a arte dos bons costumes na corte brasileira
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
FACULDADE DE HISTRIA, DIREITO E SERVIO SOCIAL
ANELISE MARTINELLI BORGES DE OLIVEIRA
A ARTE DOS BONS COSTUMES NA CORTE BRASILEIRA (1808-1821)
FRANCA
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ANELISE MARTINELLI BORGES DE OLIVEIRA
A ARTE DOS BONS COSTUMES NA CORTE BRASILEIRA (1808-1821)
Dissertao apresentada Faculdade de Histria,Direito e Servio Social, Universidade EstadualPaulista Jlio de Mesquita Filho, como pr-requisito para obteno do Ttulo de Mestre emHistria. rea de Concentrao: Histria eCultura.
Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Jurandir Malerba.Co-orientador(a): Prof(a). Dr(a). Marisa Saenz Leme.
FRANCA
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ANELISE MARTINELLI BORGES OLIVEIRA
A ARTE DOS BONS COSTUMES NA CORTE BRASILEIRA ( 1808 1821)
Dissertao apresentada Faculdade de Histria, Direito e Servio Social,Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, como pr-requisitopara obteno do Ttulo de Mestre em Histria. rea de Concentrao: Histriae Cultura.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: _______________________________________________________
Dr. (a) Marisa Saenz Leme.
1 Examinador: ____________________________________________________
2 Examinador: ____________________________________________________
Franca, ____ de __________ de 2009.
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Em memria de Miguel Ferreira Borges.
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AGRADECIMENTOS
Durante o percurso de desenvolvimento deste estudo, muitas pessoas
contriburam para sua realizao:
meus pais e irmos, sempre to presentes em minha vida.
Cssio, companheiro de passadas, presentes e futuras datas.
Ao professor Jurandir Malerba, grande historiador e maior incentivador deste
trabalho.
professora Marisa Saenz Leme, por seu auxlio oportuno.
Aos prestativos funcionrios da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.
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No sou aquele que atualmente , isto seria angstia, sou
aquele que foi, segundo o fio de um nascimento inverso do
qual este objeto para mim o signo e que do presente
mergulha no tempo: regresso.
Jean Baudrillard
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RESUMO
Ao longo do Antigo Regime, a configurao do poder estatal em Portugal avanouno sentido da concentrao do poder nas mos do soberano. Diretamente a ele
ligada por mecanismos que lhe conferiam maior prestgio frente sociedade, a cortedesenvolveu formas de sociabilidade que pudessem legitim-la enquanto camadanobre. Quando de sua transferncia para o Rio de Janeiro, ento nova sede doImprio Portugus, a corte portuguesa, juntamente com os ricos negociantesfluminenses, passariam a manter esses distintivos. Numa tentativa de adequar, oude pelo menos tentar adequar a realidade da colnia s expectativas de umanobreza desterrada, foram realizadas medidas no sentido de tornar o cenrio alm-mar adequado vida em corte. As mudanas civilizatrias no cotidiano fluminensese fizeram tanto no aspecto fsico urbano quanto no aspecto moral, no qual osmanuais de boa conduta desempenharam um papel primordial para a constituioda identidade daquele grupo social.
Palavras-chave: Rio de Janeiro. D. Joo VI. processo civilizador.
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ABSTRACT
To the long of Old Regime, the stately power configuration in Portugal advanced inthe sense of the concentration of the power in the monarch hands. Directly straightly
linked to him by mechanisms that conferred bigger prestige in front of the society, thecourt developed forms of sociability that could legitimize her a noble layer. On theoccasion of his transference for the Rio de Janeiro, then new control center of thePortuguese Empire, the portuguese court, with the rich dealers of Rio de Janeiro,would pass maintaining those distinctive. In an attempt of adapt, or at least to try toadapt the colony reality to the exiled nobility expectations, procedures were made tobecome the beyond-sea setting adequate to the life in cut. The civilizations changesin the Rio de Janeiro routine were done in the urban physical aspect and in the moralaspect, in which the manuals of good conduct performed a fundamental paper for theidentity constitution of that social group.
Key-words:Rio de Janeiro. D. Joao VI. civilizing process.
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TABELAS
Tabela 1 Populao da corte e provncia do Rio de Janeiro em 1821. p. 35.
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SUMRIO
INTRODUO...........................................................................................................11
CAPTULO 1 A SOCIABILIDADE NO PORTUGAL DO ANTIGO REGIME
1.1 A influncia das maneiras em Portugal...........................................................18
1.2 Transferindo a corte...........................................................................................26
CAPTULO 2 O RIO DE JANEIRO O BRASIL!
2.1 Um novo cenrio................................................................................................31
2.2 Signos de sociabilidade.....................................................................................45
CAPTULO 3 CDIGOS CIVILIZATRIOS: PRECEITOS E TRAMAS
3.1 Simbologia cortes............................................................................................56
3.2 Prescrio moral................................................................................................62
CONCLUSO ...........................................................................................................80
REFERNCIAS..........................................................................................................82
FONTES.....................................................................................................................87
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INTRODUO
Os treze anos em que D. Joo VI e sua corte permaneceram nos trpicos foi
um perodo bastante singular para o Brasil. A instalao da corte lusitana trouxe
considerveis transformaes para a colnia brasileira, principalmente para o Rio de
Janeiro, que a partir daquele momento fra escolhido para ser a sede do centro
administrativo do Imprio Portugus. Modificaes foram encetadas no sentido de
remodelar o espao urbano fluminense, adequando-o nova realidade, agora mais
do que nunca pautada nos padres europeus civilizacionais1.
Paulatinamente, o regente criava instituies que ao mesmo tempo
atendessem realeza transmigrada e dessem cidade um aspecto mais europeu.A tarefa de modernizao seria difcil. Em uma cidade que contava com mais ou
menos sessenta mil habitantes antes da transferncia, onde dois teros da
populao eram escravos negros ou descendentes diretos, no seria simples fazer-
se conviver lado a lado costumes to diversos.
Com a finalidade de atender nobreza transplantada que por lealdade a
D. Joo VI abandonou sua ptria e o acompanhou e aos ricos negociantes
fluminenses que de certa forma sustentaram nos trpicos a mquina estatal comcontribuies financeiras o soberano criava cargos pblicos e concedia mercs
diversas. Neste sentido, cada vez mais portugueses e brasileiros da terra se
equiparavam nas prticas cortess e se legitimavam pela simbologia exemplificada
no cumprimento da etiqueta que permeava as relaes sociais.
Para a instruo e difuso das formas de sociabilidade convenientes vida
em corte, desde h sculos surgiram os manuais de boa conduta, que prescreviam
comportamentos tidos como civilizados e que portanto deveriam ser seguidos parase manter a distino da alta camada perante os demais grupos sociais.
Os manuais, tanto os que eram importados principalmente de Portugal
quanto os publicados pela Impresso Rgia do Rio de Janeiro, desempenharo um
papel primordial no processo de construo de um projeto civilizador baseado nas
boas maneiras, tanto para os homens como para as mulheres da camada dirigente.
1LIMA, Manoel de Oliveira. Dom Joo VI no Brasil.3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 790p. ;CALMON, Pedro. O rei do Brasil:vida de D. Joo VI. So Paulo: Ed. Nacional, 1943. 324p. ;MALERBA, Jurandir. A corte no exlio. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 412p.
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Por meio de uma linguagem nem sempre direta, os libelos possuam um tom
moralista e sugeriam aos leitores seguirem um tipo ideal de conduta.
Essa pesquisa procura evidenciar se as prticas inseridas nos guias eram
realmente assimiladas pela classe detentora de prestgio, e seguidas com rigor por
uma sociedade preocupada em transparecer modos de comportamento mais
polidos, ou se tais prticas eram olvidadas na dinamicidade cotidiana do Rio de
Janeiro de D. Joo VI.
Durante o caminho de investigao, colocavam-se algumas indagaes:
partindo do pressuposto de que a transferncia da corte portuguesa culminou numa
nova configurao da extratificao social fluminense e do status quo, como se
constituiu a camada dirigente? Quais as caractersticas distintivas daquele gruposocial? Quais os tipos de manuais que circulavam durante o perodo joanino,
considerando-se os publicados em Portugal e no Brasil? Qual seu contedo? A
quem se destinavam?
Com vistas a buscar respostas a tais indagaes, assim dividimos nosso
estudo: no primeiro captulo procuramos contextualizar, a partir dos manuais de
etiqueta ento em circulao no reino, qual era o quadro geral do bem viver em
corte no final do sculo XVIII, considerando que em um primeiro momento a cortefrancesa, em nome da civilidade, projetara regras e padres de conduta com a
finalidade de se legitimar enquanto grupo detentor de prestgio. Como marco do
desenvolvimento dos costumes cortesos portugueses consideramos o reinado de
D. Joo V (1706-1750). Citadas sucintamente, as duas monarquias posteriores D.
Jos I (1750 1777) e D. Maria I (1777 1792) tambm foram catalizadoras de
mudanas importantes dos hbitos portugueses. Aps essa anlise, tratamos dos
acontecimentos polticos que levaram o prximo regente, D. Joo VI (1792 1826) atransferir com sua corte para a colnia brasileira e que fizeram do Rio de Janeiro a
nova capital da monarquia portuguesa.
No captulo seguinte buscamos elucidar os diversos desdobramentos que a
presena da corte proporcionou ao Rio de Janeiro, apontando sobretudo em que
implicou o impacto da vinda da corte no cotidiano fluminense. Destacamos o
surgimento de cargos pblicos especialmente criados para absorver a fidalguia
lisboeta; medidas de melhorias urbanas, visando uma remodelao da cidade afim
de adequ-la nova situao; a fundao de instituies culturais e formas de
sociabilidades que atendessem nobreza transplantada. Paralelamente a esse novo
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cenrio que ia se configurando, um grupo social fluminense em particular ir se
destacar: o dos negociantes de grosso trato2. Eles foram em grande parte os
responsveis pela manuteno financeira da mquina governamental e da corte
transplantadas. Como contribuio pelo sustento monetrio dado, a eles seriam
concedidos mercs e ofcios pblicos, liberalidades essas que colaborariam para a
adoo de atitudes que pudessem distingui-los dos grupos sociais inferiores. A alta
camada fluminense se empenhar em firmar as distines sociais face a outros
grupos e por tanto que a singularizam e identificam enquanto tal por meio dos
manuais ento prescritos.
No captulo final adentramos mais especificamente nos aspectos simblicos
da sociedade de corte. Ao fazer um contraponto com os manuais que circulavam noRio joanino, analisamos a construo de um projeto de civilidade baseado na
valorizao da moral, tema esse que comeou a se popularizar nos textos ficcionais
europeus a partir do sculo XVI e que se intensificou no XIX3. A dama virtuosa, a
boa me, o esposo dedicado, todos esses so modelos comportamentais que os
cdigos civilizacionais pregavam, os quais a camada abastada deveria se espelhar.
Quando utilizamos, ao longo da dissertao, a expresso camada abastada
fluminense procuramos fazer referncia especialmente a dois tipos de grupossociais: o da corte portuguesa, composto pela fidalguia, e o dos comerciantes de
grosso trato fluminense. preciso observar que, apesar de fazermos uso da
expresso corte brasileira durante o perodo estudado (1808 1821), a mesma tem
por significado muito mais uma corte noBrasil do que uma corte doBrasil. Em abril
de 1821 mais de 4 mil pessoas dentre elas a corte de D. Joo VI e de D. Carlota
Joaquina, oficiais, ministros e diplomatas voltariam para Portugal, pas que um ano
antes fora sede de um movimento liberal que defendia o retorno do regente.Em virtude da volta de parte da nobreza portuguesa em 1821 e da falta de
um planejamento sistemtico para a vinda da Famlia Real em 1808, o conceito
corte brasileira, na acepo da palavra, comearia a adquirir contornos mais
rgidos no reinado de D. Pedro I (1822 1831). A partir desse perodo assistiu-se a
uma maior solidificao da regulamentao de instituies e de aparatos
burocrticos.
2PRADO, Joo Fernando de Almeida. D. Joo VI e o incio da classe dirigente do Brasil 1815 -1889.So Paulo: Companhia Nacional, 1968, p.135 -137; MALERBA, 2000, op. cit., p.224.3CANDIDO, Antonio. A educao pela noite e outros ensaios. So Paulo: tica, 2003, p. 70-75.
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Mdia. Com o tempo, o cdigo comportamental foi se tornando mais rgido, e a
sensibilidade sobre o que se devia ou no fazer, mais apurada.5
Segundo Veblen e Bourdieu, a disseminao dos cdigos de conduta serviu
como elemento fundamental para a instituio da distino social entre os diversos
grupos sociais. De acordo com o ltimo autor, essa distino no pode ser
considerada como acabada e mecnica, tornando-se questionvel a premissa de
que certas propriedades sejam consideradas como parte intrnseca de uma
determinada sociedade. De fato, o que h so interdependncias das prticas nos
diferentes espaos sociais em um dado momento de cada grupo. Dessa maneira,
uma prtica considerada anteriormente como essencialmente nobre pode deixar de
o ser, ao passo que uma prtica difundida nas classes populares pode vir a seradotada pelas camadas mais altas.6 Segundo Bourdieu, a posio na hierarquia
ocupada pelos agentes est subordinada ao capital econmico, cultural e social.
Essas dimenses distintivas so condicionadas por duas instncias que
proporcionaro o julgamento do gosto e a conseqente repulsa primazia do outro:
a instruo e a herana familiar. A linhagem e a instituio escolar se constituem
como mercados simblicos que muitas vezes distinguem uma classe social de
outra.7
A disseminao dos preceitos de comportamento cortesos para os grupos
sociais mais baixos redundava em uma desvalorizao, forando a aristocracia a
evoluir seu comportamento para se distinguir dos demais grupos. Para Elias, esse
processo ainda corrente uma espcie de crculo evolutivo, pois sempre se est
buscando novas formas de manter essa diferenciao.8
Em certa medida, a sociedade de corte francesa da poca moderna
tomada pelos estudiosos como paradigmtica no que concerne ao processo deregulamentao das atitudes polidas e da adoo da cortesia nas relaes sociais,
as quais tambm foram sendo adotadas em territrios vizinhos. Isso adquire
contornos mais rgidos em fins do sculo XVIII, com o surgimento de um novo
gnero literrio ligado s boas maneiras, impulsionado pelas crescentes
5Ibid., p. 152.6VEBLEN, Thorstein. Teoria da classe ociosa. So Paulo: Livraria Pioneira, 1965. 358p.;BOURDIEU, Pierre. Razes prticas. Campinas: Papirus, 1997. 224p.7BOURDIEU, Pierre. A distino: crtica social do julgamento.Porto Alegre: Zouk, 2007, p. 90-98.8 ELIAS, 1994, op. cit., p. 152.
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industrializao e comercializao9. Eram os guias de boa conduta, que prescreviam
signos de etiqueta a serem exteriorizados por uma elite interessada na adoo de
modelos que pudessem legitim-la.
Por meio desses manuais de civilidade, as classes hegemnicas
procuravam instituir seu modo de vida como diferencial em relao a outros
segmentos sociais. As restries de como portar-se em pblico tornavam-se cada
vez mais aguadas. Por exemplo, se nos manuais anteriores 1672 era permitido
cuspir em presena de pessoas superiores ou da mesma hierarquia, a partir desse
ano o ato considerado uma indecncia. O tratado de 1729 sugeria colocar o p e
escond-lo, ao passo que no livro editado em 1859: Cuspir , em todas as ocasies,
um hbito repugnante; no preciso dizer mais do que: nunca contraiam esse hbito.Alm de grosseiro e horrvel, muito mau para a sade.10
Assim como o ato de cuspir, outras imposies foram retratadas. A
constncia de talheres durante as refeies, no qual os dedos deram lugar aos
instrumentos de mesa; a evoluo da maneira de assoar entre pessoas graduadas,
em que o leno substitui o uso livre das duas mos; a presena do guardanapo
frente ao antigo costume de limpar mos e bocas na vestimenta aps as refeies.
Estes so alguns ndices notveis de como o homem corts adquiriusimultaneamente maiores exigncia e repugnncia, no sentido da imposio externa
(social) de um maior auto-controle das pulses individuais.11E no somente padres
materiais se modificavam. O controle de aspectos morais tambm fez-se presente,
seja na moderao da fala, seja na regulao da manifestao de sentimentos e de
vontades.
Os guias de conduta atentavam para a necessidade da corte de se adotar
tais costumes, onde para cada local e circunstncia havia uma etiqueta a ser9O sculo XVIII foi importante para a firmao da camada burguesa na esfera pblica, na Franacomo no restante da Europa. Por meio da diferenciao scio-poltica em relao s outras camadassociais, a burguesia criou mecanismos de preparao na ao pblica e construiu uma identidadesimblica, baseada numa crescente participao nas reas cultural, econmica e poltica.Gradualmente, a sociedade aristocrata da corte foi sendo ultrapassada pela sociedade profissional-burguesa-urbana-industrial. medida que esta sociedade comercializava, passava a possuir rendamonetria e comprava ttulos de nobreza. Apesar dessa sobrepujana, o cunho cultural-civilizatrio dasociedade aristocrata seria preservado. ELIAS, Nobert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2001. p. 65.10ELIAS, 1994, op. cit., p.196.11Em seu captulo Sobre Norbert Elias, Malerba analisa a teoria elisiana sobre a civilizao
ocidental, atentando para o fato de que o desenvolvimento social proporcionou s sociedades umareeducao de nosso aparelho cognitivo, acompanhada de uma maior individualizao do indivduo.MALERBA, Jurandir (Org.). A velha histria:teoria, mtodo e historiografia. Campinas: Papirus,1996. p. 74-75.
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seguida. Escritos de forma direta e objetiva, esses guias continham uma grande
quantidade de restries e vetos, o que evidenciava a caracterstica cerceadora.
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CAPTULO 1 A SOCIABILIDADE NO PORTUGAL DO ANTIGO REGIME
1.1 A influncia das maneiras em Portugal
Conforme se afirmou anteriormente, a corte francesa no fra a nica a
expressar maneiras de civilidade contidas nos livros. Em Portugal, a influncia dos
costumes chegava por meio de publicaes originrias na lngua portuguesa e por
meio de tradues vindas de outros pases12.
Certamente um dos manuais mais divulgados na corte lisboeta era o do
cnego portugus da Ordem de Santo Agostinho, D. Joo de Nossa Senhora daPorta Siqueira. Editado em Lisboa pela primeira vez no ano de 1786, o Escola de
Politica, ou Tratado Pratico da Civilidade Portugueza13, continha uma srie de
advertncias direcionadas corte, e principalmente ao sexo masculino. No que
tange ao contedo, no era muito diferente dos impressos publicados no perodo,
pois geralmente este gnero literrio dedicava-se arte de bem civilizar-se.
Dividido em treze captulos, o texto de Porta Siqueira abarcava variados assuntos:
conversao; composio do corpo; modo de fazer visitas; maneira de vestir-se;comportamentos na mesa, nas assemblias e durante o passeio.
Por meio da publicao local, ou mesmo da importao, chegava a Portugal
as novas concepes de sociabilidade no final do setecentos. Para compreender de
que forma o poder real portugus forjou uma sociedade de corte que se baseara
muitas vezes nos princpios franceses de etiqueta, preciso antes entender como se
fez o desenvolvimento da corte na Frana.
No Antigo Regime, a monopolizao do poder do Estado no se mostrou deforma homognea em toda Europa, uma vez que as especificidades e as
12 preciso frisar que desde muito cedo a circulao de obras em Portugal esteve subordinada rgos censoriais, os quais tinham o intuito de legitimar o catolicismo exemplificado na Igreja daContra-Reforma e suprimir pensamentos herticos, tanto na Coroa quanto nos domnios portugueses.Para manter o domnio sobre o que se lia, foram introduzidos organismos fiscalizadores, para citaralguns, o Ordinrio (1517), o Santo Ofcio da Inquisio (1536) e o Desembargo do Pao (1576).Este ltimo perdurou at 1833, sendo institucionalizado no Rio de Janeiro em 1808. O assunto serretomado posteriormente. VILLALTA. Luiz Carlos. Vida privada e colonizao: o lugar da lngua, dainstruo e dos livros. In: NOVAIS, Fernando (Coord.). Histria da vida privada no Brasil: imprio.So Paulo: Companhia das Letras, 1999, v. 1. p. 333-385.13PORTA SIQUEIRA, D. Joo de Nossa Senhora da. Escola de politica, ou tratado pratico dacivilidade portugueza. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1862. O referido compndio ser estudadonos dois captulos seguintes desta pesquisa.
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singularidades intrnsecas a cada sociedade, somadas dinmica governamental,
desenharam complexas redes entre sditos e soberanos. Sobretudo na passagem
da Idade Mdia para a Renascena, assistiu-se a uma transformao na definio
da forma de governo monrquica. O carter dual apropriado pelo monarca cristo
aquilo que Ernst Kantorowicz chama de os dois corpos do rei , expresso no
humano e na divindade, ser fundamental para o controle do poder poltico14.
O maior exemplo de ostentao estatal concentrada na figura do rei durante o
Antigo Regime esteve presente na Frana, sobretudo em Lus XIV (1660-1715), que
fez com que Paris se sobressasse perante os demais centros urbanos do Velho
Mundo. No final do sculo XVII esse destaque se dar tanto no senso de grandeza
do soberano, cujas modificaes urbanas inserem Paris como vitrine da Europa15,quanto na construo da principal residncia do monarca, Versalhes, e na existncia
de uma corte suntuosa, baseada na estreita relao que mantm com o rei. Ao
longo do perodo governativo, a propaganda da imagem do monarca era utilizada
para fabricar um conceito pblico favorvel a seu respeito. As reprodues visuais
como retratos, esttuas, moedas e o uso das palavras, como a divulgao de
poemas ou prosas em seu louvor, explanavam somente suas virtudes. A finalidade
da imagem era celebrar Lus, glorific-lo, em outras palavras, persuadirespectadores, ouvintes e leitores de sua grandeza.16
Ao discorrer sobre a corte francesa de Lus XIV, Nobert Elias percebeu na
pessoa do soberano um fenmeno singular e exclusivo do seu tempo, por possuir
uma rigorosa disciplina pessoal cuja dominao poderia ser exemplificada pelo
controle do equilbrio das ascenses e decadncias sociais segundo seu prprio
interesse, especialmente com relao nobreza. A representao do monarca se
fazia to constante que no havia uma ntida separao entre suas aes no mbitopblico e no mbito privado: todos os seus atos exibiam uma srie de cerimnias
com funes simblicas.
Seu despertar ou o momento de ir dormir e seus amores eram aes toimportantes quanto a assinatura de um acordo governamental, e eram
14KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia poltica medieval. SoPaulo: Companhia das Letras, 2000. 547p.15WILHELM, Jacques. Paris no tempo do Rei Sol. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.13-17.16BURKE, Peter. A fabricao do rei: a construo da imagem pblica de Lus XIV. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1994. p. 31. Para o socilogo francs Balandier, o controle do poder pblico depende daarte da persuaso do rei, que desenvolve ritos e smbolos capazes de manipular diretamente asociedade por meio de vrios tipos de linguagem. BALANDIER, Georges. O poder em cena.Braslia,DF: Ed. UNB, 1982. p. 10- 45.
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configuradas com o mesmo nvel de organizao. Todas elas serviam emcerta medida para manter sua dominao pessoal e sua rputation.17
A aristocracia de corte no tempo de Lus XIV sinnimo da extenso da casa
real e das pessoas graduadas que o cercavam cumpria uma certa etiqueta queconservava seus privilgios enquanto nobres. A execuo da etiqueta era muitas
vezes imposta pelo rei. Dessa forma, o seu no-cumprimento significava o
rebaixamento na hierarquia social, uma vez que a nobreza tornava-se sujeito de
prticas nobres e era obrigada a agir nobremente.18
Se na Frana um dos mais expressivos modelos de governo absolutista foi
com Lus XIV, em Portugal, foi no extenso reinado de D. Joo V (1707-1750) que a
corte mostrava seu fausto, ainda que modesto se comparado ao da francesa, ealmejava seguir os passos dessa.
Numa tentativa de emular Lus XIV e sua corte, D. Joo desenvolveu uma
cultura da nobreza, nas palavras de Joaquim Verssimo Serro. Essa cultura se
baseou no aumento da importao de artigos de luxo franceses considerados
exemplos de bom gosto e civilidade, numa maior extratificao da nobreza palaciana
e na prodigalidade do monarca com a criao de novos ttulos nobilirquicos.
Contudo, tambm imps restries contra o excesso de luxo que provocava
prejuzos para a balana comercial do pas. Os desenfreados gastos com a
vestimenta o levou a sancionar uma pragmtica em 1749 contra aquellas
superfuidades e excessos que tinha introduzido o luxo e a vaidade.19Tal medida
ocasionou paralisao na produo de algumas fbricas txteis, e o conseqente
desemprego de artfices. evidente que as pragmticas contrrias ostentao da
riqueza eram assimiladas at certo ponto, mesmo porque a Frana, com seus
modismos e costumes, representava uma grande escola em termos de cultura e
civilidade. Os signos de superioridade e inferioridade existentes na sociedade
portuguesa desde o sculo XVII continuariam a conferir fielmente a hierarquia:
utilizar coche, vestir seda ou renda e portar arma eram smbolos que somente a
aristocracia poderia exteriorizar20.
17ELIAS, 2001, op. cit., p. 151.18BOURDIEU, 1997, op. cit., p. 152.19SERRO, Joaquim Verssimo. Administrao e sociedade. In: MATTOSO, Jos (Dir.). Histria de
Portugal:a restaurao e a monarquia absoluta (1640-1750). Lisboa: Editorial Verbo,1980, v. 5. p.366.20MAGALHES, Joaquim Romero. A sociedade In: MATTOSO, Jos (Dir.). Histria de Portugal: noalvorecer da modernidade (1480-1620). Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v. 3.p. 481-497.
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D. Joo representava, e muito bem, a monarquia corporativa do Antigo
Regime, na qual a sua autoridade era pea fundamental na administrao do
Estado. Detinha poderes que contrabalanava as foras sociais, proporcionando
certa plasticidade em todas as esferas sociais. Neste aspecto, a interveno rgia
ultrapassava todos os domnios, a comear pela justia. Ao soberano era outorgado
o direito da graa e da punio perante seus sditos, os quais criavam um certo
hbito de obedincia por temor quele que possua um direito divino natural. O rei
tambm concedia perdo e graa numa atitude de clemncia, qualidade essa
reguladora do poder real. Este ento passava a ser uma espcie de pastor, devendo
ser amado pelos vassalos.
Se, ao ameaar punir, o rei se afirmava comojusticeiro, dando realizao aum tpico ideolgico essencial no sistema medieval e moderno delegitimao do Poder, ao perdoar, ele cumpria um outro trao da suaimagem desta vez como pastor e como pai , essencial tambm legitimao.21
Nos dois plos punio e graa a disciplina social possua uma funo
poltica de defesa da hegemonia simblica do prncipe.
Ao escrever para a nobreza portuguesa em 1749 sobre a melhor forma de
governar, Damio de Lemos Faria e Castro deixa claro esse pensamento:
A summa justia he rigor, e a demasiada clemencia frouxido. Ha de haverjustia com clemencia, e clemencia com justia. Busque-te no castigo talprudencia, que com o maior danno do aggressor se satisfaa o crime, eoffenda a Republica. Se a culpa pede vingana, a pessoa grita pelacompaixo. O throno do Prncipe he throno de clemencia. Perde o Prncipea essencia de Soberano, quando se esquece de ser clemente.22
Portanto, justia e clemncia quando utilizadas na medida certa eram
consideradas as maiores virtudes de um prncipe.
Quarenta e um anos mais tarde o bacharel portugus Francisco Antonio de
Novaes Campos oferecia um manuscrito ao futuro D. Joo VI, ento prncipe do
Brasil, intitulado Principe Perfeito, contendo sonetos que exaltam sua imagem. No
seguinte trecho fica evidente que a ascendncia do monarca importante para um
bom governo, porm insuficiente se aquele no possuir competncia e destreza
21HESPANHA, Antonio Manuel. A punio e a graa. In: MATTOSO, Jos (Dir.). Histria dePortugal:o antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4. p. 248. (grifo do autor).22CASTRO, Damio Antonio de Lemos Faria e. Politica moral, e civil, aula da nobreza luzitana.Lisboa: Officina Francisco Luiz Ameno, 1749. p.74. Consultar MALERBA, 2000, op. cit., p. 212-218.
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prprias para exercer a monarquia. Bom he vir de Progenie esclarecida/ Mas deve
ser nos Princepes prezada/ A gloria propria mais que a transmetida.23
A partir da primeira metade do sculo XVIII, h em toda Europa o
desenvolvimento de novas correntes seculares e modernas que iro se destacar por
criticar a forma de governo do Antigo Regime. Em Portugal a chamada onda
iluminista ter uma maior expresso a partir de meados de 1740, acentuando-se no
reinado de D. Jos I (1750 - 1777). neste perodo que o Iluminismo ganha uma
feio de Estado, representada pela poltica do despotismo esclarecido doutrina
que subordina toda a nao ao poder incontestvel do monarca na figura do
primeiro ministro Sebastio Jos de Carvalho e Melo, o Marqus de Pombal,
principal articulador do governo josefino.O movimento ilustrado portugus foi marcado por uma grande influncia vinda
especialmente da Frana, Inglaterra, Itlia e Alemanha, em detrimento da influncia
espanhola. Os modos estrangeirados eram introduzidos sobretudo por intelectuais
e cientistas portugueses que freqentavam os variados meios culturais daqueles
pases nas reas de direito, medicina, educao, dentre outras.24
O impacto das Luzes tambm pode ser percebido no desenvolvimento da
prtica cultural, em que a criao das academias obtivera lugar preponderante. Em1720 D. Joo funda a Academia Real da Histria, numa tentativa de salvaguardar o
patrimnio histrico com a especializao do estudo da Histria Portuguesa.
Contudo, a que mais representou os ideais iluministas foi a Academia Real das
Cincias, instituda em 1779, a qual possuiu, alm de projetos de reforma cientfica,
econmica e de sade, um museu e uma biblioteca.25
Na esfera educacional, ficou por conta do Marqus de Pombal a realizao de
uma srie de medidas culturais e pedaggicas que estavam de acordo com osprincpios da Ilustrao. De conformidade com o fundamento iluminista que
desprestigiava o poder da Igreja e reconhecia a autoridade do rei, o primeiro-ministro
secularizou o ensino nas mos do Estado, afastando os jezutas da Companhia de
23CAMPOS, Francisco Antonio de Novaes. Principe Perfeito:emblemas de D. Joo de Solorzanoparafrazeados em sonetos portuguezes e offerecidos ao Serenissimo Senhor D. Joo Principe doBrazil. Lisboa: ICALP, 1790. p. 12.24Para um estudo pormenorizado sobre o perodo da Ilustrao em toda a Europa, consultarFALCON, Francisco Jos Calazans. Iluminismo.So Paulo: tica, 1986. 93p.25MARQUES, Antonio Henrique de Oliveira. Histria de Portugal: desde os tempos mais antigos atao governo do Sr. Marcelo Caetano. 2. ed. Lisboa: Edies gora, 1973. p. 555-556.
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Jesus26, os quais monopolizavam no s a instruo em Portugal, como tambm
nos trpicos.
Um dos maiores exemplos de como o despotismo esclarecido influiu na
conduo da poltica urbana foi a reconstruo de Lisboa aps o terremoto de 1755,
que, na manh de 1 de novembro deixou a cidade em runas. Naquele dia, palcios,
casas, igrejas, teatros, hospitais, e vrios outros estabelecimentos caram por terra.
Calcula-se entre dez e quinze mil as vtimas27do terremoto, que foi acompanhado
de enchentes e incndios. As perdas materiais tambm foram desastrosas: das
cerca de quarenta igrejas paroquiais, trinta e cinco ruram; das vinte mil casas,
apenas trs mil ficaram em condies habitveis; aproximadamente setenta mil
livros da Real Biblioteca a maior biblioteca de Portugal sucumbiram.28Conforme atesta Kenneth Maxwell, a reconstruo da cidade proporcionou o
impulso para Pombal se firmar no poder e realizar o intervencionismo estatal na
sociedade. Foram muitas aes para tanto. Fixou o preo dos alimentos e aluguis a
nveis anteriores o de 1755, mandou enforcar saqueadores e arruaceiros que se
aproveitavam da situao pblica catica, contratou engenheiros militares,
topgrafos e arquitetos. Lisboa passou a ser um exemplo clssico de cidade
planejada29
, racionalmente edificada com suas ruas niveladas e construesmetricamente traadas.
A reestruturao da cidade, contudo, no foi significativamente responsvel
pela transformao do aspecto urbano j presente em momentos anteriores. Muitos
viajantes que visitaram Lisboa no final do sculo XVIII notaram certa diferena entre
Lisboa e os demais centros europeus. J. B. F. Carrre, mdico francs que viveu em
um dos bairros pobres da cidade em 1786, por exemplo, fica admirado com a falta
de policiamento:
[...] rouba-se, mata-se, sem que os portugueses procurem socorrer osdesgraados agredidos. Antes pelo contrrio, mais se trancam em suascasas. Acontecimentos destes so freqentes em Lisboa, cidade onde h
26Ficou a cargo dos religiosos da Companhia de Jesus pelo espao de duzentos anos no apenas odesenvolvimento incipiente da instruo (leia-se instruo religiosa) educacional na colnia direcionada para os poucos filhos das ricas famlias que freqentavam o ensino secundrio comotambm a fiscalizao sobre a entrada de obras na colnia. RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e atipografia no Brasil.So Paulo: IMESP, 1988. p. 207.27MARTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. Histria de Portugal.11. ed. Lisboa: Livraria Editora, 1927.p. 174-176.28SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. So Paulo: Companhia dasLetras, 2002. p. 29-32.29MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal: paradoxo do iluminismo. So Paulo: Paz e Terra, 1996.p. 10-35.
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mais condies propcias ao roubo e ao assassnio, sendo por isso aquelaonde se cometem em maior nmero estes crimes. Contudo, a mais malpoliciada de todas as cidades, o que a torna verdadeiramente perigosa.30
Sobre o asseio nas ruas, Carrre censura a falta de zelo da Intendncia Geral
da Polcia - rgo poltico-administrativo cujas funes seriam a de manter a ordem,
estimular a educao, controlar a circulao de livros, melhorar a aspecto sanitrio -,
que, a despeito de cobrar impostos da populao para o custeio da limpeza,
raramente se empenhava em varrer as ruas:
No Inverno, a lama amontoa-se nas ruas por causa das chuvas abundantese prolongadas, prprias da estao; as vias principais, as maisfreqentadas, esto quase sempre com um meio p de lama nas parteslaterais e, no meio, com enormes montes. Pior ainda nas ruas pequenas,travessas e ruas escuras, as quais, na maior parte do ano, se conservam
impraticveis.31
Para Carrre, no s as ruas eram vtimas do desleixo portugus. A prpria
corte possua um carter de mesquinhez e de simplicidade. Talvez pelo fato de ser
francs e j ter presenciado a magnificncia daquela corte, o autor percebia uma
grande diferena da nobreza lisboeta face as do restante da Europa. No existe
nesta corte aquela gentileza delicada, o -vontade, as boas maneiras, a linguagem
elegante, fcil, ligeira, nem to-pouco o aspecto nobre e descontrado, a graa
honesta e discreta, que distinguem muitas das cortes europias.32A falta de ostentao de que se queixa Carrre era tambm consequncia do
devastador terremoto de 1755, pois muitos nobres perderam suas riquezas e ficaram
arruinados, quando no foram eles prprios dizimados pelo sismo. Mesmo sem
finanas, o certo que a nobreza tentava conservar sua linhagem e seu fausto. Com
escassos recursos, mantinham a fachada: por baixo de um travesseiro com fitas
entretecidas com fios de ouro e colchas de seda chinesas havia muitas vezes um
colcho de palha de milho.33
De modo geral, os divertimentos na corte no eram muitos. Ao tempo de D.
Maria I (1786-1792) o entretenimento consistia basicamente nas procisses, bailes,
saraus, teatros e touradas. Em termos sociais, as procisses tornaram-se de longe o
maior divertimento da sociedade devido ao carter religioso da administrao
30CARRRE, Joseph-Barthlemy-Franois. Panorama de Lisboa no ano de 1796.Lisboa:Biblioteca Nacional, 1989. p. 63.31CARRRE, 1989,op. cit., p. 66.32Ibid.,p. 54.33CHANTAL, Suzanne. A vida cotidiana em Portugal ao tempo do terramoto. Lisboa: Livros doBrasil, [19--]. p. 104.
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mariana. Os botequins, as casas de bilhar e os quatro teatros pblicos tambm eram
procurados pelas camadas populares, bem como o passeio no Terreiro do Pao.
Frequentador da corte portuguesa em 1787, o lorde ingls Sir William
Beckford no deixou de assistir a uma corrida de touros, o que lhe causou certa
repugnncia:
Depois de termos esperado um quarto de hora no nosso camarote [...],abriu-se a porta do recinto fechado e um dos bois viu-se forado, contra suavontade, a sair para a arena. Ali ficou imvel, por momentos, at que ocavaleiro, girando rapidamente volta dele, lhe espetou a lana no lombo.Embora ferido e dorido, no fez qualquer violento esforo para se defenderou vingar. [...] O espetculo desgostou-me profundamente.34
Apesar de possuir casas de espetculos, Lisboa no tinha tradio na arte
dramtica. Nos Teatros Reais, os espetculos lricos eram apresentados comfrequncia por companhias estrangeiras.
Ao assistir uma apresentao no Teatro da Rua dos Condes, Beckford
descreve a sua impresso: A pea enjoou-me mais que me divertiu. O teatro
baixo e estreito, o palco uma pequena galeria, e os actores, pois no h actrizes,
abaixo de toda crtica.35Passados alguns meses, o ingls volta ao Teatro, quando
obtm uma nova opinio: Fiquei surpreendido com o cenrio, que era realmente
bom, e com os trajes, que eram, na verdade, esplndidos e muito bem imaginados.Os actores tambm no eram to abominveis [...].36
certo que a vida social na corte portuguesa no se apresentava como nas
cortes francesa ou inglesa, mas ntidas transformaes vinham ocorrendo,
especialmente desde o reinado de D. Joo V.
Se a nobreza lusitana deixava a desejar em termos de magnificncia na
prpria Lisboa, que dir quando parte da mesma se transferir, em 1808, para o Rio
de Janeiro, uma cidade considerada inspita pelos viajantes europeus que at ento
a tinham visitado. o que veremos com detalhes na seo seguinte, no qual
evidenciaremos os principais acontecimentos em torno transferncia da corte.
34BECKFORD, William. Dirio de William Beckford em Portugal e Espanha.3. ed. Lisboa:Biblioteca Nacional, 1988. p. 86.35Ibid., p. 100.36Ibid., p. 147.
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1.2 Transferindo a corte
As ltimas dcadas do sculo XVIII representaram um perodo decisivo em
toda a Europa. Em 1789, a Frana era palco de um movimento liberal que
contestava a centralidade poltica eternizada pela figura divina do rei. A Revoluo
Francesa sacudiu os nimos dos soberanos absolutistas europeus, e no continente
as opinies das naes se alternavam.37
Em 1792, a Coroa lusitana passa a ser administrada pelo prncipe D. Joo VI,
devido aos problemas de sade de sua me D. Maria I. O prncipe d ento incio a
um governo defensivo, apoiando-se no Conselho de Estado formado por importantes
nobres das esferas militar, poltica e econmica. Nesse contexto, Portugal erapressionado por duas faces antagnicas: por um lado, Napoleo, ameaando o
litoral portugus com sua tropa, caso no fechasse seus portos para os navios
ingleses e no cessasse o comrcio martimo com estes; por outro, a Inglaterra,
propondo-lhe proteo poltica nas relaes internacionais e certa estabilidade, caso
permanecesse a livre circulao de mercado entre ambos. A todo custo Portugal
tentava se manter neutro, pois almejava resguardar sua liberdade poltica e
preservar seus domnios coloniais do outro lado do Atlntico, principalmente noBrasil.38
A situao portuguesa se torna insustentvel quando a tropa francesa
liderada por Junot invade o territrio portugus. Nesta ocasio, D. Joo adota a idia
da transferncia para o Brasil, visto a debilidade do reino e sua ineficincia militar. 39
37Ver NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das. Napoleo Bonaparte: imaginrio e poltica emPortugal (1808- 1810). So Paulo: Alameda, 2008. 360p. O livro sintetiza o contexto polticoportugus s vsperas da vinda da corte portuguesa para o Brasil, enfatizando sobretudo a situaoscio-poltica portuguesa aps a ausncia da Famlia Real no pas.38PEDREIRA, Jorge Miguel. Economia e poltica na explicao da independncia do Brasil. In:MALERBA, Jurandir (Org.). A independncia brasileira: novas dimenses. Rio de Janeiro: Ed. FGV,2006, p. 75-76; MONTEIRO, Tobias. Histria do Imprio:a elaborao da independncia. 2. ed.Braslia, DF: Ministrio da Educao e Cultura, 1972. 817p.; LIMA, 1996, op. cit., 790p.; MALERBA,2000, op. cit., 412p. ; WILCKEN, Patrick. Imprio deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro,1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 328p.39De acordo com Maria de Lourdes Viana Lyra, a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeirono s se mostrou como uma das alternativas mais plausveis para a assegurao do Estado
portugus como tambm para o desenvolvimento de um Imprio luso-braslico que pudessedevolver o papel angular portugus no contexto europeu. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopiado poderoso imprio:Portugal e Brasil: bastidores da poltica (1798-1822). Rio de Janeiro: SetteLetras, 1994. 256p.
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A Inglaterra passa a apoiar a idia da transferncia da corte portuguesa, pois visava
vantagens econmicas no novo mercado que se abriria. 40
O seguinte pronunciamento poltico impregnado de um discurso ufanista e
simplista que engrandecia a preferncia do monarca , j em territrio fluminense,
enfim deixava evidente o trmino da neutralidade:
S.A.R. o Prncipe Regente abraou ento o nico partido, que poderiaconvir-lhe, para no se affastar dos principios, que tinha constantementeseguido; para poupar o sangue dos Seus Povos, e para evitar a completaexecuo das vistas criminosas do Governo Francez, que no se propunhanada menos, que a apoderar-se da Sua Real Pessoa, e de todas as quecompoem a Sua Augusta Familia Real, [...]. A Providencia favoreceu osesforos de hum Prncipe justo; e a magnanima resoluo, que S.A.R.abraou de retirar-se aos Seus Estados do Brazil, com a Sua AugustaFamilia Real, tornou totalmente inteis os designios do Governo Francez, e
descortinou face de toda a Europa[...].41
Fica explcito no fragmento o carter dual da poltica europia internacional,
sintetizada por duas ramificaes contrrias a francesa encarada como arbitrria e
a inglesa como necessria que coube ao governo de D. Joo optar.
Em fins de 1807 cerca de quinze mil almas dentre elas a Famlia Real, a
nobreza e a criadagem mal acomodadas em oito naus, uma escuna, trs brigues,
quatro fragatas e alguns navios mercantes deixavam o porto lusitano acompanhados
pela diviso inglesa do almirante Sidney Smith42.No mesmo dia em que aqui desembarcou, D. Joo interrompe na Bahia o
chamado antigo sistema colonial43, concedendo ao Brasil relativa abertura de
40Grande parte da dinmica mercantil portuguesa era feita com os ingleses, esses que tambm
mantinham constante comrcio com o Brasil. No entendimento de Caio Prado Jnior a colonizaobrasileira foi uma grande empresa comercial designada a explorar recursos naturais em benefcio domercado europeu. Nesse nterim, o Brasil seria uma feitoria da Europa, um simples fornecedor deprodutos tropicais para seu comrcio. PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasilcontemporneo. 22.e.d. So Paulo: Brasiliense, 1992. p. 127.41Manifesto, ou Exposio Fundada, e Justificada do procedimento da Corte de Portugal arespeito da Frana desde o princpio da Resoluo at a poca da invaso de Portugal; e dosmotivos, que a obrigaro a declarar a Guerra ao Imperador dos Francezes, pelo facto dainvaso, e da subseqente Declarao de Guerra feita em consequencia do Relatorio doMinistro das Relaes Exteriores. Rio de Janeiro em 1 de maio de 1808, p. 29.42Sobre a transferncia da corte ver ONEILL, Thomas. A vinda da famlia real portuguesa para oBrasil.Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2007. 128p.; LIGHT, Kennet.A viagem martima da famliareal:a transferncia da corte portuguesa para o Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 280p;PEDREIRA, Jorge Miguel; COSTA, Fernando.D. Joo VI:um prncipe entre dois continentes. SoPaulo: Companhia das Letras, 2008. 484p.; MALERBA, Jurandir. A corte no Brasil: 200 anos.RevistaAcervo: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 47-62, jan.jun. 2008.43A expresso antigo sistema colonial tornou-se bastante utilizada pelos historiadores a partir daobra de Fernando Antonio Novais Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. Nela, o autor
trata do aspecto dual das relaes econmicas entre a metrpole (centro explorador) e a colnia(periferia explorada pela primeira), que desaguou na colapso do sistema mercantilista. NOVAIS,Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 5. ed. So Paulo:Hucitec, 1989. 422p.
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comrcio diante das naes estrangeiras. Essa providncia talvez tenha
representado um dos primeiros passos efetivos no caminho para a futura
emancipao poltica brasileira que culminaria em 1822, pois nos portos haveria
maior liberdade com o aumento da circulao de produtos nacionais e
estrangeiros.44 Entretanto, o monoplio de certas mercadorias estrangeiras, e a
consequente proibio de suas produes na colnia permaneceria presente. A
abertura dos portos ao comrcio mundial significava na realidade que, em relao
Europa, os portos estavam abertos apenas ao comrcio da Inglaterra, enquanto
durasse a guerra no continente.45 Dois anos mais tarde a Inglaterra conseguiria
visveis preferncias comerciais no territrio brasileiro.
A chegada do soberano junto de sua corte ao Rio de Janeiro em oito demaro de 1808 foi marcada por celebraes durante nove dias ininterruptos de
iluminao e execuo de fogos de artifcio46, nos quais o regente desfilava pelas
principais ruas sobre um coche puxado por quatro cavalos, sendo escoltado por
sessenta soldados da cavalaria. A procisso pblica era composta de pessoas da
alta sociedade fluminense, dentre elas civis e militares, todos vestidos de corte.
Nota-se que j no desembarque havia certa distino para se acompanhar os
recm-chegados, pois cada pessoa ocupava um lugar especfico. A escolha defluminenses com grandes cabedais para segurarem as varas do plio onde os
membros reais ficariam evidencia o carter de extratificao social conforme as suas
posses.47O trajeto por onde a augusta procisso passaria era decorado de variadas
maneiras. A parte frontal das casas deveria ser ornada, as ruas enfeitadas de flores,
areia, folhas, cravos alm de diversos aromas.48 Esses preparativos seriam
utilizados na higienizao do espao pblico, uma vez que as ruas, estreitas e sujas,
muitas vezes serviam como depsito de lixo domstico. Fazia-se pois necessrio
44OLIVEIRA, Lus Valente de; RICUPERO, Rubens. A abertura dos portos no Brasil.So Paulo:Senac, 2007. 352 p.45MANCHESTER, Alan K. Preeminncia inglesa no Brasil.So Paulo: Brasiliense,1973. p. 75.46D. Joo ficou to surpreso com os fogos de artifcio no ltimo dia de comemorao que ordenouchamar o artfice responsvel pela sua primorosa execuo, oferecendo ao boticrio portugusManoel da Luz uma quantia de seis cruzados, imediatamente recusada por este. Relao das festasque se fizero no Rio de Janeiro, quando o principe regente N. S., e toda a sua real familiachegaro pela primeira vez quella capital.Lisboa: Impresso Regia, 1810, p. 14-15.47MALERBA, Jurandir. Duas histrias do Brasil de Dom Joo. Revista Brasileira,Rio de Janeiro,ano 15, fase 7, n. 57, out.nov.dez., 2008. p. 111.48SANTOS, Lus Gonalves dos. Memrias para servir Histria do Reino do Brasil.Rio deJaneiro: Livraria Zelio Valverde, 1943. 2v. p. 201-240.
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encobrir a realidade social pouco polida e fabricar impresses que se aproximassem
da expectativa corts portuguesa.
As comemoraes tinham o intuito de estreitar o pacto poltico entre soberano
e sditos na medida em que ritualizava as relaes sociais e construa uma imagem
real idealizada por meio de simbologias.49 E no somente as prticas festivas
demonstravam a dimenso da representatividade na figura de D. Joo. Nas casas,
nas instituies pblicas e nos estabelecimentos em geral prestavam-se
homenagens, como a iluminao em janelas e a criao de monumentos. Em um
grande quadro se reproduziam os seguintes versos:
America feliz tens em teu seio/ Do novo Imperio o Fundador Sublime/ Sereste o Paiz de Santas Virtudes/ Quando o resto do Mundo he todo crime/ Do
grande Affonso a Descendncia Augusta/ Os Povos doutrinou do Mundoantigo/ Para a Gloria esmaltar do novo Mundo/ Manda o Sexto Joo o Ceoamigo.50
A vinda da corte resultou tambm na transferncia para o Rio de Janeiro de
bens materiais e culturais da nobreza. Grandes somas do Real Errio, mobilirio,
jias, traje, biblioteca e at a Real Tipografia viriam para a colnia com a inteno de
nos trpicos tentar reproduzir as condies de sociabilidade de vida em corte mais
prximas daquelas vivenciadas em Portugal.Uma vez no Rio de Janeiro, seria indispensvel acomodar a Famlia Real com
sua numerosa criadagem ao novo local de habitao, assim como a nobreza que a
acompanhava. Para tal, ficou responsvel o antigo vice-rei do Rio de Janeiro D.
Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos. No seria uma tarefa fcil, afinal, a
colnia brasileira se diferia da velha Lisboa em vrios aspectos. A comear, no
existia um estabelecimento que correspondesse altura da antiga moradia real, o
Palcio de Queluz.51
Apesar de pequeno, um dos prdios maiores e mais dignos de ser
transformado em Pao Real era justamente o de D. Marcos de Noronha, localizado
no Terreiro do Carmo, local onde tambm funcionava o Tribunal da Relao. Como a
cadeia tambm era um grande edifcio, fra reformada para receber a augusta
49SCHWARCZ, Lilia Moritz. Pagando caro e correndo atrs do prejuzo. In: MALERBA, Jurandir(Org.). A independncia brasileira: Novas Dimenses. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.50Relao das festas que se fizero no Rio de Janeiro
quando o principe regente N.S. e toda asua familia chegaro pela primeira vez quella capital. Ajuntando-se algumas particularidadesigualmente curiosas, e que dizem respeito ao mesmo objeto.Lisboa: Impresso Rgia, 1810. p.9.51SCHWARCZ, 2002, op. cit., p. 244; PRADO, 1968, op. cit., cap. 7.
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famlia, e seus presos transferiram-se para o Aljube.52Contudo, o espao ainda no
era suficiente. O conde dos Arcos manda ento desalojar os frades do Convento do
Carmo para aumentar a Casa Real, anexando-se os dois prdios vizinhos. O interior
passou por muitas reformas, construram-se grandes aposentos com janelas, vastas
salas e outros cmodos, tudo com o objetivo de proporcionar maior comodidade.
Instalaram-se no antigo Pao do vice-rei, o soberano, a princesa Carlota e os
oito infantes. D. Maria I acomodou-se no convento dos carmelitas. Nos prdios da
antiga Cadeia e da Casa da Cmara ficou o elevado nmero de criados que servia
aos aposentos reais. Os aposentos de D. Carlota e de D.Joo ficavam em regies
opostas. Era sabido de todos que ambos tinham uma convivncia turbulenta. A
freqncia com que se viam ainda diminuiu consideravelmente depois que o riconegociante Elias Antnio Lopes doou para o regente sua bela chcara em So
Cristvo, local onde passava grande parte de seu tempo.53
Gradualmente, todo o squito real portugus fra alojado nos poucos e
antigos casarios e prdios fluminenses. Considerados como mal arquitetados e
insalubres, eram inadequados para cortesos acostumados um local de habitao
mais requintado. Porm, era esta a realidade fluminense que de certa forma
deveriam se ambientar, satisfeitos ou no.As transformaes que se operaram no Rio de Janeiro a partir do
desembarque da corte efetuaram-se a curto prazo, pois um acontecimento daquela
magnitude requeria rpidas e efetivas mudanas no cotidiano da cidade.
Analisemos, pois, seu processo e seus desdobramentos.
52Relao das Festas que se fizero..., p. 6; MALERBA, 2000, op. cit., p. 233-234.53SCHWARCZ, 2002, op. cit., p. 244; EDMUNDO, Luiz. A corte de D. Joo no Rio de Janeiro(1808-1821). 2. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, 3v. p. 572-577.
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CAPTULO 2 O RIO DE JANEIRO O BRASIL!
2.1 Um novo cenrio
Aps a instalao da corte no Rio de Janeiro, ocupou-se D. Joo do rearranjo
do aparelho de Estado portugus que correspondesse s expectativas econmicas,
administrativas e polticas da nova situao. O novo ministrio foi marcadamente
portugus. Ao lado do seu corpo ministerial, o regente regulamentou instituies
capazes de corresponder nova importncia que aquela cidade passaria a ter nos
mbitos nacional e internacional e dessa maneira consolidar o poder rgio. Algumasinstituies que j existiam em Portugal foram regulamentadas no Rio, como o
Tribunal do Desembargo do Pao, a Mesa da Conscincia e Ordens, o Conselho
Ultramarino, a Intendncia Geral da Polcia, a Casa da Suplicao, o Tribunal da
Real Junta do Comrcio, Agricultura, Fbricas e Navegao, a Impresso Rgia.54
Aos poucos, ia-se criando nos trpicos todo um aparato burocrtico que
pudesse fazer legitimar o governo transplantado. Se os aspectos relacionados
esfera governamental estavam sendo organizados, o mesmo acontecia com relao esfera urbana do Rio, que sofreria uma remodelao nos espaos pblico e
privado para assim atender aos novos moradores.
Ao retratar a sociedade fluminense em relatos de literatura de viagem, muitos
cronistas europeus que estiveram na cidade no incio do sculo XIX ressaltaram a
questo da insalubridade urbana. A falta de infra-estrutura, o clima tropical e a
extica paisagem lhes conferiam diferentes impresses das que poderiam ser
vivenciadas na Europa. Fosse maravilhando uns, fosse repugnando outros, o certo que atualmente ambos os relatos devem ser examinados levando-se em
considerao uma diversidade de valores.
O bibliotecrio portugus Lus Joaquim dos Santos Marrocos, que se mudara
a contragosto para o Rio em 1811 em virtude da transferncia da Biblioteca Real,
por exemplo, no escondia a averso que tinha da cidade. Em carta endereada
sua irm que ficara em Lisboa, assim descreve o novo local de moradia:
54ALMANAQUE DO RIO DE JANEIRO PARA O ANO DE 1811.Rio de Janeiro: Revista do InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro, v. 282, 1969. p. 99-104.
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Daqui s te posso mandar informaes fastidiosas: a terra he a pior doMundo; a gente he indignissima, soberba, vaidosa, libertina: os animaes sofeios, venenosos e muitos; em fim eu crismei a terra, chamando-lhe terra desevandijas; por que gente e brutos todos so sevandijas.55
No entanto, depois de estabelecer matrimnio com uma abastada dama carioca
alguns anos depois, Marrocos no mais se queixaria da cidade para seus parentes
portugueses, falecendo em terras tropicais no ano de 1838.
Com a transferncia da corte, o nmero de europeus vindos de outros pases
que no de Portugal aumentou consideravelmente na cidade fluminense. A presena
de muitos estrangeiros, principalmente de ingleses e franceses, passaria a
influenciar favoravelmente a vida social, assim como a arquitetura das casas.
Durante o perodo colonial, os prdios urbanos eram construdos com o intuitode se manter o isolamento da rua. Feitas de tbuas de soalho pregadas diretamente
ao cho, portas estreitas, muros altos e janelas pequenas, as casas se
caracterizavam pela umidade e falta de claridade. A disposio interna variava de
um, dois, ou trs andares, sendo a mais simples e mais comum a de um andar. As
casas de sobrado eram maiores e geralmente edificadas nas ruas centrais
fluminenses. Nas construes comumente utilizavam-se tijolos, telhas, pedras e
madeira.56
Quanto mais janelas na parte da frente e mais cmodos tivesse umacasa, mais esta valorizava-se.
Havia um padro geral de moradia que perdurava em quase todo o territrio
brasileiro. frente encontrava-se um salo, seguido de um corredor e alcovas. Os
quintais, tambm chamados de reas sujas, eram depsitos de inutilidades
domsticas. Nos domiclios mais abastados existiam normalmente trs andares e um
maior nmero de aposentos. No primeiro piso encontrava-se a loja ou escritrio e o
quarto, que permitia uma maior privacidade no contato ntimo familiar. O segundoera destinado aos quartos e sala de visitas. No ltimo instalava-se a cozinha. Tal
predisposio nas acomodaes evidenciava a escassa higiene, provocada, dentre
outros fatores, pela ausncia de arejamento e de chamins na cozinha57, pois os
refugos inevitavelmente desciam para os outros andares. Os negros moravam no
sto ou poro dessas habitaes. Cabia a eles levarem os excrementos dos
55MARROCOS, Luis Joaquim dos Santos. Cartas.Rio de Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional,1939, v. 56. p. 68. (grifo do autor).56ALGRANTI, Leila Mezan. Famlias e vida domstica. In: NOVAIS, Fernando (Coord.). Histria davida privada no Brasil.So Paulo: Companhia das Letras, 1999, v. 1. p. 90-99.57MALERBA, 2000, op. cit., p. 129 e 145; ALGRANTI, 1999, op. cit., p. 100-101.
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moradores para o meio externo e jogarem os mesmos nas praias ou simplesmente
despej-los nas ruas, onde um transeunte desprevenido poderia ser atingido.
Dependendo do nmero de escravos da moradia, as imundcies eram levadas
apenas uma vez na semana para fora das casas. O mesmo ia aglutinando nas
praias, encostas e ruas, j que no havia limpeza pblica nem tampouco tratamento
de esgoto.58
Uma das primeiras medidas urbansticas que D. Joo imps ao chegar no Rio
foi o banimento da gelosia ou rtula grande janela de trelia de madeira com
grades que dava s fachadas das casas uma aparncia mourisca por portas
inteirias e janelas envidraadas donde poderia circular mais ar. Por meio do edital
de 11 de junho de 1809 ordenado pelo soberano, o Intendente Geral da PolciaPaulo Fernandes Viana concedia populao o curto prazo de oito dias59 para
remov-las, substituindo-as por grades de ferro ao prazo de seis meses. O
suprimento da gelosia representava antes o gosto pela opulncia do que a genuna
preocupao com a privacidade, uma vez que o antigo costume daria lugar a um
maior grau de civilizao. Numa poca em que o belo sexo raramente saa s ruas,
tal mudana passou a amenizar o confinamento feminino. Agora, as mulheres
poderiam ter um maior contato com o meio externo.A tarefa de modernizar o Rio de Janeiro e adequ-lo nova condio de sede
da monarquia no seria simples. Coube Intendncia Geral da Polcia administrar o
melhoramento na cidade. frente do cargo de intendente durante os treze anos em
que D. Joo VI permaneceu no Brasil, Paulo Fernandes Viana foi um dos
responsveis pela remodelao do cenrio fluminense. A Intendncia proporcionou
calamento e alargamento urbanos; aterro de pntanos e depresses, visto que as
ruas eram irregulares; melhoria nas estradas com a construo de pontes demadeira que facilitavam o trnsito para a chegada de vveres na corte;
abrandamento do problema das guas estagnadas que ficavam nas ruas e o
consequente mal cheiro. Tambm aumentou o abastecimento de gua potvel com
58LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.Belo Horizonte:Itatiaia; So Paulo: Ed. USP, 1975. p. 89.59MALERBA, 2000, op. cit., p. 145.
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a criao de chafarizes que conduzissem gua em muitas regies da cidade e
consentiu maior iluminao nas ruas.60
Uma importante inovao no embelezamento do espao urbano foi a
publicao do edital de 1816. H tempos os habitantes do Rio de Janeiro vinham
sofrendo com o desabamento de casas, as quais, por serem muito antigas ou mal
construdas, chegavam at a matar moradores. O documento escrito por Viana
sugeria que essas propriedades fossem demolidas dentro de um prazo fixado, j que
poderiam ruir e em mais de uma oportunidade havia ameaado a vida de criados do
Pao. No seria nada agradvel, portanto, que a nobreza desterrada viesse a
presenciar algum desabamento. Como meio de prevenir tais desastres, foram
contratados arquitetos, pedreiros e carpinteiros para examinar as casas. Aspropriedades que fossem pouco seguras seriam derrubadas ou reconstrudas com
bons materiais.61
No apenas do carter saneador ocupava-se a Intendncia Geral da Polcia.
Empregava-se tambm no policiamento das festas pblicas, no registro dos
estrangeiros que estavam ou que chegavam no Brasil e expedio de seus
passaportes, na fiscalizao dos teatros, na organizao da guarda real, e, na
vigilncia das ruas, pois o banditismo vinha sendo uma constante no meio urbano.Sobre esse assunto John Luccock, negociante ingls que esteve no Rio de
Janeiro entre 1808 e 1818, no deixa de comentar, evidenciando a impunidade de
quem o praticava: Quando um corpo tombava na rua, mesmo que luz do dia, o
assassino saa andando e o povo o contemplava como se nada de mal houvesse
feito e at mesmo abria caminho para sua fuga.62
O bibliotecrio Marrocos relata em uma de suas cartas endereada ao pai que
no curto perodo de cinco dias houve vinte e dois assassinatos. Nesta Cidade eseus subrbios temos sido muito insultados de ladres, accommettendo estes e
roubando sem vergonha, e logo no principio da noute; de sorte que tem horrorisado
60VIANA, Paulo Fernandes. Abreviada demonstraodos trabalhos da policia em todo o tempoque a servio o Dezembargador do Pao Paulo Fernandes Viana.Rio de Janeiro: Revista doInstituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, t. 55, 1892. p. 374-376.61VIANA, Paulo Fernandes.Conselho de Sua Alteza Real, Fidalgo Cavalleiro da Sua Real Caza,Commendador da Ordem de Christo, Dezembargador Pao, e Intendente Geral da Policia daCorte, e Reino do Brazil.Rio de Janeiro: Impresso Rgia, 1816.62LUCCOCK, 1975, op. cit., p. 90.
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as muitas e barbaras mortes, que tem feito.63O prprio narrador presenciara duas
mortes na rua onde morava.
Para que se amenizassem os problemas da insalubridade urbana, medidas
vinham sendo tomadas. A sade era um dos aspectos mais preocupantes no incio
do oitocentos, pois muitos bitos ocorriam em virtude da falta de uma simples
profilaxia. Por isso, logo em 1808 pediu D. Joo a seu fsico-mor, Manoel Vieira da
Silva, que publicasse o primeiro relatrio mdico do Rio de Janeiro, contendo
proposies que deveriam ser tomadas para se melhorar o clima e
consequentemente a vida dos habitantes fluminenses. No entendimento de Vieira da
Silva, muitos eram os fatores que causavam as enfermidades. A comear, o calor
atmosfrico provocado pelo ar quente e mido mudava a aco natural dos vasoscutaneos, e de todas as membranas, produzindo resultados pessimos sobre a
maquina animal. De acordo com o fsico-mor, as guas estagnadas e os pntanos
ocupavam o principal lugar entre as causas da insalubridade de qualquer local,
pois nesses lugares estavam
[...] em digesto, e dissoluo substancias animaes, e vegetaes, as quaesna presena dos grandes calores, entrando em putrefao, do origem apestiferos gazes, que devem levar a todos os viventes os preliminares damorte, j pela sua aco immediata na periferia do corpo [...].64
Ainda cooperavam para a proliferao de doenas os lugares onde se
instalavam matadouros e aougues, por ficarem muito prximos populao. A falta
de vigilncia sobre curandeiros e boticrios que vendem purgantes, vomitorios e
outras composies sem receita do medico, assim como a falta de fiscalizao
sobre cirurgies charlates que se utilizavam da medicina, contriburam para o
agravamento da sade pblica.65
A questo do tradicional sepultamento de fiis dentro das Igrejas66consistia
igualmente em um problema, que, segundo Vieira da Silva merecia [...] a
reprovao de todas as sociedades iluminadas, e particularmente a merecem nesta
Cidade em razo do calor athmosfrico, e da pouca largura das ruas.67
63MARROCOS, 1939, op. cit., p. 163.64SILVA, Manoel Vieira da. Reflexes sobre alguns dos meios propostos por maisconduncentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro. Por ordem de S.A.R.Rio deJaneiro: Impresso Rgia, 1808. p. 11.65Ibid., p. 26.66Segundo Luccock apenas os grandes da terra eram enterrados em edifcios sagrados. LUCCOCK,1975, op. cit., p. 38-40.67SILVA, 1808, op. cit., p. 12.
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Era imprescindvel que todos os fatores causadores das molstias fossem, se
no resolvidos inteiramente, ao menos suavizados. As solues seriam muitas:
criao de uma poltica mais rigorosa na rea da sade, como a regulamentao de
taxas obrigatrias sobre as drogas a serem vendidas pelos boticrios68, aterro de
pntanos, encanamento de esgoto, mudana na localizao dos matadouros,
construo de novos cemitrios.
Em certos aspectos, o trato negreiro tambm passou a ser visto de forma
depreciativa para a sade da populao branca, visto que desde os primrdios da
poca colonial os negros recm-chegados da frica eram equivocadamente
considerados os nicos responsveis pela veiculao de diversos tipos de
molstias.69Ao tempo da transferncia da corte, 2/3 dos habitantes fluminenses eram
pretos ou descendentes. Logo, era praticamente impossvel que aspectos culturais e
sociais africanos no prevalecessem na cidade. Em 1821 a populao de escravos
quase se equiparava com a de pessoas livres na cidade do Rio de Janeiro:
TABELA 1 Populao da corte e provncia do Rio de Janeiro em 1821
Districtos Freguezias Fogos No. daspessoas livres
No. dosescravos
Total
Cidade do Santa Rita 1.742 6.949 6.795 13.744
Rio de SantAnna 1.351 6.887 3.948 10.835
Janeiro Sacramento 3.352 12.525 9.961 22.486
1, 2 e 3 Candelaria 1.434 5.405 7.040 12.445
Regimentos So Jos 2.272 11.373 8.438 19.811
Total 10.151 43.139 36.182 79.321
Fonte: FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Mapa da populao da corte e provncia do Rio de Janeiroem 1821.Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 1870, t. 33. p. 135-142.
68Alvar pelo qual o prncipe regente D. Joo houve por bem determinar vrias providnciassobre os boticrios e sobre os preos das drogas.Rio de Janeiro, 27 de junho de 1808.69Sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro do sculo XIX, consultar KARASCH, Mary. A vidados escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 643p. Nesta
obra, a historiadora norte-americana aborda a questo do cotidiano escravista, abrangendo, desde aorigem tnica e a insero dos escravos na sociedade fluminense que colaboraram para odesenvolvimento da cultura afro-carioca , at a condio de vida e formas de resistncia dosmesmos.
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Eram os escravos os grandes responsveis pelo movimento e barulho das
ruas, com constantes cantos e gritos. O trabalho dos mesmos era dos mais variados,
indo de carregadores a vendedores de diversos gneros.70 O estardalhao
ensurdecedor proveniente das ruas do qual os prussianos Spix e Martius se
queixaram em 1820 tambm era provocado por sinos, tiros de canhes, foguetes,
carroas, carros de bois, guarda policial, etc.71 Alm da mercadoria humana a
trabalhar para seus senhores, poucos eram os que se aventuravam a andar a p
pelas ruas. No era de bom-tom que pessoas de alta estirpe caminhassem em um
espao pblico entendido como um espao que, alm de frequentado por escravos e
por grupos sociais subalternos, tambm era depsito de todo tipo de lixo. Grande
parte da populao possua cavalos, porm apenas a alta camada fluminensepossua outros meios de transporte como a sege e a traquitana.72
A riqueza da famlia branca fluminense do incio do sculo XIX podia ser
percebida, dentre outros fatores, de acordo com o nmero de escravos. Muitas
vezes eles eram separados conforme a diviso do trabalho; no meio urbano havia
escravos que faziam os servios externos e os domsticos. Estes cuidavam em
geral da limpeza da casa e do preparo da alimentao dos senhores, tudo sob o
olhar da mulher branca. Com uma educao voltada para o matrimnio e para aprocriao, o sexo feminino raramente saa s ruas, a no ser para o cumprimento
de prticas religiosas ou em espordicas ocasies.73O viajante prussiano Leithold
notou essa recluso:
A passear so raramente vistas, pelo menos nunca encontrei senhora dealguma importncia assim ocupada e, como muitas casas tm suas capelasou oratrios em que se reza missa nos dias de guarda, uma exceo quese deixem ver a p pelas ruas.74
Seus hbitos reclusos e indolentes, somados falta de instruo, conferiam-
lhes uma velhice prematura: aos doze, treze anos casavam-se, aos dezoito
tornavam-se maduras e aos vinte e cinco, trinta anos j estavam velhas, gordas e
desajeitadas. Ebel ficou admirado com tanta negligncia: sem o menor
conhecimento da economia domstica, deixada de todo nas mos de escravos, sem
70MALERBA, 2000, op. cit., p. 141-142.71SPIX, Von; MARTIUS, Von.Viagem pelo Brasil.3. ed. So Paulo: Melhoramentos, 1976, v. 1. p.45.72SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821).2. ed. So
Paulo: Companhia Nacional, 1978. p. 25-30.73MALERBA, 2000, op. cit., p. 150-153.74 LEITHOLD, Von; RANGO, Von. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. SoPaulo: Editora Nacional, 1966. p. 28.
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educao espiritual e, mesmo seus hbitos caseiros, sem graa ou asseio,
dificilmente agradaro a quem for exigente.75
interessante observar que em Lisboa Carrre obteve semelhante impresso
acerca das ricas portuguesas. Privadas de liberdade, era incomum aparecem em
pblico. clausura somava-se a falta de ocupao:
No interior das suas casas vivem na maior ociosidade; foram acostumadasa no fazer nada nunca pegam numa agulha, no abrem um livro epassam o dia entre a janela e uma cadeira, na qual ficam preguiosamenteamesendadas, repousando tristemente a sua indolncia e o seu tdio.76
Assim desenhavam-se os costumes ao tempo da vinda da corte. O impacto
daquela influenciaria os hbitos scio-culturais fluminenses.
Empreendimentos civilizacionais
Importante conseqncia da transformao civilizatria, a abertura de
instituies de ensino e de aulas particulares, tanto para homens quanto para
mulheres, veio acompanhar o cosmopolitismo no qual o Rio de Janeiro se achava
inserido.77
A instruo masculina, mais diversificada que a feminina, era facultada porreinis e por eclesisticos, ambos acostumados com o ensino em Portugal. O
anncio feito pelo portugus Antonio Maria, na Gazeta do Rio de Janeiro, peridico
fluminense publicado entre 1808 e 1821, evidencia isso: Antonio Maria Barker,
Professor das primeiras letras na Cidade do Porto, intenta occupar-se nesta Corte
ensinando por cazas particulares: quem quizer servir se delle para este fim pde
fazello constar [...].78
A maioria das aulas era voltada a meninos bem nascidos, visto que sepagava caro pela docncia. Os mestres geralmente ministravam as aulas em
habitaes particulares, como se observou no anncio anterior, mas tambm em
suas prprias casas. As freqentes propagandas feitas na gazeta nos mostram que
existia uma grande oferta pela instruo. Em 1810, um mesmo profissional
ministrava variados contedos curriculares:
75 EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. So Paulo: Companhia Nacional,1972. p. 190.76CARRRE, 1989, op. cit., p. 46-47.77MALERBA, 2000, op. cit., p. 164-165.78GAZETA DO RIO DE JANEIRO.Rio de Janeiro: Impresso Rgia, 1817, n. 5.
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Um sugeito approvado em Mathematicas, que explica as differentes partesdesta Sciencia, e suas applicaes ao Commercio, Marinha, etc: tambem seprope ensinar Elementos de Geografia, precedidos de huma nova Theoriageral do Universo onde se explico as causas dos tres movimentos daTerra, das Mars, dos Ventos, e de outros fenomenos ainda no explicados
por principios to simplices: quem quizer procure na rua do Sabo, n. 66.79
Se havia demanda para esse tipo de servio, era porque a procura
correspondia favoravelmente. Tanto correspondia que foram criados alguns colgios,
como o Colgio Minerva, em 1813 e o Colgio de Nossa Senhora e So Caetano,
em 1816.80
Ainda que menos dinmica, a educao feminina dava sinais de melhora.
mulher branca, devia-se ensinar no apenas os misteres domsticos, mas tambm
as primeiras letras. Era essa a proposta de D. Maria do Carmo da Silva e Gama,senhora que abrira um colgio de educao em 1813, destinado s damas da
cidade,
[...] no qual ensina a cozer, bordar, marcar, fazer toucados, e cortar e fazervestidos, e enfeites, lavar fils, fazer chapeos de palha, e lava-los, e outrasmiudezas pertencentes a Senhoras; tambem ensina a ler, escrever e contar,e Grammatica Portugueza.81
Sete anos mais tarde, um casal de professores franceses oferecia suas aulas.
O marido, para meninos, e a esposa, para meninas. O mestre Monsieur Vasserot,
Membro da Academia de Lio [Lion], tem a honra de fazer saber ao publico,que abrio hum curso em que se ensina a Grammatica Franceza, aRhetorica, a Literatura, &c. O Professor far conhecer aos seus discipulostodos os authores clssicos, e lhes explicar pelo meio da analyse asciencia, que o author tem tratado.82
J a senhora Vasserot ensinava, alm dos elementos acima mencionados,
as prendas proprias de huma Senhora; taes como cozer, marcar, e bordar, tanto de
branco, como de ouro, e matiz [...].83
Podemos perceber que a dama da alta sociedade j possua um leque deopes, seja com relao s prendas do lar, seja com relao instruo. Mas as
opes no se restringiam em aprender ofcios.
No campo do entretenimento, houve criao de instituies culturais e formas
de socialibidade leigas que atendessem nobreza transplantada, vida por
79GAZETA DO RIO DE JANEIRO.Rio de Janeiro: Impresso Rgia, 1810, n. 25.80Segundo Luccock, os colgios mais tradicionais do Rio de Janeiro eram o So Jos e o SoJoaquim. LUCCOCK, 1975, op. cit., p. 49.81GAZETA DO RIO DE JANEIRO.Rio de Janeiro: Impresso Rgia, 1813, n. 92.82GAZETA DO RIO DE JANEIRO.Rio de Janeiro: Impresso Rgia,1820, n. 104.83Ibid.
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entretenimentos aos modelos europeus. Terminado em 1783, o Passeio Pblico,
com seus exticos jardins, foi um dos locais mais frequentados. vista de Luccock
ele no passou desapercebido. O Passeio Pblico, embora pequeno, perfeitamente
plano, construdo em estilo muito afetado e negligentemente mantido, reclama para
si o primeiro lugar entre os stios de divertimento do Rio.84
Outra opo no lazer era o Real Teatro de So Joo, inaugurado em 1813.
Maior e com repertrios mais variados se comparado antiga Casa da pera, o
Real Teatro tinha 1020 lugares, divididos em platia e camarote. O acesso ao
divertimento se restringia s pessoas graduadas que tinham meios de pagar o
incmodo preo de um espetculo. O aluguel de camarotes acontecia mediante
pagamentos adiantados. No incio de cada apresentao a Famlia Real recebia umelogio dramtico, que ao fim era finalizada com uma exaltao a D. Joo. Alm dos
espetculos dramticos, o Teatro servia como palco da celebrao de dias festivos
da Real Famlia alm de manifestaes polticas e militares.85 O parecer de
estrangeiros sobre o teatro se diversificava. Von Rango critica-o, comparando-o a
um grande picadeiro, destitudo de gosto e arte, a sede de um bando que tem a
petulncia de se intitular atores e artistas.86 Mas existiram aqueles que no
pouparam elogios: Internamente o edifcio tem as dimenses da pera de Berlim e de admirar-se sua decorao a ouro sobre fundo verde, a platia sendo
guarnecida de bancos e havendo trs ordens de camarotes mais uma galeria.87
Maior entrada das representaes, o So Joo serviu como local de exposio da
ostentao social, no qual cortesos exibiam suas elevadas comendas e damas uma
empetecada toilette. A representao teatral, na forma das boas maneiras,
convenes e gestos rituais, a prpria substncia de que so formadas as relaes
pblicas e da qual as relaes pblicas auferem significao emocional.
88
Representao tanto na dramaticidade de atores no palco quanto na encenao
cotidiana de atores da vida real que tinham um papel definido dentro da alta
sociedade. Era a teatralidade da corte, exemplificada por maneiras polidas no trato
cerimonioso entre a fidalguia.
84LUCCOCK, 1975, op. cit., p. 59.85No captulo O teatro da festa Jurandir Malerba estabelece relaes entre as encenaes exibidasno Teatro So Joo e a representao da corte. MALERBA, 2000, op. cit., p. 91-124.86LEITHOLD; RANGO, 1966, op. cit., p. 144.87EBEL, 1972, op. cit.,p. 80.88SENNETT, Richard. O declnio do homem pblico. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras,1989. p. 46.
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Em certa medida, o teatro proporcionou a reduo do confinamento feminino.
A mulher agora teria uma razo plausvel para se ausentar do lar que no somente
os dias de missa. E o So Joo exemplificava somente uma vertente do que o Rio
de Janeiro estava se convertendo: na sede scio-cultural e material da nobreza
transmigrada e da classe abastada fluminense, composta principalmente dos ricos
negociantes da praa.
As transformaes nas quais a nova sede imperial era agente ativo tambm
abarcaria o campo cientfico. Com a abertura dos portos s naes amigas em 1808,
h um aumento na quantidade de estudiosos e artistas europeus aportados no litoral
fluminense.
Lilia Moritz Schwarcz, em sua obra O sol do Brasil afirma que somenteaps a queda de Napoleo em 1815 que a vinda de especialistas franceses em
diferentes reas torna-se maior, devido s perseguies polticas que os artistas
bonapartistas vinham sofrendo. Ao sair do cenrio conturbado francs, eles
esperavam encontrar nos trpicos o respaldo econmico perdido - muitos tinham
cargos no governo napolenico - somado ao interesse de conhecer a paisagem sul-
americana. De acordo com a historiadora, alguns artistas se auto-convidaram a
trabalhar para D. Joo, pagando inclusive a viagem rumo ao Rio de Janeiro.Somente em um segundo momento, quando os mesmos j estavam em territrio
fluminense, que passam a ser financiados pela Coroa e so incorporados na
agenda da corte.89
J Oliveira Lima sugere que a iniciativa partiu primeiramente de D. Joo VI e
do conde da Barca em se receber artistas franceses, sob intermdio do embaixador
portugus em Paris, o marqus de Marialva. Segundo o historiador, a contratao
artstica representou uma incongruncia na desgnio da corte, uma vez que asociedade carecia mais de educao industrial que artstica. Organizados por
Lebreton, secretrio das Belas-Artes do Instituto de Frana, faziam parte do grupo os
pintores Jean Baptiste Debret e Nicolas Taunay, o arquiteto Grandjean de Montigny,
o escultor Augusto Taunay, irmo de Nicolas, o professor de mecnica Franois
Ovide, o msico Neukomm.90
89SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistasfranceses na corte de D. Joo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008. 412p.90LIMA, 1996, op. cit., p. 167-170.
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Anteriormente conhecido como colnia francesa, o grupo passou a ser
denominado posteriormente de Misso Francesa, no sentido missionrio de trazer
para os trpicos a civilidade do Velho Mundo e de tentar moldar os costumes
fluminenses aos mbitos paisagsticos, arquitetnicos e plsticos europeus. Sem
entrarmos no mrito da questo se a emigrao dos artistas franceses constituiu-
se realmente como uma misso no sentido de levar a civilizao , preciso
contudo atentar-se para os aspectos polticos, econmicos e diplomticos travados
entre Brasil e Frana na poca.91
No foram todos os artistas que se adaptaram ao ambiente tropical. Se o
arquiteto Montigny foi um dos que mais se adequou ao novo cenrio, o mesmo no
se pode dizer do pintor Taunay, que se sentiu um pouco desiludido com a novarealidade, diferente do crculo intelectual ilustrado que costumava frequentar na
Europa. Juntamente com a questo da adaptao ao novo local, outro fator se
tornaria determinante para uma boa empreitada: a disponibilidade de materiais. A
escassez desses dois aspectos foram primordiais para que o resultado no fosse
exatamente aquele idealizado pelos artistas. A forma difcil, termo utilizado por
Rodrigo Naves para designar a dificuldade encontrada pelos artistas no Rio de
Janeiro, estaria associada falta de tcnicos e profissionais, uma vez que osescravos ajudavam no trabalho; falta de materiais nobres comuns na Europa,
como o granito e o mrmore; geografia contrastante; ao prprio sistema escravista,
muitas vezes condenado por leitores das obras iluministas que eram adeptos da
liberdade individual e do desenvolvimento mecanicista.92
Apesar de algumas barreiras ao se tentar reproduzir aqui um ambiente
propcio s belas-artes, o certo que a chegada de pesquisadores e artistas das
mais variadas reas foi de extrema importncia para o desenvolvimento cultural dopas. Consequncia da poltica civilizatria de D. Joo, a vinda de estrangeiros que
pudessem colaborar em diferentes campos de estudo facilitava o intercmbio de
impresses ao abrir as portas do territrio brasileiro. Por meio de revistas europias,
folhas dirias, livros e at coletneas, o Brasil tornava-se mais conhecido no exterior.
Por conta do casamento do prncipe D. Pedro e da arquiduquesa austraca D.
Leopoldina em 1817 veio no navio que trazia a princesa uma Expedio Austraca,
91LIMA, Valria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 21- 24.92NAVES, Rodrigo. A forma difcil: ensaios sobre a arte brasileira. So Paulo: tica, 1996. 285p.
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7/24/2019 A Arte Dos Bons Costumes Na Corte Brasileira
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composta de quatorze integrantes. Dentre eles estavam o pintor Thomas Ender, os
zologos Spix e Martius, o naturalista Mikan, o mineralogista Pohl.
As pesquisas em torno da natureza brasileira ainda atraram estudiosos como
Georg Heinrich Von Langsdorff, mdico russo de formao que liderou uma
importante expedio realizada entre 1822 e 1829, percorrendo vrios estados.93
Outros nomes de equivalente peso aportaram nos trpicos, como o botnico francs
Saint-Hillaire, os j citados alemes Spix e Martius, respectivamente zologo e
botnico, o entomologista ingls Chamberlain, os naturalistas alemes Freyreiss e
Sellow, o prncipe Maximiliano I da Baviera.
Extenso das artes, a msica encontrou um campo frtil no Rio de Janeiro. J
em 1808 vieram acompanhando a corte maestros, cantores, maquinistas, msicos ealfaias. Dois anos depois a msica se tornaria mais difundida com a chegada de
Marcos Antnio