a arte no horizonte provável

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HAROLDO DE CAMPOS – A ARTE NO HORIZONTE DO PROVÁVEL CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. Parte I – A POÉTICA DO ALEATÓRIO A Arte no Horizonte do Provável (1963) No ensaio, Haroldo de Campos, lembrando o abalo sofrido pela física newtoniana diante das descobertas da física quântica, segue a impressão de que a arte contemporânea relega ao segundo plano a idéia de uma estética eterna – como na arte clássica – e incorpora como constitutiva a provisoriedade1 “o relativo e o transitório como dimensão mesma de seu ser” (p. 15) ou então, “probabilismo integrado na fatura mesma da obra de arte, como elemento desejado de sua composição” (p. 17). Seguindo as idéias expostas na Teoria da Poesia Concreta, o autor reconhece em Mallarmé o pioneiro no uso do transitório na arte poética, na medida em que, citando os trabalhos ligados à escrita de Um Lance de Dados, se propunha a observações relativas à forma do poema, a ponto de vislumbrar poemas sobre poemas, metalingüisticamente. Nesse sentido, o projeto de Mallarmé, inacabado, que se começava a vislumbrar em Le Livre, instrument spirituel (1895) de um livro que não mais proporia um eterno recomeçar – da capo – como Un Coup de Dés ou Finnegans Wake –, mas “um multilivro onde, a partir de um número relativamente pequeno de possibilidades de base, se chegaria a milhares de combinações” (p. 18). Seriam, assim, as Galáxias uma tentativa de pôr em prática a proposição de Mallarmé? Haroldo prossegue com a idéia do constante questionamento acerca da obra de arte conclusa e reflete sobre as conseqüências no campo da música e, para isso, cita o trabalho de Webern, Cage, Stockhausen e Boulez. Ambos se defrontam com o acaso, com a probabilidade, com a estética do provisório: Boulez, querendo um barroco moderno2, propõe o acolhimento do acaso desde que sob a vigilância de uma inteligência criadora, e Stockhausen permite a liberdade de articulação diante da partitura impressa por parte dos intérpretes ao sabor do momento. Haroldo ressalta que, mesmo com posturas diferentes, os quatro compositores mencionados restituem ao intérprete um papel na música da era do disco, da reprodução artificial e pronta, fixa. Mesmo assim, seguindo a frase de Valéry – “A maior liberdade nasce do maior rigor” – Haroldo lembra que há uma necessidade “de impor balizas (formantes3 [refere-se à teoria de Boulez]) à pura fermentação do acaso” (p. 26). No que toca à poesia, embora o

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CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável.

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HAROLDO DE CAMPOS – A ARTE NO HORIZONTE DO PROVÁVEL CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977.

Parte I – A POÉTICA DO ALEATÓRIO A Arte no Horizonte do Provável (1963) No ensaio, Haroldo de Campos, lembrando o abalo sofrido pela física newtoniana diante das descobertas da física quântica, segue a impressão de que a arte contemporânea relega ao segundo plano a idéia de uma estética eterna – como na arte clássica – e incorpora como constitutiva a provisoriedade1 – “o relativo e o transitório como dimensão mesma de seu ser” (p. 15) ou então, “probabilismo integrado na fatura mesma da obra de arte, como elemento desejado de sua composição” (p. 17). Seguindo as idéias expostas na Teoria da Poesia Concreta, o autor reconhece em Mallarmé o pioneiro no uso do transitório na arte poética, na medida em que, citando os trabalhos ligados à escrita de Um Lance de Dados, se propunha a observações relativas à forma do poema, a ponto de vislumbrar poemas sobre poemas, metalingüisticamente. Nesse sentido, o projeto de Mallarmé, inacabado, que se começava a vislumbrar em Le Livre, instrument spirituel (1895) de um livro que não mais proporia um eterno recomeçar – da capo – como Un Coup de Dés ou Finnegans Wake –, mas “um multilivro onde, a partir de um número relativamente pequeno de possibilidades de base, se chegaria a milhares de combinações” (p. 18). Seriam, assim, as Galáxias uma tentativa de pôr em prática a proposição de Mallarmé? Haroldo prossegue com a idéia do constante questionamento acerca da obra de arte conclusa e reflete sobre as conseqüências no campo da música e, para isso, cita o trabalho de Webern, Cage, Stockhausen e Boulez. Ambos se defrontam com o acaso, com a probabilidade, com a estética do provisório: Boulez, querendo um barroco moderno2, propõe o acolhimento do acaso desde que sob a vigilância de uma inteligência criadora, e Stockhausen permite a liberdade de articulação diante da partitura impressa por parte dos intérpretes ao sabor do momento. Haroldo ressalta que, mesmo com posturas diferentes, os quatro compositores mencionados restituem ao intérprete um papel na música da era do disco, da reprodução artificial e pronta, fixa. Mesmo assim, seguindo a frase de Valéry – “A maior liberdade nasce do maior rigor” – Haroldo lembra que há uma necessidade “de impor balizas (formantes3 [refere-se à teoria de Boulez]) à pura fermentação do acaso” (p. 26). No que toca à poesia, embora o sentido, a semântica, das palavras possa dificultar os jogos com o acaso, Haroldo se remete à idéia maneirista de fazer uma literatura com textos permutatórios, literatura combinatória, e lembra que já em noigandres 2 e 3 essa poiesis como obra de arte aberta (v. texto de Teoria da Poesia Concreta) possibilitava leituras na vertical, na horizontal por relações de semelhança e proximidade. Arte da permutação que quer se colocar ao mesmo passo das possibilidades proporcionadas pela era tecnológica. 1 Do artigo Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico (p. 248), do livro O arco-íris branco, cito: “Baudelaire, na culminação desse processo [o surgimento da modernidade] (um processo que retoma a oposição ‘belo universal’/’belo relativo’ para acentuar, nessa relativização do belo, um ideal de novidade em constante mutação) acaba por encontrar no ‘transitório’ (cujo paradigma é a moda) o critério distintivo da modernidade”. 2 Entendido como forma, forma barroca, anticlássica, anti-acadêmica. 3 A idéia de formantes acompanhará Haroldo até mesmo na elaboração dos textos – proesia, como a eles se referia Caetano Veloso – de Galáxias, em que “e começo aqui” e “fecho encerro” devem ser dispostos, invariável e respectivamente, no princípio e no fim da obra.

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Parte II – A POÉTICA DO PRECÁRIO Kurt Schwitters ou o Júbilo do Objeto (1956) Falando sobre o artista que expôs obras com Paul Klee na Der Sturm (falar com a Flávia sobre isso), Haroldo se detém sobre a observação do uso dos objetos rejeitados, dos cacos, dos pedaços de papel colados à tela. Digressão: cabe, nesse sentido, lembrar do colecionador benjaminiano, do “esquecer para lembrar” de Drummond, ou mesmo da análise feita sobre a obra de Bispo do Rosário que a Flávia fez com base na profanação de Agamben. A arte de Kurt Schwitters (1887-1948) se chamava MERZ e explicava ele que, um dia, fazendo uma colagem com a palavra KOMMERZ (comércio ?), apenas o final da palavra foi usado. O jogo do uso da arte e da idéia de comércio está presente a meu ver. Haroldo, entretanto, se prende à forma seguida pelo artista, que, além de pintor, era poeta, na elaboração de suas telas e poemas: preocupava-se ele em variar as formas tipográficas do papel colado, das imagens a fim de que a obra se resolvesse pelo conjunto observado, gestálticamente. Quanto à poesia de Schwitters, Haroldo de Campos cita o “ANAFLOR”, nele há um “Tu, te, ti, contigo, eu te, tu me” que muito me fez lembrar incipit do Galáxias. O mesmo poema levou Carola Giedion-Welcker a observar a coincidência entre o ANAFLOR e o ANA LÍVIA PLURABEL joyceano, Haroldo, à parte das proximidades com Joyce, o surrealismo e o dadaísmo, repara na coesão gestáltica presente até mesmo nas obras poéticas do autor. Por outro lado, através da Sonata Pré-silábica, chama-se à atenção para a aproximação de Schwitters “à ráquis da textura fonética: a pré-sílaba, aos sons primordiais, às unidades sonoras prévias ao idioma-signo, vale dizer, anteriores (se isto é possível imaginar) ao idioma investido de simbologia conteudística” (p. 44), o que, por sua vez, permite “um retorno às matrizes do material poético, um puro júbilo do objeto verbal resgatado à grilheta dos hábitos semânticos e morfológicos e ativado por novos oxigênios” (p.44). Arte de invenção formal.

Parte III – A POÉTICA DA BREVIDADE Haicai: Homenagem à Síntese (1958) O texto se coloca como uma apresentação à tradução de Haroldo de dois haicais de Bashô (1644-1694) e Buson (1716-1784). O uso da escrita ideogrâmica (em japonês, ideograma é kanji), conforme os estudos de Fenollosa, tão citados na Teoria da Poesia Concreta, por ser ela mesma constituída de conjugação de imagens, que, inicialmente, representavam os objetos e as idéias, os sentimentos – pictografia –, permitem o surgimento de uma terceira coisa que sugere uma relação entre as outras representadas. É uma escrita, portanto, que aglutina, condensa e, dessa forma, também a estrutura do haicai, escrito em uma linha vertical originalmente com 17 sílabas, é aglutinante. É isso que interessa a Haroldo de Campos, ou seja, o jogo de palavras-montagens que, pela concentração, possibilita um rendimento máximo de uma linguagem reduzida mesmo em língua tão diferente como o português, “afastando do corpo enxuto do poema traduzido todos os apoios conectivos, toda a adjetivação pitoresca, todo o resquício explicativo ou conceituoso...” (p. 59). Visualidade e Concisão na Poesia Japonesa (1964) Este texto é mais aprofundado do que o anterior ao considerar o ideograma japonês. Haroldo começa lembrando que os kanji foram importados da China na metade terceiro

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século de nossa era e, inicialmente, de forma sintética e estilizada, se destinavam a ser os desenhos de objetos (fase pictográfica), como “metáfora gráfica”, até mesmo porque é o processo metafórico capaz de fazer representar relações imateriais através de imagens matérias. O ideograma permite, além disso, justamente pela origem pictográfica, a constante visualização de sua etimologia. Assim, “esta dimensão visual da poesia japonesa, herdada por via do ideograma, permite-lhe um extremo refinamento de percepção, um grande poder de síntese imaginativa” (p. 65). Haroldo cita o trabalho do poeta Kitasono Katue, que mistura os elementos tradicionais da escrita ideogramica com outros da poesia ocidental e a importância do visual conciso dos kanji para o arranjo gestáltico, ou seja, que se faz em vistas de um todo, de um conjunto formador da obra, na poesia contemporânea ocidental. Ungaretti e a Estética do Fragmento – a) O Primeiro Ungaretti, publicado no suplemento literário de O Estado de São Paulo sob o título “Ungaretti e a Vanguarda” em 10/09/1966; b) O Último Ungaretti, publicado no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, com o título “Ungaretti e a Poética do Fragmento”, em 28/05/1967

1. O Primeiro Ungaretti

Haroldo, referindo-se à atenção dada pelos poetas italianos da década de 60 – I Novissimi – à poesia de Giuseppe Ungaretti (nascido em Alexandria, no Egito, em 1888 e morto em Milão, em 1970), trata aqui de desvelar as relações dele com os movimentos de vanguarda poética em sua primeira fase de trabalho. Nesse sentido, lembra o texto publicado pelo italiano na revista L’Esprit Nouveau sobre a antecipação do dadaísmo nas propostas do grupo Lacerba, ligado ao futurista Soffici, bem como o contato com a obra de Marinetti, que além de ser o autor do manifesto futurista fez traduções de poemas de Mallarmé. E afirma: “É que a poesia ungarettiana, por suas origens, está de certa maneira vinculada à matriz do futurismo italiano (cujo primeiro manifesto – ‘Manifesto-Fonfazione’ – data de 1909). A sintaxe despojada, a sutilíssima técnica de cortes e a dialética das pausas, a brevidade programática, a pontuação apenas mentalizada para as imagens que se destacam na página como pétalas, dos poemas de L’Allegria (1914-1919), ou da maioria deles, é uma personalíssima utilização, para quem os sabia ler como olho armado, da preceptística marinettiana, o teórico (e também praticante fogoso) da sintaxe telegráfica e da imaginação sem fios” (p. 78). Haroldo também lembra as traduções feitas pelo próprio Ungaretti de Mallarmé, intercaladas com aquelas outras de Gôngora, dos quais toma consciência do branco da página e da densidade das várias formas dos temas da beleza no sentido de “uma aproximação seletiva realizada pela imaginação criadora para ‘nutrimento do impulso’” (p. 80), consciente da decadência do texto linear e discursivo, impregnado por um barroquismo [forma], que neste ensaio se coloca como sinônimo de “imaginação labirín-tica” (p. 80). Ressalta-se que Ungaretti promoveu traduções de Gôngora, Mallarmé, Shakespeare, Racine, St.-J. Perse, Blake e de poetas brasileiros para o italiano no período em que viveu em São Paulo (1937-1942).

Post Scriptum 1969 Análise estruturalista, com base em Jakobson, da estrutura fônica de Mattina / M’illumino d’immenso, em que se percebe que os “i” passam a idéia de claridade e o “u” a de escuridão. 4 Ver L’uomo senza contenuto e Bartleby, o della contingenza.

2. O Último Ungaretti

Haroldo entende que a poesia ungarettiana, distante do “remanso neoclássico”, se guia pela idéia do fragmentário e faz disso um tema para a própria criação (lembrar do que foi dito no ensaio A Arte no Horizonte do Provável, em que a transitoriedade se coloca como elemento desejado na obra de arte contemporânea). Quanto às últimas publicações do poeta, Haroldo afirma que, em Il Taccuino del Vecchio (1952-1960), a poesia desenvolve-se como uma retomada de Vico. E, ainda, baseado na conferência pronunciada no Brasil em 1966

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(Linguaggio e Poesia), percebe um reforço da idéia de que o fragmento é a única maneira possível de expressar as conseqüências do progresso tecnológico e da crise da linguagem na contemporaneidade. O apego a esse tema, Haroldo percebe através da influência do último Mallarmé (de Um lance de Dados, portanto) e também dos escritos teóricos de Giacomo Leopardi (poeta do Romantismo italiano) que, com sua poética da brevidade, antecipava ideais mallarmaicos. Haroldo ainda sustenta que em Leopardi se fazia presente um confronto entre as resultantes de uma formação clássica e uma vontade de afirmação moderna, de modo que, em L’Infinito, desenvolve-se a técnica do enjambement como modo de enfatizar a fragmentação poética. Enjambement = técnica de cortes (ver definição em Dicionário de Termos Literários). Faz-se também a apresentação da tradução de um pequeno poema, o XVI, de Il Taccuino Del Vecchio, em que se fala da “desmesura”, “da ficção do infinito no pensamento”, da infinitude.

Parte IV – A POÉTICA DA TRADUÇÃO A Palavra Vermelha de Hoelderlin (1967) – ver também Da Tradução como Criação e como Crítica, em Metalinguagem & Outras Metas Tratando da pouca aceitação (ira de Voss, tradutor da Odisséia, riso de Schiller e Goethe) que a tradução feita por Hoelderlin da Antígona de Sófocles sofreu em seu tempo acerca da aparente estupidez da sentença “Tua fala se turva de vermelho” (Ismene a Antígona) e da completa inversão de juízo (v. A Tarefa do Tradutor, de Benjamin, em que a Antigone de Hoelderlin aparece como protótipo) que se seguiu em no século passado, Haroldo de Campos estabelece alguns elementos para a compreensão da teoria da tradução e apresenta um trecho de sua própria tradução feita sobre aquela outra do poeta alemão. Afirma, desse modo, que a empresa de Hoelderlin deu início à modernidade poética e marcou o fim de um determinado decoro, da idolatria diante de um ideal de perfeição, abrindo-se um campo de possibilidades para a criação. Veja-se que, embora contando com pouco conhecimento de grego, “os erros de Hoelderlin, dada a predisposição existencial do poeta para a sua tarefa, a sua privilegiada sintonia com a essência do trágico, eram erros criativos” (p. 97). Haroldo lembra que as traduções feitas por Pound eram diferentes na medida em que se pautavam por um certo pragmatismo – “a tradução como uma didática, como uma forma crítico-criativa de reinventar a tradução” (p. 97) –, mas, mesmo assim, tanto em Pound como em Hoelderlin há a compreensão de que o critério básico é traduzir a forma. Lembra-se também a idéia de supertradução proposta por Mário de Andrade, em que a tarefa do tradutor fosse captar a “ordem de dinamogenia” das palavras do original. Esta é uma importante referência à dýnamis aristotélica, a passagem ao ato, tão trabalhada por Agamben4. Com isso, recorrendo mais uma vez a Walter Benjamin, Haroldo cita: “’O erro fundamental do tradutor é fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua, em

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lugar de submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira’” (p. 99), a fim de tomar a idéia benjaminiana como uma reafirmação da possibilidade de a tradução funcionar como gênero criativo, capaz de pôr em contato de fato duas línguas diferentes, ou seja, estabelecer campos de influência mútua para a transmissão de uma informação estética. Observe-se: “Na tradução de um poema, o essencial não é a reconstituição da mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em que está incorporada esta mensagem, da informação estética, não da informação meramente semântica. Por isso sustenta Walter Benjamin que a má tradução (de uma obra de arte verbal, entenda-se) caracteriza-se por ser a simples transmissão da mensagem do original, ou seja, ‘a transmissão inexata de um conteúdo inessencial’” (p. 100). Assim, ante a criação de Hoelderlin feita sobre o original grego, Haroldo de Campos passa se refere não mais à Antigone como mera tradução, mas como obra com força própria. Conforme as idéias expostas no ensaio, não esquece também de chamar a atenção para as traduções feitas por Odorico Mendes, a quem Sousândrade se referia como “o pai rococó” e relegado ao ostracismo pelas críticas de Sílvio Romero (v. “Da Tradução como Criação e como Crítica”). Píndaro, hoje (1967) Nesta apresentação à tradução da Primeira Ode Pítica de Píndaro, Haroldo defende a figura do poeta-tradutor como um designer da linguagem, uma vez que, embora o conhecimento da língua original do texto a ser traduzido possa ser menor – trunfo dos eruditos –, seu “repertório de linguagem”, o entendimento das formas e das possibilidades estéticas oferecidas pelo texto, é muito maior. Novamente, como no ensaio anterior, cita Benjamin, ao observar a capacidade, na tradução criativa, a transcriação, de se “libertar na língua materna do tradutor aquela ‘língua pura’ (linguagem, diria Pignatari) exilada no idioma estranho” (p. 110). Também observa que “o tradutor é um homem datado e situado, que foi à busca de Píndaro [no caso] não como um monumento glorioso, mas como poeta de carne e osso, visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo presente: Píndaro, mélico grego, ‘made new’ em perspectiva sincrônica [v. considerações sobre a poesia sincrônica], agora poeta contemporâneo, falando a um auditório de hoje” (p. 112). É dentro desse quadro de possibilidades que Haroldo explica seu olhar sobre Píndaro e reconhece nele um parentesco, sincrônico, como não poderia deixar de ser, com a poesia labiríntica e plástica do barroco espanhol Gôngora, e com Valéry, este contemporâneo. “Não aspires, alma, à vida imortal, mas esgota o campo do possível” – citação da III Pítica, de Píndaro, por Valéry em Cimetière Marin. A Quadratura do Círculo (1969) Como apresentação à tradução das odes 20, 42, 72 e 93 de Schi-King, do Livro das Odes (traduzidos em outra oportunidade por Ezra Pound), e poema de Han-Wu-Ti, Haroldo observa que faz parte da tarefa do tradutor defrontar-se com o estatuto da impossibilidade quando se permite a “reimaginação”, “transcriação” de obra composta em idioma tão diferente daqueles ocidentais como o chinês. É justamente esse um efeito de fascinação. Haroldo apresenta da seguinte maneira o método utilizado: “a) exame do texto original, com auxílio de uma versão intermediária (literal ou não); b) estudo dos principais ideogramas, segundo o método poundiano de hiperetimologia (detectar neles, sempre que couber, o casulo metafórico original e desvelá-lo poeticamente)” (p. 122). Os objetivos, por seu turno, foram assim expressos: “1) valorizar o aspecto visual da tradução do poema 5 Lembrar aqui a idéia expressa nos textos de Teoria da Poesia Concreta de que o conteúdo do poema concreto é a sua própria estrutura, ou mesmo as considerações feitas por Hugo Friedrich, em Estrutura da Lírica Moderna, sobre a questão da forma, da influência de Mallarmé sobre a poética do século XX. ideográfico num idioma ocidental, replicando assim a certos efeitos do original que se perdem nas versões [...]; 2) manter a síntese, a extrema concisão e a ambigüidade de uma linguagem regida não pela lógica aristotélica, mas por uma ‘lógica da analogia’ ou ‘lógica da dualidade correlativa’ [Importante o interesse em manter o ambíguo, este também é um elemento presente na obra barroca.] [...]; 3) procurar reproduzir o esquema paralelístico e os

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efeitos de correspondência léxica da arte poética chinesa clássica [...]” (p. 122). Vale lembrar que Haroldo chama a atenção para o uso de técnica paralelística com a poesia medieval portuguesa e com o cantar de Guido Cavalcanti. Elemento que reforça, mais uma vez, o apego à idéia de sincronia.

Parte V – A POÉTICA DA VANGUARDA Comunicação na Poesia de Vanguarda (1968)

1. Poesia como forma de linguagem

Tratando da questão da comunicação na poesia de vanguarda e na poesia em geral, Haroldo sustenta que esta é apenas um dos vários usos possíveis à linguagem, entendida como instrumento de comunicação que abarca inclusive sistemas de signos não verbais. Nesse sentido, traça-se um caminho pela temática da semiologia como ciência geral dos signos, desde as considerações de Eco, Saussure, Barthes e Jakobson, e, Haroldo, querendo desviar-se do que nomeia “concepções bastante tradicionais” do posicionamento de Lévi-Strauss a respeito da arte, valida Umberto Eco na medida em que assume que os atos comunicativos se baseiam em códigos não necessariamente colocados em duas articulações fixas – “os monemas, elementos de primeira articulação, dotados de significado; e os fonemas, elementos de segunda articulação, em número limitado” (p. 133), conforme Lévi-Strauss – de modo a evitar a incompreensão diante das aproximações existentes entre a poesia moderna e contemporânea com a pintura e a música. Assim, cito: “é freqüente a atitude de perplexidade do crítico, apostado em caçar e isolar ‘conteúdos’ na poesia moderna e sobretudo de vanguarda, quando estes não existem senão enquanto elementos indissoluvelmente ligados à ‘materialidade’ do poema (à sua forma ou estrutura)” (p. 134)5. Assim, passa-se ao estudo da linguagem como sistema de signos. Em Saussure, “o signo lingüístico é uma entidade psíquica de duas faces, unindo não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica: o significante é a imagem sensorial, psíquica (não a pura materialidade física do som) da forma fônica, e o significado é a imagem mental da coisa” (p. 134). Em Jakobson, a divisão se dá em “signans, o aspecto sensualmente perceptível do signo, e signatum, o seu aspecto inteligível, traduzível” (p. 134). Peirce, por sua vez, vê o signo como “qualquer coisa que está para quem quer que seja em lugar de qualquer outra coisa, sob qualquer aspecto ou capacidade” (p. 135) e Cherry, como “uma transmissão pela qual um organismo afeta outro numa situação de comunicação” (p. 135). Isso tudo para observar que, conforme Max Bense, a informação estética se estabelece como processo de signos em que a obra de arte se coloca no âmbito de uma correalidade, uma vez que se refere a outra realidade que serve a ela como suporte – a extensão ou materialidade da informação estética como frisa Bense. Cabe recordar, nesse sentido, as considerações feitas em Teoria da Poesia Concreta sobre a realidade autárquica do poema concreto, poema que vige por si mesmo, bem como o entendimento 6 Sobre isso, ver resenhas de Teoria da Poesia Concreta, considerações de Hugo Friedrich sobre a lírica de Mallarmé e, também, o formante inicial de Galáxias. de Friedrich, em Estrutura da Lírica Moderna, de que esta existência autárquica é uma das características constitutivas da obra lírica do século XX.

2. Esquema da comunicação verbal. Fatores e funções da linguagem

Com o intuito de esclarecer qual o uso especifico que se faz da linguagem na poesia, Haroldo, seguindo os passos de Jakobson – ligado ao formalismo russo e ao estruturalismo do Círculo Lingüístico de Praga –, chama a atenção para seis fatores constitutivos do processo lingüístico que, operados, dão origem às funções da linguagem: o destinador, o destinatário, o referente, o contato, o código e a mensagem. Assim, quando se dá ênfase ao destinador, aquele que emite ou codifica uma mensagem, existe a função emotiva ou ex-pressiva: “a mensagem visa a suscitar reações de tipo emotivo, a exprimir diretamente a atitude do sujeito a respeito do que ele fala, sua emoção verdadeira ou fingida” (p. 137-

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138); é, portanto, uma orientação estabelecida sobre o EU e a categoria da interjeição, que, justamente por isso, com o Romantismo, possibilitou o prosseguimento da idéia de que este seria o espaço da poesia. Quando a ênfase se dá sobre o destinatário, aquele que recebe ou decodifica uma mensagem, há a função conativa, que, por sua vez, se coloca como ordem (gramaticalmente, o imperativo), chamamento (o vocativo) a um TU. Se se der ênfase ao referente, ou seja, o contexto, faz-se a função cognitiva ou referencial ou denotativa, que se coloca em relação a um ELE (ou melhor, ao IT da língua inglesa) para comunicar situações, teorias. Seguindo, caso a convergência da orientação se dê sobre o contato, haverá o espaço da função fática, no sentido de que serve quase como em um ritual “apenas para estabelecer, prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o circuito funciona” (p. 139), sem que se transmita necessariamente alguma informação – é o caso do “alô”, por exemplo. Quando o ponto de convergência da comunicação recair sobre o código utilizado, existe a função metalingüística, de modo a direcionar a mensagem sobre uma outra mensagem, encarada sob a perspectiva de linguagem-objeto. Por fim, se a mensagem se voltar sobre si mesma, configura-se o espaço da função poética, o que possibilita, lembrando de Mallarmé e Sartre, respectivamente, ver a poesia como algo feito de palavras e não de idéias, bem como a palavra mesma como coisa6.

3. Função Poética e Informação Estética

Haroldo de Campos, demonstrando seu interesse pela forma, vê o poeta como o designer de mensagens de tal maneira que, no caso da tradução, por exemplo, em função do uso das fórmulas verbais como elemento construtivo do texto, só se possa fazer um jogo de transposição criativa, “transcriação”. O que caracteriza de fato, nesse sentido, a função poética é o uso inovador, que não segue os caminhos de sempre dentro das possibilidades oferecidas por um código lingüístico, como no caso da ambigüidade que domina a escrita poética. Assim, cita-se: “para Umberto Eco, a mensagem reveste uma função estética quando se apresenta estruturada de maneira ambígua e se mostra auto-reflexiva, isto é, quando chama a atenção do destinatário antes de tudo sobre forma dela mensagem. È o que, em 1957, sustentávamos a respeito do poema concreto, quando dizíamos que seu primeiro conteúdo era a estrutura. A esse teor de inovação, Eco chama abertura da mensagem estética” (p. 146). Haroldo continua seu raciocínio recordando que, conforme o entendimento dos formalistas russos e da corrente lingüística do círculo de Praga a respeito das obras de arte criadas após o Romantismo, o caráter de inovação, de “desvio de norma”

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7 Observar o formante inicial de Galáxias. 8 Ver capítulo sobre isso em L’uomo senza contenuto, Agamben. no fruto da produção do artista corresponde a um processo de desautomatização das reações dos sujeitos receptores pela própria singularização (“ostraniênie”) dos meios empregados, a forma. Isso faz com que na poesia, o código, privado e individual, se confi-gure como um idioleto.

4. Função poética na poesia clássica e na poesia romântica

Aqui, Haroldo lembra que o poeta pode se utilizar, acessoriamente, de outras funções, para além da poética, em sua tarefa de criação. Assim, na poesia clássica, épica, esse papel é desenvolvido pela função cognitiva ou referencial, pelo caráter impessoal, descritivo e objetivo. Já, na poesia romântica, o papel de acessório é feito pela função emotiva, de modo a estabelecer o poema biográfico-emocional, exortativo, suplicatório e encantatório, um poema-soluço. Ainda, frisa Haroldo, é a função poética a determinar os caminhos da obra do poeta-designer e cita como exemplo o encadeamento de sons e sentidos de “onda” e “unda” (lat.) num trecho d’Os Lusíadas ou então o jogo de projeções fônicas a fim de propiciar a percepção da fugacidade em outro poema. Haroldo reconhece em Jakobson a maestria neste tipo de análises e lembra o estudo feito sobre O Corvo (The Raven), em que “raven” se coloca como espectro fônico de “never” (nunca). Nesse sentido, os exemplos utilizados servem como validação da idéia do poeta que trabalha a palavra como coisa e permite estabelecer um laço sincrônico entre as acepções de poeta-designer, poeta-engenheiro (João Cabral de Melo Neto), poeta-matemático (Plano-Piloto).

5. Função poética na poesia de vanguarda

Tratando da emancipação (crise, também) da linguagem poética durante o século XIX – que não se pode afastar da compreensão das mudanças em todos os outros setores das “humanidades” –, Haroldo lembra as “premonições” de Lamartine sobre o impacto dominante da escrita dos jornais (não amadurecida, se comparada com a do livro tradicional) que se consubstanciaram na obra Un Coup de Dés, de Mallarmé, e, em certa medida, na própria poética de Sousândrade – a aproximação, como se percebe, é eminentemente sincrônica. Nesse sentido, a respeito da crise da linguagem, cita-se: “A crise da linguagem coincide com o surgimento da civilização tecnológica, com a crise do pensamento discursivo-linear, com a superveniência daquilo que Marshall MaLuhan chama ‘a civilização do mosaico eletrônico’, uma civilização marcada não pela idéia de princípio-meio-fim, mas pela de simultaneidade e interpenetração, de compreensão da informação, tal como foi anunciada pela conjugação da grande imprensa com o noticiário telegráfico’ (p. 151). Diante disso, Haroldo percebe dois fenômenos de muita importância para o desenvolver de sua própria obra: a poesia que toma como objeto a poesia mesma 7 e que observa a poiesis inclusive pelo sentido etimológico, do grego, de fazer e fabricar8; a emancipação, singularização da linguagem poética a ponto de caracterizar um idioleto, como se afirmou em páginas precedentes. Nesse sentido, comparando a caudalosa Commedia dantesca ao Un Coup de Dés mallarmeano, Haroldo evidencia a rarefação da linguagem, o poema fruto da luta com o acaso, não-linear e fragmentário, de modo que se pode observar, em relação ao poeta de vanguarda, o uso da função metalingüística (“o poetar sobre o próprio poetar”) como tentativa de – inquietação de Mallarmé – encontrar um caminho, pela forma, para o poema, passando inclusive pelo resgate dos “veios de 9 Remete-se expressamente ao uso do aporte sincrônico para a compreensão do fenômeno poético contempo-râneo. Ver resenhas sobre a poética sincrônica. criação, patentes ou ocultos, sobretudo estes, marginalizados por uma incompreensão his-toricizada” (p. 154)9. Poesia de Vanguarda Brasileira e Alemã (1966)

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Neste texto se apresenta sob a perspectiva sincrônica, de “contínua atualidade”, a relação das poesias de vanguarda brasileira e alemã. Haroldo lembra que a literatura francesa foi a maior influência no Romantismo e no Parnasianismo no Brasil. Com a Semana de 22, houve uma tomada de consciência em termos mais universais, mas, mesmo assim, até a década de 40 a formação francesa ainda era preponderante sobre o panorama literário nacional, foi quando se passou a observar os procedimentos críticos de norte-americanos, como Richards, e Eliot, e de alemães, como Rilke. Na década de 50, com o lançamento do movimento concretista, através do grupo noigandres, fez-se o contato com a poética do alemão Ernst Gomringer, pela proximidade de afiliação teórica (o paideuma formado por Mallarmé, Apollinaire, Pound, Joyce e Cummings), uma vanguarda que não sofresse defasagens em relação aos acontecimentos da época (lembrar dos textos de Haroldo em Teoria da Poesia Concreta). Dessa época, destaca-se o manifesto de Gomringer “Do verso à constelação: função e forma de uma nova poesia” (1955), “O Jogral e a Prostituta Negra”, de Décio Pignatari (1949), “Ciropédia ou a Educação do Príncipe”, de Haroldo de Campos (1952), e a série “Poetamenos”, de Augusto de Campos (janeiro/julho, 1953). Em relação a esta última, a análise de Haroldo se prende ao aspecto pluridimensional da estrutura, “participando de um barroquismo visual que, pode-se dizer, constitui uma das constantes formais da sensibilidade brasileira, visível, por exemplo, em nossa arquitetura moderna” (p. 159). A ligação do concretismo brasileiro àquele alemão se pautou pelo interesse em desmarginalizar a vanguarda e integrá-la “numa tradição viva” (p. 161). Nesse sentido, Haroldo sustenta que foi essa mesma a justificação para a necessidade de, sincronicamente, promover uma revisão do passado literário (alemão e brasileiro). Foram relidos, por exemplo Arno Holz (1863-1929), Kurt Schwitters (1887-1948), Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade (1833-1902). A respeito de Holz, Haroldo observa que no tocante à forma, em Phantasus, se apresenta um certo pendor barroco, pelo jogo de palavras-montagem que levava ao extremo a tendência aglutinante da língua alemã (próximo, por isso, do Finnegans Wake, de Joyce), pelo uso de alegorias mitológicas, de diálogos bufos em línguas diferentes, da grande quantidade de personagens, de cenas de viagens, de líricas sobre a natureza, de recordações da infância e até mesmo de especulações filosóficas. Em “A Revolução da Lírica” e “A Elefantíase do Projeto”, textos de 1962, Haroldo trata justa-mente disso. Vale lembrar que Augusto e Haroldo traduziram o poema “Marinha Barroca”, de Holz, como parte integrante deste ensaio. Quanto a Sousândrade, coube aos concretistas o mérito de pô-lo em circulação como pai das vanguardas nacionais, depois de anos de esquecimento. Dentro da Re/Visão (há livro de Augusto e Haroldo) do autor, Haroldo lembra o jogo aglutinante de palavras, a montagem sintática do texto com notícias de jornal, personagens presentes e passados, a aproximação com o Fausto de Goethe e com a Odisséia homérica em algumas cenas de sua obra. Com Schwitters, de quem mais uma vez foi observada a forma, dado que nele se fundiam elementos do dadaísmo e do formalismo russo na elaboração da pintura, da escultura e da poesia denominada MERZ (v. texto anterior). Deste mesmo, reabilitado pela vanguarda alemã, os brasileiros promoveram uma aproximação com a figura de Oswald de Andrade (1890-1954), que, visto como precursor

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10 “A máquina de escrever afastará da caneta a mão do literato no momento em que a exatidão das formas tipográficas se introduzir diretamente na concepção de seus livros”. Frase de Benjamin citada por Haroldo na página 177. 11 Haroldo faz uma distinção entre românticos intrínsecos, o caso de Leopardi, e românticos extrínsecos. No primeiro, a função emotiva (ver resenha sobre Comunicação na Poesia de Vanguarda) é tratada pela via da linguagem, da ordem do significante e, por isso mesmo, ligada ao trabalho com a forma – fonte do interesse de Haroldo e, conforme Hugo Friedrich em Estrutura da Lírica Moderna, a grande “via” por onde seguiram os poetas posteriores a Baudelaire, Rimbaud e especialmente Mallarmé. No segundo, os poetas trabalharam eminentemente a exterioridade da função poética, o sentimentalismo, o nível do significado. 12 Agamben, em Infância e História, chama a atenção para o pendor anacrônico de Leopardi ao escrever, em meados do século XIX, poesias no mais puro possível latim. O mesmo autor, na sétima jornada de A linguagem e a Morte, faz uma leitura de L’infinito e o estudo do significado do elemento métrico-musical na poesia. Enjambement se se pensa com o estudioso Francesco Flora. da poesia concreta, se valia da justaposição de frases e situações cotidianas para combater a retórica viciosa da literatura nacional. Ainda no empenho de promover um discurso de antitradição, foram divulgados no Brasil pelo grupo noigandres autores como Morgenstern (1871-1914), August Stramm (1875-1915) – tido como precursor de Schwitters e aproximado do trabalho de Mário de Andrade –, Kandinsky e Paul Klee, ambos pintores-poetas. Haroldo, a fim de estabelecer um olhar sobre a situação da vanguarda européia na década de 60, chama a atenção para Helmut Heissenbüttel e seu interesse por problemas ideológicos em tom parecido com o do concretismo brasileiro; Hans G. Helms e o projeto de análise do problema “da obediência estatística numa sociedade econômica e tecnologicamente de alto desenvolvimento, a ‘Sociedade Anônima’” – interessante recordar textos de Hannah Arendt sobre o assunto em Responsabilidade e Julgamento – (p. 177); Ferdinand Kriwet, que, invocando Benjamin10, se dedicava a uma literatura de percepção ótica; Diter Rot; Claus Bremer; o grupo concreto austríaco formado por Gerhard Rühm, Friedrich Achleitner, Oswald Wiener e Ernest Jandl; Reinhard Döhl; Ludwig Harig; Carlfriedrich Claus; Markus Kutter; Hans Magnus Enzersberger, que apresenta o poema como objeto de uso e se liga à concepção tecnológica de Maiakovski do poema como forma de produção industrial. Além desses poetas, seguindo a idéia de que as vanguardas costumam abolir a separação estanque entre prosa e poesia em favor do TEXTO – estruturalismo, Barthes –, Haroldo de Campos também lembra o papel desempenhado pelo prosador Arno Schmidt, que elaborava a trilogia Leviathan (1949), além da figura de Max Bense, autor de ensaios sobre estética (Haroldo foi responsável pela publicação da Pequena Estética bensiana pela Editora Perspectiva) e que, por Haroldo, entrou em contato com as obras de Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Leopardi, Teórico da Vanguarda (1967) Haroldo promove neste texto uma análise das possibilidades de se ver o poeta do Romantismo11 italiano Giacomo Leopardi, por seu trabalho com a linguagem, a forma, de acordo com a sincronia proposta por Roman Jakobson a fim de desmistificar a figura do poeta “sentimentalista”, ou, como se quer vulgarmente, “romântico”. Nesse sentido, tratando dos Idilli leopardianos, como em Hoelderlin e em Sousândrade, a forma da “poesia do eu” se pauta por elementos de formação clássica, “resquícios do código retórico (ou conotativo, Barthes) greco-latino [12]. Donde a fratura ideológica entre o ponto de vista clássico e o romântico antes se configurar na linguagem no nível do significado que no do significante” (p. 186). Haroldo vê justamente nessa dissonância a possibilidade de enquadrá-lo como um precursor da modernidade poética e parte, em seguida, a se deter 13 Ver Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, em O arco-íris branco, 1997. mais na produção de Leopardi como teórico da poesia – também esta uma preocupação do poeta brasileiro – reunida em Zibaldone, onde se percebe ao primeiro contato a “atualida-de” das indagações levantadas. Donde se apreende que a criação13 de um passado que abra

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as portas para um instante sincrônico, a tal “presentificação” de Teoria da Poesia Concreta, na leitura de Haroldo, passa pela captura dos elementos de “atualidade” existente nos auto-res incompreendidos, ou seja, o seu “matiz antecipador” (p. 189). Por aí mesmo, Haroldo se prende à idéia de que o ato de poetar na modernidade industrial e de sua fugacidade inclui a preocupação elementar com a formação de nova linguagem, a questão do procedimento se se recorda o trabalho dos formalistas russos ou o nível do significante. A brevidade de Leopardi e a supressão dos elementos conectivos já foram tratadas também em artigo de A Arte no Horizonte do Provável quando se falou de Ungaretti. O interesse de Haroldo passa então para a relação existente entre o poeta italiano e o racionalismo sensível apresentado no Plano-Piloto dentro da temática do pensamento de Lévi-Strauss e Max Bense. Nesse sentido, cito: “Para Leopardi, a imaginação, propriedade do verdadeiro poeta e que também não pode faltar ao verdadeiro filósofo, é a ‘faculdade e a veia das semelhanças’. Através dela, o espírito descobre ‘vivíssimas similitudes entre as coisas’, é capaz ‘de avizinhar e assemelhar objetos das espécies mais distintas, como o ideal com o mais puro material, de dar corpo vivissimamente ao pensamento mais abstrato, de reduzir tudo a imagens (...), de ver relações entre coisas diversíssimas (...), relações em que não se pensara nunca’.” (p. 191). Aí há um bom exemplo de como Haroldo liga a idéia estrutu-ralista de buscar as relações entre as coisas à busca por linguagem renovadora na poesia, na medida em que a imaginação através das relações estabelecidas pode operar sobre a linguagem mesma. Vanguarda e Kitsch (1967) Trata aqui Haroldo da arte de vanguarda e aquela que, querendo ser vanguardista por seguir um modismo, é Kitsch, distinção esta que pode ser importante na medida em que o estudo sincrônico passa pela seleção de elementos passados a fim de lhes dar uma outra “historicidade”. Para isso, baseia-se especialmente nas considerações de Vladimir Nabokov – este prefere o termo russo póchlost – e Umberto Eco. Assim, se Nabokov fala que o póchlost pode estar entre aqueles livros que a maioria aceita como representantes da mais alta literatura, pelo seu grau de beleza, profundidade e comoção, segue ele na idéia de que não se pode considerar apenas a figura do autor para a caracterização do póchlost, mas também a idéia de gosto que têm os leitores e como a isso se posicionam os editores e críticos. Isso, segundo Haroldo, pode muito bem ser lido paralelamente à caracterização do Kitsch, por Eco, como mentira estética em que não se furta o elemento da intencionalidade. Dessa maneira, “entre vanguarda e Kitsch há, pois, uma contínua relação, que pode ser definida, em certo sentido, repara Eco, como uma dialética entre propostas inovadoras e adaptações homologatórias, as primeiras constantemente atraiçoadas pelas segundas, com a maior parte do público que frui das segundas acreditando participar da fruição das primeiras” (p. 197-198). Entretanto, Haroldo chama a atenção para o que chama de ato crítico, que nada mais é do que uma tomada de consciência que estabelece um jogo ao revés na medida em que abre a possibilidade de o Kitsch portar uma informação original. Exemplo disso, segundo Haroldo, era a arte MERZ de Kurt Schwitters. Adiante, aceita-se o conceito de Eco para o Kitsch nos seguintes termos: “obra que para justificar sua função de estimuladora de efeitos, se pavoneia com os despojos de outras experiências, e se vende

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14 Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, em O arco-íris branco, 1997, p. 252. Cito: “A urgência em se outorgar uma ‘tradição viável’ (em identificar ‘aquela parte da tradição literária que permanece vital ou foi revivida’ para uma determinada época, como diz Roman Jakobson a propósito do ponto de vista sincrônico nos estudos literários) solicita antes o escritor que o historiador da literatura [...] Para o escritor, que é também crítico, vige a máxima baudelaireana de Walter Benjamin: ‘Quem não é capaz de tomar partido, deve calar’ (‘A Técnica do Crítico em 13 Teses’, em Rua de Mão Única). Nenhuma consciência mais aguda dessa urgência, enquanto forma de ‘tomar partido’, que a do escritor latino-americano, para quem a busca de uma ‘tradição viva’ está implicada na sua própria busca dilacerada e dilemática de identidade: ‘Desarraigada e cosmopolita, a literatura hispano-americana é rgresso e busca de uma tradição. Ao buscá-la, inventa-a’ (O. Paz, ‘Literatura de Fundación’, 1961)”. 15 Sobre a agoridade ou tempo-agora, o Jetz-zeit de Benjamin, ver Tempo e História – Crítica do instante e do contínuo, em Infância e História, de Agamben; a relação existente entre o tempo-agora, a alegoria e as como arte sem reservas” (p. 199). Diante disso, Haroldo coloca nessa esfera o a poesia verdamarelista, o movimento integralista e a “poesia-do-coração” de Cassiano Ricardo. E sobre o uso deste último de termos da vanguarda, vale citar a conclusão de Haroldo: “Não me preocupa no caso a questão da influência em si, pois esta, desde que assimilada em nova coerência estrutural, constitui a mola mesma da evolução de formas em literatura” (p. 200). Trecho importante para a compreensão daquilo que Haroldo denominou culturmorfo-logia no artigo Poesia e Paraíso Perdido, em Teoria da Poesia Concreta, bem como do uso da sincronia na criação poética.

Parte VI – POR UMA POÉTICA SINCRÔNICA Poética Sincrônica (1967) Neste artigo, Haroldo demonstra as duas formas de se abordar o fenômeno literário: a diacronia e a sincronia, conforme as teorias de Roman Jakobson baseadas em Ferdinand de Saussure. A diacronia, assim, se apresenta pelo desenvolvimento de uma análise histórica de caráter linear que procura reconhecer as concordâncias e as discordân-cias sem estabelecer hierarquias estéticas para os períodos observados; é, portanto, eminentemente documental. Cito: “o crítico diacrônico aceita a ‘média’ evolutiva da tradição, o gráfico já historicizado que esta lhe subministra quanto à posição relativa dos escritores nos vários períodos. E olha com olho cético (o ‘olho de Medusa’ dos guardiães de cemitério, de que fala Sartre...) as revisões e outras tentativas de eversão da ordem constituída, à frente das quais se põem, geralmente, não críticos, mas criadores” (p. 206). Haroldo, diante disso, embora reconheça o valor do estudo diacrônico “como trabalho de levantamento e demarcação do terreno, e, ao enfatizar-lhe os defeitos e limites” (p. 207), seguindo os impulsos de que a arte da contemporaneidade deve se guiar pelos impulsos da criação (“make it new”), da busca proposta por Mallarmé por nova linguagem, vê na diacronia apenas a possibilidade de se repisar os mesmos caminhos aos quais se contrapunha em Poesia e Paraíso Perdido, de Teoria da Poesia Concreta. Para ele, o estudo da literatura que pode corresponder ao interesse de fazer do presente uma instância de ruptura com a “água parada” do sempre se dá pela via da sincronia, fundada no critério estético-criativo. Veja-se a citação tomada de Jakobson por Haroldo: “A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. [...] A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos” (p. 207). Em artigo posterior14, Haroldo assume que esta vontade-necessidade de se fazer do presente, da agoridade benjaminiana pressentida como corte sincrônico no eixo diacrônico do diagrama saussuriano15 se dá por

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imagens dialéticas em Origem do Drama Barroco Alemão; p. 68 de O Iluminismo Visionário, de Olgária Matos, em que o Jetz-zeit aparece como o tempo da decisão em contraposição à indecidibilidade da melancolia do príncipe barroco. Neste último, observar os possíveis equívocos de interpretação. 16 No artigo O Samurai e o Kakemono, Haroldo, remetendo-se a Pound, fala em “cultura plena”, ver resenha seguinte. 17 Há que se lembrar do texto de Teoria da Poesia Concreta, A Temperatura Informacional do Texto (ver resenhas), em que Haroldo defende a poesia concreta justamente pela sua alta temperatura de informação estética, expoente de um vetor de transformação de formas. 18 Augusto de Campos fez estudos teóricos sobre a obra desse autor. a face mallarmaica, mais radical no uso da forma, portanto, do estilo em terras brasileiras. uma “criação” deliberada do próprio passado a ser usado para determinar os vetores para o futuro – tratados explicitamente no manifesto olho por olho a olho nu, também presente em Teoria da Poesia Concreta. Nesse sentindo, Haroldo, lembrando Ezra Pound – ABC of Reading (1934) e The Spirit of Romance (1910), em que se sustenta a contemporaneidade de todas as idades –, a dúvida de Marx diante “da perdu-ração da obra de arte para além das condições históricas que a geraram (caso da arte grega, por exemplo)” (p. 208), bem como a ligação entre Homero e Pound, Gôngora e Garcia Lorca, Sá de Miranda e Fernando Pessoa, demonstra o interesse em promover um olhar sincrônico sobre a literatura do Brasil colonial ao Modernismo, a Antologia da Poesia Brasileira de Invenção. Este projeto de postura totalizante16 se ocuparia de autores que tivessem contribuído para a renovação das formas – interesse sempre presente da poesia concreta –, “para a diversificação de nosso repertório de informação estética” (p. 209)17. Assim, passam a ser apresentados “apontamentos” do conteúdo que comporia a análise sincrônica da transformação das formas na literatura brasileira. Sobre Gregório de Matos (o “seqüestrado” de Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido), Haroldo chama a atenção para a forma, o caráter híbrido da escrita pela miscigenação de idiomas num ambiente tropical e a possibilidade de se ver o autor baiano como um precursor dos tradutores “criativos”, em que, pelo uso das técnicas permutatórias tão afeitas ao barroco, se pode estabelecer uma aproximação com a máquina lúdica e a estrutura combinatória dos poemas de A Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto. Das Cartas Chilenas se extrai o interesse pela informação semântico-documentária, “aquela cujo primeiro conteú-do é a estrutura sensível dos signos que a compõem” (p. 210) e se apresenta a irmandade com O Rio, do mesmo João Cabral de Melo Neto. Lembrando a lufada sincrônica de Antônio Candido, em Presença da Literatura Brasileira, Haroldo trata do multilingüismo de Souza Caldas que o coloca em contato com o trovador provençal Raimbaut d’Aurenga e como precursor, em certa medida, de Sousândrade. Em seguida, sobre Odorico Mendes, acusado de traduzir macarronicamante a Odisséia pelo crítico Sílvio Romeiro, Haroldo o coloca como, pela ductibilização do idioma (“dedirrósea Aurora”, “criniazul Netuno”), aquele que preparou o terreno para o surgimento de Sousândrade, de Guimarães Rosa e da tradução feita por Antônio Houaiss do Ulysses joyceano. Sobre Bernardo Guimarães, embora o veja como romancista medíocre, Haroldo se interessa pela carga de “nonsense” da obra do autor que o coloca como precursor do surrealismo brasileiro. Por fim, quanto ao simbolismo, Haroldo sustenta que a obra de Cruz e Sousa revela mais do que Olavo Bilac, mas vê em Pedro Kilkerry18 19 “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente de seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final. Sobre o conceito de História, in: Walter Benjamin – magia e técnica, arte e política. v 1. 7 ed. São Paulo Brasiliense, 1994. Lembra-se também: “o rito fixa e estrutura o calendário; o jogo, ao contrário, mesmo que não saibamos ainda como e por que, altera-o e destrói”, tirado de O país dos brinquedos, In: Infância e História – destruição da experiência e origem da história, de Giorgio Agamben, p. 84, bem como o texto Tempo e História, do mesmo livro, e Il tempo che resta – commento alla Lettera ai Romani, também de Agamben.

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O Samurai e o Kakemono (1967) Neste artigo, Haroldo apresenta a dicotomia tomada livremente de Roman Jakobson juntamente com a interpretação proposta por Gérard Genette em História Estrutural da Literatura, como ele mesmo frisou, de maneira que a colocar em perspectiva diacrônica quadros sincrônicos sucessivos. Uma história aos saltos que não visa, em si, à superação mesma da diacronia, identificada com o trabalho de Antônio Candido, mas um novo arranjo, uma reforma, nada de algo parecido com o novo conceito de tempo proposto por Benjamin na terceira tese sobre o conceito de história19. Cito, então: “A poética diacrônica, assim reformulada, passaria a ser, como quer Jakobson, ‘uma superestrutura a ser edificada sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas’. Corolariamente, os cortes sincrônicos, realizados segundo um critério de variação de funções, teriam em conta não apenas o ‘presente da criação’ (a produção literária de uma dada época), mas também o seu ‘presente de cultura’ (a tradição que nela permaneceu viva, as revisões de autores, a escolha e reinterpretação de clássicos)” (p. 213-214). Assim, recordando o Pound que traduziu Homero e propunha não o conflito entre antigos e modernos, mas uma cultura plena, Haroldo afirma que entre a sincronia e a diacronia há uma relação dialética em que a primeira se propõe a “agir crítica e retificadoramente sobre as coisas julgadas da poética diacrônica” (p. 214). Essa dialética, então, se desenrola nos seguintes termos: “a) a opera-ção sincrônica se realiza contra um pano de fundo diacrônico, isto é, incide sobre os dados levantados pela visada histórica, dando-lhes relevo crítico-estético atual; b) a partir de cortes sincrônicos sucessivos é possível fazer-se um traçado diacrônico renovado da herança literária (uma Antologia da Poesia Brasileira, por exemplo [...])” (p. 215). Afirma-se também que o mais corriqueiro no âmbito da história literária é uma exposição diacrônica pontuada por “iluminações” sincrônicas, que seria o caso de Antônio Candido, em Formação da Literatura Brasileira, e Otto Maria Carpeaux, em A Literatura Alemã. E, diante de tudo isso, por conseqüência, Haroldo quer se guiar por uma acepção sartriana em que o estudo é visto como obra de “homem datado e inscrito num dado tempo histórico, o presente” (p. 216), donde se percebe um certo caráter relativo e funcional da produção analítica à qual não cabe estabelecer cânones. Citando o texto A Atividade Estruturalista, de Barthes, e Stankiewckz, Haroldo sustenta que a valoração motivadora dos cortes sincrônicos se dá pela via de uma pragmática do escolher – e isso também se expressa, pela leitura de Octavio Paz, em artigo de O arco-íris branco já citado – de modo a possibilitar a incorporação de elementos estruturais de obras de tempos passados a contextos outros – e daí a explicação para o título do texto referindo-se à interpelação de Décio Pignatari a um pintor nipo-argentino sobre a relação entre os pintores impressionis-tas e a arte japonesa.

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Apostila: Diacronia e Sincronia (1967) Novamente afirmando que toma livremente as categorias de Jakobson, Haroldo assume que no domínio da poesia, embebido de diacronia e tradição, uma postura histórico-evolutiva não prescinde de um quadro sincrônico como fator valorativo e ressalta que a própria sincronia utilizada pelo estudioso diacrônico também é historicizada, colocada numa ordem de diacronia e tradição, de modo que, Lukács, tomando como exemplo, pôde compreender em suas teorias sobre o romance a obra de Thomas Mann, mas não a de Franz Kafka, ou Joyce. Assim, a guinada sincrônica proposta por Haroldo, de caráter estético-criativo, “está imperativamente vinculada às necessidades criativas do presente: ela não se guia por uma descrição sincrônica estabelecida no passado, mas quer substituí-la – para efeitos, inclusive, de revisão do panorama diacrônico rotineiro – por uma nova tábua sincrônica que retira sua função da literatura viva do presente” (p. 222-223). Nesse sentido, a poética sincrônica se estabelece, por exemplo, com o trabalho de Eliot ao reabilitar os poetas metafísicos, com a revisão proposta por Garcia Lorca sobre Gôngora, com a re-visão de Sousândrade e de Kilkerry; diacrônica, por sua vez, é a análise pautada na idéia de autores maiores e menores, canônica. Assim, exige-se do crítico sincrônico a perspicácia de se colocar de acordo com as “exigências estético-criativas do tempo presente” (p. 223) – algo semelhante, pelo tom, às proposições da “presentificação” do poema nos textos de Teoria da Poesia Concreta, sem esquecer que cabem aqui também as considerações feitas nas notas de números 15 e 19.