ales-bello, angela. introducao a fenomenologia.pdf

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  • Posso compreender o sentido das coisas? Esta uma grande pergunta, e muito crtica tambm. A resposta de Husserl que o ser humano pode compreender o sentido das coisas. At a nossa experincia quotidiana nos diz que, para nos orientarmos, deve-mos saber qual o sentido das coisas. Porm, aqui o discurso fica um pouco mais complicado, porque Husserl mostra que em rela-o a algumas coisas ns temos a capacidade de identificar o sen-tido imediatamente, enquanto em outras, temos mais dificuldade. Ns intumos o sentido das coisas e para tratar desse tema, usa-mos a palavra, de origem latina, essncia, portanto captamos a essncia pelo sentido. Husserl usa tambm a palavra grega eidos (de onde vem a nossa palavra idia, que, neste caso, no significa tanto um produto da mente, mas sentido), aquilo que se capta, que se intui.

    FILOSOFIA POLTICA

    ANGELA ALES BELLO

  • Coordenao Geral Ir. Elvira Milani

    Coordenao Editorial Ir. lcinta Turolo Garcia

    Coordenao Executiva Luzia Bianchi

    Comit Editorial Acadmico Ir. Elvira Milani - Presidente

    Glria Maria Palma Ir. facilita Turolo Garcia

    Jos Jobson de Andrade Arruda Marcos Virmond

    Maria Arminda do Nascimento Arruda

    FILOSOFIA POLTICA

    Introduo Fenomenologia

    Angela Ales Bello

    Traduo Ir. Jacinta Turolo Garcia

    Miguel Mahfoud

    Texto editado a partir de Palestras da Profi Angela Ales Bello editadas por

    Miguel Mahfoud Silvio Motta Maximino

    EDUSC

  • EDUSC Rua Irm Arminda, 10-50

    CEP 17011 160 - Bauru-SP Fone (14) 2107-7111 - Fax (14) 2107-7219

    e-mail: [email protected]

    A37U Mes Belk), Angela. Introduo fenomenologia / Angela Ales Kello ;

    traduo Ir. Jatinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru, SP : Eduse, 200b.

    108 p.; 21 cm. -- (Coleo Filosofia e Poltica)

    Inclui bibliografia. ISBN 85-7460-329-5

    I. Fenomenologia I. Titulo. II. Srie. CDD 142.7

    Copyright - EDUSC, 200o

    Texto editado por Miguel Mahfoud e Silvio Motta Maxiniiuo, a partir do curso ministrado pela Professora Angela Ales Bello

    na Universidade do Sagrado Corao, Bauru tSl') em 2001.

    SUN/iRIO

    APRESENTAO 9 Experincia vivida e reflexo sistemtica

    13 INTRODUO

    CAPTULO 1 17 O que fenmeno e Fenomenologia?

    CAPTULO 2 21 A Fenomenologia como mtodo

    22 Primeira etapa A busca do sentido dos fenmenos: a reduo eidtica

    26 Segunda etapa Como o sujeito que busca sentido: a reduo transcendental

  • Sumrio

    CAPITULO 3

    45 A conscincia e as estruturas universais

    CAPITULO 4

    57 A sntese passiva: tase anterior percepo

    CAPTULO 5 61 O Eu, o outro e o ns: a entropatia

    CAPITULO 6

    69 A intersubjetividade: as modalidades de associao e a pessoa

    70 Massa: predominncia corpreo-psquica -impulsos utilizados por projetos alheios

    73 Comunidade: vnculos corporais, psquicos e espirituais

    75 Comunidade e sociedade 76 Povo, nao, estado e comunidade

    CAPTULO 7 85 A anlise das vivncias para um fundamento

    das cincias 88 A criao evolui: a histria da natureza

    indica uma teleologia

    '

    Sumrio

    CAPTULO 8 O mtodo fenomenolgico husserliano e o existencialismo

    CAPTULO 9 97 Os atos especficos da busca religiosa

    103 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    93

  • APRESENTAO EXPERINCIA VVIDA E

    REFLEXO SISTEMTICA

    Temos mo uma verdadeira Introduo Feno-menologia. Fiel ao rigor metodolgico, tpico da fenome-nologia, a Prol! Angela Ales Bello nos convida a percorrer o inteiro percurso husserliano. Magistralmente, somos pro-vocados, na contemporaneidade, a atentar ao que nos est volta e prpria experincia interna. E, com surpresa, advertimos que, aqui, experincia vvida e reflexo sis-temtica podem efetivamente no estarem cindidas.

    A novidade que no se apresenta apenas discur-sivamente uma tal possibilidade de unidade, mas somos conduzidos a reconhecer a vivncia - atravs do mtodo interrogativo husserliano - com surpreendente simplici-dade de forma que a introduo ao campo fenome-nolgico, to sofisticado, comea a nos parecer familiar, comeamos a nos sentir em casa, porque comeamos a atentar ao mundo mais conscientes dos prprios recursos e do prprio eu.

  • Apresentao

    -

    O percurso introdutrio, aqui, apresentado fruto do curso que a professora da Pontifcia Universidade La-teranense de Roma ministrou no Brasil, na Universidade do Sagrado Corao, em Bauru (SP), em 2004. A lin-guagem foi propositalmente mantida em tom coloquial para que se possa ter contato com a vitalidade da mestra e com suas elaboraes que emergem da relao peda-gogia cheia de ideal.

    Essa postura de Ales Bello faz com que suas obras tenham grande receptividade em nosso pas, havendo j vrias publicaes brasileiras que se tornaram referncia. Talvez a fora criativa e geradora de sua posio intelectu-al se documente, mais intensamente, na articulao entre os diversos grupos de pesquisa e as diversas universidades brasileiras que vm frutificando a partir de suas visitas acadmicas ao Brasil. Este livro foi gerado nesse ambiente de tecitura de relaes, na convivncia preciosa entre pro-fessores e alunos. A Universidade do Sagrado Corao com a Profi Ir. Jacinta Turolo Garcia, a Universidade Federal de Minas Gerais com o Prof. Miguel Mahfoud, a Universidade de So Paulo com a Prof; Marina Massimi, a Universidade Catlica de Salvador com o Prof. Joo Carlos Petrini se descobrem assumindo desafios da pesquisa e do ensino da Fenomenologia, e se surpreendem com horizontes cada vez mais abertos a partir de uma clara e vitalizada rede de relaes intelectuais.

    Por tudo isso, agradecemos Prof; Angela Ales Bello, e a todos os que tm se dedicado, com deciso

    10

    Experincia vivida e reflexo sistemtica

    operativa, para que a sua presena no Brasil continue a frutificar em cultura real.

    Um especial agradecimento aos pesquisadores do Programa de Iniciao Cientfica do LAPS - Laboratrio de Anlise de Processos em Subjetividade, da Faculdade de Psicologia da UFMG, que trabalharam com cuidado evidente na transcrio e textualizao das gravaes do curso original, possibilitando que o presente volume seja uma realidade icunda para muitos. Destacamos os seguintes nomes: Alyne Rachid Ali Scofield, Ana Paula Martins Lara, Amanda Carvalho Padilha, Camila Freitas Canielo, Cludia Coscarelli Salum, Liz Hellen Vitor, Paulo Roberto da Silva Jnior, Roberta Vasconcelos Leite e Yuri Elias Gaspar.

    Miguel Mahfoud Belo Horizonte, 15 de agosto de 2006.

    11

  • INTRODUO

    Uma dificuldade para estudar a Fenomenologia de Edmundo Husserl que ele nunca chegou a escrever uma obra apresentando todo o seu percurso investigativo. A cada obra sublinha certo aspecto do percurso integral, num caminho analtico, partindo de um esquema geral. Passo a passo, ele vai chegando a uma conscincia comple-ta das diversas vivncias, e continuamente se pergunta: "Qual o significado do ato que estou operando?" e ao mesmo tempo: "Qual a formao que permite tais atos?".

    Seus livros so resultado de compilaes de esbo-os de aulas ou de suas anotaes pessoais. Muito de sua vasta obra, at hoje, no chegou publicao. Como sua anlise muito detalhada, atentando com rigor para cada aspecto, ele nunca chegou a formular uma sntese geral e isso dificulta conhecer o pensamento husserliano.

    O presente volume quer contribuir com a apresen-tao do processo investigativo, em todo o arco do pro-

  • introduo

    cesso metodolgico, empreendido pelo fundador da Fenomenologia, de tal modo que as anlises tpicas de cada passo sejam examinadas com rigor, sem se perder o horizonte de totalidade.

    Husserl escreve livros de temas especficos. Os pri-meiros so de Antropologia Filosfica, comeando a dis-cutir o que entropatia, para chegar a discutir o que o ser humano. Esse um caminho mais didtico, mais orga-nizado. Edith Stein que transcrevia os manuscritos de Husserl fez o trabalho de transcrio e edio da segunda parte da obra "Idias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenolgico', que um livro muito impor-tante cio ponto de vista metodolgico.

    O percurso que o leitor encontra aqui est baseado principalmente no primeiro1 e segundo2 volumes de Id-ias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenome-nolgica, e busca-se indicar a conexo com outras obras fundamentais de Husserl e de sua discpula Edith Stein.

    Edith Stein, ao escrever Psicologia e cincias do esprito', foi elaborando a distino husserliana entre psi-

    1 HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenologia pura y una filosofia fenomenolgico, 2. ed. Traduccin de ). Gaos. Mxico: Eondo de Cultura Econmica, 1992. Libro I.

    2 HUSSERL, E. Idee per una fenomenologia pura e una filoso-fia fenomenolgico. Organizzazione di V. Costa, traduzione di E. Eilippini. Torino: Einaudi, 1965. v. II (libri II e 111).

    3 STEIN, E. Psicologia e scienze ello spirito: contribut i per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

    Introduo

    que e esprito e dedicou-se a explicitar a direo de todo O percurso da pesquisa fenomenologia. De bom grado propomos, nesta Introduo Fenomenologia, as refern-cias indispensveis de Stein.

    Faz-se, aqui, o percurso das anlises das vivncias, identificando a dimenso do esprito, continuamente se interrogando "o que significa?", para chegar a identificar as conseqncias importantes que os resultados alcana-dos indicam no campo de toda experincia humana e no campo cientfico em particular.

    A Sociologia, a Histria, o Direito so cincias do esprito, mas em geral no se sabe o que a sociedade, o que significa "direito", o que o aspecto intersubjetivo e o tico, o que so as relaes humanas. As cincias hu-manas no podem se constituir efetivamente sem a apreenso adequada do que vem a ser a dimenso espiri-tual em sua relao com a psique e com a corporeidade. Assim, tambm a Psicologia no poder, adequadamen-te, se constituir como psicologia humana sem considerar a dimenso psicolgica em suas conexes com a dimen-so espiritual.

  • Capitulo I

    O QUE FENMENO E FENOMENOLOGIA

    Quando e como a Fenomenologia comeou? A Fenomenologia uma escola filosfica cujo pai e mestre Edmund Husserl. Comeou na Alemanha em fins do sculo 19 e na primeira metade do sculo 20'.

    Por que se chama Fenomenologia7. Esta palavra formada de duas partes, ambas originadas de palavras gregas, como sabemos. "Fenmeno" significa aquilo que se mostra; no somente aquilo que aparece ou parece. Na

    1 E. Husserl (1859-1938) publicou sua obra fundante da fenomenologia, intitulada Investigaes lgicas, em 1901. Em portugus pode ser consultado em HUSSERL, TE. Investigaes lgicas: sexta investigao: elementos de uma elucidao fenomenolgica do conhecimento. Traduo de Z. Loparic e A. M. A. C. Eoparic. So Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleo Os Pensadores). Traduo da obra na ntegra pode ser encontrada em espa-nhol: HUSSERL, E. Investigationes lgicas. Trduccin de I. Gaos. Madrid: Alianza, 1985. 2 v.

  • Capitulo 1

    linguagem religiosa, utilizamos tambm o termo epifania para falar de algo que se manifesta, que se mostra. "Logia" deriva da palavra logos, que para os gregos tinha muitos significados: palavra, pensamento. Vamos tomar logos co-mo pensamento, como capacidade de refletir. Tomemos, ento, fenomenologia como reflexo sobre um fenmeno ou sobre aquilo que se mostra.O nosso problema : o que que se mostra e como se mostra.

    Quando dizemos que alguma coisa se mostra, dizemos que ela se mostra a ns, ao ser humano, pessoa humana. Isso tem grande importncia. Em toda a hist-ria da filosofia sempre se deu muita importncia ao ser humano, quele a quem o fenmeno se mostra. As coisas se mostram a ns. Ns que buscamos o significado, o sentido daquilo que se mostra.

    Num primeiro momento, podemos pensar que aquilo que se mostra esteja ligado ao mundo fsico diante de ns, mas do que dizer "as coisas se mostram" precisa-mos dizer que "percebemos, estamos voltados para elas", principalmente para aquilo que aparece no mundo fsico.

    Quando dizemos "coisas", normalmente indica-mos coisas fsicas, por exemplo, a mesa, a cadeira. Sabe-mos, porm, que no tratamos apenas do significado de coisas fsicas, mas tambm das abstratas. Por exemplo, a

    2 Essa utilizao do termo serve para qualquer palavra que tem o sufixo "logia": psicologia se refere reflexo sobre o psquico, sociologia se refere reflexo sobre o social, e assim por diante.

    O que fenmeno e fenomenologia

    palavra latina repblica, que usamos para dizer coisa pblica no se refere coisa fsica, mas a um conjunto de situaes. Significado das coisas culturais, eventos, fatos, que no so de ordem estritamente fsica.

    Todas as coisas que se mostram a ns, tratamos como fenmenos, que conseguimos compreender o sen-tido. Entretanto o fato de se mostrarem no nos interessa tanto, mas, sim, compreender o que so, isto , o seu sen-tido. O grande problema da filosofia buscar o sentido das coisas, tanto de ordem fsica quanto de carter cultu-ral, religioso etc, que se mostram a ns.

    Ento, para compreender o sentido, ns devemos fazer uma srie de operaes, pois nem sempre com-preendemos tudo imediatamente, que consiste em iden-tificar o sentido, os fenmenos, de tudo aquilo que se manifesta a ns.

  • Captulo 2

    A FENOMENOLOGIA COMO MTODO

    Husserl diz que para compreendermos esses fen-menos, devemos fazer um caminho. A palavra grega para designar caminho mthodo, Essa palavra tambm for-mada de duas partes: "odos\ que significa estrada e "meta", que significa por meio de, atravs. Temos, portan-to, necessidade de percorrer um caminho e essa uma caracterstica da histria da filosofia ocidental, que sem-pre fez esse caminho para se chegar compreenso do sentido das coisas'. Segundo Husserl, o caminho forma-do de duas etapas:'

    1 Sobre os pressupostos histrico-filosficos da fenomenolo-gia, cf. ALES BELLO, A. Fenomenologia c cincias humanas: psicologia, histria e religio. Organizaro e traduo de M. Mahfoud e M. Massimi. Bauru: Edusp, 2004.

    2 Uma discusso sobre as etapas do mtodo fenomenolgico pode sei encontrada HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenologia pura y una filosofia fenomenolgico. 2. ed.

    2!

  • Captulo 2

    PRIMEIRA ETAPA A BUSO\ DO SENTIDO DOS FENMENOS: A REDUO EIDTIGA

    Posso compreender o sentido das coisas? Essa uma grande pergunta, e muito crtica tambm. A respos-ta de Husserl que o ser humano pode compreender o sentido das coisas. At a nossa experincia quotidiana nos diz que, para nos orientarmos, devemos saber qual o sentido das coisas. Porm, aqui o discurso fica um pouco mais complicado, porque Husserl mostra que em relao a algumas coisas ns temos a capacidade de identificar o sentido imediatamente, quanto a outras, temos mais difi-culdade. Ns intumos o sentido das coisas, e para tratar desse tema, usamos a palavra, de origem latina, essncia, portanto captamos a essncia pelo sentido. Husserl usa tambm a palavra grega ciclos (de onde vem a nossa pala-vra idia, qile neste caso no significa tanto um produto da mente, mas sentido), aquilo que se capta, que se intui.

    Faamos unia experincia semelhante s que Husserl prope: algum bate a mo sobre a mesa, identifi-

    Traduccin de ). Gaos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992. Libro I. Cf. tambm em ALES BELLO, A. Culturas e religies: uma leitura fenomenolgica. Traduo de A. Angonese. Bauru: Edusc, 1998 e a introduo de AI.ES BELLO, A. A fenomenologia cio ser humano: traos de uma filosofia no feminino. Traduo de A. Angonese. Bauru: Edusc, 2000.

    Fenomenologia como mtodo

    co logo que um som. Todos ns identificamos esse som. Como o fazemos? Imediatamente, intuitivamente. Escu-tamos qualquer coisa e dizemos " um som". Sempre o fazemos assim, se no pudermos fazer, por algum proble-ma, mas no havendo problema, somos capazes de intuir, isto , colocar em perspectiva a essncia, o sentido da coisa.

    Esse um exemplo de uma coisa fsica, porm al-gum poderia dizer "sinto dio" ou "sinto dor" e ns sabe-mos do que se trata, podemos at fazer uma anlise para explicar qual o sentido pois sabemos, imediatamente, qual a experincia de dio ou de dor e at poderamos nos de-dicar a fazer uma anlise para compreend-las melhor, jus-tamente por j conseguirmos partir de um ponto essencial.

    Husserl afirma que para o ser humano muito importante compreender o sentido das coisas, mas nem todas as coisas so imediatamente compreensveis. De qualquer modo, compreender o sentido das coisas uma possibilidade humana. Como o que nos interessa o sen-tido das coisas, deixamos cie lado tudo aquilo que no o sentido do que queremos compreender e buscamos, prin-cipalmente, o sentido. Husserl diz, por exemplo, que no interessa o fato de existir, mas o sentido desse fato.

    Este um ponto muito importante: existem os fatos? Certamente, existem. Mas no nos interessa os fatos enquanto fatos, interessamo-nos pelo sentido deles. Por isso posso tambm "colocar entre parnteses" a existncia dos fatos para compreender sua essncia. Esse um argu-mento para quem diz que importantes so os fatos. Certo, importantes so os fatos, mas o que so fatos? este o

  • Captulo 2

    ponto. E aqui est toda uma polmica com outra corren-te filosfica contempornea a Husserl, o Positivismo'.

    O Positivismo considera muito importante os fatos, sobretudo assumidos como tais pelas cincias fsi-cas. No entanto, Husserl diz que os fatos existem e so fatos. Mas o que so? Por exemplo, a cincia fsica olha a natureza, d-se conta dos fatos da natureza, mas o que so esses fatos? Ou ainda, as cincias sociais olham a socieda-de, mas o que a sociedade? Qual seu sentido? Fazemos tantas anlises da sociedade sem saber do qu se trata. No basta dizer que existem, e esta uma das polmicas de Husserl no confronto com o Positivismo, mas tambm com todas as cincias da natureza e as cincias humanas.

    A mentalidade positivista est ainda muito presen-te em nossos dias, ainda que no a chamemos de positi-vista. Assim, compreende-se, cientificamente, um fato, mas se compreende tudo? s vezes, no, mas nem todos podem ser filsofos, porm importante saber que exis-tem outras dimenses de pesquisa. O que as cincias podem responder diante da pergunta "o que verdade?". Faz-se tentativas para se aproximar dela, mas a verdade, do ponto de vista humano, reside no sentido, no no fato.

    3 Para um aprofundamento da questo da fenomenologia contra o positivismo, cf. o ltimo livro de Husserl enquan-to vivo: Crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental: HUSSF.RL, E. La crisi delle scienze europee e Ia fenomenologia trasccndentalc: per un sapere umanistico. Prefazione di E. Paci, introduzione di W. fSiemel, traduzio-ne di E. Filippini. Milano: Net, 2002.

    Fenomenologia como mtodo

    At agora somente as cincias fsicas responderam o que a natureza. No entanto, basta a cincia fsica para resol-ver essa questo? Bastam as cincias humanas para dizer o que o ser humano? No bastam. Elas descrevem alguns aspectos do ser humano, assim como as cincias da natureza descrevem alguns outros. Mas a questo do sentido um problema de fundo de toda a histria da filosofia ocidental, pois a filosofia a busca do sentido, e no dos aspectos do objeto. Estes devem ser examinados, ningum diria que no, mas necessrio ir mais fundo, escavar mais, em diferentes nveis, pois os nveis mais superficiais so tratados na Idade Moderna e Contempornea, na Antigidade a elaborao foi muito mais complexa. Por essas razes, Husserl, no seu tempo, polemiza contra o Positivismo.

    A intuio do sentido o primeiro passo do cami-nho e revela ser possvel captar o sentido.

    23

  • Captulo 2

    Figura A

    Sujeito

    Mtodo filosfico deve excluir tudo que

    no seja o sentido da coisa

    FENMENO (se mostra)

    C 3

    Coisas (res: coisa fsica ou no fsica)

    SEGUNDA ETAPA COMO O SUJEITO QUE BUSCA O SENTIDO' A REDUO TRANSCENDENTAL

    A caracterstica da pesquisa de Husserl a pergun-ta "Por que o ser humano procura sentido?" e tambm, "Quem este ser humano?" "Como feito este ser huma-no que busca sentido?" Aqui comea uma anlise do ser humano ou, utilizando a linguagem filosfica, do sujeito.

    26

    Fenomenologia como mtodo

    Na segunda etapa do mtodo fenomenolgico, , justa-mente, sobre o sujeito que se faz uma reflexo. Refletimos dizendo quem somos ns. A novidade de Husserl 'x.i la-mente essa anlise do sujeito humano, ponto de partida de sua investigao.

    Para realizar a anlise do sujeito faremos um exerc-cio, comecemos por dizer que estamos diante de um copo d'gua. Vemos, sobre a mesa, o copo que antes j estava l, podamos v-lo, mas no tnhamos prestado ateno nele. Esta uma coisa interessante que apresenta dois nveis. Antes vamos os copos mas no fazamos uma reflexo, tal-vez porque no estivssemos com sede. Agora, tenho sede e comeo a prestar ateno. Estamos refletindo um pouco sobre o tema do "ver o copo". Antes estvamos cnscios, sabamos ter visto o copo sem ter feito uma reflexo a res-peito. Todos ns tnhamos j uma experincia perceptiva do copo, que estava em ns, dentro de ns, mas o copo, fora. Porm, no momento em que tivemos uma experincia perceptiva do copo, ele estava tambm dentro de ns. De que modo estava dentro? Ns sabamos que o copo existia, portanto estar dentro significa saber que o copo existe. Enquanto estvamos vivendo o ato perceptiva (o ato de ver o copo), poderamos perguntar do que esse ato era forma-do. Sabemos que esse ato perceptivo era formado pelo ver o copo e tambm pelo copo, ali, diante dos olhos. Enquanto coisa fsica, enquanto existente, onde estava o copo? Estava fora. Porm, enquanto visto, onde estava? Dentro. Temos a, o ato de ver, e enquanto vivemos o ato, estamos vivendo o copo-visto dentro de ns.

    27

  • Capitulo 2

    Outro experimento, desta vez com a mo. Toco a caneta, a mesa etc. Enquanto toco, h o ato de tocar, estou tocando, estou vivendo a experincia de tocar. H uma coisa que tocada. Enquanto existente, onde est? Fora. Mas enquanto coisa tocada onde est? Dentro. Enquanto tocada, ela se torna minha.

    Existe uma distino entre a coisa-tocada e ns que a estamos tocando. Agora, estamos entrando no territrio do ser humano , no territrio do conhecimento, da cons-cincia que um ser humano pode ter das coisas - freqen-temente estudado pela Filosofia, e continuando temos caminhos que tambm so estudados pela Psicologia.

    O Ato perceptivo como acesso ao sujeito

    Como Husserl chegou a se interessar pelo ato perceptivo? Husserl, cuja formao pessoal era matemtico, se

    perguntava: Mas o que a Matemtica? O que isso que estou estudando? Do ponto de vista da Aritmtica, o que significa dizer que aqui existem seis copos? Como posso chegar a esse seis? Ele comeou com reflexo sobre a numerao - operao fundamental da Matemtica -fazendo uma tese4 e posteriormente vrios estudos' para

    4 Husserl doutorou-se com uma tese sobre clculo das varia-es pela Universidade de Viena, em 1882.

    5 HUSSERL, E. Philosophie de Varithmetique: recherches, psy-chologiques et logiques. Trad., notes, remarques et index |. English. Paris: Presses Universitaires de France, 1972.

    28

    Fenomenologia como mitodo

    responder a essas perguntas, sem nunca ter freqentado estudos de filosofia, part indo de uma reflexo interior, filosfica, ainda como matemtico.

    Husserl procurou uma resposta para suas pergun-tas, antes de chegar a lecionar nas universidades de duas importantes cidades de lngua alem: Halle e Gttingen, na Morvia. Na primeira parte de sua vida, permaneceu por muito tempo em Viena, capital da ustria, onde ha.via um professor universitrio muito importante (alemo de ori-gem italiana) chamado Franz Bientano, especialista em filosofia de Aristteles, que interessava muito por uma nova cincia, a Psicologia e j havia feito muitos estudos sobre os atos psquicos. As aulas de Brentano eram freqen-tadas por Husserl, que no era um estudante qualquer, mas formado e com tese em Matemtica. Freqentava essas aulas tambm um mdico chamado Sigmund Freud.

    Esse contexto importante para compreender o experimento do copo que fazamos h pouco, participan-do das aulas de Brentano, Husserl comea a ouvir falar de atos psquicos". Em u m primeiro momento , ele pensa que a numerao uma operao psquica, uma operao de formar conjuntos, segundo a teoria dos conjuntos. Era u m trabalho de Matemtica, porm, utilizava uma perspecti-

    6 Franz Brentano havia publicado em 1874 sua importante obra Psicologia do ponto de vista emprico e Husserl se liga a ele em 1884. Cf. BRENTANO, F. Psicologia dal punto di vista emprico, Traduzione e edizione di L. Albertazzi. Bari: Laterza, 1997. 3 v.

  • Capitulo 2

    va psicolgica, um estudo dos atos psquicos. Posterior-mente, Husserl conclui que a numerao no pode estar baseada nos atos psquicos, pois a operao indica um pensar, e no, exatamente, um ato psquico7.

    Dissemos que Husserl foi s aulas de Brentano, onde ouviu falar dos atos psquicos, e que, inicialmente, pensara em utilizar a interpretao psicolgica para fun-damentar a Aritmtica. No entanto, percebe que a Aritmtica no pode se fundamentar na psique. Uma ati-vidade intelectual necessria tambm, mas Husserl vai alm, abandonando o projeto sobre a Aritmtica, sobre a Matemtica, ele se volta para o conhecimento humano e recomea pe\a percepo, destacando que estamos em con-tato, atravs das sensaes, com o mundo fsico o que percebido por ns. A percepo uma porta, uma forma de ingresso, uma passagem para entrar no sujeito, ou seja, para compreender como que o ser humano feito.

    7 Husserl tematiza suas ligaes e diferenas com Brentano j na primeira obra propriamente fenomenolgica: Cf. HUSSERL, E. Investigaes lgicas: sexta investigao: ele-mentos de uma elucidao fenomenolgica do conheci-mento. Traduo de Z. Loparic e A. M. A. C. Loparic. So Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleo Os Pensadores) Sobre Pranz Brentano e Husserl em relao Psicologia e a fundamentao do conhecimento, cf. tambm GREUEL, M. V. O problema da fundamentao do conhecimento: uma alwrdagem fenomenolgica. 1996. Disponvel em: . Acesso em: 29 jun. 2006.

    Fenomenologia como mtodo

    Na anlise que estvamos fazendo do copo, fala-mos da percepo como um ato que estamos vivendo, porm, nem todo ato que estamos vivendo, que podemos identificar, so de carter psicolgico, por isso a anlise se torna muito refinada e requer uma ateno especial.

    Dos atos perceptivos conscincia

    Analisando cuidadosamente, percebemos que as duas sensaes, a da viso e a do tato, so parte de uma estrutura especfica". Seja a sensao visvel, seja a sensa-o ttil, ambas, so vividas por ns, mas o que quer dizer "vividas por ns"? Quer dizer que ns registramos, atra-vs da nossa capacidade de dar-nos conta. A percepo vai ser resultado do dar-nos conta. Esse "dar-se conta" a conscincia cie algo, por exemplo, a conscincia de tocar alguma coisa. Ns conseguimos registrar os atos de ver e tocar, mas onde ns registramos esses atos e como os registramos? Aqui est a novidade, pois Husserl diz que o ser humano tem a capacidade de ter conscincia de ter realizado esses atos, enquanto ele est vivendo esses atos, sabe que os est realizando. Sabe que est realizando esses atos na relao com algo que est vendo ou tocando.

    8 Comenta-se essas duas por serem sensaes fundamentais. H outras ligadas a outros sentidos, sensaes olfativas, por exemplo. Entretanto, a viso e o tato so aquelas com as quais mais nos colocamos em contato com o mundo fsico e conosco mesmos. <

  • Capitulo 2

    Tomemos o exemplo da folha de papel utilizado por Husserl', ela vista e tocada enquanto estamos vendo e tocando a folha, o ver e o tocar so nossos atos, atos que ns estamos vivendo'".

    Ver e tocar so vivncias, e se so vivncias, quer dizer que so registradas por ns e delas temos conscin-cia. Ter conscincia dos atos que so por ns registrados so vivncias. Conscincia, neste caso, no quer dizer que a cada momento ns temos que dizer "agora estamos vendo, agora estamos tocando". Conscincia significa que, enquanto ns olhamos, nos damos conta de que estamos

    9 Cf. HUSSERL, E. Ideas relativas a tina fenomenologia pura y una filosofia fenomenologia!. 2. ed. Traduccin de J. Gaos. Mxico: Pondo de Cultura Econmica, 1992. Libro I, p. 79, 35.

    10 O termo ato esta tambm em Husserl expresso pela palavra alem de raiz latina, akt. Ele usa tambm uma outra palavra que s existe em alemo, Erlebnis, formada de trs partes e cuja a raiz interna leb se parece com a palavra life, que em ingls significa vida. O ver e o tocar so atos, mas so cha-mados de Erlebnis, que um substantivo, e que na nossa ln-gua pode ser traduzido por vivncia. Vivncia quer dizer aquilo que ns estamos vivendo. Assim, ver e tocar so atos que ns estamos realizando, chamados, na lngua alem, Ertebins e, na lngua espanhola ou em portugus, vivncia. Na lngua italiana, como na inglesa, esse termo no existe, ento, no podendo traduzi-lo por uma s palavra, "atos por ns vividos" que se transforma no substantivo "o vivi-do" (no caso,do italiano) ou "a experincia vivencial" (no caso do ingls). Em portugus e em espanhol, a palavra vivncia atinge mais plenamente o seu sentido.

    Fenomenologia como mtodo

    vendo, ou que, enquanto tocamos, nos damos conta de tocar. Depois, podemos fazer uma reflexo sobre essa conscincia, como a que estamos fazendo agora.

    Devemos perguntar tambm que tipo de vivncia refletir. Estamos refletindo sobre ver e tocar que so registrados por ns, esse refletir um novo ato, uma nova vivncia, e dessa vivncia ns tambm temos cons-cincia. Porm, o ato reflexivo uma conscincia de segundo grau, uma ulterior conscincia de algo que, nos consente dizer, estamos vendo e tocando.

    Assim, temos o primeiro nvel de conscincia que o nvel dos atos perceptivos, e um segundo nvel de cons-cincia que o nvel dos atos reflexivos.

    Faamos uma comparao com o co e o gato que se vem e se tocam. Eles tm conscincia, desses atos? Talvez a tenham no primeiro nvel, mas no a tm, certa-mente, no segundo nvel, o da reflexo. A reflexo uma vivncia humana porque corresponde capacidade que o ser humanos tem de se dar conta do que est fazendo. Ele tem capacidade de perceber e registrar aquilo que percebe, e de se dar conta de que est vivendo o ato da percepo.

    Dos atos perceptivos conscincia de ser corpo, psique e esprito

    Voltemos ao copo de nosso experimento. Ns o vemos, o sentimos, o utilizamos, por qu? Porque temos sede. Que tipo de ato a sede? um impulso. Ns senti-

    33

  • Captulo 2

    mos alguma coisa interiormente, que nos impulsiona a pegar o copo e a beber. Esse impulso, no o ato de beber, ou o ato de tocar, e nem o ato de refletir, um outro ato. Em geral, o impulso em direo a alguma coisa registra-do por ns, pois temos conscincia do impulso e quere-mos viv-lo. E o que fazemos? Buscamos alcanar o copo.

    Pode ser que algum prximo do mesmo copo d'gua tenha o mesmo impulso de beber, mas no chega a pegar o copo sobre a mesa. Por qu? Existe um contro-le muito semelhante ao ato da reflexo ( justo no poder beber?). Podemos dizer que existe uma regra social ligada a um controle, trata-se de um ato que no o do ver ou o de tocar, nem o do impulso que mais se assemelha ao ato de refletir.

    Todos esses atos que identificamos tm caracters-ticas diversas, qualidades diversas. Podemos pensar que existe uma dimenso do ter conscincia (no uma dimenso fsica) sob a qual ns registramos: um setting de registro dos atos. De quais atos? De todos os que ns estamos realizando, atos que so ligados ao mundo exter-no e ao mundo interno.

    Retomemos toda a anlise feita na dimenso do ver e do tocar, o objeto externo, mas o impulso de ir beber interno. Agora, onde ns percebemos o ato inter-no, o impulso e o ato externo perceptivo? Sempre nessa dimenso da conscincia. A conscincia a dimenso com a qual ns registramos os atos. O registro um ter-reno novo, e ao identificarmos nesse terreno os atos vivi-

    Feitomcnologia como mtodo

    dos por ns, percebemos que tudo aquilo que vivemos passa atravs desse terreno.

    Podemos tambm analisar outros exemplos. Quantos atos ns estamos realizando agora? Podemos escolher alguns como tocar e ouvir que so atos de car-ter fsico ligados a uma organizao. Temos uma srie de atos ligados sensao - no s as dos cinco sentidos -mas tambm a outros que nos permitem dizer .muitas coisas que se referem ao mundo fsico externo, a ns mes-mos e relao entre ns e o mundo fsico. Por qu? Faamos uma experincia com o ato de tocar. Neste momento, ns podemos tocar e o sentido de tocar um contato ligado a mo. Se fecharmos os olhos e no tocar-mos nada, no tocarmos voluntariamente com a mo coisa alguma, percebemos, ento, que no tocamos ape-nas com a mo, mas que todo nosso corpo toca. Mais ainda, percebemos que a delimitao fsica do nosso corpo no percebida atravs da viso, mas atravs do tato. Podemos fazer a experincia fechando os olhos. Temos a sensao corprea, e tambm a distino entre o nosso corpo e aquilo sobre o que estamos sentados, ou sobre o qual caminhamos.

  • Captulo 2

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    Fenomenologia tomo mtodo

    O tato, segundo Husserl, o sentido mais impor-tante em absoluto, porque atravs dele registramos os confins fsicos do nosso corpo, que permite orientarmo-nos no espao. O tato nos d, portanto, a sensao do nosso corpo e do corpo externo ao mesmo tempo. No s a distino, mas tambm a conexo; a conexo e a distin-o entre o nosso corpo e o corpo diverso. A viso nos orienta, certamente, mas com a viso no podemos per-ceber o confim do nosso corpo, uma vez que no pode-mos v-lo todo. atravs do registro dos atos do tato, da viso, da audio, do olfaro que podemos dizer que temos um corpo.

    Mas isso completamente diferente daquilo que se diz normalmente sobre os sentidos. Ns partimos dos atos e, atravs deles, chegamos concluso que existe um corpo em relao com o mundo externo. As coisas fsicas so conhecidas atravs da corporeidade. Essa anlise da corporeidade foi feita por Husserl" em todo o seu desen-volvimento. Trata-se da mesma anlise que Merleau-Ponty faz em relao corporeidade12. Husserl conclui que podemos dizer que temos um corpo baseando-nos na anlise dos atos registrados por ns, isto , das sensa-es corpreas que registramos.

    11 HUSSERL, E. Idee per una fenomenologia pura e nna filoso-fia fenomenolgico. Organizzazione di V. Costa, traduzione di E. Filippini. Torino: Einaudi, 1965. v. II (libri II e III)

    12 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepo. 2. ed. Traduo de C. A. R. Moura. So Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleo Tpicos).

  • Capitulo 2

    Vejamos tambm o desenvolvimento infantil. Uma criana gradativamente capta a sua corporeidade justa-mente pelo contato com o fsico e com os limites. Se no fosse o tato, ningum poderia perceber a delimitao da prpria corporeidade. Ns no refletimos a todo o momento sobre os limites do nosso corpo, porm temos conscincia deles. Ns levamos isso sempre conosco con-sensualmente. Percebemos isso quando vamos andando pela estrada, vemos um automvel e desviamos de sbito. Que quer dizer isso? Que ns estamos cnScios das deli-mitaes corpreas e que queremos nos salvar. Querer se salvar, nesse caso, um impulso que vem de uma outra fonte que examinaremos mais adiante.

    O momento preliminar o da corporeidade, proe-minal a tudo aquilo que ns fazemos e , naturalmente, o que nos d a constituio do ser que nos localiza. O que estar em um lugar? Em primeiro lugar, est o nosso corpo e da fazemos referncia ao objeto fsico e ao espao. O espao vivido est na base de todos os conceitos de espao, mas h tambm o espao que a Fsica considera geometri-zado, idealizado. Porm, o primeiro o espao vivido, um espao que permite que nos movamos, evitemos obstcu-los etc, e essa a formao da corporeidade. Podemos darmo-nos conta dessa corporeidade porque temos as vivncias relativas s sensaes corpreas. Esse o primei-ro nvel, e o importante que registramos isso, portanto no existe somente interioridade e exterioridade, mas inte-rioridade, exterioridade e esse terceiro momento que o registro dos atos, aquilo que nos possibilita ter conscincia.

    Fenomenologia conte mtodo

    Entre esses atos, sabemos que existem os que so do impulso, dos instintivos e das reaes. Ns os senti-mos, registramos o ato, o sentir, e por isso mesmo temos uma reao. Por exemplo, quando ouvimos um barulho no muito forte, podemos sentir apenas uma reao de incmodo, porm, sendo muito forte, temos medo. E de onde vem o medo? Mesmo que de forma imediata, ns avaliamos a situao e notamos que ela se apresenta com determinadas caractersticas...

    Nesse ponto, identificamos outros atos que no so de carter psquico, como o impulso de beber, nem de car-ter corpreo porque o corpo nos manda a mensagem de beber mas no pegamos o copo. Portanto, podemos contro-lar o nosso corpo e a nossa psique. Estamos registrando o ato de controle, mas este no de ordem psquica nem de ordem corprea, e nos faz entrar numa outra esfera a que os fenomenlogos chamam de esfera do esprito.

    Por que usam a palavra esprito? Porque o termo alma era usado para indicar tudo aquilo que no era corpo. Normalmente se diz, ento, corpo e alma. Husserl e seus discpulos analisam a alma em duas partes: uma formada pelo impulso psquico (o termo impulso se refere a uma srie de atos que so de carter psquico) que so atos no queri-dos ou no controlados por ns. Alm disso, no somos ns a origem deles, nem ns que os provocamos, mas os encon-tramos. Se sentirmos um forte rumor, todos teremos medo, e o medo no vem querido por ns, ele uma reao e acontece. Essa a parte psquica, a outra parte a que refle-te, decide, avalia, e est ligada aos atos da compreenso, da deciso, da reflexo, do pensar, chamada de esprito.

  • Fenomenologia como mtodo

    Colocamos entre parnteses a afirmao habitual de que o homem corpo e alma, pois no partimos disso uma vez que comeamos a anlise pelos atos. Examinando os atos, a comear pelo registro dos atos podemos chegar estrutura do ser humano. Somos corpo-psique-esprito, como dimenso. Pela anlise dos atos conclumos que a alma existe e vista em dois momentos atravs das carac-tersticas diversas entre a dimenso psquica e a dimenso espiritual. Certamente todas as dimenses so estritamen-te conectadas. O esprito poderia viver sozinho? No, o esprito habita a base psquica e corprea. O corpo pode viver sozinho, sabemos de casos em que o elemento ps-quico e o elemento espiritual no So ativados, porm, o ser humano potencialmente tem essas trs caractersticas. Numa situao de coma, pensamos que no existem impulsos de carter psquico ou espiritual ativos, porm, nesses casos, procura-se fazer com que aquele ser humano torne a ser o que .

    Temos ainda outros problemas como o de saber se a alma tem substncia. Isso um pouco mais complicado de responder", pois existem diversos graus de atividades corpreas, psquicas e espirituais. Graus diversos de pre-

    13 Edith Stein deu unia contribuio relevante discusso so-bre a substncia da alma. Cf. STEIN, E. La estructuf de Ia persona humana. Madrid: BAC, 2003. Publicao original de 1913. F. tambm STEIN, E. Ser finito y Ser eterno: ensayo de una ascensin ai sentido dei ser. Traduccin de A. Prez Monroy. Mxico: Pondo de Cultura Econmica, 1996.

  • Captulo 2

    sena e realizao, naturalmente. Algumas pessoas tm atividade espiritual muito desenvolvida como refletir, avaliar, decidir, e outras no o fazem da mesma forma, mas poderiam faz-lo: este o ncleo da educao, fsica, psquica ou espiritual. A conexo entre as trs dimenses o que estamos descrevendo atravs do ato. H uma estrutura, que geral, universal. Cada ser humano, indi-vidualmente, tem todas essas caractersticas que podem ser mais ou menos desenvolvidas.

    Vimos exemplos que se referem avaliao, ati-vidade moral e tambm ao comportamento em relao aos outros. claro que nem todos os seres humanos tm um desenvolvimento do comportamento em uma certa direo que ns consideramos vlida para a convivncia, mas isso no quer dizer que no exista uma capacidade de avaliao, talvez ela no tenha sido ativada ao longo da histria pessoal.

    Esta uma descrio geral, depois cada ser huma-no individual deve ser examinado pelas suas caractersti-cas prprias. Portanto, no se trata de uma universaliza-o que no leva em conta os elementos concretos dife-renciados. Mas para compreender como os seres huma-nos se apresentam, devemos compreender tambm como a sua estrutura geral.

    Fenomenologia como mtodo

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  • Captulo 2

    Estamos considerando, aqui, a experincia de indi-vduos adultos que tm as capacidades fsicas, espirituais e psquicas desenvolvidas normalmente. A partir da, conseguimos delinear uma estrutura. No se trata de demonstrar, forosamente, que existe uma alma, pois a anlise comea pelas coisas mais simples que fazemos a cada momento: ver um copo, toc-lo, decidir se vou beber ou no. As experincias que registramos, de que temos conscincia em um nvel mnimo, nos dizem que existem atos diversos, isto , vivncias qualitativamente diversas. As vivncias ligadas s sensaes no so da mesma qualidade das psquicas, e estas no so da mesma qualidade daquelas que chamamos espirituais. Em outros termos pode-se dizer que tocar, ter impulso de beber, refletir e decidir no so vivncia do mesmo tipo e isso indica a estrutura constitutiva do sujeito.

    Captulo 3

    A CONSCINCIA E ESTRUTURAS UNIVERSAIS

    Vimos que a novidade da abordagem fenomenol-gica de Husserl o terreno da conscincia e essa a sua contribuio mais importante, embora a mais difcil'. A conscincia est no esprito? Est no psquico? No pos-svel, porque as trs dimenses - corpo, psique e esprito - s so conhecidas por ns porque temos conscincia. Portanto, a conscincia no um lugar fsico, nem um lugar especfico, nem de carter espiritual ou psquico. como um ponto de convergncia das operaes huma-nas, que nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o que fazemos como seres humanos. Somos cons-cientes de que temos a realidade corprea, a atividade ps-

    1 Para um aprofundamento da centralidade e radicalidade do conceito de conscincia na fenomenologia de Husserl e discpulos, cf. ALES BELLO, A. Uuniverso nella coscienza; introduzione alia fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: ETS, 2003.

  • Captulo 3

    quica e uma atividade espiritual e temos conscincia de que registramos os atos. Ou, dito de outro modo, se um ato psquico, corpreo ou espiritual, de qualquer modo, ns o registramos em nossa conscincia.

    possvel examinai" os atos e aquilo que eles signi-ficam, ou seja, na sua pureza? O que quer dizer ato da percepo? O que quer dizer o ato relativo ao impulso psquico? O que significa dizer ato da avaliao? Atravs da vivncia e da reflexo podemos fazer anlises que nos revelem a estrutura geral desses atos. E o que quer dizer que existem atos universais? Qual o sentido desses atos? Como eles se apresentam?

    Tomemos um exemplo simples, ativando, neste momento, o ato de ver. A sensao a viso, o ato a per-cepo. Estamos atuando o ato perceptivo, estamos tendo conscincia de ver, por exemplo, um livro. Enquanto visto, o livro se encontra dentro e enquanto existente ele se encontra fora. Se o livro retirado do nosso campo de viso, onde ele est? Se ainda falamos do livro, porque estamos ativando a recordao, um ato que permite tor-nar presente uma coisa que no est mais presente. O livro no est mais presente perceptivamente, neste momento o ato da percepo no nos d o livro, porm podemos falar no livro, esse um ato universal.

    Percebo o livro e me recordo dele e, imediatamen-te, sei a diferena, intuo de sbito o sentido do perceber e o do recordar. Imaginar ainda diverso de recordar e de perceber, basta que se diga imaginar e logo todos com-preendem que um ato diferente de perceber e de recor-

    Consacnaa e estruturas lirmsrsats

    dar. Analisar ainda outro ato que vivenciamos, no perceber, nem recordar ou imaginar. Distinguimos todos esses imediatamente, intuitivamente.

    O que significa perceber? O que significa perceber em relao a recordar e imaginar? Quais so as condies para perceber? A percepo aquele ato que se dirige a um objeto fsico, concreto, que est diante de mim. Em geral, essa a estrutura universal da percepo. Se anali-sarmos e observarmos a percepo na sua pureza, cada vez que temos uma percepo acontece assim.

    Portanto, pureza quer dizer captar a percepo e dizer o que ela sempre, no somente num caso especfi-co, mas em todos os casos, dizer o que, em geral, a percep-o ; dizer qual o sentido do ato perceptivo. claro que pode-se compreender melhor esse sentido se foi colocado em relao a outros atos.

    Quais atos ns estamos ativando agora? Atos per-ceptivos, pois olhamos aqui e l, ouvimos, temos uma srie de percepes complexas atravs das quais podemos compreender o sentido das palavras e eventualmente escrever a respeito delas. Aprendemos, e isso quer dizer que nos lembramos pois, sem recordar no poderamos continuar compreendendo ou escrevendo. Se chegasse aqui uma pessoa de cultura completamente diversa, estra-nharia muito porque fazemos algo que desconhece. Para ela no existe um ato para a recordao daquela instruo especfica que ns tivemos, mas ela tem lembranas de outros atos, ligados a seus costumes e aprendizados.

    47

  • Captulo 3

    Ns estamos ativando tambm a ateno. E o que ateno? O que significa ateno em geral? Estamos concentrados sobre alguma coisa, e claro que essa con-centrao pode ser de dois tipos. Quando entra algum pela porta, a nossa ateno se volta para ele, para esse acontecimento, mesmo sem que tivssemos vontade, ele atraiu nossa ateno. Esse um tipo de ato psquico; uma reao a uma percepo e a seguimos sem deciso e auto-nomia. Se no quisermos seguir essa percepo, teremos de ativar um ato de outro tipo, voluntrio, no nvel do no querer ver. Dessa forma, a nossa ateno no altera-da retirada chega a se tornar uma afronta, pois eqivale-ria afirmar que no temos interesse por esse algum que entra. Isso acontece no nvel psquico que pode ser uma atrao ou repulso. A aceitao ou rejeio da presena de algum se d no nvel espiritual.

    Mas qualquer um pode se distrair. O que significa distrair-se? Quer dizer que eu dirijo os atos psquicos em uma outra direo. Estudantes se distraem, isto , so atra-dos por algo externo ou interno como sentimentos, uma preocupao ou uma fantasia que afetariam a ateno. Mas durante a aula poderiam dizer: "no, no quero seguir essa fantasia, quero escutar". No entanto, para decidir escutar necessria uma motivao, enquanto que no caso da fanta-sia j existe o motivo pelo qual houve a distrao'.

    2 Sobre causalidade psquica, motivo e motivao, cf. STE1N, E. Psicologia e scienze delia spirito: contributi per una fon-dazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales liello, tra-duzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, L999.

    Conscincia c estruturas universais

    Os atos psquicos tm sempre motivos, mas o que compe os atos psquicos o universo da motivao e a motivao implica numa atividade espiritual1.

    Ateno como ato involuntrio

    Ateno como ato voluntrio (dirigido pelo sujeito, no provocado por fatores externos)

    #

    +

    ato psquico

    ato espiritual

    Se retornarmos questo do beber, quando a pes-soa no pega o copo ainda que tivesse sede, ativa uma capacidade espiritual, de inteno e avaliao. Qual a motivao? Por exemplo, do ponto de vista social no oportuno, mas se fosse uma criana muito pequenina, veria a gua e beberia. Por qu? Porque ainda no ativou os controles inculcados pela me ao dizer que "no se pode fazer isso" em determinadas situaes. Atravs do "no pode" ativa-se a motivao. A motivao humana diz que existe uma razo pela qual ho conveniente, naquela situao, pegar o copo cfgua e beber. Existe um motivo que impele para beber, mas a motivao diz "no neste momento". Pode-se compreender que essa a base do controle individual e tambm social e acontece em todas as culturas, ainda que de formas bem diferentes.

    As diferenas so secundrias, pois as estruturas no mudam. Ainda que o objeto percebido seja diverso ou que tenhamos percepes diferentes, todos ativamos a percepo.

    3 Cf. STEIN, E. La estruetura de Ia persona humana. Madrid: BAC, 2003.

  • Capitulo -t

    Todos tm e operam com a percepo, a recorda-o, a imaginao, a fantasia e capacidade de refletir... Nem todos ativam esses atos em um dado momento, porm, potencialmente, todos eles esto em cada um dos seres humanos. Sabemos que isso acontece aos poucos, pois alguns deles desenvolvem-se na infncia, como a ateno e a viso, e outros, especialmente os atos de car-ter espiritual, requerem um desenvolvimento j estabele-cido previamente, alm de apresentar caractersticas diversas a cada idade.

    Interessa ressaltar que a compreenso desses atos podem ser examinados na sua estrutura universal, pois todos os seres humanos tm a mesma estrutura, embo-ra no ativem da mesma maneira e no tenham os mes-mos contedos, potencialmente, todos tm a mesma estrutura, seja do ponto de vista psquico ou do ponto de vista espiritual.

    Assumida essa hiptese, podemos pensar nas difi-culdades que ocorrem, porque existem os que podem ouvir e os que no, existem aqueles que podem ver e os que no. Existem tambm casos extremos de pessoas que no tm possibilidade de sensao (como o apresentado no filme "O Milagre de Anne Sullivan". Anne era profes-sora de uma menina que no tinha capacidade de sensa-o alguma. A terapeuta conseguiu, atravs da gua, ati-var a sua estrutura. Comeou com algumas sensaes, um pouco por vez, porque sabia que essa menina tinha uma vida psquica e espiritual. No entanto, ela no podia ativ-las, uma vez que lhe faltavam os elementos corp-

    Cs.i: liiJa e estruturas universais

    reos, a primeira base corprea da sensao. Isso nos mos-tra que podemos examinar o ser humano atravs dos atos, considerando uma estrutura geral, universal.

    Figura E

    A mesma dimenso muito importante tambm na relao intercultural, em que geralmente s vemos diferenas. Identificamos os diferentes modos de viver, no entanto, no fundo, o ser humano tem sempre a mesma

    31

  • Capitulo 3

    estrutura. A situao interessante para que observemos as tendncias especficas de cada cultura, seguindo um ponto de vista antropolgico.

    Sabemos como o ser humano constitudo, quais so as suas estruturas e as suas caractersticas. A questo estudada primeiramente por Husserl e desenvolvida tam-bm por Edith Stein, sua discpula. Ela continuou a inves-tigar sobre o assunto e se envolveu muito nos atos que se referem psique. Ela continuou a desenvolver aquilo que Husserl havia evidenciado, fez o estudo dos instintos, dos impulsos, das energias e das reaes espontneas que exis-tem no ser humano e que independem de ns'.

    Este o ponto de vista antropolgico das estrutu-ras gerais, posteriormente se pode dedicar compreenso de cada pessoa individualmente. A elucidao impor-tante para a Psicologia, pois poder ter uma aplicao cl-nica para cada pessoa, tomada singularmente, ou tam-bm se poder formular uma descrio tipolgica, por exemplo, do introvertido e do extrovertido. Isso significa que todos ns registramos atos psquicos, por exemplo, impulsos que nos levam para fora ou para dentro e os psiclogos, sabendo disso, podem compreender algo que uma pessoa especfica est vivendo.

    Iniciando com Brentano o seu interesse pela vida psquica, Husserl chega a explicitar, diferentemente de

    4 STEIN, F.. Psicologia e scicnze dello spirito: contributi per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

    Conscincia e estruturas universais

    Freud, que a caracterstica da vida humana ser uma vida espiritual; reconhece uma dimenso espiritual, mbito das avaliaes e decises, que se diferencia da dimenso psquica. Tratando-se de atos diversos, no podemos con-siderar como Jung, que incluiu a dimenso espiritual na dimenso psquica. Se so atos diferentes, no podem ser de uma s dimenso. No se quer dizer que ns sempre decidimos e avaliamos pois, muitas vezes, nos deixamos levar pela emoo, por exemplo. nesse campo de pro-blema que se insere o trabalho de Psicologia Clnica: essa pessoa capaz de decidir ou se deixa levar?

    Vimos que Husserl havia assistido s aulas de Brentano, juntamente com Freud, e conhecia todo o desen-volvimento da Psicanlise freudiana. Stein tambm conhe-cia, e se interessava muito pela psicologia profunda de Jung. Husserl e Stein no negam que exista uma dimenso psqui-ca inconsciente, no sentido de atos psquicos que registra-mos, que podem ser precedidos de percepes das quais ns no temos conscincia. O tema apenas indicado em alguns pontos da sua obra, mas no desenvolvido. Stein toma o tema e o coloca num relacionamento com Jung, sobretudo na obra intitulada A estrutura th pessoa humana'.

    A diferena radical entre a abordagem psicanalti-ca e a abordagem fenomenolgica a descrio da di-menso psquica pr-consciente e depois inconsciente. A distino entre as dimenses psquica e a espiritual

    5 STEIN, E. La estruetura e ia persona humana. Madrid: BAC, 2003.

  • Capitulo 3

    importante para compreender o comportamento do ser humano. Mas h uma diferena entre Freud e Jung, por-que na concepo freudiana a dimenso inconsciente a que comanda, e tudo o que acontece no nvel consciente , na verdade, um produto daquilo que acontece no nvel inconsciente. Freud, verdadeiramente, deseja compreen-der o que o inconsciente. Mas se ele consegue com-preender o que o inconsciente - at onde consegue compreender - porque opera com o consciente. Ento, Husserl observa que a vivncia psquica, considerada como dimenso propriamente psquica, dimenso do inconsciente importante, mas o ser humano tem tam-bm uma dimenso espiritual. Ele no totalmente comandado pela dimenso psquica, por isso pode e deve ativar tambm a dimenso espiritual. E este tambm um fundamento da vida moral, que implica em respon-sabilidade e liberdade. Ns sabemos que na concepo freudiana esses elementos no so considerados autno-mos, mas comandados pela dimenso inconsciente.

    Para Husserl, ainda que nem sempre e nem todos ativem a dimenso espiritual, todos tm condio de ativ-la. uma viso de homem na qual h uma dimen-so espiritual que pode intervir com controle e sentido. Edith Stein aponta algo semelhante e diz que Jung se ocupa de uma dimenso que como um subsolo (seguin-do a tradio russa com Dostoievski"). necessrio con-

    6 DOSTOIEVSKI, F. Memrias do subsolo. Traduo de B. Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2003.

    Conscincia c estruturas universais

    siderar que sobre a dimenso do subsolo, tambm se exerce uma atividade de controle e direcionamento, assim, se d um grande espao para a dimenso espiri-tual. A dimenso espiritual tambm est contemplada na anlise de fung, ainda que no a tenha chamado de esp-rito, pois para ele a dimenso religiosa est sempre ligada dimenso psquica. como se Jung atribusse psique aquilo que psquica e espiritual ao mesmo tempo, no distinguisse os dois nveis, no reconhecesse a autonomia do nvel espiritual.

    Leibniz afirma que cada ser humano uma mna-da, ou seja, um elemento individual. Porm, Husserl demonstra que o ser uma mnada aberta e a entropatia so as janelas. A atividade do esprito aquela que ns podemos chamar de atividade da alma, ainda que no haja uma dimenso intra-instancial da alma. Emerge, ento, outra questo, isto , saber em que consiste a subs-tncia autnoma da alma.

    7 Cf. HUSSERL, E. Meditaes eariesianas: introduo fenomenologia. Traduo de E. Oliveira. So Paulo: Madras, 2001.

  • Captulo 4

    A SNTESE PASSIVA: FASE ANTERIOR PERCEPO

    Tomamos o sentido dos atos, falamos da percep-o, de atos que j temos conscincia. So atos dos quais ns somos cnscios ainda que no tenhamos feito uma reflexo sobre eles. Entretanto, Husserl diz que existe um caminho anterior percepo, que ele chama de sntese passiva. Ou seja, ns reunimos elementos sem nos darmos conta de que o estamos fazendo. Podemos dizer, por exemplo, que tnhamos a percepo do copo, mas para isso tivemos de exercitar algumas operaes anteriormen-te (a distino entre um objeto e outro, entre o copo e a toalha...). Trata-se de operaes que estabelecem conti-nuidade e descontnuidade, homogeneidade e heteroge-neidade. Para apreender o objeto em sua unidade deve-mos estabelecer relaes de continuidade e de descont-nuidade, de homogeneidade consigo mesmo e de hetero-geneidade para com outros objetos. No nos damos conta

  • Captulo 4

    de operar tudo isso precedentemente percepo, pois so operaes que cumprimos num nvel passivo, somos afe-tados por elas antes que faamos qualquer coisa.

    H um artigo significativo de Husserl sobre a sn-tese passiva' em que ele fala sobre a existncia de nveis mais profundos, e que conscincia aparece somente a percepo do j constitudo, ela registra os nveis mais altos desses processos.

    Quando Husserl trata dos nveis passivos, no est dizendo que os vivemos passivamente. Analiticamente compreendemos que j demos aqueles passos, tornaram-se nossos, no pudemos deixar de faz-los, e a essa passivi-dade a que Husserl se refere. Quando conseguimos descre-ver o processo, sabemos o que operamos no nvel passivo. Esse um ponto sutil no trabalho de anlise de Husserl.

    Considerando todo o arco do processo reflexivo husserliano, podemos dizer que entramos no nvel da conscincia atravs da percepo, mas existe tambm um nvel passivo, que pode ser objeto de uma "escavao"2. Vamos descendo, aprofundando a escavao para com-

    1 Cf. HUSSERL, E. Lezioni sulla sintesi passi\,a. Traduzione di V. Costa. Milano: Guerini, 1993. (Originais de 1918-1926 publicados em 1966). Cf. tambm GHIG1, N. A hiltica na fenomenologia: a propsito de alguns escritos de Angela Ales Iello. Memorandum, 4, p. 48-60, 2003. Disponvel em:

  • Captulo 5

    O Eu, o OUTRO E o NS: A ENTROPATIA

    O estudo dos atos importante, primeiramente, do ponto de vista antropolgico-filosfico, porque atinge os aspectos individuais e os universais. Ns vivemos de forma individual, mas ligados estrutura universal. Por isso, quando falamos dessa estrutura universal, podemos dizer "ns".

    Podemos perguntar como chegamos a dizer "ns" ou como se passa do eu ao ns. Todos os seres humanos esto centrados em um eu, com capacidade de ter cons-cincia de si, e com base neste eu - do ponto de vista da antropologia filosfica - pode-se chegar a dizer ns.

    Husserl, aps identificar os diversos atos e as diver-sas dimenses, se pergunta: "Seria tudo isso uma mera inveno pessoal? Ou posso tambm demonstrar que todos temos a mesma estrutura?" Para demonstrar isso, Husserl precisou responder a seguinte pergunta: "Qual

  • Ciipilub 5

    a origem de todos os nossos conhecimentos conscientes?" Para tanto foi preciso comear pela anlise da percepo.

    Coloquemos ateno nossa volta e faamos uma anlise perceptiva das coisas e das pessoas. Podemos, ime-diatamente, distinguir as cadeiras das pessoas. Se a percep-o vale tanto para a cadeira quanto para a pessoa, como chego a saber que aquilo uma cadeira e o que uma cadei-ra? algo que no tem vida. Mas como chegamos a distin-guir cadeira, cachorro e pessoa? Se continuarmos a obser-var e perguntar como se chega a distinguir algo, vamos nos dirigindo a um terreno fundamental, isto , o terreno dos atos de conscincia, distinto dos atos perceptivos.

    Entramos no terreno dos atos de conscincia atra-vs da percepo, distinguindo os vrios atos, os atos de qualidades diversas. Se apreendo imediatamente que pes-soa diferente de cadeira, ento h um ato que me per-mite isso. Esse importantssimo ato foi evidenciado pelos fenomenlogos Edmund Husserl1 e Edith Stein'. Para designar o ato falamos em empatia ou entropatia. Husserl utilizava a palavra Einflihlung, ento, entre os nossos diversos atos, h um que podemos chamar de Einfiihlung,

    1 HUSSERL, E. Cortferenze diAmsterdam: psicologia fenome-nologica e fenomenologia trascendentale. Traduzione e edi-zione di P. Polizzi. Palermo: Ila-Palma, 1988. Cf. tambm HUSSERL, E. Meditaes cartesianas. introduo fenome-nologia. Traduo de F. Oliveira. So Paulo: Madras, 2001.

    2 STEIN, E. IIproblema deWcmpatia. Introduzione e note di E. Costantini, presentazione di P. Valori, traduzione di E. Costantini e E. S. Costantini. Roma: Studium, 1985.

    e sua peculiaridade a de sentirmos imediatamente que estamos em contato com outro ser humano, de modo tal que podemos falar "ns".

    Quando entramos numa sala, imediatamente dis-tinguimos as pessoas das cadeiras, nem precisamos racio-cinar, porque existe um ato que anterior. Certamente, existem as percepes, precisamos ver cadeiras e pessoas para percebemos a diferena. Podemos afirmar que os atos nunca se do isoladamente, pois junto com o ato perceptivo est esse ato especifico da entropatia que um apreender o outro, e essa apreenso imediata.

    Ainda que no vejamos, ao ouvirmos uma voz entre os diversos sons, intumos que se trata cia manifesta-o de um ser humano, imediatamente identificamos que uma voz humana como a nossa prpria. Se ao telefone ouvimos um latido, apreendemos uma diferena instanta-neamente. A percepo auditiva acompanhada desse sentir, desse captar que o outro algum, um outro que um eu; como tambm eu sou um eu, um outro eu, um alter ego. O ato Einflihlung, entropatia, quer dizer que sinto a existncia de um outro ser humano, como eu, , portanto, uma apreenso de semelhana imediata. Note que se trata de semelhana e no de identidade, pois eu percebo que somos dois, que o outro no idntico, mas semelhante a mim.

    Todos os seres humanos realizam o mesmo ato quando encontram outros seres humanos. Esse ato se dis-tingue da percepo, da recordao, da imaginao, da fantasia, da intuio, por isso um ato sui generis. pre-

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  • Capitulo 5

    sentemos ainda um outro exemplo que consiste em abrir um livro e encontrar escrito: "Husserl disse que...". Sei que se trata de uma pessoa, ativo a entropatia, reconheo-o um ser humano ainda que ele no esteja diante de mim. Nesse caso, o ato da percepo se ativa quando leio no livro a palavra "Husserl" e d-se o sentir-reconhecimento de que um ser humano e tambm d-se o ato da recor-dao (recordo-me de quem Husserl, de algum que me falou sobre ele). Isso quer dizer que a cada momento temos vivncias perceptivas, rememorativas e imaginati-vas. Podemos imaginar uma pessoa, formular uma ima-gem, talvez o imaginemos como uma pessoa velha ou um professor, mas a imaginao pode ser tambm ativada.

    Algumas vezes temos uma fotografia e, ento, pode-mos ver como a pessoa . Neste caso pode-se perguntar qual a vivncia que se ativa. Sabemos que a percepo e algo semelhante recordao. O que a fotografia? uma imagem, mas ns podemos fazer uma anlise da imagem. O que a imagem? O que a imagem em relao ao origi-nal? H uma forma de anlise da imagem do ponto de vista fenomenolgico, muito importante at para a arte, pois o exerccio da arte pode ser desenvolvido a partir da, mas atravs da imagem tambm podemos chegar a perceber o outro como humano.

    A palavra alem utilizada por Husserl (Einfhlung) composta por trs partes, o ncleo flil significa "sen-tir". H na lngua grega uma palavra que poderia corres-ponder a fhl (e ifeeling, derivada da lngua latina): pat-hos, que significa "sofrer" e "estar perto". A palavra empa-

    EI, o outro, ns: a entropatia

    tia uma tentativa de traduo desse sentir em termos lingsticos espontneos do ser humano, para sentir o outro. Uma outra traduo poderia ser entropatia. O termo emparia freqentemente utilizado, principal-mente na Psicologia, como "sentir o outro" no sentido de simpatia, mas no assim. Eu posso encontrar uma pes-soa, e ter um reconhecimento sbito de que um ser humano, imediatamente o vejo como indivduo e identi-ficado como algum semelhante a mim. Assim, enquanto eu o vejo, tenho, ao mesmo tempo, percepo e entropa-tia, ou seja, percepo e apreenso de que um ser huma-no. Porm, o que me acontece no nvel psquico? Existe uma reao de atrao ou repulso, a simpatia ou a anti-patia. verdade que sempre ativamos a antipatia ou a simpatia, porm, o primeiro movimento no nem de antipatia e nem de simpatia, mas de captar que se trata de um ser humano. A entropatia um ato especfico, no pode ser confundido com a reao psquica da simpatia. Usamos entropatia para dizer que, imediatamente, capta-mos que estamos diante de seres viventes como ns.

    O elemento vivente muito importante. Dentro dele existe uma vida, que no s percepo, uma per-cepo acompanhada da conscincia, portanto, estamos diante de algo que vive, que vive como eu. Por que temos de dizer "como eu"? Porque podemos estar diante de um cachorro que vive tambm, mas no vive como eu. Isso ns percebemos imediatamente, no entanto, podemos es-tabelecer com o gato ou com o cachorro uma relao tam-bm entroptica. Sabemos que ele vive em nvel psquico,

    .

  • Captulo 5

    que ns tambm temos. Se o gato mia, percebemos que ele esta pedindo alguma coisa, que tem fome ou sente alguma dor. Este captar entropatia, pois tambm possuimos o nvel psquico, mais do que isso, fazemos um grande esfor-o com os animais domsticos, falando e tentando inter-pret-los. O mesmo esforo fazemos com a criana peque-nina que ainda no pode falar, tentamos captar o que possa estar sentindo, o que est acontecendo com ela.

    Analisar a diferena entre o ser humano e o animal muito importante,' pois em relao ao ser humano, cap-tamos imediatamente que ele vive, tem vida corprea, ps-quica e espiritual. Isso ocorre imediatamente e ao mesmo tempo que percebemos tratar-se de algum igual, portan-to: "assim como eu". No caso do mundo animal, percebe-mos que ele est vivendo o corpreo e o psquico, mas no possvel no estabelecer uma relao espiritual, pois no se manifesta o " como eu". Existe uma entropatia com o mundo animal, porm, limitada. Com uma criana pequenina ns no podemos nos relacionar em nvel espi-ritual, porm, esse nvel do esprito amadurecer com o seu desenvolvimento, j o percebemos potencialmente.

    Atravs da entropatia, entramos em um mundo intersubjetivo, cuja vivncia ajuda o nosso desenvolvi-mento pessoal, do ponto de vista fundamentalmente espiritual, cultural.

    3 C STEIN, E. La estructura de Ia persona humana. Madrid: BAC, 2003. Cf. tambm ALES BELLO, A. Human world-ani-ma! world: an interprtation of instict in some late husserlian manuscrips. Analecta husserliana, LXV1II, p. 249-253, 2000.

    Eiit ) >i/fri>, ns: a entropatia

    Parte dos fenomenlogos falava em cincia da cul-tura, cincia do esprito, por lidar com o esprito, com o logos, e com a elaborao cultural. O psquico o lugar das pulses, dos impulsos, que sero organizados pela dimen-so espiritual em processos levados adiante por grupos humanos. Os agrupamentos humanos vo se construindo atravs do enfrentamento da diversidade, do dilogo, dos direitos, das leis, portanto, com as atividades espirituais.

    Podemos, agora, nos dedicar a compreender quais so as estruturas dos grupos humanos, qual sua configu-rao, suas modalidades culturais, suas organizaes espi-rituais. Existia uma tendncia, no mundo alemo contem-porneo a Husserl, de falar em cincias cia cultura. Porm, Husserl se pergunta: "Qual a raiz da cultura?" A raiz da cultura a atividade espiritual, so os atos do esprito que formam a base das cincias e da cultura em geral.1

    4 Cf. HUSSERL, E. La crisi dellc seienze europee e Ia fenome-nologia traseendentale: per un sapere umanistico. Piefazione di E. Paci, introduzione di W. Biemel, traduzio-ne di E. Filippini. Milano: Net, 2002. Cf. tambm ALES BELLO, A. Culturas e religies: uma leitura fenomenolgi-ca. Traduo de A. Angonese. Bauru: Edusc, 1998.

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  • Capitulo 5

    BH

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    Captulo 6

    A INTERSUBJETIVIDADE: AS MODALIDADES DE

    ASSOCIAO E A PESSOA

    Na experincia da entropatia, temos a possibilida-de de contato com o outro, embora, na realidade, do ponto de vista experiencial, antes da anlise que podemos fazer, ns sempre vivemos junto com outros, num con-texto humano.

    Como chegamos a reconhecer que um contexto humano? Que no um contexto animal, que no um contexto de coisas? Como chegamos a distinguir? Com o ato da entropatia, imediatamente, compreendemos que estamos junto a outros como ns, esta a dimenso intersubjetiva constitutiva da pessoa1.

    Ns nascemos em um contexto interpessoal, porm existem muitas formas de organizao de associa-

    1 Como o ser humano tambm um ser espiritual, do ponto de vista filosfico fala-se em pessoa. De fato, tanto Husserl quanto Stein usam o termo "pessoa", acentuando 0 reco-nhecimento da sua dimenso espiritual constitutiva.

  • Captulo 6

    o humana, essas formas so muito importantes para compreender o papel de cada pessoa no seu contexto associativo. Ento, pode-se perguntar quais formas asso-ciativas favorecem o posicionamento de cada pessoa e que tipo de associao promove o movimento de cada um. A dimenso interpessoal to importante que toda a nossa educao depende da interpessoalidade em que estamos inseridos.

    Podemos tambm identificar quais so os seus limites, esse , efetivamente, um grande tema que os feno-menTgos vem enfrentando. Pode-se, primeiramente, pensar sobre as diferentes formas da organizao humana e se perguntar quais so as possibilidades do ser humano realiz-las. Como o ser humano constitudo pelas dimenses corpo, psique e esprito, as associaes huma-nas, ou seja, as modalidades de agrupamento do maior ou menor importncia a cada uma dessas dimenses.

    MASSA: PREDOMINNCIA CORPREO-PSQUICA -IMPULSOS UTILIZADOS POR PROJETOS ALHEIOS

    Corporeidade e psique so nveis interligados, por isso falamos de corpo vivo1, ou seja, corpo animado pela

    2 Cf. HUSSERL, E. de per ima fenomenologia pura c una filosofia fenomenologka. Organizzazione di V. Costa, tradu-

    Intersubjetividade: as modalidades de assoeiaao c a pessoa

    psique. E falamos tambm de reaes a todas as coisas que chegam a ns atravs da corporeidade. Examinando uma associao humana, que se detm nesse nvel corpreo-psquico, percebemos que nelas somos arrastados por impulsos psquicos coletivos.

    Stein faz uma consistente anlise desse fenmeno', dizendo que h uma espcie de contgio psquico, que corresponde, em seu funcionamento, ao contgio de doenas do corpo. Tomemos um exemplo j utilizado. Se acontecesse um grande barulho numa sala, a reao cole-tiva instintiva seria todos sairem. Nesse caso, poderamos ser arrastados pelo pnico. Porm, como comum nessas situaes, algum falaria: "no entrem em pnico, pre-ciso se controlar para podermos sair". A pessoa estaria se lidando com um controle que de natureza espiritual, racional. Ns nos organizaramos para ver por onde sair mais rapidamente, antes que todos se jogassem no mesmo ponto e ningum conseguisse sair. Esse exemplo muito simples, mas existem situaes humanas em que o momento impulsivo, instintivo, mais profundo. H tambm tendncias e impulsos que passam a ser utiliza-dos por algum de fora do grupo, como nas publicidades.

    zione di E. Filippini. Torino: Einaudi, 1965. v. II. Cf. tam-bm STEIN, E. Introduzione alia filosofia. Prefazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezzella. Roma: Citt Nuova, 2001.

    3 STEIN, E. Psicologia e scienze dcllo spirito: contributi per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

  • Capitulo 6

    A ideologia uma idia que pode ser apresentada como boa, til, mas, na verdade, faz com que certa organi-zao siga os interesses de quem a prope. Neste caso, Edith Stein diz que est se formando a massa. Massa signi-fica, ento, pessoas juntas sem uma forma especificamente prpria. Sua forma dada por quem consegue se ocupar dela e utiliz-la segundo um projeto'. O projeto no ps-quico, mas intelectual, sendo assim, pode ser bom ou mau, mas de partida j viciado quanto questo da moral. Algum que utiliza a massa para um fim moral, faz algo negativo, pois no respeita a liberdade do ser humano.

    Pode-se avaliar esses encontros para verificar se so vlidos ou no. No se pode dizer simplesmente que os encontros baseados em elementos emocionais sero nega-tivos, pois preciso verificar se esses elementos so vlidos para um projeto, assim, pode-se passar do nvel do motivo para o nvel da motivao. Motivao um passo a mais, porque se insere em um projeto, que tem certa organiza-o e uma finalidade. Ento pode-se perguntar qual tipo de organizao respeita o projeto individual.

    4 Cf. STEIN, E. Una ricerca sullo Stato. 2. ed. Traduzione di A. Ales Bello. Roma: Citt Nuova, 1999.

    Intersubjetividade: as modalidades do associao o a pessoa

    COMUNIDADE: VNCULOS CORPORAIS, PSQUICOS E ESPIRITUAIS

    Husserl e Stein acreditam que a organizao que respeita a pessoa se chama comunidade?. A comunidade caracterizada pelo fato de os seus membros assumirem responsabilidades recprocas. Cada membro considera sua liberdade, assim como tambm quer a liberdade do outro e, a partir da, verificam qual o projeto conjunto. O projeto pode ser til para a comunidade, mas deve ser til tambm para cada membro.

    Na comunidade a pessoa considerada singular-mente, cada um deve encontrar dentro dela a sua realiza-o, j que sozinho o ser humano no consegue se reali-zar plenamente. Eis porque indivduo no um bom termo, pois indica a pessoa considerada fora do seu grupo e, segundo essa interpretao, a comunidade no se constituir apenas com a proximidade de vrios indiv-duos. De fato, a comunidade uma unio de pessoas con-sideradas singularmente, de modo que o contexto rela-cionai possibilita sua realizao, assim, a singularidade e a comunidade so dois momentos co-relatos.

    5 Cf. HUSSERL, E. Meditaes cartesitmas: introduo fenomenologia. Traduo de Oliveira. So Paulo: Madras, 2001; STEIN, E. l.a estruetura de Ia persona humana. Madrid: BAC, 2003; STEIN, E. Psicologia e scienze dello spi-

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  • Captulo 6

    A comunidade se forma quando cada membro aceita a comunidade como lugar de seu movimento indi-vidual e, assim, se forma uma nova personalidade que a comunidade. Os seres humanos deveriam viver em comu-nidade, pois isto corresponde a um grande apelo tico. Concebendo a comunidade dessa maneira, cada um po-deria participar de diversas formas de comunidade.

    Uma famlia, por exemplo, poderia ou deveria ser uma comunidade. Mas nem sempre o , entretanto se realiza como comunidade quando o vnculo entre os membros da comunidade positivo, comeando pelos sentimento. No caso da famlia, o sentimento fundamen-tal o amor e sua reciprocidade, pois existe um desejo solidrio de realizao, mas se isso no acontecer, no h comunidade familiar. Na famlia h benefcios tambm no nvel corporal, pois o corpo inteiro do ser humano faz parte daquela, famlia, juntamente com o esprito. Quando se diz que acreditamos em um vnculo de san-gue, significa, no caso da famlia, que estamos ligados por um elo corporal. Porm o vnculo de sangue no faz com que a famlia seja uma comunidade, preciso que haja uma disponibilidade psquica e espiritual.

    A comunidade familiar antes de tudo um proces-so, no acontece espontaneamente, esse um problema muito presente atualmente nas famlias. A espontaneida-

    rito: contributi per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

    Intersubjetividade: as modalidades de associao e a pessoa

    de est no primeiro momento, em que h grande poten-cializao de todos os elementos, pois quando as pessoas se encontram acontece uma atrao, um sentido de no-repulso. Esse encontro de atrao, que existe em nveis tpicos muito profundos, elaborado no nvel do senti-mento, ou seja, tomamos como sentimento de atrao. A atrao deve passar para um grau mais alto, um senti-mento do mais alto nvel, isto , o amor. Esse termo tem muitos significados e existem vrias propostas de amor. Note que um nvel mais alto no exclui os nveis anterio-res, pois no se age de forma egosta, pelo contrrio, acen-tua-se o aspecto de colocar cm comum.

    COMUNIDADE E SOCIEDADE

    Fazemos parte de organizaes que aparentemente no so, mas poderiam se tornar comunidades, por exem-plo, um grupo de alunos de uma mesma sala de aula. Na associao existe um vnculo fsico, corporal, mas aquelas pessoas formaram esse vnculo por acaso. O termo socie-dade descreve esse tipo de grupo, uma vez que os mem-bros esto ali por uma finalidade comum. No entanto, se eles forem capazes de estabelecer vnculos psquicos e espirituais, podero tornar-se uma comunidade. Se todos trabalharem em unio e no quiserem sempre afirmar a si mesmos, causando mal ao outro, se trabalharem para o grupo, a sociedade pode se tornar tambm comunidade.

    73

  • Cpltub 6

    Existem comunidades de amizade* por exemplo, e a verdadeira amizade deseja que o outro se torne si mesmo, uma atitude psquico-espiritual importantssima, pr-pria da amizade.

    Existem ainda outros tipos, como a comunidade religiosa, sobre a qual se poderia perguntar que tipo de relao liga seus membros, sabemos que um projeto comum, com respeito recproco. Cada comunidade tem seu lugar e realiza a si mesma naquele lugar. Existe tam-bm uma finalidade, que pode ser chamada de finalidade humana e outra mais profunda que a da realizao espi-ritual. Cada membro da comunidade faz parte de uma comunidade familiar, a famlia de origem e, pode tam-bm fazer parte de uma comunidade escolar, assim como de uma comunidade de voluntariado, e ainda de uma comunidade religiosa.

    POVO, NAO, ESTADO E COMUNIDADE

    Se os grupos humanos se organizam dessa forma, possvel fazer um estudo para compreender o que signi-ficam as comunidades rotuladas como povo, como nao ou como Estado.

    As formas comunitrias so as que poderiam, e deveriam, mais contribuir para o desenvolvimento de cada membro. Considerando-se que nas condies conni-

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    Intersubjetividade: as modalidades de associao c a pessoa

    nitrias nunca cada membro pode fazer tudo o que quiser, pertinente refletir sobre o sentido do desenvolvimento de cada membro. claro que no se poderia desenvolver somente os interesses particulares, os objetivos pessoais, mas para alcanar o desenvolvimento pessoal, cada mem-bro precisa conviver, isto , viver com os outros.

    Estas estruturas sociais poderiam atenuar a depen-dncia que ns, inevitavelmente, temos dos outros, sem idealizar que essas associaes possam ser perfeitas, ou que cheguem a resolver o problema definitivamente. Muitos problemas so resolvidos radicalmente, mas sempre tere-mos o momento negativo, o momento do limite, o momen-to da dificuldade. Realisticamente, sempre foi assim, mas devemos trabalhar para evitar esse tipo de experincia.

    A comunidade de povo e a comunidade que est na base do Estado so duas possibilidades interessantes, pois mostram que - como no caso da famlia - em gran-des organizaes sociais pode haver comunidade, vncu-los espirituais entre seus membros, alm dos vnculos corporais, tnicos.

    Assim, existe a possibilidade de pertena simult-nea a vrias comunidade muito diferentes entre si. Lembremos que Edith Stein era judia, se converteu ao cristianismo na forma do catolicismo, dizia que conti-nuava a pertencer ao povo judeu, pertencendo, contem-poraneamente, comunidade crist.

    Ao examinarmos a histria, verificamos que h grupos que tm um vinculo tnico-corporal menor que outros. Porm, se o povo se fundamentasse somente no

  • Capitule 6

    vnculo tnico, alguns povos no poderiam existir, por exemplo, o povo brasileiro. Isto significa que o povo pos-sui um fundamento tambm espiritual, isto , um reco-nhecimento e aceitao da alteridade, do diferente dentro do mesmo territrio. No se pode afirmar que o elemen-to vinculante seja o aspecto corporal-tnico ou o aspecto espacial e o territorial.

    Consideremos, por exemplo, o povo judeu, que se constitui como povo sem que seus membros vivam em um mesmo territrio. um problema muito importante para o mundo atual, pois o povo judeu saiu de um terri-trio, desceu em direo Palestina erri busca de uma terra prpria para se estabelecer. Encontrando-a, ali per-maneceu por longo tempo. Quando o Imprio Romano se expandiu pelo Mediterrneo, setenta anos depois de Cristo, como sabemos, o templo foi destrudo e muitos judeus se distanciaram daquele territrio, o templo era um ponto de referncia espacial e espiritual daquela comunidade. Assim, ocorreu a disperso dos judeus por toda bacia do Mediterrneo, Itlia, Espanha e, depois pelo norte europeu. Mesmo sem um territrio comum onde viver, os judeus consideravam-se um mesmo povo. Che-garam a formular uma teoria, que continua a ser conside-rada vlida para alguns at hoje, segundo a qual nem seria necessrio possuir um territrio fsico, j que a terra pro-metida uma terra ideal do encontro de todo um povo. Forem, depois das duas grandes guerras mundiais do sculo 20, o movimento sionista se formou para retomar o antigo territrio, h muito ocupado por outros povos.

    Intersubjetividade: os modalidades de associao e

  • Captulo

    independentemente do grupo tnico ou da comunidade a que pertenam. As leis garantem a igualdade entre todos os cidados e, claro, isso se deu devido a lutas polticas muito fortes. Como se v, o Estado pode estar ligado a um povo, mas pode ser tambm uma organizao que vale para povos distintos que vivem juntos. por isso que dizemos que o Estado vai alm do povo, est acima dos vrios povos e cumpre zelar por todos.

    Mas podemos perguntar de que forma o Estado realmente se mantm. O importante que se constitua uma comunidade estatal. Mas o que quer dizer comunidade esta-tal? Quer dizer que todos aqueles que pertencem ao Estado se do conta da comunidade que eles querem sustentar e o fazem com a participao moral, espiritual. Quando essa vontade falta, o Estado deixa de existir.

    Consideremos os Estados modernos. Eles nasce-ram quando uma comunidade de um povo ou de vrios povos se tornou uma comunidade estatal, uma organiza-o poltica e jurdica comum a todos. Quando a comu-nidade estatal deixa de existir, pode acontecer, ento, que venha a faltar o prprio Estado. Por exemplo, desde o sculo 18, a Chechnia no quer fazer parte de um Estado que lhe foi imposto, antes o Imprio Russo e depois a Unio Sovitica. Est ocorrendo, portanto a fragmenta-o de um Estado unitrio, e a dificuldade de manter uni-

    BELLO, A. A fenomenologia do ser humano: traos de uma filosofia no feminino. Traduo cie A. Angonese. Bauru: Edusc, 2000.

    Intersubjetividade: as modalidades de associao e a pessoa

    dos aqueles vrios Estados. No caso da Chechnia, os habitantes dizem "Nosso povo no quer fazer parte da comunidade estatal russa, queremos ser independentes". Eles querem ter suas leis, seu territrio, constituir um Estado separado. Nesse caso, a comunidade de povo que pertenceu Rssia ou Unio Sovitica no existe mais e aconteceu uma ruptura. Notamos que possvel criar e destruir um Estado, e, ao longo da histria, isso aconte-ceu muitas vezes. Pensemos no Imprio Romano que o primeiro exemplo forte do que Estado, ele acabou quando a comunidade de povo que o constitua se frag-mentou, no queria mais aceitar aquela unidade poltica.

    Ns encontramos o conceito de comunidade em muitos nveis, j que o elemento que a caracteriza sem-pre o da unidade espiritual, cultural e da vontade coleti-va. Comunidade no o mesmo que vrios indivduos que se colocam juntos, como na idia de "contrato" que aparece no sculo 18, pois, assim, no se pode formar o Estado. necessria uma comunidade que se associe de determinada maneira e alargue-se a outras comunidades, formando um Estado de diversos povos.

  • Intersubjetividade: as modalidades de associao e a pessoa

    Assim, a partir da comunidade como centro de refe-rncia para todas as associaes humanas, do ponto de vista da antropologia filosfica e atravs da anlise das vivncias, ns chegamos ao ser humano singularmente considerado, ns identificamos sua estrutura como uma estrutura uni-versal, no somente como estrutura pessoal. H uma aber-tura ao outro, a muito outros, aos grupos humanos e h tambm possibilidades de associaes desses grupos huma-nos que so a massa, a comunidade e a sociedade.

    A sociedade um grupo que se associa ocasional-mente para um fim, e preciso colocar-se junto, com uma finalidade, para se constituir uma sociedade. H, pois, uma racionalidade, uma afinidade espiritual, porm para um fim especfico, de forma que, se a finalidade ter-minar, pode-se formar uma outra sociedade ou acabar ali. Por outro lado, a comunidade um fator de toda sociedade, fundamental para o cidado, considerado aquele que constri a polis, no sentido grego. As co-munidades do a base comunidade estatal, podem ser inclusive tribos, uma vez que tambm elas constituem diversos vnculos entre seus membros. Nas tribos existem costumes que servem somente para aquele grupo espec-fico, mas quando se fala nos membros do Estado sempre h leis, pois os costumes devem valer para todos. Nisto est o problema da constituio do Estado, o problema das cidades modernas e da realidade contempornea em conseguir estabelecer uma legislao que v alm da con-siderao das diferenas dos vrios grupos tnicos. Por exemplo, na Europa se busca, atualmente, uma constitui-

  • Capitulo 6

    o que valha para todos os pases da Unidade Europia, que tenha validade alm da constituio de cada pas. Ser possvel se cada um dos Estados europeus quiser, fazer parte da comunidade estatal europia, podendo vir a se distanciar caso no queira participar. interessante notar que, mesmo em termos jurdicos, fala-se em "comunidade europia" que chega a ter uma constituio.

    Vrios problemas internacionais atuais surgem devido no aceitao, por parte de alguns povos, das estruturas estatais; sobretudo as elaboradas sem a sua participao. Alguns dizem: "ns temos a nossa forma de vida organizacional e poltica e no queremos aceitar esse tipo de regra ocidental". O que isso significa? Significa que para existir a constituio de uma organizao esta-tal preciso haver uma disposio espiritual, moral.

    Esses so os grandes problemas que podem ser analisados partindo dos elementos que ns apontamos: o ser humano um fenmeno, ou seja, ele se mostra e den-tro dele ns encontramos todos os atos que so tambm fenmenos e se manifestam. Atravs desses atos, ns che-gamos a conhecer o que o fenmeno corpo, o fenmeno psique, o fenmeno esprito. Dentro do ato da entropatia podemos conhecer tambm o que o fenmeno do outro, que se manifesta em diversos grupos organizados como fenmenos. Essa organizao pode ser massa, comunida-de, sociedade ou Estado.

    Captulo 7

    A ANLISE DAS VIVNCIAS PARA UM FUNDAMENTO

    DAS CINCIAS

    Sabemos que no campo das cincias, algumas se ocupam de certos aspectos deste percurso indicado no pre-sente volume. As cincias que se interessam pelo corpo so a Biologia, a Fisiologia, por exemplo. A Psicologia se ocupa da psique. O esprito se relaciona com as formas culturais e as cincias da cultura como a Antropologia Cultural, a Histria, o Direito e todas as cincias relativas arte. As cincias que se ocupam das formas de organizao dos gru-pos, da comunidade so a Sociologia e as Cincias Polticas, dentre outras. Temos, ento, muitos pontos de vista cient-ficos, cada um deles desenvolvendo-se num aspecto. O ideal seria que cada ponto de vista se ocupasse tambm de uma estrutura geral, que encontrada atravs dessa anlise j apresentada aqui, que de carter filosfico.

    Uma tendncia do nosso tempo fixar-se em alguns desses aspectos, sem entender qual o sentido do ser

  • Captula 7

    humano, e de sua relao com os outros, com a comunida-de, com a sociedade, com o Estado. Entender tais sentidos algo que se pode fazer somente atravs de um trabalho de pesqu