegará a encontrar os confins da alma, de tão profundo que é seu fundo. Para o autor, qualquer fundo que se alcançe reenviará sempre a outros fundos, qualquer horizonte que se descortine reenviará a outros horizontes. Segundo Ales Bello, é por isso que a análise da pessoa não pode ser feita de uma vez por todas. Somos forçados a recomeçar do início, na tentativa quase sempre falida de dar uma estrutura definitiva. Trata-se de contatos, que ora de um lado, ora de outro, aproximam-se do fenômeno da interioridade do ser humano, evidenciando aspectos válidos, identificando estruturas, mas nunca esgotando o conhecimento. Delinear um mapa completo desse território acidentado não seria possível (ALES BELLO, 2007).

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Para responder à questão de como o ser humano é constituído, Stein utiliza-se do

método fenomenológico husserliano. Através da redução transcendental coloca-se

diante do ser humano como um fenômeno que se manifesta a ela. Aproxima-se deste

fenômeno não apenas através do contato com outros seres humanos, mas principalmente

a partir de um mergulho em si mesma. Ela afirma:

Se queremos saber o que é ser humano, devemos nos colocar de modo o mais vivo possível na situação onde fazemos a experiência do seu ser, ou seja, daquilo que experimentamos em nós mesmos e o que experimentamos no encontro com os outros. (STEIN, 2000, p. 66)18

Faz um trabalho de escavação interior que lhe permite compreender a essência do ser

humano, ou seja, sua constituição interna. A partir desta análise descobre que temos

muitas experiências e começa a observar como estas experiências são vividas por nós.

Chama a experiência vivida de vivência. Percebe que há diferentes tipos de vivências e

utiliza-se de exemplos de experiências concretas para descrevê-las, pois toda a sua

análise parte da experiência.

A título ilustrativo, serviremo-nos de um exemplo trazido pela professora Ales Bello

durante o curso. Estou passeando na rua e vejo um vestido na vitrine de uma loja. Ao

ver o vestido, posso gostar ou não dele, ou seja, ele pode me causar atração ou repulsa.

Caso eu goste do vestido, avalio se tenho condições de comprá-lo. Após esta avaliação,

decido se o compro ou não.

Na experiência relatada acima, podemos identificar os tipos de vivências descritos por

Stein. Em primeiro lugar percebo o vestido. Para perceber uma coisa, precisamos do

corpo. Esta é, portanto, uma vivência corporal. Após perceber o vestido, sinto-me

atraída ou não por ele. Esta é uma função da psique e, portanto, uma vivência psíquica.

Em seguida me pergunto se posso comprar aquele vestido. Realizo com este ato uma

avaliação intelectual. E, por fim, tomo a decisão de comprá-lo ou não, realizando um

ato da vontade. Tanto a avaliação intelectual como a tomada de decisão (vontade) são

funções de uma dimensão que Stein chama de espiritual. São, portanto, vivências

espirituais.

18 Tradução nossa.

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O exemplo citado nos mostra, portanto, vivências de diferentes níveis: corporais,

psíquicas, intelectuais e volitivas. Ou, se preferirmos, corporais, psíquicas e espirituais.

Segundo Stein, cada um destes tipos de vivência corresponde a uma dimensão

constitutiva do ser humano. Assim, na visão da autora, o ser humano é constituído de

corpo, psique e espírito.19 O corpo é responsável pelas vivências corpóreas como a

percepção, o registro de sensações e os instintos em geral; à psique correspondem as

vivências psíquicas como reações de atração ou repulsa, emoções e sentimentos; e ao

espírito, as vivências espirituais ligadas ao intelecto e à vontade tais como decisões,

reflexões, avaliações e tomadas de posição consciente.

Apesar desta diferenciação em relação às dimensões, Stein afirma que há uma unidade

profunda entre elas. Ao analisar o aspecto corporal do ser humano, por exemplo,

percebe que o corpo não é simplesmente matéria, mas sim um organismo vivo, que se

move, sente etc. É impossível separar o corpo deste seu movimento. Corpo e psique

andam juntos e a esta unidade a autora denomina corpo vivente.20 Já a unidade psique e

espírito a autora chama de alma.

Tanto o corpo vivente (corpo e psique) quanto o espírito possuem uma força que os

impulsiona a viver. Edith Stein chama-as respectivamente de força vital sensível e força

vital espiritual. Estas forças se influenciam mutuamente e nos ajudam a compreender a

unidade entre as dimensões. A nossa disposição ou cansaço para realizar alguma ação

depende da força vital sensível. Já a força vital espiritual diz respeito à motivação que

temos para realizar uma ação. Ela pode influenciar a força vital sensível quando, por

exemplo, estou cansado mas tenho algo que considero muito importante e então

encontro a força para realizar.

19 A palavra “espírito” é tradução do alemão Geist, e significa tudo aquilo que é especificamente humano. Ao analisar as diferentes dimensões, Stein afirma que o ser humano é um microcosmos, ou seja, ele contém em si todos os elementos presentes na natureza: elementos do reino vegetal, elementos do reino animal e elementos especificamente humanos. Não aprofundaremos este tema no presente trabalho, mas ele pode ser encontrado na obra Estrutura da Pessoa Humana. 20 Esta expressão é uma tradução de Leib (do alemão). O significado de Leib deriva do fato de que o corpo próprio enquanto tal é um corpo vivente, um corpo ligado a um princípio vital (STEIN, 1998, p.126). A noção de organismo em relação ao corpo está ligada à ideia de que sua forma externa é formada desde dentro. A forma interior é qualitativamente determinada, ou seja, é uma espécie. Isto vale para todos os seres vivos (vegetal, animal) e não apenas para o ser humano. Como exemplo, Stein cita o embrião, que tem uma potencialidade interna que vai para fora. Esta afirmação vai contra a mentalidade positivista que dizia que todo o universo é uma máquina. Não. O universo é um organismo que tem diferenças qualitativas. Há elementos distintivos.

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A unidade entre as dimensões constitutivas do ser humano pode ser percebida também

através do exemplo do vestido acima citado. Ele nos mostra como a experiência humana

é marcada por todas estas dimensões, que acontecem concomitantemente e exercem

influência umas sobre as outras. Retomando o exemplo, em primeiro lugar, podemos

imaginar que eu me sinta atraída pelo vestido, avalie que possuo o dinheiro para

comprar e decido comprá-lo. Neste caso, a dimensão psíquica e espiritual estão em

sintonia. Mas poderia acontecer, também, que eu gostasse tanto do vestido que, mesmo

avaliando que não teria dinheiro suficiente, resolvo fazer uma dívida e comprá-lo. Neste

caso, o psíquico teve uma atração tão forte que o intelecto e a vontade seguiram a

psique.21 Podemos imaginar também uma outra situação onde eu goste do vestido mas,

ao avaliar que não possuo o dinheiro suficiente, decido não comprá-lo. Neste caso, a

psique ficou subordinada à dimensão espiritual.

Através das vivências espirituais, ou seja, da capacidade de refletir, avaliar, decidir, o

ser humano pode colocar em prática a sua liberdade e responsabilidade. Quem realiza

essas vivências é a pessoa espiritual, que Edith Stein chama de eu. O eu não está em um

lugar físico, ele pode circular por toda parte, conferindo unidade ao ser humano.

Podemos, por exemplo, sentir frio nos pés. Esta é uma experiência. Mas, além de sentir,

esta sensação pode se tornar objeto de minha reflexão. Posso, com minha mente,

percorrer meus pés, passar por cada dedo e constatar as minhas sensações. Neste caso, o

eu encontrar-se-á nos pés. Portanto, sua localização é determinada de acordo com a

vivência, com seu objeto de reflexão. O eu é a consciência, que contém todas as

vivências encadeadas em uma unidade que Stein chama de fluxo de vivências.

Na tentativa de clarear melhor essas noções, podemos pensar da seguinte maneira:

através da reflexão – que é uma vivência espiritual – as nossas experiências cotidianas

se tornam vivências. Por exemplo, quando conversamos com alguém ou quando

escrevemos um bilhete, na maioria das vezes realizamos essas experiências sem nos

21 Segundo afirmação da professora Ales Bello durante o curso (), isto não quer dizer que os elementos psíquicos sejam negativos. A maioria deles são neutros. O instinto não é bom ou mal. O é em função de uma avaliação global de caráter intelectual e volitivo. O problema é se tomo uma decisão pela atração e depois isto me causa um dano. Não respeito a mim mesmo e me coloco em uma situação de dificuldade. Há também casos patológicos, como no caso de uma depressão grave, em que a vontade não chega a ter uma autonomia. Neste caso, a liberdade e a responsabilidade estão comprometidas.

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darmos conta do que estamos fazendo, ou seja, não pensamos: agora estou conversando

com tal pessoa, ou agora estou escrevendo um bilhete. Mas, a partir do momento em

que reflito sobre estas experiências, então tomo consciência de tê-las vivido ou de as

estar vivendo, capto o seu sentido e elas se tornam uma experiência vivida e, portanto,

uma vivência. Assim, uma experiência se torna vivência quando refletimos sobre ela,

quando tomamos consciência dela. Por isso, o eu – ou a consciência – é o local das

vivências. É nele que encontramos o fluxo de vivências; uma unidade indivisível onde

as vivências se unem umas às outras através da motivação. Quando estamos diante de

uma coisa física, por exemplo, e vemos apenas uma parte desta coisa, consideramos

verdadeiro o fato de que existem outras partes. Esta suposição pode nos motivar a

realizar um movimento livre de ir verificá-la com a nossa própria percepção. Um outro

exemplo de união entre vivências através da motivação é quando colhemos um valor e

este valor motiva o nosso querer e o nosso agir (STEIN, 1999b, p. 13). Vemos, portanto,

que a motivação une as vivências de forma que uma vivência só é possível em virtude

da vivência anterior a ela.

... de fato não se trata de uma simples união como aquela de fases que se sucedem contemporaneamente ou uma seguida da outra..., nem de uma relação associativa de vivências; trata-se de uma vivência que provém de outra, de uma vivência que se cumpre sobre a base de outra, pelo querer da outra. (STEIN, 1999b, p. 73)22

Stein diferencia a motivação de uma modalidade diferente de conexão que é a

causalidade. Enquanto a primeira é compreendida como uma modalidade própria da

vida espiritual e, portanto, relacionada às vivências intencionais do eu, a segunda diz

respeito à vida sensível que comporta as naturezas física e psíquica. Esta distinção é

importante porque nos permite compreender o modo como as forças vital sensível e

vital espiritual de uma pessoa podem oscilar de acordo com as situações, e como uma

passagem de forças é possível de um indivíduo a outro, ou ainda – como veremos mais

adiante – de uma comunidade a outra. Na natureza física, por exemplo, a força se

manifesta através dos acontecimentos. Na psique, a força é colhida através do modo de

22 Tradução nossa.

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viver as vivências que Stein chama de estados vitais.23 Os estados vitais são estados

psíquicos dos indivíduos que dão uma coloração e uma intensidade específica ao viver.

Assim, retomando a constituição básica do ser humano na forma como esta se desvelou

para Stein a partir da análise fenomenológica da experiência humana, temos que a

pessoa possui vivências de diferentes tipos e que cada um destes tipos revela uma

dimensão do ser humano. Este é, segundo a autora, uma unidade constituída pelas

dimensões corpórea, psíquica e espiritual. À unidade corpo e psique, a autora denomina

corpo vivente. Já a unidade psique e espírito é compreendida como alma. Além disso, as

vivências espirituais são realizadas pelo eu, consciência que contém todas as vivências,

que circula por todas as dimensões e lhes confere unidade. É através do eu que temos

acesso às vivências. É ele quem nos diz que há diferentes dimensões. Poderíamos

ilustrar esta descrição da seguinte maneira:

Corpo Corpo Vivente

Alma Psique – força vital EU = Consciência

Espírito (Intelecto e Vontade) Fluxo vivências

Esta constituição nos fala daquilo que é comum entre todas as pessoas. Entretanto, Stein

afirma que é impossível compreender o ser humano se não colhermos a sua

singularidade. Quando encontramo-nos com uma pessoa, não nos encontramos com

suas características universais. Encontramo-nos com alguém que possui um nome,

alguém único, com uma identidade pessoal. Segundo a autora, esta identidade encontra-

se no mais profundo da pessoa, no centro da alma, em um núcleo que ela denomina

alma da alma.24 Neste núcleo encontramos um tipo de marca distintiva, uma

identificação ontológica que nos permite dizer que há uma identidade inconfundível, ou

seja, que faz com que uma pessoa se torne aquela pessoa.

23 Stein diferencia os estados vitais dos sentimentos vitais. A consciência de um estado vital, o seu ser vivido – vivência – é um sentimento vital. O estado vital é, portanto, aquilo que se vive, e o sentimento vital é a consciência desta experiência, ou seja, a vivência (STEIN, 1999b, p. 56). 24 A palavra utilizada pela autora para designar este lugar é Kern, que significa centro, ponto de encontro em torno do qual giram todas as coisas, todas as atividades, todas as dimensões de um ser humano.

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O núcleo nos acompanha desde o nascimento e contém as indicações das

potencialidades que cada um pode desenvolver. Entretanto, este desenvolvimento não é

automático. Podemos viver ou não de acordo com o núcleo, ou seja, podemos viver

respeitando a nossa identidade própria, ou podemos viver, por exemplo, seguindo

modelos externos a nós e alienando-nos daquilo que nos é mais próprio e pessoal. A

compreensão desta dinâmica é muito importante para a ideia de formação desenvolvida

por Edith Stein. Aprofundaremos este tema mais adiante, no item sobre formação.

Apresentamos no momento apenas as contribuições necessárias para a compreensão da

visão de comunidade da autora, a qual abordamos a seguir.

2.3 Comunidade

A palavra comunidade pode remeter cada leitor a um sentido diferente. Isto porque

comunidade é um termo polissêmico, que possui diferentes significados. Podemos

pensar por exemplo em um conjunto de países como a Comunidade Europeia. Podemos

pensar também em comunidade indígena ou em uma população de determinada região

ou bairro (comunidade do entorno, como nos referimos no título desta pesquisa).

Comunidade pode nos remeter ainda a um conceito atual dentro da educação que é o de

comunidade de aprendizagem, que grosso modo definimos como um conjunto de

instituições que possuem um papel educativo e que atuam de forma articulada. Podemos

pensar também na família como uma comunidade, em comunidades religiosas e, em

última instância, na grande comunidade que é a humana. Estes exemplos não esgotam o

sentido de comunidade, mas servem para ilustrar o fato de que este é um conceito

polissêmico e que antes de abordá-lo faz-se necessário deixar claro qual o sentido

utilizado por nossa autora de referência.

Para Edith Stein, os exemplos acima citados podem ou não ser comunidades. Podemos

ter famílias que se tornam comunidades e outras que são simplesmente um grupo de

pessoas unidas por laços sanguíneos. Isto porque Stein compreende a comunidade não

pela sua forma externa física ou jurídica, mas a partir das relações entre as pessoas. Um

agrupamento de pessoas é chamado de comunidade, se as relações entre seus membros

possuem determinadas qualidades que expressam um ideal de convivência humana. A

visão da autora é fruto de uma investigação fenomenológica cujo objeto (Sachen) é a

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estrutura da vida associativa. A compreensão da comunidade depende, portanto, da

compreensão de seus membros, das pessoas que dela participam.

O fato associativo humano, na verdade, está substancialmente ligado a uma visão personalista que, uma vez descoberta a nível individual, é em seguida redescoberta nos laços intersubjetivos ou interpessoais. (ALES BELLO, 2000, p. 164)

No item anterior, ao abordarmos a visão de pessoa, vimos que Stein reconhece

diferentes tipos de vivências. É a partir da análise das vivências25 dos membros de um

grupo que Stein compreende os agrupamentos humanos. Toda vivência tem um

conteúdo, um objeto, ou seja, ela é uma vivência de “algo”, que pode ser uma percepção

interior – como no exemplo dos pés citado no item anterior – ou algo externo como um

acontecimento, uma coisa, uma pessoa.

Para compreender os agrupamentos humanos, Stein se volta para as vivências cujo

conteúdo são as pessoas, ou seja, para as vivências de um indivíduo em relação aos

outros. Ela se pergunta a respeito do que acontece quando os seres humanos se

encontram, e reconhece neste contexto uma vivência psíquica particular chamada

empatia.26 Para uma melhor compreensão desta vivência, Edith Stein nos apresenta o

seguinte exemplo: “Um amigo me procura e me diz que perdeu um irmão. Eu me dou

conta da sua dor. O que é este dar-se conta?” (STEIN 1998, p.71). A autora investiga o

que é este “dar-se conta”, sem se preocupar com as vias que a tornam possível. Ela

busca a essência da vivência empática, compreendida como uma vivência que nos

permite ter acesso à subjetividade alheia.

A empatia nos permite reconhecer quando estamos diante de um ser humano como nós.

Quando nos deparamos com algo fora de nós, pela empatia podemos diferenciar se se

25 Husserl busca a compreensão do sujeito através da análise dos atos da consciência. Os atos, chamados de Erlebnisse na língua alemã, podem ser traduzidos como “o que é vivido por mim” ou “vivência”. Os atos são vivências que o ser humano realiza (tanto do mundo externo como interno) que são registrados pela consciência. Dentre essas vivências, podemos citar a percepção, a memória, a lembrança, a imaginação, a reflexão etc. Essas vivências são comuns a todos os seres humanos, são potencialidades humanas que o autor chama de “estrutura transcendental”, no sentido de que a pessoa já possui essas estruturas e, portanto, elas transcendem o objeto (ALES BELLO, 2004). Todas as vezes que utilizarmos a palavra vivência estaremos nos referindo ao sentido aqui apresentado. 26 A palavra empatia é uma tradução do vocábulo alemão Einfühlung, o qual contém em si a raiz do verbo Fülhen, que significa “sentir”, captar de modo imediato, antes de qualquer elaboração racional (ALES BELLO, 2007).

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trata de uma “coisa”, ou de um ser humano. Segundo Ales Bello, a empatia pode ser

reconhecida nas crianças ao observarmos a sua mudança de comportamento diante de

um gato, por exemplo. As reações de medo ou fascínio que percebemos nas crianças

pequenas diante dos animais nos falam da sua possibilidade de reconhecer que aquilo

que está diante delas não é um semelhante, mas um ser de outra espécie.27

A vivência empática é uma experiência imediata que acompanha a vivência da

percepção e que nos permite não apenas reconhecer um ser humano, mas saber o que

ele está vivendo. Ela é intuitiva, é um “sentir o outro”, possível graças a uma

constituição comum a todos os seres humanos. Todos percebem, recordam, sentem,

refletem. São vivências comuns porque fazem parte da constituição do ser humano e,

portanto, podem ser reconhecidas no outro. Reconhecê-las no outro, entretanto, não

significa vivenciá-las da mesma forma, pois a forma como se vivencia é única, pessoal.

A vivência é comum, mas adquire uma coloração singular em cada pessoa.

Quando encontramos alguém que está alegre, por exemplo, compreendemos pelos seus

gestos, pela sua expressão, que está experimentando o sentimento de alegria. Pela

empatia, reconhecemos a alegria no outro. Não se trata de alegrar-se com ele (o que

pode ocorrer também), nem de alegrar-se como ele, mas de reconhecer nele um

sentimento específico, uma experiência humana comum que é a experiência da alegria

(ALES BELLO, 2000).28

A empatia é, portanto, uma primeira vivência que nos aproxima do outro, que nos

permite reconhecê-lo como um semelhante, não apenas pelas características físicas, mas

pela possibilidade de tomar conhecimento da sua experiência vivencial. É uma vivência

espontânea, que ocorre independente da nossa vontade; e neutra, no sentido de que

simplesmente reconhecemos um outro sem nenhum juízo de valor. Após reconhecer

27 Este exemplo foi apresentado pela professora Ales Bello durante o curso A estrutura da pessoa humana, promovido pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, 30 horas, 2009. 28 Ales Bello (2000, p. 160) explica a distinção entre viver a alegria do outro (ou como o outro), e a vivência empática. No primeiro caso, a vivência (erlebnis) da alegria é uma vivência originária, vivida em primeira pessoa. Já no segundo caso, o conteúdo da vivência é a alegria experimentada pelo outro e não uma alegria própria. A conotação afetiva até pode acompanhar a vivência da empatia, fazendo com que a pessoa também sinta alegria com o outro, mas não é esta a essência da empatia. Esta distinção é importante porque mostra que na vivência da empatia não há fusão entre as pessoas, ou seja, permanece a distinção entre os sujeitos. Através dela as pessoas podem se reconhecer e comunicar mutuamente, mantendo sua própria individualidade.

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este outro, poderemos nos sentir atraídos ou não em uma reação de simpatia ou antipatia

e, então, nos posicionar assumindo uma atitude de fechamento ou abertura em relação a

ele.

O grau de abertura dos indivíduos em relação aos outros define as formas como suas

vivências são partilhadas, acolhidas, manipuladas, o que, por sua vez, definirá um tipo

específico de agrupamento social. Vimos que o ser humano tem uma constituição

complexa, composta pela corporeidade, pela psique e pela dimensão espiritual. Na

constituição de uma associação humana, todas estas três dimensões estão envolvidas; ou

seja, para conhecer o outro, preciso vê-lo, tocá-lo, ouvi-lo (corporeidade); este

conhecimento é seguido de uma reação psíquica de atração ou repulsa (psique) e de uma

atividade intelectual voluntária (espírito) da qual dependerá o meu grau de abertura29

em relação a esta pessoa.

Edith Stein identifica três tipos de agrupamentos sociais: a comunidade, a sociedade e a

massa. Cada um deles é compreendido de acordo com a qualidade das relações

estabelecidas e a ênfase maior que se dá às dimensões corpórea, psíquica e/ou espiritual

da pessoa. Apesar desta distinção, Stein aponta para uma inter-relação entre os

diferentes tipos de agrupamento e afirma que não existe uma forma de associação pura.

A massa é um conjunto de indivíduos isolados que se comportam da mesma maneira,

como uma forma de reação coletiva fundada na excitabilidade da psique individual. É

um tipo de associação que se detém no nível corpóreo-psíquico, ou seja, no nível das

reações. Na massa não há motivação30 nem uma tomada de posição consciente. Ao

abordar o tema da massa, Stein cita Simmel, que afirma:

29 Stein compara a vida psíquica com a vida espiritual e afirma que a realidade psíquica acontece de forma isolada, é individual, e que as relações intersubjetivas só são possíveis graças à força vinculante do espírito. “As formações sociais, cujos elementos são indivíduos psicoespirituais, são determinadas na sua constituição tanto pelo caráter psíquico dos seus componentes quanto pelos espirituais, mas deve a sua possibilidade de existência somente à força vinculante do espírito. Se a vida espiritual fosse cancelada do mundo, a realidade psíquica se dissolveria em uma série de mônadas psíquicas” (STEIN, 1999b, p. 312). Ainda segundo a autora, o espírito é abertura em direção ao mundo e à subjetividade alheia. Uma abertura que pertence à condição de vida originária do indivíduo espiritual e que nos permite afirmar que a essência social é tão original quanto aquela individual. 30 Stein faz uma diferenciação entre causalidade e motivação. A causalidade é fruto de uma reação psíquica enquanto a motivação tem origem espiritual (STEIN, 1999b).

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No interior de uma multidão de homens que estão em contato sensível entre eles (...) passam e se consomem inúmeras sugestões e influxos de excitação que tolhem da pessoa o silêncio, a autonomia de reflexão e de ação, de forma que, dentro de uma multidão, os impulsos mais fugazes crescem até se tornarem uma avalanche a favor das impulsividades mais exageradas, enquanto as funções superiores, refinadas e críticas são como que suspensas. (SIMMEL apud STEIN,1999b, p. 268)

Por isso, normalmente a massa necessita de um guia que lhe aponte o que fazer. Ela não

tem um projeto próprio, mas serve a um projeto alheio, que pode ser tanto positivo

como negativo, dependendo das intenções de seu líder. Do ponto de vista político, isto

pode ser perigoso já que as pessoas na massa ficam à mercê de um grupo dominante. No

caso do nazismo, por exemplo, temos um modelo negativo de manipulação, uma forma

de totalitarismo através do qual quem comanda é hábil para conduzir a massa através da

gratificação psíquica. Mas podemos pensar em outras situações nas quais a atuação do

líder sobre a massa seria positiva. Utilizando um exemplo trazido pela professora Ales

Bello,31 podemos imaginar uma sala de aula cheia onde, de repente, se escuta o alarme

de incêndio. As pessoas entram em pânico e começam a gritar e a se empurrar para

tentar sair da sala. Este clima geral de medo vai contagiando todos até que uma pessoa,

utilizando sua capacidade intelectual voluntária, começa a acalmar as outras e a

organizar a saída em fila, sem correria etc. Nesse caso, essa pessoa atuou com uma

liderança positiva.

A massa significa, portanto, pessoas juntas, sem uma forma especificamente própria.

Todos se comportam do mesmo modo, sem uma vida comum. Sua forma é dada por

quem consegue se ocupar dela e utilizá-la segundo um projeto próprio (Edith Stein

referida em ALES BELLO, 2006, p. 72).

A segunda forma de agrupamento é a sociedade. Segundo Stein, a sociedade possui uma

vida, ou seja, possui um princípio e um fim, que dependem de um ato voluntário de seus

membros. Ela começa com um ato de fundação e termina ou quando o seu fim é

alcançado ou quando há uma decisão voluntária de dissolvê-la.

31 De acordo com as anotações pessoais da autora durante o curso ministrado por Ales Bello, A estrutura da pessoa humana, 2009.

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A sociedade não cresce como um organismo, ela lembra mais uma máquina projetada e construída para um determinado fim ao qual ela se adéqua com progressivas melhoras, que se obtêm modificando algumas partes ou introduzindo novas (STEIN, 1999b, p.271).

Neste sentido, um membro da sociedade pode ser substituído por outro. A vida da

sociedade independe de seus membros, pois ela pode continuar a existir (do ponto de

vista jurídico), mesmo que as pessoas não participem mais dela.

Na sociedade a dimensão espiritual está presente, já que as pessoas escolhem estar

juntas. É uma união pessoal e espiritual específica porque as pessoas se relacionam em

função de objetivos previamente definidos. Seus membros desempenham um “papel”

dentro do grupo, se colocam um em face ao outro de modo objetivo e, portanto, se

consideram mutuamente enquanto objetos, ao passo que na vida comunitária cada

membro é e permanece um sujeito (ALES BELLO, 2000).

Como afirmamos anteriormente, apesar das especificidades de cada agrupamento, há

uma inter-relação entre eles e, em todos, a pessoa possui um papel central. Stein

compreende, por exemplo, que a comunidade é a base da sociedade, ou seja, que não é

possível a existência de uma sociedade sem que ela seja, até certo ponto, uma

comunidade. A autora exemplifica esta afirmação através da figura do demagogo. Um

demagogo que queira sujeitar uma multidão aos seus objetivos pessoais precisa

conhecer a subjetividade das pessoas pertencentes àquela multidão. Para poder se

aproximar da interioridade alheia ele precisa abrir-se a ela, ao menos na medida

necessária para alcançar seus objetivos.

Não se pode fazer do sujeito como um objeto sem antes tê-lo aceitado pelo menos uma vez como sujeito. Não é possível conhecer os meios com os quais se pode tocar uma multidão sem ter familiaridade com a sua vida interior e isto se consegue apenas abrindo-se com ingenuidade. (STEIN, 1999b, p.160)

Vemos, portanto, que a pessoa e a comunidade são a base da sociedade. Ao mesmo

tempo, as comunidades precisam de uma sociedade para subsistir32. Stein exemplifica

esta relação entre comunidade e sociedade a partir da análise fenomenológica do

32 Esta ideia permite afirmar que a sociedade não é uma degeneração da comunidade (ALES BELLO, 2000, p. 171).

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Estado. Para a autora, o Estado, enquanto estrutura social, deveria ter como fundamento

uma comunidade de povo. O Estado está a serviço de uma vida comunitária. Ele não se

origina e nem se sustenta por uma estrutura legal, mas é fundado comunitariamente, e as

disposições legais têm apenas a função de sancionar as relações que são geradas

autonomamente na vida comunitária do povo. Esta função, por sua vez, é importante

para a vida comunitária, que necessita da sociedade. A estrutura estatal é importante, em

primeiro lugar (e isto serve de exemplo para a contribuição da sociedade para a

comunidade de um modo geral), porque ela protege contra tendências individuais de

seus membros que se colocam como obstáculos à vida comunitária; e, em segundo

lugar, porque ela fornece à comunidade povo, uma ordem estável. Neste sentido, Stein

afirma que o Estado não possui um valor em si mesmo, mas é importante por contribuir

para realização de um valor que é a pessoa e, consequentemente, a vida comunitária à

qual ela pertence (ALES BELLO, 2000).

Segundo Ales Bello (curso A estrutura da pessoa humana, USP, Ribeirão Preto), Stein

diferencia a noção de povo daquela de raça, onde se evidenciam os vínculos de sangue.

Uma raça pode se tornar comunidade pelo tipo de relação que as pessoas estabelecem.

Sendo assim, o vínculo de sangue é inserido como a possibilidade da gênese de uma

comunidade, mas não basta por si só. A noção de povo é mais ampla que a de raça

porque um povo pode ser formado por pessoas de diferentes raças. Além do vínculo de

sangue, o que constitui um povo é a questão cultural. Ao discutir a relação entre povo e

Estado na visão de Stein, Ales Bello (no mesmo curso A estrutura da pessoa humana)

dá o exemplo do povo de Israel como um povo de nascimento próprio, independente da

mistura de outros povos (como aconteceu na América Latina por exemplo). Segundo a

autora, o povo de Israel não nasceu por costumes ou tradições e sim pela união de

sangue e de fé; ambos os laços são tão fortes que permitiram que este povo sobrevivesse

sobre o Estado e superasse todas as tentativas de anulação por parte de outros povos. Da

mesma forma que a raça, um povo também só se torna comunidade quando o sujeito

singular não é excluído. Estas ideias foram muito importantes para confrontar a visão

nazista, baseada na noção de raça.

Ao abordar a especificidade da comunidade, Stein afirma que sua origem está na

relação recíproca entre os sujeitos. Para ela, a comunidade possui uma centralidade por

ser o tipo de organização que respeita a pessoa, olhada em sua totalidade. Os vínculos

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na comunidade são corporais, psíquicos e espirituais. Isto quer dizer que as relações

abrangem toda a vida das pessoas. Cada membro considera sua liberdade e quer a

liberdade do outro e, nesse contexto, criam um projeto comum. Diferentemente da

sociedade, comparada a uma máquina pela autora, a comunidade equipara-se a um

organismo vivo em que o trabalho de cada membro não depende de uma função ou um

papel pré-determinado, mas está fundado sobre as características particulares de cada

um. Cada um realiza uma parte do trabalho tornando-se um órgão único do todo. A

comunidade é comparada por Stein a uma personalidade individual, com suas

características próprias, constituídas a partir da vivência pessoal de cada membro. Nesse

sentido, a entrada ou saída de um membro modifica o todo e, sem a participação dos

membros, a comunidade deixa de existir (STEIN, 1999b, p. 298).

A vida comunitária surge da abertura dos sujeitos em relação aos outros, numa relação

de solidariedade. Os sentimentos, pensamentos e ações de um influenciam os

sentimentos, pensamentos e ações dos outros.

É justamente nesta atitude de disponibilidade assumida pelo ser humano a respeito dos outros que se funda a solidariedade. Tal atitude é altamente construtiva em sentido comunitário e se efetua ... onde os indivíduos estão abertos uns a respeito dos outros, onde as tomadas de posição de um não ficam sem efeito sobre o outro, mas o estimulam e desenvolvem a própria eficácia: nisto consiste a vida comunitária; assim sendo, ambos os membros são uma totalidade e sem este relacionamento recíproco a comunidade não é possível. (ALES BELLO, 2000, p.167)

A vida comunitária é comunicação, não por uma linguagem padronizada, não pela

forma externa, mas pela apreensão surpreendente da alma do outro no concreto da vida

cotidiana (MAHFOUD, 2007). Ela é possível quando nos ocupamos do outro e

adentramos na experiência que lhe é própria.

Esse se voltar para o outro na experiência que lhe é própria, e com a qual posso viver algo em comum, é justamente o que faz uma relação se tornar comunidade, e o que faz uma relação interpessoal ter a força de constituição da pessoa. (MAHFOUD 2007, p. 120)

Na relação comunitária as vivências são comuns ou se tornam comuns ao serem

partilhadas. Quando uma pessoa me comunica o seu pensamento, por exemplo, me abre

passo a passo à compreensão do sentido que se constituiu originalmente no seu

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pensamento. Vivendo-o, ele me impulsiona a continuar a pensar, o que não é mais uma

reprodução sucessiva e sim uma produção originária na qual se abre para mim um novo

complexo parcial da conexão de sentido global.33 Passamos a pensar movidos pela

mesma motivação. Desenvolve-se assim, na troca de pensamento, um pensar junto que

não é mais uma vivência individual, mas um pensar em comum. Segundo a autora, tudo

o que diz respeito à ciência se desenvolve desta maneira, ou seja, aquilo que eu dou

como contribuição própria cresce sobre o fundamento de um patrimônio já acumulado e

aceito por mim, e que se transforma por sua vez no fundamento sobre o qual outros

construirão depois de mim (STEIN, 1999b, p.195).

Outro exemplo de vivência que pode se tornar comum é o caso de uma vivência

individual de fantasia. À medida que as pessoas têm acesso a esta vivência pela

descrição (oral ou escrita) de quem a vivencia, seu conteúdo é compartilhado e pode se

tornar uma bagagem cultural comum, dando origem a uma vivência comunitária. Este é

o caso das fábulas, mitos e lendas folclóricas (COELHO JUNIOR, 2006, p. 72).

Podemos pensar também em uma outra situação em que uma pessoa fica sabendo que

alguém precisa de um livro para estudar e compra o livro para ele. Neste caso, a pessoa

não apenas compreende o desejo do outro, mas o acolhe interiormente, ou seja, capta o

seu sentido (o que é possível porque há um significado objetivo) de tal forma que este

desejo a impulsiona a agir. Assim, o desejo do outro torna-se motivação do seu agir

formando com ele uma unidade de vivência supraindividual. A motivação referente a

uma vivência individual se estende ao viver do outro dando origem a um fluxo de

vivências comunitário (STEIN, 1999b, p. 196).

Edith Stein diferencia as vivências individuais das comunitárias. A autora exemplifica

estes dois tipos distintos de vivências citando a diferença entre a dor pela perda de uma

pessoa amiga (vivência individual) e a dor pela perda do comandante de uma tropa da

qual se faz parte (vivência comunitária). No primeiro caso, o sujeito da experiência é

uma pessoa particular, é um “eu”. No segundo, o sujeito é um “nós”, pois a dor é

compartilhada com todos os outros membros daquela tropa. E não apenas com os 33 Edith Stein distingue a vivência empática da vivência comunitária pelo fato de que, na empatia, colhemos a experiência originária de outra pessoa, mas não a vivemos de forma pessoal como originária, ou seja, compreendemos o que o outro está vivendo, mas não vivemos a mesma coisa que ele. No caso da vivência comunitária, o que faz com que ela seja uma vivência comunitária é justamente o fato de duas ou mais pessoas experimentarem a mesma vivência de forma originária, fazendo desta, uma vivência comum (STEIN, 1999b, p.165).

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membros que sentem a tristeza naquele momento, mas com aqueles que já vivenciaram

esta tristeza e os que a vivenciarão. Isto porque as vivências comunitárias podem durar

mais do que aquelas de um indivíduo; podem se estender por inteiras gerações de

indivíduos, que fornecem, de vez em vez, contribuições constitutivas para a formação

de uma unidade duradoura de ordem superior (STEIN, 1999b, p.163/170).

A vivência comunitária implica, portanto, uma experiência de nós, de pertença que não

é puramente subjetiva, mas que está ligada a um conteúdo comum; no exemplo citado, a

perda de uma pessoa importante para a tropa. O conteúdo da vivência comunitária é

chamado por Stein de núcleo de sentido comum (COELHO JUNIOR, 2006, p. 66). É

um núcleo de sentido comum que as diversas pessoas da comunidade visarão como

objeto de suas vivências. No exemplo acima, um mesmo conteúdo (a perda de uma

pessoa importante para tropa) gera uma vivência comum (tristeza). Uma mesma tristeza

não porque as pessoas a sentem da mesma forma, mas porque todas elas estão voltadas

para o mesmo núcleo de sentido que é a perda do comandante.

Stein reconhece no núcleo de sentido comum um significado objetivo, próprio daquele

objeto. Para captá-lo, portanto, é preciso que a pessoa esteja aberta à realidade e se

deixe tocar por ela.

Ao ser tocada a pessoa colhe as significações próprias do objeto (significações

objetivas) e as vivencia de maneira pessoal quanto à continuidade, profundidade ou

intensidade. Edith Stein chama de invólucro esta maneira específica como cada pessoa

vivencia as significações do núcleo de sentido comum. A vivência comunitária é

constituída pelos vários invólucros de seus membros. Cada invólucro interage com os

outros e contribui para uma maior aproximação do significado objetivo do núcleo de

sentido comum. Para Edith Stein, cada comunidade tem uma maneira particular de

vivenciar as coisas. A forma como uma comunidade vivencia algo depende da forma

como cada membro o vivencia individualmente (invólucro) e da interação entre eles

(COELHO JUNIOR, 2006).

Tem a ver com o modo pelo qual alguém se interessa, preocupa-se, ocupa-se do outro com um sentido real de vivência em comum, de modo que a vivência de um ressoe nos pares, mantendo um modo próprio daquela comunidade vivenciar cada coisa. (MAHFOUD, 2007, p. 121)

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Stein afirma que a relação entre a vivência comunitária e a vivência individual é de tipo

constitutivo e não somatório, ou seja, os múltiplos contributos dominados pela unidade

de sentido (cada invólucro) se unem em uma forma de gênero superior, formando uma

nova totalidade que é supraindividual e não uma simples soma de elementos (STEIN

1999b, p. 172). Nesse sentido, Stein compara a comunidade a uma personalidade

individual, com uma constituição e caráter próprios.34

Esta compreensão da relação entre as vivências comunitárias e individuais é importante

porque mostra que na dinâmica própria da comunidade não há uma imposição para que

as pessoas sintam da mesma forma ou intensidade os conteúdos vivenciais comuns.

Mostra que a contribuição pessoal não apenas é possível, mas necessária para o

fortalecimento e para a própria constituição das vivências comunitárias.

A pessoa, juntamente com sua forma específica de vivenciar os conteúdos comunitários, constitui o elemento constituinte da vivência comunitária e, consequentemente, da própria vida comunitária. A pessoa é integrada na sua particularidade e singularidade, isto significa que a pessoa não é padronizada nas suas características individuais como requisito para se pertencer e constituir a comunidade – embora possamos identificar a posteriori um membro tipo da comunidade. (COELHO JUNIOR, 2006, p. 68 e 71)

Dentro de uma mesma comunidade, as pessoas podem ter graus de envolvimento

diferentes com a vida comunitária. Algumas pessoas fazem parte da vida comunitária,

representam seu tipo sem ter com ela, entretanto, uma relação vital. Em um povo, por

exemplo, podem viver pessoas que não se sentem parte dele e não participam de sua

experiência de vida. Mas isto não significa que a sua vida não tenha nenhum significado

para a vida da comunidade ou que não fazem nada por ela. A comunidade se beneficia

de seu trabalho e os inclui no funcionamento global de seu viver, mesmo se estas

pessoas não se sentem membros. Por outro lado, existem indivíduos que participam com

sua alma da vida comunitária. São pessoas que vivem a própria vida enquanto membros

da comunidade e compreendem o próprio destino enquanto este tem um significado

para a totalidade. Em um caso de guerra, por exemplo, estes indivíduos a veem como a

luta pela sobrevivência do povo e assumem a posição que sua função demanda na

comunidade enquanto organismo. São pessoas que cumprem com consciência a sua

34 O termo personalidade tem o sentido de uma unidade supraindividual com suas qualidades individuais (STEIN, 1999b, p.164). “Trata-se da conexão profunda proveniente da força psíquica e espiritual das pessoas, as quais interagem entre si, mantendo, entretanto a sua individualidade” (STEIN, 1999b, p. 19).

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função dentro da comunidade; pessoas cuja ação particular carrega o sentido do todo.

Como soldados, por exemplo, lutam pela sobrevivência de seu povo; como operários,

desenvolvem sua tarefa na produção de bens necessários aos interesses de todos. Por

este modo de se relacionar com a vida comunitária, Stein os chama de sustentadores da

vida comunitária. Eles são a alma, o núcleo da comunidade a partir do qual emerge o

seu caráter. São eles que garantem a continuidade da comunidade.

Quanto maior for o número de sustentadores de uma comunidade e quanto mais

participativa é a sua dedicação, tanto mais sólida é a sua consistência e tanto mais

confiável o seu modo de se apresentar ao exterior, ou seja, o seu caráter próprio.

Segundo a autora, um único guia forte pode bastar para sustentar e manter unida uma

comunidade, mas se a alma de tudo for somente uma pessoa, a comunidade está

destinada a se dissolver já que, neste caso, a união entre as pessoas acontece puramente

de forma externa, ou seja, elas não estão envolvidas a partir de seu centro, de seu

núcleo, mas de forma periférica (STEIN, 1999b, p. 297).

Pode acontecer também que a comunidade tenha vários sustentadores cujo ser psíquico

não esteja de acordo nem seja compatível com uma unidade de caráter, como é

necessário quando é preciso agir em uma vida comunitária. Neste caso existe a

possibilidade de diferentes desfechos. No primeiro deles, o conflito que surge desta

situação pode acabar dividindo a comunidade em várias comunidades separadas, como

vemos acontecer, por exemplo, nos partidos políticos ou em comunidades religiosas.

Mas, diante desta situação, pode acontecer ainda que algum dos sustentadores se retire

com o seu ser psíquico da vida comunitária para evitar a divisão. Ele pode continuar a

ser um sustentador da vida comunitária, sem, contudo deixar sua marca, ou seja, sem

influenciar sobre ela no sentido formativo. E, por fim, outro desfecho possível é que

algum dos sustentadores deixe de sê-lo, continue como membro da comunidade, mas

não mais movido por sua alma e sim pelo espírito dominante desta (STEIN, 1999b, p.

297).

Stein ressalta o fato de que o indivíduo, mesmo quando participa com sua alma da vida

comunitária tornando-se seu sustentador, não é necessariamente completamente

absorvido por ela, ou seja, permanece um âmbito de vida pessoal que independe do fato

de ele ser um membro da comunidade. O comportamento de um cidadão alemão, por

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exemplo, pode ser um comportamento típico através do qual se manifesta a sua pertença

a este povo. Neste sentido, o caráter do povo se exprime através do seu comportamento

individual. Entretanto, o caráter da comunidade não coincide com o comportamento

individual, pois este mesmo cidadão pode se comportar de modo diferente (não típico)

na relação com pessoas de outros povos (STEIN, 1999b, p. 279).

A autora afirma que há na pessoa um impulso a viver plenamente todas as suas

potencialidades e que este viver em plenitude pode ir além das necessidades da

comunidade e pode também ser útil para a comunidade. Para exemplificar esta situação,

Edith Stein cita o caso de uma família de comerciantes, na qual um dos filhos sente em

si um impulso em direção à criação artística e produz obras que não exercem nenhum

tipo de influência sobre o desenvolvimento da família. Por outro lado, se ele produz

uma obra de arte concreta, esta pode tornar-se um patrimônio comum de seu povo ou da

humanidade; ou pode exercer influência sobre outras comunidades, modificando o seu

caráter.

A autora cita também o caso limite de uma vida individual que não seja útil a nenhuma

comunidade nem com obras nem com determinadas influências. Este é o caso de

pessoas que vivem fechadas em si mesmas sem partilharem o seu mundo interior.

Quem se fecha em si mesmo, quem não torna ativo ao exterior a riqueza da própria vida interior, não pode ser considerado um órgão da comunidade e não permite a ela chegar às fontes das quais podem partir os impulsos. (STEIN, 1999b, p. 240)

A não-expressão de suas vivências pessoais fecha a possibilidade de que elas

contribuam para o desenvolvimento da vida comunitária. Como exemplo dessa situação,

Stein cita uma pessoa que descobre uma nova capacidade de apreciação estética, sem

deixar transparecer para fora, ou uma pessoa que faz pesquisa científica sem deixar que

ninguém participe e sem comunicar os resultados.35 E há, por fim, o caso extremo

oposto em que a pessoa acaba vivendo totalmente para a comunidade e, neste caso, ao

35 Ales Bello (durante o curso A estrutura da pessoa humana, promovido pela Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, 30 horas, 2009) também se refere ao perigo de fechamento

das pessoas dentro das suas comunidades, ou seja, da tentação humana de estabelecer relações dentro do

grupo e considerar o que está dentro “normal” e o que está fora “anormal”.

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contrário do que a autora afirma no início, sua vida é totalmente absorvida na

sustentação da comunidade (STEIN, 1999b, p. 295).

Ao abordar a vida de uma comunidade, Stein aponta as possibilidades de seu

surgimento e os fatores que a mantêm e fortalecem. Para a autora, uma comunidade

pode originar-se tanto involuntariamente como baseada em algum tipo de elemento

comum entre as pessoas. Existem comunidades que surgem, por exemplo, a partir de

condições e estilos de vida comum, como é o caso da classe escolar ou vizinhança

(bairro). Há outras que se originam de atitudes e sentimentos pessoais recíprocos. É o

que acontece no matrimônio ou nos grupos de amigos. Há ainda as comunidades

familiares ou os povos, cuja origem está nos vínculos originários. E, por último, as

comunidades baseadas em uma orientação comum a um âmbito de valor. São as

comunidades formadas pela comunhão de interesse científico, artístico ou religioso

(COELHO JUNIOR, 2006).

Toda comunidade possui uma dimensão exterior e uma dimensão interior. A primeira

refere-se a um modo próprio de agir diante de outras comunidades. A segunda diz

respeito aos movimentos internos de autoconfiguração, autoconservação e

autoexpressão. Pela autoconfiguração a comunidade “constrói” seu estilo de vida

(número de membros, organização de suas ações no campo técnico e prático). A

autoconservação refere-se à criação de instrumentos para responder às suas próprias

necessidades e ao modo como ela os utiliza (por exemplo a produção e a

comercialização de bens e a economia como reguladora); e a autoexpressão diz respeito

à maneira como ela expressa seu estilo e mantém sua bagagem comum (língua,

atividade industrial, artística, científica, sua institucionalização na vida estatal, jurídica

ou religiosa) (COELHO JUNIOR, 2006).

Ao estudar a vida e o desenvolvimento de uma comunidade, Stein faz uma analogia

com a pessoa humana. Como dissemos anteriormente, ela compara a comunidade a uma

personalidade individual. Além do caráter, a autora identifica na comunidade uma força

vital que pode ser reconhecida a partir de seu processo de desenvolvimento. Stein cita

como exemplo a trajetória de um povo apresentada por um historiador. Podemos

identificar sempre um percurso que se inicia com um crescimento progressivo até um

ápice e que é seguido de um declínio e um fim. Esta trajetória, entretanto, não se

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desenvolve de forma linear, mas apresenta oscilações, pois “todo movimento vital

requer um gasto de forças e todo grande esforço é seguido de um relaxamento e de uma

diminuição de força” (STEIN, 1999b, p. 222).

A força vital da comunidade é constituída pela força vital de seus membros. Ela

depende da quantidade e da qualidade da força vital que é disponibilizada por eles

através da forma como se envolvem, se empenham e se dedicam à vida da comunidade.

Sob este aspecto, a força vital pode aumentar ou diminuir devido a um aumento ou

diminuição do número de membros ou a um maior ou menor empenho de seus

membros. De qualquer forma, com vimos anteriormente, normalmente as pessoas não

dão toda a sua força para a comunidade. A força de cada pessoa serve como fonte de

força comunitária apenas na medida em que ela vive como membro da comunidade, ou

seja, a força disponibilizada para a comunidade é aquela que brota das vivências

comunitárias de seus membros. Além disso, normalmente uma pessoa participa de mais

de uma comunidade e divide suas forças entre elas, podendo empenhar-se de forma

diferente em cada uma. Stein cita como exemplo o fato de uma pessoa poder ser um

membro sustentador de um grupo de amigos e não ter nenhuma função estimulante

dentro do partido político a que pertence.

Vimos também que dentro de uma mesma comunidade as pessoas têm graus de

envolvimento diferentes com a vida comunitária. Edith Stein afirma que existem

aquelas que dão impulsos potentes à comunidade, outras que a enriquecem de forma

limitada e outras ainda que absorvem mais força da vida comunitária do que dão.

Afirma que, pelo fato de toda a vida da comunidade ser alimentada por uma reserva

comum de forças, é possível que alguém no serviço da comunidade realize obras que

sozinho não faria, já que não conseguiria sustentá-la somente com sua força individual.

Além disso, há aquelas pessoas que se utilizam desta força comunitária para a própria

vida individual e são estas as que absorvem mais força da vida comunitária do que dão

(STEIN, 1999b, p. 223 e 224).

Quando falta à comunidade uma fonte de força interna, ou seja, aquela proveniente de

seus membros, a comunidade pode buscar esta fonte fora, tanto em uma subjetividade

externa quanto no mundo dos valores externos. No caso de uma fonte de força

proveniente de uma subjetividade externa, podemos pensar em pessoas que não fazem

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parte da comunidade, ou em uma outra comunidade. Stein afirma que desta relação

surge sempre uma nova comunidade que compreende tanto a velha como os elementos

vivificantes provenientes de fora (STEIN, 1999b, p. 226).36

A possibilidade de formação de uma comunidade está ligada à compreensão recíproca dos indivíduos. Onde os sujeitos entram em relação há um terreno fértil para uma unidade de vida, para uma vida comunitária que se alimenta de uma única fonte. Esta comunidade de vida entra em vigor quando os indivíduos se oferecem espontaneamente uns aos outros, estão abertos uns em relação aos outros e não possuem a relação artificial de sociedade. (STEIN, 1999b, p. 226)

A autora apresenta-nos alguns exemplos de formação comunitária a partir do contato de

uma comunidade com pessoas ou comunidades de fora. Cita o caso da chegada de um

novo professor em uma classe de estudantes considerada preguiçosa e desinteressada. O

professor, animado e empenhado em sua nova tarefa, contagia os alunos com o

entusiasmo que dele se irradia. O professor e a classe entram em uma relação causal

envolvente de forma a se tornarem uma unidade de vida pela qual a força do professor é

útil para todos. O mesmo pode acontecer – e este é um exemplo interessante por

apresentar a comunidade em situações de adversidade – quando dois povos se

encontram e o ódio de um se torna para o adversário o motivo para se vingar. Segundo

Stein, neste caso, a chama do ódio passa de uma parte a outra constituindo-se um fator

causal que nos permite afirmar que entre estas duas facções inimigas há uma unidade de

vida. Isto porque acontece uma relação ingênua em que um aceita imediatamente o

outro como sujeito e está aberto a todas as influências que provêm dele. Assim, pode

receber do outro uma força que será utilizada no contra-ataque (STEIN, 1999b, p. 226).

Edith Stein cita ainda outras possibilidades de estabelecimento de uma relação causal37

através da qual uma comunidade pode receber uma força vital proveniente de fora.

Quando uma pessoa pertence a duas comunidades, por exemplo, ela pode levar a força

36 Este é o sentido que damos à palavra “articulação” no presente trabalho, ou seja, o encontro de uma determinada comunidade com pessoas de fora ou com outras comunidades, dando origem a uma nova comunidade. Ao nos propormos compreender a articulação entre a escola e o coletivo do bairro, buscamos compreender a nova comunidade que surge a partir deste encontro e as implicações que ela traz para as comunidades que lhe dão origem: a escola e o coletivo. 37 Todos esses exemplos tratam de relação causal e, portanto, de como ocorre a transmissão da força vital que diz respeito ao aspecto psíquico e não espiritual da pessoal. Como explicamos anteriormente, quando tratamos de relação espiritual, o elo de ligação não é causal e sim, motivacional. Os exemplos não levam em conta os conteúdos espirituais dos membros envolvidos mas somente a relação entre as forças vitais.

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que flui de uma para a outra. Neste caso, a troca de forças acontece a partir de um dos

membros da comunidade. Há também o caso em que indivíduos e comunidades podem

produzir efeitos recíprocos uns sobre os outros mesmo quando estão separados no

tempo. Esta possibilidade se dá pela narrativa. A autora ilustra esta situação através do

seguinte exemplo. Quando estou com um grupo de amigos e dou a eles uma imagem

estimulante sobre minha família, descrevo o frescor e as atividades que a anima e desta

descrição nasce um sopro vivificante e tonificante entre aqueles que me escutam. Neste

caso, as minhas palavras suscitam um efeito que não tem necessidade de mim pois a sua

fonte é a força que se manifesta no conteúdo da minha descrição. O conteúdo de sentido

das minhas palavras, partindo do conteúdo da descrição, exercita uma ação estimulante

sobre quem escuta (STEIN, 1999b, p. 228). Este exemplo é interessante porque mostra

que uma passagem de força é possível não apenas pela subjetividade mas também no

âmbito objetivo. De fato, o exemplo cita o caso de uma experiência subjetiva (a

experiência que tenho da minha família) que se tornou objetiva ao tomar a forma de

significados lógicos através da minha narrativa.

Como vimos até aqui, uma comunidade pode ser fortalecida (ou enfraquecida) através

da transmissão do estado vital de uma pessoa de fora ou de outra comunidade. Mas,

além da transmissão do estado vital, Stein afirma que a força de uma comunidade pode

ser alterada por dois outros fatores, ou seja, pela tomada de posição das pessoas uma

relação às outras e por fontes objetivas referente ao mundo dos valores (valores

objetivos e valores pessoais). No primeiro caso, Stein cita os atos sociais através dos

quais uma pessoa se dirige a outra. Uma pessoa fala e a outra compreende e através do

significado deste ato é possível captar o material objetivo expresso e, portanto, aquilo

que é ouvido, mas também este conteúdo é comunicado e recebido de forma que esta

correlação recíproca passe a fazer parte do conteúdo da vivência (STEIN, 1999, p. 230).

Se desta ação, para além da força vivificante que emana das pessoas, há também uma

influência causal, esta influência provém do conteúdo de significado e não é mais uma

ação de quem fala. Este é o caso do exemplo acima citado onde as pessoas captam a

força que emana não de quem está contando sobre a sua família, mas do próprio

conteúdo descrito pela pessoa.

Stein cita também, além dos atos sociais, as tomadas de posição espontâneas de uma

pessoa que se volta imediatamente para outra nas suas qualidades individuais e toca o

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seu centro. Estas tomadas de posição em relação a uma pessoa podem ser positivas ou

negativas, ou seja, o ser da pessoa pode ser afirmado ou negado. No primeiro caso

temos o amor, a confiança, a gratidão, a fé no outro; e, no segundo, a antipatia, o ódio, a

desconfiança etc. Podemos ter também a indiferença. Segundo a autora, essas tomadas

de posição podem ser compreendidas pela pessoa para a qual se voltam e se tornarem

para ela motivo de uma tomada de posição como resposta (neste caso há uma troca

motivacional e, portanto, uma vivência de tipo espiritual), e podem também agir como

um fator causal cuja fonte não é mais a tomada de posição da pessoa, mas são os

próprios conteúdos enquanto tais, ou seja, o amor, o ódio, a confiança etc. Estes

conteúdos possuem uma eficácia própria e agem na pessoa onde se encontram. Edith

demonstra este fato afirmando que o amor, por exemplo, nos torna mais fortes, nos

estimula infundindo em nós uma força para fazer algo imprevisto. Quem ama não perde

parte da sua força quando estimula a pessoa amada. O amor e as tomadas de posição

positivas em geral não consomem a própria pessoa, mas agem nela como uma potência

estimulante que alimenta suas forças, mais do que lhe custa o viver o amor. As tomadas

de posição positivas são uma fonte com a qual a pessoa pode nutrir os outros sem ser

empobrecida. São, portanto, fontes inesgotáveis, conteúdos criadores de vida. Segundo

a autora, esta fonte inesgotável pode faltar temporariamente apenas se a pessoa estiver

tão empenhada em outras atividades espirituais de forma a não sobrar forças para viver

esses conteúdos geradores de vida. Ao contrário, as tomadas de posição negativas

consomem mais a força da pessoa do que o que o gasto com a sua vivência exige. A

desconfiança, por exemplo, paralisa a nossa força criadora. Essas tomadas de posição

são valores ligados indissoluvelmente à pessoa. Pois “somente quem ama colhe o valor

de uma pessoa de modo pleno e total” (STEIN, 1999b, p. 232).

Edith Stein afirma que o fato de descobrir defeitos em uma pessoa que amo ou

qualidades em alguém que odeio não muda a minha tomada de posição em relação a ela,

ou seja, não faz, por exemplo, com que meu amor por ela diminua, mas dá a este amor

uma coloração particular (STEIN, 1999b, p. 231).

Ainda em relação às tomadas de posição, a autora afirma que uma vida comunitária se

forma a partir da postura de solidariedade das pessoas, pois é através dela e da abertura

que ela proporciona que as tomadas de posição de um podem influenciar as tomadas de

posição dos outros. As tomadas de posição que influenciam a vida comunitária podem

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ser tanto de um ou mais membros comunitários como de pessoas de fora ou de outras

comunidades. No caso de um dos membros, Stein nos traz o seguinte exemplo. O amor

que experimento em relação ao meu povo inicialmente produz a sua ação em mim,

aumentando as minhas forças e me impulsionando a dedicar-me mais no serviço a ela e

a viver de forma mais intensa como um membro seu. Mas este amor pode atingir

também os outros membros, ou seja, pode fazer despertar neles um amor por sua pátria

de forma a aumentar sua força e poder infundi-la na comunidade. O amor pode agir

neste caso, porque eu e os outros membros nos sentimos amados em nome da

comunidade e somos fortalecidos por este amor. Desta forma, novos impulsos são

acrescentados à vida comunitária através das tomadas de posição positivas. Da mesma

forma, a vida comunitária pode ser dificultada por tomadas de posição negativas. Neste

caso a autora apresenta um exemplo onde a influência vem de uma tomada de posição

externa, ou seja, de outra comunidade. Ela afirma que o ódio de um país em relação a

outro, mesmo que este país seja neutro no sentido de não reagir a este ódio, ou seja, não

agir atacando o país odiado, pode ser prejudicial para o povo em virtude do efeito que

parte deste ódio (STEIN, 1999b, p. 234).

Veremos, agora, a possibilidade de alteração na força vital de uma comunidade através

das fontes objetivas, ou seja, através do mundo dos valores pessoais e objetivos. No

primeiro caso, Stein afirma que as pessoas são portadoras de valores que possuem uma

consistência independente da sua existência, ou seja, independente de seu portador

(neste caso não entram os valores existenciais). Estes valores podem, portanto, ser

vividos tanto em portadores reais como em fictícios e manifestarem seus efeitos no

indivíduo vivente. Segundo a autora, por exemplo, a beleza de uma forma que

contemplo na fantasia provoca em mim um entusiasmo que me estimula à criação

artística. Do mesmo modo, o herói de uma poesia me preenche de admiração e desta

admiração parte um impulso para imitá-lo. Nos dois casos, os valores vividos não são

apenas motivos que prescrevem a direção da minha ação, mas fornecem

contemporaneamente os impulsos necessários para realizá-las, ou seja, são fonte de

força vital (STEIN, 1999b, p. 235).

Stein afirma ainda que os conteúdos como vivacidade, frescor, sonolência, que vimos

anteriormente como fonte de força através do contágio entre as pessoas, não são apenas

estados vividos, mas podem ser encontrados também nos objetos inanimados. Eles se

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apresentam nos objetos através de suas características, ou seja, o tipo de paisagem, o

tempo, um tipo de melodia etc. A autora pergunta: Quem não conhece a influência

deprimente e paralisante de um dia cinzento de chuva? Ou ainda, quem nunca sentiu

como um céu azul resplandescente é capaz de tornar a vida mais animada e leve?

(STEIN, 1999b, p. 236).

Continuando essa análise, Stein afirma que os sentimentos também produzem um efeito

específico em relação à força vital. Assim, por exemplo, a tristeza pode agir de forma

paralisante enquanto a alegria vivifica. Mas os sentimentos possuem, segundo a autora,

uma outra particularidade pelo fato de não apenas influenciarem a força vital das

pessoas, mas darem a esta força uma coloração qualitativa específica, que se faz

presente em todo o viver da pessoa. Edith Stein chama esta coloração qualitativa de

estado de alma dos sentimentos. Por este motivo, os sentimentos podem não apenas

aumentar a força vital da pessoa, mas dar a ela uma direção determinada. Da mesma

forma como os conteúdos analisados anteriormente exercem influência sobre as pessoas

independente de seu portador, assim também as qualidades dos sentimentos e os estados

de alma podem estar presentes nos objetos inanimados. Uma composição musical, por

exemplo, pode transmitir estes conteúdos a um ouvinte sensível (STEIN, 1999b, p.

237).

Stein afirma ainda que a vida espiritual subjetiva (ou seja, os valores pessoais) só pode

ser captada e agir sobre outra pessoa se ela se tornar compreensível através de uma

descrição eloquente que permita o acesso de outras pessoas ao conteúdo de significado

que as palavras encarnam. A esta possibilidade de transmitir o conteúdo de sentido de

uma vivência concreta pela descrição, Stein denomina presentificação intuitiva.

Através de uma narrativa é possível comunicar não um contato com a vida atual, mas sim, com os conteúdos nela encarnados, que se delineiam sobre a base de uma presentificação intuitiva de tal vida, como de um eventual portador de tais conteúdos, e podem ser aceitos na própria vida. (STEIN, 1999b, p. 237)38

38 Tradução nossa.

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A autora afirma ainda que a possibilidade de colher o conteúdo de sentido ocorre não

apenas pela presentificação de seu portador, mas também sobre a base de uma

percepção, já que eles independem de um portador real.

Vimos até aqui, portanto, que os valores pessoais podem exercer influência sobre a

força vital de uma comunidade pela compreensão e adesão a eles por parte de outros

membros. Veremos agora outras fontes de força objetivas para a vida comunitária.

O primeiro elemento apresentado por Edith Stein como fonte de força objetiva é a

natureza na qual uma comunidade está inserida, ou seja, as características físicas

territoriais e o tipo de paisagem que a envolve. A autora exemplifica este fato afirmando

que um território montanhoso, por exemplo, cujo solo difícil exige muito de seus

habitantes, tem grande influência sobre o desenvolvimento da sua população, e isto por

dois motivos. Em primeiro lugar, porque ele exige um certo gasto de força vital da

comunidade na sua direção; e, em segundo lugar, porque essas suas características

contribuem para a formação de certas capacidades. Para além das características físicas,

Stein afirma que o tipo de paisagem também exerce influência sobre a vida da

população. “...Uma paisagem de montanha colhida intuitivamente se imprime sobre a

população, a penetra e determina o seu inteiro ritmo vital” (STEIN, 1999b, p. 238).

Reforçando esta compreensão, Ales Bello (2004), ao tratar da unidade do ser humano,

da interdependência entre as vivências físicas, psíquicas e espirituais, fala de como o

aspecto físico pode influenciar na produção cultural de um povo, e exemplifica dizendo

que a maneira como interpretamos o mundo pode estar profundamente relacionada às

condições climáticas.

O segundo elemento objetivo apresentado pela autora como fonte de força vital para a

comunidade é o mundo dos valores no qual ela vive. São eles os valores estéticos de seu

ambiente, os valores éticos incorporados na sua moral, os valores religiosos e os valores

pessoais. Para que esses valores exerçam influência sobre a força vital, Stein afirma a

necessidade de que eles sejam vividos pelas pessoas, ou seja, que haja uma adesão

pessoal a eles. A possibilidade de viver os valores depende, segundo Edith Stein, tanto

de uma sensibilidade pessoal que permita captá-los, quanto de uma quantidade

suficiente de força vital para viver seu conteúdo correspondente. No caso da

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sensibilidade, a autora cita o exemplo dos valores estéticos. Ela afirma que onde não

existe uma sensibilidade estética, até mesmo a natureza mais bela é destinada a

permanecer sem efeito algum. Por outro lado, quando esses valores se concretizam sob

a forma de obras culturais (onde há uma cultura nacional, uma moral consolidada, uma

poesia como bagagem cultural comunitária de um povo etc), os valores tornam-se uma

fonte inesgotável de forças, mesmo para as almas menos sensíveis. Com relação à

quantidade de força vital disponível, Stein afirma que, por mais que uma comunidade

tenha criado uma obra de arte esplêndida e, portanto, tenha uma sensibilidade para os

valores estéticos, se ela não direcionar sua vida espiritual para este âmbito, ele acaba

perdendo a sua ação vivificante sobre as pessoas e torna-se o que ela chama de uma

“cultura morta” (STEIN, 1999b, p. 238).

Ainda sobre esse tema, Stein traz uma discussão interessante sobre o papel dos

indivíduos para a revitalização de uma comunidade através do mundo dos valores. Ela

afirma que somente através de cada membro individualmente é possível abrir os olhos

da comunidade para captar tais valores. Um exemplo apresentado para compreensão

desse dado é o caso da natureza como valor estético. Utilizando-se do ambiente natural

onde vivia, Stein mostra como a beleza dos Alpes foi ignorada até o século XVIII,

quando as montanhas eram descritas como perigosas e não se fazia referência alguma

sobre estímulos estéticos. Foi através de pessoas como Goethe e Rosseau, órgãos

sensíveis da comunidade, que os outros membros puderam enxergar a beleza daquela

realidade, que, a partir de então, tornou-se um patrimônio cultural europeu. Mas a

autora ressalta que a comunidade só pode enriquecer-se com esta visão de alguns,

quando possui um mínimo de sensibilidade. “Quando a insensibilidade da massa se

opõe à sensibilidade dos indivíduos, a comunidade não pode se enriquecer” (STEIN,

1999b, p. 239).

Podemos concluir, portanto, que os valores são fonte de força vital na medida em que

despertam uma tomada de posição dos membros da comunidade em relação a eles. A

maneira como as pessoas são afetadas por eles provocará uma determinada posição que

pode ser positiva ou negativa quanto ao papel de fortalecimento da relação comunitária,

aumentando ou enfraquecendo sua força vital. As tomadas de posição em relação aos

valores provocam reações proporcionais ao que é apreendido.

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Vemos, portanto, que para compreender uma comunidade é preciso examinar os

sentimentos e atitudes de seus membros, mas também suas condições objetivas, ou seja,

as características espaço-temporais em que ela se situa e o mundo dos valores. Tudo

isso influencia na forma como se dá a inserção das pessoas numa comunidade e na

profundidade do relacionamento mantido entre elas. Estes são os critérios utilizados

pela autora para identificar tipos distintos de comunidade (COELHO JUNIOR, 2006).

A forma mais alta de comunidade é a união de pessoas totalmente livres, ligadas pela

sua vida pessoal íntima numa relação em que cada um se sente responsável por si

mesmo e pela comunidade. Suas atitudes e ações são genuínas, partem de critérios

próprios e não de critérios externos aos valores da comunidade.

Existem também as comunidades onde há uma unidade entre os membros, mas apenas

alguns deles têm liberdade e autonomia e acabam exercendo sua marca pessoal sobre a

comunidade. São eles que assumem a responsabilidade sobre a comunidade.

Há também comunidades onde há ideais genéricos adotados como referência, mas seus

membros não se posicionam a partir de critérios pessoais e normalmente há algum

membro que assume a posição de guia. Em outras, não há este guia e elas acabam

absorvendo ideias e sentimentos de outras comunidades mais amplas nas quais estão

inseridas.

E, por último, há um modelo de comunidade onde os membros são induzidos a um

comportamento comunitário por uma circunstância de vida externa, sem que haja um

espírito unitário.

Vimos, portanto, que uma vida comunitária pode ser formada e fortalecida somente

onde há uma abertura recíproca das pessoas umas em relação às outras e onde elas se

relacionam como sujeitos e não a partir de objetivos específicos para a realização de um

fim. Somente nesta abertura é possível a formação de uma unidade supraindividual cuja

origem pode ocorrer tanto através do contágio dos estados vitais, como pela influência

das tomadas de posição e/ou pela transmissão de motivações de uma pessoa para outra.

Vimos também que não existe uma comunidade pura no sentido específico apresentado

por Stein. Os agrupamentos sociais são mistos e há uma interdependência entre eles. A

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pessoa necessita da comunidade para viver e se constituir. Ao mesmo tempo, a

comunidade é a base da sociedade e esta, por sua vez, contribui para a manutenção da

vida comunitária, estando, portanto, em última instância, a serviço da pessoa.

Passaremos agora para a apresentação da visão de formação da autora e do papel que a

vida comunitária tem nesta questão.

2.4 Formação

Segundo Garcia (1988), a ideia de formação é o principal conceito da obra pedagógica

de Edith Stein. Ao discutir a utilização do termos formação (Bildung) e educação

(Erziehung) Garcia (1988) afirma que Stein utiliza com mais frequência o primeiro,

relacionando-o ao conceito de pessoa. Bildung é traduzido como formação ou educação,

mas, segundo Stein (1999c), essas duas palavras não abarcam tudo o que ele

compreende. Em última instância, Bildung significa “conduzir a uma sabedoria de vida,

à realização plena de si” (STEIN, 1999c, p. 21). Na definição da autora, “formar é

plasmar um material até fazê-lo assumir uma forma, com base em uma imagem”

(STEIN, 1999c, p. 30). O termo formação é utilizado pela autora para referir-se a este

processo nas substâncias inanimadas ou nos vegetais e nos animais. Ao processo de

formação da pessoa, Stein denomina educação.

Esta distinção, porém, não ocorre apenas no nome. Ao discutir a ideia de formação,

Stein (1999c) faz uma distinção entre as matérias inanimadas e as animadas e, dentro

destas últimas, aborda as especificidades do processo formativo nos vegetais, nos

animais e no homem. Nas matérias inanimadas, a formação acontece de acordo com

uma forma exterior, imaginada por exemplo pelo artesão que talha um pedaço de

madeira ou uma massa de argila; ou tirada de um modelo pronto. Além disso, a matéria

inanimada depende necessariamente de uma intervenção externa, permanecendo

imutável quando esta não acontece. A formação da matéria inanimada tem como

modelo (ou como forma de referência) o projeto de quem a manipula.

Nos organismos vivos, ao contrário, é possível observarmos uma transformação de

maneira autônoma, sem qualquer intervenção. As plantas, por exemplo, se transformam

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aos nossos olhos, tomam forma autonomamente, sem a necessidade de nenhuma

intervenção externa (STEIN, 1999c, p. 23). Isto, segundo a autora, pelo fato de existir

uma ação plasmadora que acontece a partir do interior. Há um processo vital

intrínseco,39 que faz, por exemplo, com que uma margarida cresça como planta de

margarida e não como uma rosa. Nos seres animados, portanto, o modelo (ou a forma)

não é externo, mas intrínseco a sua própria estrutura. O modelo não é algo pronto a ser

imitado, mas um princípio dinâmico que constitui o organismo; um processo intrínseco

que permite que ele se torne “si mesmo”.

Stein aborda as especificidades do processo formativo nos vegetais, nos animais e no

homem de acordo com uma hierarquia pautada no grau de autonomia que estes

organismos têm no processo. Nos três casos, modelo (ou a forma interior) pode sofrer

modificações de acordo com as influências do ambiente. Nas plantas, por exemplo, a

natureza do terreno e as condições atmosféricas podem inibir ou favorecer o processo

formativo e podem provocar variações na forma original. De qualquer maneira, não

podemos obter da planta algo que já não esteja inscrito nela. Neste processo dinâmico,

os vegetais possuem um pequeno grau de autonomia, que consiste em assumir em si,

daquilo que o circunda, as substâncias úteis ao seu desenvolvimento e elaborá-las,

organizando a matéria de modo que ela alcance a forma presente como energia

potencial na semente.

Nos animais, o processo é semelhante, embora o grau de autonomia seja maior devido a

dois fatores: capacidade de locomoção e vida psíquica. A possibilidade de movimentar-

se e a capacidade de perceber aquilo que favorece o seu desenvolvimento e o que pode

ser nocivo (sensibilidade – vida psíquica) permitem que os animais tenham um

movimento em favor da sua autoconservação, participando mais ativamente do processo

formativo.

O mais alto grau de autonomia, entretanto, acontece no homem. Do ponto de vista dos

vegetais e dos animais, é estrutural que eles se tornem aquele gênero específico. Na 39 A ideia de processo vital intrínseco nos seres animados vem da filosofia aristotélico-tomista, que o denomina “alma” (STEIN, 1999c, p. 23).

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pessoa, entretanto, esta referência estrutural não basta. Há sim o modelo (ou a forma)

interno, que é referência para ele, que é dinâmico, e que lhe permite se relacionar com o

ambiente de modo que o produto daquilo seja “ele mesmo”. Mas a pessoa tem que se

trabalhar. O modelo não é algo pronto, é um ponto de referência interno que auxilia a

pessoa no processo de escolhas e tomadas de posição, organizando seu percurso de

forma que ele não se torne um movimento aleatório ou caótico.

Segundo Stein, a formação da pessoa acontece a partir da integração de fatores internos,

externos e do livre arbítrio daquele que é formado. No caso dos fatores internos, como

vimos, temos o modelo (ou forma), o princípio vital inerente a sua estrutura, que aponta

para os limites e as possibilidades do processo evolutivo. Para Stein, não é possível

desenvolver nada que já não esteja presente na pessoa ainda que em forma potencial ou

embrionária. Este princípio vital encontra-se no núcleo pessoal de cada indivíduo, na

alma da alma,40 de onde brota sua essência. O núcleo contém as predisposições

originárias da pessoa, as potencialidades possíveis de serem desenvolvidas. Ele imprime

sua marca em todo o desenvolvimento da pessoa; tanto na corporeidade como nas

qualidades psíquicas e espirituais.

Como vimos anteriormente, Stein elabora a noção de pessoa em torno de três instâncias

principais: corpo, alma e espírito. Essa divisão, entretanto, é feita apenas por força

didática, porque na prática, a autora as descreve como uma unidade indivisível, como

realidades estritamente imbricadas. A alma ocupa um lugar intermediário entre o corpo

e o espírito. Ela está unida tanto ao primeiro como ao segundo, possuindo faculdades

chamadas inferiores ou sensíveis (que lhe permite tecer as relações com o mundo) e

faculdades superiores ou espirituais (ligadas ao conhecimento: inteligência, memória,

vontade). A alma é como um espaço que une as instâncias corpórea e espiritual.

Segundo Rus (2006, p. 96), para indicar a estreita ligação que une a parte superior e a

parte inferior da alma, Edith Stein afirma que não há conhecimento sensorial possível

sem uma atividade do espírito. Ambas atividades estão intimamente entrelaçadas, pois

os sentidos fornecem a matéria a partir da qual o espírito age, trabalha, se comporta. O

espírito recebe aquilo que os sentidos lhe apresentam, conserva aquilo que lhe penetra

e o chama em momento oportuno com as outras percepções e as associa (por

40 Expressão referida no item 2.1.2 Visão de pessoa em Edith Stein.

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comparação, generalização, etc.), chegando assim, aos conhecimentos abstratos.

Também a vontade se ocupa dos objetos que lhe fornecem os sentidos.

Ao mesmo tempo em que a alma é a forma essencial do corpo – dá vida ao corpo –, ela

tem uma existência própria, superior a ele e, nesse sentido, dizemos que ela é espírito.

Baseando-se na visão de Tereza D´Ávila a respeito da interioridade do ser humano,

Stein compara a alma a um castelo que abriga o Eu, entendido como a pessoa inteira a

qual pertence o corpo, a alma e o espírito. A alma é como um castelo que possui muitas

moradas, das quais a mais profunda e interior é o núcleo. Dentro desse castelo, o Eu

pode mover-se livremente, ora caminhando em direção à superfície, ao exterior; ora em

direção à profundidade interior da alma, aproximando-se do núcleo (RUS, 2006, p.

106).41 Quanto mais próximo de seu núcleo a pessoa (ou o Eu) caminha, mais próxima

ela está de atingir uma existência autêntica, no sentido Heideggeriano do termo (RUS,

2006, p. 125). É importante esclarecer, entretanto, que este movimento é dinâmico e que

a existência autêntica é um apelo interior que coloca a pessoa em movimento e que lhe

permite, sim, caminhar em sintonia com o seu núcleo, sem, contudo permanecer de

forma constante nesta situação. Como dissemos, ora o Eu se move em direção à

profundidade interior, agindo de acordo com o núcleo, ora ele se dispersa em ações

aleatórias ou em modelos externos, distanciando-se de seu ponto de referência. Além

disso, o fato de alguns atos não partirem necessariamente de um enraizamento profundo

do Eu na alma não quer dizer necessariamente que eles não sejam autênticos. Stein

distingue níveis de profundidade diferentes nas decisões de uma pessoa. A decisão de

fazer uma caminhada, por exemplo, é menos profunda que uma decisão profissional

(RUS, 2006, p. 88).

Retomando a noção de formação de Stein, vimos que ela é compreendida como formar

(ou plasmar) uma matéria de modo que esta tome a forma de uma imagem. Esta ação

plasmadora acontece a partir do interior, do próprio núcleo, que age de forma dinâmica

sobre o corpo e a alma, servindo como referência para o seu desenvolvimento. Eis a

contribuição do fator interno. Mas, para que a formação aconteça, tanto o corpo como a

alma precisam de material constitutivo adequado, e este material é retirado do mundo

externo. Vemos aqui a contribuição dos fatores externos para formação. No caso do

41 Tradução nossa.

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corpo, o material adequado são as substâncias que provêm do mundo material. Já a

alma, necessita de alimento espiritual, denominado por Edith Stein (1999c) de bens

culturais. Bens são as provisões adquiridas do ambiente externo pela alma, que

possuem um valor para a finalidade formativa, ou seja, que servem de alimento

espiritual para a constituição do mundo interior. Esses bens são culturais na medida em

que são produtos do espírito humano, suscitados pela criatividade. “Eles têm uma

existência autônoma, desvinculada de seu autor. (...) O que constitui o seu valor é algo

de espiritual. Um elemento de vida espiritual é misteriosamente aprisionado neles e

pode ser captado pela alma que entra em contato com eles” (STEIN 1999c, p. 26).42

Como acontece essa apropriação do material externo pela alma? É pelas suas faculdades

espirituais que essa apreensão é possível. A dimensão espiritual implica a possibilidade

de abertura para o outro, para as coisas e para si mesmo (COELHO JUNIOR e

MAHFOUD, 2006). Stein afirma que o órgão que abre o mundo para a alma é o

intelecto (verstand), definido por ela como o olho espiritual da alma (STEIN, 1999c, p.

26).

Os sentidos e o intelecto são os órgãos encarregados de procurar o material espiritual.

Eles possuem uma força íntima denominada ânimo (Gemuet), que Stein descreve como

o complexo de afetos e sentimentos que têm a capacidade de sentir quais das provisões

adquiridas pelos sentidos e pelo intelecto têm valor para a finalidade formativa e quais

não o têm (STEIN, 1999c). Isso quer dizer que nem todo o material trazido à alma serve

para a formação. Aquilo que os sentidos e o intelecto assumem e acumulam na memória

permanece matéria morta se não é acolhida no íntimo da alma, pelo núcleo. Stein a

compara a um alimento não assimilado, que não apenas não contribui para a

constituição do organismo como o pode prejudicar, como um corpo estranho que deve

ser expelido. Ao contrário, aquilo que é acolhido no íntimo da alma se torna parte

integrante, “componente tão inseparável quanto carne e sangue o são do corpo”

(STEIN, 1999c, p. 28).

Segundo Rus (2006), a alma é capaz de ser receptiva aos valores em geral, mas nem

todas as pessoas são igualmente receptivas aos mesmos valores. É necessária uma

42 Tradução nossa.

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abertura e uma disposição da alma para se deixar transformar por esses valores. Essa

receptividade está mais ligada à vida afetiva e volitiva que ao intelecto, pois, como

vimos, uma memória ou um pensamento não necessariamente tocam a alma, ou seja,

não necessariamente têm uma influência sobre ela. Nesse sentido, Stein fala de uma

educação para a receptividade da alma, e isto através da educação dos sentimentos.

Segundo Garcia (1988, p. 90), “educar os sentimentos para a autora é formá-los para

captar o valor”.

O tema da formação da afetividade é apresentado por Stein ao falar da alma feminina.

Para a autora o centro da alma feminina é afetividade e, por isso, a importância em

formá-la (STEIN, 1999a). Segundo a autora, a afetividade se manifesta em sentimentos

(alegria, tristeza), disposições (jovialidade, abatimento), atitudes (entusiasmo, revolta) e

emoções (amor, ódio), que são expressão do confronto do ser humano com o mundo. É

a afetividade que movimenta o ânimo e, para despertá-lo, faz-se necessário colocá-lo

em contato com algo que emocione, que o faça experimentar o prazer de lidar com o

que é belo e bom. Mas, segundo a autora, o contato com o belo e o bem não é suficiente

para a formação, porque a vida colocará a criança também em contato com o negativo.

Nesse sentido, Stein fala da necessidade de formar a capacidade de discernimento, de

maneira que a pessoa aprenda a fazer escolhas. A autora afirma que as tomadas de

posição de seu ambiente ajudam a criança a criar um senso para o valor das coisas. O

papel do educador é fundamental nesse sentido. Seu entusiasmo, por exemplo, desperta

nela entusiasmo.

Falamos até aqui do material necessário à formação, e da receptividade da alma à este

material. Mas, para que a alma se forme, não basta receber o material adequado. Ela

necessita organizar e plasmar este material espiritual. Na medida em que o material é

organizado, a alma se trans-forma (toma nova forma) e cresce, desenvolvendo-se em

um duplo sentido: no sentido geral, como uma alma humana; e no sentido de suas

particularidades, como alma única, singular.43 Na estrutura natural da alma existe uma

forma originária onde há um centro e uma periferia – lembremos da comparação citada

anteriormente, da alma como um castelo que possui diversas moradas. Dentre os

43 Stein afirma, entretanto, que esses dois sentidos não são pensados separadamente, mas como uma realidade indivisível, pois não existe alma que possa existir de outra maneira que em forma individual (STEIN, 1999c, p. 28).

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materiais assumidos por ela, existem aqueles que pertencem à superfície-periferia e

aqueles que pertencem à profundidade-centro. Supõe-se que os materiais devam ser

ordenados conforme o lugar que eles ocupam e o significado que possuem na

constituição do macrocosmo. O órgão que coordena a disposição do material na alma

segundo esta ordem é a razão (STEIN, 1999c).

Dissemos anteriormente que a formação da pessoa acontece a partir da integração de

fatores internos, externos e do livre arbítrio daquele que é formado. Vimos até aqui a

importância dos fatores internos e externos. Vimos que a formação é um processo que

parte do interior, das disposições originárias presentes em toda alma humana, que

possibilitam o desenvolvimento em uma determinada direção. Vimos também que as

forças da alma só conseguem operar quando dispõem de um material, proveniente do

mundo externo, que as alimente (STEIN, 1999a). É importante notar que este material

externo pode ser trazido de forma sistemática (na ação educativa) ou como influências

aleatórias do ambiente. Tentaremos compreender, agora, o papel do livre arbítrio nesse

processo.

Segundo Edith Stein (1999c, p. 30), toda educação é autoeducação. Isto significa que as

ações dos órgãos espirituais que trazem à alma o seu nutrimento são uma ação livre. O

corpo e alma são submetidos à vontade que pode selecionar ou repelir aquilo que lhe

chega do exterior. “Em certa medida cabe a nós decidirmos se e como queremos fazer

funcionar o nosso intelecto e, consequentemente, o quanto queremos ampliar o nosso

mundo espiritual, o que queremos acolher em nós dos elementos culturais” (STEIN,

1999c, p. 26). Nessa livre escolha, a pessoa pode posicionar-se de diferentes maneiras.

Pode omitir-se de decidir, escolhendo de modo arbitrário (sem o uso da razão), e pode

também querer superar os limites naturais contidos em sua essência pessoal. Nesse caso,

ela acaba distanciando-se de uma autêntica formação, aliena-se de si mesma e passa a

viver de aparências (STEIN, 1999c). Esse é o perigo de processos imitativos através dos

quais o sujeito aspira algo que não é parte do projeto traçado pela sua natureza. Como

dissemos anteriormente, quanto mais próximo do núcleo o Eu caminha, mais perto ele

está de atingir a autorrealização ou uma existência autêntica. Isto porque a

autorrealização relaciona-se à realização da plena liberdade, da posse de si mesmo. A

formação implica que o homem tome posse de si mesmo e, para isso, a alma precisa

chegar a ser ela mesma em um duplo sentido: conhecendo-se a si mesma e tornando-se

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ela mesma. Ora, é no centro da alma, no núcleo, que o homem entra verdadeiramente

em relação com ele mesmo, que ele pode concentrar todo o seu ser, penetrar sua vida

psíquica e descobrir o seu singular modo de ser, atingido uma liberdade maior para

tomar decisões (RUS, 2006).

Vimos, portanto, a importância da interioridade e do livre arbítrio para a formação da

pessoa. Vimos como a vida pessoal se origina no centro da alma e como o Eu pode

oscilar a sua direção ora para o interior, caminhando para uma vida livre e autêntica, ora

para a superfície, onde corre o risco de dispersar-se em modelos externos que não

correspondem às suas possibilidades de realização. Ao abordar o tema da educação,

Edith Stein afirma que é papel do educador auxiliar o educando a “viver a partir de sua

alma”, explicitando com isso a importância das referências internas para a formação

(RUS, 2006, p. 181).

Stein afirma que não estaremos nunca em grau de colocar as mãos com segurança

infalível na educação do outro. Segundo ela, a intervenção no processo educativo

consiste somente em trazer o material mais apropriado possível do ambiente, e o portar

de forma tal, que suscite no educando o desejo de assumi-lo. Entretanto, se será

verdadeiramente assumido e o que acontecerá depois disso – o que acontece no interior

da pessoa – já não é mais papel do educador (STEIN, 1999c).

Além disso, Stein nos lembra que o trabalho humano de formação é apenas um dos

fatores que intervém no processo de formação. Há também o papel da natureza e de

outras influências que não é possível identificar completamente e nem enfrentar com

absoluta segurança quando identificados. A autora nos lembra que o trabalho de

formação costuma ser encerrado muito antes que o processo de formação esteja

concluído e que pode ser considerado um grande sucesso quando o educando está

disposto a prosseguir por conta própria.

As considerações acima nos remetem a uma característica muito importante a qual Stein

(1999a) se refere ao falar do educador: a humildade. Ela afirma que a incerteza do

trabalho formativo ensina o educador a encarar sua atividade com humildade. Por outro

lado, a incerteza não deveria deixá-lo cético em relação a sua ação, pois muito se pode

fazer pelo educando. Afirma que o educador pode agir no educando pela palavra que

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ensina, pela ação pedagógica e pelo exemplo próprio, sendo este último, o melhor

recurso educacional (STEIN, 1999a). Para ela, só uma pessoa formada pode formar. E

isso exige do educador uma constante autoeducação. Em seus ensaios pedagógicos

encontramos algumas frases da autora que expressam esta ideia:

As crianças na escola...não precisam apenas daquilo que temos, mas também daquilo que somos. Todo trabalho educacional deve ter como base o amor que é perceptível em qualquer repreensão e que nem deixa aflorar o temor. O melhor recurso educacional não é a palavra docente e, sim, o exemplo vivo, sem o qual as palavras permanecem inócuas. (STEIN, 1999a, p. 13)

Para Stein, (1999a, p. 14) “a educação e o educador formam uma unidade orgânica”, ou

seja, para ela, os objetivos e os meios da educação não são absolutos mas variam de

acordo com a personalidade do educador, com sua visão de mundo, seus princípios e

convicções, sejam eles tácitos ou expressos.

Seguindo essa mesma lógica, a autora nos lembra que tudo o que o interior da alma

assimila acaba formando a alma e a pessoa toda, e que qualquer contato com pessoas –

seu exemplo, seu comportamento para com o próprio jovem ou para com outras pessoas

– pode ter o máximo efeito formativo, mesmo que não exista uma intenção formadora.

Nesse sentido, ela afirma que a formação planejada deveria contar com essas influências

espontâneas, tentando ganhar influência sobre o meio (STEIN, 1999a, p. 235).

Stein (1999a) afirma, ainda, que o essencial na formação humana é o ser humano, ou

seja, o ser humano que acompanha e cuida do outro enquanto está fisicamente

desamparado, mas que o acompanha também no caminho para a vida do espírito,

colocando a pessoa em contato com a diversidade dos campos da cultura e ajudando-a a

conhecer o campo que lhe é indicado por seu talento natural (STEIN, 1999a, p. 236).

Entramos aqui na visão da autora a respeito do sentido e da finalidade da escola. Para

ela (STEIN, 1999a), a escola ultrapassa a função de substituir as comunidades

educativas originais (família, por exemplo). Acredita que o trabalho de formação

planejado, realizado por pessoas ou associações não deve ser subestimado. Como

exemplo, cita a influência dos partidos políticos e do movimento feminista em seu

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tempo. Por outro lado, afirma que o conflito entre instituições educativas pode ser

evitado se cada uma se limitar a executar aquilo que corresponde ao seu próprio sentido

e fim (STEIN, 1999a, p. 235).

Afirma também, que a escola não tem a função de “transmitir um extrato compendioso

de todas as áreas do saber de nosso tempo”, pois, “mais vale a tentativa de educar

pessoas que sejam suficientemente inteligentes e esforçadas para serem capazes de

apropriar-se de qualquer matéria que venha a ser importante para ela” (Stein 1999a, p.

145).44

Segundo Stein (1999a), a escola possui o papel específico de introduzir a pessoa nos

campos da cultura e ativar suas forças formadoras. Isso porque a vida no espírito se

ascende tanto pela convivência com pessoas intelectuais, como no encontro com aquilo

que Stein chama de espírito objetivo, ou seja, com a produção cultural de um povo,

criação do espírito humano (STEIN, 1999a, p. 239). Segundo Rus (2006), para Stein, o

acesso ao mundo dos valores é possível pelo contato com os bens culturais.

A autora afirma que o espírito humano está direcionado à criação, compreensão e ao

gozo da cultura, e que ele não é capaz de desenvolver-se plenamente se não tiver

contato com a diversidade dos campos da cultura. Compreende, portanto, que o papel

primeiro da escola é a formação pelos bens culturais, também denominados fatores

formativos objetivos (ou espírito objetivo). Entre estes bens, Stein cita a importância da

“palavra e da língua” e das “obras humanas”.

Com relação à palavra e à língua, a autora afirma que a encarnação mais imediata do

espírito é a palavra. Temos acesso ao espírito humano pela palavra, que continua

existindo mesmo separada do contexto concreto das pessoas que a falam, guardada em

livros ou em outras formas de material inanimado. Stein nos mostra que a língua tem

uma conexão com a vida intelectual e exemplifica a sua importância para a formação ao

afirmar que a introdução na compreensão das categorias gramaticais é um treinamento

lógico insubstituível, que educa a clareza e a acuidade do raciocínio. Afirma, ainda, que

44 Stein afirma que ao lado do exercício abstrato deve estar sempre o concreto da tarefa prática, e que a função da escola consistiria em levar os educandos a conhecer e entender o mundo e o ser humano e a lidar com eles.

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nas formas gramaticais da língua refletem-se as formas possíveis de construções

mentais, cuja investigação sistemática é tarefa da lógica. A autora também nos mostra a

conexão das línguas com a vida intelectual ao declarar que a preferência por uma ou

outra forma revela o tipo específico dos povos, e que no estudo de certas obras literárias

se pode realçar o caráter mental da personalidade individual (STEIN, 1999a, p. 241).

É interessante notar como Stein se utiliza da obra literária para tratar, por exemplo, da

questão do feminino. Ao falar da mulher, a autora não parte de uma ideia geral, mas

utiliza-se dos tipos de mulheres descritas em três obras literárias.45 Delineia em um

primeiro momento os diferentes tipos possíveis de almas femininas, para, em seguida,

buscar neles uma espécie comum. Stein afirma que “a interpretação e a descrição da

alma são atribuições eminentemente literárias” e que, portanto, a obra literária tem um

valor simbólico especial (STEIN, 1999a, p. 107). Afirma que a palavra sempre

desvenda a própria alma, provocando uma intervenção em outras almas.

Qual fruta madura ela [palavra] se solta do interior informando sobre seu funcionamento íntimo. Em forma de erupção desenfreada denuncia a efervescência e as tormentas internas; pronunciada irrefletidamente é sinal de agitação superficial. Mas sempre se trata de uma intervenção em outras almas. (STEIN, 1999a, p. 256)

Stein afirma que um dos objetivos do trabalho formativo deve ser auxiliar a pessoa a

expressar exatamente aquilo que ela quer dizer, e compreender corretamente aquilo que

os outros dizem, além de despertar o senso pela beleza da língua e seu uso correto. Isso

exige, segundo a autora, um vocabulário rico obtido por muita audição e conversação,

leitura e escrita. Exige ainda “dar aos pensamentos profundos a forma da palavra, para

não cair em chavões em vez de expressar-se” (STEIN, 1999a, p. 255).

Onde não for possível encontrar a expressão linguística correta não estará terminado o processo de reflexão. O que não se consegue expressar continua obscuro e abafado na alma, e quem não consegue comunicar-se está como que preso em sua própria alma: ele não consegue mover-se livremente nem chegar aos outros. (STEIN, 1999a, p. 255)

45 As obras utilizadas são: Olav Audunssön de Sigrid Undset; Casa de Bonecas de Ibsen e Ifigência em Táuride de Goethe (STEIN, 1999a, p. 107-109).

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A autora (STEIN, 1999a) sugere que o trabalho formativo em relação à palavra se inicie

partindo da linguagem viva e concreta, das peculiaridades individuais de expressão ou

das diferenças regionais. Afirma que é comum, no início, as crianças serem incentivadas

à manifestação livre e espontânea e que do ponto de vista psicológico esse

procedimento é correto por facilitar a livre e natural expressão da alma pela língua.

Afirma que esse procedimento auxilia no sentido de criar uma base de confiança em que

se conserva a expressividade natural da pessoa e que, segundo ela, é condição prévia

para uma formação linguística. Stein sublinha, entretanto, que este é apenas o trabalho

inicial, e que a capacidade de expressão necessária na vida prática não se desenvolve

automaticamente, mas implica formação intencional.

O segundo tipo de fator formativo objetivo que Stein aborda são as obras humanas. O

espírito humano se concretiza em criações artísticas, em objetos de uso diário, nos

recursos para dominar e transformar a natureza (tecnologia), em instituições da vida

social e pública e em teorias científicas. Compreende que a introdução do educando

nessas áreas o ajuda a desenvolver o conhecimento e a compreensão do modo de ser e

da vida dos homens. Desse modo, a escola cumpre, segundo a autora, uma de suas

tarefas essenciais: levar a pessoa a uma visão de mundo abrangente antes de encaminhá-

la para a vida (STEIN, 1999a, p. 243).

Edith Stein (1999a) ilustra a importância de algumas obras humanas para a formação: a

obra de arte, por exemplo, desperta o amor pelo belo e os talentos criativos práticos que

a pessoa possa ter, e a história prepara a mente para a compreensão do próprio papel na

vida da sociedade. Nesse sentido, Stein afirma a importância da cultura para a formação

não apenas porque ela participa da construção do indivíduo, mas também porque ela o

prepara para se integrar de maneira ativa na vida comunitária e a participar de seu

desenvolvimento. De fato, para a autora, “uma das funções essenciais da educação

consiste, justamente, em respeitar as coisas novas e próprias que querem aflorar na nova

geração” (STEIN, 1999a, p. 90).

Segundo Rus (2006), Stein é muito atenta à dupla contribuição da tarefa educativa, ou

seja, a individual e a comunitária. Ela não separa a realização legítima das aspirações

profundas do indivíduo e o desenvolvimento de suas potencialidades, de sua inserção

fecunda na sociedade.

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O sentimento de pertença que integra o sujeito em uma comunidade humana se constrói progressivamente, conjuntamente com a constituição de sua identidade própria (...) A transmissão de um cultura, que é uma missão confiada à escola, tem um papel determinante para que ela participe da elaboração de sua memória, ligando cada homem a um passado que o torna capaz de se abrir para o futuro. Será sobre esta base que o indivíduo poderá colocar seu ser e suas competências a serviço da sociedade. (RUS, 2006, p. 186)46

Rus (2006) afirma que, na visão steiniana, o indivíduo constitui a comunidade e esta,

por sua vez, cumpre uma dupla função em relação a ele: o encoraja a manifestar sua

singularidade (sua nota pessoal) e o incita ao pleno cumprimento desta. Indivíduo e

comunidade, na visão de Stein, possuem uma interdependência ontológica. O

desenvolvimento do indivíduo contribui também para o desenvolvimento da

comunidade à qual está inserido, e vice-versa.

O papel formativo da comunidade na visão de Stein é destacado por Ales Bello (2000) e

Mahfoud (2007). O contexto relacional da comunidade possibilita o crescimento e a

realização das pessoas. No encontro concreto com os outros, o sujeito se percebe como

igual e ao mesmo tempo distinto. O outro é uma referência contínua que lhe permite

uma comparação com sua percepção interior, e que lhe permite ter cada vez mais

consciência de si mesmo (ALES BELLO, 2000, p. 162). Mahfoud (2007) também fala

da experiência do estar junto, na simplicidade das situações cotidianas, como uma

experiência essencial para o ser humano.

A vivência de estar junto é essencial para nosso ser, insubstituível por qualquer outra vivência. Nenhum de nós teria condições de elaborar a própria experiência, ou de ter cuidado consigo mesmo, sem a experiência de estar ou de ter estado com um outro no sentido absolutamente simples. É algo fundante para a nossa pessoa, que possibilita a apreensão do próprio mundo e a nossa realização. (MAHFOUD, 2007, p. 118)

Vemos, portanto, que a comunidade participa ativamente do processo de formação da

pessoa. Stein afirma o papel formativo da comunidade à medida que o sujeito vê

despertar em si uma série de aptidões que poderiam permanecer adormecidas na

46 Tradução nossa.

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ausência desse ambiente. A autora constata que existem características que só podem

ser desenvolvidas na vida da pessoa através de uma convivência comunitária. Como

exemplo cita a humildade ou o orgulho e o altruísmo ou a ambição (COELHO JUNIOR,

2006, p. 62).

As vivências comunitárias também são importantes para o crescimento pessoal na

medida em que possibilitam a apreensão de significados e valores compartilhados que

talvez sozinha a pessoa não apreendesse e suscitam propósitos que motivarão suas ações

concretas e seu posicionamento diante dos outros.

Edith Stein propõe uma educação social, no sentido de ajudar a comunidade a integrar a

individualidade de seus membros e a acolher novos membros na vida comunitária. Para

isso, ela propõe que se realize um trabalho tanto com a pessoa, para um conhecimento

pessoal, como com a comunidade, no sentido de buscar uma abertura dos demais

membros às particularidades daquela pessoa (COELHO JUNIOR, 2006).

A educação social visa uma integração no sentido da comunidade acolher as

particularidades de seus membros sem distanciar-se de seu caminho próprio. Pois a

forma como as particularidades das pessoas são preservadas e respeitadas pela

comunidade será decisiva para o seu desenvolvimento e fortalecimento, já que a

comunidade tem em seus membros a fonte de sua força vital e as contribuições originais

para a sua vida.

Quanto mais a comunidade envolve o indivíduo no seu mecanismo e o conforma a seu

tipo, maior é o perigo que a natureza individual deste seja inibida no seu

desenvolvimento. E, quanto maior é a força com a qual a natureza se desenvolve, mais

cresce o perigo que a comunidade se torne mais estreita para aquele indivíduo e ele

termine por separar-se da comunidade (COELHO JUNIOR, 2006).

Stein fala da necessidade dessa formação para que evitemos cair tanto no

individualismo como no sociologismo. Uma formação para a vida social, segundo ela,

depende de uma visão que reconheça a interdependência ontológica entre pessoa e

comunidade. Essa formação não acontece apenas em um momento destacado para isso,

mas na vida prática, através dos relacionamentos entre os seus membros.

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3. PESSOA, COMUNIDADE E ESCOLA

O tema da articulação entre escola e comunidade tem sido alvo de discussão por

diversos autores que a apontam como caminho de transformação nos âmbitos pessoal,

educacional e social. Isso porque, na visão dos autores, a interdependência relacional

entre estes três âmbitos não permite que eles se desenvolvam de forma isolada. Como

afirmam Berger e Luckmann (2004, p. 17), o indivíduo não pode ser pensado como uma

mônada sem janela, mas constitui-se na relação com seu ambiente social. Da mesma

forma, a escola “é parte da comunidade, deve-se a ela e existe em função dela”

(TORRES, 2003, p. 80). Sendo assim, qualquer tipo de avanço ou desenvolvimento

nessas áreas fica comprometido quando se tem uma visão unilateral, responsável pela

elaboração de projetos interventivos restritos, isolados. Somente com uma visão ampla,

integrada e, se quisermos, articulada de pessoa, comunidade e escola, conseguiremos

responder ao apelo de algumas necessidades específicas de cada uma dessas instâncias

que se evidenciam nos dias atuais, como, por exemplo, a busca de sentido pessoal, uma

educação de qualidade e uma sociedade mais humana e justa.

Coelho Junior (2006), ao abordar a relação pessoa e comunidade, aponta para a

necessidade de superação de visões dicotômicas como aquelas apresentadas pelo

individualismo e pelo sociologismo; e apresenta a perspectiva do interacionismo como

uma resposta dos pesquisadores para a superação dessas visões.

A relação pessoa e comunidade na perspectiva do individualismo acentua o papel do

indivíduo na constituição dos fenômenos sociais e da própria comunidade. Nesta visão,

ressalta-se apenas uma ação unidirecional que é a do indivíduo na constituição da

comunidade e desconsidera-se o papel da comunidade na constituição do indivíduo nela

inserido (COELHO JUNIOR, 2006, p. 23).

O individualismo surgiu no final do século XVIII com o Iluminismo, que via a

comunidade – identificada com a comunidade feudal nas suas relações de dominação e

dependência – como um bloqueio para o processo de realização do homem e para a

construção do progresso. No campo da ciência, essa perspectiva histórica influenciou o

pensamento de Auguste Comte, que no início do século XIX propôs a superação do

estágio teológico e metafísico pelo estágio positivo, pelo qual a experiência observável

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e o modelo da ciência físico-matemática passaram a ser considerados como supremacia

do método. Segundo Coelho Junior (2006, p. 21), foi introduzida com Comte a primeira

dicotomia em que o estudo do indivíduo caberia à Fisiologia e o estudo do ser humano

enquanto ser social deveria ser realizado pela Sociologia. Assim, os fenômenos

psicossociais foram reduzidos a dois polos: indivíduo ou sociedade.

Coelho Junior (2006) discute também o sociologismo, que tem como um de seus

representantes Émile Durkheim. Durkheim afirmava a primazia da sociedade sobre o

indivíduo e considerava os comportamentos individuais como produtos de causas

sociais externas, desconsiderando a pessoa como ser ativo que constrói a sociedade e

pode se posicionar diante de suas determinações. O autor cita Bauman (2003)47 para

quem essa perspectiva pode gerar uma concepção de comunidade na qual a pessoa abre

mão de sua liberdade individual em prol da segurança de ser guiado. No sociologismo, a

comunidade é considerada como algo pronto onde o indivíduo que se insere, deve se

adequar e contribuir para sua manutenção. Existe, portanto, uma tensão no campo

relacional, dado que o indivíduo pode ser considerado como ameaça aos elementos

estruturais comunitários. Tal ameaça deixa de existir a partir do momento em que as

representações coletivas passam a determinar o comportamento individual.

Em terceiro lugar, Coelho Junior (2006) discute a relação pessoa e comunidade do

ponto de vista do interacionismo. Tal perspectiva enfatiza o papel ativo da pessoa e da

comunidade na construção de uma relação que é essencialmente interdependente; ou

seja, a pessoa constitui e tem sua personalidade constituída pela comunidade, e esta, por

sua vez, constitui e é constituída pelo posicionamento de seus membros.

Como representantes dessa perspectiva, o autor cita a própria Edith Stein, ao afirmar sua

contribuição para a relação pessoa e comunidade a partir do estudo da estrutura

universal da pessoa. Coelho Junior (2006) afirma que, através da subjetividade

transcendental, a fenomenologia não reincide em um subjetivismo porque o próprio

conceito de pessoa já considera, na sua formulação mesma, a intersubjetividade como

aspecto constituinte. Identificar os aspectos estruturais da pessoa nos permite, ao mesmo

tempo, reconhecer uma estrutura comum do homem e oferecer um critério de leitura

47 Bauman, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. (P. Dentzein, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

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comparativa histórico-cultural que permite reconhecer como esta subjetividade

transcendental se expressa diretamente em cada cultura e, ainda, como a cultura

contribui de forma específica na ativação das dimensões da pessoa (COELHO JUNIOR,

2006, p. 20).

Além de Stein, Coelho Junior (2006), cita outros representantes do interacionismo como

George Herbert Mead, Lev Vygotski e Alfred Schutz, cuja sociologia recebe inspiração

da fenomenologia de Husserl. Schutz considera a realidade social como uma realidade

compartilhada de significados. Propõe uma sociologia fundamentada na atitude natural

das pessoas inseridas no mundo-da-vida, onde a compreensão do sentido vinculado às

ações pessoais era essencial para o conhecimento da realidade social. Para Schutz, este

sentido não é apenas fruto de uma atribuição individual, mas é construído

intersubjetivamente com aqueles que compõem o mundo-da-vida.

Assim, a realidade é uma realidade intersubjetiva, o homem não só está no mundo-da-vida, mas recebe instrumentos culturais para compreendê-lo, assim como introduz novos significados a partir de relevâncias pessoais e das ações que realiza a partir destas (COELHO JUNIOR, 2006, p. 30).

A sociologia fenomenológica compreende a relação pessoa e comunidade como uma

realidade que se constitui de maneira interdependente. A experiência de compartilhar as

experiências pessoais com os outros, oferecendo e recebendo deles uma bagagem

cultural, constitui a essência da vida da comunidade e do processo de constituição da

pessoa. Através do processo de constituição compartilhada do sentido, a personalidade

individual é formada, assim como as características específicas da comunidade à qual

ela está vinculada. Tanto a dimensão pessoal quanto a dimensão comunitária se

constituem de forma compartilhada (COELHO JUNIOR, 2006, p. 31).

O processo de constituição compartilhada de sentido é discutido por Berger e

Luckmann (2004), que o utilizam como base para uma reflexão a respeito da sociedade

moderna. Segundo os autores, os sentidos são constituídos na consciência do sujeito a

partir das relações que ele estabelece entre diferentes experiências pessoais e/ou tiradas

do acervo social do conhecimento. Sentido é, portanto, “a consciência de que existe

uma relação entre as experiências” (BERGER e LUCKMANN, 2004, p.15).

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Os autores compreendem, portanto, que as vivências subjetivas são o fundamento da

constituição do sentido. Apontam para a existência de estratos mais simples e estratos

superiores de sentido. Os primeiros são formados pelas relações de comparação entre

algumas experiências individuais, enquanto os estratos superiores dependem de uma

estrutura mais complexa de sentidos e se originam a partir de uma “objetivação do

sentido subjetivo no agir social” (BERGER E LUCKMANN, 2004, p. 17). Mas como

acontece essa objetivação?

Segundo os autores, o sentido de uma experiência ou ação surge no “trato consciente e

‘solucionador de problemas’ do indivíduo com seu meio ambiente natural e social”. As

soluções encontradas, por sua vez, são relevantes não apenas subjetivamente mas

também intersubjetivamente uma vez que o mesmo tipo de problema pode se colocar na

vida de outros indivíduos. Nesse caso, o sentido objetivo da experiência é separado da

situação que o originou e se oferece como “significado típico para aceitação num acervo

social de conhecimento” (BERGER e LUCKMANN, 2004, p. 18-19). O mesmo pode

acontecer quando os problemas surgem em conjunto (no agir social interativo). Nesse

caso, ou as soluções também são encontradas coletivamente, ou são encontradas de

forma individual e se objetivam, principalmente, através de formas comunicativas de

linguagem, que as tornam acessíveis a todos.

A objetivação do sentido subjetivo dá origem a um reservatório histórico de sentido.

Segundo os autores, a formação de reservatórios históricos de sentido e a transformação

das ações em instituições sociais (cujo papel é conservar e disponibilizar o sentido tanto

para o agir do indivíduo em diversas áreas de ação quanto para toda sua conduta em

geral) aliviam o indivíduo de ter que solucionar sempre de novo problemas de

experiência e de ação que surgem em determinadas situações. Nesse caso, o indivíduo

passa a ser consumidor de sentido. Entretanto, ele não deixa de ser também, como

vimos, produtor.

Berger e Luckmann (2004) discutem a relação entre a função das instituições de

conservar e disponibilizar os sentidos e o papel do indivíduo como produtor e

consumidor dos mesmos. Afirmam que esta relação é relativamente simples nas

sociedades arcaicas e nas culturas tradicionais porque, nestes casos, o sentido da ação de

áreas individuais é introduzido sem grandes rupturas no sentido geral da conduta de

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vida (sistema de valores de certa forma coerente). O sentido do agir e da vida é imposto

como regra óbvia de conduta, obrigatória a todos.

Na sociedade moderna as coisas acontecem diferentemente. Há um grau menor de

coerência entre os sistemas de valores, e uma grande competitividade na produção,

comunicação e imposição de sentidos. Tudo passa a ser questionável e o que predomina,

no âmbito do que os autores denominam pluralismo moderno, é a infinita possibilidade

de escolha. Segundo eles, o relativismo dos sistemas de valores e de sua interpretação

gera desorientação do indivíduo e de grupos inteiros.

Nas sociedades modernas não é possível falar de uma única ordem de valores, obrigatória para todos. O indivíduo tem de superar tanto as incertezas de sentido quanto a indecisão do julgamento moral. Ele não tem como saber se aquilo que julga bom e justo também seja considerado pelos outros; e nem ele mesmo sabe sempre o que é bom e justo para si próprio. (BERGER e LUCKMANN, 2004, p. 87)

Este fenômeno é denominado pelos autores modernização da consciência.

Compreendem a consciência com uma superposição de planos onde o mais profundo

comportaria os conhecimentos inquestionavelmente certos para o indivíduo, que lhe

permite agir de forma automática, sem ter que pensar o tempo todo; e o mais superficial

(no sentido de estar na superfície da consciência) seria constituído pelo campo da

incerteza, das opiniões que o indivíduo está disposto a reconsiderar. A modernização da

consciência seria, assim, a perda do plano mais profundo, gerando nas pessoas uma

dificuldade de encontrar caminhos.

O pluralismo moderno, com o bombardeio de diferentes reservas de sentido através,

principalmente, dos meios de comunicação de massa, pode cegar as pessoas e as

diferentes comunidades de vida e de sentido, quanto à capacidade que têm de preservar

seus próprios valores e interpretações, gerando assim, uma crise de sentido (BERGER e

LUCKMANN 2004, p. 50).

Afirmam que há uma lacuna, uma grande diferença entre as ofertas morais das grandes

instituições (como o Estado por exemplo) ou dos meios de comunicação de massa –

onde tudo é consumido sem nenhum critério – e as atitudes de valor do próprio

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indivíduo. No nível da comunicação cotidiana, as ofertas não são assumidas sem

critério.

Como resposta a essa situação, Berger e Luckmann apostam na contribuição das

chamadas instituições intermediárias. Essas instituições, como o próprio nome diz, são

capazes de fazer a ponte entre o indivíduo e os padrões de experiência e ação

estabelecidos pelos macrossistemas sociais. Permitem ao indivíduo colocar a serviço

dos vários setores da sociedade os valores de sua vida privada, de modo a constituírem

uma força que ajude a formar a sociedade como um todo (BERGER e LUCKMANN,

2004). Essas instituições colaboram para que as pessoas participem de fato na produção

e processamento do acervo social de sentido (p. 70) e deixem, assim, de experimentá-lo

como algo imposto e prescrito autoritariamente. Pelo contrário, ele passa a ser uma

oferta formada pelo conjunto dos membros individuais da sociedade, e que é passível de

mudança.

Segundo os autores, a distinção entre instituições intermediárias e não intermediárias

não pode ser feita de modo abstrato, mas apenas por análise empírica do seu modo

concreto de funcionamento. Apontam para a importância de se analisar se não

trabalham como uma força imposta, estranha ao mundo do indivíduo ou até hostil, pois

neste caso não seriam intermediárias e estariam contribuindo para a alienação. Para

serem intermediárias, as instituições precisam mediar as grandes instituições da

sociedade e os indivíduos em suas comunidades de vida (família, bairro etc.).

Somente quando as instituições intermediárias contribuírem para que os padrões subjetivos de experiência e de ação dos indivíduos participem da discussão e estabelecimento de sentido, será possível evitar que os indivíduos se sintam totalmente estranhos no mundo moderno; e somente então será possível evitar que a identidade das pessoas individuais e a coesão intersubjetiva das sociedades sejam ameaçadas ou, até mesmo, destruídas pela afecção de crises da modernidade. (BERGER e LUCKMANN, 2004, p. 90)

Com esta visão interacionista da relação sujeito e comunidade, Berger e Luckmann

(2004) nos auxiliam na compreensão da experiência de articulação entre escola e

comunidade. Em primeiro lugar, por evidenciarem o papel do sujeito na construção da

sociedade e, em segundo lugar, pela ideia de que uma transformação social e a

prevenção da crise de sentido que ameaça as sociedades modernas passa por iniciativas

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como esta, que estamos analisando, onde pequenos grupos locais se articulam e, junto

com a escola (que poderia funcionar como uma instituição intermediária, fazendo a

ponte entre a comunidade e as grandes instâncias como Prefeitura, Secretaria de Ensino

etc), têm a possibilidade de construir, partilhar e comunicar sentidos que poderão

contribuir para a construção do acervo social de sentido e, consequentemente, para a

transformação social almejada.

O importante papel da escola como instituição intermediária e a necessidade de

articulação desta com a comunidade local é partilhado por outros autores. Barroso

(2005), por exemplo, compartilha das ideias de Berger e Luckmann (2004) ao falar da

escola como um espaço propício para recuperar o sentido da vida cotidiana. Segundo o

autor, os excluídos da escola são os principais destinatários de uma pedagogia da

emancipação que, na sua visão, deve se tornar cada vez mais uma pedagogia da

integração. Compreende que a questão hoje não é emancipar na e pela escola, mas

emancipar a própria escola através da sua relação com o local. Segundo o autor, esta

relação pode dar um novo sentido e uma nova forma a esta instituição.

A integração local da escola pode criar as condições de proximidade para a existência de uma solidariedade de proximidade sem o que não se põe fim à exclusão. Se a escola e o local se tornarem espaços coletivos de decisão isso pode contribuir para reintroduzir o debate, a negociação, o compromisso e o projeto na vida das comunidades, condição para que estas possam assumir seu próprio destino. (BARROSO, 2005, p. 310)

A única forma de dar fim à segregação e à exclusão, colocando em prática a pedagogia

da integração, segundo o autor, é através da criação de espaços de recuperação da

sociabilidade perdida. Espaços onde se refaçam as redes de solidariedade que permitem

a vida em comum. Espaços que recuperem o sentido da vida cotidiana e que permitam a

integração por meio de redes de relações sociais entre os habitantes de uma mesma

localidade ou território. Barroso (2005) retoma as raízes das relações de comunidade,

solidariedade e associação em autores como Ferdinand Toennies, cuja visão inspirou

também as ideias de Edith Stein a respeito dos agrupamentos sociais.

Afirma, ainda, que o reforço da dimensão local da escola exige um tipo de organização

que ultrapasse as dicotomias público e privado, Estado e indivíduo e que esta se

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configure como local onde as relações sociais e as associações sejam colocadas sob o

signo da livre escolha e adesão.

Nessa mesma perspectiva, Torres (2003) afirma que educação e aprendizagem não são

um fim em si mesmas. São condições essenciais para a melhoria da qualidade de vida

das pessoas e das famílias, para o desenvolvimento comunitário e para o

desenvolvimento nacional. A autora afirma que a única possibilidade de assegurar

educação e aprendizagem permanente, relevante e de qualidade é fazer da educação

uma necessidade e tarefa de todos. Nesse sentido, compreende que escola não é a única,

mas uma das instâncias educativas daquilo que ela define como comunidade de

aprendizagem:

(...) uma comunidade humana organizada que constrói um projeto educativo e cultural próprio para educar a si própria, suas crianças, seus jovens e adultos, graças a um esforço endógeno, cooperativo e solidário, baseado em um diagnóstico não apenas de suas carências, mas, sobretudo, de suas forças para superar essas carências. (TORRES, 2003, p. 83)

A autora complementa afirmando que uma comunidade de aprendizagem não é o

resultado da soma de intervenções isoladas ou mesmo da articulação destas

intervenções, mas sim a construção de planos educativos territorializados, o que implica

a necessidade de rever a distinção convencional entre escola e comunidade, educação

formal, informal e não formal e de integrar saber científico e saber comum, educação de

crianças e educação de adultos, global e local, entre outros. Adota, nesse sentido, uma

visão global e sistêmica do educativo, colocando no centro a aprendizagem e a cultura

no sentido amplo. Ainda segundo a autora, o surgimento desta visão integral e sistêmica

refletida no conceito de comunidade de aprendizagem teve como um dos fatores

propulsores a insatisfação com o sistema escolar e a busca de novos modos de pensar a

educação escolar e a educação em geral. Surgiu do clamor por uma mudança de

paradigma para a educação, da necessidade de diversificar a oferta educativa, de

experimentar modelos diferenciados, sensíveis a cada contexto e momento, e de

contrapor a tendência atual à glocalização, ou seja, do ressurgimento do local e do

comunitário (impulso oposto à globalização).

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De forma sucinta, Torres (2003) compara alguns pontos-chave para a compreensão

dessa mudança de paradigma. Em primeiro lugar, passa da utilização do termo

comunidade escolar para comunidade de aprendizagem, compreendendo que, além das

crianças e dos jovens, os adultos são incluídos no processo de aprendizagem. Para além

da educação escolar há a extraescolar, na qual os agentes de mudança não são apenas os

escolares, mas todos os agentes educativos. Por fim, passa de uma visão fragmentada do

sistema escolar para uma visão sistêmica onde o projeto educativo não é apenas

institucional, mas comunitário.

Com esta visão, Torres (2003) nos oferece critérios importantes para a discussão da

articulação escola e comunidade. Assim como Barroso (2005) nos aponta para a

necessidade de superação das dicotomias Estado-indivíduo, público-privado, e Berger e

Luckmann (2004) apostam nas instituições intermediárias – e no papel da escola – como

possibilidade de integração entre estas dimensões, Torres (2003) enfatiza a necessidade

desta mesma visão integrada no campo educacional, ao destacar o papel educativo da

comunidade. Em sua visão, a educação não é exclusividade da escola, sendo que um

projeto educativo deve ser constituído de forma conjunta, utilizando os recursos

educativos da escola e da comunidade para a sua construção, de forma que responda às

demandas locais onde e escola está inserida. Articular, nesse sentido, é mais do que

fazer ações pontuais conjuntas; é projetar a educação local em conjunto.

Guará (2003) também compartilha essa visão ao afirmar a necessidade de construção de

novas estruturas para sustentar o sistema educativo. Segundo a autora, o grande número

de crianças com dificuldade de leitura e compreensão de texto, o fracasso e a repetência

escolar que empurram as crianças para o trabalho precoce, para as ruas e para o

empobrecimento crônico são indícios de que o desenvolvimento de nosso país depende

de avanços na área da educação. Como resposta a essa situação, a autora cita o artigos

34 e 87 das Leis de Diretrizes de Base (LDB), que preveem um aumento progressivo da

jornada escolar para o regime integral, e o artigo 3, que reconhece e valoriza as

instituições que desenvolvem experiências extraescolares em parceria com a escola.

Dentro desse contexto, a autora compreende que nenhuma instituição sozinha consegue

responder por toda a formação da criança e do adolescente e constata que hoje existem

muitas ações (da escola, da sociedade civil, de ONGs), mas falta articulação entre elas.

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Acredita que, para se colocarem em prática os desafios lançados pela LDB, há a

necessidade de se trabalhar sob a ótica de uma política pública mais ampla e de maior

articulação entre as várias esferas de ação, potencializando o que cada uma tem de

melhor a oferecer, sem rivalizar. Exemplifica possibilidades para esse tipo de

articulação ao abordar as especificidades da escola e das ONGs. Afirma que estas

últimas têm liberdade curricular para tentar metodologias alternativas e podem

colaborar para melhorar o desempenho escolar dos alunos com ações complementares

de esporte, cultura etc. Podem ainda auxiliar na reivindicação de uma escola de

qualidade junto ao poder público ou dialogando com a própria escola. Nesse sentido,

Guará (2003) parece incluir as ONGs como possíveis instituições intermediárias e,

portanto, parceiras da escola no processo educacional e de desenvolvimento social.

Entretanto, como afirmam Berger e Luckmann (2004), este papel não é garantido pelo

seu status ou proposta, mas somente quando confirmado na prática, por meio de ações

que reflitam os sentidos compartilhados pelos membros da comunidade local.

Gohn (2004) também discute a necessidade de articulação entre escola e comunidade ao

propor a transformação destas em centros de referências civilizatória nos bairros onde

se localizam e isto via processo de articulação com a sociedade civil organizada. Para a

autora, a articulação no campo da educação (formal e não formal) com a sociedade

(civil e política), por meio da participação compartilhada, é o principal caminho para

gerar um novo modelo civilizatório que tenha como referencial o ser humano em suas

necessidades, potencialidades e cultura vivida. Gohn afirma que a escola, através da

gestão compartilhada em uma determinada comunidade territorial, tem o papel de

formar cidadãos para atuar nos dias de hoje transformando as políticas arcaicas em

políticas transformadoras e emancipatórias. A autora complementa dizendo que a

participação em conselhos e colegiados na escola não acontece espontaneamente, mas

exige preparação, aprendizado permanente e atividade de ação e reflexão. Em outras

palavras, com abertura e planejamento, a escola teria um importante papel como

promotora de mecanismos de inclusão social.

A relação entre escola e comunidade também é discutida por outros autores do ponto de

vista específico do ensino-aprendizagem. Afonso (2001) aponta para esta inter-relação

como uma alternativa curricular diante dos modelos escolares tradicionais. Assim como

Torres (2003), utiliza o termo comunidade de aprendizagem, mas o define de acordo

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com o foco na aprendizagem. Em sua visão, uma comunidade de aprendizagem se

estrutura em forma de grupos descentralizados, com participantes que se auto-

organizam com o objetivo de se apoiarem e promoverem a aprendizagem de modo

eficaz. Afonso (2001) compreende que o que distingue uma comunidade de

aprendizagem de outros grupos de aprendizagem é o poder distribuído, o conhecimento

socialmente construído e partilhado, atividades de aprendizagem flexíveis e partilhadas,

a autonomia dos membros, níveis elevados de interação e colaboração e interesses e

objetivos comuns. Em suas palavras, o elemento central do projeto de uma comunidade

de aprendizagem é a “criação de contextos de aprendizagens que promovam a

participação coletiva e a interação dialógica enquanto suportes da reflexão,

argumentação e refutação” (AFONSO, 2001, p. 430).

Blank, Johnson e Shah (2003) ilustram, através de experiências concretas, como a

comunidade pode servir de recurso para ajudar os estudantes a se comprometerem mais

com o próprio conhecimento e estreitar laços entre escola e comunidade. Segundo os

autores, pesquisas mostram que a aprendizagem começa cedo. As crianças aprendem

em casa, na vizinhança, na escola e em qualquer lugar onde elas “se detêm por algum

tempo com sua mente curiosa”. Nesse sentido, defendem que a aprendizagem acontece

melhor quando há uma articulação entre família, comunidade local e escola,

possibilitando a formação de um contexto particular que eles denominam comunidade

escolar. Uma comunidade escolar utiliza a escola como local para ajudar a resolver

problemas da comunidade e utilizam a comunidade como recurso para um maior

engajamento dos estudantes com o conhecimento e com o serviço. Segundo essa

perspectiva, a comunidade passa a ser parte integrante do currículo da escola.

Vimos, portanto, como diferentes autores, apesar de nuances específicas nas abordagens

de cada um, concordam e defendem a ideia da necessidade de uma visão integrada entre

escola e comunidade, e apontam para a articulação entre essas instâncias como caminho

de desenvolvimento humano e social. Apresentaremos, a seguir, o referencial

metodológico utilizado na pesquisa.

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4. REFERENCIAL METODOLÓGICO

Apresentamos, neste capítulo, uma breve introdução às principais ideias que embasam a

fenomenologia e, em seguida, descrevemos os caminhos percorridos para a emergência

e compreensão do fenômeno da articulação.

4.1 A pesquisa fenomenológica

A fenomenologia surgiu no fim do século XIX como resposta ao modelo de ciência

predominante na Idade Moderna (séc. XV - XIX). Segundo Merleau-Ponty (2006), para

os modernos, a ideia de uma ciência universal só poderia vir com o advento do modelo

da matemática e das ciências naturais, visto como o único capaz de garantir o

conhecimento exato e comunicável do universo.

No século XIX, com o surgimento do positivismo, a ideia de um conhecimento

mensurável e possível unicamente pelos métodos experimentais foi reforçada. Todas as

ciências da época, inclusive a Psicologia, foram afetadas por esta concepção. Segundo

Merleau-Ponty (2006), a psicologia de inspiração positivista deveria olhar para fora,

estudando um sujeito distinto do observador. Buscava o enunciado de proposições

gerais, de leis verificáveis por relações causais simplificadas. Opondo-se

categoricamente a esta visão, havia a filosofia abstrata, que buscava desviar-se da

experiência, para descobrir, no sujeito pensante, os significados que poderiam ser

aplicados às coisas (MERLEAU-PONTY, 2006).

Edmund Husserl, considerado o precursor da fenomenologia, tinha como projeto

essencial a integração destas visões antagônicas que prevaleciam na Psicologia e na

Filosofia. Visava a afirmação da racionalidade em contato com a experiência e a busca

de um método que possibilitasse pensar ao mesmo tempo a interioridade e a

exterioridade (MERLEAU-PONTY, 2006). Husserl denunciou o distanciamento entre a

ciência e o mundo-da-vida, propondo o retorno ao homem visto como pessoa, na sua

complexidade e riqueza. Para ele, era necessário recuperar a dimensão ética da vida e as

questões realmente decisivas para uma humanidade autêntica (HUSSERL apud GOTO

2008, p. 105). Em sua visão, as pessoas haviam passado a viver como se o mundo

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objetivo/científico fosse a própria realidade, esquecendo-se de que ele é apenas uma

representação desta. Merleau- Ponty ilustra esta ideia ao afirmar:

O fato percebido e, de uma maneira geral, os eventos da história do mundo não podem ser deduzidos de um certo número de leis que formariam a face permanente do universo; inversamente, é a lei que é uma expressão aproximada do evento físico e deixa subsistir sua opacidade. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 7)

Husserl desenvolveu essa crítica após a I Guerra Mundial, ocasião em que perdeu um

filho em combate. Na Guerra, se explicitou a utilização do saber tecnológico para a

destruição, tornando clara a separação entre o mundo científico e o mundo ético.

Husserl denunciou a supervalorização do mundo objetivo afirmando que, na sua

especificidade, ele acabou deixando de fora questões humanas fundamentais como os

valores, a cultura e a ética. Com essa crítica, afirmou o empobrecimento da realidade e

apontou para a crise de sentido das ciências europeias, cada vez mais distantes do

mundo-da-vida. Como resposta a essa situação, propôs com a fenomenologia o retorno

às coisas mesmas, valorizando a experiência vivida como fonte primeira de

conhecimento. De acordo com Masini (1993), “a fenomenologia é o retorno ao mundo

presente para cada um, às coisas sobre as quais não pensamos e que compõem o nosso

cotidiano” (MASINI, 1993, p. 73).

O termo fenomenologia não foi utilizado primeiramente por Husserl. Segundo Merleau-

Ponty (2006), ele tem origem em Hegel e foi retomado por Husserl com o sentido de

aliar a exigência do concreto e, ao mesmo tempo, da lógica. Ales Bello (2006) afirma

que a palavra fenomenologia é formada de duas partes originadas de palavras gregas. A

primeira delas é fenômeno e significa aquilo que se mostra; e a segunda, logia, um

sufixo que deriva da palavra logos e que significa pensamento ou capacidade de refletir.

Assim, a fenomenologia na utilização de Husserl pode ser compreendida como a

capacidade de refletir a respeito daquilo que se mostra. Refletir para compreender o que

se mostra. Sendo assim, ela não se interessa pelos dados objetivos, pela factualidade.

Seu objeto de estudo é a experiência vivida dos sujeitos, ou seja, o objeto na forma

como ele é apreendido pela consciência dos sujeitos. Uma consciência intencional, que

se volta para o objeto, deixando que ele se mostre, se revele a ela.

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A ideia de uma consciência intencional foi um dos pontos fundamentais na formulação

da fenomenologia. Ao afirmar que toda consciência é consciência de algo, Husserl

demonstra que a consciência é aberta ao exterior e ativa, contribuindo para a

constituição do mundo de nossa experiência.48 Pelo conceito de intencionalidade da

consciência, a fenomenologia rompe com a dicotomia sujeito-objeto e entende que o

conhecimento é possível a partir da compreensão dessas duas realidades como uma

unidade inseparável, ou seja, a partir de um sujeito que se dirige intencionalmente a um

objeto e deste objeto que se revela à consciência do sujeito. Esta ideia é descrita por

Giorgi (2008) ao afirmar que “para a fenomenologia, ser um sujeito significa ser já

vinculado ao mundo, e toda análise do mundo supõe, ao menos implicitamente, um

sujeito ou uma consciência para a qual o mundo é” (GIORGI, 2008, p. 390). Van der

Leeuw (1933) esclarece que o fenômeno não é produzido pelo sujeito. Sua essência

consiste em se mostrar a alguém e, quando esse alguém se interroga pelo que se mostra,

faz fenomenologia.

Husserl propôs, portanto, a superação da atitude natural de aceitação da realidade dos

fatos, para uma atitude voluntária, intencional a respeito do que se mostra. Segundo

Ales Bello (2000, p. 39), Husserl afirma a necessidade de passarmos de uma atitude

acrítica de aceitação passiva, para uma conscientização vigilante, que escuta o apelo da

coisa (Sachen) tal como se apresenta, tornando este fenômeno objeto de investigação,

de compreensão (ALES BELLO, 2000, p. 41). Edith Stein (1998) afirma que podemos

duvidar da existência da coisa que vemos diante de nós, mas não podemos duvidar da

nossa experiência vivida desta coisa. Giorgi (2008) exemplifica esta situação ao afirmar

que, ao vermos uma mesa, em vez de dizermos isto é uma mesa, do ponto de vista da

fenomenologia seria mais rigoroso dizer que este objeto se apresenta para mim como

uma mesa.

Segundo a Ales Bello (2006), compreender o sentido daquilo que se mostra não é algo

que acontece de modo imediato, mas exige certas operações, propostas por Husserl no

método fenomenológico.

48 A ideia de uma consciência aberta e ativa é importante por se contrapor respectivamente às correntes racionalista e empirista que apresentavam o conhecimento como resultado unicamente de uma estrutura racional do sujeito e, portanto, como um processo fechado – racionalismo – e como o resultado de intervenções externas em um sujeito passivo, visto como uma tábula rasa onde o mundo era gravado de fora pra dentro – empirismo.

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O método, na forma como Husserl o concebeu, é um longo caminho a ser percorrido e

explicitado. Ales Bello49 afirma que, ao enfatizar o método, Husserl valoriza o processo

de construção do conhecimento e critica a visão positivista-pragmática que visa

resultados imediatos. Husserl aponta para a fragilidade de se apoiar sobre os resultados,

sempre contestáveis, e coloca a ênfase no caminho “bem feito”, que mostrará ao outro

como chegamos a determinado resultado. Segundo Espósito,50 o rigor no método

fenomenológico está justamente em percorrer e descrever cada etapa percorrida. E quais

são essas etapas?

Ales Bello (2006) descreve duas etapas. A primeira delas é a redução à essência, ou

seja, a redução àquilo que a coisa é, segundo o seu próprio ser. Essa etapa consiste em

captar aquilo que é essencial do fenômeno através de uma visão imediata, intuitiva. Para

que isso seja possível, Husserl propõe que deixemos de lado teorias dadas, raciocínios

elaborados, preconceitos, juízos, visões do senso comum, e nos aproximemos do

fenômeno com um olhar livre que nos permita captar o seu sentido. “A redução põe

entre parênteses as relações espontâneas da consciência com o mundo, não para negá-

las, mas para compreendê-las” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 402). Esse procedimento

é chamado por Husserl de suspensão ou epoché.

Suspender não significa eliminar ou negar essas relações espontâneas com o mundo,

mas sim colocar entre parênteses para voltar a atenção àquela situação onde o fenômeno

se manifesta a nós. Embora a suspensão total seja praticamente impossível, quanto mais

o pesquisador estiver consciente e conseguir distanciar-se de seus preconceitos,

julgamentos e teorias, tanto mais ele garantirá o rigor do método.

A segunda etapa do método fenomenológico na forma proposta por Husserl é a redução

transcendental, que consiste em buscar a essência do ser humano. Husserl afirma que

este é um paradoxo já que, nesta situação, a pessoa passa a ser ao mesmo tempo sujeito

e objeto de estudo. O que ele propõe é que realizemos uma redução entrando dentro de

49 No curso A estrutura da pessoa humana, promovido pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, 30 horas, 2009. 50 Notas de aula ministrada pela Profa. Dra. Vitória Helena Espósito na PUC em abril de 2010, na disciplina Projeto Articulação e Diálogo do curso de pós-graduação em Educação: Psicologia da Educação.

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nós mesmos e buscando apreender o que somos a partir do interior, focando a atenção

nos atos da consciência (ALES BELLO, 2000, p. 47). Isso possibilita apreender a

essência da pessoa, captando uma constituição interior universal, comum a todos. Essa

etapa é denominada de redução transcendental porque busca a constituição interna,

aquilo que é próprio do sujeito, uma capacidade transcendental51 que não deriva de fora.

A partir da redução transcendental, Husserl descobre que as experiências vividas da

pessoa são de diferentes naturezas e correspondem a três diferentes dimensões humanas:

corpórea, psíquica e espiritual. Pela redução transcendental, o autor chega, portanto, à

uma constituição de pessoa como uma unidade composta pelas dimensões física,

psíquica e espiritual.

Edith Stein, como discípula e posteriormente assistente de Husserl, fez parte do Círculo

de Gottingen, local onde ele lecionava e que reuniu importantes filósofos como Martin

Heidegger, Adolf Reinach, Max Scheler, Conrad-Martius, Roman Ingarden entre

outros, que queriam aprender o novo método e que desenvolviam estudos em

fenomenologia a partir de diferentes temas de interesse pessoal (COELHO JUNIOR,

2006). Stein se ateve principalmente ao estudo da Antropologia, que desenvolveu em

sua tese de doutorado trabalhando sobre o tema da empatia. Nesse estudo a autora

utiliza o método na forma como o descrevemos acima. Ao estudar o ser humano, ela

realiza a redução transcendental e chega a resultados convergentes aos observados por

Husserl. Em seguida realiza a redução à essência com cada uma das três dimensões

apreendidas (física, psíquica e espiritual). Segue as premissas metodológicas do mestre,

ou seja, procura percorrer o caminho ela mesma, e a precisão com que o faz é

confirmada pelos resultados convergentes a que chegou (ALES BELLO, 2000, p. 87).

Como nos referimos acima, além de Edith Stein, outros filósofos que participaram do

Círculo de Gottingen desenvolveram estudos na área da fenomenologia com enfoques

diferentes. Entre eles, temos Martin Heidegger (1889-1976), cuja contribuição se dá

com a fenomenologia existencial. Segundo Espósito (1994), Heidegger coloca no centro

51 Ales Bello (2004, p. 49) esclarece a diferença entre os termos transcendental e transcendente. O primeiro, como dissemos, é o que é próprio do sujeito, faz parte de sua subjetividade; enquanto transcendente refere-se ao que está além do sujeito.

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do inquérito fenomenológico não o conhecimento em si, a epistemologia (como o faz

Husserl), mas o ser na sua existência, ou seja, a ontologia.

Para Moura (1992), embora Husserl e Heidegger não reconheçam a proximidade de

suas abordagens, a fenomenologia de Husserl contribuiu para a constituição do

existencialismo.

Se é verdade que a enumeração dos direitos autorais de Husserl é sempre seguida de críticas a pontos precisos de sua doutrina, não é menos verdade que, no essencial, o existencialismo nunca deixará de se reconhecer em Husserl. (MOURA, 1992, p. 33)

O mesmo autor cita Merleau-Ponty ao afirmar que “a redução fenomenológica é a

fórmula de uma filosofia existencial” (MOURA, 1992, p. 33). Moura explica este fato

retomando as noções de redução e fenômeno. Como dissemos anteriormente, a

fenomenologia busca superar a dicotomia imposta pela visão natural ao separar o

mundo e suas representações. A ideia de fenômeno como um todo inseparável formado

pelo objeto que se manifesta a um sujeito e um sujeito que se refere ao objeto, rompe

com a noção cartesiana de que existe uma subjetividade imanente e uma exterioridade

transcendente e de que o conhecimento, para ser objetivo precisa ultrapassar essa

subjetividade interna.

Um dos avanços da fenomenologia husserliana está justamente na ampliação da noção

de subjetividade. Segundo o autor, Husserl afirma que “com a redução, o mundo torna-

se algo subjetivo” (MOURA, 1992, p. 34). O mundo torna-se algo subjetivo enquanto

manifestação de um objeto sob um certo ponto de vista.52 Assim, a redução aborda o

fenômeno em seu conceito ôntico (existente) e, neste contexto, o objeto é compreendido

como a unidade dos múltiplos fenômenos, ou seja, como a unidade dos diversos modos

de ser dado, manifesto e desvelado por diferentes sujeitos.

Nesse sentido, aquilo que se mostra à consciência é sempre a realidade, embora uma

realidade parcial, pois o objeto se compõe da unidade dos vários fenômenos. Sendo

52 Segundo Moura (1992, p. 38), a redução desvela uma subjetividade sem exterior e, por isso, ela tem uma significação transcendental.

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assim, aquilo que se mostra nos remete a uma dimensão oculta do objeto e o “objeto

todo remete a um horizonte de outros objetos que estão implicados no objeto atual de

minha consciência. Enfim, todos eles remetem ao mundo que é o horizonte geral de

minha experiência” (MOURA, 1992, p. 43).

E qual a consequência disso? Segundo Moura (1992), a redução neutraliza uma natureza

onde os acontecimentos são distintos e separados. Na redução, um acontecimento

remete interiormente a outro de forma que cada parte remete ao todo, é parte de um

todo. O autor afirma que esse é o benefício último da fenomenologia para a reflexão a

respeito da existência, ou seja, que, graças à redução, agora nada é fortuito. “No plano

dos fenômenos, tudo é essencial e não há nenhum gesto que não se jogue o todo da

existência humana” (MOURA, 1992, p. 44).

Apoiados na visão de Moura (1992) que explicita a proximidade entre a fenomenologia

husserliana e a fenomenologia existencial, este trabalho articula ambas abordagens ao

utilizar, de um lado, um referencial teórico que se pauta sobre os resultados de estudos

realizados com o método de Husserl e, de outro, um referencial metodológico inspirado

numa perspectiva existencial. Assim, utilizamos a contribuição de Edith Stein ao

adotarmos como referencial teórico os resultados de seu estudo a respeito da pessoa e da

comunidade, enriquecendo nossa análise e discussão com os elementos essenciais de

cada uma dessas instâncias.

Por outro lado, em relação aos passos metodológicos, seguimos o modelo de análise

compreensiva utilizado por Szymanski (2004), descrito no item 4.3 Caminhos para a

compreensão do fenômeno, e cujo referencial de base é a fenomenologia existencial de

Martin Heidegger. Buscamos, desta forma, alinhar de maneira coerente o presente

estudo com o projeto maior no qual ele se insere, ou seja, o Projeto Articulação e

Diálogo descrito na Apresentação deste trabalho.

Passaremos agora à descrição dos caminhos percorridos para a emergência e

compreensão do fenômeno.

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4.2 Caminhos para a emergência do fenômeno

Utilizamos, como base de análise para esta pesquisa, observações das oficinas de

literatura marginal, encontros com educadores e gestores da escola, e uma entrevista

reflexiva com um grupo de alunos da oficina.

Durante um semestre, foram feitas observações quinzenais das oficinas de literatura

marginal, que aconteciam uma vez por semana por um período de duas horas. Das

oficinas de grafite foram feitas duas observações: uma no início do semestre e outra no

final. Durante a situação de observação, houve participação da pesquisadora em

atividades como organização do espaço e do material utilizado, leitura de poemas e

dinâmica de grupo.53

Os encontros com os educadores e equipe gestora da EMEF Igarapé aconteceram

durante o tempo em que a pesquisadora aguardava o início da oficina ou logo após o seu

término. Alguns encontros foram planejados antecipadamente e tiveram como objetivo

dar um retorno das observações aos participantes. Outros ocorreram espontaneamente e

partiram tanto de iniciativa da pesquisadora quanto da equipe gestora e do educador da

oficina de literatura marginal (Knup Acrata).

As observações e conversas tinham como objetivo captar a experiência vivida dos

participantes do projeto de literatura marginal. A compreensão dos sentidos dessa

experiência para cada um, suas motivações, escolhas, expectativas e desafios

enfrentados durante o processo foram as questões de fundo que colocaram a

pesquisadora em movimento.

Nas observações, havia uma intenção de compreender:

- A proposta do coletivo e da literatura marginal

- Objetivos e metodologia utilizada nas oficinas

- Relação entre os alunos e entre estes e Knup Acrata

53 A participação da pesquisadora não teve um caráter interventivo. As atividades foram propostas e coordenadas pelo educador responsável.

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As conversas foram norteadas por questões como:

- Sentidos da articulação para Knup Acrata, coletivos, Francisco (diretor) e Alice

(coordenadora pedagógica): o que motivou o encontro e a vontade de

trabalharem juntos

- Objetivos e expectativas em relação à oficina de literatura marginal para Knup

Acrata e Alice

- Compreensão da relação dos professores com a oficina de literatura marginal e

visão deles a respeito das repercussões do projeto nos alunos

A ideia de acompanhar as oficinas ao longo de um semestre partiu de uma preocupação

de compreensão da articulação enquanto um processo que se constitui ao longo do

tempo, de acordo com a experiência vivida e as tomadas de posição dos participantes.

Sendo assim, entendemos que a compreensão deste processo seria mais rica se houvesse

um acompanhamento contínuo, de longo prazo.

Além das observações e dos encontros, foi realizada uma entrevista reflexiva com um

grupo de alunos, com o objetivo de compreender o sentido da experiência da oficina de

literatura marginal e do grafite para eles. Apresentaremos, a seguir, a fundamentação

teórica sob a qual nos apoiamos para a realização desta entrevista e o roteiro elaborado

para tal.

4.2.1 Entrevista reflexiva

A entrevista reflexiva é um conjunto de procedimentos desenvolvido por Szymanski a

partir de sua experiência com projetos e orientações de pesquisas qualitativas. Essa

modalidade surgiu da necessidade de considerar o aspecto interativo da situação de

entrevista e de incluir os significados subjetivos que envolvem essa situação. Nessa

perspectiva, o curso da entrevista e o tipo de informação coletada levam em conta tanto

a intencionalidade do pesquisador como a do pesquisado e o jogo de emoções e

sentimentos que permanecem como pano de fundo durante todo o processo interativo

(SZYMANSKI, 2004, p. 12). Pensando na intencionalidade, do ponto de vista do

pesquisador, o que se busca é criar uma situação de confiabilidade que facilite a

abertura do entrevistado a fim de que este traga dados relevantes para sua pesquisa. No

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caso do entrevistado, a intenção está no fato de ele querer ser ouvido e considerado

verdadeiro no que diz. Além disso, segundo a autora, o entrevistado desenvolve

atitudes que influenciam o pesquisador provocando nele emoções como piedade, medo,

admiração ou respeito.

Um outro aspecto considerado por Szymanski na situação de entrevista é a relação de

poder e desigualdade entre entrevistador e entrevistado. O encontro é provocado pelo

pesquisador. É ele quem elege a questão de estudo, escolhe quem entrevistar e dirige a

situação de entrevista. Segundo a autora, essa situação de desigualdade de poder pode

ser amenizada pelo diálogo, pelo qual o pesquisador respeita e acolhe os saberes da

experiência do entrevistado como o resultado de uma compreensão de mundo. Além

disso, o pesquisador pode buscar maior horizontalidade ao considerar e respeitar o

conhecimento do entrevistado a respeito de seu mundo e da relação entre eles,

considerando os ocultamentos e distorções que podem acontecer como decorrência

desse conhecimento. Para o entrevistado, algumas informações podem ser ameaçadoras

ou desqualificadoras para si ou para seu grupo ou, ao contrário, podem trazer uma visão

mais favorável dos mesmos (SZYMANSKI, 2010, p. 13). Trata-se, portanto, do ponto

de vista do entrevistador, de considerar o papel ativo do entrevistado na situação da

entrevista, respeitando tanto a sua fala como o seu silêncio.

Ao abordar a situação de entrevista como um contexto interativo, Szymanski

compreende o dado como algo construído na situação e não como algo pronto de

antemão a ser transmitido passivamente pelo entrevistado. A entrevista se constitui,

portanto, como um momento de construção de conhecimento coletivo, um processo de

tomada de consciência onde a fala de um influencia no outro. É esse processo ativo de

troca de significados que traz o caráter reflexivo para a entrevista. Do ponto de vista do

entrevistado, a reflexão se faz presente também na construção do discurso. A situação

de entrevista exige que ele organize seu conhecimento de forma a construir um discurso

compreensível ao outro, e isso requer um movimento reflexivo. Muitas vezes pode ser a

primeira vez que aquele conhecimento é organizado por ele na forma de uma narrativa

e, mesmo que não o seja, a narrativa construída na situação da entrevista será única,

particular porque estará voltada para uma situação e um interlocutor particular. Assim,

“o movimento reflexivo que a narração exige, acaba por colocar o entrevistado diante

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de um pensamento organizado de uma forma inédita para ele mesmo” (SZYMANSKI,

2010, p. 14).

O caráter reflexivo da situação de entrevista se encontra também, segundo a autora, no

sentido de refletir sobre a fala do entrevistado. Ao longo da entrevista, o entrevistador

submete ao entrevistado a compreensão que teve de sua fala. Ao deparar-se com a sua

própria fala, na fala do pesquisador, o entrevistado tem a possibilidade de voltar para a

questão discutida e articulá-la de outra maneira, em uma nova narrativa, o que gera um

novo movimento reflexivo. Szymanski lembra que esse procedimento de voltar ao

entrevistado dando-lhe a possibilidade de discordar ou modificar suas proposições

cumpre com o compromisso ético presente em qualquer situação de entrevista e

contribui para a construção de uma horizontalidade.

Dentro desse contexto, podemos dizer que a entrevista reflexiva é uma modalidade de

entrevista semidirigida com um roteiro aberto, baseado na fala do entrevistado. Segundo

Szymanski (2010), ela pode ser individual ou em grupo e é realizada no mínimo em

dois encontros. Inicia-se com um primeiro contato com o entrevistado, no qual o

pesquisador se apresenta fornecendo dados sobre sua pessoa, instituição de origem e

objetivos da pesquisa. Neste primeiro encontro, solicita-se também a permissão para

gravação da entrevista e se assegura o direito ao entrevistado de acesso às gravações e

análises, bem como ao anonimato. Abre-se também espaço para perguntas e

esclarecimentos, lembrando a importância para o pesquisador de adaptar sua linguagem

ao contexto do entrevistado e buscar estabelecer uma relação cordial com o mesmo. É

importante também, nesse momento, deixar o entrevistado livre para participar ou não

da pesquisa. Realizado esse primeiro contato, parte-se para a realização da entrevista,

cujo processo de condução descreveremos a seguir.

Szymanski (2010) sugere que, na fase inicial da entrevista, seja proposto um pequeno

aquecimento que possibilite uma apresentação mais pessoal do entrevistado, o

estabelecimento de um clima de descontração e a introdução do tema em estudo. Um

dos exemplos trazidos pela autora sobre esse momento da entrevista foi o de uma

pesquisa realizada em uma fábrica, cujo objetivo era estudar o impacto da identidade

atribuída pela empresa na identidade dos trabalhadores. A entrevista foi realizada em

grupo e, como aquecimento, sugeriu-se que cada um dos participantes contasse a

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história do seu nome e em seguida contasse algum apelido que possuísse na família ou

na empresa. Essa atividade propiciou uma apresentação da história de vida dos

participantes, bem como uma reflexão inicial sobre o tema da identidade.

Após a fase de aquecimento, o pesquisador apresenta a questão desencadeadora, que

será o ponto de partida para a fala do participante. Szymanski lembra, ao citar Banister

et al. (1994),54 que a entrevista aberta muitas vezes mascara pressupostos, agendas e

expectativas e que, nesse sentido, é importante que estejam claros os objetivos e a

contribuição que o entrevistado poderá trazer para responder ao problema pesquisado.

Sendo assim, a questão desencadeadora necessita ser cuidadosamente elaborada a partir

dos objetivos da pesquisa. Ao formulá-la, o pesquisador deve procurar garantir que a

fala do entrevistado estará focalizando o ponto que ele quer estudar sem, no entanto, ser

diretivo, ou seja, deve procurar formular uma pergunta ampla o suficiente para deixar o

entrevistado expressar-se livremente sobre o assunto. A questão desencadeadora tem

como objetivo trazer à tona a primeira elaboração, o primeiro arranjo narrativo que o

entrevistado pode oferecer sobre o tema (SZYMANSKI, 2010, p. 28). A autora sugere

que o pesquisador tenha a questão desencadeadora elaborada de diferentes maneiras, a

fim de auxiliar o entrevistado caso ele peça esclarecimento, e a fim de evitar o

distanciamento de seus objetivos ao tentar oferecer explicações improvisadas no

momento da entrevista. Sugere, ainda, um cuidado do pesquisador em relação à escolha

do termo interrogativo. Questões que indagam o “porquê” de alguma experiência

tendem a uma resposta indicadora de causalidade, enquanto questões que indagam o

“como” e o “para quê”, induzem respectivamente a uma narrativa (uma descrição) e ao

sentido que orientou determinada escolha.

Como dissemos anteriormente, ao longo da entrevista, o pesquisador apresenta a sua

compreensão do discurso do entrevistado submetendo-a às considerações deste. Isso

garante uma maior fidedignidade, além de, como foi dito, promover um novo

movimento reflexivo e favorecer uma situação de horizontalidade na entrevista. Além

de indicar sua compreensão, Szymanski (2010) aponta que a atuação do pesquisador ao

longo da entrevista pode dar-se através de sínteses, questões de esclarecimento,

54 BANISTER, P. et al. Qualitative methods in psychology: a research guide. Buckingham: Open University Press, 1994, p. 50.

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questões focalizadoras ou de aprofundamento, sempre visando manter o foco do

problema estudado.

E, por fim, a última fase da entrevista reflexiva é a devolução, ou seja, a exposição

posterior da compreensão do pesquisador sobre a experiência relatada pelo entrevistado.

A devolução acontece em um novo encontro, no qual o pesquisador apresenta a

transcrição da entrevista e uma pré-análise para consideração do entrevistado.

Considera-se que o entrevistado deva ter acesso à interpretação do entrevistador, já que

ambos produziram um conhecimento na situação interativa da entrevista.

Para a realização da entrevista coletiva com os alunos, foi realizado um encontro da

pesquisadora com todos os que haviam participado das oficinas de literatura marginal.

Nesse encontro, a pesquisadora explicou-lhes o objetivo da pesquisa e a intenção de

realizar uma entrevista em grupo, deixando-lhes a possibilidade de escolha em

participar ou não. Os alunos que mostraram interesse em participar levaram para casa o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para ser preenchido por seus

responsáveis, e foi agendada a data da entrevista.

O grupo foi composto de oito alunos. A entrevista foi dividida em três momentos. O

primeiro foi um aquecimento durante o qual eles confeccionaram crachás e lembraram

das atividades realizadas na oficina. No segundo momento, foi iniciada uma conversa

norteada pelas seguintes questões:

- Quando vocês se inscreveram na oficina, o que buscavam?

- Vocês tiveram o que queriam?

- Vocês tiveram outras coisas que não esperavam?

- O que mais gostaram?

O terceiro momento foi uma finalização. Foi pedido aos alunos escolhessem um nome

pelo qual gostariam de ser chamados na pesquisa e o escrevessem atrás dos crachás,

posteriormente recolhidos pela pesquisadora.

Tendo explicitado os caminhos para a emergência do fenômeno, passaremos, a seguir, à

descrição dos caminhos percorridos para a compreensão do mesmo.

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4.3 Caminhos para a compreensão do fenômeno

Como afirmamos anteriormente, a emergência do fenômeno foi possibilitada pela

imersão da pesquisadora no contexto de pesquisa a partir 1) das observações das

oficinas – que possibilitaram a convivência, principalmente, com Knup Acrata e os

alunos –, 2) de conversas com o diretor, a coordenadora pedagógica e os professores de

português e artes, e 3) da entrevista em grupo com os alunos. Dessa experiência,

nasceram narrativas, construídas pela pesquisadora de forma a obter uma descrição que

servisse de referência para a compreensão do fenômeno da articulação.

A partir das narrativas, realizamos uma análise compreensiva em duas etapas. Na

primeira, fizemos uma análise por pessoa e, na segunda, procuramos discutir e

relacionar o material de cada participante, de forma a obter uma visão ampla do

processo de articulação e da inter-relação entre os dois grupos envolvidos (coletivos e

EMEF Igarapé).

Apresentaremos, a seguir, a fundamentação teórica e uma descrição mais detalhada da

narrativa e da análise compreensiva.

4.3.1 Narrativa

Consideramos a narrativa como caminho para a compreensão do fenômeno e não como

parte do processo anterior – de emergência do mesmo –, porque entendemos que, ao

narrar, de alguma forma já estamos realizando a redução. Isto porque a narrativa implica

uma seleção dos conteúdos a serem narrados, deixando outros aspectos de lado. Esta

seleção acontece de acordo com o modo como o pesquisador é tocado, o modo como o

fenômeno o afeta pessoalmente, suscitando questões que emergem no contato com o

próprio ambiente da pesquisa, e que ele trabalhará para responder ao longo da mesma.

Este movimento faz parte do método fenomenológico na forma como é apresentado por

Van der Leeuw (2009), que o denomina inserção na própria vida. Não olhamos o

fenômeno como algo alheio a nós, mas a partir do modo como ele nos afeta, do modo

como ele suscita em nós interesses, intuições, perguntas. Podemos tornar isso um modo

de conhecer a partir do momento em que conseguimos rever estas impressões, trabalhá-

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las – reconhecendo, por exemplo, algum ponto de preconceito em nós – e deixar que

elas nos orientem no processo de pesquisa.

Na apresentação da obra de Edith Stein Psicologia e Ciências do Espírito, Ales Bello

afirma que “nas pesquisas de Stein, nada é preconstituído por um pensamento que já

pense na totalidade, mas se busca, com paciência, repercorrer os fios que tecem a

realidade” (ALES BELLO, 1999, p. 25).

Inspirada por essa postura, a utilização da narrativa teve como objetivo explicitar o

caminho percorrido pela autora para chegar à emergência do fenômeno a fim de

proporcionar ao leitor a possibilidade de acompanhar esse percurso e ilustrar a ideia de

conhecimento como fruto de um processo que busca a compreensão da experiência

viva, vivida. Além disso, a narrativa pareceu-nos um caminho interessante por permitir

abordar o fenômeno da articulação não como algo pronto, estático e acabado, mas como

uma realidade em construção, com seus movimentos complexos que unem diferentes

expectativas, realizações e frustrações, proximidades e distâncias.

Narrar, na concepção de Benjamin (1994), refere-se à possibilidade de intercambiar

experiências. Para o autor, a narrativa é uma forma de comunicação artesanal que está

em vias de extinção devido ao modo de vida da moderna sociedade capitalista. Segundo

Gagnebin (1994), Benjamin afirma que a arte de contar é favorecida por algumas

condições que já não existem nesta sociedade.

Na narrativa, a experiência transmitida deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Ela

pressupõe uma comunidade de vida e de discurso que se apoia, sobretudo, na atividade

artesanal. O ritmo lento e orgânico do artesão permite uma sedimentação progressiva

das diversas experiências e uma palavra unificadora. Na visão do autor, seus

movimentos precisos, respeitosos com a matéria que transforma, têm uma relação

profunda com a atividade narradora, pois para ele, esta também é “uma maneira de dar

forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a

voz, entre o gesto e a palavra” (GAGNEBIN, 1994, p. 11).

Sendo assim, a figura do narrador, daquele que conta, identifica-se com o artesão

experiente, o velho sábio que ocupa uma posição privilegiada ao se aproximar da morte.

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Alguém capaz de transmitir com autoridade uma experiência aos mais jovens. Alguém

que transmite um saber prático sob a forma de uma moral, uma advertência ou mesmo

de um conselho. Segundo Benjamin (1994, p. 200), “aconselhar é menos responder a

uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuidade de uma história que está

sendo narrada”. Esta definição destaca a inserção do narrador e do ouvinte dentro de um

fluxo narrativo comum e vivo, pois a história continua e está aberta a novas propostas e

ao fazer junto. O conselho, tecido na substância viva da existência, é o que o autor

chama de sabedoria e que indica como fora de moda pelo fato das experiências hoje

estarem deixando de ser comunicáveis. Na visão do autor, a narrativa se perdeu no

ritmo acelerado da sociedade moderna, em que os grupos humanos foram separados por

grandes distâncias; a produção artesanal cedeu lugar à produção em série da indústria, à

visão compartimentada e utilitária das coisas; o velho passou a ser visto como inútil e a

morte uma ameaça a ser banida do olhar dos mortais.

Nesse contexto, onde a experiência coletiva já não encontra espaço, a narrativa foi

substituída pelo romance e pela informação jornalística, duas formas de comunicação

que possuem em comum a necessidade de encontrar uma explicação para os

acontecimentos, sejam eles reais ou ficcionais. No caso da informação, por exemplo,

aspira-se a uma verificação imediata, pois é indispensável que ela seja plausível e isso a

torna incompatível com o espírito da narrativa. Para Benjamin, metade da arte de narrar

está em evitar explicações. Nela, o extraordinário e o miraculoso são narrados com

exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor, que interpreta a

história como quiser. O autor afirma que, quanto maior a naturalidade com que o

narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na

memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e

mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia (BENJAMIN, 1994,

p. 204).

Ainda segundo o autor, esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas

e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro hoje em dia, pois tem

como grande aliado o tédio.

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente

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associadas ao tédio – já se extinguem na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. (BENJAMIN, 1994, p. 204)

Para Benjamin, o narrador não está interessado em transmitir o puro-em-si da coisa

narrada. A narrativa está impregnada da sua experiência e do seu modo de ser, “ela

mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime

na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”

(BENJAMIN, 1994, p. 205).

Geralmente suas histórias começam com uma descrição das circunstâncias onde foram

informados sobre os fatos que vão contar. Benjamin afirma que os vestígios do narrador

estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as

viveu, seja na qualidade de quem as relata.

Como dissemos anteriormente, narrar, para Benjamin, refere-se à possibilidade de

intercambiar experiências. Neste sentido, a fonte a que recorrem os narradores é a

experiência que passa de pessoa a pessoa. O autor afirma que as melhores narrativas

escritas são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros

narradores anônimos. Afirma ainda que, para compreendermos a figura do narrador,

precisamos recorrer a dois tipos fundamentais que representam dois grupos distintos de

narradores: o viajante, ou seja, o narrador imaginado como alguém que vem de longe,

representado na figura do marinheiro comerciante; e o homem local, que ganhou a vida

sem sair de seu país, que conhece suas histórias e tradições e que é representado pela

figura do camponês sedentário. Para Benjamin, a extensão real do reino narrativo, em

todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendido se levarmos em conta a

interpenetração desses dois tipos arcaicos (BENJAMIN, 1994, p. 199). O autor

complementa afirmando que o sistema corporativo medieval contribuiu para essa

interpenetração, pois, nele, o mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam

juntos na mesma oficina. E cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se

fixar em sua pátria ou no estrangeiro.

A narrativa nesse estudo teve como base as observações, os encontros e a entrevista

com o grupo de alunos. Foi o resultado do processo de imersão da pesquisadora na

situação de pesquisa. Tomando a imagem do marinheiro comerciante, do narrador como

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aquele que vem de longe, as narrativas construídas tiveram um sentido de busca de

compreensão de uma realidade à qual a narradora era estrangeira. As narrativas

surgiram da necessidade de registrar e organizar experiências vividas e ouvidas,

buscando tecer um percurso para melhor compreendê-lo. Surgiram ainda da necessidade

de partilhar esse percurso com outros, como o viajante que registra em seu diário as

situações, as conversas, a descrição dos lugares inusitados pelos quais passa a fim de

compartilhar futuramente essa experiência com os que ficaram. As narrativas surgiram

como uma necessidade de fotografar, de querer guardar uma imagem. Surgiram da

necessidade de registro. É como se o registro trouxesse concretude, visualização para o

invisível, “garantisse a eternização” de cada uma das experiências vividas na situação

de pesquisa, permitindo-nos voltar a elas e visualizar um percurso, um processo. Um

processo que fala da construção de um conhecimento, tecido passo a passo em cada

nova experiência e em cada nova compreensão que cada experiência traz. Sendo assim,

a narrativa tem o sentido também do aprendiz migrante, que vai em busca de um

conhecimento que os mestres locais podem lhe oferecer.

Consideramos a narrativa como necessidade porque foi realmente isso o que

pesquisadora viveu. A necessidade de, cada vez que chegava de uma manhã na EMEF,

sentar em frente ao computador e escrever, escrever. Escrever quase num ato

compulsivo e de tal forma intenso que nenhum detalhe poderia ser perdido. Escrevia

para não perder a riqueza e a preciosidade daquelas experiências.

As narrativas foram, portanto, o texto de referência55 para a realização da análise

compreensiva do fenômeno. As observações e os encontros estão narrados no item 5.1

Andanças, e a entrevista reflexiva, no item seguinte.

Passaremos, agora, à descrição da análise compreensiva.

4.3.2 Análise compreensiva

55 Como veremos adiante (item 4.3.2, Análise compreensiva), a elaboração de um texto de referência faz parte do processo da análise compreensiva descrita por Szymanski (2004).

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O procedimento utilizado para a análise das narrativas baseia-se na metodologia de

análise compreensiva apresentada por Szymanki (2004). Tal proposta fundamenta-se na

fenomenologia existencial de Martin Heidegger, para quem “pesquisar implica

‘suportar’ a manifestação dos entes, sem enquadrá-los em concepções prévias, sejam

elas teóricas ou de senso comum” (SZYMANSKI, 2004, p. 2).

Dentro desta concepção, a autora propõe alguns passos metodológicos que possibilitam

ao pesquisador a apreensão do significado daquilo que ele quer compreender. Deixa

claro, entretanto, que esse caminho não é algo imposto de forma rígida, mas serve de

orientação ao pesquisador iniciante, que conta também com seus próprios recursos e

criatividade para o estudo do fenômeno em questão. Um outro ponto importante

levantado pela autora é a necessidade de consciência por parte do pesquisador, de suas

próprias limitações na apreensão do fenômeno. Neste caso, inferimos que a postura de

abertura e suspensão proposta pela fenomenologia implica muito mais levar em conta os

“filtros” pessoais e culturais que muitas vezes impomos ao que se manifesta, do que

buscar uma neutralidade impossível.

Baseando-nos na descrição do procedimento utilizado por Szymanski (2004),

apresentamos de forma sucinta os diferentes momentos que procuramos percorrer para a

compreensão do fenômeno. O primeiro deles consiste na transcrição da entrevista, no

registro das observações e encontros ocorridos no contexto de pesquisa. Conforme

relatado no item anterior, neste estudo o registro ocorreu logo após a situação vivida e

foi feito com o apoio de anotações realizadas durante o contato com os participantes.

Realizado o registro, o pesquisador entra em contato com esse material por meio de

leitura e releitura, anotando percepções, sentimentos e sensações.

Em seguida, elabora-se o texto de referência para a análise. Esse texto consiste em uma

síntese do material anterior, transformando a linguagem oral em linguagem escrita,

corrigindo vícios de linguagem, erros gramaticais etc. O texto de referência pode incluir

também tanto as impressões, percepções e sentimentos do pesquisador descritos no

primeiro registro, como outros que possam surgir a partir de cada novo contato com o

material. Como apontamos anteriormente, no caso específico deste trabalho, o texto de

referência consistiu nas narrativas construídas pela pesquisadora.

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O terceiro momento consiste na explicitação de significados. Após várias leituras e

releituras do texto de referência, o pesquisador escreve suas observações nas margens,

permitindo a elaboração de sínteses provisórias, de pequenos insights, além da

visualização de falas dos participantes que se referem aos mesmos assuntos. Esse

procedimento permite a seleção de unidades de significado que se mostram ao

pesquisador como a primeira compreensão dos fenômenos estudados.

Selecionadas as unidades, estas são agrupadas em aglomerados significativos

denominados por Szymanski de constelações. As constelações referem-se à

compreensão do pesquisador a respeito daquilo que se lhe revela. Esta terminologia é

utilizada em comparação às constelações celestes, que variam de lugar para lugar,

conforme a localização geográfica e a cultura na qual o observador está inserido.

Através dessa metáfora, Szymanski (2004) nos lembra que a compreensão do fenômeno

pelo pesquisador é circunstancial, ou seja, depende daquilo que ele “pode enxergar”;

depende, em última instância, do lugar que ele ocupa “nesse vasto universo de

possibilidades de interpretação” (SZYMANSKI, 2004, p. 3). Esta visão relaciona-se

com a noção de inserção na própria vida de Van der Leeuw (2009), referida na

narrativa, ou seja, ambas partilham a ideia de que cada pesquisa é única, cada análise é

única porque depende da resposta singular do pesquisador ao modo como o fenômeno o

toca pessoalmente, e cuja resposta o ajudará a selecionar, dentre o material disponível,

aquilo que lhe chama a atenção, que ele julga importante para a compreensão do

fenômeno.

Agrupadas as constelações, realiza-se a análise final em diálogo com o referencial

teórico adotado. E, por fim, concluída a pesquisa, a autora propõe a realização de uma

devolutiva aos participantes. Este procedimento tem como finalidade validar a

interpretação decorrente da compreensão do pesquisador, e partilhar um saber

construído em conjunto com eles.

A análise compreensiva, neste estudo, foi realizada com base na narrativa – texto de

referência construído a partir das observações e relatos dos participantes do projeto de

articulação –, assim como na entrevista com os alunos. Isso corresponde ao primeiro

momento do processo descrito por Szymanski.

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Feita a narrativa, esta foi relida várias vezes e o relato dos diferentes participantes da

pesquisa foi separado por cores, utilizando-se uma cor para cada participante. Em

seguida estes relatos foram agrupados por pessoa (com exceção do material dos alunos e

dos coletivos, que foram analisados enquanto grupo) e submetidos à apreciação do

protagonista de cada relato. Foi feita, então, uma análise por pessoa. Cada relato foi

analisado separadamente, dando origem a diferentes constelações e relacionando-as

com a teoria. Após o término desta primeira etapa, as constelações foram submetidas

novamente aos participantes individualmente, e foram feitas alterações de acordo com a

intervenção dos mesmos. Este material encontra-se no Capítulo 6, Análise dos

participantes do projeto de articulação.

A necessidade de realizar uma análise por pessoa teve seu fundamento na visão de

comunidade de Edith Stein. Segundo Ales Bello (2000), a compreensão da vida

associativa realizada pela autora é o resultado de uma análise a respeito dos sujeitos,

examinando os sentimentos e as atitudes dos membros de uma comunidade.

Aquilo que os une (...) é a conexão profunda que nasce da força psíquica ou espiritual do indivíduo, a qual interage com aquela dos outros; pela qualidade desta interação nasce a possibilidade ou não da comunidade, que pode ser obviamente sempre ameaçada pela desagregação e pela oposição. (ALES BELLO, 2000, p. 168)

Neste sentido, pensamos que o processo de articulação poderia ser compreendido, em

coerência com a linha teórica adotada, a partir do posicionamento das pessoas que dele

participaram. Vimos como Stein e outros autores interacionistas apontam a

interdependência entre pessoa e comunidade. De acordo com esta perspectiva, ao

olharmos para as pessoas (compreendidas não como mônadas fechadas, mas como

abertura e relação), compreendemos a comunidade e vice-versa. A forma como cada

um se insere, se abre ou se fecha, responde ao apelo do outro; tudo isso nos permite

olhar a dinâmica da articulação que é tecida de maneira complexa nesta trama de

relações.

Realizada a análise por pessoa, passamos à segunda etapa ao reagruparmos as

constelações de cada participante em quatro grandes constelações, de forma a obter uma

visão integrada do processo de articulação e da inter-relação entre os dois grupos

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envolvidos (coletivos e EMEF Igarapé). As quatro constelações que embasaram nossa

discussão foram:

- Sentidos desvelados (descreve os sentidos vividos pelos participantes)

- Articulação vivida (descreve situações vividas pelos participantes no dia-a-dia

do projeto)

- Desafios (descreve dificuldades percebidas e vividas pelos participantes)

- Repercussões (descreve repercussões da articulação tanto nos alunos quanto nos

demais participantes e nas comunidades escola e coletivos)

Em todas as constelações (tanto nestas quatro quanto nas constelações por pessoa),

descrevemos no início seu significado e, em seguida, elaboramos um texto de análise no

qual buscamos exemplificar as conexões que fazemos com a teoria, através dos próprios

relatos dos participantes. Desta forma, procuramos preservar e apresentar ao leitor

aquilo que entendemos ser, dentro da abordagem fenomenológica, a maior riqueza da

pesquisa: a descrição da experiência vivida dos sujeitos, pelos próprios sujeitos.

Ao longo do processo de compreensão, a análise foi submetida à orientadora e outros

professores e colegas (além dos próprios participantes como já citamos), que auxiliaram

no sentido de ampliar a visão da pesquisadora, mostrando novos aspectos dos relatos.

Essa troca das compreensões alcançadas com outras pessoas, descrita por Leite e

Mahfoud (2007) como parte do método fenomenológico na forma como Van der Leeuw

o apresenta, foi essencial para auxiliar o processo de “suspensão das convicções

pessoais prévias para captação do sentido presente no que se mostra” (LEITE e

MAHFOUD, 2007, p. 79). Como exemplos desta experiência, podemos citar uma

intervenção da orientadora ao perceber que, em um certo momento da pesquisa, a

pesquisadora parecia ofuscada pela questão da literatura marginal, deixando de lado o

foco do trabalho que era a articulação. As intervenções dos participantes durante as

devolutivas também foram muito importantes para o esclarecimento de compreensões

distorcidas, que não correspondiam ao sentido vivido por eles, e que puderam ser

retomados. Aliada a este procedimento, a participação em eventos promovidos pela

EMEF em conjunto com os coletivos (como os saraus e o cine alastre) foi também

fundamental para a compreensão, principalmente, do sentido dos coletivos. Isto porque,

nessas ocasiões, outros membros além de Knup Acrata estavam presentes e, como

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afirma Edith Stein, o caráter pessoal da comunidade, ou seja, a forma como ela vivencia

algo, emerge da forma como cada membro o vivencia individualmente, e da interação

ente eles.

Passaremos agora à apresentação das narrativas, que ilustram as andanças da

pesquisadora pela EMEF delineando o caminho de constituição da situação de pesquisa.

5. CONSTITUIÇÃO DA SITUAÇÃO DE PESQUISA

O presente capítulo tem como objetivo apresentar ao leitor as duas narrativas que

serviram como texto de referência para a compreensão do fenômeno da articulação. No

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primeiro item, apresentamos as narrativas construídas a partir de um primeiro

movimento de imersão da pesquisadora no contexto da pesquisa. São relatos de suas

andanças pela EMEF Igarapé, das observações das oficinas e do contato com as pessoas

envolvidas no projeto. O segundo item apresenta a narrativa da entrevista realizada com

os alunos.

Iniciamos, portanto, com as andanças.

5.1 Andanças

Neste item apresentamos uma síntese das narrativas construídas pela pesquisadora a

partir de suas andanças pela EMEF. São relatos que envolvem diferentes situações

como observações das oficinas de literatura marginal e grafite, conversas informais com

os educadores dessas oficinas, conversas com a coordenadora pedagógica e com o

diretor da EMEF e breve conversa com os professores de português e artes dos alunos

que frequentaram as oficinas. As narrativas são apresentadas em ordem cronológica a

fim de que o leitor possa acompanhar o percurso percorrido pela pesquisadora.

- Primeiro contato com a oficina de literatura marginal: Fanzine

Chegando à EMEF, apresento-me ao responsável pela oficina, Knup Acrata e peço

permissão para participar. Ele me explica que aquele é um bom dia porque farão uma

atividade diferente. Aquele é o terceiro encontro deles e, segundo KA, é a primeira vez

que seu coletivo faz um trabalho com maior continuidade dentro de uma escola.

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A sala está agitada, o tempo todo há troca de socos, provocações verbais e gracinhas. Os

meninos instigam a briga uns dos outros alegando que não podem ficar por baixo. Knup

Acrata está muito atento aos alunos. Fica perto da porta e vai acolhendo cada um que

chega. Incentiva-os a entrar, participar. Pergunta sobre o material. Faz chamada.

Em seguida apresenta a proposta do dia dizendo aos jovens que eles irão construir o seu

próprio “zine”. Explica que “fanzine” é uma forma de escrita, de expressão, que surgiu

nos anos 60 para se contrapor à mídia tradicional.56 Distribui vários fanzines para que

eles possam se inspirar. Sugere que utilizem recortes de revistas e frases que expressem

o que eles querem dizer, informar, expressar.

Alguns alunos se utilizam dos fanzines para copiar os desenhos ou as letras. Outros

fazem sua própria produção: recortam partes do corpo de diferentes pessoas e fazem

montagens do tipo homem com acessórios de mulher, mulher com corpo de bebê,

guitarras, foto de crianças cujo tema é a união na família, entre outros. Há um grupo de

meninos que conversa bastante. Apesar da agitação e dos “bate-bocas” constantes, a

atividade acontece e cada um, ao seu modo, se envolve e produz.

KA vai passando pelos alunos e perguntando sobre o trabalho. Normalmente eles fazem

a colagem mas têm dificuldade de escrever. Só escrevem ao serem incentivados por

Knup Acrata, que sugere que escrevam ao menos uma frase recortando letras das

revistas.

Ao final, os trabalhos são recolhidos e Knup Acrata conversa com os alunos sobre as

constantes brigas. Pergunta o que eles sugerem para que o clima melhore. Uma das

alunas afirma que na próxima aula ficariam quietos, mudos e só fariam a lição. KA

explica que não quer eles quietos. Quer que eles se movimentem, falem, escrevam, só

não quer que briguem. Diz que a solução de serem separados uns dos outros seria a

mesma coisa que fazem com eles que moram na periferia. Então eles não poderiam

56 Após submeter este relato a Knup Acrata, ele complementa a explicação sobre o fanzine afirmando que é uma maneira de expor as ideias através de textos e imagens, contrapondo-se às revistas tradicionais, com o objetivo de mostrar aos alunos que todo mundo pode ser gerador de material formativo.

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fazer a mesma coisa entre si. O encontro é finalizado pedindo-se que, para a semana

seguinte, tragam uma poesia, escrita por eles ou copiada.

- Projetos futuros: conversa com Alice, coordenadora pedagógica

Alice reclama dos alunos e diz que, conforme o tempo passa, eles estão piorando no

sentido de bagunças e agressões. Afirma que seu maior desafio é fazer com que eles se

interessem por algo. Acreditara que as oficinas pudessem lhes interessar mas continuam

sem envolvimento.

Pergunta se já me decidi sobre a pesquisa e digo que me interessei pelo trabalho da

oficina de literatura marginal. Ela acha que este é um trabalho importante e que ela,

como coordenadora, quer estar mais perto. Pretende escrever um projeto a partir dessa

experiência para concorrer a uma bolsa. Conta que um instituto de São Paulo oferece

bolsas de estudos para três alunos e um professor titular, e que o projeto tem que estar

ligado à comunicação. Seria uma parceria da EMEF com este instituto e um grupo de

uma universidade pública que coordena um projeto ligado à literatura. A ideia é que os

membros desse projeto viessem dar oficinas literárias para os alunos da EMEF, além de

ensinar também a parte de comunicação como a construção de sites etc.

- O coletivo: encontro com Knup Acrata

Após a conversa com a Alice, Knup Acrata se propôs a me contar sobre o seu coletivo.

Disse que faz parte de um grupo de seis pessoas que trabalham na periferia buscando

resgatar lugares abandonados para transformar em locais de cultura. Trabalham com

grafite, literatura suburbana, fotografia entre outras coisas.57

57 Sete meses após esta conversa, peço que KA leia minha narrativa e corrija ou complete conforme ache necessário. Nessa ocasião, ele me explica que não está mais naquele coletivo. Criara dois novos coletivos, sendo que um deles tem como ideal trabalhar a melhoria das pessoas através da educação e do convívio; está voltado para a questão da pedagogia libertária que, segundo ele, é um ponto comum com o projeto político eco-pedagógico da escola. Esse coletivo se reúne na sala cedida pela escola, o Espaço Cultural, e pretende ajudar projetos que envolvam todo o bairro. Knup Acrata afirma que, no momento, o único projeto desse coletivo voltado para os alunos da escola é o Projeto Germinal. Conta que uma moça que também faz parte desse coletivo iniciará uma “oficina da palavra” com o Fundamental I. Além disso, promovem o Cine Alastre, cuidam da biblioteca comunitária e promovem reuniões com os outros coletivos do bairro.

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Conta que estavam utilizando um cinema abandonado para começar seus encontros mas

tiveram um problema com o dono do local e ficaram desalojados. Francisco, o diretor

da EMEF os acolheu e começaram a se reunir lá aos finais de semana. Conta que

Francisco se interessou pelo trabalho deles e, então, cedeu-lhes uma sala e propôs que

fizessem as oficinas com os alunos.

Knup Acrata afirma que já deram oficinas em outras escolas e que normalmente ficam

uns três meses no projeto e que esta é a primeira vez que fazem um trabalho em uma

única escola por mais tempo. Fala da importância da parceria com a escola e avalia que

não adianta vir gente de fora com as coisas prontas para trabalhar com a comunidade.

Acha que tem que ser as próprias pessoas da comunidade. Conta que, quando

começaram o movimento de resgatar o cinema, mobilizaram os moradores para fazer

isto. KA afirma que é criticado por não gostar das pessoas de fora mas ele diz que não é

verdade, que as pessoas de fora são bem-vindas se quiserem ajudar e construir junto.

Conta que está há um ano nessa comunidade. Veio de Pirituba, mas seu pai já mora no

bairro há mais tempo. O poema abaixo foi escrito por um jovem do bairro e o

escolhemos para ilustrar a produção dos coletivos, para mostrar a força que ela tem, no

sentido de despertar as pessoas para a realidade social e para o seu papel na

transformação desta realidade.

É lindo ver a força do povo

A água da enchente faz brotar a caridade Empoeirada compaixão dos nossos dias. Quantos cataclismas são necessários para acender a compaixão? A fome de tanta gente assistida todos os dias nas ruas da cidade, Assusta, mas é rotina, não é novidade. Quanta morte é preciso pra fazer viver um coração? É lindo ver a força do povo, que fere seu peito de dores alheias, Toma para si o flagelo; E doa uma peça de roupa usada, Um pedaço de pano descolorido pelo tempo. Quantas tragédias teremos que aguardar, Até que em nosso peito desperte a vontade própria, De ajuda sincera, em gesto calado, Dar sem esperar receber?

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...... Existem pessoas que não perderam a casa na enxurrada, porque elas não têm uma casa. E por que não vejo caminhões lotados atravessando a cidade em direção a elas? É porque os corações estão vazios? Ou porque a TV esqueceu de nos avisar que chegou a nossa hora de sermos humanos? É lindo ver a força do povo, mas...”

- Encontro na sala 12

Fui à EMEF com uma aluna da iniciação científica. Ao chegarmos, fomos direto para a

sala 12, local cedido para os encontros do coletivo de Knup Acrata fora dos horários de

aula, local onde estão montando a biblioteca comunitária e local onde acontecem as

oficinas de literatura e grafite. Ali encontramos a Alice e KA, juntamente com alguns

alunos catalogando os livros que a escola recebeu de um instituto do Rio de Janeiro, que

farão parte da biblioteca.58

Ao me deparar com esta cena, me chama a atenção a integração de Knup Acrata no

grupo e a maneira como os alunos se dirigem a ele perguntando se estão fazendo certo,

pedindo informações sobre os livros etc. Me parece que KA é uma referência

importante para os alunos, alguém que convive com eles, que lhes é familiar. Uma

relação diferente de um educador que os vê apenas uma vez por semana nas oficinas.

De fato, Knup Acrata se responsabilizara pela organização da sala 12 cuidando tanto do

material do coletivo quanto dos livros doados para a EMEF. Como consequência, passa

bastante tempo na escola.

Knup Acrata nos mostra alguns livros que utiliza na oficina com os alunos. São livros

escritos pelas pessoas do bairro e editados através de uma verba que recebem de

instituições que financiam projetos sociais. Conta que, no momento, estão trabalhando

poesia e querem mostrar para os jovens que existem poetas diferentes de Drummond,

Cecília Meireles etc. Querem mostrar que qualquer um pode fazer poesia, que eles

podem fazer poesia. Lembro-me de uma cena do filme “O carteiro e o poeta” cujo

diálogo é retratado abaixo:

58 Trata-se do projeto Leitura para todos, descrito no primeiro capítulo do presente trabalho, no item que trata das ações de articulação.

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Carteiro - É estranho como me senti enquanto você estava recitando. Poeta - E como se sentiu? Carteiro - As palavras iam para frente e para trás. Poeta - Como o mar? Carteiro - Exatamente. Como o mar. Na verdade me senti enjoado. Me senti como um barco balançando em volta dessas palavras. .... Poeta - Sabe o que você acabou de fazer? Carteiro - Não, o quê? Poeta - Você inventou uma metáfora Carteiro - Não. Poeta - Como não?! Carteiro - Mesmo? Poeta – Sim. Carteiro - Mas não vale porque não tive a intenção. Poeta - A intenção não é importante porque as imagens nascem espontaneamente. (Diálogo do filme O carteiro e o poeta)

Pergunto a Knup Acrata a respeito do objetivo da oficina de literatura e ele afirma que é

trazer a cultura local e fazer com que as alunos sejam protagonistas de sua própria

história.

- Compreendendo o grafite: Oficina de grafite

A sala estava cheia. Havia 11 alunos e 4 educadores (uma moça e três rapazes). Quando

cheguei, os alunos já estavam sentados e tinham iniciado uma atividade de copiar o que

era desenhado na lousa. Naquele dia havia 2 alunos novos e por isso eles estavam

repetindo uma atividade, que era o desenho de rosto. Aquela era a quarta oficina.

Começaram com letras e agora estavam aprendendo o rosto.

Um dos educadores desenha na lousa. Começa com círculo e traços para depois definir

o rosto. Fazem a base e depois cada aluno desenha no seu estilo – tipo de olho, boca,

cabelo etc. Os alunos brincam com a equipe em relação ao cabelo, bonés e acessórios.

Reproduzem esse visual nos seus desenhos. Alguns têm facilidade para desenhar, outros

não. Para alguns é difícil copiar o traçado, pedem ajuda, especialmente para fazer o

círculo da cabeça.

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A oficina dura 2 horas. Ao final de uma hora os alunos começam a levantar, pedir para

beber água, e alguns ficam andando pela sala. Os que já haviam terminado são

incentivados a fazer novos desenhos.

Um dos meninos pega um folder sobre a gripe suína e começa a copiar os personagens.

Um dos educadores o encoraja a fazer sua própria produção e ele diz que só havia

copiado um pedaço mas que o resto fizera sozinho. Outro menino mostra seu desenho

para este mesmo educador dizendo que havia terminado e este lhe diz que nunca

podemos achar que está pronto porque sempre temos alguma coisa pra melhorar.

Enquanto os alunos trabalham, converso com a educadora. Ela me explica que cada um

dos educadores faz parte de um grupo diferente de grafite. Eles chamam esses grupos de

crew. Explica que utilizam muitas palavras do inglês. Cada crew tem um estilo próprio

de desenhar, um nome, uma marca específica que o identifica. Quando fazem um

trabalho podem assinar individualmente ou como grupo. Costumam se reunir em

pequenos grupos ou em grandes eventos, por bairros, cidades, estados e até países. Há

pessoas que se especializam em diferentes desenhos. Alguns em personagens, outros em

letras etc. Explica que cada um dos educadores da oficina pertence a um crew diferente

e que se juntaram para fazer esse trabalho na EMEF Igarapé. Quem os convidou foi

Knup Acrata que os conhecia de uma instituição vizinha à escola, onde todos são

alunos.

Pergunto como ela aprendera o grafite e ela conta que começou na mesma instituição

citada acima e depois fazendo um trabalho com umas meninas na rua. Explica que

existem poucas mulheres nesse meio e que ela faz parte de um crew só de mulheres. Diz

que é feminista. Tem 14 anos e conta que sua mãe reclama por ela estar no meio de

muitos rapazes, na rua, mas ela diz que é seguro.

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Foto de um muro vizinho à EMEF Igarapé: retrata o feminino no grafite.

- Literatura marginal e literatura escolar: conversa com Alice

Pergunto a Alice a respeito da relação do professor de português com a oficina e ela me

conta que ele também coordena uma oficina de literatura marginal, onde participam

principalmente os alunos que têm dificuldade de leitura e escrita. Explica que no início

queria juntar as duas oficinas, o que acabou não dando certo, porque cada um tem um

jeito próprio de trabalhar. Acha que o professor de português é muito acadêmico para o

tipo de trabalho desenvolvido na oficina de literatura marginal. Por outro lado,

combinou com Knup Acrata que tudo o que fosse produzido pelos alunos seria corrigido

pelo professor de português antes de ser divulgado.

- Amor pela leitura: conversa com Alice

A escola estava diferente. Era semana da criança e os alunos participavam de uma

gincana onde aconteciam várias atividades ao mesmo tempo: futebol, queimada,

pintura, xadrez, paródia etc. Era o dia da fantasia. Professores, funcionários e alunos

circulavam pela escola em um clima descontraído. Logo que cheguei, uma aluna veio ao

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meu encontro e começou a explicar o que estava acontecendo. Me apresentou à

professora de artes, que estava fantasiada de Emília e coordenava um jogo de queimada

entre os alunos. Fizemos um tour pela escola e em seguida fui procurar Alice e Knup

Acrata, pois tinha ficado de apresentar-lhes os meus relatos a respeito das oficinas. KA

não tinha chegado, então conversei um pouco com Alice.

Ela me conta que o coletivo de Knup Acrata havia promovido um sarau na escola, do

qual participaram alunos, professores e pais. Conta que ficara impressionada com a

paixão dos meninos pela literatura. Percebera isto pela forma como declamaram os

poemas, que sabiam de cor, e eram poemas difíceis. Alice afirma que é isto o que falta

na escola, onde as crianças normalmente precisam aprender coisas que não tem nada a

ver, que elas não entendem para que serve, que não são significativas. Ela pergunta:

Por que temos que enfiar matemática a qualquer custo na cabeça de uma menina que

gosta de pintar?

Diz que é isso que espera da oficina de literatura marginal, ou seja, passar aos alunos o

gosto pela leitura, já que é uma coisa que Knup Acrata ama. Ela vê como ele pega os

livros, lê um pouco de cada um, mostra para as crianças... Diz que isto é muito bonito.

Acha que Knup Acrata tem muito talento e que é bonito ver como ele não abre mão de

seus princípios.

Este relato de Alice a respeito de Knup Acrata pode ser ilustrado com as próprias

palavras de KA, em um poema de sua autoria no qual ele retrata o sentido do ser punk e

do conhecimento.

“...Preso, capado, isolado no gueto periférico, Não vou seguir o caminho do pensamento Maquiavélico Nasci pra ser escravo, analfabeto funcional Não ter noção de política, mais um marginal Trancado lá na ilha ou morto na mão da polícia Mão de obra barata que não sabe de nada, Quebrando com tudo isso aprendi o que é pensar Sangue nos óio, autodidata, o livro é minha arma! O Punk me mostrou como Lutar e com isso eu comecei a me IMPORTAR”

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Retomando o relato, Alice conta que KA se dedica muito à escola, que está cuidando da

biblioteca e que já queria começar o empréstimo dos livros, mas ela pediu que antes eles

acabassem de catalogar. Afirma que isto também é um aprendizado para KA já que no

grupo dele tudo é muito informal. Ela se impressiona como a ligação entre eles é forte

porque eles não têm um lugar, mas estão muito unidos. Se reúnem, cada um leva os seus

livros e emprestam uns para os outros muito espontaneamente, e a coisa funciona.

Pergunto como os professores veem as oficinas e ela diz que é triste admitir mas que,

para eles, é uma oportunidade de descanso. Por outro lado, afirma que compreende

porque é uma realidade difícil, eles trabalham dez horas diárias com os alunos. Diz que

eles estão esgotados e ela também. Acha que os professores precisam de um apoio.

- Expectativas e desafios em relação à oficina de literatura marginal: encontro

com Alice e Knup Acrata

Conversamos a respeito das expectativas de Alice e de Knup Acrata em relação à

oficina e apresentei meu primeiro relato a fim de que fizessem as correções necessárias.

KA diz que, de um grupo de 20 alunos, esperava que saíssem pelo menos uns 4 fanzines

e que o que eles fizeram não era fanzine. Pretende retomar este trabalho, talvez

explicando melhor cada passo. Conta que naquela oficina esperava que cada aluno

criasse uma página do fanzine.

Para Alice, a expectativa também era a de que os alunos estivessem mais envolvidos e

mais harmoniosos com o trabalho. Afirma que é um trabalho que eles escolheram fazer,

que os educadores são jovens como eles e que, mesmo assim, parece que não se

interessam, não produzem.

Knup Acrata explica que dá este curso em outras escolas e que os alunos produzem

mais. No final do curso montam um livreto com as produções. Afirma que não vai sair

dali enquanto não conseguir que os alunos façam um poema. Quer tentar fazer com que

o máximo de alunos tome gosto pela leitura, que tomem a poesia como uma maneira de

se expressar.

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Alice diz que KA é parte da comunidade e traz uma visão da consciência do sujeito na

sua comunidade. Traz uma reflexão: eu como ser histórico dentro de uma sociedade, de

um sistema econômico. Traz esta reflexão agregada à literatura. Uma literatura com

consciência política: o que sou na comunidade. Acha que a visão deles casou com os

objetivos da escola e também com a necessidade que eles têm da escola, ou seja, de ter

um espaço para se reunirem.

Retomo então para o objetivo do coletivo, perguntando se é fazer com que os alunos

gostem de literatura e façam dela um canal de expressão e também um instrumento de

transformação. Knup Acrata responde que sim, mas que, para isso, eles precisam ver

que a literatura está próxima deles, que eles podem escrever seus poemas, que todo

mundo pode escrever. Conta que procura mostrar para os alunos que poesia também é

letra de rap, uma frase que pode estar no muro. Acha que os alunos estão tendo uma

coerência maior, que eles percebem que o “tio” da rua sabe as coisas e pode ensinar

para eles.

Knup Acrata também conta que nas outras escolas sempre trabalhou com alunos da 7ª e

8ª série e que é a primeira vez que trabalha com os menores (5ª e 6ª). Diz que, quando

soube que trabalharia com os menores ficou apreensivo, não porque não gostasse, mas

porque acha que não tem muito jeito.

Alice diz que acha importante o trabalho com as crianças desde cedo, que vê a escola

não como um lugar para passar conteúdos, mas um espaço que abre lugar para

vivências; e que a oficina de literatura é isto. Acha que as crianças pequenas gostam de

versos e que depois ocorre uma quebra, que com o tempo perdem este prazer.

Knup Acrata explica o formato do curso que eles dão nas outras escolas e que estão

tentando fazer na EMEF Igarapé. São quatro encontros. No primeira explicam o que é

literatura marginal, desconstroem o que é literatura, tentando mostrar que literatura não

é só a clássica. Em seguida trabalham com poemas. Procuram distinguir literatura e

poema, especificando cada um. O terceira encontro é o fanzine, a sua especialidade.

Conta que o fanzine tem uma abertura para trabalhar imagens, figuras, desenhos. E o

quarto momento é a finalização com um sarau onde os alunos expressam o que foi

trabalhado. E tem um livro também com a produção deles.

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Knup Acrata conta que na EMEF Igarapé o trabalho se diferencia um pouco porque há

um tema de fundo para trabalhar, que é cultura de paz e diversidade. Foram estudar o

que é cultura de paz para poder passar isto. Alice explica que Knup Acrata estudou e

preparou uma apostila que passou para o pessoal do grafite. Conta que, junto com o

diretor, escreveram o manifesto que vão ler no final da passeata pela paz.59 A seguir,

apresentamos parte deste manifesto:

“O movimento Atos de Paz vem, com esta manifestação pacífica, denunciar, reivindicar e propor melhorias sociais. Através de uma Cultura de Paz precisamos garantir os direitos que nos são previstos por leis, conquistando Justiça Social e respeito à vida”.

Pergunto qual é a relação da oficina de literatura com o grafite e Alice explica que a

proposta é grafitarem o muro da escola mas que o foco é fazer o aluno pensar na vida

dele, no que ele faz. A reflexão na literatura incentiva os desenhos, pois, segundo Alice,

grafite é arte que expressa ideias, sentimentos, não é só desenho. Knup Acrata

complementa dizendo que a questão do tema também é nova para eles. Explica que cada

crew já tem um tema com o qual trabalha: diversidade cultural, moral e coerência,

cultura de rua etc. Conta que eles estudaram juntos o que é a cultura de paz e que depois

disso ele percebeu que os próprios educadores mudaram, começaram a ter mais

paciência com os alunos.

- Começar de novo: oficina de literatura marginal

Cheguei na sala 12 e os alunos estavam sentados nas carteiras, dispostas uma ao lado da

outra formando um semicírculo. Havia 13 alunos. Knup Acrata anuncia que o livreto

com as poesias deles estava pronto e que aquela oficina seria a finalização de uma

primeira etapa. Explica que iniciariam uma nova oficina abrindo para a participação de

outros alunos e que esta nova oficina não estaria ligada ao grafite. Sendo assim, as

pessoas viriam pelo interesse na literatura. Conta também que no novo programa teriam

oficina de rap.

Em seguida, pede que cada um fale sobre a experiência de ter participado das oficinas e

diz que não valia a palavra “legal”. Os alunos respondem que aprenderam muitas 59 A passeata é uma ação organizada pelo movimento Atos de paz descrito no primeiro capítulo deste trabalho, no item ações de articulação.

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coisas; que tinha sido diferente, que foi bom aprender pensando, refletindo; que lá

podiam sentar juntos meninos e meninas. Knup Acrata pergunta quem gostaria de

continuar e todos manifestam o desejo de continuar. Respondem em tom de brincadeira

com frases do tipo: Eu não vou te abandonar; Um dia eu vou te ajudar; Você sabe que

eu te amo. Manifestam ainda um certo receio em relação à mudança do grupo: Mas só

vai entrar maloqueiro.

Em seguida KA lê um poema cujo título é “A elite treme”. O poema fala da literatura

como arma. A elite treme porque o pobre lê, tem conhecimento, produz e não precisa

dos jornais. A periferia conta a sua história. Um dos meninos pergunta porque a elite

treme e Knup Acrata explica que é porque a periferia tem conhecimento. O

conhecimento traz reflexão, a reflexão traz ação e a ação traz transformação social. Em

seguida os alunos escrevem seus próprios poemas, inspirados pelo tema debatido. Como

exemplo, apresentamos o poema criado por Gérson:60

“Periferia não é sinônimo de violência Por isso escrevo esse poema Pra mostrar pra família da comunidade Que seus sonhos podem se tornar realidade”

Outro aluno escreveu a letra de um rap. Ao final, os que quiseram leram seus poemas

em voz alta. Baby Check61 lê seu poema e uma menina comenta: Nossa você está

mostrando um outro lado seu, estou gostando.

- Dificuldades e esperança: conversa com Knup Acrata

Após a oficina, Knup Acrata me pergunta o que achei e respondo que percebi como

estão envolvidos com o trabalho e que os alunos têm um vínculo bom com ele. O que

mostra isto é o fato de um dos alunos dizer que um dia estará ajudando KA nas oficinas.

Além disso, estão escrevendo poesia. Knup Acrata concorda comigo, diz estar feliz com

o trabalho daquele dia, porque tinha menos alunos, sendo melhor para trabalhar.

Pergunto onde estavam os outros e ele explica que um grupo tinha roubado lata de tinta

da sala e que, conversando com este grupo sobre o ocorrido, os próprios alunos

60 Nome fictício escolhido pelo aluno para ser utilizado na presente pesquisa. 61 Este aluno participou da entrevista em grupo e escolheu ser chamado de Baby Check na pesquisa.

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decidiram que eles não poderiam continuar. Segundo Knup Acrata, o assunto foi

resolvido entre eles em um clima de diálogo, sem precisar ir para a Direção.

Outro grupo foi afastado por bagunça e brigas. Essa foi uma decisão da Direção, que

retirou de todas as salas do Fundamental II os alunos que estavam atrapalhando por

causa de brigas. Eles estão tendo aula com a Alice. KA afirma que se eles estivessem

em outra escola já teriam sido expulsos, mas que nesta escola há uma tentativa de achar

outras vias sem ser a expulsão.

Entrego o texto sobre comunidade em Edith Stein que ele havia me pedido. Falo

rapidamente sobre a diferença entre comunidade, sociedade e massa. Ele pergunta se é a

valorização do indivíduo e explico que sim, mas que é um indivíduo aberto aos outros.

Ele me conta que é anarquista, que este é o princípio deles, ou seja, valorizam o

individualismo, mas cuidando para não cair no egoísmo.62

Knup Acrata comenta que começaram os empréstimos da biblioteca mesmo sem ter

inaugurado. A inauguração é sempre adiada porque o pessoal da instituição que doou os

livros quer estar presente mas sempre cancelam sua vinda à escola. Afirma que vai

cuidar da biblioteca. Conta que está desempregado e que, apesar de voluntariado, o que

ele faz é uma coisa legal. Apesar disso, diz que voluntariado cansa; que quer estudar,

dar aula, mas que, enquanto não consegue, vai fazendo outras coisas. Comenta que o

trabalho na escola o distanciou do coletivo porque a proposta deles é fazer as oficinas e

depois tem um fim, mas na escola vão dar continuidade ao trabalho. Este novo trabalho

terá como objetivo fazer com que os alunos criem um grêmio; queiram trabalhar pela

escola assim como eles o veem trabalhado.

Conta que mesmo tendo uma continuidade ele achou importante encerrar a primeira

etapa com os livretos e começar uma nova para não ficar tudo uma coisa só e acabar se

configurando como aula, o que ele não quer.

62 Na mesma ocasião em que retomamos a narrativa sobre o coletivo, KA leu e comentou todas as partes da narrativa que se referiam a ele. Neste trecho que fala sobre anarquismo, ele acrescentou que anarquismo é uma postura pessoal sua, mas que não reflete a ideologia da sala. Conta que na sala trabalham com a pedagogia libertária, que foi criada por um anarquista.

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- Positividade e coerência: oficina de literatura marginal

Knup Acrata diz que gostou do texto sobre comunidade. Passou para um amigo do

coletivo ler. Está lendo Paulo Freire e diz que tem muito a ver com o que faz. Sem saber

ele está fazendo coisas que tem a ver com a teoria. Está lendo Pedagogia do Oprimido.

Havia 16 alunos. Alguns novos. Duas meninas saíram da oficina por causa de um dos

alunos,63 que batia nelas. KA quer sentar com os três para conversar e ver se as meninas

voltam para a turma.

Uma das meninas comenta que Knup Acrata lhe deu um livro para ler que é muito

difícil, tem palavras que ela não entende. Ela me explica que é um livro da Emma

Goldman, uma anarquista russa e que fala sobre política. Conta que às vezes lê com o

dicionário ao lado mas que daí fica mais difícil porque para muito pra procurar as

palavras e perde o que está lendo.

KA inicia dizendo que o sarau da inauguração da biblioteca havia sido adiado mais uma

vez. Os alunos reclamam e ele diz que a pessoa é muito ocupada e faz questão de estar

presente, mas que no fundo não está muito aí com eles. Diz que, mesmo assim, a

biblioteca já está funcionando e que é isso o que importa. Em seguida distribui os

folhetos com a programação de um centro cultural64 da redondeza, e pede que eles

sugiram algum dos eventos para participarem.

Knup Acrata comenta o passeio que fizeram para o Arquivo do Estado. Pede que os

alunos que foram contem como foi. Falam das bagunças, do que comeram, das notícias

que viram, que o Palmeiras estava lutando para se levantar etc. KA explica que haverá

uma feira cultural na escola e eles vão expor a história do bairro. Pergunta aos alunos o

que eles acharam no Arquivo e eles dizem que não encontraram nada sobre o bairro, só

63 O mesmo aluno que uma delas comentou na outra oficina que estava mostrando um outro lado, ao ler a poesia que tinha feito. 64 KA me explica que este centro cultural foi criado pelo movimento estudantil há 5 anos e que tem programação gratuita, além de estúdio para as bandas gravarem, teatro etc. Qualquer um pode se inscrever. Seu coletivo se apresenta lá todo ano.

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coisas próximas, dos bairros vizinhos. KA pede que quem mora no bairro pesquise com

os pais e parentes sobre a história, pegue fotografias etc.

Em seguida dá a letra de uma música e pede que um dos alunos leia em voz alta. Era a

música “Se tu lutas, tu conquistas” de um grupo chamado SNJ (Somos Nós a Justiça),

cujo trecho apresentamos abaixo:

“Não ha limites para aquele que quer conquista, Com pessimismo não achará saída, Liberto e livre, ninguém aqui é incapaz, Viver bem com a consciência plantando a semente da paz Ajudar ao próximo mais do que você pode Sei que és forte, corajoso, não mede esforços, A força divina não vai lhe abandonar, O despertar do amanhecer é um nova conquista, De quem não se entregou e para aquele que acredita, Injustiça não há nas mãos de Deus, Se apegue a ele Pra que não seja mais um homem, Pelo contrário, mostre ao próprio que é idôneo Não queira nada na palma da sua mão, Buscar no pé dá mais trabalho, No entanto valoriza o seu ato, Dignidade, nem sempre assim pude viver, Uma negrinha aos olhos da sociedade, Piedade, Senhor tende piedade, De todos aqueles espelhos de um herói com atitude Daqueles meus irmãos desacreditados da vida, Eu digo a eles. Se tu lutas, tu conquistas, é tipo assim (fé em Deus) se tu lutas, tu conquistas, é tipo essas (vai vai vai) Se tu lutas, tu conquistas, Vai vendo Povo brasileiro, sofredor, bom exemplo”

Knup Acrata mostra que lendo não parece uma letra de música, parece um texto. Pede

que comentem se gostaram, do que gostaram e do que fala a música. As primeiras

expressões restringem-se a comentários como “legal”. KA pede que eles se expressem

melhor, que passem uma ideia. Alguns alunos dizem que fala da vida na periferia. Ele

concorda.

Leem então um poema que um dos alunos fez criticando os políticos e o desvio dos

impostos e KA pergunta se há diferença. Diz que normalmente as letras falam de

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violência, polícia, falta de emprego. Que usam a literatura para criticar, mas que esta

música mostra o que está acontecendo de bom. Essa música fala de positividade. Em

seguida escutam a música. Knup Acrata forma grupos com os alunos e pede que

escolham uma parte da letra e escrevam um comentário sobre o trecho escolhido. Em

seguida pede que escrevam um poema falando das coisas boas que acontecem na

periferia.

Estava muita bagunça e KA resolve acabar o encontro. Os alunos reclamam. Ele diz que

não são obrigados a escrever. Se estão ali é para escrever, mas se não querem podem

sair. Os alunos reclamam porque querem continuar a atividade.

Um dos alunos (em tom irônico) diz que seu primo foi preso por ter assaltado o

mercado. Uma menina responde: Tá vendo, foi uma coisa boa porque não foi você. Essa

mesma aluna que está grávida de 7 meses diz que na vida dela estão acontecendo muitas

coisas boas. Os alunos que estão em volta falam do bebê e ela diz que sim. Outro aluno

fala da polícia que está todo dia na sua rua “pegando as mulheres”.

Knup Acrata diz que acontecem 10 coisas boas e uma ruim, mas falamos sempre da

ruim. Alguns escrevem poemas e outros desenham. Leio um dos poemas que diz que na

periferia tem coisas boas, crianças etc. Os alunos estão meio dispersos, alguns parecem

cansados, ficam com a cabeça deitada sobre a carteira. Dois meninos estão o tempo todo

batendo boca e se pegando. Ao final um dos alunos pega o desenho de outro e começa a

passar canetinha por cima. Esse aluno começa a chorar e os outros tiram sarro. KA para

para conversarem. Pergunta se eles já estão há tanto tempo na oficina de literatura

marginal e ainda não aprenderam a trabalhar em grupo. Diz que um dos objetivos é eles

se conhecerem melhor, fazerem amizades porque são de turmas diferentes, mas que não

estava funcionando. Diz que eles escreveram coisas bonitas como um dos alunos leu: a

gente tem que lutar pelo que quer, lutando a gente consegue, mas que essas coisas

bonitas que eles escrevem estavam sendo da boca pra fora porque as atitudes eram de

violência. Diz que ali não é teoria, ali é prática. Eles têm que colocar em prática o que

falam. Comenta das duas meninas que saíram do grupo porque apanhavam de um deles.

O menino que batia diz que tudo bem porque ele trouxe dois novos para o grupo e KA

responde que ninguém substitui ninguém.

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- Não há interesse: conversa com Alice

Cheguei à escola e fiquei sabendo que não haveria aula porque os alunos fariam a Prova

Brasil.65 Alice está bem atarefada, reclamando que a secretaria de ensino quer tudo na

hora. Reclama que exigem tudo dela e ela não pode trabalhar das 7 às 19:00h. Diz que

não abre mais e-mail fora do horário de trabalho por recomendação médica.

Conta que tiveram a feira cultural no final de semana e que tinha sido muito bonita, mas

que vieram poucas pessoas. Como sempre, eles promovem as coisas mas os alunos não

vêm. O desinteresse é geral. Conta que havia passado nas salas para fazer um

levantamento de quantos alunos viriam a uma palestra sobre sexualidade no sábado e

que, de 150 alunos, apenas 13 se manifestaram. Diz que vai cancelar a palestra porque a

pessoa viria de Curitiba só para estar na escola e que realmente não há interesse. Afirma

que eles cobraram dela essa palestra ao longo do ano e agora ninguém vem, que é

sempre assim que acontece. Diz que acha engraçado a postura da universidade, que

afirma que o conteúdo tem que ser significativo. Na prática o que acontece é esse

desinteresse geral. Acha que a universidade tem que conhecer essa realidade. Imagine,

uma palestra sobre sexualidade para adolescentes!

Pergunto sobre o trabalho da oficina de literatura e sobre a história do bairro que seria

apresentada na feira cultural e ela diz que Knup Acrata havia feito um filme.

- Descobrindo-se educador: conversa com Knup Acrata

Knup Acrata conta que aquela seria a última oficina e que seria adiada para a outra

quarta por causa da prova. Pergunto por que já acabar a oficina e ele conta que na nova

oficina a maioria eram alunos antigos, que fizeram 4 encontros, e não tinham mais o que

trabalhar. Pergunto se ele não poderia aproveitar para aprofundar o trabalho com esses

alunos e ele diz que se continuasse viraria aula de português e que não era esse o

objetivo.

65 A Prova Brasil é um exame que tem como objetivo avaliar a situação regional e nacional da Educação Básica no país, através de provas de Língua Portuguesa e Matemática. Participam deste exame os estudantes de 4ª a 8ª série (ou 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental de 9 anos) da rede pública de ensino. (http://www.oei.es/provabrasil.htm. Acesso em 16 de março de 2010).

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Conto sobre a exposição dos Gêmeos e proponho irmos com os alunos, talvez com

aqueles que participam da oficina de grafite. Ele diz que os Gêmeos são os melhores do

mundo e que ele queria mostrar para os alunos coisas mais acessíveis, muros da rua e

também uma exposição que terá na instituição vizinha à escola, a mesma onde os

educadores do grafite têm aula. Ele diz que os grafiteiros são muito “nariz empinado”.

Falo que os Gêmeos começaram como eles, que são do Cambuci e continuam o grafite

na rua. Ele me mostra uma pintura que tem no catálogo da exposição e diz que, se foram

mãos humanas que fizeram aquilo, então ele não duvida de nada. Fala sobre a discussão

do grafite em relação à galeria. Se o trabalho na galeria é considerado grafite ou não.

Outra questão é que o grafite que está na rua não tem menos valor que aquele que está

na galeria. Ele acha interessante a ideia da visita. Então falamos com Alice e marcamos

para a semana seguinte, com os 5 alunos que estavam frequentando o grafite.

Knup Acrata diz que é engraçado porque outro dia foram ao arquivo do Estado e se

referiram a ele como educador. Conta que também bagunçava quando saía com a

escola. Uma vez foram ao Masp e um dos meninos riscou um quadro do museu. Acha

que é normal bagunçarem, e que é estranho de repente ele estar do outro lado, por

exemplo, ele “responde pelo BO dos caras”, ou seja, agora ele é o educador, o

responsável.

Pergunto sobre o pessoal do grafite e ele afirma que eles cansaram e acabaram largando,

e, como o trabalho não poderia parar no meio, ele assumiu. Conta que eles não tinham

afinidade em dar oficina para uma faixa etária tão baixa. Teve também o fato de alguns

alunos terem roubado lata da sala. As coisas foram piorando e alguns foram embora.

Ficou só um, mas não conseguiu dar conta sozinho e também foi embora. Conta que

quem trabalha com grafite só quer trabalhar com spray. Para eles se não for com spray

não é grafite e KA trabalha diferente, gosta do rolinho.

Diz que é difícil trabalhar com os alunos porque eles só querem saber da tinta. Ele acha

que primeiro eles têm que pensar o que vão fazer. Quando propõe conversarem, eles já

acham chato, ficam cansados. Outro dia começaram conversando, depois prepararam as

coisas e só foram descer para o muro no final da oficina. Conta que não deu certo

porque estava muito calor e eles já estavam cansados, então ficaram irritados e

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começaram a brigar. Um aluno jogou uma garrafa de tinta na cabeça do outro. Ele parou

tudo, subiram e foram conversar.

Conta que no grafite não é assim: chega e vai pintando. Os grafiteiros têm o caderno

preto que é um caderno onde eles fazem vários desenhos. Quando vão para o muro,

escolhem um daqueles desenhos do caderno, de acordo com o tamanho do muro e da

tinta que eles têm disponível. Pergunto se ele já pensou em levar os meninos para ver os

muros na rua. Ele diz que já pensou em fazer isso mas que os alunos sempre chegam

contando que já viram os muros, então ele desistiu. Mas digo que seria diferente ver o

muro com ele porque ele poderia explicar o sentido da pintura, mostrar coisas que

sozinhos eles não veem. Ele concorda e pensamos que depois da exposição da Faap

poderíamos fazer um tour pelas ruas ou ir à exposição de grafite que ele havia se

referido.

Pergunto sobre os planos dele para o ano seguinte. Diz que pensa em estudar, que está

pesquisando algumas faculdades e que o problema são as provas; concorrer com gente

que estudou muito mais, em escola particular. Fala também do problema de se

enquadrar. Conta que se dobrou à ideia de faculdade porque precisa trabalhar e não quer

sair da área. Diz que voluntariado cansa. Por outro lado, está fazendo esse trabalho

porque acredita que esse tipo de ação pode transformar a visão dos alunos. Mas diz que

outros também se enquadraram. Fala de um grupo de anarquista de uma universidade

particular, no qual tem até professor e gente com doutorado.

Knup Acrata diz que é autodidata. Uma mãe, por exemplo, que quer estudar mas não

tem tempo para ir à escola, acaba não fazendo nada. Ela precisa saber que ela não

depende só da escola. Ela pode ler os livros, estudar sozinha, fazer um grupo de estudos,

etc. Digo que a biblioteca ali na escola teria esse papel também de levar a leitura para a

comunidade. Ele diz que sim, mas que por enquanto são mais os alunos que vem. Ele

gostaria que viessem mais pais.

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Alunos na oficina de literatura marginal, no Espaço Cultural

Produção suburbana: livretos produzidos pelos coletivos

- Frustração pelo término da oficina de literatura marginal

Quando cheguei para a oficina, estava uma certa confusão no corredor pois seria o

último dia e as pessoas pensavam que já havia acabado e que aquele dia voltariam a ter

aula normal. Alguns alunos foram para as suas salas e apenas 6 ficaram na literatura.

Um aluno entra na sala reclamando com Knup Acrata porque havia acabado a oficina.

Diz que eles querem que se inscrevam mas que, quando começam a oficina, logo ela

acaba. KA afirma que acabou teoricamente, mas que podem pensar em outras coisas.

Diz que o ano praticamente acabou, que eles só terão mais duas semanas de aula. Em

seguida distribui uma folha e pede que eles a dobrem no meio e escrevam na primeira

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parte o que lembram das duas primeiras oficinas. Os alunos reclamam e dizem que não

lembram. Um deles pergunta se Knup Acrata lembra da primeira vez que o viu e KA diz

que sim, que foi quando ele entrou na sala e ajoelhou na sua frente implorando para

participar do grafite. Depois KA resolve mudar a pergunta e pede então que escrevam o

que eles lembram dos encontros, sem uma ordem.

Em seguida, pede que escrevam o que achavam que era literatura antes de participar da

oficina e o que hoje entendem por literatura. Um dos alunos (mais recente na oficina)

diz que ele pensava que viria na oficina e sairia desenhando tudo. Em seguida ele

pergunta a KA se é possível pegar uma lata de tinta e colocar cor com guache. Knup

Acrata diz que essa pergunta seria boa na oficina de grafite, mas que infelizmente ele

não frequenta. Mas responde a pergunta, dizendo que o guache não pega em parede, que

tem que ser outro tipo de tinta. Esse mesmo aluno diz que não sabe o que é literatura. O

aluno ao lado fala que é escrever, fazer rimas etc. Knup Acrata diz para ele escrever que

não sabe. Explica que aquilo não é uma prova.

Material produzido por um dos alunos na atividade acima descrita.

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- Sai o novo projeto: encontro com Alice

Alice estava feliz porque haviam sido aprovados no projeto de literatura e comunicação.

Estava feliz em poder dar uma verba para Knup Acrata, o que era uma preocupação dela

e do diretor.

- Conversa com a professora de artes

Fui conversar com a professora de artes durante uma aula em que os alunos trabalhavam

em grupo e ela estava mais disponível. Me apresentei e expliquei que gostaria de saber

se ela tinha observado mudança ao longo do semestre (de envolvimento, atitude ou

habilidades) dos alunos que haviam participado das oficinas de literatura marginal e do

grafite.

Ela fala que de um modo geral os alunos estão bem melhores do que no começo do ano,

quando conversavam se batendo. Afirma que só tem um grupinho que não tem jeito

mesmo que são os alunos que foram tirados da sala de aula e que hoje estão com Alice,

mas que os outros não dão trabalho para ela. Diz que não tem problemas na aula dela,

que desde o início fez um combinado com eles pelo qual na sua aula não teria agressão

e nem palavrões e que eles respeitam.

Diz que não sabe se é porque ela os vê pouco mas que ela não tem problema com eles,

eles vêm para a aula querendo fazer as coisas. Afirma que dá aula duas vezes por

semana, mas que eles acabaram tendo poucas aulas, porque uma delas virou oficina de

teatro (dada por ela) e o outro horário coincidiu com muitos feriados, então atrapalhou.

Pergunto se ela conheceu a proposta das duas oficinas e ela diz que não, que eles não

têm tempo para conversar. Conta que cada um prepara a sua oficina e que ela planejou

bastante a dela em conjunto com as outras duas professoras que participam. Então,

dentro da oficina há uma integração mas que um não sabe da oficina do outro pela falta

de tempo.

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- Conversa com o professor de português

O professor de português estava na sala dos professores arrumando os livros. Peço

licença para conversar e ele concorda. Sento em um canto da sala e conversamos

enquanto ele continuava a arrumação.

Peço que ele me fale sobre os alunos da oficina de literatura coordenada por Knup

Acrata e se ele havia percebido alguma diferença neles ao longo do semestre. Ele diz

que não observou diferença nenhuma e que é difícil dizer se há mudança, e se essa

mudança foi por causa da oficina. Afirma que são muitos fatores que influenciam, que

eles têm também atividades na sala de leitura e que é um conjunto de fatores que

influenciam.

Afirma também que mudanças não acontecem rápido, que leva anos e que talvez eles

vejam mudança na turma que hoje está no 5º ano porque estarão já há algum tempo

nessa escola. Diz que os alunos mais velhos vieram todos expulsos de outras escolas e

que não têm jeito.

Pergunto se ele sempre trabalhou em escola pública e ele diz que sim e que percebe que

a cada ano está pior. Os alunos estão cada vez mais sem limites, é uma geração da

informática que não tem paciência para nada, muito superficial, que não consegue

sentar, parar para ler um texto.

Pergunto como é na oficina dele. Ele diz que a turma não é como ele imaginava. Ele

tinha planejado trabalhar com dramatização e outras coisas, mas acabou ficando só na

leitura de textos. Pergunto se ele conheceu a oficina de literatura marginal e ele diz que

no início pensaram em trabalhar juntos mas depois viram que eram propostas diferentes.

Afirma que eles não tinham as mesmas preocupações de um professor de português,

como corrigir a parte gramatical por exemplo. Que lá a proposta era trabalhar com a

literatura da periferia, uma coisa mais livre.

Pergunto se ele não percebeu ao longo do ano alguma mudança não necessariamente de

disciplina, mas de interesse na matéria dele. Pergunto a respeito de um aluno

especificamente e o professor responde que não vê mudança naquele aluno, que ele

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sempre bagunça. Diz que melhorou um pouco depois da saída dos outros que estão com

Alice. Pergunto então sobre os outros alunos e ele diz que é igual. Afirma que nunca

teve problemas com uma das alunas, porque ela sempre foi boa aluna, interessada,

colaborativa. Então ele se anima e diz que isso sim ele percebeu, ou seja, que as

meninas, principalmente as meninas, estão mais interessadas na leitura. Acha que a

biblioteca está contribuindo para isso. Gostam de ler romances, estão sempre levando e

trazendo livros.

Muro da entrada da EMEF Igarapé.

- Conversa de corredor: Francisco e Knup Acrata

Cheguei à EMEF junto com o diretor. KA veio ao nosso encontro dizendo que precisava

conversar com ele sobre o uso da sala nas férias e sobre a questão da segurança.

Francisco se dispôs a conversar naquele dia à tarde. Fala com Knup Acrata sobre o

muro que estão pintando. Diz que do jeito que eles pararam é um convite para os

pichadores. Comenta também que tem uma arma desenhada e KA explica que é parte do

desenho que farão, que a arma vira um lápis. Conta que terminarão os desenhos antes

das férias. Knup Acrata então se despede e vai para o muro preparar o fundo para a

oficina de grafite da tarde.

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- Na poesia nos encontramos: conversa com Francisco

Pedi ao diretor que assinasse o termo de consentimento para a realização da entrevista

em grupo com os alunos. Ele leu atentamente e assinou. Disse que estava ok mas que na

parte que falava dos benefícios da pesquisa eu poderia ter colocado os benefícios do

outro lado também, ou seja, os benefícios para os alunos, pelo fato de estarem em uma

situação de diálogo e reflexão.

Em seguida comenta uma cena que havia presenciado outro dia na rua. Ele estava de

carro, embaixo do viaduto na Santa Cecília e o farol fechou. Havia moradores de rua ali

e o moço (pequeno burguês como nós, nas suas palavras) que estava no carro da frente,

ao avistar esses moradores, fechou o vidro do carro com medo e ficou suando.

Francisco complementa o relato afirmando que algum dia ainda vai ser assaltado porque

anda com os vidros abertos, conversa com todo mundo, pega nas pessoas... Então ele

me contou que escreve poesia. Estava com um rascunho na mão e leu a poesia que fez a

partir da situação relatada. Segue abaixo um trecho desta poesia, que se chama “Lado

humano”:

LADO HUMANO

Todos da mesma gênese África A cidade em milhões

Trânsito inviável No pé se vai mais longe

33 graus registrava o asfalto trêmulo Desequilíbrios ambientais

Ruas, lixos e manifestações desumanas Tudo obra de gente grande

E no meio de um lado o pequeno burguês Carro popular,

Vidros erguidos, sem ar Desejo de grandeza, só desejo... Do outro lado, no meio da rua

Crianças, jovens, adultos Peles em cores múltiplas

Flanelinhas e pequenos rodos Um limpa vidros, pedidos de moedas

Derretendo o desejo do burguês Em medo, em calor, em vergonha

Lá estão eles de um lado Como ameaças, como guerreiros

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Sobrevivendo na barbárie Resultado da tua organização social Obra da ganância e individualismo

Em uma cidade que ferve, Expondo suas feridas, suas acidezes

Seus desprezos Fúnebres relações, desesperos

Mas suas ruas não permitem cruzamentos Segue cada um do seu lado

No seu valor mísero Uns levam flores e arrogância

Outros sinais de morte Mas não se permitem do mesmo lado.

Indagamos: Onde rompeu-se o lado humano?

Francisco conta que está para sair um livro seu de poesia, junto com mais dois outros

diretores de escola. Terão uma verba da Prefeitura para isso. Conta que fazem saraus

também.

- Conversa com os alunos da oficina

Subi para a sala de leitura onde me reuniria com os alunos que participaram das oficinas

de literatura marginal e grafite, para explicar sobre a pesquisa e falar da importância de

ouvi-los a respeito da experiência que tiveram nas oficinas. Convidaria-os então a

participar de uma entrevista em grupo. Quando os alunos entraram na sala onde eu os

aguardava, um deles me disse: Tia eu não fiz nada, o que eu fiz dessa vez? O sentimento

de culpa e inquietação que percebi naquele aluno parece ganhar concretude no poema

de DGS:66

A realidade “Não temos vídeo-game nem computador Só o peso na consciência Nossa vida é um desafio Aqui não tem dia das crianças nem natal Nós não vivemos E sim sofremos Vivemos na periferia”

66 Também aluno da oficina de escolheu este nome para ser referido na pesquisa.

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- Oficina de grafite

Voltei neste mesmo dia à tarde para acompanhar a oficina de grafite. Fui para a sala 12

onde encontrei Curinga67 e Knup Acrata separando o material para levar para o muro.

Perguntei sobre os outros alunos e eles disseram que não viriam. Curinga disse que ele

teria capoeira naquele horário mas que resolveu ir à oficina para não deixar KA sozinho.

Descemos para o muro. Knup Acrata já tinha pintado o fundo de azul. Pegam em um

dos livretos de literatura marginal uma frase de um poema que KA me explica ser o

manifesto do sarau que acontece a cada quinze dias em um bar da região, promovido

por um dos coletivos. A frase é: Agora o armamento é o conhecimento, a munição é o

livro e os disparos vêm das letras. Knup Acrata me explica que à esquerda desenhariam

uma arma que se transformaria em lápis e ao lado colocariam esta frase. Começa a

pintar as letras em preto, com o rolinho, mas no meio se deu conta de que não caberia a

frase toda. Dá então o rolinho a Curinga e pede que ele pinte de azul novamente para

apagar. Resolve trabalhar com o spray pois assim conseguiria fazer as letras mais finas.

Curinga fica animado pois seria a primeira vez que usaria o spray. Vou com ele até a

sala buscar as caixas de spray. Encontramos um dos inspetores no caminho que brinca

com ele dizendo que não queria vê-lo pichando muro.

KA faz as letras com o spray e pede que Curinga vá pintando por dentro mas ele não

tem controle do spray, é difícil pintar dentro e também acertar a distância e a quantidade

certa de tinta para não escorrer. A primeira letra não dá muito certo... Então Knup

Acrata vai com ele para uma outra parte do muro e começa a lhe ensinar como

manusear o spray. Desenha alguns quadrados e pede que ele treine ali, preenchendo os

quadrados. Depois de algum tempo, pede que Curinga tente novamente nas letras, mas

continua difícil. Ele decide então apagar novamente as letras e voltam para o rolinho.

Diz que domina mais a técnica do rolinho. Pintam novamente o fundo, dessa vez

misturando azul e verde e fazendo um efeito meio esfumaçado, manchado. Cada um

fica com uma cor e KA ensina para Curinga como passar o rolo para dar aquele efeito:

67 Cada aluno escolheu o nome pelo qual gostaria de ser chamado nesta pesquisa. Curinga é o nome escolhido por este aluno.

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sempre na vertical, sem fazer muita pressão. Explica que uma cor deveria invadir a

outra. Acabam o fundo e depois resolvem parar porque o sol estava muito forte.

Enquanto pintavam passou um helicóptero e Knup Acrata me disse que esses caras vêm

quase todos os dias ali e matam muita gente. Diz que não entende por que eles primeiro

fazem a chacina e depois vêm para construir um centro cultural. Diz que morre muita

gente inocente e que depois não entendem por que queimam pneus para fechar as ruas.

Afirma que eles vêm de helicóptero e ao mesmo tempo vêm várias viaturas e cercam o

local.

Digo que parece uma guerra e ele confirma que estamos numa guerra. Conta que outro

dia uma pessoa ligou pra ele e quando ele disse alô a pessoa ficou aliviada. Contou que

ela tinha passado por um trecho de mata do bairro (que segundo Knup Acrata é um

lugar de desova de corpo tanto da polícia como dos traficantes) e viu dois corpos que

pareciam ele e um outro colega. KA ficou assustado. Diz que correram risco com o

proprietário do cinema.

Pergunto como foi a história do cinema e ele conta que, quando chegou no bairro há um

ano, o pessoal sonhava em usar o espaço do cinema e dizia que ele estava abandonado

há 15 anos. Como ele tinha experiência com ocupação, fizeram uma reunião e entraram.

Depois de um tempo o dono apareceu e entrou na Justiça contra eles. Conta que o dono

do prédio é o mesmo do terreno ao lado da escola. Que é uma pessoa que tem muitas

terras por ali, um latifundiário. Que foi o primeiro paulistano a comprar terra no

Maranhão. Fazia tempo que ele não pagava o IPTU do cinema e quando começou a

briga ele quitou o IPTU de 2009. Ele diz que é assim, o cara some e só aparece quando

está ameaçado de perder as coisas. Knup Acrata diz que levantou a questão sobre o

terreno ao lado da escola e que ele tem uma dívida de 60 mil reais, que não é nada em

relação ao tamanho do terreno.

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Muro em frente à EMEF Igarapé. Trabalho realizado na oficina de grafite.

- “Coletividade: a força do fazer”

O Cineclube Alastre é uma ação de articulação que foi apresentado no primeiro capítulo

do trabalho, na descrição do contexto de pesquisa. O filme projetado no dia em que

estive lá foi Coletividade: a força do fazer. Durante o debate que ocorreu após a

apresentação do filme, os participantes deste projeto contaram que inicialmente tinham

pensado em fazer um documentário sobre aquilo que faltava no bairro, mas aos poucos

perceberam a riqueza que eles tinham nas mãos, ou seja, a coletividade. Resolveram

então contar sobre as iniciativas de vários coletivos, cujo principal objetivo era divulgar

a cultura periférica. Apresentamos, a seguir, algumas frases do documentário que

retratam a realidade dos coletivos:

“Os coletivos e as pessoas que mostramos aqui existem por acreditarem que são capazes de mudar a realidade deste bairro. Alguns no meio de sua caminhada conseguiram o suporte financeiro através de editais. Mas não é a grana vinda de projetos, nem o suporte físico de instituições que os fazem existir. Em toda a periferia as pessoas se organizam para arquitetar um amanhã menos pior que o de hoje. A autogestão e

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paixão pelo que fazem são os pontos comuns desses coletivos. Porque aqui, do céu só cai chuva.” “É dessa forma que a gente tem que enfrentar isso aí mesmo. Pensar que a nossa participação, por mínima que seja tá influenciando... É isso aí, a gente constrói o nosso futuro junto mesmo.” “Não interessa se você é punk, se você é rastafari, se você é gótico, rapper, não interessa. O objetivo é um só: a gente tem que fazer a cultura crescer aqui dentro pra transformar as pessoas, o social. Porque a gente que vive dentro da periferia, a gente já passou por muitas coisas e a gente não quer ver as crianças, as outras pessoas passarem pela mesma coisa. Estamos obtendo conhecimento para que isto não ocorra com os outros. A gente acredita que a cultura pode transformar o social, deixar o social bem amplo.” “A gente tá querendo fazer as coisas, construir as coisas, mas nossos pais, nossos vizinhos, senhor e senhora, as outras pessoas estão quietinhos, não conseguem correr pra fazer as coisas. Então é começar a criar incômodo nessas pessoas porque não é esperar nascer novas pessoas que nem a gente que queiram correr atrás das coisas, mas sim, quem tá vivo ainda tem um potencial pra despertar e correr junto, pra construir alguma coisa, os sonhos que as pessoas querem.” “A periferia tem muito artista, a periferia tem muito escritor, tem muito compositor, tem muito ritmista, tem um pessoal que faz um teatro fantástico, só que, assim, não tem um local pra se encontrar, pra desenvolver isso.” “Existe um estigma de que a população da periferia não gosta de arte. Mas onde está a oportunidade dela? Ela tem que se deslocar às vezes da periferia até o centro pra ir à procura de arte.” “O que está ocorrendo agora está sendo muito espontâneo, está acontecendo tudo muito rápido. Pra mim começou a partir do sarau. Quando começou a rolar o sarau, parece que despertou uma galera pra ver que a gente pode sim, que, se a gente quiser fazer, a gente pode transformar isso. E agora as coisas estão acontecendo com o próprio espaço que vocês estão organizando, com a biblioteca, com o lance que rolou de estar ocupando o espaço do cinema, dos espaços públicos que tem aí pra gente ocupar...” “O objetivo do nosso coletivo é estar promovendo a ocupação do espaço público e trazer um pouco da cultura da periferia, do rap, da dança, do grafite e a gente juntou esse dia hoje pra unir

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tudo isso, unir a diversidade, as diferenças. E o objetivo também é, através desse espaço, estar promovendo a paz através do diálogo, da compreensão. E de respeitar a todos. Aqui ninguém é igual, a única igualdade que a gente quer é a igualdade social. “ “Espaço tem, mas não tem captação. As pessoa vão trabalhar fora e os grupos vão se separando, fica sem ninguém na periferia.”

A participação neste encontro foi essencial para a compreensão do sentido de um

coletivo e para a compreensão de que o projeto de literatura marginal está inserido em

uma articulação mais ampla que não envolvia apenas o coletivo de Knup Acrata, mas

vários coletivos do bairro, que, na sua maioria, são iniciativas recentes. A sala 12

(Espaço Cultural) pareceu-me ser uma resposta ao anseio de terem um lugar comum

onde os vários coletivos pudessem se encontrar, trocar, partilhar, criar juntos. Durante a

discussão, após o filme, um dos pontos levantado foi o da necessidade de maior

comunicação entre os coletivos na hora de montar suas agendas, pois às vezes ocorrem

vários eventos ao mesmo tempo e as pessoas não comparecem. A sala 12 representava,

portanto, um dos aspectos necessários para a concretização de um anseio que se

desvelou para mim naquele momento: o anseio de maior articulação entre os vários

coletivos. A divulgação, que apresentamos abaixo, feita por Knup Acrata em um dos

livretos dos coletivos, ilustra esta ideia:

“iniciamos as atividades na EMEF Igarapé, no segundo semestre deste ano. Além dessa parceria ter vindo num momento importante para o coletivo, ela soma com a escola e sua construção pedagógica! Porém, para o coletivo, o espaço veio para trazer reflexão sobre nossas ações, ideologias, estudos e focos! Entendemos que o processo de crescimento é ininterrupto, por isso, da reflexão/ação! Por isso queremos comungar desse espaço com todos os coletivos da região, então é só chegar! Nesses meses já realizamos eventos de rap, sarau, oficinas de grafite e literatura!”

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- Projeto Germinal: a articulação continua, aprofunda, se organiza

Cheguei à EMEF e fui para a nova sala dos coletivos, que agora fica no térreo. KA me

conta que resolveram mudar o Espaço Cultural da sala 12 – localizada no segundo andar

– para evitar que o pessoal de fora tivesse muito acesso às dependências da escola, o

que gerava certo medo de que sumissem coisas das classes. Assim, a nova sala fica no

térreo e tem um acesso mais fácil em relação à portaria.

Aquele dia seria o início, em 2010, de todas as oficinas. Algumas oficinas mudaram,

entraram novas propostas. O professor de português, por exemplo, não daria mais

oficina de literatura marginal e sim aula de italiano. Incluíram xadrez, mídia, entre

outros. Também a oficina de Knup Acrata mudou. Passou a chamar-se Projeto Germinal

e prevê o trabalho com literatura marginal, mas também fotografia e vídeo. O objetivo é

resgatar e documentar com os alunos a história do bairro.

A oficina aconteceu em uma sala de aula no segundo andar. Todos os alunos inscritos

recebem crachás e no início uma professora entra na sala para alertá-los de que aquele

seria o último dia em que poderiam mudar de oficina. Há a permuta de um dos alunos

com um menino que estava em outra oficina. Ao todo são 18 alunos.

Antes de iniciar a oficina, Knup Acrata pede que os alunos sentem em círculo, para se

verem melhor. Em seguida pergunta por que estavam ali. Alguns respondem que foram

incentivados por um amigo, outros que aquela era a oficina mais legal porque as outras

eram chatas. Outro diz que havia escolhido por causa dos vídeos. KA explica que existe

outra oficina que é a de mídia e que a diferença é que na mídia eles iriam assistir vídeos

e no Projeto Germinal eles iriam fazer vídeos.

Em seguida, pede que fiquem em pé para fazerem uma dinâmica. Divide os alunos em 2

grupos e pede que cada um vá colocando sua mão direita sobre a do outro e em seguida

a esquerda. Depois cada um dá a mão para o que tem a mão embaixo da sua e abre uma

roda. Ao abrir a roda, todos ficam entrelaçados. Ele pede que tentem se desenroscar sem

soltar as mãos, formando um círculo. Dá muita confusão, um grupo consegue e o outro

não, fica um nó só. Então explica que é isto o que iria acontecer ao longo do ano. Vão

estar unidos, mas explica que em alguns momentos vai estar uma bagunça. Mostra que

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eles precisaram fazer uma parceria para chegar no círculo. Assim também vão precisar

um do outro e ele espera que consigam tramas que saiam e que não fiquem como o

grupo que não conseguiu se desenroscar.

Pergunta se eles sabem o que farão na oficina e Curinga explica que será um projeto

sobre a escola, comunidade e que vão dar um rolê pela comunidade. Outro aluno diz

que quer ser repórter. KA explica que o objetivo é trabalhar com literatura marginal e

que vão conhecer a cultura, a história do bairro através de foto e audiovisual. Vão visitar

o bairro, quem sabe a casa deles ou outros lugares que eles escolherem. Vão fazer

entrevistas.

Em seguida pede aos alunos que participaram das oficinas do ano anterior (2 levantam a

mão, DGS e Curinga – mas havia mais 2 que também participaram) para contarem o

que fizeram. Curinga explica que montaram um livro de poemas que falava sobre a

comunidade, sobre respeitar o direito do pobre.

Knup Acrata pergunta se eles sabem o que é literatura marginal. Não respondem. E

poema? Um aluno diz que vai responder o que a amiga sempre diz, que poema é um

monte de letras. KA afirma que vão trabalhar no início com literatura marginal, poema,

arte periférica. Distribui então dois poemas que leem coletivamente, cada aluno

espontaneamente lê uma estrofe. No início estão tímidos mas aos poucos alguns vão se

animando e leem várias vezes, com boa entonação. Explica que os dois poetas são da

região – os dois poetas são aqui da quebrada.

Comentam a respeito do conteúdo do poema. DGS diz que os poemas mostram a luta da

periferia. KA pergunta sobre o formato do poema. Mostra que, em cada estrofe, a

terceira linha não rima com as outras. Mostra também que o poema usa uma linguagem

coloquial, que lembra a fala do caipira. Diz que a periferia é como um interior na

cidade. Knup Acrata relê o poema em voz alta para eles perceberem. Mostra que isto é

uma quebra dos padrões no poema, pois, na poesia da academia, eles usam uma

linguagem difícil. Pergunta se tem alguma palavra que eles não compreendem. Um dos

alunos pergunta o que é caboclo e KA explica que é a mistura de índio com negro, uma

etnia. Outro pergunta o que é burguês e ele explica que, quando o poeta usa a palavra

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burguês, ele está falando de classes sociais e se refere aos ricos, ao pessoal que explora

os pobres.

Curinga diz que o poema dá o recado de que o pobre não é só bandido. Começam

conversas paralelas e o barulho aumenta. Knup Acrata para a discussão e diz que

conversar é bom mas que temos que tentar participar da aula e que tem também o

momento de conversar. Explica que o projeto será até novembro e que só terão duas

aulas às quartas-feiras, diferente do ano anterior quando tinham 3 aulas. Por conta disso,

o tempo é curto e explica que ficará menor ainda se ele tiver que ficar parando para ver

o que está acontecendo. Pede que tragam material no próximo encontro: caderno, estojo

etc.

DGS conversa e briga e KA o muda de lugar. Depois comenta que acha feio ter que

mudá-los de lugar porque eles escolheram o lugar onde queriam sentar. Em seguida

comenta sobre o programa e diz que até o começo de abril vão trabalhar literatura

marginal, depois técnica de fotografia para saírem na rua e tirar fotos e mais para frente

vão trabalhar com câmera filmadora para fazer um filme. Explica que não quer celular

na aula e, por último, comenta sobre o centro cultural e a sua programação e diz que

farão passeios e visitas até lá pois há muita opção de coisas para ver próximo deles e

eles não aproveitam. Pede que para o próximo encontro tragam por escrito sugestões de

passeios. Uma sugestão que surgiu foi o Estação Ciência. Divulga também a sessão do

Cine Alastre. Explica que no ano anterior o Cine Alastre acontecia às quintas-feiras e

agora seria no último domingo do mês. Convida-os para o seguinte, no dia 28 de março

às 19:00h, cujo filme seria Salve Geral.

Percebi a oficina bem organizada e planejada. Knup Acrata parecia mais seguro quanto

à atitude em relação aos alunos. Em um momento, dois alunos estavam conversando e

ele pediu que mudassem de lugar, mas os alunos não queriam. KA continuou pedindo e

permaneceu em pé aguardando os alunos responderem. Ao final eles acabaram

mudando. Nesta oficina estava presente também um jovem que fazia parte de um

coletivo de música. KA o havia convidado para conhecer a escola e ele estava pensando

em dar aulas de música. Ao final, este rapaz fala da dificuldade que teria em estar com

os alunos e de como seria desafiante oferecer a música, que precisa de silêncio, de

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pausa. KA comenta que no ano anterior a turma era pior em relação à bagunça, brigas

etc.

- Conversa com Alice

Alice me entregou as avaliações dos alunos da oficina do ano anterior e disse que esta

avaliação não revela a situação real do aluno porque eles têm que seguir critérios

estipulados pela Secretaria da Educação e não aparece o processo de aprendizagem de

cada aluno. Dá o exemplo dizendo que há alunos que continuam sem saber ler e

escrever então recebem um não satisfatório. Por outro lado, ela vê que este aluno

melhorou muito, progrediu com ele mesmo e isso não é levado em conta, só o resultado

se ele está lendo ou não. Além disso, diz que não podem reprovar os alunos nos

primeiros anos de cada ciclo, só no último e com isso ninguém leva a sério a avaliação.

O aluno não aprende e vai passando. Acha que não adianta também reprovar só no

último ano pois em um ano ele não aprenderá o que não aprendeu em quatro anos. Alice

me entrega os dados alertando, portanto, para o fato de eles não retratarem uma situação

real.

- Conversa com Francisco

Pedi ao diretor que escolhesse uma poesia sua para colocar no trabalho. Ele lembra de

uma poesia que fez sobre a adolescência para conversar com o professor de português

que estava reclamando das alunas “assanhadas”. Diz que gosta muito de usar a poesia.

Lê com os alunos do Fundamental II. Conta que escreve sobre várias coisas: romance,

crianças, Paulo Freire, realidade, para as mulheres etc. Pergunto sobre a poesia que foi

para o livreto dos coletivos e se poderia colocá-la no trabalho e ele diz que sim, se for o

tema que me interessa.

-Conversa com o diretor e a auxiliar administrativa

Francisco fala da importância das vivências com a comunidade, principalmente aquelas

que acontecem no horário de aula. Diz que há uma cultura instituída da escola e que

temos que nos desapegar dessa formatação. No cotidiano já vivem coisas diferenciadas

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(alunos e professores). Acha que há uma resistência em ousar, que é da condição

humana a busca por condições de segurança.

Conta que no final do ano tiveram um reunião de avaliação com pais e professores e que

eles disseram que queriam ver se este tipo de escola aberta não era fogo de palha, pelo

fato de a escola estar no começo, etc. Afirma que quer levar esta experiência para o

currículo, atrelar ao projeto pedagógico. Acha que terão que enfrentar alguns desafios

como o tempo e o desapego aos conteúdos acadêmicos, para poder atrelar a relação com

a comunidade ao projeto pedagógico e transformar as expressões do contexto

comunitário em conteúdos significativos.

Está curioso com o resultado do meu trabalho. Espera que ele aponte se esta é ou não

uma experiência positiva, se eles estão no rumo certo e se devem avançar. Acha que

faltou em minha pesquisa um olhar para a gestão. Diz que a concepção de gestão das

escolas é muito medrosa. Começam um trabalho com a comunidade mas, na primeira

manifestação de animosidade, mandam a comunidade embora. Acha que este trabalho

pode contribuir para que outras experiências similares aconteçam.

Afirma que, quando a escola se abre para a comunidade, algumas expressões que não

são compreendidas como expressões aceitas acontecem, tipo bebida, drogas, brigas etc.

Um descuido, uma música e já temos a comunidade fazendo uma crítica à escola. Essas

coisas vão acontecer. A gestão tem que estar atenta, aberta, disposta a negociar e com

princípios à frente do que a comunidade representa. Trabalhar com a incerteza faz parte.

Podem até acontecer coisas gravíssimas. A comunidade tem conflitos, e as pessoas

querem se expressar onde há visibilidade, numa festa por exemplo. Às vezes um “acerto

de contas” acontece no meio da festa.

Acha importante me dizer essas coisas porque são o oculto de uma proposta assim, de

abertura para a comunidade. Tem medo de eu ficar só na aparência e ser tendenciosa.

Diz que a gestão tem que estar atenta à formação, que os projetos precisam estar

sintonizados com os princípios. Dá o exemplo do samba – oficina de percussão e

também ensaio da escola – a comunidade reclama do barulho da escola. Fala da

importância do papel articulador da equipe como um todo. Acha que esse tipo de

projeto só acontece porque tem a coordenadora pedagógica fazendo a coisa acontecer, a

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auxiliar de administração também. Acha que as famílias reconhecem o seu trabalho

porque querem que os filhos estejam nessa escola. Eles recebem o carinho das famílias.

Acredita que há muitos elementos que demandam para fazer uma escola aberta com

segurança, pois a comunidade ferve, ela não é um “convento de freiras”. Mas é possível,

quando pensamos o que é um projeto humanista e que essas manifestações também

fazem parte do humano. Pergunto da sua motivação em relação a este projeto e também

sobre o seu projeto de iniciar o doutorado. Ele diz que visa, com o doutorado, ver a

valia do projeto em relação à formação das pessoas do ponto de vista mais humano,

mais transformador.

Por outro lado, em relação àquilo que o motiva a uma escola aberta para a comunidade,

diz que não é uma coisa isolada, mas que tem a ver com sua própria história. Conta que

com 14 anos atuava no movimento de jovens no interior. Dos 16 aos 18 fez parte da

Pastoral Operária em Uberlândia, onde apresentavam peças de teatro sobre os direitos

trabalhistas. Atuou dentro das comunidades eclesiais de base da Teologia da Libertação

durante toda a década de 1980. Em 1984 foi representante do sindicato dos professores

(PROESP) e militante do PT entre 1980 e 1986. Com 22 anos dava aula de filosofia em

um curso noturno de uma escola da periferia da zona norte (Taipas e Pirituba). Escrevia

poesia nos muros de Taipas. Pela sua história, quando veio para a escola já tinha um

olhar para os movimentos sociais. Já coordenara esse tipo de iniciativa em outras

escolas, mas como coordenador pedagógico, e aí não tinha tanta liberdade para negociar

com instituições, fazer a coisa acontecer. Conta que a diretora era medrosa. O

incentivava mas não se envolvia.

Em 1996 foi para o Instituto Paulo Freire e diz que seu salário dobrou, triplicou. Diz

que quando a pessoa não é firme larga dos princípios por causa da vida burguesa, mas

ele não largou. Em 2001 entrou no mestrado e acha que todos devem fazer, incentiva a

auxiliar administrativa. Terminou o mestrado em 2003. Conta que o que o motiva é a

vontade de fazer uma escola humanista. Estão lendo Bauman – vê que vão contra a

corrente. O mercado prega o individualismo e eles querem falar de comunidade.

Esta foi a última conversa na EMEF Igarapé durante o período em que frequentei a

escola quinzenalmente para observação das oficinas. Após este período, novos

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encontros individuais ocorreram, com a finalidade de dar uma devolutiva da narrativa e

análise de cada participante.

Passaremos a seguir à narrativa da entrevista coletiva com os alunos.

5.2. Narrativa da entrevista com os alunos

Era a última semana de aula e o clima da escola estava bastante agitado; um clima de

férias. Alguns alunos que tinham aceitado participar da entrevista faltaram neste dia e

um dos alunos que estava presente desistiu de participar pois a entrevista seria realizada

no horário de aula e ele não queria perder o jogo da educação física (aula que teria

naquele momento). Assim, ao todo participaram 8 alunos, sendo que, entre estes, 4

tinham sido mais assíduos às oficinas e apenas 2 participaram das duas oficinas de

literatura marginal e da oficina de grafite até o fim.68

Os alunos participantes foram: Lukim, Nilo-vtv, Aline Knup Acrata,69 Gérson, DGS,

Baby Check, Curinga e GTV. Estes nomes foram escolhidos por eles ao final da

entrevista, quando pedi que atrás de seus crachás escrevessem um nome (um

pseudônimo como fazem os escritores) pelo qual gostariam de ser referidos no

presente trabalho.70

Iniciamos o encontro com a confecção de crachás. Deixei sobre uma mesa folhas,

barbante e canetinha e conforme os alunos chegavam, pedia que escrevessem seus

nomes e pendurassem os crachás para facilitar nossa comunicação. Essa atividade

tinha como objetivo descontrair e acalmar os alunos, que chegavam agitados na sala.

68 A oficina de grafite ocorria no período da tarde e teve pouca adesão dos alunos no final do semestre. Apenas 5 alunos participaram até o fim. 69 Aline escolheu este nome seguido do pseudônimo utilizado pelo educador no bairro. A fim de manter o sigilo em relação a ele, utilizamos para o “sobrenome” de Aline o nome ao qual nos referimos ao educador nesta pesquisa: Knup Acrata. Assim, Aline passou a ser chamada na pesquisa de “Aline Knup Acrata”. 70 Encontram-se em negrito as intervenções da pesquisadora ao longo da entrevista, explicitando, desta forma, as perguntas e colocações que conduziram o encontro.

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Momento inicial da entrevista: confecção de crachás

Enquanto desenhavam, conversavam bastante. Alguns alunos provocavam Aline Knup

Acrata, única menina que participou do encontro. Perguntaram sobre Knup Acrata, e

expliquei-lhes que ele estava fazendo um trabalho na sala de computação. Perguntaram

o que ele fazia e um dos alunos respondeu que ele é professor. Nilo-vtv e DGS pediram

para sair para entregar um trabalho na aula de matemática. Deixei que fossem e pedi

que retornassem logo. Senti um certo desconforto por parte dos alunos por estarem

perdendo aula. Por outro lado, junto com a coordenadora pensamos que seria melhor

fazer a entrevista no horário letivo para facilitar o encontro.

Finalizada a confecção dos crachás, retomei com eles o objetivo da minha presença

nas oficinas, expliquei sobre a pesquisa e a importância de escutá-los sobre a

experiência que haviam tido na oficina de literatura e no grafite. Pedi que me

ajudassem a lembrar tudo o que haviam feito nestas oficinas ou, pelo menos, que

me contassem, de tudo o que fizeram, aquilo que eles lembravam. Esta atividade

serviu de aquecimento para entrarmos no assunto das oficinas.

Baby Check começou dizendo que não lembrava de nada. Aline Knup Acrata contou

que fizeram poemas e escreveram textos. Conforme eles falavam, eu registrava na

lousa as atividades em forma de itens. Baby Check, em tom irônico, pediu que eu

escrevesse poema + poema = poema. Pergunto se não lembravam de mais nada e

Nilo-vtv conta que eles cantaram também. Baby Check insiste: Poema, tia!.

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Aline Knup Acrata diz que eles escreveram um livro. Pergunto aos outros que

estavam quietos se não lembram de mais nada e Curinga lembra que participaram de

um sarau. Aline Knup Acrata interrompe dizendo que Teve gente que não veio... e

Gérson complementa afirmando que metade dos alunos haviam comparecido. Curinga

diz que só ele e mais um menino estiveram no sarau e Baby Check reclama perguntando

se ele não tinha vindo recitar poema. Baby Check e Curinga discutem sobre a presença

de Baby Check no sarau e ele generaliza a conversa para mostrar sua participação nas

oficinas. Diz que grafitou o muro, que foi ele quem fez a parte de cima do desenho.

Ficam disputando para ver quem participou mais. Baby Check procura se defender da

afirmação de Curinga de que os alunos que realmente participaram da oficina de

literatura marginal e grafite até o fim foram Lukim, ele e mais três alunos que não

estavam presentes.

DGS interrompe dizendo que eles também tinham feito uma excursão para o arquivo do

Estado. Nilo-vtv conta que participaram da “Passeata da Paz” e que ainda bem que ele

tinha ficado na parte de trás porque teve um empurra, empurra.

Proponho então retomarmos tudo o que havia sido dito e ver se lembravam de

mais alguma coisa. Leio em voz alta a lista das coisas escritas na lousa: cantaram,

escreveram poema, escreveram um livro, fizeram sarau, leram livro, foram no arquivo

do Estado conhecer a história do bairro e participaram da Passeata da Paz. DGS

complementa: E grafitamos o muro da escola!

Retomo com eles que eram duas oficinas e Curinga complementa dizendo que sim,

que era o grafite e a literatura. Pergunto se participaram das duas e como tinha sido

e Gérson explica que ele começou participando da literatura, mas que uma parte dos

alunos ia para a literatura e outra parte para o grafite. Conta que havia alunos que

queriam fazer o grafite mas acabaram indo também para a literatura.

Retomo para ver se havia compreendido e pergunto se todos os alunos tinham

participado da literatura. Digo que o que compreendi foi que tinha um grupo

interessado na literatura e alguns queriam o grafite. Curinga me interrompe para

explicar e diz que era isso. Conta que quando falaram que teria grafite o pessoal pensou

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que ia chegar e já pegar na lata e grafitar. Gérson continua dizendo que primeiro tinha

que participar da literatura para depois pegar na lata. Conta que, com isso, o pessoal foi

saindo do grafite e só ficaram três alunos. Curinga lembra que ele também continuou.

A conversa continuou e os alunos falavam da oficina de literatura e do grafite sem

distingui-los. Proponho então falarmos primeiro da literatura e depois do grafite.

(Isto aconteceu também durante uma oficina onde um dos alunos perguntou sobre o uso

de guache e KA respondeu que esta seria uma boa pergunta na oficina de grafite. Pelo

que os alunos me relataram na entrevista, a junção da literatura e do grafite foi proposta

pela escola e na cabeça deles era uma oficina só. Acabei tendo a mesma postura de KA

de pedir que separassem algo que para eles estava unido ou tinha sido proposto em

conjunto pela escola. Pedi que separassem porque estava confuso compreender. Talvez

tão confuso quanto estava para eles também e, no início, para a escola e Knup Acrata

que iniciavam uma primeira experiência de articulação e foram configurando as oficinas

na prática, ao longo do tempo).

Digo que havia compreendido que cada um podia se inscrever na oficina que

quisesse. Pergunto, então, o que eles queriam quando se inscreveram na oficina de

literatura marginal. Baby Check conta que queria pegar na lata. Pergunto se ele

achava que isso seria a oficina de literatura e ele diz que não, que não estava falando da

literatura. Pergunto se ele havia se inscrito na oficina de literatura marginal e

Curinga interrompe dizendo que vai me explicar. Peço a Curinga que deixe Baby

Check contar.

Baby Check afirma que não havia se inscrito na literatura. Diz que primeiro se

inscreveu no cinema porque não sabia que ia ter grafite. Então, quando soube do grafite,

pediu para mudar. Pergunto sobre a oficina de literatura e ele diz que não imaginava que

tivesse esta oficina. Retomo então que seu interesse era pelo grafite e que o que ele

queria era grafitar o muro e ele confirma.

Dirijo-me então ao grupo e pergunto quem mais gostaria de falar sobre o que queria

com a oficina de literatura marginal. Gérson afirma que queria ler mesmo e Baby

Check, em tom irônico, de espanto pergunta: Ele queria ler?! Gérson responde que sim

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e que ele estava falando da oficina de literatura marginal, que ele queria treinar, ler

melhor.

Pergunto a Aline Knup Acrata e ela diz que queria escrever poemas. Baby Check ri

de sua resposta e os dois começam um bate-boca. Peço silêncio para escutarmos os

outros alunos. Nilo-vtv conta que veio para a oficina de literatura para aprender a ler e

aprender outros tipos de leitura também, coisas que eles não sabiam. Pergunto que tipo

de leitura e Gérson responde que era literatura suburbana.

Curinga retoma o início das oficinas e a questão da escolha dos alunos. Conta que,

quando anunciaram o grafite, falaram que era grafite, só que ia ter oficina de literatura

marginal também e o que o pessoal só tinha entendido a parte do grafite. Gérson

confirma que foi isso mesmo que aconteceu, que todo mundo se inscreveu pensando

que era só grafite. Curinga continua dizendo que quando Alice passou para eles

assinarem a lista, ela anunciou que era grafite e oficina de literatura. Conta que por isso

o grafite estava cheio de gente no início e depois foi diminuindo à medida que o pessoal

foi vendo que era aquilo (ou seja, oficina de literatura marginal). Apesar disso, Curinga

diz que ele gostou porque eles foram vendo coisas sobre a comunidade e sobre a

periferia.

Baby Check retoma dizendo que Knup Acrata só deixou ir pra parede quem estava

frequentando a oficina de literatura marginal. Gérson diz que a sala encheu e acha que o

povo começou a desistir porque começaram a falar da comunidade, da pobreza, da

periferia.

Retomo novamente perguntando se a maioria deles tinha se inscrito para o grafite,

querendo pintar e Nilo-vtv diz que não, que todo mundo se inscreveu pensando que já

ia pra parede. Gérson confirma dizendo que não era para a literatura e sim para o

grafite.

Pergunto se o que eles esperavam aconteceu, ou seja, se o Baby Check grafitou, se o

Gérson melhorou a leitura, etc. Pergunto se, passado esse tempo, eles poderiam dizer

que tiveram o que queriam.

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Baby Check diz que não teve o que ele esperava, mas que acabou gostando. Pergunto

do que ele gostou e ele responde que gostou dos poemas e de fazer rap. Conta que no

início não ía muito na oficina de literatura marginal, mas que no final passou a ir, foi

umas cinco, seis vezes e KA deixou ele participar do grafite.

Curinga afirma que achou legal o fato da oficina não ter sido apenas para eles. Conta

que também convidaram a comunidade para o sarau, fizeram o livro, e que até na

internet eles estiveram. Conta que colocaram na internet foto deles na sala.

Retomo o que havia sido dito na tentativa de organizar o discurso e conferir se

minha compreensão era condizente com o sentido por eles atribuído àquela

situação : Vocês se inscreveram achando que era o grafite e quando chegaram aqui

tinha oficina de literatura marginal também. Alguns estavam procurando a leitura,

poemas e conhecer outro tipo de literatura. Outros queriam o grafite mas acabaram

gostando, é isso?

Gérson responde que sim, que alguns dos que estavam inscritos no grafite quiseram

continuar, mesmo sabendo da oficina de literatura marginal. Pergunto então o que eles

tiveram de novo na oficina de literatura marginal e Baby Check responde que

tiveram um monte de coisa. Peço que ele me dê um exemplo e ele conta que não

gostava muito de poemas mas que aprendeu a gostar. Conta que leu até um livro

conhecido que Knup Acrata lhe havia emprestado, de um dos coletivos do bairro.

Gérson complementa dizendo que eles aprenderam muito sobre a periferia, que

aprenderam que podem usar o conhecimento como arma contra a reflexão.71 Nilo-vtv

afirma que aprendeu que grafite é diferente de pichação. Conta que no grafite você

aprende a fazer um tipo de letra, aprende a fazer desenho e que pichação é você ficar lá

escrevendo na casa dos outros.

Pergunto sobre o canto, pois eles haviam dito que cantaram e Curinga diz que quem

cantou foi KA e que Gerson e mais dois outros alunos fizeram um rap. Pergunto a

Gerson se ele gostaria de cantar o rap e ele diz que depois. Peço então que antes de

finalizarmos, eles falem o que acharam mais importante, ou o que gostaram mais.

71 Embora ele tenha usado a palavra “contra” a reflexão, percebi que não era esse o sentido. Acabei não intervindo na sua fala.

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Curinga afirma que gostou de conhecer sobre a periferia, de ver que a gente é

trabalhador, a gente é sofredor sim, só que não é bandido. Acha que alguns fugiram um

pouco do caminho, mas nem todos são assim.

Pergunto se ele acha que mudou o seu jeito de ver a periferia e ele diz que sim e que

os grafites que eles fizeram têm como objetivo mudar a visão que as pessoas têm da

periferia. Acha que os ricos na zona sul veem a periferia assim, ou seja, um lugar de

bandidos. Pergunto como ele via a periferia antes de participar da oficina de

literatura marginal e do grafite e ele diz que também via dessa maneira porque passa

no jornal que estão roubando, matando. Mas depois viu que é diferente. Baby Check

continua, dizendo que no jornal eles só mostram as coisas ruins que acontecem ali. E

afirma: Uma coisa boa tipo um mercado que eles fazem ou as escolas.. tipo essa escola

aqui, alguém veio filmar pra falar que tem uma escola? Mas alguém veio filmar um

cara que morreu ali.

Pergunto se então podemos dizer que na oficina de literatura marginal eles

passaram a ter um novo olhar sobre a periferia, enxergando as coisas boas e Baby

Check responde que sim, que do outro lado da ponte os caras acham que aqui só tem

vagabundo, aqui só tem ladrão. Complementa dizendo que muitos jogadores de futebol

vieram da favela. Gérson também confirma essa mudança de olhar ao afirmar que eles

aprenderam a ver o lado bom da periferia e a usar o conhecimento para perceber, por

exemplo, que o fato da televisão e do jornal mostrarem as coisas ruins não significa que

isso seja verdade.

Pergunto como eles usam esse conhecimento e Gerson diz que o utilizam para não

serem enganados. Curinga confirma. Conta que fez um poema onde fala que no livro

eles aprenderam a adquirir conhecimento e que quando estiverem perto de alguém que

mora do outro lado da ponte, vão saber falar, saberão responder suas perguntas. Afirma

que o conhecimento serve para eles mostrarem que não são burros, que sabem o que

querem. Gerson completa dizendo que serve para mostrar o que eles podem

Aline Knup Acrata interrompe dizendo que Lukim não havia falado ainda e pergunto

se ele gostaria de dizer alguma coisa mas ele fica quieto. Retomo então as falas

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dizendo que aquilo que eles aprenderam de diferente, que talvez vocês não

estivessem esperando foi ter um outro olhar sobre a periferia. Aprenderam que na

periferia não existem só coisas ruins, mas também coisas boas, e que com o

conhecimento eles conseguem mudar. Gérson concorda e Curinga completa dizendo

que os armamentos da periferia não são somente as armas, as balas. Acredita que o

armamento são os livros também, e aquilo que eles conseguem aprender. Gerson

afirma: Nossa arma é o conhecimento.

Volto-me novamente para Lukim e para Nilo-vtv, que estavam mais quietos e pergunto

o que eles mais gostaram. Curinga interrompe dizendo que Lukim não tinha

participado muito, mas insisto dizendo que ele pode dizer o que mais gostou daquilo

que participou. Lukim responde que gostou dos poemas e Nilo-vtv disse que gostou de

conhecer os amigos de Knup Acrata. Baby Check se anima e entra na conversa.

Pergunta o que KA era e respondo que é punk. Ele conta que, antes, achava que punk

era meio bicha, e que, depois que conheceu KA, viu que não, que ele é legal; que punk

vê as coisas de um outro jeito, imagina um outro mundo. Acha que é bom ser punk

porque você aprende mais.

Comento que, além de mudar o olhar deles sobre a periferia, mudou também o

olhar em relação ao que é ser punk. Curinga afirma que também gostou de conhecer

pessoas legais. Cita uma das educadoras do grafite, o pessoal de uma ONG do bairro e a

pesquisadora.

Pergunto a DGS se ele quer falar alguma coisa e ele diz que gostou de escrever

poema. Pergunto se ele já tinha escrito um poema antes e como tinha sido essa

experiência. Ele afirma que não e que havia sido difícil. Baby Check conta que para ele

foi legal, que uma vez escreveu sobre quem ele era. Ele diz: Eu escrevi assim: eu sou

eu, eu sou desse jeito, não adianta querer me mudar porque eu sou assim. Em seguida

afirma: Você vai se abrindo. Você, sei lá, você flutua, você viaja na maionese. DGS

comenta que depois que começa, vai saindo tudo de uma vez.

Pergunto se com o tempo ficou mais fácil ou igual fazer poemas e DGS diz que foi

ficando mais fácil. Baby Check fala animado sobre como a rima ia saindo. Conta que

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Knup Acrata pedia para ele falar uma palavra e depois tentar falar uma outra que

rimasse com aquela. Curinga diz que fizeram poemas sem rima também.

Digo que estamos finalizando o encontro e pergunto se querem falar alguma coisa

sobre o grafite. Curinga explica que os educadores começaram a fazer um desenho na

lousa e não dava para saber o que ia sair. Eles fizeram vários traços e depois apagaram

alguns e virou um rosto. Aline Knup Acrata vai na lousa para explicar como era feita a

construção do desenho do rosto.

Pergunto o que eles mais haviam gostado do grafite e Curinga afirma que foi o fato

de terem primeiro que avançar a ideia para depois desenhar. Pergunto qual o sentido

do que eles haviam desenhado no muro da escola e ele conta que o primeiro desenho

era a periferia e que o outro era a ideia de que a arma é o conhecimento.

A essa altura os alunos pareciam cansados, estavam dispersos, saindo para beber água e

conversando entre eles. Resolvi então finalizar o encontro. Pergunto se alguém queria

falar mais alguma coisa e ninguém se manifesta. Retomo com eles minha pesquisa e

digo que contaria o que havíamos conversado, sem, no entanto, identificá-los. Houve

protestos nesse sentido alegando que eles queriam ser identificados. Pergunto se eles

já haviam reparado que alguns poetas usam um outro nome para assinar seus

poemas e Baby Check lembra de KA, que é conhecido pelo seu pseudônimo, mais do

que pelo nome próprio. Peço que eles escrevam atrás de seus crachás um nome pelo

qual gostariam de ser tratados na presente pesquisa. Alguns resistem mas acabam

escolhendo um nome. Baby Check pergunta se eu conheço algum nome que signifique

rua ou periferia, mas ao final ele mesmo encontra outro sentido para o identificar, o

basquete. Conforme acabam de escrever os crachás vão retornando para suas salas.

Baby Check e DGS pedem para cantar o rap que haviam feito. Baby Check pega o

atabaque e ambos cantam:

“O grafite é uma oficina que você vem para aprender Depois de um tempo você vai aprender O grafite tá na veia e também no coração Um abraço pra todos meus irmãos”.

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6. ANÁLISE DOS PARTICIPANTES DO PROJETO DE ARTICULAÇÃO

Neste capítulo apresentamos as constelações formuladas de acordo com cada

participante do projeto. Tanto os temas como o número de constelações variam

conforme o participante ou o grupo analisado. Apresentamos em primeiro lugar a

análise de Francisco, diretor da EMEF Igarapé, seguida da análise de Alice,

coordenadora pedagógica, e de Knup Acrata, responsável pela oficina de literatura

marginal e representante dos coletivos. Em seguida, o grupo de alunos, os professores

de artes e português da EMEF Igarapé e, por fim, os coletivos.

6.1 Francisco, diretor da EMEF Igarapé

Quero a utopia, quero tudo e mais Quero a felicidade nos olhos de um pai Quero a alegria muita gente feliz Quero que a justiça reine em meu país Milton Nascimento e Fernando Brant

- CONSTELAÇÃO 1: SENTIDO DA ARTICULAÇÃO PARA FRANCISCO

Esta constelação descreve o sentido da articulação para Francisco, diretor da EMEF

Igarapé. Seu relato nos mostra que a experiência de abertura para a comunidade não é

uma novidade para ele, mas algo atrelado a sua história de vida. Afirma que busca com

essa iniciativa de articulação, a construção de uma escola humanista.

Com relação ao primeiro aspecto, da relação com sua história de vida, ao ser

questionado a respeito do que o motiva a buscar uma escola aberta para a comunidade,

diz que não há algo isolado que o motiva, mas que tem a ver com sua própria história.

Conta que com 14 anos atuava no movimento de jovens no interior. Dos 16 aos 18 fez

parte da Pastoral Operária em Uberlândia, onde apresentavam peças de teatro sobre os

direitos trabalhistas. Atuou dentro das Comunidades Eclesiais de Base da Teologia da

Libertação durante toda a década de 1980. Em 1984 foi representante do sindicato dos

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professores (APOESP) e militante do PT entre 1980 e 1986. Com 22 anos dava aula de

filosofia em um curso noturno de uma escola da periferia da zona Norte (Taipas e

Pirituba). Conta que escrevia poesia nos muros de Taipas e que, pela sua história,

quando veio para a escola já tinha um olhar para os movimentos sociais.

Esse relato mostra uma relação pessoal de proximidade com a comunidade, de interesse

e valorização das experiências comunitárias. A forma como Francisco se relaciona com

as pessoas tem a ver com a maneira como foi se constituindo ao longo da história e este

movimento de abertura parece hoje algo natural. Um exemplo disso é seu comentário a

respeito de um poema que estava escrevendo, inspirado em uma situação que tinha

vivido recentemente: conta que estava com o carro parado no farol embaixo de um

viaduto e estava um calor muito grande. Viu a pessoa no carro da frente fechar os

vidros, provavelmente por medo dos moradores de rua ali presentes. A pessoa fechou o

vidro e ficou passando calor dentro do carro por causa do medo. E ele complementa

dizendo que algum dia ainda vai ser assaltado porque anda com os vidros abertos,

conversa com todo mundo, pega nas pessoas ...

É interessante notar como a abertura para a comunidade parte de um desejo de

Francisco, de contato com as pessoas. Ao analisarmos a experiência acima relatada a

partir da ideia de formação de Edith Stein, podemos dizer que ele deu uma resposta

pessoal diante do confronto “Eu-mundo”. Diante do desejo de contato com as pessoas

(Eu), da violência presente na comunidade (mundo), e do modelo de resposta que ele

presenciou com o motorista do carro da frente (fechar os vidros, fechar-se ao outro por

medo), Francisco deu uma resposta pessoal a essa situação, que foi a de buscar o

contato com as pessoas, assumindo o risco em nome da aproximação. Essa postura,

coerente com sua história de vida, traz uma contribuição para o mundo (escola, pessoas

com quem convive), na medida em que seu posicionamento rompe com (ou vai além

de) o modelo estereotipado da sociedade na maneira de lidar com as pessoas e com a

violência (fechar os vidros, evitar contato, fechar as portas da escola, colocar mais

polícia etc). Edith Stein contribui para esta discussão ao afirmar que o modelo

formativo não é um modelo externo, pronto, estático sob o qual devemos pautar nossa

ações, mas são critérios internos que nos apontam o que é justo em cada situação

particular e que nos permitem avançar no processo de nos tornarmos “nós mesmos” e,

consequentemente, de dar nossa contribuição para o mundo que nos cerca.

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No caso de Francisco, vemos claramente a sua contribuição para a escola. A postura de

abertura em relação às pessoas e à comunidade é um compromisso que se mantém como

ação educativa no âmbito profissional. Em seu relato ele afirma que aquilo que o motiva

a uma abertura para a comunidade é a vontade de fazer uma escola humanista. Conta

que estão lendo Bauman no grupo de estudos com os professores e que percebe que

caminham contra a corrente, pois enquanto o mercado prega o individualismo, eles

querem falar de comunidade. Conta que essa iniciativa o motivou a pensar em um

doutorado, a fim de avaliar o projeto de articulação do ponto de vista da formação das

pessoas com um sentido mais humano, mais transformado.

Fala da importância das vivências com a comunidade, principalmente aquelas que

acontecem no horário de aula. Afirma que quer levar esta experiência para o currículo,

atrelar a relação com a comunidade ao projeto pedagógico e transformar as expressões

do contexto comunitário em conteúdos significativos. Espera que os professores

selecionem conteúdos que tenham uma relação com a realidade da comunidade,

conteúdos que ajudem o aluno a problematizar a realidade.72 Vemos neste ideal a

vontade de construir uma escola pautada na visão apresentada por Torres (2003), para

quem a escola é parte da comunidade, deve-se a ela e existe em função dela.

Conta que já coordenou esse tipo de iniciativa em outra escola, mas como coordenador

pedagógico, e aí não tinha tanta liberdade para negociar com instituições, fazer a coisa

acontecer. Naquela escola, a diretora o incentivava, mas não havia um apoio de fato, ou

seja, ela mesma não se envolvia e, com isso, o trabalho ficou impossibilitado. Com esta

fala há um reconhecimento do papel fundamental do diretor73 para a concretização do

projeto de articulação, pois sua posição de liderança na escola, enquanto organização

social, pode facilitar ou não a abertura à comunidade. Além disso, como vimos na visão

de pessoa de Edith Stein, toda ação educativa é acompanhada por uma visão de mundo

72 Durante a devolutiva desta análise, Francisco comenta que a maioria dos professores não é da comunidade do entorno e acha que a conhecem só pelo fato de passarem na rua. Entretanto, afirma que existe, por exemplo, uma espécie de cortiço ali perto e que ninguém conhece; que na comunidade é muito forte a presença do candomblé – algo que ele quer conhecer mais de perto para compreender – e que, se essa realidade fosse conhecida, poderia ser trazida para a sala de aula. 73 O papel dos gestores no projeto será discutido em uma constelação específica mais adiante.

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e de ser humano. Ao citar o desejo de criar uma escola humanista e esta postura em sua

história de vida, o diretor explicita a visão de mundo que o motiva a agir de forma a

criar projetos com a comunidade e a buscar uma fundamentação teórica para esta prática

no grupo de estudos.

- CONSTELAÇÃO 2: SENTIDO DA LITERATURA PARA O DIRETOR

Esta constelação relata a proximidade do diretor da EMEF Igarapé com a literatura e,

mais especificamente, com a poesia. Embora ele não tenha explicitado a literatura como

uma motivação que o fez se aproximar do coletivo de Knup Acrata, acreditamos que o

sentido da poesia para ele seja uma consideração importante para a compreensão da

articulação.

A relação com a poesia vem desde sua juventude e continua até hoje. Escreve sobre

vários temas, participa de um grupo que promove saraus literários e declara que utiliza a

poesia também como recurso pedagógico. Ao relatar sua história do ponto de vista das

relações comunitárias (Constelação 1 – sentido da articulação), comenta que aos 22

anos, quando dava aula de filosofia em um curso noturno na zona Norte, escrevia poesia

nos muros de Taipas. Esta ação o aproxima do sentido do coletivo de literatura, para

quem a poesia dá voz e vez aos moradores da periferia. Veem a poesia como forma de

protesto, de denúncia das questões sociais vividas e como forma de reflexão. Ao

escrever nos muros de Taipas, Francisco também dá à poesia um caráter social, torna a

sua mensagem pública fazendo chegar à comunidade a sua reflexão pessoal.

Outra ação que o aproxima do coletivo é a pertença a um grupo que promove saraus.

Conta que realiza saraus literários em sua casa e que Knup Acrata já havia participado

de um. Nesse grupo participam dois outros diretores de escola com quem ele escreveu

um livro de poesias, publicado em novembro de 2010, com recursos próprios.

Além dos relatos acima, uma situação que nos chamou a atenção para a proximidade de

Francisco com a poesia foi o relato da situação vivida no trânsito74 e como essa

experiência foi transformada em criação literária, ou seja, como a poesia está presente

74 Referido na primeira constelação.

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nas situações cotidianas, dando voz às reflexões surgidas a partir de suas vivências do

dia-a-dia.

Podemos dizer, portanto, que a poesia, assim como a relação com a comunidade, é algo

natural para o diretor da EMEF Igarapé e já fazia parte de sua história pessoal antes do

projeto de articulação com o grupo de literatura marginal. Esse contexto nos permite

pensar que a literatura/poesia foi um ponto forte de sentido comum entre Francisco e o

coletivo. Retomando a visão de Edith Stein (1999a) de vivência comunitária,

compreendida como uma experiência vivida por várias pessoas a partir de um conteúdo

comum, podemos dizer que Francisco, juntamente com Knup Acrata e o coletivo de

literatura, partilhavam uma vivência comum antes mesmo de se encontrarem. Uma

vivência comunitária cujo núcleo de sentido comum era a literatura.

Dentro dessa relação pessoal com a poesia, o diretor também aponta o sentido

pedagógico que ela tem para ele. Em seu relato, ele lembra de uma poesia que fez a

respeito da adolescência para conversar com o professor de português que estava

reclamando das alunas assanhadas. Conta que gosta muito de usar a poesia nessas

situações, e também com os alunos do Fundamental II. Este sentido da literatura para o

diretor remete-nos à visão de Stein (1999a) a respeito do papel que este tipo de

produção cultural tem na formação. Como vimos, a autora utilizava a obra literária para

tratar da questão do feminino em suas aulas, e afirma que a interpretação e a descrição

da alma são atribuições eminentemente literárias, tendo, portanto, um caráter simbólico

especial. Ao utilizar a poesia como ferramenta para o diálogo a respeito das alunas

assanhadas e com os adolescentes, Francisco parece compartilhar da visão da autora,

recorrendo à descrição poética do humano, de forma a dar voz a expressões da alma que

talvez um discurso meramente racional não desse conta.

- CONSTELAÇÃO 3: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO SEGUNDO FRANCISCO

Esta constelação aborda as dificuldades inerentes ao processo de articulação da escola

com a comunidade do entorno na visão do diretor da EMEF Igarapé. Os desafios

apontados referem-se tanto à escola quanto à comunidade. Com relação à primeira,

Francisco afirma que há uma cultura instituída da escola e que temos que nos

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desapegar dessa formatação. Conta que no cotidiano eles já vivem coisas diferenciadas,

mas acha que há uma resistência em ousar. Afirma que faz parte da condição humana a

busca por condições de segurança, e que essa necessidade, muitas vezes, bloqueia

movimentos transformadores. Francisco entende que tanto a Direção como os

educadores podem ter atitudes ousadas, mas tendem, posteriormente, a voltar para o seu

“porto seguro”, dificultando a mudança.

Como vimos na primeira constelação – sentido da articulação –, Francisco possui a

intenção de levar a experiência da articulação para o currículo da escola, atrelando-a ao

projeto pedagógico. Entretanto, acha que terão que enfrentar alguns desafios como o

tempo e o desapego aos conteúdos acadêmicos. Além disso, afirma que a concepção de

gestão das escolas é muito medrosa, que começam um trabalho com a comunidade, mas

na primeira manifestação de animosidade mandam a comunidade embora.

Este medo dos gestores tem a ver com os próprios desafios trazidos pela comunidade.

Afirma que, quando a escola se abre para a comunidade, algumas expressões que não

são compreendidas como expressões aceitas acontecem, tipo bebida, etc. Acha que se

algum descuido acontece, a escola é criticada pela comunidade (pais, moradores).

Francisco é enfático em relação a isso: Essas coisas vão acontecer, ou seja, ele

reconhece estes desafios como inerentes à relação escola-comunidade. Dá o exemplo

que vivem com a Escola de Samba do bairro. Os músicos da escola dão uma oficina de

percussão aos alunos e a comunidade reclama do barulho.

Na sua visão, não podemos ser ingênuos em relação à comunidade. A comunidade ferve,

ela não é um convento de freiras. Acha importante dizer isso porque é o oculto de uma

proposta como essa, de abertura para a comunidade. Afirma que a comunidade tem

conflitos e que as pessoas querem se expressar onde há visibilidade. Às vezes são

acertos de contas e afirma que podem até acontecer coisas gravíssimas.

Nesse sentido, o diretor acredita que há muitos elementos que demandam para fazer

uma escola aberta com segurança, mas que é possível quando pensamos o que é um

projeto humanista e que essas manifestações também fazem parte do humano. Esta

visão é importante porque aponta para uma dimensão da comunidade que nem sempre é

percebida. Tendemos a achar que a vida comunitária é sempre construtiva, mas o fato

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de as pessoas estarem abertas e de suas posições interferirem mutuamente umas nas

outras não significa que essa interferência seja sempre positiva. Edith Stein (1999b)

exemplifica esta situação ao afirmar que existe uma relação de comunidade até mesmo

na guerra. Para a autora, o que diferencia a comunidade da sociedade é que na relação

de sociedade não há esta distinção propriamente humana das relações, ou seja, as

pessoas se relacionam de forma mais genérica, por meio de regras e não são tão afetadas

pelos posicionamentos pessoais umas das outras. Na comunidade, eu sou olhado como

pessoa e olho o outro como pessoa. O outro me afeta e é afetado por mim, e isso não

significa que as relações sejam sempre tranquilas. Podemos afetar e ser afetados tanto

de forma positiva como negativa.

- CONSTELAÇÃO 4: PAPEL DOS GESTORES NA ARTICULAÇÃO Esta constelação aborda a visão do diretor em relação ao papel dos gestores no projeto

de articulação. Seus relatos apontam para a importância de uma equipe articulada,

atenta, aberta, disposta a negociar e com um compromisso ético de buscar formação.

Durante a devolutiva desta análise, Francisco complementou esta ideia ao afirmar que a

equipe escolar deve ter uma concepção de educação mais ampla; não no sentido de ser

melhor que os outros, mas de estudar para ter condições de problematizar, de ter

instrumentos nas mãos para estabelecer diálogos. Para Francisco, a busca pela formação

por parte da equipe escolar é uma obrigação ética. Esta ideia concorda com a visão de

Edith Stein ao afirmar que “só forma quem é formado”, e que a formação é antes

autoformação, cabendo a cada pessoa dar continuidade a um processo que se inicia na

infância mas que dura toda a vida.

Francisco também afirma – como já mencionamos – que a concepção de gestão das

escolas é muito medrosa e que, na primeira manifestação de animosidade, mandam a

comunidade embora. Acha que trabalhar com a incerteza faz parte e que a gestão

precisa estar atenta à formação para que os projetos estejam em sintonia com os

princípios da escola.

Acha que nesta pesquisa faltou um olhar para a gestão já que, na sua visão, esse tipo de

projeto só acontece porque tem uma coordenadora pedagógica fazendo a coisa

acontecer e o pessoal da administração também, ou seja, só acontece com a vontade dos

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gestores. Fala da importância do papel articulador da equipe como um todo, pois viveu

uma experiência semelhante em outra escola, como coordenador pedagógico, na qual

não conseguiram fazer a coisa acontecer por falta de coragem e envolvimento da

diretora.

Como vimos na primeira constelação – que trata dos sentidos da articulação para o

diretor –, há um reconhecimento, por parte deste, da sua posição de poder e do papel

fundamental que ele tem para a concretização do projeto. Sua experiência anterior como

coordenador lhe mostrou o quanto o envolvimento do diretor é essencial.

Retomando a ideia de comunidade de Edith Stein (1999b) na qual as tomadas de

posição de um membro afetam o todo, podemos pensar que, diante dos desafios

apontados por Francisco, como por exemplo, uma manifestação de violência da

comunidade, a maneira como estes acontecimentos o afetam – a ele especificamente,

por ser uma figura de poder na configuração da sociedade-escola –, a forma como ele

reponde a este acontecimento é fundamental para os rumos do projeto. Diante de uma

manifestação de violência da comunidade, o diretor poderia decidir fechar as portas da

escola e aumentar a segurança. Neste caso, ele estaria se organizando em termos de

regras, ficando, segundo Edith Stein (1999b), no nível de relações de sociedade. Por

outro lado, se ele se deixa tocar pessoalmente pela provocação recebida com esta

situação e responde de acordo com esta provocação, estabelece uma relação do tipo

comunitária. Segundo relato, a sua resposta é clara quanto a estas questões ao mostrar

que quer fazer diferente do exemplo de outras escolas que, por medo, acabam fechando

as portas para a comunidade. Francisco compreende esses desafios como parte do ideal

de humanização. Isto não quer dizer que ele aceite as manifestações de violência. Pelo

contrário, ele se posiciona deixando claro que este tipo de presença na escola não é

bem-vinda e procura tomar atitudes preventivas ou corretivas. O desafio, neste caso,

parece ser conseguir manter uma postura dialógica que permita a continuidade das

relações com a comunidade.

Um exemplo desse tipo de postura foi uma situação em que ele pediu a Knup Acrata

para não deixar o muro que estavam pintando na oficina de grafite inacabado, porque

seria um atrativo para pichadores. Outro exemplo foi a mudança da sala do Espaço

Cultural para um local mais próximo da portaria da escola. Vemos, com isso, que a

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tensão faz parte das relações comunitárias e que a questão fundamental, nesse caso, é

qual o posicionamento de cada pessoa diante dos conflitos e como isso vai provocar

uma reorganização das relações. Segundo Francisco, essa questão relaciona-se ao

referencial que escolhemos para lidar com os conflitos; e lembra que, na EMEF Igarapé,

buscam trabalhar a Cultura de Paz.75 A influência das tomadas de posição é ainda mais

delicada no caso dos gestores, que têm um papel de liderança na escola enquanto

organização social.

- CONSTELAÇÃO 5: RESPOSTA DAS FAMÍLIAS EM RELAÇÃO À ARTICULAÇÃO

Esta constelação aborda a visão do diretor da EMEF Igarapé a respeito da recepção das

famílias em relação ao projeto de articulação. Conta que recebem o carinho das

famílias. Acredita que elas reconhecem o trabalhão da EMEF porque querem que os

filhos estejam nessa escola.

Ao mesmo tempo, sente-se desafiado por elas e pelos professores em relação à

articulação. Relata que no final do primeiro ano de funcionamento da escola fizeram

uma reunião com pais e professores, os quais disseram que queriam ver se este tipo de

escola aberta não era fogo de palha, ou seja, se o projeto não era fruto apenas de um

entusiasmo pelo fato da escola estar no começo. Durante a devolutiva, Francisco

lembra que no primeiro ano de funcionamento da escola recebeu várias mães que

vinham questionar o trabalho, a presença dos jovens do coletivo ou fazer reclamações

em relação aos filhos. Entretanto, afirma que hoje as famílias são parceiras e muitas

mães que o questionaram no início são hoje as mais próximas. Esta situação nos mostra

novamente a importância do posicionamento pessoal de Francisco – e da esquipe

gestora como um todo – em relação às manifestações das famílias. Segundo ele, se

tivesse tomado aquelas manifestações como uma provocação, teria rompido a relação.

Afirma que com paciência e tempo eles puderam mostrar o trabalho da EMEF e hoje

elas são parceiras.

Esse tipo de questionamento da famílias nos permite refletir também a respeito daquilo

que move as pessoas em relação ao projeto de articulação. Se a escola aberta é fogo de

75 Esta observação foi acrescentada por Francisco durante a devolutiva da análise.

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palha, poderíamos supor, com a ajuda de Stein (1999b), que o projeto de articulação é

movido por contágio psíquico e passageiro entre as pessoas; ou ainda por um único líder

que carregue todo o projeto, carente da adesão pessoal dos outros membros. Para Stein,

os membros, cuja ligação à vida comunitária possui uma motivação espiritual, são os

que sustentam e permitem a continuidade da mesma, ao passo que, se as ligações

acontecem apenas pelo contágio psíquico, elas tendem a terminar por cansaço, ou por

desânimo por exemplo. A autora afirma ainda que uma comunidade sustentada por um

único líder acaba por sucumbir ao primeiro sinal de animosidade.

De fato, esta foi uma preocupação apresentada por Francisco em nosso primeiro

contato, ou seja, o medo de que a vontade de articulação da escola com a comunidade

do entorno fosse algo pessoal não compartilhado pelos outros membros da equipe

gestora ou pelos professores. Entretanto, a análise até aqui realizada aponta-nos para um

caminho diferente. Há sim uma liderança e uma sustentação fortemente promovida pelo

diretor, mas também (como veremos) por Knup Acrata, por Alice e pela auxiliar

administrativa da Direção. Resta-nos saber até que ponto professores e familiares foram

envolvidos e aderiram ou não ao projeto, de forma que este não seja reflexo

simplesmente deste pequeno grupo citado, mas expresse um projeto comum,

comunitário da escola e dos coletivos do bairro.

- CONSTELAÇÃO 6: CRÍTICAS E EXPECTATIVAS EM RELAÇÃO À PESQUISA

Esta constelação descreve a visão de Francisco a respeito da presente pesquisa. Aponta

para as críticas e expectativas tanto em relação à pesquisa quanto em relação ao próprio

projeto de articulação.

No que diz respeito à pesquisa, um primeiro ponto levantado foi o fato de a

pesquisadora não ter apontado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

os benefícios desta para os alunos. Ao ler o documento para ser assinado autorizando a

realização da entrevista coletiva com os alunos, o diretor afirma que o fato da entrevista

ser uma situação de diálogo e reflexão é um grande benefício para eles. Esta fala foi

importante porque mostrou-nos os benefícios das situações de interação que a pesquisa

proporciona e que, como afirma Szymanski (2004), nunca é unidirecional; ou seja, em

uma situação de entrevista, a possibilidade da narrativa e da interlocução constitui-se

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como um processo de construção conjunta de conhecimento pelo qual não apenas o

pesquisador se beneficia, mas todos os participantes. Além disso, essa situação mostra a

preocupação do diretor com a finalidade última da escola, de ser um bem para os

alunos.

Uma segunda crítica apresentada por Francisco foi a visão de que faltou na pesquisa um

olhar para a gestão. Aponta para o temor de que a pesquisa fosse tendenciosa e de certa

forma ingênua pelo fato de a pesquisadora não ter olhado tanto para a gestão. Afirma a

importância de esclarecer que a comunidade tem conflitos, que as pessoas querem se

expressar onde há visibilidade e que um acerto de contas, por exemplo, pode acontecer

no meio de uma festa. Afirma que podem até acontecer coisas gravíssimas e que essas

coisas são o oculto de uma proposta de abertura para a comunidade. Tem medo da

pesquisa ficar só com o que é aparente, e com isso, ser tendenciosa.

Durante a devolutiva, Francisco complementa dizendo que aquilo que vemos acontecer

nas oficinas é o aparente, e que este aparente é o resultado de um longo processo de

encontros e negociação de conflitos. Afirma que o esforço de construção, o tempo de

dedicação, as reuniões e acertos para fazer as coisas acontecerem não aparecem e,

muitas vezes, é justamente a demanda de um processo como este que faz com que as

pessoas desistam de construir algo com a comunidade. Acha que é muito difícil essa

construção porque demanda tempo, e a rotina escolar massacra. Além disso, aponta

para a importância dessa pesquisa ao mostrar resultados positivos em relação ao projeto

de articulação que são sutis. Resultados não tão evidentes a olho nu. Acha que a escola

quer ver resultados palpáveis e muitas vezes não reconhece o valor de uma reunião para

aprofundar o olhar, formar parcerias por exemplo. Cita Miguel Arroyo ao afirmar que

não se faz uma escola nova em uma estrutura velha.

A preocupação de Francisco em querer tratar do oculto do processo de articulação

refere-se também ao reconhecimento das dificuldades inerentes à comunidade. A

consciência desta dificuldade mostra que o seu desejo de abertura não é movido por um

olhar ingênuo e superficial que vê na comunidade apenas o lado positivo – e é

justamente esta imagem que ele teme que a pesquisadora tenha e para a qual visa alertá-

la – mas, como foi dito na constelação anterior, é movido pelo desejo de humanizar a

escola, assumindo os riscos que isto implica.

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Aponta também duas expectativas em relação à pesquisa. A primeira corresponde a uma

necessidade de confirmar ou não os benefícios da experiência de articulação auxiliando

a escola a encontrar a direção para avançar. Afirma que está curioso com o resultado

deste trabalho e que espera que ele aponte se esta é ou não uma experiência positiva, se

eles estão no rumo certo e se devem avançar.

A segunda expectativa diz respeito aos benefícios do trabalho para outras escolas.

Acredita que a pesquisa possa contribuir para que outras experiências como esta

aconteçam.

6.2 Alice, coordenadora pedagógica da EMEF Igarapé

- CONSTELAÇÃO 1: SENTIDO DA ARTICULAÇÃO PARA ALICE E

PRINCÍPIOS COMUNS PERCEBIDOS POR ELA ENTRE EMEF IGARAPÉ

E COLETIVO

Esta constelação aborda o sentido da articulação para a coordenadora pedagógica da

EMEF Igarapé. Relata suas expectativas em relação aos benefícios do projeto para os

alunos. Em seus relatos percebemos a crença de que as oficinas poderiam trazer uma

contribuição àquilo que ela compreende ser seu maior desafio: fazer com que os alunos

se interessem por algo.

Conta que fizeram um sarau na escola e que ficou impressionada com a paixão dos

meninos [do coletivo] pela literatura. Percebeu isto pela forma como declamaram os

poemas, que sabiam de cor e eram poemas difíceis. Afirma que é isto o que falta na

escola, onde normalmente as crianças precisam aprender coisas que elas não entendem

para que serve, que não são significativas. Percebe que falta na escola uma ajuda para

que os alunos façam o que gostam, descubram aquilo pelo qual eles têm uma paixão. A

visão de Alice a respeito da escola concorda com a ideia de Stein (1999a) ao afirmar

que esta não tem a função de transmitir um extrato compendioso de todas as áreas do

saber e, sim, educar as pessoas para que sejam capazes de se apropriar de qualquer

matéria que venha a ser importante para elas.

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Espera que Knup Acrata passe o seu amor pela literatura para os alunos, já que é uma

coisa que ele ama. Vê como ele pega os livros, lê um pouco de cada um, mostra para as

crianças. Diz que isso é muito bonito. Acha que KA tem talento e que é bonito ver como

ele não abre mão de seus princípios. Se dedica muito à escola. Se impressiona como a

ligação deles [jovens do coletivo de literatura] é forte porque eles não têm um lugar,

mas estão muito unidos. Observa que eles se reúnem, cada um leva os seus livros e

emprestam uns para os outros muito espontaneamente e a coisa funciona.

Acha que este [oficina de literatura marginal] é um trabalho importante e ela quer estar

mais perto. Afirma que a visão deles casou com o objetivo da escola. Visão da

consciência do sujeito na sua comunidade, visão que promove uma reflexão da pessoa

como ser histórico dentro de uma sociedade, de um sistema econômico. Acredita que

esta reflexão seja importante porque responde àquilo que ela compreende como objetivo

da escola. Relata que vê a escola não como um lugar para passar conteúdos, mas um

espaço que abre lugar para vivências, e que a oficina de literatura marginal é isso.

Segundo Alice, o coletivo traz essa reflexão para os alunos, agregada à literatura. Uma

literatura com consciência política: o que sou na comunidade?

Além do olhar para a singularidade, Alice vê no trabalho da oficinas de literatura

marginal a possibilidade de os alunos tomarem consciência de que são parte de uma

comunidade e de que têm uma contribuição pessoal a dar a esta sociedade. Esta visão é

também apresentada por Edith Stein (1999a) como um dos objetivos e consequências da

formação. A autora afirma, por exemplo, a importância de disciplinas como História,

para a compreensão da pessoa a respeito de seu papel na vida da sociedade.

Compreensão esta essencial uma vez que ela aponta como uma das funções principais

da educação, respeitar e deixar aflorar as coisas novas e próprias da nova geração.

- CONSTELAÇÃO 2: BENEFÍCIOS DA ARTICULAÇÃO PARA KNUP

ACRATA E COLETIVOS SEGUNDO A COORDENADORA PEDAGÓGICA

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Nesta constelação descrevemos a percepção da coordenadora pedagógica a respeito dos

benefícios que o projeto de articulação trouxe para o educador da oficina de literatura

marginal e para os coletivos. Em relação ao primeiro, Alice comenta que KA se dedica

muito à escola, que, além da oficina de literatura marginal, está cuidando da biblioteca

e já queria começar o empréstimo dos livros, mas ela pediu que antes acabassem de

catalogar. Afirma que isso – o tempo, a organização e certas exigências inerentes ao

processo e à estrutura escolar – é um aprendizado para ele. Afirma que no grupo dele

tudo é muito informal (...) Se reúnem, cada um leva os seus livros e emprestam uns para

os outros muito espontaneamente e a coisa funciona.

Nesse sentido, o benefício que Alice vê em relação ao contato de Knup Acrata com a

EMEF Igarapé não tem a ver com uma crítica ao seu modo de ser e de seu coletivo. Pelo

contrário, ela reconhece um valor nesse modo de ser, admira a possibilidade de que as

coisas funcionem sem toda a estrutura de que a escola necessita, mas acredita que a

convivência com a escola é um benefício enquanto aprendizado de um novo modo de

fazer, que poderia lhe ajudar inclusive na relação profissional com outras instituições.

Com relação ao benefício para os coletivos, ela reconhece a necessidade de terem um

espaço para se reunir.

- CONSTELAÇÃO 3: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO PARA ALICE

Esta constelação relata as dificuldades surgidas ao longo do processo de articulação.

Descreve iniciativas e expectativas da coordenadora pedagógica que não ocorreram,

mostrando com isso que articular é um processo complexo que apresenta limites à sua

realização. Nos relatos de Alice se desvelaram três situações em que ela almejava um

certo objetivo com o projeto mas que, por circunstâncias externas que fugiam ao seu

controle, não ocorreram.

A primeira situação foi a intenção inicial de unir a oficina dada por Knup Acrata a uma

outra oficina de literatura oferecida pelo professor de português da escola. Esta intenção

estava presente desde o início e, segundo relato de KA,76 teve influência no nome

76 Ver referência no Capítulo 5, item 5.1 Andanças.

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sugerido pela escola para a sua oficina: oficina de literatura marginal. Oficina de

literatura marginal era o nome da oficina dada pelo professor de português, e este nome

foi pensado já com a intenção de que ele e o professor de português trabalhassem

juntos. Intenção, porém, que não se concretizou. Em seu relato a CP afirma que no

início queria juntar as duas oficinas, o que acabou não dando certo, porque cada um

tem um jeito próprio de trabalhar.

Acha que o professor de português é muito acadêmico para o tipo de trabalho

desenvolvido na oficina de literatura marginal de KA. Mesmo assim, Alice propôs a

Knup Acrata que tudo o que fosse produzido pelos alunos seria corrigido pelo

professor de português antes de ser divulgado. Ao que parece, entretanto, este

combinado também não ocorreu. Em seu relato durante a devolutiva desta análise, Alice

explicou que chegou a mostrar um material para o professor de português e que ele

apenas comentou a presença de palavrões nos textos, ao que ela respondeu afirmando

que fazia parte do modo de expressão deste tipo de literatura. Conta que, depois deste

ocorrido, resolveu não submeter mais os textos ao professor.

A segunda situação relatada foi a não-realização da expectativa de Alice de que a

oficina de literatura despertasse interesse e envolvimento nos alunos. Segundo ela, o

fato de a oficina ter sido um trabalho escolhido pelos alunos e de Knup Acrata ser uma

pessoa jovem como eles seriam fatores que justificariam o interesse e envolvimento

esperados. Entretanto, ela afirma que mesmo assim parece que eles não se interessam,

não produzem.

Por fim, uma terceira situação que apareceu como desafio da articulação foi o desejo de

Alice e, segundo ela, também do diretor, de oferecer uma verba para Knup Acrata pelo

trabalho realizado na escola. Seu relato trouxe esta preocupação assim como o empenho

em conseguirem esta verba através de financiamento de instituições de fora. Conta que

um projeto ligado a uma universidade pública tinha sido aprovado, e com a verba desse

projeto poderiam ajudar KA, mas o projeto não tinha se concretizado até aquele

momento (6 meses depois da aprovação).

- CONSTELAÇÃO 4: ARTICULAÇÃO EXPANDIDA

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Esta constelação relata novas ações e projetos surgidos como repercussão do projeto de

articulação. Mostra a capilaridade da articulação ao retratar como, a partir das oficinas

de literatura marginal, novas articulações foram iniciadas.

A primeira ação que nasceu junto com a oficina de literatura marginal foi a oficina de

grafite. As duas oficinas foram oferecidas em conjunto e a ideia era que a oficina de

literatura permitisse a reflexão, e a reflexão incentivasse os desenhos. Segundo Alice,

grafite é arte que expressa ideias, sentimentos, não é só desenho, e é importante passar

isso para os alunos. A oficina de grafite foi ministrada por uma equipe de jovens da

região a convite de Knup Acrata. Esses jovens se juntaram especificamente para o

trabalho na EMEF Igarapé e isso demonstra que o projeto contou com três diferentes

articulações: a dos jovens entre si, a dos jovens com a EMEF Igarapé e a dos jovens

com a oficina de literatura marginal.

A segunda ação foram os saraus dentro da escola. No início eles ocorriam no horário

letivo e participavam alunos, professores e equipe gestora. Com o tempo, novos saraus

foram organizados em diferentes horários e incluíram a participação de pais e da

comunidade como um todo.

Outro projeto, que articulou escola e coletivo, foi o da biblioteca comunitária. O projeto

da biblioteca foi iniciado pela EMEF Igarapé, em parceria com uma instituição do Rio

de Janeiro, e tinha como objetivo montar uma biblioteca para a escola. Com o início do

projeto de articulação, o coletivo ocupou uma sala da EMEF, dando origem ao Centro

Cultural e unindo este centro à biblioteca. Com isso o desejo do coletivo de promover

cultura para a comunidade foi aliado ao projeto da biblioteca, que se transformou de

uma biblioteca exclusiva da EMEF Igarapé para uma biblioteca aberta à comunidade,

sob os cuidados do coletivo. Knup Acrata ficou responsável pela biblioteca, que, além

dos títulos cedidos pela instituição referida, contou com um acervo de literatura

marginal proveniente dos coletivos.

O quarto projeto desenhado pela coordenadora pedagógica a partir das oficinas foi a

ideia de oferecer esse tipo de trabalho para os alunos do Fundamental I. Segundo ela, é

importante trabalhar com as crianças desde cedo (...) Acha que as crianças pequenas

gostam de versos e que depois ocorre uma quebra, que com o tempo perdem este

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prazer. Após um semestre de oficina, KA criou um novo coletivo77 voltado para

educação libertária, do qual fazia parte uma integrante de outro coletivo relacionado à

música, que passou a oferecer uma Oficina da Palavra aos alunos do Fundamental I. O

objetivo desta oficina era trabalhar, através de contação de histórias, a produção literária

com os alunos e a questão de valores, enfatizando as questões étnicas e culturais

presentes nas histórias e proporcionando uma reflexão a partir delas. A Oficina da

Palavra infelizmente não teve continuidade.

Uma quinta ação decorrente da articulação foi a preparação de uma apostila para o

estudo a respeito de Cultura de Paz. Este tema, proposto pela EMEF para ser trabalhado

tanto na oficina de literatura marginal quanto na oficina de grafite, articula-se com um

movimento ligado à educação e cultura de paz que a EMEF Igarapé participa e que

reúne diversas escolas e instituições do bairro. Segundo Alice, KA estudou e preparou

uma apostila que passou para o pessoal do grafite. Conta que, junto com o diretor,

escreveram o manifesto que iriam ler no final da passeata pela paz, um evento

organizado em conjunto pelas instituições participantes do referido movimento.

Para uma melhor visualização da articulação expandida, apresentamos a ilustração

abaixo:

77 Esta ação é discutida nas constelações de Knup Acrata.

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CONSTELAÇÃO 5: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO INTERNA DA ESCOLA E

INTERFACE COM SECRETARIA DE ENSINO

Esta constelação trata dos desafios relatados por Alice no que diz respeito às relações

dentro da escola (entre equipe gestora, alunos e professores) a qual chamamos de

articulação interna. Descreve também a sua relação com a Secretaria de Ensino,

retratando a articulação da escola com o Governo local.

Em uma conversa que tivemos no início das oficinas de literatura, Alice parecia

bastante cansada e relatou que os professores estavam esgotados e ela também.

Reconheceu que ela tem um ritmo forte e que acaba impondo este ritmo aos professores,

principalmente quando há um evento. Afirma que não consegue fazer algo pequeno, vão

tendo ideias e quando veem, toda a escola acaba trabalhando muito para fazer as coisas

acontecerem.

Alice acha que precisam de um apoio. Ao ser questionada a respeito da visão dos

professores em relação ao projeto de articulação, afirma que, diante da sobrecarga de

trabalho, no início, para eles as oficinas foram um momento de descanso, embora ela

também ocupasse esse tempo como um espaço para reflexão, já que as oficinas eram

ministradas por pessoas de fora (com exceção do professor de português e da professora

de artes) e neste período eles ficavam “livres”.

Literatura marginal

Oficina da Palavra

Grafite

Saraus

Biblioteca comunitária

Apostila sobre Cultura de Paz

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Essa situação ocorreu no primeiro semestre das oficinas. No segundo semestre Alice

modificou essa organização e todos os professores passaram a dar oficinas. É

interessante notar, entretanto, que a participação dos professores nas oficinas não gerou

necessariamente maior envolvimento dos mesmos no projeto de articulação. Como

veremos no relato da professora de artes,78 cada professor cuidava isoladamente de sua

oficina e não havia tempo para uma troca maior com as outras oficinas. Apesar disso, a

visão de Alice79 é a de que, embora os professores não tenham se envolvido diretamente

com o projeto da oficina de literatura marginal, com o tempo passaram a ter uma

abertura maior em relação à comunidade. Exemplifica este fato ao contar que, em uma

reunião de planejamento em que não pode estar presente, eles propuseram um trabalho

de estudo do meio com alunos no entorno da escola, integrando várias disciplinas:

geografia, português, inglês etc, o que demonstra que houve uma sensibilização para a

importância da abertura da escola para a comunidade.

Outro desafio apresentado foi a dificuldade de encontrar caminhos para lidar com o

desinteresse geral dos alunos. Alice relatou diversas iniciativas nas quais procurou

promover atividades que considera interessantes para os jovens e que, no entanto, não

receberam uma resposta positiva. Contou que haviam realizado a feira cultural no final

de semana e que tinha sido muito bonita, mas que vieram poucas pessoas. Afirma que,

como sempre, eles promovem as coisas, mas os alunos não vêm.

Relata ainda que os alunos cobraram dela uma palestra sobre sexualidade. Ela convidou

uma pessoa que viria de Curitiba só para isso, mas depois de agendar a data resolveu

cancelar, após consultar os alunos e perceber que não haveria quorum, pois de 150

alunos, apenas 13 se manifestaram. Diante desta situação, Alice afirma que acha

engraçada a postura da universidade que afirma que o conteúdo tem que ser

significativo, pois, em seu modo de ver, ela oferece aquilo que os jovens pedem – ou o

que acredita ser significativo para eles como, por exemplo, uma palestra sobre

sexualidade – mas na prática o que acontece é desinteresse geral. Acha que a

universidade tem que conhecer essa realidade, ou seja, acredita que a universidade está

distante da prática escolar e que aquilo que afirmam já não funciona mais.

78 Retratado nas constelações referentes a ela. 79 Relatada durante a devolutiva desta análise.

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Por fim, um terceiro desafio apresentado pela coordenadora pedagógica diz respeito à

relação com a Secretaria de Ensino. Neste caso ela apresenta duas situações. A primeira

refere-se à cobrança que sente ao ser pressionada por tarefas burocráticas e pelo pouco

tempo que tem para realizá-las. Afirma que a Secretaria de Ensino quer tudo na hora.

Reclama que exigem tudo dela e que ela não pode trabalhar das 7:00h às 19:00h.

Diante dessa situação de conflito, Alice responde colocando limite de horário às

questões do trabalho. Afirma que não abre mais e-mails fora do horário do trabalho

por recomendação médica.

A forma como Alice foi afetada pelas solicitações da Secretaria de Ensino e do

ambiente que a cerca nos remete à ideia de formação e relações comunitárias de Edith

Stein. O contato com esta instituição pereceu diminuir a sua força vital e ela respondeu

a este efeito procurando um médico. Parece que o cansaço físico e psicológico levaram

Alice a buscar auxílio para encontrar a melhor forma de responder à situação. Sua

resposta pessoal foi a de procurar um médico. Buscou em uma autoridade a força para

se posicionar. Por recomendação médica, decidiu colocar um limite físico não abrindo

mais os e-mails fora do horário de trabalho. O médico receita, dita o que fazer e isso a

ajudou a escolher, a se posicionar. Este parece ter sido o caminho possível para Alice,

diante da pressão e do cansaço que sentia. Se, por uma lado, podemos supor que o fato

do médico impor uma receita a eximiu de escolher, por outro, podemos também fazer a

leitura de que a decisão de buscar um médico partiu de um contato consigo mesma e da

percepção de como estava frágil naquele momento para se posicionar. Nesse caso, sua

resposta foi uma resposta autêntica, pessoal, baseada numa referência interna e não

apenas no que o outro lhe ditou. Isso demonstra, novamente, como o processo de

formação é dinâmico e acontece à medida que as situações aparecem e que a pessoa é

convidada a dar uma reposta pessoal. Não há resposta ideal, mas respostas possíveis, de

acordo com a vivência e as possibilidades de cada pessoa e de cada momento.

A segunda situação apresentada em relação à Secretaria de Ensino diz respeito à

avaliação dos alunos. Em seu modo de ver, a avaliação não revela a situação real do

aluno porque eles têm que seguir critérios estipulados pela Secretaria da Educação e

não aparece o processo de aprendizagem de cada aluno. Afirma que muitos alunos

passam de um bimestre a outro sem saber ler e escrever e por isso recebem não

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satisfatório, mas que na prática ela vê que aquele aluno melhorou muito, progrediu com

ele mesmo e isso não é levado em conta. Questiona também o sistema de reprovação ao

afirmar que não adianta reprovar o aluno apenas no último ano, porque em um ano ele

não terá tempo de aprender tudo o que deveria ter aprendido nos anos anteriores.

Estas observações de Alice podem ser compreendidas à luz da relação entre

comunidade e sociedade apresentada por Edith Stein (ALES BELLO, 2000), e também

da ideia de instituições intermediárias apresentadas por Berger e Luckmann (2004). No

primeiro caso, podemos compreender a escola como parte de uma sociedade mais ampla

que é a Secretaria de Ensino e, em última instância, o Estado. Stein afirma que a escola

em si mesma é uma sociedade e que ela pode vir a se tornar comunidade a partir das

relações que se estabelecem. Ao afirmar que conhece os alunos e que os acompanha

individualmente, Alice demonstra a presença de uma vida comunitária na escola. Por

outro lado, reclama das regras impostas pela Secretaria de Ensino, mostrando que elas

se impõem como um modelo genérico que abafa a vida comunitária em vez de estar a

serviço dela.

Nessa mesma linha de raciocínio, ao fazermos uma leitura da situação relatada a partir

de Berger e Luckmann (2004), vemos como, na visão de Alice, o Estado impõe sentidos

que não correspondem àqueles construídos no nível da comunicação cotidiana, forçando

muitas vezes a escola pública a agir como uma instituição alienadora em vez de

promotora de sentido para as pessoas que dela participam. Esta parece ser a angústia

essencial de Alice em relação ao processo de avaliação.

6.3 Knup Acrata, educador da oficina de literatura marginal

Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida Eu viver bem melhor Doido pra ver o meu sonho teimoso, um dia se realizar Milton Nascimento e Fernando Brant

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- CONSTELAÇÃO 1: SENTIDOS DA ARTICULAÇÃO PARA KNUP

ACRATA

Esta constelação aborda os sentidos da articulação entre os coletivos e a escola para

Knup Acrata, educador da oficina de literatura marginal. Em seus relatos percebemos

dois principais sentidos que se desvelam, cada um deles relacionado a um momento

diferente do processo de articulação. O primeiro diz respeito ao grupo comunitário ao

qual Knup Acrata pertence, e o segundo parece ser mais pessoal, referente aos objetivos

da oficina com os alunos.

Com relação ao sentido ligado ao grupo comunitário, Knup Acrata fala de um

movimento que vinha ocorrendo no bairro antes da chegada da EMEF Igarapé. Seu

coletivo, juntamente com alguns outros, que trabalham com cultura periférica,

buscavam um local para se reunir. KA conta que, quando chegou no bairro, em 2008,80

o pessoal sonhava em usar o espaço de um cinema abandonado há 15 anos. Como ele

tinha experiência com ocupação, ajudou nesta ação, e começaram seus encontros.

Porém, tiveram um problema com o dono do local e ficaram desalojados novamente. O

diretor da EMEF Igarapé os acolheu, cedeu-lhes uma sala e começaram a se reunir na

escola aos finais de semana.

Vemos, portanto, que um dos sentidos da articulação para Knup Acrata foi a

possibilidade de ter na escola um local de encontro para o seu coletivo e para os outros

coletivos do bairro. Um local compreendido por ele como espaço que possibilita a

reflexão conjunta a respeito das ações e objetivos do coletivo; que possibilita estudo e

crescimento; e que possibilita a própria ação. As frases abaixo, divulgadas por KA em

um livreto distribuído no bairro e produzido por um dos coletivos ilustram este sentido:

“iniciamos as atividades na EMEF [Igarapé] (...) para o coletivo, o espaço veio para trazer reflexão sobre nossas ações, ideologias, estudos e focos! Entendemos que o processo de crescimento é ininterrupto, por isso, da reflexão/ação!

Por isso queremos comungar desse espaço com todos os coletivos da região, então é só chegar! Nesses meses já

80 KA veio de Pirituba, mas seu pai mora no bairro há mais tempo.

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realizamos eventos de rap, sarau, oficinas de grafite e literatura!”

O segundo sentido desvelado diz respeito às oficinas de literatura marginal e parece ser

mais pessoal, referente à Knup Acrata como educador; ou seja, um sentido que se abriu

a partir da sua relação com os alunos. KA relata que, após ceder a sala da escola para o

coletivo, Francisco propôs que eles fizessem as oficinas de literatura com os alunos.

Percebe que o fato de eles estarem dentro da escola traz uma contribuição não apenas

para os coletivos, mas para a própria escola. No mesmo livreto acima referido KA

escreve:

“Além dessa parceria ter vindo num momento importante para o coletivo, ela soma com a escola e sua construção pedagógica!”

O sentido desvelado neste caso tem a ver com a escola e o projeto pedagógico. Knup

Acrata percebe sua contribuição e é motivado pela crença de que seu trabalho como

educador da oficina de literatura marginal pode promover uma transformação nos

alunos. Trabalha nesse projeto como voluntário, movido pela vontade de transformação.

Afirma que voluntariado cansa. Por outro lado, ele está fazendo esse trabalho porque

acredita que esse tipo de ação pode transformar a visão dos alunos.

O fato de Knup Acrata trabalhar como voluntário nesse projeto demonstra que há um

ideal de transformação dos alunos que o sustenta e que é maior do que o cansaço

advindo de sua difícil condição de trabalho sem remuneração. Este aspecto nos permite

dizer, fazendo referência à Edith Stein, que há uma ligação espiritual de KA com a

oficina e que esse seu profundo envolvimento o torna um dos sustentadores do projeto

de articulação e da vida comunitária que se cria – ou que está presente em potencial –

na relação entre a “comunidade escola” e a “comunidade coletivos”. Dizemos em

potencial porque Stein afirma que, onde há pessoas reunidas, ali a comunidade é

possível e que o encontro entre duas comunidades pode gerar uma nova comunidade.

KA afirma que não vai sair dali enquanto não conseguir que os alunos façam um

poema. Quer tentar fazer com que o máximo de alunos tome gosto pela leitura, que

tomem a poesia como uma maneira de se expressar. Esta afirmação mostra que há uma

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adesão pessoal sua, voluntária ao projeto, e isso o torna, de fato, uma pessoa muito

importante para levar a articulação adiante.

Ainda em relação ao projeto de articulação, Knup Acrata aponta para a importância da

parceria com a escola e afirma que não adianta vir gente de fora com as coisas prontas

para trabalhar com a comunidade. Acha que os trabalhos para a comunidade têm que

partir das próprias pessoas da comunidade. Conta que, quando começaram o

movimento de resgatar o cinema, mobilizaram os moradores para fazer isso. Afirma

que é criticado por não gostar das pessoas de fora, mas ele diz que não é verdade, que

as pessoas de fora são bem-vindas se quiserem ajudar e construir junto.

Quando Knup Acrata fala de pessoas de fora, refere-se a pessoas ou instituições que não

conhecem a realidade daquele bairro e que chegam com projetos prontos negando a

possibilidade de diálogo com a população local. Por outro lado, ele parece não negar a

ajuda de pessoas de fora quando estas querem construir junto. Percebemos, portanto,

que a questão central não é tanto quem é de dentro ou quem é de fora da comunidade no

sentido físico-geográfico, mas tem a ver com a integração entre as pessoas e as ideias

propostas. Stein nos ajuda nesta compreensão ao afirmar que a comunidade se constitui

pelo posicionamento das pessoas e não pela sua estrutura externa. Ela afirma, por

exemplo, que em uma mesma comunidade as pessoas têm graus diferentes de

envolvimento e isso dentro de um largo espectro de possibilidades que vai desde uma

imersão da pessoa total na vida comunitária até uma mera presença física através da

qual a pessoa usufrui da vida comunitária sem no entanto dar sua contribuição pessoal à

mesma.

Vemos, portanto, que o ser “de dentro” ou “de fora” relaciona-se mais à comunhão ou

não com a vida comunitária, ao posicionamento interno das pessoas, do que a critérios

externos como posição geográfica ou tempo de pertença a determinado grupo. Um

exemplo interessante ocorrido na escola que demonstra essa afirmação apareceu em

uma das conversas com Alice e Knup Acrata. Alice diz que, apesar dela ser muito mais

da comunidade (no sentido de tempo), quando pergunta para as pessoas quem elas

acham que é mais da comunidade, ela ou KA, as pessoas dizem que é Knup Acrata e, no

entanto, ele está apenas há um ano no bairro. Da mesma forma, a própria EMEF Igarapé

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é nova – em tempo – no bairro e, no entanto, busca uma integração com a comunidade

do entorno que outras escolas presentes no local há anos nunca tiveram.

- CONSTELAÇÃO 2: PRINCÍPIOS DOS COLETIVOS E OBJETIVOS DA

OFICINA DE LITERATURA MARGINAL NA VISÃO DE KNUP ACRATA

Esta constelação aborda os princípios gerais dos coletivos do bairro, ou seja, os

princípios comuns que os unem, sem levar em conta a especificidade do trabalho de

cada um. Ligados a esses princípios, a constelação apresenta alguns objetivos

específicos da oficina de literatura marginal na forma como foram apresentados pelo

educador responsável.

De um modo geral, os coletivos buscam divulgar e produzir cultura periférica.

Acreditam na cultura como um canal de transformação social e buscam aproximá-la dos

moradores locais mostrando que a cultura é de todos e para todos. Acreditam que

qualquer pessoa é (ou pode ser) produtora de cultura e que ela (cultura) é um importante

meio de expressão, de reflexão e de produção de conhecimento. Acreditam que a pessoa

se fortalece ao se perceber como um ser político, e assim, se vê capaz de fazer cultura

para o bairro. Todos os vieses culturais produzidos pelos coletivos têm um cunho

político, ou seja, não é uma cultura de espetáculo.81 Acreditam que, pela consciência

política e pela cultura decorrente desta consciência, a periferia se fortalece.

Um exemplo deste modo de pensar é a ideia apresentada em uma poesia discutida na

oficina de literatura marginal. O poema intitula-se A elite treme. Um dos alunos, ao

questionar o educador a respeito do porquê desta afirmação, obtém a seguinte resposta:

“Porque a periferia tem conhecimento; o conhecimento traz reflexão, a reflexão traz ação e a ação traz transformação social”.

Alinhados a esse princípio comum, cada coletivo encontra seu meio próprio de

expressão: música, poesia, dança, grafite, fotografia, vídeo, entre outros.

81 Relato de Knup Acrata durante devolutiva da análise.

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A oficina de literatura marginal tem, como objetivo amplo, trazer cultura local e fazer

com que os alunos sejam protagonistas de sua própria história. Como objetivos

específicos, busca, em primeiro lugar, apresentar a literatura marginal, desconstruindo a

noção clássica de diferentes modalidades de literatura (como a informativa e a poesia) e

ajudando os alunos a enxergarem a literatura presente em seu cotidiano (exemplos:

enxergar a poesia na letra de rap ou em uma frase no muro; ler poetas aqui da

quebrada, com poemas que mostram a luta da periferia). No trabalho com poesia, em

uma das oficinas, Knup Acrata explicou aos alunos que a poesia marginal usa uma

linguagem coloquial que quebra com os padrões da academia. Comparou a relação

periferia-centro à relação interior-cidade. Segundo ele, expressam-se de modos

distintos, são culturas diferentes, cada um tem uma cultura própria.

O segundo objetivo específico da oficina de literatura marginal é fazer com que os

alunos produzam sua própria escrita; e o terceiro, ajudá-los a divulgar sua produção

através da organização de livretos e saraus, mostrando, assim, que a cultura é uma

maneira de dar voz às suas ideias e que a expressão é o início da transformação.

Esses objetivos da oficina de literatura marginal são traduzidos em uma estrutura

própria. Normalmente elas são oferecidas nas escolas no formato de quatro encontros

nos quais são trabalhados respectivamente: literatura marginal, poemas, fanzine,

produção de um livreto e saraus.

Nessa estrutura, o tempo parece ser um fator importante para o Knup Acrata. Segundo

ele, há uma intenção clara de diferenciar “as oficinas” das “aulas escolares”, e a duração

do trabalho (4 encontros pontuais) parece ser um elemento determinante para essa

distinção. Dois exemplos mostram este aspecto. Em primeiro lugar, diante da mudança

no formato das oficinas propostas pela EMEF Igarapé – que desejava uma continuidade

do trabalho e não apenas quatro encontros – a resposta do coletivo foi a de se retirar por

entender que a proposta de continuidade não era condizente com os objetivos do mesmo

(isto segundo o relato do educador responsável – não foram escutados os outros

membros do coletivo). Desta forma, apenas Knup Acrata permaneceu no projeto; não

mais como representante do coletivo, mas de forma individual.

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O segundo exemplo foi a forma como o próprio Knup Acrata encontrou para lidar com

esta questão ao permanecer no projeto; ou seja, depois de algum tempo, ele entendeu

que seria necessário finalizar as oficinas e recomeçá-las, abrindo para alunos novos. Ao

ser questionado pela pesquisadora a respeito desta decisão de reiniciar as oficinas, o

educador respondeu que a maioria eram alunos antigos, que fizeram 4 encontros e não

tinham mais o que trabalhar. Afirmou que se continuasse, viraria aula de português e

que não era esse o objetivo.

- CONSTELAÇÃO 3: AÇÃO PEDAGÓGICA DE KNUP ACRATA

Esta constelação descreve situações observadas durante o trabalho de Knup Acrata na

escola, tanto nas oficinas de literatura marginal quanto na oficina de grafite e no Projeto

Germinal. A constelação aborda as oficinas vividas, ou seja, a ação pedagógica de KA

para alcançar os objetivos citados na constelação anterior, e sua relação com os alunos.

No início da oficina, a porta da sala ficava aberta e os alunos íam chegando. Alguns

entravam e se sentavam e outros ficavam parados em pé na porta. Knup Acrata acolhe

cada um que chega. Incentiva-os a entrar, participar. Pergunta pelo material. Faz

chamada.

Ao iniciar um tema com os alunos, oferecia uma explicação teórica e apresentava um

modelo de produção. Na oficina de fanzine por exemplo, ele primeiro explicou o que é

um fanzine, dizendo que é uma forma de expressão que surgiu nos anos 60 para se

contrapor à mídia escrita tradicional, uma maneira de expor as ideias através de textos

e imagens e em seguida distribuiu diferentes modelos de fanzines produzidos por

grupos da região. Fez o mesmo com poemas e fotografia. No caso dos poemas, por

exemplo, em uma oficina Knup Acrata trouxe a letra de um rap. Distribuiu o texto

impresso aos alunos e pediu que se revezassem para lê-lo em voz alta. Ao terminar a

leitura, discutiu a respeito do conteúdo da música e comentou que lendo não parece

uma letra de música, mas um texto. Somente depois desta primeira aproximação do

texto e do sentido da letra, KA propôs que escutassem a música.

Após apresentar o modelo e discutir os conteúdos, KA propõe que os alunos façam sua

própria produção. No exemplo acima, após escutarem a música, ele sugeriu que cada

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um destacasse o trecho que mais havia gostado e justificasse, expressando uma ideia

pessoal e, em seguida, escrevessem seu próprio poema. A produção dos alunos, neste

caso, tinha como base o tema discutido na música, que era uma visão positiva da

periferia. Knup Acrata pediu que cada um escrevesse um poema a respeito das coisas

boas que acontecem na periferia. Em outras oficinas, o tema relacionava-se mais a uma

crítica social e, neste caso, os alunos eram solicitados a escrever de acordo com esta

visão.

É interessante notar que KA buscava alinhar a produção dos alunos não apenas ao tipo

de literatura, à sua forma externa (fanzine, poemas etc), mas também aos conteúdos

discutidos; ou seja, buscava fazer com que os temas refletidos fossem expressos de

maneira pessoal pelos alunos nas suas produções e, mais do que isso, esperava que

fossem vividos de forma coerente através de atitudes concretas.

Com relação às produções, além de apresentar o modelo e refletir em conjunto a

respeito dos conteúdos, KA incentivava que os alunos se expressassem verbalmente,

procurando partilhar suas próprias ideias a respeito do assunto. Intervinha

frequentemente na tentativa de ajudá-los a enriquecer seu vocabulário superando

expressões do senso comum como legal. Quando os alunos se utilizam desta expressão,

ele pedia para se expressarem melhor, passando uma ideia. Algumas vezes, de forma

preventiva, orientava-os a responder uma pergunta dizendo que não vale a palavra

legal.

Enquanto escreviam, Knup Acrata também fazia intervenções no sentido de incentivá-

los a avançar. Ia passando por cada aluno, lendo, sugerindo e ajudando-os a encontrar

uma palavra que rimasse. No caso do fanzine, por exemplo, muitos alunos acabaram

recortando apenas imagens sem escrita. Neste caso, KA sugeriu que escrevessem ao

menos uma frase recortando letras de revista.

A forma como Knup Acrata trabalhava a literatura com os alunos e os ajudava a se

expressarem converge com a ideia de Edith Stein a respeito do papel do educador e da

formação pela palavra. Segundo a autora, um dos objetivos do trabalho formativo deve

ser ajudar a pessoa a expressar exatamente aquilo que ela quer dizer, e compreender

corretamente aquilo que os outros dizem.

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Onde não for possível encontrar a expressão linguística correta, não estará terminado o processo de reflexão. O que não se consegue expressar continua obscuro e abafado na alma, e quem não consegue comunicar-se está como que preso em sua própria alma: ele não consegue mover-se livremente nem chegar aos outros. (STEIN 1999a, p. 255)

Além disso, KA procurava apresentar a literatura partindo da realidade concreta dos

alunos e aos poucos ia introduzindo novos vocabulários conforme eles surgiam nos

textos. De acordo com Stein (1999a), o trabalho formativo em relação à palavra deveria

se iniciar a partir da linguagem viva e concreta, das peculiaridades individuais ou das

diferenças regionais. Stein afirma também que o incentivo à livre expressão no início é

um auxílio importante para ajudar a pessoa a expressar a alma pela palavra e que, para

ajudá-la posteriormente a avançar, é necessário uma formação intencional.

Com relação à expectativa de coerência de atitude dos alunos, uma situação vivida que

expressa fortemente esta ideia ocorreu em uma oficina quando um dos alunos começou

a chorar porque os outros riam dele. Knup Acrata parou a oficina para conversarem,

como sempre fazia em situações semelhantes. Perguntou se eles ainda não aprenderam

a trabalhar em grupo e afirmou que um dos objetivos é eles se conhecerem melhor,

fazerem amizades porque são de turmas diferentes. Disse que eles escrevem coisas

bonitas como um dos alunos leu: ‘- a gente tem que lutar pelo que quer, lutando a gente

consegue’, mas que essas coisas bonitas estavam sendo da boca pra fora porque as

atitudes eram de violência. Explicou que ali não é teoria, é prática; que eles têm que

colocar em prática o que falam.

Vemos a preocupação de Knup Acrata com a formação no sentido compreendido por

Stein, ou seja, espera que, diante das situações que a vida coloca aos alunos, eles saibam

fazer escolhas e se posicionarem de forma coerente com aquilo que dizem, espera uma

resposta não em qualquer direção, mas de acordo com certos princípios de convivência,

pautada no trabalho com cultura de paz (não-violência).

Essa visão de convivência de Knup Acrata também se alinha com a noção de

comunidade de Stein. De fato, diante da resposta de um dos alunos a respeito de uma

briga que ele teve com duas meninas que acabaram parando de frequentar a oficina por

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conta disso, KA demonstra uma visão orgânica do grupo e o desejo de construção de

relações comunitárias. Ao falar para o aluno que gostaria de conversar com ele junto

com as meninas e tentar trazê-las de volta ao grupo, este aluno responde que tudo bem

[elas terem saído] porque ele trouxe dois novos para o grupo, e Knup Acrata responde

que ninguém substitui ninguém. Esta visão demonstra que a pessoa está em primeiro

lugar, um aluno não é qualquer aluno, um número a mais. Cada um, com sua

singularidade, é fundamental para o grupo. Cada um que entra ou sai modifica o todo; e

a posição, a escolha pessoal dos membros do grupo afeta a todos.

Ao se relacionar com os alunos, podemos dizer que Knup Acrata tem um papel de

formador na medida em que ele não apenas é modelo, com seus atos pessoais e com a

visão de mundo que traz, mas também, pelo fato de motivá-los a fazerem escolhas.

Procura lidar com as situações de conflito através do diálogo levando o aluno a refletir e

dando-lhe margem para escolher. Em alguns momentos, entretanto, decide pela

interrupção do trabalho, embora tenha a flexibilidade para, no diálogo, voltar atrás na

sua decisão.

Em uma situação, por exemplo, em que havia muita conversa na oficina, KA diz que a

oficina acabou. Os alunos reclamam porque querem continuar e ele explica que eles

não são obrigados a escrever. Explica que se estão ali é para escrever, mas que, se não

querem, podem sair, e os alunos decidem que querem continuar. Em situação

semelhante, KA conversou com os alunos sobre as constantes brigas e perguntou-lhes o

que eles sugeriam para que melhorasse o clima. Explicou que não quer eles quietos.

Quer que eles se movimentem, falem, escrevam, só não quer que briguem. Frente à

solução apresentada por uma das alunas, de separá-los, afirma que a solução de serem

separados uns dos outros seria a mesma coisa que fazem com eles que moram na

periferia, e que eles não podem fazer a mesma coisa entre si.

A situação acima nos mostra como Knup Acrata incentiva os alunos a fazerem escolhas

e pensarem em soluções para a questão da convivência. Escuta-os e orienta-os,

discutindo a solução proposta de acordo com as reflexões e os temas discutidos nas

oficinas. Em outros momentos, a opção de KA é mudar os alunos de lugar. Em uma

ocasião em que dois alunos começaram a brigar, ele pediu que um deles mudasse de

lugar. Em seguida parou a oficina e comentou que acha feio mudá-los de lugar porque

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eles escolheram o lugar onde queriam sentar. Isso demonstra que, mesmo diante da

diversidade de ações e tentativas de obter um clima mais favorável para o

desenvolvimento da oficina por parte de KA, elas sempre são acompanhadas de uma

atitude de diálogo, até mesmo em situações em que o procedimento utilizado

normalmente pelos professores da EMEF seria o de encaminhar o aluno para a diretoria

(como o fato de alguns alunos terem roubado lata de tinta da sala). Knup Acrata

procurou resolver os conflitos dentro da sala; segundo ele, em um clima de diálogo, sem

precisar ir para a Direção.

A escuta e o olhar atento permeiam a ação educativa de Knup Acrata. Coerente com a

postura dialógica que leva em conta o outro na sua especificidade, ele foi flexível no

planejamento em diversos momentos do trabalho. Como exemplo, podemos citar uma

oficina de grafite na qual ele fez uma tentativa de trabalhar com o spray no muro e, ao

perceber a dificuldade de um aluno em controlar o spray (distância e quantidade de tinta

de forma a não escorrer pela parede) mesmo depois de ensinar-lhe a técnica e dar-lhe

um tempo para treinar, decide pintar por cima o que haviam feito e voltar ao uso do

rolinho. Em outra situação, após a oficina de fanzine, Knup Acrata comenta que de um

grupo de 20 alunos esperava que saíssem pelo menos uns 4 fanzines e que o que eles

[alunos] fizeram não era fanzine. Diante dessa expectativa frustrada, KA não culpa os

alunos, mas afirma que pretende retomar este trabalho, talvez explicando melhor cada

passo.

No segundo semestre de trabalho na EMEF, quando Knup Acrata deu início ao Projeto

Germinal, percebemos algumas mudanças em relação a sua ação pedagógica. Houve

uma modificação do material de apoio tanto do planejamento anual – entregue com

antecedência e de forma detalhada à coordenadora pedagógica – quanto da parte teórica

das oficinas, que passou a ser acompanhada de uma apostila impressa distribuída para

cada aluno e lida em conjunto no início de cada novo tema. Além disso o trabalho em

relação à convivência dos alunos parece ter assumido um lugar de importância no

planejamento, e isso pelo fato da primeira oficina ter sido iniciada com uma dinâmica

seguida de uma reflexão com os alunos a respeito do tema. Ao apresentar o programa

do Projeto Germinal, KA afirma aos alunos que eles vão precisar um do outro e que

espera que consigam tramas que saiam e que não fiquem como o grupo [da dinâmica]

que não conseguiu se desenroscar. Estas mudanças mostram que, ao dar continuidade

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ao projeto, ele incorporou sua experiência anterior com as oficinas e o aprendizado

delas decorrente, demonstrando um amadurecimento enquanto educador.

Além das próprias oficinas, Knup Acrata também incentivava os alunos a participarem

das sessões de cinema promovidas pelos coletivos na escola, e a escolherem eventos de

um centro cultural da região para participarem. Afirma que há muita opção de coisas

para ver próximo deles e eles não aproveitam. Incentiva-os também a pesquisarem a

história do bairro com seus familiares. Desta forma, a oficina extravasa o espaço da

escola e busca aproximar os alunos de outras opções culturais que a comunidade

oferece. Além disso, os auxilia a se perceberem como parte desta comunidade ao

articular história familiar e história do bairro.

- CONSTELAÇÃO 4: REPERCUSSÕES DA ARTICULAÇÃO NOS ALUNOS

A presente constelação trata da visão de Knup Acrata a respeito da repercussão das

oficinas de literatura marginal e de grafite nos alunos. Segundo ele, o trabalho com

grafite é difícil porque os alunos só querem saber da tinta. Acha que primeiro eles têm

que pensar o que vão fazer, mas percebe que, quando propõe conversarem antes, os

alunos acham chato e ficam cansados. Às vezes, só descem para o muro no final das

oficinas e por estarem cansados, acabam se irritando facilmente e brigando.

Por outro lado, percebe uma mudança de visão em relação às pessoas da comunidade.

Acha que passaram a reconhecer um saber da periferia. Em suas palavras, observa que

os alunos estão tendo uma coerência maior, que eles percebem que ‘o tio’ da rua sabe

as coisas e pode ensinar para eles. Outro elemento que aponta para uma repercussão

positiva nos alunos é o fato de alguns reclamarem com ele ao término das oficinas,

mostrando o desejo de continuarem no projeto. Cinco alunos permaneceram no

semestre seguinte (no Projeto Germinal). Dentre eles, dois haviam participado da

entrevista coletiva: Curinga e DGS.

- CONSTELAÇÃO 5: REPERCUSSÃO DA ARTICULAÇÃO NO PESSOAL: PERCEPÇÃO DE SI E TRANSFORMAÇÕES PESSOAIS

Esta constelação relata aspectos do modo de ser de Knup Acrata e as descobertas e

mudanças pessoais por ele percebidas ao longo do processo de articulação. Knup

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Acrata, como expressa o nome escolhido por ele para ser referido nesta pesquisa, afirma

ser anarquista e punk. Faz parte do movimento anarcopunk. Em uma poesia de sua

autoria, relatada no Capítulo 5, item 5.1, ele expressa o sentido de ser punk.

A poesia conta que o punk lhe mostrou como lutar contra as dificuldades de sua

situação periférica. Situação de prisão, incapacidade e isolamento. O punk lhe mostrou

como lutar contra a dificuldade de um destino imposto aos que moram na periferia:

escravidão, analfabetismo funcional, alienação, marginalidade. Destino cujo fim

apresenta duas possibilidades: prisão e isolamento ou morte por assassinato policial.

Knup Acrata vislumbrou a possibilidade de mudar esse destino pré-determinado quando

aprendeu o que é pensar. O livro passou a ser sua arma. Afirma que é autodidata, se

esforça para aprender, “sangue nos óio”. Isso foi o punk que lhe mostrou. Começou a se

importar com as questões sociais, a ter um senso crítico, a se ver como um ser político,

como parte da sociedade.

Knup Acrata parece ter encontrado no punk uma saída, um caminho de esperança e

crescimento pessoal contra todo o desespero de um destino imposto aos que se sentem à

margem da sociedade. Conta que é anarquista, ou seja, acredita não depender do

instituído para viver. É autodidata. Acredita que o conhecimento não está só na escola,

ou seja, que a escola não é a única maneira de uma pessoa se educar. Afirma que a rua

é uma escola, que as pessoas estão aprendendo e ensinando a todo momento e não

apenas olhando uma lousa.82 Exemplifica esta ideia ao dizer que (...) uma mãe, por

exemplo, que quer estudar mas não tem tempo para ir à escola, acaba não fazendo

nada. Ela precisa saber que ela não depende só da escola. Ela pode ler os livros,

estudar sozinha, fazer um grupo de estudos etc.

Ao perceber que o modelo de escola formal – com suas regras, rituais, horários – nem

sempre responde às necessidades de estudo das pessoas, Knup Acrata encontra na

autonomia pessoal (autodidatismo) e no potencial educador de uma vida comunitária

(grupo de estudos) respostas alternativas para esta necessidade. Essas duas alternativas

estão presentes na ideia de formação de Edith Stein (1999c). Para a autora, a

experiência de estar com o outro é essencial para o autoconhecimento e o conhecimento

82 Este relato não se encontra nas narrativas do Capítulo 5. Ele é fruto de uma observação de KA durante a devolutiva desta análise.

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do mundo. E a autonomia entra a medida que a formação acontece a partir do nosso

posicionamento pessoal diante da dialética eu-outro/eu-mundo. De fato Stein afirma que

o educador tem um papel pontual na formação da pessoa. Ele pode colocá-la em contato

com os bens culturais (alimentos para sua formação) e suscitar nela um posicionamento

pessoal diante deste material, mas jamais poderá moldá-la a partir de fora, de acordo

com um projeto seu (do educador). Nesse sentido, Stein afirma que a formação é, em

última instância, um trabalho pessoal. Afirma que toda formação é autoformação na

medida em que, ao entrar em contato com uma realidade, a pessoa – e só a pessoa –

pode consultar-se intimamente e responder se aquilo que se lhe apresenta é um bem ou

não para si e, assim, dar uma resposta pessoal de adesão ou não àquela realidade

(STEIN, 1999c, p. 30).

Feitas estas considerações, retomamos, portanto, que o anarcopunk é uma marca pessoal

de Knup Acrata; uma marca que ele carrega consigo, uma comunidade à qual pertence e

que lhe fornece instrumentos – como a leitura e a reflexão – para viver. Esta marca se

revela não apenas no seu nome e na sua fala, mas também no seu modo de vestir,

atingindo todas as dimensões da pessoa apresentadas por Stein: física, psíquica e

espiritual.

É interessante notar como a expressão física do ser punk foi expressa de forma bastante

discreta no início do projeto com a escola. Apesar de predominar a roupa preta, KA

usava sempre um gorro que escondia o corte moicano do cabelo. Já no segundo

semestre, algumas vezes em que nos encontramos na escola, ele estava sem gorro e

parecia não se importar em revelar o visual.83 Durante a devolutiva, KA esclarece que

normalmente utiliza o visual quando está entre pessoas que o conhecem. Caso contrário,

prefere vestir-se de outro modo porque acredita que o visual punk gera um impacto nas

pessoas, que podem ter algum tipo de preconceito. Ele prefere primeiro se aproximar e

falar das suas ideias para depois revelar-se por completo.

Este posicionamento de Knup Acrata mostra que ele parece querer evitar, de acordo

com Edith Stein, uma reação psíquica negativa das pessoas, que, por preconceito, por

exemplo, poderiam se fechar e impedir uma aproximação mais profunda com Knup

83 Forma como se refere ao modo de vestir punk.

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Acrata, no nível espiritual. KA explica que é como ler um livro. Acha que as pessoas

primeiro devem ler o livro, ver o conteúdo, para depois saber quem é o autor, ou seja,

ele quer passar das dimensões físicas e psíquicas para a dimensão espiritual, a partir da

qual as pessoas poderiam compreender sua visão de mundo, suas motivações, reflexões

e ideais, para em seguida poderem se posicionar de forma mais consciente e não apenas

reativa.

Na escola, afirma que no segundo semestre os alunos já o conheciam e por isso não se

preocupou. Isto demonstra um aspecto da relação comunitária apontado por Stein, ou

seja, que as relações comunitárias não abafam a singularidade de seus membros. Pelo

contrário, as diferenças individuais enriquecem a comunidade ao mesmo tempo em que

a vida comunitária favorece o desenvolvimento de seus membros. Enquanto membro da

comunidade anarcopunk, Knup Acrata poderia enriquecer a escola com seu modo de ser

e sua visão de mundo, pois como vimos, para Stein “a pessoa, com sua forma específica

de vivenciar os conteúdos comunitários, constitui o elemento constituinte da vivência

comunitária” (COELHO JUNIOR, 2006, p. 68). Por outro lado, afirma que tinha um

cuidado em relação ao pais, que estranhavam este modo de ser. Esta atitude demonstra

um zelo de KA em relação à escola e ao modo como ela poderia ser vista e interpretada

pelas famílias. É uma atitude solidária em relação ao diretor e à preocupação de

preservação da comunidade escola.

É interessante notar que, após um semestre do projeto de articulação, Knup Acrata

pareceu mais confortável em relação à realidade escolar e com maior clareza no que diz

respeito aos pontos divergentes e convergentes da sua relação com a EMEF Igarapé. Ao

explicar sobre o anarquismo, por exemplo, ele afirma que este é o princípio deles

(coletivo), ou seja, que valorizam a individualidade, o ser de cada um. Afirma ainda

que anarquismo é uma postura pessoal sua, que não reflete a ideologia da sala. Na sala

trabalham com pedagogia libertária, que foi desenvolvida por anarquistas.84

Ao mesmo tempo em que deixou clara a diferença entre ele e a escola, e entre ele e os

alunos, ao afirmar que é anarquista mas que esta não é a ideologia da sala, percebeu a

contribuição desta ideologia para a pedagogia. Sendo assim, descobriu um ponto de

84 Explica que o termo pedagogia libertária foi criado por um anarquista.

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convergência pessoal com esta realidade: a pedagogia libertária. Esta experiência nos

fala da necessidade de primeiro diferenciar-se para em seguida conseguir unir, ou seja,

para que haja articulação de fato. Esta ideia nos remete novamente à noção de

comunidade de Stein e à importância de se conservarem as singularidades para a sua

constituição. Quanto mais a pessoa consegue viver a comunidade de forma pessoal,

mais ela contribui e enriquece a vida comunitária. Sendo assim, pensando na articulação

como uma nova comunidade que se forma a partir das comunidades coletivos e escola,

podemos dizer que Knup Acrata, com o seu modo de ser punk, com essa sua

singularidade, enriqueceu a proposta pedagógica da escola.

A experiência de articulação parece ter proporcionado uma reflexão em Knup Acrata

acerca da contribuição do anarcopunk no campo pedagógico, com a pedagogia

libertária. Por outro lado, há um novo sentido que se desvela em seus relatos, que é a

influência do pedagógico na sua própria singularidade, alargando os horizontes a

respeito de si mesmo.

A relação com a EMEF Igarapé e a experiência como educador da oficina de literatura

marginal o colocou em contato com novos desafios. Apesar de seu coletivo estar

acostumado a dar oficinas em outras escolas, o projeto de articulação com a EMEF

exigiu deles uma flexibilidade para trabalhar em novo formato: as oficinas duraram

mais do que quatro encontros – conforme previsto no modelo do coletivo –; foi

introduzido pela escola, além da literatura marginal, o tema da Cultura de Paz e

Diversidade Cultural, além do fato de terem que lidar com alunos mais novos do que

estavam acostumados. Com relação a este último desafio, KA comenta que, quando

soube que trabalharia com os menores (6º e 7º ano – antigas 5ª e 6ª séries), ficou

apreensivo, não porque não gostasse, mas porque acha que não tem muito jeito.

Estes desafios exigiram de Knup Acrata e de seu coletivo abertura e flexibilidade para

trabalhar de um novo modo. Esta abertura foi encontrada em KA, mas não no coletivo

como um todo. De fato, ele comenta que o trabalho na escola o distanciou do coletivo

porque a proposta deles é fazer as oficinas e depois tem um fim, mas na escola vão dar

continuidade ao trabalho. Houve, portanto, uma adesão pessoal de KA ao projeto de

articulação. Adesão que o distanciou de seu coletivo e o fez aproximar-se cada vez mais

do ambiente escolar. Conta como o tema da Cultura de Paz e Diversidade o fez estudar.

Começou a se envolver com novos projetos da escola como a biblioteca comunitária e a

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criação de um grêmio com os alunos, cujo objetivo é fazer com que eles queiram

trabalhar pela escola assim como o veem trabalhando.

Este objetivo, da mesma forma que o sentido da articulação para Alice – onde ela fala

que espera que Knup Acrata passe a paixão pela literatura aos alunos –, remete-nos à

ideia de Edith Stein de força vital da comunidade. Para a autora, quando falta à

comunidade esta força, uma das formas pela qual ela pode ter sua força vital renovada

(ou diminuída) é pelo contato com alguém de fora ou com uma outra comunidade.

Neste caso, vemos que a escola encontra em Knup Acrata (ou espera dele) esta força

manifestada na paixão pela literatura e na dedicação ao trabalho. Tal dedicação pode ser

exemplificada pelo fato dele ter assumido as oficinas de grafite quando os educadores

foram embora. Em seu relato afirma que, como o trabalho não poderia parar no meio,

ele assumiu.

Esta atitude de Knup Acrata, de responsabilizar-se perante os alunos assumindo um

trabalho para que ele não fosse interrompido, nos permite destacar novamente seu

engajamento e compromisso com a escola de forma a tornar-se um sustentador do

projeto de articulação, um sustentador da vida comunitária que brota deste projeto. Por

sustentadores da vida comunitária Edith Stein (1999b) define os sujeitos que participam

com sua alma da vida comunitária, que vivem sua própria vida como membros da

comunidade e compreendem o próprio destino enquanto este tem um significado para a

totalidade. Os sustentadores são a alma, o núcleo85 da comunidade que garantem a sua

continuidade. Foi isto o que Knup Acrata demonstrou ao assumir as oficinas por

entender que o processo não poderia parar.

Podemos apontar também dois novos sentidos que se abriram para Knup Acrata

pessoalmente a partir do projeto: o estudo e o ensino. A experiência de articulação o fez

descobrir-se estudante e educador. Estudou para ministrar oficinas com temas novos

para ele, começou a ler Paulo Freire e descobriu o valor de sua prática. Relata que está

lendo Pedagogia do Oprimido e que, sem saber, está fazendo coisas que tem a ver com

a teoria. Descobre-se então educador. Tanto a reflexão a respeito de sua prática na

85 Este núcleo tem o mesmo sentido do núcleo pessoal, a que nos referimos ao abordar o tema da visão de pessoa e de formação em Edith Stein. De fato, vimos como Stein faz um paralelo entre pessoa e comunidade, vendo esta última como uma personalidade supraindividual. Neste sentido, ela utiliza termos semelhantes para a compreensão da essência da vida comunitária: força vital, núcleo, caráter etc.

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oficina quanto o olhar estrangeiro lhe falam desta dimensão. Com relação a este

segundo aspecto – o olhar estrangeiro –, conta uma situação em que esteve com os

alunos no Arquivo do Estado e as pessoas do local se referiram a ele como educador.

Lembra de quando era aluno e bagunçava nos passeios com a escola, e acha normal os

alunos bagunçarem. O estranho para ele é de repente estar do outro lado, por exemplo,

ele ‘responde pelo BO dos caras’, ou seja, agora ele é o educador, o responsável.

Vemos, portanto, como o contato com a escola ampliou o olhar de Knup Acrata a

respeito de si. Retomando novamente as ideias de Stein a respeito da pessoa na

comunidade, vemos em KA um exemplo de como as vivências comunitárias são

importantes para o crescimento pessoal na medida em que possibilitam a apreensão de

significados e valores compartilhados que talvez sozinha a pessoa não apreendesse, e

suscitam propósitos que motivarão suas ações concretas e seu posicionamento diante

dos outros.

A experiência como educador suscitou em Knup Acrata novos projetos e ações

concretas. Ao ser questionado a respeito do futuro, ele afirma que quer estudar, dar aula

e que está pesquisando algumas faculdades. O que o motiva a fazer faculdade é o fato

de precisar trabalhar – na EMEF Igarapé ele atua como voluntário – e não querer sair

da área, ou seja, querer continuar atuando como educador, aliando esta dimensão à

questão profissional.

Por outro lado, o tema da faculdade parece um grande desafio para Knup Acrata. Isto

por dois motivos. Primeiro pela questão social que terá que enfrentar, ou seja, ter que

concorrer com gente que estudou muito mais, em escola particular; e segundo, pelo fato

da faculdade representar para ele um enquadramento, uma certa submissão ao instituído

ao qual ele se opõe enquanto anarquista. KA parece fazer esta reflexão ao afirmar que

um dos problemas da faculdade é o de se enquadrar. Explica que enquanto autodidata

acredita que não é um diploma que vai fazer com que ele se torne educador.86 Conta

que se dobrou à ideia de faculdade porque precisa trabalhar e parece sentir-se mais

confortável ao pensar que, assim como ele, outros também se enquadraram. Cita o

86 Relato feito durante a devolutiva.

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exemplo de um grupo anarquista presente em uma universidade particular de São Paulo.

Conta que são anarquistas e que tem até professor e gente com doutorado.

Os sentidos que se abriram e a nova visão de si como educador parecem exigir de Knup

Acrata um movimento de articulação interno. Articulação entre ser anarquista-punk e

educador; articulação entre uma ideologia a qual aderiu e uma nova necessidade que

experimenta: a de ingressar na estrutura formal de ensino. Esses dois mundos

aparentemente incomunicáveis para KA agora buscam uma forma de dialogar. Isto

demonstra que houve uma abertura pessoal de tal modo que seu envolvimento com o

projeto de articulação foi além de ações negociadas externamente, gerando um apelo

interior trans-formador/formador.

Retomando a visão de formação de Edith Stein (1999c) para quem toda educação é

autoeducação, ou seja, para quem a educação depende das escolhas, da vontade daquele

que é formado, podemos dizer que, diante do desejo de trabalhar como educador (o que

implicaria a submissão a certas regras como a necessidade de um diploma) e da opção

ideológica a qual adere (anarcopunk), Knup Acrata terá que conhecer melhor estas duas

realidades, questioná-las e posicionar-se. O processo de formação acontece na medida

em que este posicionamento for fruto de um contato consigo mesmo, de uma consulta a

critérios internos que lhe apontem o que é justo e construtivo e o que é nocivo para si. É

um processo dinâmico onde não há respostas prontas. Na medida em que a pessoa se

posiciona, seu Eu emerge, amadurece e, no caso de KA, o modo dele ser anarquista e/ou

de estudar, se torna mais pessoal. Com isso, a contribuição que ele terá para dar às

comunidades às quais pertence (projeto articulação, coletivos, movimento anarcopunk,

escola etc.) será maior do que se ele ficasse preso ao modelo externo, estereotipado do

ser estudante ou do ser anarquista.

Este exemplo ilustra a dependência ontológica a qual Stein se refere ao abordar o tema

pessoa e comunidade, ou seja, quanto mais a pessoa se torna ela mesma, mais ela

contribui para a comunidade, ao mesmo tempo em que a comunidade a provoca no

sentido de um crescimento pessoal. No caso de Knup Acrata, percebemos que houve um

primeiro movimento de prestar vestibular e entrar no curso de pedagogia de uma

faculdade particular; mas, segundo relata, por falta de tempo e recursos financeiros

acabou desistindo e conseguiu um emprego como educador em um centro cultural da

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região. Ao ser incentivado pela pesquisadora a buscar outros cursos e instituições,

reponde que ainda não é o momento da faculdade.87

Este fato demonstra novamente, segundo Stein (1999c), que o processo de formação

depende de uma tomada de posição pessoal. O educador ou outras pessoas podem até

sugerir caminhos para o educando, mas a resposta, ainda que seja aderir à sugestão do

outro, será pessoal. De fato, Stein afirma que “cabe a nós decidirmos o quanto queremos

ampliar o nosso mundo espiritual, o que queremos acolher em nós dos elementos

culturais” (STEIN, 1999c, p. 26). Isto não quer dizer que não possa acontecer uma

adesão da pessoa a projetos externos, já que nem sempre conseguimos ter uma escuta e

um autoconhecimento tão apurados para perceber o apelo de critérios interiores. Para

Stein, formação é movimento, é um processo complexo que acontece a partir de nossos

posicionamentos diante da dialética eu-mundo, e não um caminho linear.

- CONSTELAÇÃO 6: REPERCUSSÕES DA ARTICULAÇÃO NO COLETIVO: MUDANÇAS NO COLETIVO E CRIAÇÃO DE NOVOS COLETIVOS

Embora as mudanças no coletivo já tenham sido discutidas em outras constelações,

escolhemos manter a presente constelação a fim de destacar a repercussão do projeto de

articulação neste grupo. A visão do coletivo que apresentamos é aquela trazida por

Knup Acrata. É importante deixar claro que os outros membros do grupo não foram

escutados e que o sentido trazido é fruto da percepção de um único membro.

No início do processo de articulação, houve a participação de um coletivo e de um

grupo de jovens que trabalhavam com grafite. A oficina de literatura marginal foi

planejada pela escola juntamente com o coletivo, formado por 6 pessoas (incluindo KA)

que trabalhavam com literatura marginal e que já promoviam oficinas nas escolas da

região com um formato próprio (apresentado na Constelação 3). Além deste coletivo, o

projeto articulação integrou um grupo de jovens para ministrar as oficinas de grafite.

Esse grupo não se configurava como um coletivo. Era constituído por jovens de

diferentes crews que se juntaram especialmente para ministrar as oficinas de grafite.

87 Na devolutiva, Knup Acrata comenta que a questão não é a necessidade de estudo porque ele pode estudar por conta própria – o que faz normalmente. Afirma que o que está em jogo é o processo de ter que se submeter à estrutura escolar: notas, frequência, regras, metas... Conta que pensou novamente no início do ano em fazer faculdade, mas que decidiu passar mais um ano estudando por conta própria.

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O contato com a EMEF Igarapé foi diferente do contato do coletivo com as outras

escolas, onde eles ofereciam a oficina de literatura marginal com duração de 3 meses

aproximadamente e depois iam embora. O projeto de articulação exigiu uma abertura

para um novo tipo de relacionamento com a escola. A EMEF Igarapé solicitou deles um

trabalho de maior duração, a introdução de novos temas nas oficinas – Cultura de Paz –

e o trabalho com jovens de idade menor do que estavam acostumados.

Knup Acrata ministrou as primeiras oficinas acompanhado de outro membro do

coletivo. Com o tempo, entretanto, passou a assumir sozinho o trabalho e o coletivo se

afastou. Segundo ele, o afastamento ocorreu devido ao prolongamento do trabalho, ou

seja, à proposta da EMEF de dar continuidade às oficinas para além dos 3 meses que

estavam acostumados. Knup Acrata afirma que o coletivo entendeu que essa não era a

proposta deles, ou seja, ficar em uma única escola por mais tempo, já que sua proposta

é justamente ser itinerante.88

Vemos nesta situação um posicionamento do coletivo diante da realidade da EMEF

Igarapé e das exigências do projeto de articulação. Retomando aa ideias de Edith Stein,

vemos que formar não significa moldar-se a um modelo externo de forma passiva, mas

é um processo dinâmico através do qual a pessoa ou o grupo se posiciona em relação ao

que encontra em si mesmo e no mundo, baseando-se em critérios internos que lhe

apontam o caminho para a realização do ser. Diante da realidade do coletivo e da

proposta da escola, a decisão do grupo foi a de não permanecer na escola. Tomando

como referência a visão de KA de que eles entenderam que a proposta da escola não

era a sua proposta, ou seja, que aquele não era o caminho deles, podemos dizer que o

coletivo foi embora com um posicionamento autêntico, ou seja, foram embora porque

entenderam que aquele não era o lugar deles (da mesma forma que KA ficou porque

entendeu que aquela experiência fazia sentido para ele). Se isso ocorreu de fato,

podemos dizer que a experiência de articulação foi formativa para o coletivo à medida

que os ajudou a crescer na consciência de sua identidade, ou seja, os ajudou a tornarem-

se mais “eles mesmos”. Por outro lado, como o critério de escolha é interno, só

88 O esclarecimento de que fazia parte da característica do coletivo “ser itinerante” ocorreu durante a devolutiva da análise.

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poderíamos confirmar esta afirmação escutando os próprios membros do coletivo, o que

não foi possível neste trabalho.

Outra possibilidade de análise diante do afastamento do coletivo seria a ideia de que

eles não se abriram para a relação com a EMEF Igarapé, ou seja, não aderiram ao

desafio de pensar que poderiam trabalhar de uma forma diferente. Neste caso, eles

teriam dado um passo de fechamento, de reafirmação de um modelo externo,

distanciando-se de um posicionamento autêntico em detrimento de uma resposta

pautada por critérios externos. Neste caso, portanto, não chamaríamos esta experiência

de formativa e sim con-formativa (moldado a uma forma externa). De qualquer

maneira, como afirmamos anteriormente, uma análise mais rigorosa só poderia ser feita

escutando os outros membros do coletivo.

Retomando as repercussões da articulação, situação semelhante ocorreu com o grupo da

oficina de grafite, ou seja, após algum tempo, as pessoas acabaram se afastando da

escola. Segundo Knup Acrata, o afastamento ocorreu porque, apesar de terem sido

avisados no início que não seriam remunerados (mas que receberiam as latas de tinta),

acabaram se cansando desta situação. Afirma ainda que eles não tinham afinidade em

dar oficina para uma faixa etária tão baixa, e que um agravante foi o fato de alguns

alunos terem roubado lata da sala.

Ao relatar sua experiência com a oficina de grafite após a saída do grupo, KA (que

assumiu a oficina) reconhece a dificuldade do trabalho com os alunos ao afirmar que é

difícil trabalhar com as crianças porque eles só querem saber da tinta e que no grafite

não é assim, chega e vai pintando, ou seja, primeiro eles têm que pensar o que vão

fazer; mas que os alunos se cansam com as discussões e quando descem para o muro

ficam agitados e isso, somado ao sol forte, gera irritação. Relata uma situação em que

estavam pintando o muro e, ao surgir uma discussão entre os alunos, um deles jogou

uma garrafa de tinta na cabeça do outro.

É interessante notar que, apesar das dificuldades do grupo do grafite com os alunos,

Knup Acrata relata que eles estudaram juntos o que é a Cultura de Paz (tema sugerido

pela EMEF) e que depois disso ele percebeu que os próprios educadores mudaram,

começaram a ter mais paciência com os alunos.

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A ideia de formação discutida acima a respeito do coletivo ajuda-nos a analisar a

repercussão da articulação também no grupo de grafite. Se por um lado houve um

afastamento por dificuldade e cansaço dos educadores em relação ao trabalho não

remunerado e à dificuldade de lidar com os alunos, por outro, parece ter havido uma

abertura dos educadores para experimentar formas novas de trabalho, inclusive fora do

próprio grupo (ou crew) – já que não vieram para a escola com o seu grupo de origem,

mas se dispuseram a formar um grupo novo especificamente para esse trabalho. Além

dessa disponibilidade inicial em experimentar novas parceiras e novas formas de

trabalho, o relato de Knup Acrata nos mostra que houve transformação dos educadores

a partir do estudo a respeito de Cultura de Paz. Novamente podemos afirmar que uma

análise mais rigorosa só poderia ser feita após escutarmos os próprios educadores a

respeito de sua experiência na EMEF Igarapé, o que não aconteceu. Desta forma,

limitamo-nos a apontar que, a partir do relato de KA, houve um cansaço mas também

um enriquecimento do grupo com esta experiência. Podemos afirmar também, de

acordo com a noção de comunidade de Stein, que, ao serem enriquecidos, cada um

desses educadores estará enriquecendo os seus próprios crews e as outras comunidades

às quais pertencem.

Além das repercussões acima, podemos dizer que o movimento de articulação suscitou

novas organizações em relação aos coletivos. Desde o início, Knup Acrata ficou

responsável pelo Espaço Cultural. Chegou na EMEF como integrante de um coletivo

que, em um segundo momento, se afastou da escola por ter um caráter itinerante. KA

escolheu permanecer na escola e isso acabou o afastando do coletivo. Após este

afastamento, ele reaproximou-se de um coletivo anarcopunk ao qual pertencera antes de

se mudar para o bairro. Segundo relato, este coletivo veio com ele para a EMEF para

trabalhar pedagogia libertária, que, segundo Knup Acrata, é um ponto comum com o

Projeto Político Eco-Pedagógico da escola. Querem trabalhar a melhoria das pessoas

através da educação e do convívio e pretendem ajudar projetos que envolvam todo o

bairro.

Paralelamente, KA também se aliou a uma jovem de outro coletivo, que trabalha com

música e que veio ajudá-lo a cuidar do Espaço Cultural. Afirma que, no momento, os

projetos voltados para os alunos da escola são o Projeto Germinal e o Cine Alastre, e

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que darão início a um nova oficina chamada Oficina da Palavra, voltada aos alunos do

Fundamental I.

Chama-nos a atenção que esta nova organização foi criada com o foco na educação. Ela

nasceu dentro do projeto de articulação, com sede no Espaço Cultural e ligado aos

projetos com os alunos, focando educação e convivência. Isso demonstra a forte

repercussão da articulação, que, em um primeiro movimento, afastou alguns grupos,

mas que posteriormente mobilizou aqueles que permaneceram e atraiu novas pessoas,

dando origem a uma nova configuração de pessoas e grupos (coletivos) dentro da

escola. Uma nova configuração de pessoas que visam o trabalho com cultura periférica

como meio de transformação social como os outros coletivos, mas que se diferencia por

introduzir uma nova palavra em seu ideal: educação. O diferencial desta nova

configuração – que nos permitimos chamar de um “novo coletivo” – parece ser

justamente a visão de que a educação e a ação no ambiente escolar podem ser caminhos

fecundos para a transformação social que almejam.

Este fato demonstra a flexibilidade das pessoas em relação à estrutura externa, ou seja,

eles não servem aos coletivos mas os coletivos servem às pessoas e seus ideais. A partir

do momento em que uma certa estrutura não responde às necessidades do contexto, ela

é reconfigurada. Os princípios permanecem, mas o formato se adequa à realidade do

momento.

- CONSTELAÇÃO 7: ARTICULAÇÃO EXPANDIDA

A presente constelação descreve as iniciativas e novas articulações surgidas a partir do

movimento da oficina de literatura marginal e de grafite.

Como uma das iniciativas, podemos citar o Projeto Germinal, que foi uma proposta de

continuidade das oficinas de literatura marginal e que introduziu fotografia e vídeo em

seu planejamento. Além desses novos conteúdos, o Projeto Germinal consolidou a

parceria da escola com Knup Acrata, transformando o caráter pontual de uma oficina,

em um projeto de longo prazo, concebido e concretizado em parceria com a EMEF

Igarapé.

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O Cine Alastre também foi uma iniciativa que surgiu a partir da entrada do coletivo na

escola. Com ele, outra atividade voltada tanto aos alunos quanto aos pais e à

comunidade em geral foi a biblioteca comunitária e a organização de saraus dentro e

fora do horário letivo.

Conforme citamos na constelação anterior, houve o surgimento de uma nova

configuração de pessoas que chamamos de um “novo coletivo” e a criação da Oficina

da Palavra, expandindo o projeto de articulação para os alunos do Ensino Fundamental

I. Por último, podemos citar as reuniões semanais com os alunos do Fundamental II,

coordenadas por Knup Acrata, com o objetivo de formação de um grêmio dentro da

EMEF Igarapé.

Abaixo, ilustramos as ações da articulação expandida, incluindo apenas aquelas que

ainda não foram citadas na constelação de Alice, onde também expusemos este gráfico.

- CONSTELAÇÃO 8: VISÃO DE KNUP ACRATA A RESPEITO DA ESCOLA

E REPERCUSSÕES DA ARTICULAÇÃO NESTA

Esta constelação aborda a visão de KA a respeito da EMEF Igarapé e relata mudanças

físicas e de planejamento ocorridas na mesma e desencadeadas pelo projeto de

articulação.

Projeto Germinal

Cine Alastre

Reuniões de formação do Grêmio

“Novos Coletivos”

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Knup Acrata vê, nesta escola, uma postura diferenciada em relação às outras no que diz

respeito ao trato com os alunos. Acredita que a EMEF Igarapé busca respostas

alternativas à prática comum de expulsão. Comenta que um grupo de alunos havia sido

afastado das oficinas por bagunça e brigas. Afirma que foi uma decisão da Direção, que

retirou de todas as salas do Fundamental II os alunos que estavam atrapalhando por

causa de brigas e que estes alunos passaram a ter aula com Alice. Diante desta decisão

KA afirma que se eles estivessem em outra escola já teriam sido expulsos, mas que

nesta escola há uma tentativa de achar outras vias sem ser a expulsão.

Com relação às mudanças ocorridas na EMEF Igarapé, após um semestre do projeto de

articulação, o Espaço Cultural (sala cedida ao coletivo para promoção de encontros e

eventos com outros coletivos e a comunidade),89 que ficava no segundo andar da escola,

foi transferido para o térreo. Segundo KA esta decisão foi tomada como medida de

precaução, pelo fato do pessoal de fora acabar entrando muito na escola e, com isso,

estavam com medo de sumir coisas das classes. A nova sala passou, assim, a ter um

acesso mais fácil em relação à portaria da escola, evitando o trânsito de pessoas de fora

nas salas de aula.

Outro ponto de mudança ou interferência no espaço escolar foi o fato de o Espaço

Cultural funcionar durante o período de férias da EMEF. Isso exigiu a necessidade de

prever uma logística própria para este período, garantindo acesso e segurança, duas

questões solicitadas por Knup Acrata ao diretor.

Por fim, uma última mudança apresentada por KA foi a reorganização das oficinas no

segundo semestre. Além da mudança específica da oficina de literatura marginal em

Projeto Germinal, novas oficinas foram acrescentadas: o professor de português deixou

de ministrar a “roda de leitura” e passou a dar oficina de italiano e outros professores

passaram a ministrar alguma oficina, o que não ocorria no primeiro semestre do projeto.

89 Segundo relato de Knup Acrata na devolutiva, o Espaço Cultural havia sido um microprojeto do projeto inicial, ligado à ocupação do cinema que acabou não dando certo.

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- CONSTELAÇÃO 9: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO

Esta constelação trata dos desafios apresentados por Knup Acrata a respeito do projeto

de articulação. Aborda as dificuldades surgidas durante o processo, expectativas que

não ocorreram e que demonstram que a articulação é um processo complexo que

envolve pessoas e grupos bastante heterogêneos e depende do posicionamento e do

nível de envolvimento de cada um deles com o projeto.

Os desafios apresentados dizem respeito tanto aos grupos parceiros da EMEF Igarapé –

instituições e coletivos – quanto à própria estrutura das oficinas e às dificuldades em

conciliar objetivos e interesses do projeto, com objetivos e interesses dos alunos.

Alguns desafios já foram citados anteriormente, como a dificuldade dos educadores do

grafite, seu cansaço em relação ao trabalho sem remuneração e a dificuldade em lidar

com os alunos, culminando com sua saída. KA conta que com o passar do tempo as

coisas foram piorando e alguns [educadores do grafite] foram embora. Ficou só um,

mas não conseguiu dar conta sozinho e também foi embora. Aliado a este desafio,

temos a dificuldade de Knup Acrata também em lidar com os alunos do grafite ao ter

que cumprir um certo planejamento e perceber que o interesse deles limitava-se à

prática de pintar os muros. Não apenas o interesse específico dos alunos parecia

dificultar a oficina de grafite, mas também questões objetivas como o cansaço deles

pelo tempo de duração da oficina, o clima quente (o fato de pintarem o muro debaixo de

um sol forte) e o fato de as oficinas acontecerem fora do horário de aula – o que gerava

um grande número de abstinências, pois os alunos iam para a casa almoçar e muitos não

retornavam para a oficina à tarde.

Um terceiro desafio vivido por Knup Acrata foi o constante adiamento da inauguração

da biblioteca comunitária da escola. KA ficou responsável pelo funcionamento da

mesma, que foi montada graças à doação de uma instituição do Rio de Janeiro. Segundo

relato, o responsável por esta instituição fazia questão de estar presente na inauguração

da biblioteca mas havia adiado 3 vezes o compromisso. Esta situação gerou um desgaste

tanto em Knup Acrata quanto nos alunos que se prepararam para um sarau na

inauguração. Diante da reclamação dos alunos a respeito do adiamento da inauguração,

KA responde que a pessoa era muito ocupada e fazia questão de estar presente, mas

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que no fundo não estava muito aí com eles. Diz que, mesmo assim, a biblioteca já

estava funcionando e que era isso o que importava. Apesar da falta de compromisso da

referida instituição, a decisão de manter a biblioteca funcionando independente da

“inauguração oficial” acabou minimizando as dificuldades da situação.

Ainda em relação ao projeto da biblioteca comunitária, Knup Acrata concorda que ela

teria o papel de levar a leitura para a comunidade, mas afirma que, por enquanto, são

mais os alunos que vêm. Ele gostaria que viessem mais pais.

Finalmente, gostaríamos de acrescentar uma situação apresentada por Knup Acrata que

não se refere diretamente ao projeto de literatura marginal mas que diz respeito a um

desafio vivido pelos coletivos e que, de alguma forma, teve influência na sua

aproximação com a EMEF Igarapé. KA refere-se ao clima tenso, violento em que

vivem, tanto pela violência vinda de fora (da polícia) ao afirmar que os caras vêm aqui,

matam muita gente e depois não entendem porque queimam pneus para evitar sua

entrada, quanto pelos conflitos internos, da própria comunidade local. Relata o

movimento dos coletivos ao invadirem o cinema abandonado e as repercussões deste

movimento, que acabou gerando conflito com o dono do imóvel. KA comenta uma

situação em que uma pessoa amiga lhe telefonou e ficou aliviada ao constatar que ele

estava vivo. Afirma que correram risco com o proprietário do cinema. De alguma

forma, foi a partir deste conflito que os coletivos se aproximaram da EMEF, ou foram

convidados a tal, sendo acolhidos por Francisco que lhes ofereceu uma sala em

substituição ao cinema. Esta situação reforça a ideia de Francisco de que a comunidade

tem conflitos e de que a escola precisa ter sabedoria para lidar com eles. Vemos que a

própria ideia de articulação entre escola e coletivos surgiu a partir de uma situação de

conflito.

6.4 Alunos

Quero nossa cidade sempre ensolarada Os meninos e o povo no poder, eu quero ver Milton Nascimento e Fernando Brant

Neste item descrevemos as constelações a respeito dos alunos da EMEF Igarapé.

Subdividimos a apresentação em dois grupos. O primeiro refere-se às constelações

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emergentes das narrativas construídas a partir das observações das oficinas de literatura

marginal e grafite, o qual denominamos Alunos nas oficinas. O segundo, às

constelações elaboradas a partir da entrevista coletiva com os alunos, que chamamos de

Alunos na entrevista. Iniciamos com as constelações dos Alunos nas oficinas.

6.4.1 Alunos nas oficinas

- CONSTELAÇÃO 1: RELAÇÃO DOS ALUNOS COM KNUP ACRATA E

EDUCADORES DO GRAFITE

Esta constelação trata da relação dos alunos com os educadores das oficinas tanto de

literatura marginal quanto de grafite. Em relação a este último, parece haver uma certa

curiosidade e admiração em relação aos educadores. O seu modo de vestir, acessórios

utilizados e gírias nas falas eram reproduzidos por eles em seus desenhos, além de

serem tema de brincadeiras com a equipe. Alguns alunos mudaram o corte de cabelo

utilizando um visual semelhante ao dos educadores.

No que diz respeito à relação com Knup Acrata, uma situação significativa ilustra o

carinho e a proximidade dos alunos com ele. Em uma das oficinas de grafite ministrada

por KA, apenas Curinga compareceu. A pesquisadora lhe perguntou onde estavam os

outros e ele explicou o paradeiro de cada um. Em seguida disse que ele teria capoeira

naquele horário, mas que resolveu ir à oficina para não deixar KA sozinho.

Outros alunos também manifestaram uma proximidade com Knup Acrata quando, ao

término das oficinas, ele anunciou que iniciariam outra oficina e perguntou quem teria

interesse em continuar. Todos manifestaram o desejo de continuar. Respondiam em tom

de brincadeira com frases do tipo: Eu não vou te abandonar; Um dia eu vou te ajudar;

Você sabe que eu te amo. Manifestaram ainda um certo receio em relação à mudança do

grupo: Mas só vai entrar maloqueiro. Isso demonstra que durante aquela oficina os

alunos criaram um vínculo com KA e que tinham receio de que a entrada de novas

pessoas atrapalhasse a qualidade das relações que se constituíram ali.

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- CONSTELAÇÃO 2: OFICINA VIVIDA

Esta constelação relata situações observadas a respeito da experiência dos alunos nas

oficinas de grafite e literatura marginal. Com relação ao grafite, percebemos que, com

exceção de alguns alunos que já haviam tido a experiência de grafitar ou que

desenhavam bem, para a maioria deles era difícil desenhar e se arriscar a fazer uma

produção própria. Ao observar uma oficina em que os educadores ensinavam a fazer o

desenho do rosto desenhando na lousa e pedindo que os alunos copiassem os traços

básicos para depois completarem com detalhes personalizados, percebemos que muitos

alunos tinham dificuldade de copiar os traços. Alguns tinham dificuldade de desenhar

uma circunferência à mão livre e pediam ajuda para a pesquisadora ou utilizavam um

material de apoio como tampas ou outros objetos redondos. A atividade de cópia

parecia gerar certa ansiedade nos alunos. Muitos faziam e refaziam várias vezes o

desenho, utilizando bastante a borracha.

Ao serem incentivados a criar a partir daqueles traços básicos colocados na lousa,

alguns alunos faziam desenhos de pessoas imitando o visual dos educadores, com

bonés, piercing etc. Pareciam captar e querer reproduzir o modo de ser daqueles

educadores enquanto representantes de um ambiente cultural específico que é o grafite.

Outros alunos não se arriscavam em uma produção própria e copiavam figuras de

revistas ou catálogos. O faziam, entretanto, de forma que os educadores não

percebessem, pois, caso contrário, seriam criticados por esta atitude e incentivados a

criarem por si só. Um dos alunos, por exemplo, pegou um folder sobre a gripe suína e

começou a copiar os personagens. Ao ser criticado por um educador respondeu que só

havia copiado uma parte e que o resto era criação sua. Quando o educador se afastava,

ele novamente pegava o folder e continuava a cópia.

As oficinas de grafite tinham duração de duas horas e ao final da primeira hora os

alunos pareciam cansados. Ficavam dispersos, alguns deitavam a cabeça sobre a

carteira, outros passeavam pela sala provocando os colegas e alguns pediam para beber

água ou ir ao banheiro.

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Nas oficinas de literatura marginal, que tinham a mesma duração que o grafite, o tempo

de duração parecia não ser um empecilho, ou seja, os alunos não demonstravam o

mesmo cansaço e dispersão presentes no grafite. Entretanto, parecia existir no princípio

a mesma dificuldade de produção presente na oficina referida, ou seja, a dificuldade de

produzir algo próprio, pessoal.

Ao trabalharem com fanzine, por exemplo, alguns utilizavam o material trazido por

Knup Acrata, copiando frases e desenhos. Outros íam além, utilizando apenas o tipo de

letra como modelo, mas escrevendo frases de criação própria. Outros, ainda, pareciam

bastante envolvidos em folhear as revistas disponibilizadas e encontrar figuras

interessantes para colarem em suas produções. Neste caso, o envolvimento com os

temas trazidos pelas revistas e o estímulo visual pareceu nortear suas produções, e não

uma reflexão anterior onde eles buscassem de forma consciente figuras que

expressassem mensagens que queriam passar – como era esperado pelo educador.

Esta situação nos faz pensar que o contato dos alunos com esse tipo de produção era

algo novo – tanto o grafite como fanzine ou poemas – e que alguns alunos sentiram a

necessidade de primeiro entrar em contato com produções prontas antes de se

arriscarem em uma produção própria. Isso pode servir de referência para os educadores,

mostrando que, apesar do grafite e da literatura marginal serem produções próprias da

cultura regional daqueles alunos, muitos não têm contato com essas produções, ou seja,

elas não são tão naturais como o são para eles, educadores. É interessante notar que o

próprio grafite, pelo qual muitos foram atraídos, foi algo difícil para os alunos e exigiu

uma certa proximidade e habilidades que alguns alunos não haviam tido oportunidade

de desenvolver: habilidades de desenho e também de manuseio de materiais como o

spray, que requer um tipo de controle motor que não exercem em seu dia-a-dia. Essa

afirmação pode ser ilustrada por uma situação vivida entre Curinga e KA quando foram

grafitar o muro de fora da escola. Curinga estava muito feliz porque utilizaria o spray

pela primeira vez. Entretanto, na prática, experimentou o quanto é difícil utilizar o spray

e acabaram substituindo este instrumento pelo “rolinho” de pintura.

Para além das habilidades – tanto de escrita como em relação ao manuseio do material

de artes –, os alunos eram desafiados a aliar suas produções aos temas discutidos nas

oficinas de literatura marginal. Como apontamos anteriormente, no caso do fanzine isto

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pareceu não ocorrer, mas tanto as pinturas dos muros quanto os poemas produzidos

refletiram as discussões ocorridas em sala.

- CONSTELAÇÃO 3: SENTIDOS, DESCOBERTAS, APRENDIZAGENS,

MUDANÇAS

Esta constelação trata das descobertas e dos novos sentidos que se abriram para os

alunos a partir das oficinas de literatura marginal. Ao término das oficinas, Knup Acrata

pediu que cada um escrevesse o que havia aprendido e gostado. Os relatos mostram que

gostaram de aprender pensando, refletindo. Alguns relataram que o bom das oficinas

foi eles poderem sentar juntos meninos e meninas.

Em relação às aprendizagens, afirmam que literatura é escrever e fazer rimas e que o

poema que eles escrevem tem um cunho político. Esta última afirmação pode ser

exemplificada pelo poema abaixo escrito pelo aluno Gérson:

“Periferia não é sinônimo de violência Por isso escrevo esse poema Pra mostrar pra família da comunidade Que seus sonhos podem se tornar realidade” Além das aprendizagens relativas à própria literatura, a partilha dos poemas produzidos

em sala ampliou a visão que tinham uns dos outros. Ao se expressarem pessoalmente

através da literatura, cada aluno revelou um pouco de si. A literatura teve o papel de

auxiliá-los na partilha pessoal, enriquecendo a oficina e a própria comunidade escolar.

Isto porque, de acordo com Edith Stein, pessoas que vivem fechadas em si mesmas, sem

partilhar seu mundo interior, não contribuem para a vida comunitária, sendo a abertura

pessoal fundamental para a inserção nesta vida. Uma menina, por exemplo, percebeu na

poesia de Baby Check um lado dele que ela não conhecia, uma sensibilidade e um modo

de ser diferente do Baby Check “bagunceiro” a que estavam acostumados em sala. Após

a leitura de seu poema, esta menina afirma para ele: Nossa você está mostrando um

outro lado seu, estou gostando. Esta reação da aluna também ilustra aquilo que Stein

afirma a respeito da palavra. Segundo a autora, “a palavra sempre desvenda a alma,

provocando uma intervenção em outras almas” (STEIN, 1999a, p. 107).

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- CONSTELAÇÃO 4: VISÃO QUE OS ALUNOS TÊM DAS EXPECTATIVAS

DA ESCOLA EM RELAÇÃO A ELES

Esta constelação descreve a percepção da pesquisadora a respeito da visão dos alunos

em relação às expectativas da escola sobre eles. Percebem que há uma expectativa de

participação nas atividades propostas e ao mesmo tempo reclamam de uma incoerência

da escola em relação a esta expectativa. Um dos alunos da oficina de literatura

marginal, por exemplo, reclamou com Knup Acrata afirmando que eles querem que a

gente se inscreva [nas oficinas], mas quando começam a oficina, logo ela acaba. Em

outras palavras, parece que este aluno se interessou e quis participar da atividade

proposta, mas a escola não percebeu este seu desejo e acabou com a atividade, ou seja,

quando é uma atividade que ele gosta, ela acaba logo, quando ele responde à

expectativa de participação porque se interessa de fato por uma atividade (no caso a

oficina de literatura marginal), a escola não percebe, não é sensível a este envolvimento

do aluno e acaba com a atividade. Parece haver um desencontro, na visão deste aluno,

entre a expectativa da escola e a sua.

Compreendem as tentativas de diálogo e as “chamadas de atenção” em relação às brigas

ou bagunças em sala como um desejo dos professores de que eles tenham uma atitude

receptiva-passiva. Uma situação observada que ilustra esta ideia ocorreu quando,

durante uma oficina de literatura marginal, dois alunos começaram a brigar e Knup

Acrata parou para conversar com eles, perguntando se eles tinham alguma ideia de

como mudar aquela situação. Diante desta questão, uma das alunas respondeu que na

próxima aula ficariam quietos, mudos e só fariam a lição.

A relação com os professores parece estar marcada pelos momentos de “chamada de

atenção”. É isso o que esperam ao serem procurados. Antes da realização da entrevista

coletiva, Alice reuniu-os na biblioteca para que a pesquisadora explicasse a entrevista e

fizesse o convite para participarem. Ao ser convocado a apresentar-se na biblioteca, um

dos alunos entrou na sala e dirigindo-se à pesquisadora perguntou: Tia eu não fiz nada,

o que eu fiz dessa vez?.

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6.4.2 Alunos na entrevista

- CONSTELAÇÃO 1: COMO VEEM KNUP ACRATA

Esta constelação descreve a visão que os alunos têm de Knup Acrata. A entrevista foi

realizada no Espaço Cultural (no início sala 12) onde ocorreram as oficinas. Ao

iniciarmos o encontro, os alunos perguntaram por KA, que estava trabalhando na sala de

computação. Surgiu a questão a respeito de sua ocupação e os próprios alunos

responderam que ele é professor. Isso mostra que para alguns alunos o papel de Knup

Acrata não estava claro e, para outros, ele era professor.

O fato de seu papel não estar claro demonstra a percepção por parte dos alunos de que

Knup Acrata ocupa um lugar “não convencional” dentro da escola, ou seja, seu papel

não é facilmente identificável como o do diretor, o dos inspetores ou professores. Por

outro lado, alguns alunos o veem como professor. Nesse caso a referência desses alunos

parece ser o contato com KA nas oficinas, onde ele efetivamente é o educador, ou

professor. Para esses alunos, a ocupação de Knup Acrata é ser professor e não um poeta

suburbano, punk ou alguém da comunidade. Professor é alguém ligado à escola,

adaptado à escola. Professor é aquele que dá aula e isso aponta para dois sentidos

diferentes em relação à articulação: em primeiro lugar, pode apontar para o fato de os

alunos ignorarem a dimensão da articulação deste projeto, vendo KA apenas como mais

um professor da escola; e por outro, pode apontar para o tipo de relação que eles

estabeleceram com Knup Acrata. Nesse caso vê-lo como professor não significa

simplesmente identificá-lo como mais um professor e mais uma aula na escola, mas

como alguém importante, de referência para eles. Professor é alguém próximo, que faz

parte da comunidade escolar, da realidade dos alunos, diferente de alguém distante,

estrangeiro a este ambiente.

Ao final da entrevista, ao explicar para os alunos o significado de pseudônimo e pedir

que eles escolhessem um nome diferente para ser utilizado na presente pesquisa, Baby

Check lembra que Knup Acrata é conhecido mais por seu pseudônimo que por seu

nome próprio, que muitos não sabiam qual era. Além disso, tanto Baby Check como

Aline Knup Acrata buscaram um nome que tivesse alguma ligação com o contexto da

oficina. Baby Check, embora tenha escolhido esse pseudônimo, no início pediu ajuda

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para escolher um nome que significasse rua ou periferia. Já Aline Knup Acrata utilizou

um nome que fazia parte do contexto anarcopunk do educador.

Estes exemplos nos mostram novamente a proximidade dos alunos com KA e a relação

que eles fizeram da figura de escritor com o educador e com o contexto da oficina.

Como afirma Edith Stein, o nome traz uma forte marca pessoal, que expressa a

singularidade da pessoa. Ao se referir a alguém pelo nome, a pessoa sai do anonimato

da massa para aparecer inteira. O fato desses alunos quererem ser chamados por nomes

que fizessem referência a Knup Acrata, ou que expressassem o conteúdo discutido nas

oficinas, mostra a forte ligação contruída entre eles e KA, e o reconhecimento de

pertença a um grupo significativo para eles, um grupo que podemos chamar, pela

qualidade das relações aqui reveladas, de uma comunidade no sentido dado por Edith

Stein. Esse sentimento de pertença mostra o importante papel do educador ao qual se

refere a autora. Segundo Stein, o processo de formação conta, em primeiro lugar, com a

própria pessoa do formador, ou seja, com aquilo que ele é e vive.

Outro ponto interessante a ser ressaltado nesta constelação foi o depoimento de Nilo-vtv

e Baby Check em relação ao punk. Ao falarem do que gostaram na oficina, Nilo-vtv

conta que gostou de conhecer os amigos de Knup Acrata e Baby Check afirma: (...) eu

achava que punk era assim meio bicha, e agora eu conheci o KA, e daí eu vi que não,

que ele é legal. Mas só que, tipo assim, punk vê as coisas de um outro jeito, imagina um

outro mundo. É bom ser punk que você vai aprender mais.

Percebemos nesta fala que o convívio com Knup Acrata ampliou a visão de Baby Check

em relação ao punk. Ele partiu de uma ideia pré-concebida preconceituosa, e a

proximidade com esta realidade na pessoa de KA transformou o seu olhar. Construiu

uma nova ideia do que é ser punk a partir de características que ele reconheceu em

Knup Acrata: uma pessoa legal, que vê as coisas de um outro jeito, que imagina um

outro mundo. E, por fim, associou o ser punk ao aprender, ao afirmar que sendo punk

você aprende mais. Esta afirmação de Baby Check mostra-nos que ele captou o sentido

de ser punk para Knup Acrata. Como vimos, KA afirma, em seu poema, que o punk lhe

mostrou o conhecimento como arma para lutar contra sua situação periférica. Isso

mostra a sensibilidade e a estreita ligação de Baby Check com Knup Acrata.

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- CONSTELAÇÃO 2: RELAÇÃO ENTRE OS ALUNOS

Esta constelação mostra a relação entre os alunos percebida durante a entrevista. O

clima que dominava era de competição, de disputa entre eles na tentativa de comprovar

interesse e participação nas oficinas. Ao relatarem alguma atividade realizada, muitas

vezes o assunto era desviado para uma discussão a respeito da presença de cada um

naquela atividade. Curinga, que havia sido bastante assíduo, por exemplo, relatava as

atividades citando o nome dos participantes. Com isso, enfatizava a ausência dos outros

que se manifestavam defendendo sua participação. Isso acabava gerando bate-bocas e

desviava o tema original da conversa para a questão da frequência.

Retomando aquilo que Szymanski (2004) relata na situação de entrevista como intenção

do participante, ou seja, que o entrevistado também possui uma intenção durante a

entrevista, que deve ser levada em conta pelo entrevistador, parece-nos que, na situação

acima referida, havia uma preocupação de cada aluno (ou de alguns pelo menos) em

passar uma determinada imagem à pesquisadora. A imagem de alunos participativos,

interessados, envolvidos. Imagem esta ferida pelo relato dos colegas. Isso mostra que no

grupo dos alunos predomina uma relação de competição pela qual eu só posso ter uma

boa imagem e ser aceito se o outro for diminuído. Há sempre um por cima e um por

baixo. Essa situação remete-nos à constelação que aborda a percepção dos alunos a

respeito das expectativas da escola em relação a eles. Parece que os alunos percebem

uma expectativa de participação – que coincide de fato com a expectativa relatada por

Alice – e buscam responder a ela, não tanto com uma atitude coerente, mas oferecendo

um discurso alinhado a esta expectativa.

Uma situação que mostra essa percepção é o tom irônico com que Baby Check trata as

falas de Gerson e Aline Knup Acrata ao dizerem que procuraram a oficina porque

queriam ler e escrever. Além disso, essa situação parece agravar-se quando se trata da

relação entre gêneros. Aline Knup Acrata foi a única menina que participou da

entrevista e várias vezes quando ela se manifestava os meninos riam e faziam

provocações referindo-se a ela como “a loira do banheiro”, dizendo que um dos alunos

era seu namorado, ao que procurava defender-se, também com provocações. Ao falarem

do sarau, por exemplo, Aline interrompeu dizendo: Teve gente que não veio...,

dirigindo-se a Baby Check. Em outro momento, quando cada um falava sobre o que

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tinha gostado mais, Aline interrompeu a conversa solicitando a opinião de um dos

alunos que estava quieto. Curinga afirmou que este aluno não tinha participado muito. O

aluno continuou quieto.

- CONSTELAÇÃO 3: SENTIDOS PARA A ESCOLHA DA OFICINA

Esta constelação aborda a motivação que levou os alunos a escolherem participar da

oficina de literatura marginal. Suas falas respondem à seguinte pergunta feita na

entrevista: O que vocês queriam quando se inscreveram na oficina de literatura

marginal?

As respostas variaram de acordo com cada aluno. Alguns afirmaram que queriam treinar

a leitura, escrever poemas ou aprender outro tipo de leitura. Como exemplo, citamos a

fala de Nilo-vtv: Eu vim pra oficina de literatura marginal para aprender a ler e

aprender outros tipos de leitura também, que a gente não sabia

Pesquisadora: Que tipo de leitura?

Nilo-vtv: Literatura suburbana.

Outros alunos declararam que não estavam interessados na oficina de literatura marginal

e que se inscreveram para a oficina de grafite querendo pegar na lata. Afirmam que só

ficaram sabendo da oficina de literatura marginal depois, ou seja, como condição para

participar do grafite, deveriam participar também da oficina de literatura marginal:

Curinga: Quando anunciaram, falaram que era grafite só que ia ter oficina

de literatura marginal, entendeu? Só que o pessoal só entendeu a parte do

grafite.

Gerson: É isso mesmo que aconteceu. Aí todo mundo se inscreveu pensando

quer era só grafite.

Curinga: Tanto que na hora que a dona KNUP ACRATA (CP) passou para

poder assinar ela falou assim: ‘É grafite e oficina de literatura marginal’.

Aí quando começou tava cheio de gente, e aí foi diminuindo, não foi?

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No início da conversa a relação entre as oficinas estava confusa. Falávamos da literatura

e o grafite sempre aparecia. Quando foi proposto, por exemplo, que eles lembrassem o

que tinham feito na literatura, foi citada a atividade de grafitar o muro. No início esta

situação passou despercebida, mas a falta de clareza em relação às oficinas foi sendo

explicitada ao longo da entrevista, quando a própria pesquisadora se deu conta de que

tanto ela quanto os alunos falavam das duas indistintamente. Esta situação foi clareada

quando os alunos relataram a posição de Alice, de atrelar o grafite à literatura.

Percebemos, portanto, que, ao abordar a motivação dos alunos em relação à oficina de

literatura marginal, havia dois grupos distintos: um grupo que tinha como motivação a

própria literatura, e outro que foi “obrigado” a participar para ter atendida a sua escolha

inicial que era o grafite. Dentre estes, alguns desistiram e outros permaneceram e

acabaram gostando da oficina.

- CONSTELAÇÃO 4: NOVOS SENTIDOS SURGIDOS NA OFICINA VIVIDA

Esta constelação trata dos novos sentidos que se abriram para os alunos a partir da

experiência da oficina de literatura marginal. As falas demonstram que houve mudança

de visão em relação à periferia, ao que é ser punk90 e em relação à própria literatura.

Aprenderam também a diferença entre grafite e pichação e fizeram a experiência de

uma ação pedagógica expandida, para além da sala de aula e dos muros da escola.

Em relação à periferia, Curinga afirma que gostou da oficina pelo fato de ela abordar

esse tema e proporcionar um maior conhecimento a respeito da comunidade. Acha que a

experiência da oficina trouxe um olhar mais positivo da periferia, diferente daquilo que

eles veem no jornal, ou seja, que a periferia é lugar de bandido. A fala a seguir expressa

essa opinião:

A gente é trabalhador, a gente é sofredor sim, só que não é bandido. Alguns

fugiram um pouco do caminho, mas nem todos são assim.

90 Este tema já foi abordado na primeira constelação deste item, por isso não trataremos dele nesta constelação.

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Baby Check partilha dessa opinião e afirmou que no jornal as pessoas só mostram as

coisas ruins que acontecem ali. Ele pergunta: Uma coisa boa tipo um mercado que eles

fazem ou as escolas; tipo essa escola aqui, alguém veio filmar pra falar que tem uma

escola? E afirma: Mas alguém veio filmar um cara que morreu ali. Complementa

dizendo que do outro lado da ponte as pessoas acham que na periferia só tem

vagabundo, ladrão, mas que muitos jogadores de futebol vieram da favela, e que o fato

da televisão mostrar as coisas ruins não significa que seja a verdade.

É interessante notar que essa mudança de olhar está atrelada à própria percepção dos

alunos como moradores da periferia, como membros dessa comunidade. Antes viam a

periferia com os olhos estrangeiros dos jornalistas ou repórteres, e agora a veem como

alguém de dentro, que sabe que nem tudo é bom, mas que há coisas boas como a escola

em que estudam, pessoas trabalhadoras etc. Esse fato nos remete a Edith Stein ao falar

do papel da escola de colocar a criança em contato com a cultura e de como esse contato

faz com que ela perceba a sua inserção na sociedade, perceba que ela tem um papel na

comunidade na qual está inserida.

Esta ideia se complementa com a fala de Gerson de que eles aprenderam que podem

usar o conhecimento como arma, como reflexão para não serem enganados. Curinga

confirma ao afirmar que no livro aprendem a adquirir conhecimento para saber falar

quando estiverem perto de alguém que mora do outro lado da ponte; para mostrarem

que não são burros, que sabem o que querem. Conta que os grafites que eles fizeram no

muro da escola tinham como objetivo ajudar a mudar a visão negativa que as pessoas

têm da periferia. Um dos desenhos mostra a ideia de que a arma da periferia é o

conhecimento.91

A relação com a literatura parece ter sido transformada também. Baby Check e DGS

relataram com entusiasmo a experiência de escreverem seus próprios poemas. DGS

afirmou que no início foi difícil, mas que com o tempo foi ficando mais fácil. A

experiência de escrever, de criação, de produção pessoal parece ter aproximado os

alunos da literatura e aberto um novo campo de sentido para eles. O fato de

experimentarem que podiam escrever ampliou a visão de si, ou seja, experimentaram

91 Este desenho encontra-se em uma foto no Capítulo 5, item 5.1 Andanças.

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novas habilidades que não sabiam possuir, ou que foram adquiridas com a prática.

Escrevendo poemas, criando letras de rap, puderam se expressar. A literatura foi

experimentada como um canal de autoconhecimento e de expressão pessoal, passando a

ter sentido para esses alunos. O trecho da narrativa abaixo ilustra esta afirmação:

(Baby Check) Conta que não gostava muito de poemas, mas que aprendeu a

gostar. Conta que leu até um livro conhecido que Knup Acrata lhe havia

emprestado.

O depoimento de Baby Check de que não gostava muito de poemas, mas que aprendeu

a gostar, remete-nos ao tipo de relação que este aluno estabeleceu com a literatura. No

início não gostava, ela não era atraente como o grafite. Retomando a análise das

vivências de Stein e as dimensões da pessoa a que ela chegou por esta análise, podemos

dizer que a relação inicial de Baby Check com a literatura correspondia a uma vivência

psíquica de repulsa, antipatia e fechamento. Com o tempo, entretanto, este aluno relata

que aprendeu a gostar. Ele se abriu para a experiência de aproximação com a literatura

lendo livro e escrevendo seu próprio poema e com esta abertura houve aprendizado.

Neste sentido, podemos dizer que Baby Check foi além da relação psíquica de antipatia

e escolheu permanecer na oficina de literatura marginal e fazer a experiência proposta,

ou talvez a experiência vivida o tenha feito escolher ficar. Não sabemos a ordem dos

acontecimentos, mas podemos dizer que, em algum momento, houve uma escolha

pessoal de Baby Check e que essa decisão possibilitou um aprendizado. Este fato reflete

uma vivência espiritual de decisão e abertura em relação à literatura. Vivência esta que

acabou por transformar a própria relação psíquica de repulsa e antipatia em uma relação

prazerosa, entusiasmante. Baby Check poderia ter desistido como muitos outros alunos,

mas escolheu ficar e aprendeu a gostar.

Outra aprendizagem relatada por Nilo-vtv foi a diferença entre grafite e pichação.

Segundo ele, no grafite você aprende a fazer um tipo de letra, aprende a fazer desenho;

e pichação é você ficar lá escrevendo na casa dos outros.

E, por fim, uma questão importante foi o fato de Curinga ter percebido a dimensão mais

ampla da oficina. Relata que achou legal o fato da oficina não ter sido apenas para

eles. Conta que convidaram a comunidade para o sarau, fizeram o livro, e que até na

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internet eles estiveram. Curinga percebeu que aquela ação pedagógica não se limitava

ao tempo e lugar em que estavam com Knup Acrata na oficina, mas que se abria para a

participação da comunidade do entorno. Embora a dimensão da articulação não tenha

sido trazida explicitamente pelos alunos, este relato de Curinga mostra que ele

vivenciou essa articulação na oficina de literatura marginal e que a abertura para a

comunidade, segundo ele, foi legal.

- CONSTELAÇÃO 5: PERCURSO PESSOAL DE BABY CHECK

Esta constelação descreve o percurso de um dos alunos ao longo do projeto de

articulação com a oficina de literatura marginal. Ao relermos a narrativa da entrevista, é

possível traçar um paralelo entre a participação de Baby Check na situação de entrevista

e seu percurso nas oficinas.

Baby Check iniciou a sua participação no grupo (entrevista) de uma maneira distante e

pouco colaborativa. Afirmava que não lembrava de nada a respeito das oficinas e reagia

à fala dos colegas em tom irônico. Pediu que a pesquisadora escrevesse na lousa

“poema + poema”, como se a oficina se resumisse a isso. Discutiu com os colegas a

respeito de sua participação nas atividades tentando defender-se quando eles não

citavam o seu nome entre aqueles que estiveram presentes no sarau ou entre os que

foram mais assíduos nas oficinas. Ironizou também a reposta de dois colegas ao

afirmarem que se inscreveram na oficina de literatura buscando melhorar a leitura e

escrever poemas. Baby Check reagiu como se esses interesses fossem totalmente

alheios a ele, tão distantes de suas motivações que não caberia imaginar que algum

colega pudesse tê-los.

De fato, ao expressar sua motivação em relação ao projeto, ele contou que havia se

inscrito na oficina de grafite motivado pela vontade de pegar na lata, ou seja, de grafitar

o muro. Contou que não se inscreveu na oficina de literatura, mas que só podia ir pra

parede quem a estivesse frequentando, ou seja, a escola havia colocado a frequência na

oficina como condição para os alunos participarem do grafite. Nesse sentido, Baby

Check afirma que não teve o que esperava e que no início não ia muito na oficina de

literatura marginal.

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A partir desse momento percebemos uma mudança no envolvimento de Baby Check

com a entrevista. No início, enquanto os outros falavam, ele ficava batucando e

puxando conversas paralelas. Quando o assunto passou a ser o seu interesse pelo grafite

e a relação deste com a oficina de literatura, ele pareceu se animar. Começou a prestar

atenção às falas, entrou na conversa, contou o seu percurso e explicou o ocorrido. Essa

mesma mudança de postura de Baby Check, percebida pela pesquisadora na situação de

entrevista, ou seja, um maior envolvimento com o tema e participação nas discussões,

foi relatada por ele em relação às oficinas. Contou que não obteve o que esperava –

poder grafitar – mas que acabou gostando. No início não frequentava muito, não se

interessava, mas depois gostou dos poemas e de fazer rap. Passou a frequentar e acabou

obtendo autorização para participar do grafite.

Ao relatar esse percurso Baby Check parecia não estar mais atento aos outros colegas,

disperso ou preocupado com o que eles achavam. Seu relato pareceu sincero e

acreditamos que esse momento da entrevista foi um momento importante de reflexão

para Baby Check. Ele parou de se preocupar em se defender das acusações de não-

participação nas atividades e ele mesmo relatou que no início não participou muito.

Percebemos, com essa postura, um caminho de crescimento pessoal de Baby Check, um

caminho de formação no sentido dado por Edith Stein (1999c), pelo fato de ter acolhido

na própria alma algo que lhe fez sentido. Baby Check pareceu ter saído da dispersão de

um “olhar para fora”, e ter entrado em contato com seu núcleo, com o seu íntimo,

vivenciando uma experiência autêntica, de sentido e descoberta.

Contou que não gostava muito de poemas mas que aprendeu a gostar, que leu até um

livro que Knup Acrata lhe havia emprestado. Pareceu ter experimentado com a

produção de seu próprio poema, um contato consigo mesmo e novas possibilidades de

seu ser: Eu escrevi assim: eu sou eu, eu sou desse jeito, não adianta querer me mudar

porque eu sou assim. Você vai se abrindo, você flutua, você viaja na maionese. Em

seguida, relatou animado como a rima ia saindo, como foi ficando fácil fazer rima.

Contou que KA ia pedindo que ele falasse uma palavra e depois outra que rimasse com

aquela, e outra, e que assim foi aprendendo.

Participou também da discussão a respeito da mudança de olhar em relação à periferia,

afirmando que as “pessoas vêm filmar alguém que morreu mas não filmam uma coisa

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boa” como um mercado ou a própria escola que é nova no bairro. Baby Check pareceu

ter vivenciado uma mudança interna, descoberto novos sentidos em relação à literatura,

ao ser punk e à própria periferia. Com isso, podemos dizer que a sua participação na

oficina de literatura marginal e, portanto, no projeto de articulação foi uma experiência

formadora.

6.5 Professora de artes

- CONSTELAÇÃO 1: RELAÇÃO COM OS ALUNOS

Esta constelação aborda a visão da professora de artes do Ensino Fundamental II a

respeito dos alunos, e sua relação com eles. A conversa com a professora ocorreu no

final do segundo semestre e, após refletir a respeito do primeiro ano da escola, afirmou

que de um modo geral os alunos estavam bem melhores do que no começo do ano,

quando conversavam se batendo. Apesar desta mudança, acredita – da mesma forma

que o professor de português – que existe um grupo de alunos que não têm jeito, e que

estes são os alunos que foram retirados das suas salas e que estão [tendo aula] com

Alice.

Contou que os alunos vêm para a aula de artes querendo fazer as coisas, ou seja, são

participativos e respeitam os combinados feitos no início do ano, de que na sua aula não

teria agressão e nem palavrões.

- CONSTELAÇÃO 2: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO – ARTICULAÇÃO

INTERNA DA EMEF

Esta constelação trata da visão da professora de artes a respeito da articulação entre as

oficinas. A professora afirmou não conhecer a proposta da oficina de literatura marginal

e de grafite e alegou que esta distância do projeto de articulação deve-se à falta de

tempo. Relatou que eles não têm tempo para conversar. Cada um prepara a sua oficina

e ela planejou bastante a dela em conjunto com as outras duas professoras que

participam. Há, portanto, uma integração dentro da oficina, mas um não sabe da

oficina do outro pela falta de tempo.

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6.6 Professor de português

- CONSTELAÇÃO 1: VISÃO DOS ALUNOS

Esta constelação descreve a visão do professor de português do Ensino Fundamental II

da EMEF Igarapé a respeito dos alunos.

Afirma que os alunos mais velhos [da EMEF Igarapé] vieram todos expulsos de outras

escolas e que não têm jeito. Acredita que o trabalho da EMEF poderá ter uma

repercussão nos alunos mais novos, na turma que hoje está no 5º ano, porque ficarão

mais tempo na escola. Complementa dizendo que sempre trabalhou em escola pública e

que percebe uma piora dos alunos a cada ano. Afirma que estão cada vez mais sem

limites, que é uma geração da informática que não tem paciência para nada. Uma

geração muito superficial, que não consegue sentar, parar para ler um texto.

Ao ser questionado a respeito do trabalho na sua “oficina de literatura marginal”, conta

que havia planejado uma série de atividades dinâmicas como dramatização, mas que a

turma não era como ele imaginava, e por isso, acabou ficando só na leitura de textos.

- CONSTELAÇÃO 2: DESAFIOS DA ARTICULAÇÃO

Esta constelação aborda a visão do professor de português a respeito da possibilidade de

articulação entre a sua oficina e a de literatura marginal. Conta que conheceu a oficina e

que pensaram em trabalhar juntos, mas depois viram que eram propostas diferentes.

Afirma que eles [educadores das oficinas] não tinham as mesmas preocupações de um

professor de português, como corrigir a parte gramatical por exemplo. A proposta da

oficina era trabalhar com a literatura da periferia, uma coisa mais livre.

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- CONSTELAÇÃO 3: MUDANÇA PERCEBIDA COM ARTICULAÇÃO

Esta constelação aborda a percepção do professor de português a respeito da

repercussão do projeto de articulação nos alunos da EMEF. Ao ser questionado se havia

observado alguma mudança de atitude ou de envolvimento com a sua disciplina por

parte dos alunos que frequentavam a oficina de literatura marginal, o professor responde

que não observou diferença nenhuma e que é difícil você dizer se há mudança, e se essa

mudança foi por causa da oficina. Afirma que eles têm também atividades na sala de

leitura e que é um conjunto de fatores que influenciam.

Ao falar de cada aluno, reafirma a ideia de que não houve mudança, ou seja, quem

bagunçava continuou a bagunçar e quem já era bom aluno continuou da mesma forma.

Ao refletir a respeito do papel que a escola poderia ter na formação destes alunos, o

professor afirma que mudanças não acontecem rápido, que leva anos, o que significa

que um semestre de oficinas ou um ano de escola (como era o caso da EMEF Igarapé)

não seriam suficientes para que o trabalho tivesse alguma repercussão positiva.

Por outro lado, reconheceu uma mudança de atitude em relação à leitura por parte das

meninas. Afirma que de um modo geral as meninas, principalmente as meninas, estão

mais interessadas na leitura. Acha que a biblioteca [comunitária] está contribuindo

para isso. Gostam de ler romances, estão sempre levando e trazendo livros.

6.7 Coletivos

Se o poeta é o que sonha o que vai ser real Bom sonhar coisas boas que o homem faz E esperar pelos frutos no quintal Milton Nascimento e Fernando Brant

As constelações referentes aos coletivos da região foram tecidas a partir de relatos de

Knup Acrata, de produções literárias, de um documentário que reúne depoimentos de

vários membros de diferentes coletivos, e de uma discussão ocorrida com alguns deles

após a exibição do documentário, em uma sessão do Cine Alastre.

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- CONSTELAÇÃO 1: SENTIDO DOS COLETIVOS

Esta constelação aborda o sentido da existência dos coletivos desvelado a partir da

análise de diferentes produções dos mesmos. Reúne relatos de seus membros

apresentados no documentário acima referido e trechos de poemas que abordam sua

visão da realidade, seus objetivos, enfim, aquilo que os une e os motiva a agir em

conjunto.

Os coletivos são formados por pessoas que acreditam que podem mudar a realidade do

bairro onde moram, pessoas que, com suas iniciativas, ocupam os “espaços vazios”

gerados pelas carências locais. Essa percepção dos coletivos como uma força positiva

na região pode ser exemplificada pelo relato das pessoas que produziram o

documentário. Contam que a ideia inicial era documentar aquilo que falta no bairro,

mas que depois perceberam que tinham uma riqueza e resolveram falar dela, ou seja,

das iniciativas dos coletivos.

Segundo relato do documentário, os coletivos se organizam para arquitetar um amanhã

menos pior que o de hoje. Querem evitar que as crianças passem por coisas ruins que

eles já passaram e acreditam que o caminho para isso é a busca do conhecimento.

Segundo Knup Acrata,92 o conhecimento é uma ferramenta para quebrar o ciclo de

alienação e apatia que faz a periferia existir. No documentário afirmam que a cultura

pode transformar o social, deixar o social amplo. A frase seguinte, que é parte do

manifesto do coletivo que trabalha com literatura marginal, ilustra claramente esta ideia:

Agora o armamento é o conhecimento, a munição é o livro e os disparos vêm das letras.

Aliás, este foi o trecho escolhido por Knup Acrata para ser colocado no muro da EMEF

Igarapé.

Produzir e divulgar a cultura periférica é o principal objetivo dos coletivos. Querem

fazer a cultura crescer dentro do bairro para transformar as pessoas, o social. Sendo

assim, os coletivos fazem uma ligação direta entre a transformação das pessoas e a

transformação social, ilustrando a ideia de Stein e também de Berger e Luckmann, de

92 Em relato na devolutiva desta análise.

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que o desenvolvimento social começa pela pessoa, pelos sentidos partilhados entre elas

nas suas comunidades de vida.

Acreditam que suas ações, por mais modestas que sejam, têm uma influência e com isso

podem gerar transformação. O que os motiva é a possibilidade de construir o futuro

juntos. Neste sentido, a coletividade, a noção de grupo parece ser um elemento

fundamental para a concretização de seus ideais. Uma frase tirada de um outro vídeo

postado no youtube por um dos coletivos ligado ao movimento anarcopunk ilustra esta

ideia: Unidos teremos força, separados, apenas pontos de vista. Esta ideia também

concorda com a visão de Stein, da importância da vida comunitária para o

desenvolvimento das pessoas e da sociedade.

Querem construir o futuro com as pessoas que nos cercam, gerando incômodo naqueles

que estão passivos para que eles também ajudem, pois acreditam no potencial de cada

um e na ação mobilizadora de seu trabalho. Quem tá vivo tem um potencial pra

despertar e construir junto.

Há um poema93 em que esta ideia se manifesta ao dizer que é lindo ver a força do povo,

mas que esta força não é mobilizada sozinha porque os corações estão vazios. O poeta

critica a passividade das pessoas cujas ações solidárias só brotam diante de grandes

tragédias ou do apelo da mídia que dita aquilo que deve ser feito. O poeta pergunta:

quantos cataclismas, quantas tragédias são necessárias para fazer brotar a caridade,

empoeirada compaixão de nossos dias? Para fazer que em nosso peito desperte a

vontade própria de dar sem receber? Este parece ser um dos sentidos dos coletivos, ou

seja, gerar incômodo para despertar aqueles cujos corações estão vazios, aqueles que

estão adormecidos, anestesiados, sem vontade própria e que precisam de alguém para

ditar-lhes o que fazer. Com sua ação, os coletivos parecem querer despertar a vontade

própria das pessoas mobilizando-as para tornarem-se com eles, agentes de

transformação social ou, utilizando a expressão de Knup Acrata, descobrirem-se como

seres políticos, como parte da sociedade.

93 Parte deste poema encontra-se no Capítulo 5, item 5.1.

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Esta ideia explicita uma crítica à falta de solidariedade, ao fechamento das pessoas e,

em última análise, à falta de relações comunitárias no sentido steiniano do termo.

Aponta para a importância de despertar os sujeitos do comodismo de viver segundo os

parâmetros externos dos meios de comunicação de massa. Lembrando Edith Stein, os

coletivos parecem dar voz ao apelo de romper com as relações massificadas e mostrar

às pessoas a fecundidade das relações comunitárias de solidariedade, de se deixar afetar

pelo outro, de acordar para uma vivência fundamental para a intersubjetividade, descrita

por Edith Stein: a empatia. O poeta diz: É lindo ver a força do povo. Podemos nos

perguntar: quem é o povo? Na visão de Stein, o povo é uma comunidade constituída

principalmente pelos vínculos espirituais. Uma comunidade que tem sua força

justamente no grau de envolvimento de cada pessoa. E lindo ver esta força, que, no

entanto, parece estar adormecida.

Há também um ideal de promoção de paz, de respeito à diversidade e de possibilidade

de diálogo. Enfim, como afirmamos, um ideal de relações comunitárias, em que não

querem ver a massificação acabando com a singularidade. Querem unir a diversidade,

reconhecem que ninguém é igual a ninguém e afirmam que a única igualdade que

querem é a social.

- CONSTELAÇÃO 2: SENTIDO DA ARTICULAÇÃO ENTRE OS

COLETIVOS E DA ARTICULAÇÃO DESTES COM A EMEF IGARAPÉ

Esta constelação aborda o histórico dos coletivos e o sentido da sua articulação com a

EMEF. Os coletivos existem na região há mais ou menos três anos (variando conforme

o grupo), e cada um deles agia de forma individual, partindo de uma atividade cultural

específica (música, dança, literatura etc.). Em 2007, um dos coletivos que trabalha com

literatura periférica começou a promover um sarau semanal em um bar da região.

Segundo Knup Acrata,94 pessoas de diferentes coletivos começaram a se encontrar no

sarau e isso fez com que surgisse a vontade de fazerem algo em conjunto, ou seja, a

vontade de se articularem enquanto coletivos. Para KA, o sarau foi como uma esquina

onde os coletivos se conheceram e quiseram se articular. Segundo relato abaixo,

presente no documentário citado na constelação anterior, o sarau foi uma primeira

94 Em relato durante a devolutiva desta análise.

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iniciativa que despertou nos jovens fé e entusiasmo para fazerem algo juntos,

acreditando no poder transformador de pequenas ações.

Está ocorrendo um movimento espontâneo, rápido. Começou a partir do

sarau. O sarau despertou uma galera para ver que, se a gente quiser fazer,

transformar, a gente pode sim.

O sarau despertou entusiasmo; de acordo com Stein, o encontro entre os vários coletivos

promoveu uma passagem de força vital de uma comunidade a outra, animou os jovens,

despertou ideias. Um movimento descobriu outros e isso mostrou a força de pequenas

ações. As pessoas se colocaram em movimento e movimentaram o entorno. Este fato

mostra a repercussão de suas ações (no caso o sarau), assim como a articulação tem uma

repercussão e uma capilaridade enorme. É interessante notar como o encontro no sarau

os mobilizou e os fez querer trabalhar juntos, buscando o ponto de convergência dentro

de uma gama enorme de atividades culturais. Podemos dizer que o encontro promoveu a

formação de uma nova comunidade no sentido steiniano, formada pelos vários

coletivos. Não foram todos fazer sarau ou trabalhar com literatura periférica, mas cada

um continuou com suas atividades, ou seja, cada coletivo trouxe um colorido particular

(invólucro) à vivência do núcleo de sentido comum. Houve espaço para a singularidade

e dentro da diversidade procuraram se apoiar na essência que os unia, no núcleo de

sentido que comungavam: a transformação social. Em relato no mesmo documentário

anteriormente citado, afirmam que são vários coletivos e o que os une é a autogestão e

a paixão pelo que fazem. Além da transformação social, a articulação entre os coletivos

acontece a partir desses dois outros pontos comuns: autogestão e paixão pelo que fazem.

Segundo Knup Acrata, em 2008 surgiu a ideia dos coletivos terem um espaço comum e

esta ideia coincidiu com a vontade que tinham de transformar um cinema abandonado

há 15 anos na região em um local de cultura. KA conta que o cinema possuía várias

salas e que a ideia era que cada coletivo tivesse como sede uma sala. Chegaram a

ocupar o local; entretanto, relata que o projeto não deu certo porque o proprietário

apareceu e entrou na Justiça contra eles.

O contato dos coletivos com a EMEF Igarapé se deu justamente no momento em as

dificuldades com a ocupação do cinema surgiram. O diretor da escola, sabendo desta

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situação, ofereceu-lhes uma sala onde poderiam se encontrar. Neste sentido, o Espaço

Cultural na EMEF Igarapé significava uma possibilidade de “sede” desta articulação,

um ponto de encontro que seria, segundo Knup Acrata, um microprojeto do projeto do

cinema. Microprojeto porque não haveria espaço para sediar todos os coletivos. Sendo

assim, tinham a intenção de formar uma equipe gestora do espaço com integrantes de

diferentes coletivos.95 A fala, a seguir, retirada do mesmo documentário, ilustra o

sentido da articulação com a EMEF Igarapé para os coletivos:

Agora as coisas estão acontecendo com o próprio espaço que vocês estão

organizando [o Espaço Cultural – sala cedida pela EMEF Igarapé], com a

biblioteca [biblioteca comunitária que funciona no Espaço Cultural], com a

ocupação do cinema, dos espaços públicos.

Este contexto nos permite afirmar que o projeto de articulação entre comunidade e

EMEF a partir da oficina de literatura marginal estava inserido em uma articulação mais

ampla que não envolvia apenas o coletivo de Knup Acrata, mas vários coletivos do

bairro, que começaram a trabalhar juntos um pouco antes da chegada da EMEF Igarapé

na região. A sala 12 surgiu como uma resposta ao anseio de articulação destes coletivos,

que passaram a ter um lugar comum para se encontrar, trocar, partilhar, criar juntos.

Uma situação que ilustra esta percepção ocorreu durante a discussão a respeito do

documentário, quando um dos pontos levantados pelos jovens foi a necessidade de

maior comunicação entre os coletivos na hora de montar suas agendas. Constataram que

muitas vezes ocorrem vários eventos ao mesmo tempo e as pessoas não comparecem. A

sala cedida pela EMEF Igarapé e o projeto de articulação com a mesma representavam,

portanto, a possibilidade não apenas de articulação da EMEF com o coletivo de KA

como pensamos no início, mas a possibilidade de concretização de um anseio de maior

articulação entre os vários coletivos.

95 Vimos em outros relatos, entretanto, que este projeto não ocorreu. Segundo KA, na prática ele cuidou do espaço com a ajuda de mais duas pessoas e acabou sendo uma porta para os coletivos entrarem na escola, mas o espaço acabou ficando sob sua responsabilidade.

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- CONSTELAÇÃO 3: VISÃO DA PERIFERIA

A presente constelação aborda a visão da periferia apresentada pelos coletivos. O

gueto96 periférico como alguns denominam em seus poemas é um lugar isolado onde as

pessoas são esquecidas, onde não se pode esperar auxílio de fora, do governo ou de

outras instituições porque aqui [na periferia] do céu só cai chuva. Neste sentido os

próprios moradores locais têm que fazer algo para melhorar suas condições de vida. Daí

o sentido dos coletivos, ou seja, fazendo juntos conseguirão a transformação. Não

podem esperar de braços cruzados, precisam se unir para transformar com a força do

fazer.

Em relação à cultura local, alguns acreditam que na periferia existem muitos artistas,

mas eles não têm um local para se encontrarem e para desenvolverem seus talentos.

Outros acham que há espaço na periferia, mas não tem captação. Com isso, as pessoas

acabam indo trabalhar em outros locais e isso faz com que as pessoas se separem, o que

dispersa o coletivo. Por fim, uma terceira visão é a de que existe um estigma que

população da periferia não gosta de arte, mas as pessoas gostam, só que não têm

oportunidade.

Vemos, portanto, que, mesmo variando a visão daquilo que a periferia possui ou carece,

a ideia de isolamento e falta de acesso a bens culturais e financeiros é comum. A visão

dos coletivo a respeito da periferia converge com o significado da palavra. A periferia

existe em função de um centro ao qual ela está à margem. Periferia é a extremidade, a

margem que delimita os contornos da cidade. É a região mais afastada do centro

urbano, em geral carente em infraestrutura e serviços urbanos, e que abriga os setores

de baixa renda da população (FERREIRA, 2009, p. 1538).

Com suas produções, os coletivos buscam dar vez e voz aos moradores do gueto

periférico, criando um novo Centro Cultural que desloca a visão centralizada da grande

cidade, um olhar descentralizador. Traz um novo olhar da periferia; não mais como

96 Gueto era o bairro onde os judeus eram forçados a morar, em certas cidades europeias. Significa também o lugar onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais (Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa, 4ª edição. Curitiba: Ed. Positivo, 2009; p.1015).

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periferia da grande cidade, mas como comunidade autônoma, com um centro e uma

cultura própria.

Passamos a seguir para a discussão da articulação, buscando integrar as várias análises

desenvolvidas neste capítulo.

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7. UMA VISÃO INTEGRADA DOS PARTICIPANTES: DISCUSSÃO DA ARTICULAÇÃO

Neste capítulo buscamos apresentar uma visão global do projeto sem perder de vista os

movimentos pessoais que o compõem. Discutimos pontos convergentes e divergentes

que teceram o percurso dos participantes, dando origem à grande trama que chamamos

articulação.

A fim de proporcionar ao leitor uma melhor compreensão da discussão, retomamos que

a visão de articulação que permeou o nosso olhar nesta pesquisa foi a articulação como

um encontro entre duas comunidades – no sentido que Edith Stein dá a este termo –, que

se uniram para a construção de um projeto comum com foco na educação.

Complementando esta visão, tomamos como referência a definição de ação de

articulação construída pelos participantes do Projeto Articulação e Diálogo durante um

dos seus encontros mensais realizado em agosto de 2009. Nessa ocasião, os

participantes definiram a ação de articulação da seguinte maneira:

Encontro dialógico entre pessoas que compartilham objetivos comuns, para construção de conhecimento com a participação de representantes de idades, gênero, escolaridade, experiências, origens diferentes, envolvendo a criação de vínculos entre protagonistas e compartilhamento de responsabilidade entre eles. Essas ações resultam em ganhos para todos os que dela participam e um sentimento de satisfação pessoal.97

Guiados por esta visão, construída pelos próprios participantes do projeto a partir de sua

experiência enquanto membros da articulação, e tendo como base as análises

individuais apresentadas no capítulo anterior, construímos quatro grandes constelações

divididas em 4 subitens deste capítulo: 7.1 Sentidos desvelados, 7.2 O vivido, 7.3

Desafios e 7.4 Repercussões.

Passaremos a seguir à apresentação de cada constelação.

97 Retirado do registro do encontro realizado por membros do Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional à Família, Escola e Comunidade (ECOFAM) do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP, que coordena o Projeto Articulação e Diálogo.

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7.1 Sentidos desvelados

Esta constelação discute os sentidos desvelados a respeito do projeto de articulação para

os seus participantes. Discute de forma relacional as motivações e expectativas que

colocaram cada um em movimento.

Para Francisco, o projeto é compreendido como uma consequência natural de seu modo

de ser e de sua história de vida, tanto no que diz respeito à abertura para a comunidade

quanto em relação à literatura. O que o motiva é a construção de uma escola humanista

e a crença de que a concretização deste ideal passa pela incorporação da experiência

com a comunidade ao currículo escolar.

Alice teve uma convivência diária bastante próxima de Knup Acrata e parece ter

captado, nessa convivência, os princípios essenciais que o movem. As discussões com

ele a respeito das oficinas de literatura marginal, a convivência na montagem da

biblioteca comunitária e sua presença nos saraus a fizeram experimentar a força vital

desta comunidade e a encontrar em Knup Acrata e nos coletivos o sentido que ela

gostaria de dar à escola. Acredita que a escola deveria ajudar os alunos a descobrirem o

que gostam, a se interessaram pelo conhecimento, terem paixão pelo que fazem. Esta

visão concorda com a ideia de Edith Stein a respeito da formação e do papel do

educador, quando afirma que este deveria auxiliar o educando a viver a partir de sua

alma. Ajudar os alunos a se conhecerem e responderem de forma pessoal ao material

que lhe é apresentado.

Alice compreende que há uma visão de pessoa comum entre os coletivos e a EMEF

Igarapé, e isso indica um ponto de convergência fundamental para a possibilidade de

articulação já que, para Stein, os objetivos e meios da educação são traçados a partir da

visão de mundo e de pessoa do educador. Segundo a coordenadora pedagógica, tanto a

EMEF Igarapé como os coletivos buscam despertar nos alunos a consciência de si como

ser histórico, inserido em uma sociedade e em um determinado sistema econômico.

Podemos dizer, na linguagem de Edith Stein, que esta visão da tarefa educativa seria um

núcleo de sentido comum em torno do qual os membros do projeto de articulação

partilham uma vivência comunitária.

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Sendo assim, enquanto para Francisco o sentido do projeto se enraiza no passado, em

sua história de vida, para Alice ele parece ter sido despertado no próprio contato com

Knup Acrata e os coletivos, vistos como uma possibilidade de resposta às suas

expectativas em relação ao papel da escola e ao tipo de experiência que gostaria de

proporcionar aos alunos.

A visão de Alice a respeito dos coletivos converge, de fato, com o sentido da existência

desses grupos. De acordo com os relatos de KA e do material produzido pelos coletivos,

entendemos que eles buscam despertar as pessoas da periferia que estão passivas ou

alienadas de sua situação social. Querem ajudar essas pessoas a se descobrirem como

seres políticos, como parte da sociedade. Acreditam que, a partir dessa consciência,

poderão ajudar a transformar a realidade do bairro onde estão inseridos, expressando

suas ideias através de diferentes formas culturais. Alice reconhece esse objetivo ao

afirmar que trabalham uma literatura com consciência política, levando os alunos à

seguinte reflexão: O que sou na comunidade?.

Vemos, portanto, que há uma busca comum de fazer os alunos se perceberem como

parte da comunidade. Tanto a EMEF Igarapé quanto os coletivos querem que eles

tenham um envolvimento maior na vida comunitária, que sejam, de acordo com Edith

Stein, membros com um grau de participação maior na vida da comunidade. Membros

que se sintam parte desta comunidade e, consequentemente, deem sua contribuição

pessoal para a vida comunitária. Este parece ser um dos objetivos da formação de

acordo com a autora, já que ela não separa a tarefa educativa individual da comunitária.

Como vimos no item 2.4 Formação, ao abordar este tema, RUS (2006) afirma que o

sentimento de pertença que integra o sujeito em uma comunidade humana se constrói

progressivamente, em conjunto com a sua constituição individual. Afirma que, para

Stein, a escola tem a missão de transmitir a cultura aos educandos e que esta

transmissão é determinante para que ele possa colocar seu ser e suas competências a

serviço da comunidade.

Esse mesmo objetivo parece ter sido ampliado por Alice na convivência com Knup

Acrata. Ao perceber seu grau de envolvimento com a EMEF para além da proposta das

oficinas, ela vislumbrou em KA a possibilidade de despertar a consciência dos alunos

não apenas para sua pertença ao bairro e à sociedade mais ampla, mas para a sua

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pertença à própria comunidade escolar. Seguindo o princípio de Stein de que o melhor

recurso educacional não é a palavra docente mas o exemplo vivo, Alice viu em KA

características pessoais que ela acredita serem importantes para a formação dos alunos.

Dentre elas, destacamos o envolvimento com a escola e a paixão pela literatura. Como

educador, KA poderia contribuir para aumentar o grau de envolvimento dos alunos com

a comunidade escolar e com o próprio conhecimento, auxiliando para um aumento da

força vital desta comunidade. Esta visão converge com as ideias de Blank, Johnson e

Shah (2003), para quem a escola pode utilizar a parceria com a comunidade como

recurso para um maior engajamento dos estudantes com o conhecimento e com o

serviço.

Knup Acrata comunga dos objetivos acima citados. É movido pela vontade de

transformação da visão dos alunos a respeito da periferia e pela vontade de despertar

neles o gosto pela literatura. Quer vê-los produzindo seus próprios poemas. Além disso,

tanto para Knup Acrata como para os coletivos, o projeto de articulação tem um sentido

anterior e próprio que é o de responder à necessidade de maior integração entre eles. A

sala cedida pela EMEF Igarapé foi projetada como um Espaço Cultural coordenado por

representantes de diferentes coletivos. Neste sentido, o projeto de articulação respondia

a um anseio de maior articulação também entre os coletivos.

Apesar de diferentes nuances ligadas ao contexto pessoal de cada participante,

percebemos que há alguns sentidos comuns profundos que os unem: a luta pela

humanização, a vontade de transformação social pelo conhecimento (pela cultura, pela

educação); e a compreensão da literatura como um dos caminhos para isso. Além disso,

a ideia de que essa transformação é possível pela articulação, ou seja, a ideia de que o

grupo, o coletivo, a articulação, enfim, a união entre as pessoas em torno de um sentido

comum é um fator que os fortalece. Retomando nossa visão da articulação como a

possibilidade de formação de uma ou mais comunidades (no sentido steiniano do termo)

a partir do encontro das comunidades EMEF Igarapé e coletivos, poderíamos dizer que

os fatores acima compõem o núcleo de sentido comum em torno do qual a vivência da

articulação de cada participante poderia ser compreendida como uma vivência

comunitária e não simplesmente pessoal.

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Essa trama de sentidos que se entrecruzam no projeto de articulação parece não ter sido

compartilhada desde o início pelos alunos e pelos professores. Em seus relatos vemos

uma percepção de situações isoladas que envolvem o projeto. Situações em que sua

participação foi solicitada, como por exemplo, a participação dos alunos nas oficinas de

literatura marginal, e a tentativa de integrar essas oficinas ao trabalho desenvolvido pelo

professor de português. Sendo assim, o sentido do projeto para esses dois grupos parece

estar relacionado a essas situações específicas, não havendo a mesma consciência e

amplitude de sentido partilhado pelos gestores da comunidade à qual pertencem: a

comunidade escolar (diretor e CP).

Para a maioria dos alunos, a inscrição na primeira oficina de literatura marginal teve

como principal objetivo o contato com o grafite. Eles pouco sabiam a respeito dos

educadores e dos objetivos da oficina. Apesar disso, o grafite era um sentido comum

partilhado com os outros participantes do projeto. Podemos dizer, no caso dos alunos,

que eles partilharam os sentidos da articulação não pela comunicação dos gestores, mas

ao fazerem as experiência das oficinas.

Em relação aos professores, embora alguns tenham tido um contato maior com Knup

Acrata e tenham feito parcerias em alguns projetos de sala (de acordo com relato de

Knup Acrata), tanto para o professor de português quanto para a professora de artes, as

oficinas eram algo distante do qual não participavam. Na visão da professora de artes,

esta distância devia-se à falta de tempo. Já para o professor de português, a distância

estava relacionada a sua compreensão a respeito dos contextos escolar e comunitário.

Para ele, o fato de a oficina abordar literatura periférica a distanciava de seus objetivos

escolares, como por exemplo, a preocupação com correções gramaticais.

7.2 O vivido

Esta constelação trata de relatos e observações da experiência vivida dos participantes

do projeto. Ela diferencia-se da constelação anterior por abordar o projeto de articulação

não do ponto de vista dos ideais, expectativas ou motivações dos participantes, mas do

ponto de vista prático, possibilitando a análise das ações cotidianas e das tomadas de

posição dos participantes no dia-a-dia da escola.

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Um aspecto importante da articulação se desvelou a partir do relato de Francisco a

respeito de uma situação vivida por ele como coordenador pedagógico em outra escola

municipal. A tentativa frustrada de abrir as portas da escola para a comunidade do

entorno o fez perceber a importância da adesão da Direção ao projeto. Sem vontade

política do diretor, a articulação não seria possível. Por outro lado, embora a adesão do

diretor ao projeto seja um aspecto fundamental, dificilmente ele conseguiria sustentá-lo

sozinho. Esta também é a visão de Stein ao apontar que existem comunidades

sustentadas por um único líder, mas que esta realidade não se mantém por muito tempo

porque a união entre as pessoas acaba acontecendo de forma externa, ou seja, não há um

envolvimento a partir de seu núcleo (não estão inteiros na vida comunitária) e, com isso,

a comunidade tende a se dissolver. Nesta mesma lógica, a autora afirma que, quanto

maior for o número de sustentadores de uma comunidade e quanto mais participativa é a

sua dedicação, tanto mais consistente ela será e mais confiável o seu modo de se

apresentar ao exterior. O próprio diretor reconhece o papel fundamental de uma equipe

articulada, aberta e flexível para lidar com os desafios que esse tipo de projeto exige – e

que serão discutidos na próxima constelação. Em seu relato, Francisco cita como havia

sido fundamental o envolvimento de toda a equipe gestora, cada um sustentando o

projeto com seu papel específico. Reconheceu concretamente as contribuições de Alice

e da auxiliar de administração, por possibilitarem a concretização da articulação no dia-

a-dia, através do cuidado com detalhes que muitas vezes não enxergamos olhando de

fora.

De fato, uma das preocupações de Francisco, partilhada em nosso primeiro contato, foi

a de que a importância da abertura da escola para a comunidade fosse algo pessoal, não

compartilhado pelos outros membros da EMEF Igarapé. Como vimos anteriormente,

esta visão estava atrelada à sua história de vida e a um ideal político-educacional que ele

trouxe consigo para a escola. Com isso, podemos dizer que o diretor foi o idealizador-

responsável pelo início da articulação na EMEF, possibilitada pelo apoio e adesão de

outros membros da equipe.

Por outro lado, vemos que o projeto se concretizou não apenas por uma mobilização da

EMEF Igarapé, mas pelo sentido que ele teve para os coletivos e principalmente pela

adesão-sustentação de Knup Acrata. A sua disponibilidade em cuidar do Espaço

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Cultural, permanecendo longo tempo na escola, e o cuidado percebido na relação com

os alunos parecem ter sido dois fatores fundamentais para o percurso da articulação,

tanto do ponto de vista dos coletivos como da EMEF. No primeiro caso, vimos que um

dos sentidos em relação ao projeto era a criação de um Espaço Cultural gerido de forma

conjunta por representantes de diferentes coletivos. Entretanto, segundo relato de Knup

Acrata, na prática os coletivos não assumiram o espaço por falta de tempo e

disponibilidade das pessoas, e ele acabou ficando como responsável, obtendo ajuda de

duas outras pessoas apenas no segundo ano do projeto.

No segundo caso, da contribuição de Knup Acrata em relação ao sentido da articulação

para EMEF, no seu contato com os alunos, percebemos que foi construída ao longo do

tempo uma relação de respeito mútuo e, diríamos até mesmo, de solidariedade por parte

de alguns, como ilustra o fato de Curinga ter faltado em sua aula de capoeira para não

deixar Knup Acrata sozinho na oficina de grafite. Vimos como esta atitude de Curinga

revela uma centelha de vida comunitária, onde “os sentimentos, pensamentos e ações de

um influenciam os sentimentos, pensamentos e ações dos outros” (STEIN 1999b, p.

298). Isto demonstra que o projeto de articulação, de alguma forma, atingiu os alunos.

Knup Acrata procurou desde o início conhecer cada um e acompanhar de perto suas

produções, apoiando e incentivando quando necessário. Mas isto não quis dizer

ausência de conflitos. Principalmente no primeiro ano de funcionamento da EMEF

Igarapé, o relacionamento entre os alunos era bastante difícil, com constantes brigas

físicas e verbais. Utilizando a expressão da professora de artes, os alunos conversavam

se batendo, e o clima não era diferente nas oficinas. Assim como pudemos observar na

entrevista em grupo, nas oficinas percebíamos um clima de competição entre os alunos

e um modo de se relacionar com constantes agressões, principalmente quando se tratava

de relacionamento entre sexos ou entre familiares.98

Knup Acrata buscou ter uma atitude dialógica nos momentos de conflitos, procurando

resolvê-los dentro do espaço da oficina e evitando recorrer a um recurso bastante

utilizado por alguns professores, de encaminhá-los para a Direção. De fato, havia uma

crença, compartilhada pelos professores de artes e português, de que alguns alunos não

98 Como na oficina havia alunos de diferentes anos, havia primos juntos.

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tinham jeito. Estes mesmos alunos, após algum período de constantes ocorrências e

encaminhamentos para a Direção, foram retirados de suas salas (inclusive das oficinas)

e passaram a ter aula com Alice, cujo relato constatava a dificuldade de alguns

professores em lidar com esses alunos e de darem aula sem pedir ajuda para ela.

Knup Acrata pareceu querer encontrar outros caminhos para lidar com esta situação.

Poderíamos dizer, concordando com Edith Stein, que ele buscou dar uma resposta

pessoal, em consonância com seus princípios, em vez de seguir o modelo instituído da

escola, de pedir socorro à coordenadora pedagógica ou à Direção. Apesar de em alguns

momentos difíceis KA ter decidido pela interrupção da oficina, parecia haver uma

disponibilidade de diálogo e uma busca de soluções alternativas para lidar com a

questão da convivência entre os alunos. Com o tempo, embora os conflitos

continuassem a existir, pudemos perceber maior interesse e vontade de participação dos

alunos nas atividades propostas. No segundo ano, a questão da convivência foi

introduzida no planejamento das oficinas (Projeto Germinal), quando Knup Acrata

realizou dinâmicas de grupo e discussões a respeito do tema. Esta atitude de KA, de

incluir o trabalho de convivência no planejamento das oficinas, concorda com a visão

de Edith Stein a respeito do papel do educador. Ao abordar a relação entre sociedade e

comunidade, Stein cita o exemplo da classe escolar e afirma que por si só ela é uma

sociedade onde todos têm uma meta comum escolhida voluntariamente. Entretanto, esta

sociedade pode se tornar uma comunidade se as pessoas que fazem parte desta classe

estabelecem relações com vínculos espirituais mais profundos, evitando exclusões dos

mais fracos e apresentando um atitude de ajuda mútua. Stein entende que um dos papéis

do educador é trabalhar para conseguir estabelecer uma comunidade.

O fato de Knup Acrata ter acrescentado o tema da convivência no planejamento do

semestre seguinte nos permite afirmar que ao longo do projeto de articulação a própria

experiência vivida dos participantes apontava a direção dos próximos passos. Assim

como Knup Acrata, também a equipe gestora da EMEF Igarapé se posicionou em

resposta a novas demandas que surgiram ao longo do caminho. Um exemplo foi a

proposta de mudança de localização do Espaço Cultural, ao perceberem que o

movimento de pessoas de fora era grande e que poderiam se articular melhor, sem

interferir no andamento das aulas e sem se preocuparem com a segurança, se o Espaço

estivesse localizado mais próximo da entrada da EMEF.

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Diante desta percepção, podemos levantar uma questão a respeito dos processos

decisórios no projeto de articulação. Tomando como base a visão de Edith Stein,

sabemos que as decisões individuais em uma relação comunitária atingem os membros

da comunidade transformando o todo. Em muitos momentos do processo, embora

possamos contemplar as repercussões de certas decisões, não tivemos clareza se elas

foram tomadas individualmente ou em conjunto (neste caso, conjunto do ponto de vista

da articulação, significa com a participação das duas comunidades: EMEF e

coletivos).99 Este parece ser um dos desafios do processo de articulação. Abordamos, a

seguir, outros desafios percebidos.

7.3 Desafios

Esta constelação aborda diferentes desafios do projeto enfrentados pelos participantes.

Os desafios variam de acordo com a posição que determinado participante ocupa na sua

comunidade ou ainda de acordo com o grupo comunitário a que pertence (escola ou

coletivos).

Um dos primeiros desafios enfrentados, tanto pela EMEF Igarapé quanto pelo coletivo,

foi em relação ao planejamento da oficina de literatura marginal. Como discutimos

anteriormente, apesar do coletivo ter um modelo próprio de oficinas, elas foram

adaptadas à realidade da EMEF Igarapé. Foram introduzidos novos temas que tinham

uma relação com os princípios da escola (Cultura de Paz, por exemplo), a idade dos

alunos era menor do que estavam acostumados e o tempo de duração maior. Estas

mudanças foram desafios enfrentados tanto pelo educador da oficina de literatura

marginal quanto pelo da do grafite. Para os dois grupos houve ainda o desafio de

trabalharem de forma voluntária no projeto, o que para os educadores do grafite parece

ter sido um fator de peso na decisão de interromper as oficinas, segundo relato de Knup

Acrata. Outra dificuldade enfrentada foi a falta de experiência dos educadores do grafite

com alunos de 12 e 13 anos e, pelo que pudemos observar, a adequação das atividades

99 Teria sido interessante acompanhar reuniões entre as duas comunidades para compreender o processo decisório. Nesta pesquisa isto não foi possível, embora tenhamos podido perceber que alguns desafios do projeto tiveram relação com o processo decisório, como veremos na constelação a seguir denominada Desafios.

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para a idade. Os alunos não tinham muita paciência e concentração para aprenderem o

desenho do rosto, por exemplo. O tempo de duração desta atividade pareceu ser longo,

além de exigir deles habilidades de desenho que nem todos possuíam.

Embora Knup Acrata tenha enfrentado desafios semelhantes no início da oficina de

literatura marginal (como a novidade em relação à idade dos alunos e a não-

remuneração), a posição que assumiu diante desta situação foi diferente da do grupo do

grafite. Knup Acrata ficou no projeto e foi se envolvendo cada vez mais com a escola.

Apesar de relatar em alguns momentos que o trabalho voluntário cansava, isto pareceu

não ser um empecilho e nem um fator que o desmotivava em relação ao projeto. O ideal

de concretização do Espaço Cultural e de transformação dos alunos parecia falar mais

alto do que as dificuldades enfrentadas pela não-remuneração.

Por outro lado, a questão de poder oferecer uma verba para Knup Acrata foi uma

preocupação dos gestores da escola desde o início, segundo relato de Alice. Um desafio

que enfrentaram buscando novos parceiros para financiá-los. Motivados por esta

vontade, a EMEF Igarapé participou da seleção de projetos de uma universidade

pública. Enviaram o projeto das oficinas e foram selecionados. Entretanto, a parceria só

se concretizou após quase dois anos de espera, quando o projeto praticamente já tinha

acontecido e quando Knup Acrata havia buscado outra fonte de remuneração ao assumir

um novo emprego. Neste sentido, vemos como a articulação abre caminhos para novas

articulações, e como cada processo demanda um certo tempo para acontecer. Apesar

disso, o projeto de articulação não parou, mas muitas iniciativas ficaram

comprometidas. Os diferentes tempos das pessoas, dos grupos, das instituições às vezes

geram desencontros.

Outro desafio enfrentado, que envolveu tempo e articulação com instituições de fora, foi

o caso da inauguração da biblioteca comunitária. A instituição responsável pela doação

dos livros adiou constantemente seu compromisso com a escola e isso gerou desgaste

nos alunos e educadores. Neste caso, a falta de compromisso da instituição rompeu com

um dos elos da articulação, afetando o andamento da mesma. Entretanto, a decisão dos

participantes de dar início ao funcionamento da biblioteca sem a presença da referida

instituição, evitou que a falta de envolvimento da mesma interrompesse o processo.

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Essa mesma falta de envolvimento e de interesse relatada a respeito da instituição

doadora dos livros por Knup Acrata, ao afirmar que eles não estão nem aí pra gente, foi

sentida pela coordenadora pedagógica no que diz respeito aos alunos. Como vimos na

primeira constelação, Sentidos desvelados, havia uma queixa da CP de que era difícil

despertar o interesse dos alunos e, em sua visão, apesar de esperar das oficinas de

literatura marginal um envolvimento maior deles, esta expectativa não se realizou. Para

Alice, o grande desafio era encontrar um caminho de interlocução com eles, o que ela

buscou incessantemente sem conseguir retorno. Recorrendo à análise da vida

comunitária de Stein, podemos dizer que, na vivência da CP, os alunos correspondiam

àqueles membros da comunidade que absorvem mais força da vida comunitária do que

dão, ou seja, os alunos contribuíam para uma diminuição da força vital da comunidade

escola com a sua falta de envolvimento. Nesta relação, o sentimento de desencontro da

CP pareceu predominar. Aliado a ele, o cansaço e a frustração pelas várias iniciativas

sem retorno a fizeram experimentar um certo desamparo ao questionar o papel da

universidade, afirmando que esta assume princípios que não condizem com sua

experiência vivida no dia-a-dia da escola.100 Cita especificamente a ideia de que os

conteúdos escolares devem ser significativos. Relata como tem buscado o tempo todo

responder a esse princípio e, no entanto, continua sem retorno dos alunos.

É interessante notar como esse mesmo sentimento de desencontro é relatado pelos

alunos em relação à escola. Duas situações ilustram esta questão. A primeira ocorreu

quando Baby Check reclamou para Knup Acrata a respeito do término das oficina.

Afirmou que a escola quer que eles [alunos] se inscrevam nas oficinas, mas que, ao se

inscreverem, ela logo termina. A segunda situação, relatada durante a entrevista

coletiva, diz respeito ao processo de escolha dos alunos.

Segundo Alice, foram oferecidas várias oficinas ao mesmo tempo – entre elas, a de

literatura marginal e o grafite – e os alunos podiam se inscrever de acordo com seu

interesse. Entretanto, a oficina de grafite havia sido associada à de literatura e, segundo

relato dos alunos, muitos deles haviam escolhido participar do grafite e, no entanto,

100 Durante a devolutiva desta análise, a CP explica que várias vezes acompanhou pesquisadores ou estagiários nas escolas e que não vê envolvimento com a prática escolar. Normalmente eles entregam um questionário para ser preenchido e formulários burocráticos, sem se preocupar em acompanhar e observar o que acontece de fato. Neste sentido a CP elogia o trabalho realizado pelo grupo de pesquisa e pelos estagiários da graduação, pois afirma que, pela primeira vez, acompanhou pessoas realmente envolvidas.

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foram obrigados a frequentar também uma oficina que não queriam, sem terem sido

avisados no momento da inscrição.

Na visão da CP, estas oficinas deveriam caminhar juntas porque o grafite seria uma

expressão das discussões e reflexões promovidas na literatura. Além disso,

compreendemos que esta havia sido uma estratégia da escola para promover a

aproximação dos alunos com a literatura, talvez por acreditarem que, se deixassem de

fato uma livre escolha ou se anunciassem antecipadamente a ligação entre as duas

oficinas, eles não se inscreveriam. Ao analisar esta situação, podemos dizer que a

intenção de criar uma estratégia de aproximação dos alunos com a literatura condiz com

a visão de Stein a respeito do papel do educador. Para a autora, cabe a ele não apenas

portar o material formativo, mas portá-lo de forma tal que suscite no educando o desejo

de assumi-lo. Por outro lado, ousamos afirmar que a estratégia escolhida acabou traindo

um dos princípios que a própria CP relatou ser um ponto importante para despertar o

interesse dos alunos: a possibilidade de escolha. Ao relatar que os alunos não estavam

produzindo nas oficinas, ela afirma não compreender, por ter sido uma atividade

escolhida por eles.

Esta situação ocorreu no início das oficinas e pareceu ser revista pela escola (ou por

Knup Acrata) quando decidiram terminar a oficina de literatura marginal após um

trimestre, dando início a uma nova, da qual só participariam os alunos que de fato

estivessem interessados. Conforme apontamos na constelação anterior, a compreensão

do processo de escolha, do modo como as decisões foram sendo tomadas ao longo do

projeto, parece ser um fator fundamental para a compreensão da articulação.101 Embora

o desejo dos participantes e o ideal perseguido seja o do diálogo e da gestão

democrática, vemos o quão difícil e desafiadora é a sua concretização. Na prática, há

momentos em que esse tipo de relação é possível e momentos em que ela não acontece.

Neste caso, cada participante decide como responder a este desafio. Com relação às

oficinas de grafite e literatura, por exemplo, alguns alunos decidiram mudar de oficina e

outros acabaram permanecendo e gostando da literatura.

101 O próprio diretor da EMEF Igarapé apontou para os momentos iniciais de diálogo e acertos com os coletivos como um fator fundamental – e oculto – da articulação.

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Ainda em relação às oficinas, percebemos dois outros desafios. O primeiro foi a

dificuldade de articulá-las com o trabalho do professor de português da EMEF. Havia

por parte da coordenadora pedagógica um desejo de integração entre o trabalho

proposto pela escola e o projeto de articulação. Entretanto, tanto Knup Acrata quanto o

professor de português não viram em suas propostas pontos convergentes que

permitissem um trabalho conjunto. Pelo contrário, ambos pareciam querer enfatizar o

diferencial (ou a especificidade) de sua proposta contrapondo-se à do outro. Knup

Acrata, por exemplo, verbalizou várias vezes (embora não com os mesmos termos

utilizados nesta descrição) que as oficinas não eram aulas escolares. O professor de

português, por sua vez, deixou claro que ele tem preocupações e objetivos diferentes

dos educadores da literatura marginal.

Neste caso, embora houvesse um desejo de maior articulação entre a cultura escolar e a

cultura periférica por parte da gestão da EMEF Igarapé, esta articulação ficou

impossibilitada pela compreensão e pela postura pessoal dos educadores envolvidos,

que escolheram trabalhar separadamente. Este fato alinha-se com a visão do diretor a

respeito dos desafios da articulação. Para ele, a cultura escolar é rígida, engessada e

possui uma formatação (regras, horários etc.) que dificulta a integração com os projetos

comunitários. Acha que há uma resistência por parte dos professores em ousar porque

faz parte do humano a busca por segurança, ou seja, o querer se apoiar no modelo

conhecido, e o medo de se abrir para um novo modo de trabalhar que é a articulação.

Um modo exigente na visão do diretor, por não ter um caminho pré-definido (um

modelo externo a seguir), e por exigir flexibilidade e integração da equipe. Neste caso, o

tempo também é visto como um desafio. Ele afirma que romper com a resistência,

transformar a visão e o modo de trabalhar da escola exige tempo.

Apesar do diretor apontar como desafio o fechamento dos professores para um trabalho

com a comunidade, a situação acima relatada mostra que o fechamento ocorreu dos dois

lados, ou seja, tanto do professor quanto de Knup Acrata. Este parece ser um grande

desafio para todos os participantes do projeto de articulação, ou seja, buscar os ideais,

os pontos de convergência que possibilitam um projeto de articulação ou, na visão de

Stein, os núcleos de sentido comum em torno do qual as vivências de tornam

comunitárias, sem absolutizar os modos de concretizá-lo. Como vimos, para Stein, uma

comunidade não abafa a singularidade. Ao contrário, a singularidade enriquece a

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comunidade. Neste sentido, o modo de ser acadêmico, o modo de ser anarcopunk, o

modo de ser poeta, o modo de ser pragmático; todos eles poderiam ser acolhidos

naquilo que têm como contribuição a dar ao projeto, sem pré-conceitos por parte de seus

membros.

Sendo assim, a necessidade de segurança relatada pelo diretor, e apresentada também

por Bauman (2003), é um desafio a ser enfrentado por todo os participantes ao entrarem

em contato com a diversidade dos modos de ser das pessoas e das comunidades. O

perigo apontado por Stein está no fato de uma comunidade se ver como tal, e tender a se

fechar e a entrar em um mecanismo de exclusão. Neste momento, a comunidade deixa

de ser abertura e, portanto, deixa de ser comunidade. Como afirma Bauman (2003), as

pessoas abrem mão de sua liberdade e se deixam levar por modelos externos em prol de

serem guiadas com segurança.

Além da necessidade de segurança, um desafio que parece preocupar o diretor diz

respeito à preservação da comunidade escola e relaciona-se ao que Edith Stein (1999b)

denomina movimentos internos de uma comunidade. São eles os movimentos de

autoconfiguração, autoconservação e autoexpressão, e relacionam-se respectivamente à

construção de seu estilo de vida (número de membros, organização de suas ações etc.), à

criação de instrumentos para responder as suas necessidades e à maneira como ela

expressa seu estilo e mantém sua bagagem cultural.

A relação com os coletivos e a abertura para a comunidade gerou uma certa tensão no

diretor no sentido de encontrar meios de se abrir sem prejudicar a própria escola, ou

seja, sem ferir seus princípios, sua organização e a forma como ela se expressa para o

exterior. É importante lembrar, neste contexto, que a EMEF Igarapé é nova, iniciou suas

atividades em 2009, juntamente com o projeto de articulação. O diretor afirma que

existem conflitos na comunidade e fala da possibilidade de que eles sejam trazidos para

dentro da escola. Alerta-nos para o fato de que, quando abrimos as portas da escola,

devemos contar com manifestações que muitas vezes não condizem com os seus

princípios, como brigas e bebidas; além da crítica a que a escola está sujeita por parte

das famílias devido a esse tipo de manifestação. Para o diretor, esse é o lado oculto da

articulação que necessita ser contemplado pela gestão a fim de não caírem em uma

visão ingênua de achar que tudo o que a comunidade traz e representa é bom.

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Como exemplo desta observação de Francisco, temos o próprio relato de Knup Acrata

ao abordar a questão da violência no bairro, tanto interna como externa. KA relata que

uma pessoa havia passado por um trecho de mata da região, segundo ele lugar de

desova de corpo tanto da polícia como de traficantes, e pensava tê-lo reconhecido entre

os corpos. KA afirma que morre muita gente inocente. Esta situação ilustra a tensão em

que vivem os moradores e o grau de violência que, muitas vezes, quem vem de fora à

primeira vista não percebe. Além disso, como vimos, o projeto de literatura marginal

teve início a partir de um conflito entre os coletivos e o dono do imóvel que haviam

ocupado, ou seja, o próprio projeto de articulação nasceu de um conflito da comunidade

do entorno.

Por outro lado, apesar do receio de Francisco, é interessante observar como ele integra

esse lado obscuro da comunidade ao projeto. Em sua visão, essa dimensão não tão

agradável, que poderíamos chamar de sombra, faz parte do humano; e, quando aceita,

contribui para a formação humanizadora dos alunos, ou seja, ela acaba sendo

oportunidade de humanização. O diretor é enfático ao dizer que, em um projeto de

articulação com a comunidade, manifestações “desagradáveis” vão ocorrer, e a escola

terá que lidar com elas. Da mesma forma que ele reconhece (ao falar dos professores),

que a necessidade de segurança faz parte do humano, reconhece, nos desafios em

relação à comunidade, que os conflitos também fazem parte do humano. É uma visão

compreensiva e não acomodada ou fatalista, pois o fato de reconhecer a naturalidade

dessas manifestações não o deixa passivo, mas atento para lidar com as situações que

surgem.

A visão em relação à comunidade do entorno (periferia) foi trabalhada com os alunos

nas oficinas de literatura marginal. Neste caso, o desafio pareceu ser o oposto, ou seja,

transformar o olhar negativo e preconceituoso que formam a respeito da periferia por

influência do senso comum e dos meios de comunicação, em um olhar de esperança e

de positividade. Transformar o olhar estrangeiro dos alunos em um olhar de quem é

parte desta realidade e pode falar sobre ela a partir de sua própria experiência. O que

percebemos, a partir da entrevista coletiva e das observações das produções dos alunos,

foi que eles passaram sim a se reconhecer como parte da comunidade e a ter uma visão

crítica a respeito das informações que lhes chegam. A fala de Curinga de que somos

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pobres, somos sofredores mas não somos ladrões reflete esta realidade. Por outro lado,

embora reconheçam também as coisas boas que existem na periferia, como a sua

própria escola, em suas produções o que predomina é a crítica. Podemos dizer que o

desafio de enxergarem coisas positivas em suas vidas permanece. Conforme aponta

Edith Stein, ao abordar o tema da formação, a questão da positividade parece ter sido

acolhida com a razão, mas não integrada na alma, de forma a promover uma

transformação nos alunos sob este aspecto. O que ilustra esta situação são suas próprias

produções. O sentimento que transparece em seus poemas é o da falta e do sofrimento.

Como finalização desta constelação, ilustramos esta percepção com um poema de DGS.

A realidade Não temos vídeo-game nem computador Só o peso na consciência Nossa vida é um desafio Aqui não tem dia das crianças nem natal Nós não vivemos E sim sofremos Vivemos na periferia 7.4 Repercussões

Esta constelação descreve as repercussões do projeto de literatura marginal e discute

tanto repercussões de forma abrangente, ou seja, do ponto de vista das comunidades

escola e coletivos, quanto repercussões individuais – que sabemos que também

influenciam o todo – cuja análise nos permitiu afirmar que, para algumas pessoas, o

projeto de articulação se configurou como um contexto de desenvolvimento humano,

um contexto formativo, de acordo com a visão de Edith Stein.

Ao analisar a comunidade escola tomando como referência a visão de Stein de

comunidade como organismo vivo, podemos dizer que houve repercussões tanto no seu

aspecto físico quanto no psíquico e no espiritual. Com relação ao físico, a articulação

gerou um novo espaço dentro da escola, um Centro Cultural, que mudou a configuração

das salas de aula e até mesmo sua localização ao longo do processo. Além disso, a

comunidade escola cresceu fisicamente em número de membros, pois agregou novos

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educadores e frequentadores. Aumentou também o seu tempo de atividade ao incluir

programações fora do horário letivo (à noite ou aos sábados).

No aspecto psíquico, podemos dizer que a comunidade escola cresceu na sua força vital

enriquecendo-se, tanto pela sensibilidade do diretor a certos valores como humanismo e

democracia, que contagiaram a equipe gestora, motivando-a para a concretização do

projeto de articulação, quanto pelo contato com a comunidade coletivos, que despertou,

principalmente, os alunos para o valor da literatura e para a consciência de sua própria

inserção na comunidade bairro e na própria comunidade escola.

Com relação ao aspecto espiritual, podemos dizer que a comunidade escola foi

enriquecida à medida que a articulação provocou uma série de reflexões e avaliações a

respeito de seus princípios e objetivos, além de ter proporcionado tomadas de posições

das pessoas umas em relação às outras; posições muitas vezes marcadas por atitudes de

solidariedade, como o caso citado anteriormente de Curinga com Knup Acrata.

Tudo isso, como afirma Stein, é fruto das repercussões da articulação na vida pessoal

dos membros da comunidade. Como exemplo desta repercussão da articulação no

pessoal, podemos citar o percurso de um dos membros da comunidade escola: o aluno

Baby Check. Baby Check poderia ser descrito como um dos alunos cuja falta de

interesse e envolvimento preocupavam a CP. Falava bastante durante as oficinas,

provocava os colegas, e a atitude que mais parecia “atrapalhar” a sala era o batuque que

ele fazia o tempo todo com a caneta ou mesmo com um atabaque que ficava na sala da

oficina. Baby Check não escolheu participar da oficina de literatura marginal e seu

único desejo era pegar na lata, ir pro muro. Entretanto, o contato com a literatura, e não

qualquer literatura mas a literatura marginal, aquela presente nos livros dos poetas da

quebrada, nos muros das ruas e na letra de rap, pareceu despertar algo em Baby Check.

Ele gostou. Gostou de ler poemas, gostou de fazer rimas, gostou de escrever a respeito

de si e gostou de fazer rap. O aluno que batucava o tempo todo descobriu que poesia é

música, que fazendo poesia ele podia compor. E foi isso que ele fez e disso se orgulhou

ao querer demonstrar sua produção para a pesquisadora ao final da entrevista. Baby

Check participou, se envolveu e, o mais importante, interessou-se pela literatura ao

perceber que ela permitia um contato consigo mesmo e tinha uma ligação com um

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interesse seu que até então havia sido compreendido pelos educadores como barulho,

bagunça: a música.

Vemos neste percurso como a resposta pessoal de Baby Check de não sair das oficinas,

apesar de não ter sido sua escolha inicial, acabou gerando frutos a partir da relação que

ele estabeleceu com Knup Acrata. Da não-escolha do primeiro momento, ele passou a

uma escolha no segundo momento, que foi a de permanecer. Permaneceu e foi tocado

pela forma como Knup Acrata lhe apresentou a literatura. Como afirma Edith Stein

(1999b), a comunidade precisa de pessoas sensíveis a certos valores para ajudá-la a

captá-los e enriquecer-se com eles. No caso da literatura, KA soube apresentá-la de

forma a suscitar em Baby Check o desejo de acolhê-la interiormente, de aderir a ela

enquanto um valor pessoal e não imposto, experimentando o seu potencial formativo.

Este percurso de Baby Check nos faz pensar na importância do olhar para a

singularidade do aluno e nos oferece pistas para responder à inquietação da CP em

relação à necessidade de promover atividades significativas. Edith Stein (1999a) nos

ajuda nesta reflexão ao afirmar que o educador precisa conhecer muito bem o educando

a fim de auxiliá-lo a desenvolver um projeto próprio, pessoal, para tornar-se cada vez

mais ele mesmo. Isto significa que aquilo que desperta interesse em alguém pode não

fazer sentido para outros. A experiência de Baby Check não nos permite concluir, por

exemplo, que se quisermos aproximar os alunos da literatura devemos trabalhar com

letra de rap. O rap pode ser indiferente para alguns alunos e pode até atingir

profundamente a outros, porém de forma negativa. Segundo Stein (1999a), é papel do

educador e da escola colocar os alunos em contato com a diversidade dos campos da

cultura, ajudando-o a conhecer o campo que lhe é indicado por seu talento natural.

Neste sentido, o desafio da escola passa a ser o de ultrapassar o olhar massificado e

teórico de um projeto único para todos, e fazer uma leitura das manifestações corporais,

psíquicas e espirituais dos alunos como sinalizadores que revelam um modo de ser

próprio e que dão pistas de como se posicionar diante deste aluno para ajudá-lo a

avançar no processo de realização de si. Este parece ser o maior desejo da CP ao afirmar

que gostaria de ver os alunos tendo paixão pelo que fazem.

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Retornando à discussão das repercussões, passaremos agora à análise da comunidade

coletivos. Uma mudança importante ocorrida com o projeto de articulação foi a

concretização de um espaço físico tanto para o coletivo de Knup Acrata como para os

outros coletivos. Pela fala de Alice, percebemos que havia uma ligação tão forte entre

os membros que a falta de um espaço e de certas regras sociais para organizar as

relações não interferia na qualidade da mesma. Em seu relato, ela afirma que tudo era

muito informal e, no entanto, as coisas funcionavam. Podemos fazer um paralelo com

Edith Stein ao abordar a relação sociedade-comunidade, Estado-povo. Segundo a

autora, o Estado existe (ou deveria existir) em decorrência de uma comunidade de povo,

com intuito de servir a esta comunidade de forma a oferecer uma organização estável às

relações já estabelecidas pela comunidade. Stein afirma, entretanto, que há comunidades

de povos que subsistem acima do Estado e Ales Bello exemplifica esta situação com o

povo hebreu, cujos laços de sangue e de fé são tão fortes que, apesar da destruição do

Estado e da falta de um território, a comunidade subsiste. Vemos também, no caso dos

coletivos, que, na visão da CP, a falta de uma organização estável não prejudica a

subsistência da comunidade. Por outro lado, os próprios membros sentiram a

necessidade de encontrarem um “território” para se articularem melhor.

Apesar do olhar externo de Alice em relação à comunidade coletivo afirmar que seu

funcionamento independia de uma organização de sociedade, no sentido que Stein dá ao

termo, o relato de seus membros demonstra que eles sentiam a necessidade de maior

organização para o seu funcionamento. Um exemplo que ilustra esse sentimento foi a

discussão ocorrida durante o Cine Alastre, quando algumas pessoas manifestaram o

interesse de organizar uma agenda em conjunto, fazendo um planejamento de forma que

cada coletivo pudesse apoiar as ações uns dos outros, evitando a dispersão causada pela

promoção de eventos diferentes no mesmo dia. Este exemplo demonstra a ideia de Edith

Stein de que a comunidade precisa de uma sociedade, contanto que esta exista para

servir à vida comunitária, sem deixar que suas regras sejam absolutizadas de forma a

matar as relações pautadas sobre a dimensão espiritual, ou seja, de forma a matar a

singularidade e a liberdade de seus membros.

A concretização de um local através do Espaço Cultural foi uma mudança física

importante para a comunidade coletivos e o fato desse espaço estar dentro de uma

escola trouxe novas repercussões. Ainda do ponto de vista físico, novas organizações se

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configuraram, pois algumas pessoas saíram do projeto por entenderem que seu objetivo

era oferecer oficinas itinerantes e não fixas em um único local, e outras se agregaram,

com o objetivo de trabalhar a pedagogia libertária. A estrutura dos coletivos mudou em

função de uma adaptação ao projeto de articulação.

Do ponto de vista psíquico, embora a expectativa da articulação tivesse uma relação

com o aumento da força vital desta comunidade, já que acreditavam que o espaço da

escola facilitaria a integração entre os vários coletivos fortalecendo-os, isto parece não

ter ocorrido. Pelo contrário, com a entrada na escola e as novas configurações, as

pessoas se separaram, dispersando e enfraquecendo a comunidade coletivos. O que

parece ter acontecido é que um projeto inicialmente conjunto passou a ser sustentado

por um único membro, Knup Acrata.

Por outro lado, do ponto de vista espiritual, a comunidade coletivos parece ter se

enriquecido. O contato com a escola e as propostas de novos modos de trabalho que

surgiram deste contato provocaram os coletivos no sentido de refletirem a respeito de

seus objetivos e ideais, para darem uma resposta a este apelo da articulação. Para alguns

coletivos, como o de literatura ao qual Knup Acrata pertencia no início do projeto, a

resposta foi permanecer como estavam enquanto coletivo, e se afastar da escola. Outros,

por sua vez, se aproximaram por entenderem que dentro de seus princípios havia um

ponto de convergência com a escola, que era a educação, mais especificamente a

pedagogia libertária.

Em todos esses movimentos, Knup Acrata parece ter tido um papel fundamental. Como

afirmamos, ele foi o sustentador do projeto de articulação do ponto de vista da

comunidade coletivos. Foi ele quem trouxe o grupo do grafite para a escola e também

este último coletivo que trabalha com pedagogia libertária. O seu envolvimento pessoal

com a articulação, com o Espaço Cultural e, como discutimos anteriormente, com a

própria escola ao descobrir-se educador, permitiu a continuidade do projeto e a busca de

novas parcerias que garantissem essa continuidade. Knup Acrata foi um sustentador do

projeto de articulação, junto com o diretor da EMEF Igarapé, a coordenadora

pedagógica e outros membros da equipe gestora. Enquanto membro da comunidade

coletivos, KA teve um papel intermediador e, apesar de fisicamente e psiquicamente

esta comunidade ter se enfraquecido no início de maneira direta, podemos dizer que, de

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forma indireta, a longo prazo ela se enriqueceu. O fato de KA participar da comunidade

escola e se enriquecer com esta vivência contribuiu para um enriquecimento espiritual

também dos coletivos, pois como vimos, para Stein (1999b), quando uma pessoa

pertence a duas comunidades, ela pode levar a força que flui de uma para a outra.

Segundo relato de KA,102 a sua presença na escola acabou aproximando os coletivos

deste ambiente. Embora alguns não tenham permanecido nas oficinas e nem no Espaço

Cultural, outros coletivos se aproximaram e iniciaram um trabalho com professores e

alunos. Este foi o caso, por exemplo, do projeto Escola da África, que hoje trabalha a

cultura afro na EMEF. Segundo KA, a sua presença na EMEF Igarapé foi importante

porque ele ganhou assim experiência em projetos e essa sua experiência abriu espaço

para os coletivos, não apenas na EMEF Igarapé, mas na construção de novos projetos

em outras escolas.

Assim como destacamos o percurso pessoal de um dos membros da comunidade escola,

(Baby Check), achamos importante destacar nas repercussões do projeto de articulação

o percurso pessoal de Knup Acrata. Membro da comunidade anarcopunk, KA deixou o

coletivo ao qual pertencia em Pirituba e chegou na região buscando integrar-se em um

novo grupo. Aliou-se ao coletivo de literatura e desde o início pareceu ter um papel de

liderança no movimento que se iniciava de articulação entre os diferentes coletivos do

bairro, que, ao se encontrarem no sarau promovido por um deles em um bar da região,

decidiram ficar mais próximos, no sentido de unir para fortalecer.

Movido pelo ideal dessa articulação, Knup Acrata entrou na escola. Ministrou as

oficinas de literatura marginal e nesse processo descobriu-se educador. Trabalhou como

voluntário e, apesar do cansaço gerado por esta situação, não desanimou. Esta atitude de

KA nos permite fazer referência àquilo que Edith Stein (1999b) chama de tomadas de

posição positivas, sendo uma delas o amor. Stein afirma que as tomadas de posição

positivas possuem uma eficácia própria que age na pessoa tornando-a mais forte, agindo

sobre a pessoa como uma potência estimulante com a qual ela pode nutrir os outros sem

ser empobrecida. O amor de Knup Acrata por uma causa – pelo trabalho com a cultura

periférica em prol do despertar da consciência política das pessoas para a construção de

102 Durante a devolutiva da análise.

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uma sociedade mais justa – lhe permitiu ser um dos sustentadores do projeto, ainda que

em condições adversas.

Com o tempo, Knup Acrata compreendeu que gostaria de se inserir no mercado de

trabalho como educador. Decidiu fazer faculdade, não por acreditar que esse fosse um

caminho que o validasse como educador, mas por exigências do “mercado”. Prestou

vestibular e entrou na faculdade, mas decidiu trancar a matrícula. Ainda não é o

momento da faculdade. É autodidata, pretende continuar estudando por conta própria,

sem cair na burocracia e na formatação do sistema escolar. Começou um trabalho como

educador em um centro cultural da região. Com isso, sua disponibilidade de tempo na

escola diminuiu. Continuou envolvido com o projeto de articulação, mas sentiu-se

solitário, percebeu que, sozinho, a sustentação não iria longe. Como vimos, de acordo

com Stein, uma comunidade necessita de mais de um sustentador para sobreviver.

Chamou uma pessoa de outro coletivo para ajudá-lo e resgatou o seu contato com o

coletivo de Pirituba ao perceber que o seu modo de ser e os ideais da comunidade

anarcopunk faziam sentido para a articulação do ponto de vista da pedagogia libertária.

O contato com esse coletivo pareceu ter lhe provocado a reafirmar sua pertença a essa

comunidade e a buscar agir de forma coerente com ela. A convivência com a

comunidade anarcopunk pareceu provocá-lo no sentido de dar um passo atrás em

relação ao projeto de fazer faculdade, decidindo continuar seus estudos, ao menos nesse

momento, de forma autônoma.

Esse percurso pessoal de Knup Acrata ao longo do projeto de articulação ilustra o

dinamismo do processo de formação e nos permite afirmar que a articulação foi

enriquecedora para Knup Acrata na medida em que ele se abriu e se deixou afetar por

essa experiência, descobrindo novos sentidos e novas dimensões de seu modo de ser.

Por outro lado, as decisões e as oscilações em relação ao estudo, por exemplo,

demonstram que a formação não é um processo linear, mas um movimento oscilante de

reflexão e ação que necessita ser revisto a cada momento, a cada situação, a cada nova

demanda. Um movimento cujo motor parece ser a busca de autenticidade, a busca de

respostas pessoais, singulares que nem sempre são possíveis. Às vezes os caminhos

parecem claros, mas outras vezes não. Neste caso o apelo a modelos externos parece ser

grande; modelos que surgem como resposta diante de momentos de cegueira espiritual,

ou seja, diante de momentos em que a capacidade de discernir, avaliar e decidir

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pessoalmente estão comprometidos por outras demandas. Outras vezes, a proximidade

consigo mesmo e a escuta de um apelo interior é possível, e então o próprio núcleo

pessoal parece ditar o caminho. De qualquer forma, tanto a experiência de Knup Acrata

como a de Baby Check – e certamente de outras pessoas que não estiveram tão

próximas desta pesquisa, mas que se abriram e se envolveram com o projeto –, nos

permitem afirmar que a articulação foi uma experiência formadora, e que, independente

de seu desfecho e dos seus desafios, ou do número de pessoas “beneficiadas”, ela valeu

a pena pelo simples fato de colocar as pessoas em movimento. O contato com realidades

diversas provocou as pessoas, no mínimo, para iluminar o sentido de suas ações

cotidianas, que muitas vezes são realizadas de forma árida e massificada dentro uma

rotina automática e, conforme o grau de abertura, levou-os a descobrir novos sentidos.

Embora nossa discussão, por motivos didáticos, contemple separadamente as

repercussões na comunidade escola e na comunidade coletivos, estamos conscientes de

que o processo aconteceu de forma integrada, de que os movimentos de uma

comunidade afetaram a outra e vice-versa. Gostaríamos de destacar, nesta dinâmica,

situações em que se evidenciaram vivências comunitárias entre os membros destas duas

comunidades. Isto porque acreditamos que a formação de novas comunidades ou

vivências comunitárias parece ser um critério interessante para a análise da articulação.

Com o auxílio da visão de comunidade de Edith Stein, foi possível perceber em que

momentos a inter-relação entre os dois grupos se configurou como uma relação

comunitária, indo além da mera negociação de interesses entre suas comunidades de

origem, para se relacionarem em torno de um núcleo de sentido comum.

A experiência do sarau, por exemplo, pareceu se configurar como uma experiência

comunitária. Unindo-os em torno da literatura, da declamação de poemas, o sarau atraiu

membros de diferentes coletivos, gestores, professores, alunos e famílias da EMEF,

além de estudantes e pesquisadores da universidade. Os participantes não foram muitos,

mas a qualidade daquela experiência teve como referência não o critério numérico e sim

o modo como as pessoas foram envolvidas, tocadas, atingidas por ela. No sarau, as

pessoas se uniram em torno da expressão pela poesia. Este parecia ser o núcleo de

sentido comum. A expressão de si, de sua pessoa inteira (com suas ideias, crenças e

sentimentos) pela palavra, criada pessoalmente ou emprestada de outrem. Dentro desse

sentido comum, cada qual encontrou um sentido próprio pelo qual declamar, e a isto

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podemos chamar de invólucro, tomando emprestado o vocabulário steiniano a respeito

das vivências comunitárias vividas de maneira pessoal. Alguns declamaram as injustiças

sociais sofridas, outros, a esperança que sustenta a luta pela transformação da periferia.

Alguns compartilharam as impressões de um olhar estrangeiro àquele ambiente, e

outros declamaram seu amor a entes queridos. Mas todos declamaram.

Em um dos saraus que aconteceu à noite na EMEF, havia poucos alunos e apenas duas

mães, além da CP, Knup Acrata, dois membros de um coletivo de literatura e duas

estudantes de mestrado. Uma situação bastante significativa foi a participação de uma

das mães na declamação dos poemas. Ao entrar em contato com um dos livros de

literatura marginal, esta mãe quis dedicar uma das poesias à filha e se inscreveu para

participar. A literatura foi um recurso utilizado por ela para expressar seu amor à filha, e

esta experiência nos revela a repercussão de iniciativas articuladoras como esta do

sarau.103

Além dos saraus, podemos citar outras situações que se configuraram como vivências

comunitárias. Conforme afirmamos na primeira constelação, que trata dos sentidos do

projeto de articulação, os alunos e os professores da EMEF Igarapé pareciam não

compartilhar desde o início, e por completo, dos sentidos percebidos pelos gestores e os

coletivos. Entretanto, com o tempo esta situação se alterou. No caso dos alunos,

podemos dizer que, apesar da distância inicial, a experiência na oficina de literatura os

abriu para novos sentidos e proporcionou uma participação mais ativa no projeto. As

oficinas se configuraram como uma vivência comunitária tanto pelo sentido da

literatura, partilhado entre Knup Acrata e Baby Check por exemplo, quanto pelas

relações que se estabeleceram entre KA e os alunos, expressa de maneira significativa

na atitude solidária de Curinga e no fato de KA se descobrir educador nesta relação. É

interessante notar que, mesmo em situações onde houve conflito e reclamações entre os

alunos e destes para com o educador, estas situações se configuraram como vivências

comunitárias. Isto porque, como afirma Stein, as relações são comunitárias quando as

atitudes de um afetam os outros e vice-versa. Mesmo em uma guerra a autora afirma

que o fato dos inimigos se afetarem mutuamente nos permite afirmar que eles possuem

103 Embora este relato não esteja presente nas narrativas do Capítulo 5, julgamos oportuno narrá-lo como exemplo do sentido do sarau percebido pela pesquisadora ao participar desta atividade.

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uma relação comunitária. Sendo assim, podemos dizer que, de um modo geral, as

oficinas se configuraram como uma experiência comunitária.

Com relação aos professores, embora eles não tenham tido uma aproximação direta

com as oficinas de literatura e grafite, alguns fizeram atividades em parceria com o

Espaço Cultural (para a confecção de videos por exemplo) e, na percepção da CP, aos

poucos eles estão se abrindo mais para a comunidade do entorno, compreendendo e

vivendo a importância da articulação para o projeto pedagógico. Um exemplo citado por

ela foi o fato de eles terem planejado uma atividade com a comunidade articulando

várias disciplinas. Na visão de Alice, de tanto eles ouvirem falar da importância da

abertura para a comunidade, acabaram absorvendo isso e, de forma autônoma, incluíram

a comunidade em seu planejamento. Esta ideia mostra novamente que a articulação é

um processo longo, e que através do diálogo é possível, como afirma Edith Stein,

transformar uma vivência pessoal em vivência comunitária, ou seja, se voltar para o

outro na experiência que lhe é própria e com a qual posso viver algo em comum. O fato

de os professores planejarem sozinhos uma atividade com a comunidade demonstra que

o pensamento transmitido pelos gestores, aliado à própria experiência da articulação (a

presença dos membros da comunidade no ambiente escolar, por exemplo), abriu-lhes

para a compreensão deste sentido fazendo com que se desenvolvesse um pensar em

comum, não mais motivado unicamente pelos gestores, mas por eles próprios. Ainda

que esta hipótese não seja verdadeira, ou seja, ainda que os professores não comunguem

da dimensão da importância da abertura para a comunidade, mas tenham feito o

planejamento com o intuito de agradar a coordenação, respondendo a um papel no nível

da sociedade; ainda assim, podemos dizer que houve uma compreensão do sentido

partilhado porque, como afirma Edith Stein, para ser sociedade é preciso ser antes

comunidade. Isto significa que, mesmo que tenham agido para agradar a

coordenação,104 os professores precisavam conhecer e compreender os sentidos que

movem os gestores da EMEF Igarapé. Sendo assim, de alguma forma apreenderam a

importância da relação com a comunidade. Embora esta situação não tenha acontecido

numa relação direta entre membros da comunidade escola e membros da comunidade

coletivos, achamos importante destacar por exemplificar o modo como uma vivência

pessoal pode se tornar comunitária, e porque o sentido partilhado entre os professores e

104 Esta é uma suposição que nos permite enriquecer a análise e não uma afirmação, já que não conseguimos saber a motivação real dos professores nesta ação.

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a CP faz parte do núcleo de sentido comum do projeto de articulação, citado na primeira

constelação, segundo o qual a articulação com a comunidade é importante para uma

educação mais atraente para os alunos e mais humana.

Finalmente, uma terceira situação que gostaríamos de destacar como vivência

comunitária entre membros dos dois grupos foi a relação estabelecida entre Alice e

Knup Acrata. Como afirmamos na primeira constelação, o sentido do projeto de

articulação pareceu se abrir para a CP a partir do contato com os coletivos, e

principalmente a partir da convivência com Knup Acrata. Em seu relato durante a

devolutiva, vemos como esta convivência a sensibilizou para o modo de ser da

comunidade coletivo e a fez compreender que, enquanto escola, eles tinham muito o que

aprender com esta comunidade. Esta relação abriu para a CP um novo sentido, ou seja,

não apenas de pensar na comunidade coletivo como possibilidade de suscitar maior

envolvimento dos alunos, mas de ver no modo de ser desta comunidade um

enriquecimento para o modo de ser da escola, a possibilidade de um novo modo de

funcionar que facilita a construção de relações mais solidárias. Em seu relato, a CP

conta como buscou no dia-a-dia encontrar caminhos que possibilitassem a continuidade

do projeto de forma a articular estes dois modos de ser tão diferentes. Neste sentido,

podemos dizer que ela também foi uma das sustentadoras do projeto de articulação,

tendo um importante papel na execução das ações que o envolveu.

O último ponto que gostaríamos de abordar nesta constelação é a articulação expandida.

Ao longo do projeto vimos como surgiram diversas iniciativas e novas articulações com

pessoas e instituições. A descrição destas ações já foi feita nas constelações de Alice e

Knup Acrata. Portanto, evitaremos fazer uma nova descrição, mas incluímos abaixo um

gráfico ilustrativo onde todas elas estão contempladas. Desta forma, buscamos

explicitar como a articulação é um processo rico que repercute colocando em

movimento não apenas aqueles que se propõem a participar dela diretamente, mas

também os que estão no entorno.

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Literatura marginal

Grafite

Projeto Germinal

Espaço Cultural - Biblioteca comunitária - Saraus - Cine Alastre - “Novos Coletivos” - Reuniões de formação do

Grêmio - Oficina da Palavra

Apostila sobre Cultura de Paz

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8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa procuramos compreender a experiência de articulação entre escola e

comunidade do entorno a partir de um projeto de literatura marginal. Ao adotarmos

como referência um olhar fenomenológico, partimos do pressuposto de que a

compreensão do fenômeno da articulação seria possível pelo acesso à experiência vivida

dos participantes do referido projeto.

Sendo assim, tomamos como um primeiro objetivo compreender os sentidos que se

desvelaram para os participantes do projeto de literatura marginal, incluindo, além dos

sentidos relacionados diretamente ao tema da articulação, todos aqueles desvelados no

contexto de pesquisa por Francisco (diretor da EMEF), Alice (coordenadora

pedagógica), Knup Acrata (educador da oficina de literatura marginal) e pelos alunos.

Ao lado deste, outros dois objetivos foram propostos. O primeiro foi o de investigar,

junto aos professores de artes e português do Ensino Fundamental II, como foi

percebido o projeto e que repercussões foram observadas em sala de aula quanto ao

desempenho acadêmico e atitudes dos alunos participantes. O segundo buscou

investigar se houve contribuições do projeto para o processo educacional desses alunos.

O termo articulação foi utilizado nesta pesquisa de acordo com a visão de comunidade

de Edith Stein (1999b), compreendida como uma forma de agrupamento humano

originada da abertura dos sujeitos uns em relação aos outros, em uma relação de

reciprocidade que envolve as dimensões física, psíquica e espiritual da pessoa. À luz

desta visão, compreendemos a articulação entre EMEF Igarapé e a comunidade do

entorno como o encontro de duas comunidades (no sentido steiniano do termo). Desta

relação, Stein afirma que sempre surge uma nova comunidade, que compreende tanto a

comunidade original como os elementos vivificantes provenientes da nova com a qual

se encontra.

A articulação também é vista de acordo com o sentido apresentado pelos participantes

do Projeto Articulação e Diálogo a respeito de uma “ação articulada”. Como vimos, a

definem como:

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um encontro dialógico entre pessoas que compartilham objetivos comuns, para a construção de conhecimento com a participação de representantes de idades, gênero, escolaridade, experiências, origens diferentes, envolvendo a criação de vínculos entre protagonistas e compartilhamento de responsabilidade entre eles. Essas ações resultam em ganhos para todos os que dela participam e um sentimento de satisfação pessoal.105

Tomando como referência os pontos acima levantados, nas considerações que se

seguem, buscamos apresentar a compreensão que tivemos a respeito dos três objetivos

da pesquisa, além de apresentar os sentidos vividos pela pesquisadora durante o

processo.

No que diz respeito aos sentidos desvelados pelos participantes do ponto de vista do

projeto de literatura marginal, um ponto de convergência entre as visões de Francisco,

Alice e Knup Acrata, que nos pareceu fundamental para a possibilidade de articulação,

foi o fato de trabalharem pautados em uma visão comum de pessoa. Compreendem o

homem como um ser histórico e inserido em uma sociedade. Esta visão, como afirma

Edith Stein (1999a), serve de base para se traçarem os objetivos e os meios do processo

educacional. Neste sentido, tanto a EMEF Igarapé quanto os coletivos compartilham o

objetivo comum de querer despertar nas pessoas a consciência de si como ser histórico e

político, inseridos em uma comunidade. Com isso, esperam que elas saiam de uma

posição passiva, alienada, e passem a agir como membros desta comunidade,

contribuindo para o desenvolvimento da mesma. Na visão steiniana (1999b), este

objetivo pode ser traduzido como um desejo de fazer com que os alunos e os moradores

da comunidade do entorno tenham maior envolvimento com a vida comunitária,

passando a viver como membros e sustentadores da mesma. Tal objetivo é visto pela

autora como uma construção progressiva que acompanha o processo de crescimento

pessoal e que evidencia a dupla contribuição da tarefa educativa: a individual e a

comunitária. De fato, vimos como a pessoa e a comunidade possuem, na visão de Stein,

uma interdependência ontológica, ou seja, ao se desenvolver, o sujeito contribui para o

desenvolvimento da comunidade, e esta, por sua vez, o encoraja a manifestar sua

singularidade e a caminhar em direção ao seu pleno desenvolvimento (RUS, 2006).

105 Definição apresentada pelos participantes do Projeto Articulação e Diálogo em reunião ocorrida em agosto de 2009.

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Além da visão de homem e do objetivo educacional, os meios para alcançar este

objetivo também são compartilhados pela EMEF Igarapé e os coletivos. Ambos

parecem ver a articulação tanto como uma fonte de força vital necessária à realização

deste propósito, quanto como uma situação educativa em si mesma. Com relação à

primeira, vimos que, para Stein (1999b), a força vital de uma comunidade é constituída

pela força vital de seus membros, e pode ser acrescida ou diminuída devido a um

aumento ou diminuição do número de membros ou da sua maior ou menor dedicação à

vida comunitária; e também pelo contato com pessoas ou comunidades de fora. O

sentido atribuído à articulação como possibilidade de aumento da força vital foi

percebido tanto na EMEF Igarapé como nos coletivos.

Na EMEF, este sentido se evidenciou pela postura com que a escola chegou no bairro,

dialogando e propondo ações articuladas com grupos e instituições do entorno,

mostrando a importância atribuída à parceria para a sua consolidação e fortalecimento,

enquanto instituição educativa, e buscando nas possibilidades educativas da

comunidade do entorno uma fonte de força vital. Com relação aos coletivos, a

importância da articulação como fonte de força vital se fez notar tanto pela busca de

aproximação e de um local de encontro para os diferentes coletivos, quanto pela

participação no projeto de literatura marginal e das outras ações promovidas pelo

Espaço Cultural.

O segundo aspecto – da articulação como uma situação educativa em si mesma – foi

enfatizado principalmente por Francisco, diretor da EMEF Igarapé, ao abordar os

desafios do processo de articulação como questões inerentes ao humano. Segundo

Francisco, ao olharmos, por exemplo, para a resistência de algumas pessoas ao projeto

como a manifestação de uma necessidade humana de segurança, estamos ampliando a

nossa compreensão de ser humano, e consequentemente humanizando nossas relações.

Neste sentido, este modo de olhar, de ver os desafios inerentes à articulação, contribui

para uma educação humanista.

Outro meio compartilhado pela escola e pelos coletivos para alcançar o objetivo de

conscientização do papel político, comunitário das pessoas foi a produção cultural,

expressa pela literatura marginal, principalmente na forma de poesia. Vimos como a

poesia e os saraus tinham um lugar de importância nas vidas de Francisco e Knup

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Acrata, sendo um sentido partilhado antes mesmo do início do projeto. Para ambos, a

poesia tinha um sentido pedagógico de despertar os alunos para o seu papel político, de

aproximá-los da literatura e de ajudá-los a criar e expressar suas próprias produções.

Este último objetivo também foi partilhado por Alice, que via nas oficinas a

possibilidade de despertar a paixão dos alunos pela literatura e de ajudá-los a se

envolverem mais com a escola e com o conhecimento.

É interessante notar como os sentidos acima partilhados tinham um colorido particular

para cada participante, ou seja, eram vistos e vividos de acordo com sua história de vida

e seu papel institucional. Francisco, por exemplo, tinha um olhar amplo, voltado para a

construção de um projeto político pedagógico que fornecesse as diretrizes para uma

educação humanista. Alice voltava-se mais para o processo pedagógico e tinha uma

preocupação de ajudar os alunos a avançarem na construção e aquisição de

conhecimento, e Knup Acrata, por sua vez, tinha um olhar mais direto para a

transformação social, buscando conscientizar os alunos de seu papel político,

transformador.

Retomando a visão de Edith Stein a respeito das vivências comunitárias, podemos dizer

que o projeto de literatura marginal agregou Francisco, Alice e Knup Acrata em torno

de um núcleo de sentido comum que foi a visão de pessoa, os objetivos educacionais e o

meios de atingi-los acima citados. Este pareceu ser um conteúdo objetivo partilhado

pelos três, o que nos permite afirmar que o projeto se configurou como uma vivência

comunitária para estes participantes. Ainda pautados na visão de Stein, podemos dizer

que esta vivência comunitária foi vivida de forma pessoal por cada um deles, com um

viés singular que a autora chama de invólucro.

Com relação aos alunos, o sentido desvelado no início do projeto foi o de buscarem uma

aproximação com o grafite, ou seja, o que os movia era principalmente a vontade de

conhecer melhor e experimentar esta forma de produção cultural. Podemos pensar que

não se poderia esperar deles uma consciência das oficinas de grafite e literatura

marginal como parte de um projeto amplo de articulação da escola com a comunidade

do entorno, na forma como foi concebido pela equipe gestora. De fato, pareciam

enxergar cada oficina pontualmente, como mais uma atividade oferecida pela EMEF.

Apesar disso, o sentido atribuído ao grafite os aproximava do projeto e lhes permitia

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partilhar um dos aspectos do núcleo de sentido comum que era a vontade de

aproximação da cultura local, na expressão particular do grafite.

Apesar de não terem sido apresentados aos alunos de forma clara os objetivos amplos

do projeto, não significa, entretanto, que eles não tenham sido incluídos ou pensados

como parte do mesmo. Pelo contrário, vimos como os sentidos atribuídos pela equipe

gestora e por Knup Acrata tinham, em última instância, o desenvolvimento dos alunos

como foco. Entretanto, a preocupação por parte da equipe em criar estratégias que

facilitassem (ou até garantissem) a adesão dos mesmos às oficinas pareceu tomar o

lugar de um movimento anterior que seria o de partilhar com eles a proposta de cada

oficina, inserindo-os no projeto de forma mais ativa e participativa, ou seja, deixando

que cada um desse sua resposta pessoal de adesão ou não ao mesmo. Na prática, a

escola acabou criando uma estratégia para aproximá-los da literatura, que feriu, em um

primeiro momento, a possibilidade de escolha dos alunos. Foi decidido que aqueles que

quisessem participar do grafite teriam que participar também da literatura, mas esta

informação só foi passada aos alunos após as inscrições terem sido feitas. Apesar disso,

a proposta de trabalhar com o grafite aconteceu e os alunos foram contemplados neste

desejo.106

No que diz respeito aos professores, pareceu haver uma falta de comunicação da equipe

gestora em relação ao projeto. Embora esta equipe tenha uma postura clara de defender

a importância da abertura para a comunidade do entorno e, segundo Alice, esta postura

ser passada para os educadores, os relatos dos professores de artes e português

demonstram que não houve participação dos mesmos especificamente no projeto de

literatura marginal.

Respondendo ao segundo objetivo desta pesquisa, ou seja, de investigar junto a estes

dois professores a sua percepção em relação ao projeto e em relação às repercussões nos

alunos em sala de aula e quanto ao desempenho acadêmico, podemos dizer, em primeiro

lugar, que a professora de artes não conhecia a proposta da oficina de literatura marginal

e também não conseguia identificar os alunos que dela participavam. Esta falta de

106 Vimos como, apesar da interrupção das oficinas de grafite pela saída dos educadores no meio do projeto, Knup Acrata assumiu dando continuidade às mesmas. Além disso, como encerramento das oficinas no final do ano de 2010, foi feito um evento coordenado pelo Espaço Cutural durante o qual os alunos grafitaram toda a escola, experimentando, na prática, a articulação.

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conhecimento foi vista por ela como consequência da falta de tempo dentro da escola,

que acaba limitando os professores ao universo restrito de suas obrigações mais diretas.

Segundo a professora, o planejamento da oficina de teatro (que ela ministrava) e a

articulação com as duas outras professoras que dela participavam era uma prática que

funcionava, mas não sabiam o que acontecia nas outras oficinas.

Já o professor de português sabia um pouco mais sobre o projeto, embora também não

conseguisse identificar os alunos participantes e tivesse escolhido, desde o início, pela

não-adesão ao mesmo, por entender que seus objetivos com os alunos eram diferentes

dos objetivos de Knup Acrata. Segundo ele, a literatura marginal tem uma proposta

mais livre, sem preocupação de corrigir a parte gramatical ou outros objetivos que na

sua visão correspondem ao papel de um professor de português. Esta visão é

interessante porque concorda com Guará (2003), ao afirmar que a possibilidade de

articulação entre escola e ONGs ou outros grupos informais que trabalham com

educação é rica porque estes grupos têm liberdade curricular para tentar metodologias

alternativas podendo colaborar para melhorar o desempenho escolar dos alunos. De

fato, tanto o professor de português quanto Knup Acrata fizeram questão de evidenciar

a especificidade de seu trabalho apresentando as diferenças entre a visão escolar e a

visão da literatura marginal. Para ambos, estas especificidades impossibilitariam um

trabalho conjunto. Entretanto, Guará afirma o contrário, ou seja, apresenta a

especificidade como uma forma complementar, que, sem rivalizar, poderia enriquecer

cada um dos trabalhos. Mas, para isso, a condição necessária seria a abertura por parte

dos dois educadores, o que não foi possível naquele momento.

Assim, temos que os professores de português e de artes veem o projeto de literatura

marginal como algo distante deles, externo à sua realidade escolar. Isto demonstra que

faltou comunicação entre este grupo e os gestores da escola em relação ao projeto de

articulação.107

107 É interessante notar, entretanto, que em 2010 um dos coletivos iniciou a oficina Escola da África na EMEF. O início deste trabalho se deu com a realização das oficinas em primeiro lugar para os professores e isto demonstra que novas estratégias de envolvimento deste grupo nas ações de articulação estão sendo pensadas e propostas.

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Na tentativa de clarificar a visão do processo de articulação enquanto vivência

comunitária na visão de Edith Stein, apresentamos abaixo um esquema ilustrativo que

nos permite ter uma visão geral desta descrição.

VIVÊNCIA COMUNITÁRIA

A figura ilustra a unidade entre Francisco, Alice e Knup Acrata em torno de um núcleo

de sentido comum que foi a visão de pessoa, os objetivos educacionais e os meios para

alcançá-los. Um pouco mais distante, temos os alunos, partilhando um dos aspecto deste

núcleo de sentido que foi o grafite; e mais distantes, os professores, praticamente

alheios ao projeto de literatura marginal. As cores diferentes ilustram o fato de que cada

grupo ou participante vivencia o projeto com um colorido particular (invólucro).

Retomando o segundo objetivo desta pesquisa, especificamente com relação ao modo

como os professores de artes e português veem as repercussões do projeto de literatura

marginal nos alunos em sala de aula e no seu desempenho acadêmico, podemos dizer

que a falta de conhecimento e envolvimento dos professores no projeto acabou

comprometendo esta investigação. O que obtivemos foram relatos a respeito dos alunos

de um modo geral, e não daqueles participantes das oficinas de literatura e grafite.

Segundo a professora de artes, em sua aula ela percebe os alunos bastante participativos

e demonstrando um melhor relacionamento entre eles do que no início do ano escolar.

Entretanto, considera que esses fatores decorrem do seu modo de lidar com eles, ou

seja, pelo fato de terem feito para sua aula combinados que eles respeitam, e também

Alice

ALUNOS

PROFESSORES FRANCISCO

NÚCLEO DE

SENTIDO COMUM

ALICE KNUP

ACRATA

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pelo fato de terem tido poucas aulas no ano, devido a feriados e às oficinas de teatro.

Acredita que, com isso, os alunos sentiram falta das aulas de artes e, quando vinham,

queriam fazer as coisas.

O professor de português, por sua vez, afirmou não ter percebido nenhuma mudança

significativa naqueles alunos particularmente. Reconheceu, entretanto, uma mudança de

atitude das meninas em relação à literatura. Percebeu um maior interesse pela leitura e

associa este fato à presença da biblioteca comunitária na escola.

A investigação em relação ao desempenho acadêmico também ficou comprometida não

apenas pela falta de conhecimento dos alunos e do projeto por parte dos professores,

mas pela compreensão de Alice a respeito da avaliação na escola. Segundo ela, as notas

não correspondem à realidade vivida dos alunos. Relata que são obrigados a utilizar

certos critérios que não levam em conta o processo de cada aluno, mas sim são pautados

sobre um olhar massificado de resultados concretos, palpáveis, que não evidenciam as

melhoras sutis. Essa visão também é partilhada por Francisco ao afirmar a importância

desta pesquisa por apontar contribuições de um projeto como este, que não são

reconhecidas a olho nu.

As considerações de Alice e de Francisco nos fazem pensar que o fato desta articulação

ocorrer dentro de uma instituição escolar de caráter público, e não em outro ambiente

qualquer, deve ser levado em consideração. De fato, Stein (COELHO JUNIOR, 2006)

afirma que, para compreendermos uma comunidade, devemos compreender não apenas

as relações intersubjetivas, mas também aspectos objetivos desta comunidade. Um

aspecto objetivo foi o fato da articulação ter nascido dentro do ambiente escolar, dentro

de uma instituição municipal de ensino, de uma sociedade organizada com leis e

objetivos próprios. Vimos, ao longo das análises e dos relatos, que havia uma constante

tensão dos participantes em torno deste aspecto. Se por um lado a organização social da

escola facilitava o desenvolvimento de muitas ações, oferecendo espaço, estrutura,

agregando pessoas de diferentes contextos e dando visibilidade para o trabalho dos

coletivos, por outro, o seu modo de ser, muitas vezes burocrático e engessado, a

expectativa de resultados concretos por parte da Secretaria de Ensino, a falta de tempo

dentro de uma rotina de trabalho bastante exigente, entre outros fatores, dificultava a

manutenção de uma postura dialógica e articuladora em vários momentos do processo.

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Este pareceu ser o maior desafio para Francisco, que tinha como aspiração levar esta

experiência para o projeto pedagógico, no sentido de transformar a própria estrutura

escolar de forma a incorporar a articulação com a comunidade do entorno nesta

estrutura, ou seja, buscar a construção de uma nova estrutura, de forma a comportar

uma nova escola.108

A aspiração de Francisco remete-nos mais uma vez à ideia de Stein (1999b), de que a

base da sociedade é a pessoa e a vida comunitária que dela brota. A estrutura social da

escola, portanto, deve ser cuidada no sentido de não abafar as relações comunitárias,

mas servir a estas oferecendo suporte e estabilidade pela sua forma de se organizar. Na

visão de Berger e Luckmann (2004), instituições como a escola podem contribuir para

uma transformação social à medida que ela assume uma postura de instituição

intermediária, contribuindo para que as pessoas que se reúnem em torno dela

participem na produção e processamento do acervo social de sentido e deixem de

experimentá-lo como algo imposto e prescrito autoritariamente. A escola seria, assim,

intermediária entre as pessoas da comunidade do entorno (em suas comunidades de

vida) e as grandes instituições da sociedade, permitindo que estas pessoas contribuíssem

para a construção e transformação da sociedade.109

A partir deste ponto de vista, podemos compreender a articulação da escola com a

comunidade do entorno como um possível caminho para a realização deste papel de

instituição intermediária da escola. Caminho exigente, no qual uma das questões em

jogo parece ser o perigo de se cair tanto no sociologismo – onde as pessoas são

conformadas aos mecanismos de uma comunidade, inibindo o seu desenvolvimento

pessoal –, como no individualismo – onde a natureza pessoal cresce com tal força que a

comunidade se torna estreita para ela. Nesta perspectiva, acreditamos que a proposta de

uma educação social de Edith Stein poderia trazer grandes contribuições a iniciativas de

articulação como esta. Embora este tema não tenha sido aprofundado no presente

trabalho (ficando a sugestão para pesquisas futuras), seus objetivos parecem vir ao

encontro do desejo de abertura e de articulação percebido tanto na comunidade escola

como na comunidade coletivos. Segundo Coelho Junior (2006), Stein propõe uma

108 Esta afirmação embasa-se no relato de Francisco no Capítulo 6, item 6.1, ao fazer referência à expressão de Arroyo de que não se faz uma escola nova em uma estrutura velha. 109 Um exemplo deste papel seria a possibilidade, levantada por Francisco, de levar experiências de articulação como esta para o projeto político pedagógico das escolas.

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educação social no sentido de ajudar uma comunidade a integrar a individualidade de

seus membros e a acolher novos membros na vida comunitária, sem distanciar-se de seu

caminho próprio. Tal proposta, segundo o autor, acontece principalmente na vida

prática, através do relacionamento entre as pessoas. Neste sentido, pensamos que o

próprio processo de articulação seria uma situação rica para intervenções com este

objetivo.

Retomando a tentativa de compreensão dos objetivos propostos, diante da constatação

de pouco conhecimento dos professores de artes e português em relação ao projeto e das

considerações de Alice a respeito do modelo de avaliação proposto pela Secretaria

Municipal de Ensino, descartamos a possibilidade de uma investigação mais detalhada

em relação ao desempenho acadêmico dos alunos e debruçamo-nos na sua experiência

vivida, procurando identificar se houve contribuições do projeto do ponto de vista do

processo educacional daqueles que participaram.

Conforme apontamos, a primeira aproximação dos alunos com o projeto se deu pela

vontade que eles tinham de grafitar. Como estratégia da escola de aproximá-los também

da literatura, os que tinham se inscrito no grafite integraram as oficinas de literatura

marginal de forma praticamente obrigatória. Conforme aponta Edith Stein (1999b),

foram conduzidos pela equipe gestora à realização, não apenas um projeto próprio (o

grafite), mas também, como acontece na massa, de um projeto de fora, planejado pela

equipe gestora (a literatura marginal).

Entretanto, passado este primeiro momento, os alunos puderam esclarecer os objetivos

das oficinas e as condições para a sua participação, e cada um teve oportunidade de se

posicionar e decidir se ficava ou não no projeto. Alguns saíram e outros permaneceram;

não mais como massa, mas como membros de uma vida comunitária que se formou em

torno da oficina. De fato, vimos que a relação entre Knup Acrata e os alunos se

configurou como uma relação comunitária no sentido apontado por Stein (1999b), ou

seja, uma relação de abertura e reciprocidade, onde cada membro foi afetado

pessoalmente ampliando a visão de si e dos colegas, e descobrindo novos sentidos em

relação à literatura e ao grafite, a sua pertença à comunidade do entorno, ao ser punk, e

até mesmo em relação ao conhecimento, visto como ferramenta pessoal de

transformação do olhar da sociedade sobre a periferia.

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Do ponto de vista educacional, ou se quisermos, do ponto de vista formativo para Stein

(1999c), compreendido como um processo dinâmico, onde, a partir da relação eu-

mundo, o sujeito faz escolhas e caminha buscando tornar-se cada vez mais si mesmo,

podemos dizer que o projeto de literatura marginal trouxe grandes contribuições para os

alunos. Durante a análise, ressaltamos duas situações significativas que ilustram esta

afirmação, as quais gostaríamos de retomar nestas considerações. A primeira foi a

atitude solidária de Curinga ao tomar a decisão de ir à oficina apesar de ter outro

compromisso no mesmo horário, para não deixar Knup Acrata sozinho.

A segunda situação foi o processo de transformação observado em Baby Check ao

longo das oficinas. Do interesse exclusivo pelo grafite, Baby Check passou a se

interessar pela literatura marginal, a criar, produzir poemas e letras de rap. Passou

também a se conhecer melhor e a revelar seu mundo interno aos colegas através de sua

produção literária, deixando transparecer novas faces de seu ser, mais aberto e menos

defensivo. Além disso, o contato com Knup Acrata e os coletivos permitiu que ele

revisse posições preconceituosas em relação ao ser punk ou ao interesse dos colegas

pela leitura. Finalmente, a percepção de si como membro da comunidade do entorno e a

consciência de participar de uma coisa boa dessa comunidade que é a sua escola

refletem a contribuição do projeto para Baby Check e outros alunos que partilharam a

descoberta de sentidos semelhantes.

Além disso, o projeto trouxe benefícios educacionais não apenas para os alunos, mas

para vários participantes dessa experiência. Algumas famílias, por exemplo, partilharam

o sentido da literatura ao participarem dos saraus. Vimos como uma mãe teve

oportunidade de expressar seu amor à filha. O percurso pessoal de Knup Acrata foi

outro exemplo. O fato de descobrir-se educador e de querer atuar profissionalmente

como tal demonstra que o projeto proporcionou movimentos internos e externos de

aproximação das pessoas a novos sentidos, contribuindo para o processo de tornarem-se

mais si mesmas. Contribuiu para o desenvolvimento pessoal dos participantes ao

proporcionar diálogos e reflexões que sozinhos talvez não chegassem. Como afirma

Edith Stein (COELHO JUNIOR, 2006), ao se configurar como uma experiência

comunitária, a articulação contribuiu para o crescimento pessoal de seus participantes,

seja despertando aptidões que na ausência deste ambiente talvez permanecessem

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adormecidas (escrever poesias, por exemplo), seja pela possibilidade de apreensão de

significados e valores compartilhados ou por outras repercussões que o contexto

relacional de uma vida comunitária pode proporcionar.

Dentro deste processo, segundo relato de Alice, até mesmo os professores pareceram se

beneficiar. Embora não tendo acompanhado e vivenciado o projeto de literatura

marginal, Alice relatou que eles passaram a incluir no planejamento projetos articulados

entre si (envolvendo diferentes matérias) e com a comunidade. Alice acredita que o fato

de conviverem em um ambiente onde a comunidade do entorno está presente acabou

tendo uma influência positiva nos professores, despertando-os para a articulação. Esta

constatação, entretanto, não deixa de lado a importância da reflexão a respeito do modo

como os professores foram envolvidos no projeto. Como vimos, Stein também afirma

que, quanto mais sustentadores uma comunidade possui, maior a chance de ela se

perpetuar no tempo e maior consistência ela terá na sua forma de se apresentar ao

exterior. Sendo assim, deixamos nestas considerações a compreensão de que um projeto

de articulação dentro de uma instituição escolar teria nos professores um grande

potencial de sustentação. Apesar de terem sido beneficiados, podemos pensar que se

tivessem compartilhado os sentidos vividos por Francisco, Alice e Knup Acrata (o

núcleo de sentido comum) desde o início através da comunicação, poderiam ter tido a

chance de se inserirem no projeto de forma mais pessoal. Não que o fato de

comunicarem garantisse o engajamento desse grupo, mas seria uma oportunidade de

experimentarem o mesmo sentido partilhado pelos outros; pois, como afirma Stein

(1999b), as vivências podem se tornar comuns ao serem partilhadas. Sem partilha, sem

comunicação, a vida comunitária fica impossibilitada.

Retomando a discussão a respeito das contribuições do projeto de articulação, podemos

dizer que a visão interacionista de Stein e de autores como Berger e Luckmann a

respeito da relação pessoa e comunidade ilustram a importância social de iniciativas

como esta; pois à medida que ela traz benefícios pessoais aos membros da escola e dos

coletivos, e ainda a outros membros da comunidade do entorno (como às famílias, por

exemplo), ela também está contribuindo para o desenvolvimento dessas comunidades.

De fato, vimos, no capítulo anterior, as repercussões positivas do projeto tanto na

comunidade escola como na comunidade coletivos do ponto de vista físico, psíquico e

espiritual.

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Do ponto de vista físico, vimos como a escola ganhou novos espaços, novos membros e

novas atividades. Os coletivos, por sua vez, tiveram a concretização de um território,

um local de encontro e promoção de atividades que foi o Espaço Cultural. Também

houve modificação nas suas configurações, com entrada e saída de novos membros,

formando novos grupos com foco na educação.

Do ponto de vista psíquico, ambas as comunidades tiveram sua força vital fortalecida.

Contagiaram alunos, famílias e professores no sentido de experimentarem a paixão pela

literatura; e proporcionaram a estas pessoas experiências de articulação através dos

saraus, do Cineclube Alastre e de outras atividades. Do ponto de vista espiritual, tanto a

comunidade escola como a comunidade coletivos tiveram oportunidade de crescer na

consciência de si, afinando objetivos, motivações e a visão de seu papel na sociedade.

Ambas as comunidades são recentes no bairro, são novas comunidades nascendo,

buscando parceiras para se fortalecer. A articulação foi importante neste sentido. Foi um

movimento conjunto de várias comunidades sendo gestadas. No caso dos coletivos, por

exemplo, houve uma compreensão de serem itinerantes do ponto de vista das oficinas,

mas ao mesmo tempo experimentaram a importância de terem um local fixo para se

articularem melhor. Diante de todas essas repercussões, podemos afirmar que o projeto

de literatura marginal é um exemplo de como pequenos grupos articulados têm um

potencial para a construção da sociedade.

Por fim, gostaríamos de explicitar os sentidos que o projeto de literatura marginal

despertou na pesquisadora. Em primeiro lugar, a constatação do grande prazer na

realização desta pesquisa, proporcionado pela oportunidade de articular temas e

situações cuja importância e sentidos foram explicitados na Introdução deste trabalho:

Edith Stein, fenomenologia, o trabalho comunitário, educação e literatura. Além disso, a

grande riqueza e aprendizado proporcionado pelo encontro com pessoas comprometidas

com o ser humano e com a construção de uma sociedade mais justa.

Vivi, durante o projeto de literatura marginal, não apenas a articulação da escola com a

comunidade do entorno, mas articulações internas, despertadas por esta experiência,

como, por exemplo, a articulação entre o oculto e o aparente. Durante a análise, percebi

que um aspecto importante para a compreensão da articulação seria a compreensão dos

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processos de escolha e das tomadas de decisão que envolviam a participação das duas

comunidades: escola e coletivos.

Nesta pesquisa, buscamos acompanhar um projeto de articulação já em andamento,

procurando compreender principalmente as suas repercussões. Acreditamos que a

pesquisa cumpriu seus objetivos ao explicitar a importância de projetos como este para

o processo educacional dos alunos e, de um modo geral, para todos os envolvidos,

repercutindo inclusive no âmbito mais amplo da própria sociedade.

Este acompanhamento também nos permitiu compreender que a articulação é um

processo dinâmico que não pode ser totalmente projetado ou pré-definido de antemão,

pois acaba sendo delineado na prática, conforme as demandas acontecem e as pessoas

se posicionam. Neste sentido, acredito que foi muito rico poder acompanhar os rumos

da articulação no seu acontecer cotidiano. Por outro lado, conforme o relato de

Francisco, as oficinas de literatura foram a dimensão aparente do projeto; e este

aparente foi o resultado de um longo processo de encontros e negociações de conflitos

que permaneceram ocultos, mas que foram essenciais para que o aparente se

concretizasse. Ainda na visão do diretor, esse longo processo muitas vezes não é

valorizado pela lógica escolar e, mais ainda, é tão exigente que acaba sendo um fator de

peso que faz com que as pessoas desistam de levar adiante projetos que envolvam

articulação com grupos diferentes.

Diante desse relato, aliado a outras situações onde os processos decisórios não ficaram

claros para a pesquisadora,110 pensamos que estudos futuros que se proponham a

compreender o fenômeno da articulação trariam uma grande contribuição ao

acompanhar o processo desde o seu nascimento, incluindo nas suas observações e

relatos os encontros entre os membros dos grupos comunitários envolvidos. Enfim, seria

enriquecedor acompanhar o oculto do projeto, de forma que ele possa alimentar

reflexões e discussões que colaborem para a construção de novas articulações e para a

continuidade daquelas já estabelecidas. Se pensarmos concretamente no projeto de

literatura marginal, estudos como este poderiam nos auxiliar, por exemplo, em modos

110 Por exemplo, como foi decidido que a primeira oficina de literatura terminaria e iniciariam uma nova só com os alunos interessados de fato na literatura marginal; ou, anterior a isto, como foi feito o planejamento das oficinas.

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de envolver desde o início e de forma mais intencional o grupo dos professores, elos tão

importantes para a sustentação de projetos que envolvam a instituição escolar.

Outra articulação vivida foi entre o ideal e o possível, o pensado e o vivido, segundo

expressões utilizadas por Szymanski.111 Uma situação concreta que ilustra este aspecto

foi a forma como fui afetada pelo relato dos alunos em relação ao processo de escolha

das oficinas. Embora compreenda o recurso utilizado pela escola para aproximar os

alunos da literatura, o que mais me tocou nesta situação foi o desencontro percebido em

seus relatos. A visão parcial com a qual esta situação foi analisada em um primeiro

momento pode ser revista com o auxílio e interlocução da orientadora. Desta situação,

pude perceber o quanto meu olhar estava dirigido por uma visão ideal da articulação,

pautada na visão steiniana a respeito das relações comunitárias. Entretanto, como afirma

a própria autora, não existem relações comunitárias puras, ou seja, os agrupamentos

humanos são mistos, as relações são dinâmicas, ora dialógicas, ora impositivas, ora

pessoais, ora massificadas, acompanhando a riqueza do próprio fenômeno humano.

Esta situação vivida pela pesquisadora demonstra como temos pressupostos rígidos que

queremos que aconteçam. Demonstra, ainda, o grande desafio da postura

fenomenológica de suspensão, de desapego desses pressupostos para possibilitar que o

fenômeno se mostre tal como é, dinâmico e complexo, e não tal como gostaríamos que

fosse, enrijecido em uma forma idealizada. Mostra ainda a importância da abertura ao

outro e da vida comunitária para a compreensão do mundo, para o aprendizado, assim

como a importância da presença de interlocutores tanto do mundo acadêmico, como da

escola e dos coletivos para a ampliação dos sentidos vividos e a flexibilização de ideias

pré-concebidas.

Além da situação descrita a respeito do processo de escolha dos alunos, vimos que a

relação da pesquisadora com a literatura marginal também foi um ponto de interlocução

importante. A descoberta dos coletivos, da luta dos jovens da periferia por uma

sociedade mais justa, a percepção do profundo engajamento destes jovens na vida

comunitária criada em torno deste ideal e da riqueza de suas produções culturais

111 Szymanski aborda a família pensada como um modelo idealizado de família, pautado na sua estrutura e não na qualidade das inter-relações. A família vivida, por sua vez, é compreendida como aquela que emerge da análise do cotidiano familiar, e que muitas vezes não corresponde ao ideal desejado da família pensada (SZYMANSKI, 2002).

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(grafite, pintura, música e poesias) constituíram uma experiência de abertura para a

pesquisadora a novos sentidos, despertando a vontade de mergulhar mais na vida da

comunidade do entorno, de querer compreender esses movimentos sociais e de

aprofundar o estudo de suas produções, principalmente da literatura marginal. De fato,

ao longo das narrativas, vários poemas foram trazidos como forma de ilustrar tanto o

sentido dos coletivos como o das oficinas de literatura. Além disso, a própria resposta

da pesquisadora ao modo como foi afetada por esta realidade através da produção de

poemas e participação nos saraus revela o envolvimento com o tema durante o processo

de imersão no contexto de pesquisa. Segue abaixo o trecho de um dos poemas, que

ilustra esta vivência:

Periferia central112 Do abandono ao encontro Da falta à riqueza Do suspiro ao abraço O coletivo alimenta um ideal Fortalece a periferia Contagia a esperança Grita pra ela não ser esquecida Sou estrangeira nesse mundo Periférica na periferia Mas entro em sintonia Por aquilo que me contagia Me contagia a esperança O poema das crianças A doação, a doação, a doação Repito: A doação! Ah periferia.... Quem foi que te chamou assim? Periférica do que, de onde, de quem? Esse chamar esconde teu brilho (...) Não, não és periférica Nos seus gestos solidários Ocupas o lugar central

112 Poesia escrita pela pesquisadora após a apresentação do documentário a respeito dos coletivos, como parte da programação do Cine Clube Alastre.

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Teu brilho são as pessoas Teu brilho é a vida que se impõe pra ser feliz Ah periferia... Quem foi que te chamou assim? Eu é que sou periférica, aprendiz do brilho teu (...)

Segundo devolutiva da orientadora, esta realidade pareceu ofuscar a pesquisadora em

certo momento do percurso, desviando o foco do trabalho da articulação para a

literatura marginal. Durante a análise, o exercício de redução possibilitou retomar o

fenômeno da articulação. Deixamos como sugestão, entretanto, a possibilidade de novos

estudos que se debrucem sobre os coletivos e a literatura marginal. Acreditamos que

uma análise cuidadosa de suas produções seria um rico campo de conhecimento do

modo de ser e de pensar desses movimentos sociais, pois, como afirma Edith Stein

(1999a, p.107), “a língua revela o tipo específico dos povos”. Para estudos como este, a

própria Edith Stein, além de outros autores da fenomenologia que se dedicaram ao

estudo da obra de arte literária, poderiam trazer grandes contribuições.

Retomando a discussão a respeito da articulação entre o pensado e o vivido, podemos

dizer que este parece ser um grande desafio para o processo de articulação. A

dificuldade de harmonizar a visão escolar e a visão dos coletivos, vivida ou relatada por

quase todos os participantes,113 nos levou a refletir desta forma. Podemos relacionar

estes dois aspectos (pensado e vivido / ideal e possível) tanto à noção de consciência de

Berger e Luckmann (2004), quanto à noção de vivência comunitária de Edith Stein

(1999b). No primeiro caso, vimos que os autores concebem a consciência como uma

superposição de planos onde o mais profundo comportaria os conhecimentos

inquestionavelmente certos para o indivíduo (talvez o plano dos valores, dos princípios),

sendo as camadas mais superficiais constituídas pelo campo da incerteza, das opiniões

que o indivíduo está disposto a reconsiderar. Berger e Luckmann apontam para o

fenômeno da modernização da consciência como a perda do plano mais profundo,

gerando nas pessoas dificuldade de encontrar caminhos. Fazendo um paralelo com o

pensado e o vivido, ousamos afirmar que o desafio da articulação entre essas duas

113 Esta dificuldade foi vivida, por exemplo, por Knup Acrata e o professor de português ao negarem a possibilidade de um trabalho conjunto. Também foi relatada por Alice ao evidenciar a diferença entre os coletivos e a escola no modo de administrar a biblioteca, emprestar os livros; e por Francisco ao relatar os desafios de incluir experiências com a comunidade no projeto pedagógico.

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instâncias estaria não na supressão do plano mais profundo da consciência, mas na

absolutização dos planos superficiais, enrijecendo-os de modo que os caminhos para se

pensar a realização dos princípios presentes nos planos mais profundos da consciência

sejam reduzidos a um único modo de fazer.

Paralelo semelhante pode ser feito a partir da noção de vivência comunitária de Stein.

Vimos como a vivência comunitária reúne os sujeitos em torno de um núcleo de sentido

comum, ou seja, as vivências individuais comungam de um objeto comum, denominado

núcleo de sentido. Vimos, também, que cada pessoa vivencia este núcleo de forma

singular e que a inter-relação entre as diversas formas singulares de viver este núcleo

forma uma nova totalidade que é mais do que simples soma dos elementos, é

supraindividual. Sendo assim, cada sujeito, com sua forma singular de viver o núcleo de

sentido comum é elemento constituinte da vida comunitária que se cria em torno desta

vivência.

Partindo dessas duas noções, podemos pensar no desafio da articulação entre pensado e

vivido como o desafio, no caso de Berger e Luckmann, de flexibilizar os estratos mais

superficiais da consciência, de forma a abrir-se para acolher novos meios de

concretização dos sentidos mais profundos. Da mesma forma, na visão de Stein, o

desafio parece ser o de fixar-se no núcleo de sentido comum, vendo nele a possibilidade

de articulação com outros grupos, e acolher os diferentes modos de vivenciar o núcleo

como riqueza para a vida comunitária que se forma, resultado da harmonia decorrente

da articulação dos vários grupos.

Nesta perspectiva, conforme afirmamos na discussão, o modo de ser acadêmico, o modo

de ser anarcopunk, o modo de ser pragmático e muitos outros, todos eles poderiam ser

acolhidos como diferentes meios para a concretização de um ideal comum. Poderiam

ser acolhidos naquilo que têm de contribuição para a realização do núcleo de sentido

comum, enriquecendo o projeto de forma a beneficiar a todos. Esta pode parecer

novamente uma visão ideal. Mas, como ideal, não esperamos que aconteça o tempo

todo no vivido, mas que sirva como um princípio norteador para os rumos de um

projeto que se proponha articulador. Tomando novamente a noção de Stein, poderia ser

um princípio partilhado no início do projeto de forma a participar do núcleo de sentido

comum vivido pelos participantes.

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Por fim, conforme relatamos no início do trabalho, uma das motivações básicas desta

pesquisa, ou seja, o pano de fundo que me colocou em movimento foi a articulação

entre o divino e o humano. Relatei como a experiência de fé me motivava a querer me

aproximar das pessoas, me impulsionava a percorrer o caminho horizontal da cruz,

compreendido como o tecer das relações humanas. O encontro com as pessoas ao longo

desta pesquisa ampliou este sentido inicial e me fez experimentar o sentido contrário

desta afirmação. Percebo sim que, quanto mais avanço no caminho de ser-com-o-Outro

(percurso vertical da cruz), mais ele me impulsiona a querer ser-com-os-outros

(percurso horizontal da cruz). Entretanto, experimentei também que, quanto mais

avanço no percurso horizontal, mais me aproximo do divino. O divino que se manifesta

no encontro humano, na abertura ao outro, nas centelhas de vida comunitária que se

evidenciaram ao longo deste projeto.

Tal reflexão me faz retomar um aspecto apresentado por Stein a respeito do processo de

formação. Segundo a autora, somente participa da constituição da pessoa o material

espiritual acolhido no íntimo da alma; e a receptividade da alma para acolher e se deixar

transformar por esses bens espirituais está mais ligada à vida afetiva e volitiva que ao

intelecto. Neste sentido, finalizo esta pesquisa partilhando um sentido pessoal que me

acompanhou desde o início do processo e pelo qual procurei me guiar:

“Ainda que eu tenha o conhecimento de todos os mistérios e

toda a ciência; se eu não tiver amor, eu nada sou.” (I Cor 13, 2)

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Anexo - Aprovação no Comitê de Ética