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A arte de voar: front, revolução e experiências durante a Guerra Civil Espanhola autoritarismos 5 de fevereiro de 2020 Autoritarismos Autores (as): Bruno Tavares; Marina Garcia; Matheus S. Fernandes; Muriel Cristina; Santiago S. Dias; Wagner De Carvalho. Introdução A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) faz parte de um dos momentos mais significativos e catastróficos da história, representando um prelúdio da destruição que seria trazida pela Segunda Guerra Mundial. Desde o princípio do século XX, a monarquia parlamentarista espanhola vinha enfrentando sucessivas crises econômicas e políticas, que desencadeavam grande frustração na população. Logo, as movimentações nos sindicatos e partidos de esquerda começaram a fervilhar, e acabaram sendo duramente reprimidas pela ditadura fascista instaurada em 1923, pelo general Primo de Rivera. Contudo, a pressão popular se manteve mesmo após a queda de Rivera e, em 1930, foi proclamada a República, e a família Real foi exilada na Itália. Essa reviravolta política levou a Espanha a uma nova realidade, onde muito foi investido para que se tornasse mais democrática, tendo atenção especial para a educação básica e reforma agrária. Visto que a elite espanhola era composta, principalmente, por grandes proprietários de terras, militares e o alto Clero, essas transformações criaram tensões cada vez mais intensas entre os setores conservadores e republicanos, levando à criação da Falange Tradicionalista Espanhola das Juntas Ofensivas Nacional-Sindicalista, um grupo de direita que visava refrear as medidas vistas como fruto de inspiração socialista. Entre 1931 e 1936 houve muita instabilidade, onde o clima político se radicalizava profundamente, levando a invasões de terras, destruição de templos e muita repressão. Iniciou-se uma polarização clara, que resultou na formação da Frente Popular, em Fevereiro de 1936, reunindo diversos setores democráticos e de esquerda sob a liderança de Manuel Azaña, o então presidente eleito. É nesse momento que, sob o comando do general Francisco Franco, as forças armadas se rebelaram e tomaram o poder através de um golpe de Estado, realizado em 17 de Julho de 1936. O Golpe criou uma divisão imediata, de um lado, os falangistas e outros grupos conservadores- apoiados pelos países fascistas: Itália e Alemanha – e, de outro, os republicanos, entre os quais os democratas e as esquerdas, sendo o Partido Comunista Espanhol alinhados à União Soviética. Os republicanos receberam apoio de Brigadas Internacionais, compostas por voluntários de muitos países. A divisão acirrada deu origem à Guerra Civil espanhola.

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A arte de voar: front, revolução eexperiências durante a GuerraCivil Espanhola

autoritarismos 5 de fevereiro de 2020 Autoritarismos

Autores (as): Bruno Tavares; Marina Garcia; Matheus S. Fernandes; Muriel Cristina; Santiago S. Dias; Wagner De Carvalho.

Introdução

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) faz parte de um dos momentos mais significativos e catastróficos da história, representando um prelúdio da destruição que seria  trazida pela Segunda Guerra Mundial. Desde o princípio do século XX, a monarquia  parlamentarista espanhola vinha enfrentando sucessivas crises econômicas e políticas, que desencadeavam grande frustração na população. Logo, as movimentações nos sindicatos e  partidos de esquerda começaram a fervilhar, e acabaram sendo duramente reprimidas pela  ditadura fascista instaurada em 1923, pelo general Primo de Rivera. Contudo, a pressão popular se manteve mesmo após a queda de Rivera e, em 1930, foi proclamada a República, e a família Real foi exilada na Itália. 

Essa reviravolta política levou a Espanha a uma nova realidade, onde muito foi  investido para que se tornasse mais democrática, tendo atenção especial para a educação  básica e reforma agrária. Visto que a elite espanhola era composta, principalmente, por  grandes proprietários de terras, militares e o alto Clero, essas transformações criaram tensões cada vez mais intensas entre os setores conservadores e republicanos, levando à criação da  Falange Tradicionalista Espanhola das Juntas Ofensivas Nacional-Sindicalista, um grupo de direita que visava refrear as medidas vistas como fruto de inspiração socialista. 

Entre 1931 e 1936 houve muita instabilidade, onde o clima político se radicalizava profundamente, levando a invasões de terras, destruição de templos e muita repressão. Iniciou-se uma polarização clara, que resultou na formação da Frente Popular, em Fevereiro  de 1936, reunindo diversos setores democráticos e de esquerda sob a liderança de Manuel Azaña, o então presidente eleito. 

É nesse momento que, sob o comando do general Francisco Franco, as forças armadas se rebelaram e tomaram o poder através de um golpe de Estado, realizado em 17 de Julho de 1936. O Golpe criou uma divisão imediata, de um lado, os falangistas e outros grupos conservadores- apoiados pelos países fascistas: Itália e Alemanha – e, de outro, os republicanos, entre os quais os democratas e as esquerdas, sendo o Partido Comunista Espanhol alinhados à União Soviética. Os republicanos receberam apoio de Brigadas Internacionais, compostas por voluntários de muitos países. A divisão acirrada deu origem à Guerra Civil espanhola.

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Após três anos de conflito, o saldo foios e  incontáveis desaparecidos. Com a vitória dos golpistas liderados por Franco, os grupos republicanos e de esquerda foram obrigados a fugir, e aqueles que restaram foram mortos ou enviados para prisões e  campos de concentração. O governo optou por manter a Espanha afastada do combate direto da Segunda Guerra Mundial, mas flertou diretamente com o nazismo através da venda de armas e o envio de forças de guerra no ataque à União Soviética, configurando-se, portanto, um alinhamento ideológico autoritário e fascista. 

Os traumas sociais causados pelos muitos anos de conflito permanecem estampados  na memória dos espanhóis, impulsionando debates até os dias atuais, e encontrando alívio,  principalmente, através das expressões artísticas. Obras como Guernica, de Pablo Picasso,  além de diversos romances e obras poéticas e cinematográficas, expressam a intensidade com a qual a Espanha sofreu e ainda sofre os efeitos da Guerra Civil. 

Após os anos 1980, as histórias em quadrinhos – ainda não consideradas como novelas gráficas – deram uma nova voz aos relatos de guerra. Os traumas deixados nos soldados do front passam a atribuir rostos e nomes para a dor compartilhada pela nação,  levando à produção de obras primas como as aqui citadas, A Arte de Voar e Asa Quebrada,  de Antonio Altarriba e Kim. 

A primeira, lançada em 2009, e que rapidamente ganha sucesso nacional e internacional, angariando prêmios como o destaque no Salão Internacional dos Quadrinhos em Barcelona e o Prêmio Nacional de Comic (Espanha), relata as experiências de Antonio Altarriba Lope – pai do autor – no front da Guerra Civil, lutando ao lado dos anarquistas.

Antonio Altarriba

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Já no ano de 2018, Altarriba lançou sua segunda HQ, Asa Quebrada, onde agora conta a história de sua mãe, Petra, que, ao contrário de seu pai, dedicou sua vida a ser discreta, cuidadosa, e chamar pouca atenção. Durante a trama, é possível conhecer um outro lado da Guerra Civil, composto por personagens que resistiram e sobreviveram através do silêncio, da espera, e da proteção incondicional àqueles que amavam.

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Com igual repercussão, a obra tem recebido os principais prêmios espanhóis do universo das HQs, e nos permite estabelecer um interessante contraponto sobre as diversas faces da Guerra Civil, bem como seu impacto, não apenas naqueles que foram para o campo de batalha, mas também nos que aguardaram seus pais, filhos, maridos e irmãos, lidando com a destruição posterior e encontrando formas alternativas de continuar suas vidas e recuperar a esperança.

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Em 1936 estourou aquilo que seria conhecido como Guerra Civil Espanhola, um conflitoque opôs dois grupos, os Republicanos (comunistas e anarquistas principalmente,  bemcomo democratas) e os Nacionalistas (monarquistas, católicos, falangistas e carlistas). 

Neste combate, no entanto, ao contrário do que usualmente pensamos sobre a guerra,como  uma trama que tem apenas os soldados e seus representantes políticos comoprotagonistas, há  muito mais do que isso. Por trás dos disparos do front há tambémpessoas reais que lutam para sobreviver e se adaptar às situações que lhes são impostas;trabalhadores liberais, donas  de casa, ambulantes e camponeses participaram direta ouindiretamente da guerra, muitas vezes com problemas próximos aos de seus avós ou outrosconhecidos de mais idade. 

Estas pessoas reais são retratadas em ambas as obras de Antonio Altarriba, A arte de voare Asa quebrada. O primeiro conta sobre a vida de seu pai, que tinha o mesmo nome,Antônio, e o segundo é sobre sua mãe, Petra. Antes de mais nada, cabe falar sobre o que eraa vida na Espanha antes da guerra; para homens e mulheres. A história, em A arte de voarcomeça com a seguinte frase: “Meu pai, que agora sou eu, não tem boas lembranças desua infância. Quando ele tinha oito anos de idade, deixou de ir à escola para trabalharno campo.”

O cotidiano em tempos de guerra

ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p. 13.

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Figura 2 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p. 16.

Ele então foge para a cidade, onde a vida não é muito melhor: trabalho braçal a troco de centavos, maus tratos, insegurança.

Como bem representado na figura acimaa bastante rural, as preocupações que as antigas gerações projetavam nas  novas diziam respeito ao plantio e ao aumento da terra.

Estudos e formação profissional eram dispensáveis. Para o pai do personagem, por exemplo, sua família era de camponeses e essa era invariavelmente sua vocação, sendo levada até mesmo aos filhos de seus filhos. Antônio não se encaixava, realmente não gostava do campo: um lugar de obediência completa ao pai, de gastos de energia e dores no corpo  pelo trabalho no campo , bem como de estratégia para aumentar o tamanho de terras.

Figura 3 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p. 21.

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Figura 4 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p. 26.

O mundo, para Petra, mãe do autor, é tão difícil quanto para Antônio. Quando ainda era um bebê, seu pai tentou matá-la, devido à morte da mãe em seu parto. As mulheres da família o impedem, mas seu braço é quebrado durante a violência e ela torna-se aleijada pelo  resto da vida. Como destacado, além de ser um país rural, a Espanha se organizava em vilarejos. Assim, num lugar onde todos conhecem a todos, em seus primeiros anos de vida  Petra é cuidada pelas mulheres da vila. Logo percebemos como o papel social destas mulheres é essencialmente de ser mãe, por mais progressista que possa parecer o ambiente familiar, já que, além de barbeiro, o pai de Petra era também um dramaturgo.

Quando o tio perde a loja em que ele  trabalhava como carregador, Antônio é obrigado a voltar para o campo. Com as mesmas  rotinas e a fama de ter fracassado na aventura, as crianças arrumam estratégias para aprender e criar.  

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Figura 5 – ALTARRIBA, Antônio. Asa quebrada, p. 39

A HQ apresenta também qual o futuro das mulheres idealizado naquela Espanha de início do século XX: não precisam aprender a ler e a escrever, afinal serão apenas donas de casa. A religião é  também o maior sustento para ela e outras: a famosa figura da beata, a qual perseguirá com o passar dos anos, diferente da figura de Antônio que, como um anarquista, menospreza a  religião e sua instituição.  Para ambos os personagens, Antônio e Petra, a experiência da guerra se mistura com as dificuldades do dia-a-dia. Mesmo que não estejam lutando fardados na frente de batalha, eles participam como protagonistas das mudanças trazidas pelos conflitos na Espanha.

Figura 6 – ALTARRIBA, Antônio. Asa quebrada, p. 51

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Ainda que não tenha sido elevada à heroína de sua tragédia, Petra compartilhava dos novosares do momento, mesmo em sua modéstia, ditando normas quanto a seus direitos sexuais,zelando  por sua família em meio a mudanças de casa, na perda de dinheiro, ou mesmofrente às decepções com a Igreja à qual dedicou boa parte de sua vida. Antônio, de maneiradiferente  de sua esposa, também viveu aqueles anos, mobilizando seu próprio discursopolítico a favor da derrubada dos muros. 

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Seja como for, o cotidiano é capaz de, das  repetições, da monotonia, um universo de atuação política, de transformações e rupturas com o que estava engendrado na sociedade espanhola desde a Idade Moderna. O título de ambos os quadrinhos auxilia na compreensão dessa atuação. O sonho de voar está presente em toda a  narrativa de Antônio, assim como o braço quebrado de Petra está presente em toda sua história. Voar acima dos muros, das divisas e das fronteiras, acima das ideias rasas e fracas. O voo de Antônio tarda a se concretizar, vem no fim de sua vida, em gesto de renúncia àquilo que não pôde ser e viver. Petra tem sua asa quebrada, desde o seu nascimento; quer voar.  Altarriba nos fornece, através da história de seus pais, a realidade nua e crua dos que ficaram  à margem dos livros de história, das histórias heróicas.

Talvez sua maior contribuição seja, justamente, uma imagem crua e tátil da Guerra, que não possui os temperos típicos do cinema ou dos romances, onde estamos habituados a ver os grandes heróis cometendo suas façanhas maravilhosas, ou as mazelas incompreensíveis, que nos dão uma demonstração do que o ser humano possui de mais desumano. Altarriba nos apresenta um homem e uma mulher de “carne e osso”, sem exagerar nos louros ou nos horrores, mas precisamente mergulhando nos sonho e medos que moveram  pessoas comuns durante os muitos anos de conflitos. 

É através da história de pessoas como nós, mas que viveram realidades que nunca vivemos, que podemos desconstruir a mitologia que torna a temática das guerras sempre tão  interessante aos jovens, mas pelos motivos errados. A recuperação da noção de sofrimento e esperança pode nos levar a reconhecer nos personagens reais aquilo que há em nós mesmos e,  assim, podemos criar empatia, nos lembrando de forma mais vívida como é importante manter a paz. 

Discursos polarizados

A partir do século XIX, com suas crises, ligadas, sobretudo, ao imperialismo e à  industrialização, as populações sofreram com a pobreza, com a fome e, nas cidades, com  condições subumanas de moradia e de trabalho (HOBSBAWM, 1995 e MAZOWER, 2001).

Figura 7 – ALTARRIBA, Antônio. Asa quebrada, p. 54

Ainda que não tenha sido elevada à heroína de sua tragédia, Petra compartilhava dos novos ares do momento, mesmo em sua modéstia, ditando normas quanto a seus direitos sexuais, zelando por sua família em meio a mudanças de casa, na perda de dinheiro, ou mesmo frente às decepções com a Igreja à qual dedicou boa parte de sua vida. Antônio, de maneira diferente de sua esposa, também viveu aqueles anos, mobilizando seu próprio discurso político a favor da derrubada dos muros.

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Figura 8 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p.43

No entanto, deixa-se de acreditar nesse modo de governo, dadas as sucessivas crises  econômicas, geradas tanto pela Primeira Guerra Mundial e “quebra” de bolsas de valores  (crise de 1929), e também pela própria constituição desse regime, que privilegia interesses  privados dentro da esfera pública de governo (MAZOWER, 2001 e ARENDT, 1993). Assim,  durante o conflito da guerra civil, grande parte da população pobre se “deixou levar” pelos discursos fascistas, representado, por exemplo, por um dos amigos de infância de Antônio que se tornara franquista no retorno para a sua cidade. 

Para os anarquistas, a própria formulaçã consequentemente, injustiça social, já que, para eles, só houve uma troca de quem está no  poder. Desse modo, haveria um atrito entre essas duas ordens e um, ainda maior, contra a  social-democracia, representada, principalmente, pela República e pelas instituições  parlamentares/representativas (como num congresso nacional). A discussão, para esses  últimos, girava em torno de a elite burguesa assegurar que a população empobrecida  continuasse nutrindo esse sistema capitalista e que houvesse continuidade, por parte dessa  elite, de seu poder (MARX, 2012). Para isso, dado o saldo econômico positivo que o imperialismo trouxe(ARENDT, 2012), propunha-se mecanismos de “acalmar” essa população como, por exemplo, salários mínimos e uma jornada menor de trabalho. Assim, conseguiria-se evitar a revolução do proletariado e a elite permaneceria no poder, fomentando seus interesses sob a população trabalhadora e gerando mais lucro. 

Na HQ, o contexto espanhol deixava esses discursos “misturados” e quase indiferenciáveis, ainda que perceptíveis. Como visto, a personagem principal, Antonio, no  período monárquico, era pobre e morava numa zona afastada dos centros urbanos. Com o começo da República, a social-democracia fomentava um discurso de liberdade e expectativa  de enriquecimento econômico, representado pelo crescimento e urbanização das cidades. 

Nesse sentido, os movimentos sociais foram se organizando para solucionar esses embates, isto é, os discursos alcançaram visibilidade e apoio dessas pessoas que tanto sofriam dessas mazelas. Em seguida, projetos e discussões foram formulados entre os intelectuais e a população. Obviamente, dado o caráter plural e complexo das necessidades e exigências dessas pessoas, o “palanque de discussões” se tornou variado. Como exemplo disso, houve a discussão entre o comunismo marxista, o anarquismo e a social-democracia.

Desse modo, considerando as populações que sofriam com as consequências do regime capitalista, os marxistas, de acordo com Fitzpatrick (2017), propunham que, depois da revolução burguesa (acertada, sobretudo, pela industrialização e pelos problemas advindos dela), a população trabalhadora (o proletariado) ganharia consciência de classe e, consequentemente, por meio de uma revolução abrupta, o proletariado se tornaria o detentor do poder no Estado para, em seguida, tendo-se socializado todo o trabalho e toda propriedade privada, a injustiça social se extinguir.

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Figura 9 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p.49

Em resposta, a população revolucionária, junto da republicana, se volta contra esse regime. No entanto, essa camada politizada, como se percebe na ambientação cotidiana das  falas das personagens, não se identifica com o discurso “burguês” (o republicano) e nem com o comunista (na época, representado por Stalin, que, inclusive, abastecia com armamento os exércitos republicanos na guerra civil), por entenderem que, nesses dois sistemas, ainda haverá injustiça social, sobrando apenas a perspectiva anarquista para equacionar os problemas sociais (SALVADO, 2008 e ORWELL, 2006). 

Figura 10 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p.64

Figura 11 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p.42

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A decepção com a República viria, representada na HQ, com a passagem de Antônio  na região da França, símbolo democrata naquela região. Pois esta, durante o conflito contra as forças de Franco, “isolou” republicanos fugitivos exaustos em campos, onde não havia comida, abrigo e, muito menos, saneamento adequados. Essas condições de vida impostas, na  verdade, eram um convite deliberado para que fugissem e retornassem à Espanha (SALVADO, 2008). Com isso, todo o desenvolvimento narrativo de Antônio e das personagens que o acompanham na sua juventude política possuem o anarquismo como objetivo ideal de um regime sócio-político. 

Figura 12 – ALTARRIBA, Antônio. A arte de voar, p.77

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A arte de voar e filmes: um diálogo

O Labirinto do Fauno

Em 2006 chegou aos cinemas o filme O Labirinto do Fauno, uma produção hispano-mexicano-estadunidense, um dos destaques quando pensamos acerca do contexto espanhol do fim da primeira metade do século XX. Escrito e produzido pelo mexicano Guillermo del Toro, atualmente tem seu gênero classificado em: fantasia sombria; suspense; drama e aventura.

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Ambientado no ano de 1944, em um contexto de pós-guerra civil espanhola, Ophelia é umagarota que, junto de sua mãe grávida, acaba sendo obrigada a conviver com seunovo padrasto, capitão Vidal. O novo companheiro de sua mãe, é conhecido por controlarcom rigor seu destacamento, retratando um militar leal ao regime franquista – apesar denão haver  citações diretas. As características que destacam sua personalidade são osadismo e o preconceito. No filme é retratado um pouco do dia a dia de um posto militar,uma força militar ligada a uma ditadura. Ophelia acaba se envolvendo em uma trama defantasia e repleta de seres mágicos, tendo de lutar contra seu terrível padrasto ao mesmotempo em que pretende salvar sua mãe e seu recém nascido irmão. 

A produção vale o destaque, pois retrata alguns aspectos de uma sociedade espanhola pós-guerra civil, e evidencia uma configuração social focada nos valores tradicionais, tendoo rigor religioso e patriarcal como sustentação. Filme bem recebido pelo público e vencedorde três oscars, Guillermo Del Toro narra uma excelente trama.

A Língua das Mariposas

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Outra obra que aborda as relações cotidianas com a guerra civil é o drama histórico espanhol La lengua de las mariposas, lançado em 1999. Dirigido por José Luis Cuerda, tem seu roteiro baseado em três contos presentes no livro ¿Qué me quieres, amor?(1996), do poeta galego Manuel Rivas. O conto principal leva o mesmo nome do filme, e serve de fio condutor para a narrativa, sendo que os outros dois, “Un saxo en la niebla” e “Carmiña”, se entrelaçam com o primeiro.

O drama se passa no começo do ano de 1936, e nos coloca frente a frente com Moncho (Manuel Lozano), um menino sagaz que está com medo de uma grande mudança prestes a acontecer em sua vida: o ingresso na escola. O que mais lhe causa preocupação é a figura do professor, pois segundo boatos que ou medonhas que repreendem os alunos por qualquer deslize, podendo inclusive usar de  agressão no ensino. Para a grande surpresa de Moncho, seu primeiro professor se difere completamente da imagem esperada. Don Gregório (Fernando Fernán Gómez) é um senhor  cortês e simpático, muito atencioso e preocupado com a vida e educação de seus alunos, mostrando para nosso jovem protagonista que não há nada a temer. Aos poucos o mestre  ensina a seus alunos sobre poesia, liberdade, a magnificência da natureza, e assuntos que lhes  dêem a capacidade de interpretar o mundo e carregar valores. E o menino, fascinado e sempre  muito ávido pelo conhecimento, começa a desenvolver um amor vivaz pela escola e os mistérios e belezas da vida. 

O filme é tocante e possui um ritmo lento e constante, que acompanha o olhar de Moncho e vai entrelaçando seus aprendizados com o cotidiano da cidade rural em que ele  vive, no interior de Galiza, noroeste da Espanha. Lá pelas tantas, a relação entre os moradores da cidade e os acontecimentos locais começam a se metamorfosear, na medida em que a  polarização política aumenta no país, fruto da guerra que vem acontecendo em Madri. A  tensão aumenta, as pessoas ficam mais violentas, e após o golpe de Estado de julho do mesmo ano, esquerdistas e professores passam a ser caçados. Grande parte das pessoas que desapareceram nesse período nunca foram encontradas. 

Ao final, acompanhando a visão de Moncho, vemos como as consequências desse evento abalaram a vida das pessoas da cidade. O menino tem um papel irrelevante para o desfecho geral do cenário, mas a forma como vê as coisas e passa a interpretar o mundo depois dos ensinamentos de seu mestre, mudara sua vida por completo. 

Para o professor: proposta didática

Pensando em auxiliar os professores com um material didático alternativo, as obras apresentadas podem ser de grande valia por facilitarem a aproximação dos alunos com as temáticas da Guerra Civil Espanhola, das mudanças sociais e políticas que aconteceram na Espanha, e dos fascismos. Além de trazer abordagens de ângulos diferentes sobre um mesmo assunto, possibilitando a construção e o desenvolvimento de narrativas dentro de sala de aula pelos alunos, instigando sua percepção e facilitando o aprendizado. 

Para tanto sugere-se que o professor apresente uma ou mais obras como porta de entrada para o desenvolvimento do assunto. Através de uma breve leitura das obras é interessante questionar aos alunos sobre quais foram suas percepções e de que maneira sentem-se  influenciados pelo material apresentado, utilizando assim os depoimentos levantados como gancho para iniciar a discussão histórica. Em seguida, faça um debate com a turma sobre o panorama social antes e depois da movimentação política e dos embates da guerra.

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ALTARRIBA, Antonio; KIM. A arte de voar. São Paulo: Editora Veneta, 2018. 

ALTARRIBA, Antonio; KIM. Asa quebrada. São Paulo: Editora Veneta, 2018. 

ARENDT, Hannah. A esfera pública: o comum; A esfera privada: a propriedade e O social e o privado. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 59-82.

 COSTA, Maria do Carmo Cardoso da. Cultura e Resistência na Guerra Civil Espanhola. Cadernos. Letras UFRJ 

FITZPATRICK, Sheila. A revolução russa. São Paulo: Todavia, 2017. 

GARCÍA, Hugo. A Historiografia sobre a Guerra Civil Espanhola no início do século XXI. 70 anos da Guerra Civil Espanhola. Revista de Relações Internacionais, jun. 2006. 

 HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1941-1991). SãoPaulo: Companhia das Letras, 1995. 

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. 

MARTIN, Ivan Rodrigues. As linhas de força do romance gráfico sobre a Guerra Civil Espanhola. Dossiê: Revista Caracol, 2011. 

MAZOWER, Mark. O templo deserto: ascensão e queda da democracia e A crise do capitalismo. In: Continente sombrio – A Europa do século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17-52 e 113-145.

ORWELL, George. Homenagem à Catalunha. In: Lutando na Espanha. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 25-258.  

SALVADO, Francisco. A derrota da república e Epílogo. In: A Guerra civil espanhola. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 207-249.

SANTOS, Maria Cristina Ferreira dos. A Guerra Civil Espanhola narrada pelos vencidos: George Orwell e soldados voluntários brasileiros. História Unicamp, v. 4, n. 7, jan./jun. 2017.

A  intenção aqui é que os alunos tenham a possibilidade de evocar seus saberes pessoais se  relacionando com elementos próximos de sua realidade e presentes nas obras, comopor exemplo a figura de Moncho em A língua das mariposas – uma criança que vai a Escola e se relaciona com a vizinhança -, ou o cotidiano cru presente em A arte de voar – mostrando os percalços vividos por Altarriba Lope antes e depois de sua atuação na guerra. E então, a partir daí, construir uma narrativa até alcançar os elementos curriculares a serem desenvolvidos.

Referências Bibliográficas

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