a arte de fábio noronha
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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN
A ARTE DE FÁBIO NORONHA
Monografia apresentada para a obtenção do título de Especialista no curso de Pós-graduação em História da Arte do Século XX, Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Orientadora: Profª Drª Dária Jaremtchuk
CURITIBA PR
2006
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AGRADECIMENTOS
À Daria, orientadora e amiga, pelo estímulo e competente
orientação durante a pesquisa.
Ao Fábio, pela generosidade e disposição em contribuir para o
estudo.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................... 3
CAPÍTULO I
As pinturas: tempo espaço e identidade................................................... 6
CAPÍTULO II
Enfim, a fotografia..................................................................................... 19
CAPÍTULO III
Da aura às séries...................................................................................... 24
CAPÍTULO IV
Novas mídias, novos meios...................................................................... 34
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 43
ANEXOS................................................................................................... 46
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INTRODUÇÃO
Fábio Noronha é um artista contemporâneo paranaense cuja trajetória tem
pouco mais de quinze anos. Tem seu trabalho desenvolvido a partir dos anos 90,
quando ainda era aluno da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, onde fez o
curso superior de Pintura entre 1989 e 1993. Inicialmente pintor, Fábio também se
dedicou muito ao desenho, mas foram suas pinturas do início da carreira que o
projetaram como artista, e o introduziram na discussão de arte produzida no Paraná.
Pertence, portanto a uma geração posterior à dos anos 80, quando a pintura havia
retornado com toda força, e a maioria dos artistas tinha no gestualismo e no
tratamento da matéria resgatado algumas vertentes da abstração informal dos anos
50, renovando a tradição modernista da pintura.
Fabio Noronha apresenta um caminho que inicia com pintura e desenho e vai
se transformando com a utilização de diversas linguagens, materiais, meios e
procedimentos como: fotografia, vídeo, imagem digital, áudio, instalação ou qualquer
outro que lhe dê o suporte necessário para suas questões poéticas e estéticas.
Em 1993, o artista recebe quatro prêmios importantes, que o tornam
conhecido no âmbito nacional: Prêmio Xapuri em Goiânia na “3ª Bienal de Artes de
Goiás”; Prêmio Cidade do México em Curitiba no “Curitiba Arte 9”; 2º Prêmio do “13º
Salão de Artes Plásticas” do Rio de Janeiro e o mais importante, por ser na sua
cidade, o Prêmio Governo do Estado do Paraná no “50º Salão Paranaense”. Em
1994 recebe mais duas premiações: Menção Especial no “1º Salão da Bahia de
Artes Plásticas” no Museu de Arte Moderna de Salvador, e o 3º Prêmio no “3º Salão
Paraense de Arte Contemporânea” em Belém.
Nas matérias de jornais sobre suas várias exposições dos anos 90, não é
difícil encontrar elogios ao jovem pintor, apontado como um dos maiores talentos de
sua geração. Num texto de 1994, Tadeu Chiarelli, crítico que acompanhou de perto
esses primeiros anos de Fabio Noronha, mais especificamente entre 1991 e 1993,
escreve: “No início suas pinturas já denotavam um jovem artista investindo fundo na
pintura gestual, (…)e a síntese entre o linear e o pictórico mostrava uma
complexidade que afastava sua pintura da vala comum onde repousa a maioria dos
praticantes do gestualismo no Brasil(…)”. 1
1 CHIARELI, T. A autocrítica do Gestualismo. Texto para catálogo. Museu da Arte Contemporânea do Paraná. Curitiba, 1994.
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4
À medida que o trabalho foi se desenvolvendo, novos meios são utilizados
pelo artista para dar conta das questões que vão surgindo, pois é no embate do
processo que aparecem as proposições mais importantes do seu trabalho.
A coisa funciona mais ou menos assim: projeto alguma coisa, tenho alguns pressupostos e faço o trabalho a partir desses pressupostos, que não são evidentemente exatos; uma vez o trabalho pronto, olho aquilo que tenho; e daí com essas três partes - aquilo que projetei, o que tenho e aquilo que olho no objeto - posso investigar em que medida aquilo que propus deu certo ou não. Normalmente as falhas são as partes mais interessantes para mim.2
Suas pinturas, de 1993 a 1996, falam de espaço, e não somente o espaço
intrínseco, mas do espaço da arte. Além do seu gesto, das palavras que utiliza como
imagens, todas as discussões formais que se apresentam nessas pinturas
expandem-se em discussões estéticas mais amplas, com proposições inclusive de
um novo espaço da arte para o mundo. A ambigüidade presente nesses trabalhos já
era considerada uma forte característica da arte contemporânea há pelo menos 30
anos e remete ao pensamento de Umberto Eco, para quem esta era uma das
“finalidades da obra de arte contemporânea”.3
Em toda a trajetória do artista é possível perceber uma forte relação entre os
trabalhos. As questões que aparecem em uma pintura, são tratadas, discutidas, e,
soluções são buscadas na pintura seguinte. A partir de 1995, sua produção passa a
ser feita em séries, e essa conexão presente nas pinturas vai se repetir, porque os
elementos novos que se apresentam numa série são o assunto da outra. É possível
traçar paralelos, pontos que vão se interligando na sua trajetória, não de uma
maneira tão linear, como pode parecer numa análise descritiva, mas formando uma
teia coerente e muito consistente de fazeres, pensamentos e imagens. Por exemplo,
o tempo aparece como questão desde as primeiras pinturas até os vídeos mais
recentes. Outra discussão feita pelo artista, que será abordada neste estudo é a
autoria, que se revela mais presente nas apropriações que Fábio faz de trechos de
filmes e vídeos.
Portanto, neste ensaio, a obra do artista será apresentada respeitando uma
seqüência temporal, mas a relevância será dada para as características estéticas e
2 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002. Disponível no site <http://rizoma.cjb.net/> 3 ECO, Umberto. Obra Aberta – Forma e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas. Trad. Giovanni Certolo, São Paulo: Perspectiva, 1991. p.22.
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conceituais presentes nos trabalhos, e que são imprescindíveis para uma melhor
compreensão da sua proposta artística.4
No primeiro Capítulo serão apresentadas as pinturas do início da carreira,
assim como a primeira série, Condutores de Limites, que possibilita uma discussão
muito relevante para a compreensão das questões de identidade e do espaço
discutidos pelo artista naquele momento.
A utilização de meios diferentes dos tradicionais: desenho e pintura, começa
pela fotografia, que é o suporte da série Conservadores de Carne, a que será
dedicado o segundo Capítulo. Através de um meio inovador e um processo pictórico
o artista dá novos significados à paisagem, ao olhar e exige do espectador outro tipo
de permanência perante a obra.
A série Acidez será apresentada no terceiro Capítulo, onde o artista propõe
questões como a identidade, discutida pela repetição do idêntico que suscita a
diferença. Aparecendo a influência do filósofo Gilles Deleuze no conceito do
trabalho. Pensadores como Walter Benjamin e Flusser são recuperados como
interlocutores para enriquecer esse debate.
Para o quarto Capítulo é reservada a discussão de dois vídeos, mídia a qual o
artista se dedica mais intensamente nos últimos anos. São eles: Courbet da série
Insônia Valeriana, e O Olho. Embora esse meio pareça o mais díspar de toda a sua
carreira, veremos quão coerente com seus trabalhos anteriores é essa escolha.
A importância desta pesquisa reside no fato deste ser um dos primeiros
trabalhos teóricos sobre este artista, haja vista a inexistência de textos sobre ele. E,
apesar de ser um estudo complexo devido à quantidade de trabalhos abordados e a
grande diferença de linguagens utilizadas pelo artista, buscou-se de maneira
coerente situar a obra de Fábio Noronha nas discussões da arte contemporânea,
seguindo alguns pressupostos do pós-modernismo. Algumas leituras dão o suporte
teórico no sentido de tentar definir conceitos ainda inconstantes na teoria da arte
pós-moderna, como Douglas Crimp e Benjamin Buchloh. O resultado deste estudo
poderá assim contribuir para um melhor conhecimento sobre a arte de Fábio
Noronha e sua trajetória artística.
4 Entendendo características estéticas como os dados visuais plásticos do trabalho, incluindo técnica, suporte, cor e meio, portanto a imagem em si; e características de conceito como o respaldo filosófico e os questionamentos referentes à arte e sua história que esta imagem suscita.
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CAPÍTULO I
AS PINTURAS: Tempo, espaço e identidade
Nas pinturas e desenhos realizados entre 1993 e 1996, o gesto predomina,
constrói formas e elementos gráficos. As questões formais neles discutidas tratam
do espaço, suporte, forma e limites. São o que o artista chama de “problemas
internos”, que são resolvidos dentro do próprio trabalho. Para sua execução, o artista
declara precisar de um isolamento:
A pintura, ou pelo menos a que faço e a maneira com que me envolvo com ela,
pressupõe esse isolamento, pressupõe uma espécie de retirada do meu corpo do cotidiano e a inserção desse corpo num outro espaço que talvez tenha um tempo mais lento, um tempo deslocado que não é o tempo das coisas do mundo: do tempo que preciso para pegar ônibus, para ir ao supermercado antes que ele feche. Esse isolamento me parece inevitável, mas não sei se posso generalizar. No meu caso sim, enquanto trabalho ocorre um manejo do tempo, e uma diferenciação bem clara do que é o tempo do cotidiano e o tempo da produção.5
O tempo é um assunto muito importante para Fábio. Já nessas primeiras
pinturas, quando ele fala desse isolamento está se referindo ao tempo necessário
para que uma pintura aconteça, e também ao tempo necessário para que o olhar do
espectador perceba a imagem. A maneira como o artista explora essa questão
advém de sua leitura de Deleuze, a quem ele atribui boa parte dos conceitos
filosóficos do seu trabalho. Para o filósofo francês o “eterno retorno é o nome
absoluto do Ser, enquanto o ser é, em última instância, Tempo.” 6
A doutrina do tempo de Deleuze diz que o tempo tem tripla natureza, ou
melhor, uma “dialética de três fases”:
- fase de fundação linear do tempo – “presente vivo”;
- fase do fundamento circular do tempo – “passado puro”;
- princípio de desmoronamento do tempo – “futuro inovador”.
De acordo com este pensamento o “passado recolhe todo o tempo”, esse é o
quarto paradoxo que fecha os outros três. No primeiro paradoxo cada instante é
duplo como um cristal de tempo onde o atual e o virtual coexistem. No segundo,
“todo o tempo coexiste em si como passado” e “o presente não é nada além do
5 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002. 6 GUALANDI, A. Deleuze.Tradução Danielle Ortiz Blanchard. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2003. p.70.
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estado mais contraído do passado”. E no terceiro paradoxo, o tempo é a
“preexistência do passado em relação aos presentes que ele faz passar”. 7
Essa noção do eterno retorno como tempo e do tempo como eterno retorno
estará presente nas próximas obras de Fábio, onde a repetição do tempo e do
idêntico afirma as diferenças.
Além dessas questões o artista tinha uma preocupação de não seguir a
tradição modernista no que diz respeito à autoria, já que a identidade se refere a
uma identificação dos trabalhos, uma espécie de “assinatura” do artista, ou seja,
características plásticas que se repetem nas obras e as tornam facilmente
identificáveis. De acordo com Crimp, essa idéia de identidade tem origem também
na instituição, o museu, onde “a presença do artista na obra tem que ser detectada;
é assim que o museu sabe que possui algo autêntico”, a autenticidade pode se
confundir com a aura como definida por Walter Benjamim. Aura que a reprodução
minimiza, até mesmo se esvai da obra.8
Essa presença identificável da mão do artista em seus trabalhos incomodou
Fábio, que diz: “as pinturas desse período obedeciam a um padrão formado pela
idéia de identidade, apesar de aparentemente diferentes. O que passa
simultaneamente a me incomodar e interessar bastante, justamente porque não
queria pensar na minha produção artística como um padrão”. 9
Para fugir a idéia de identidade, de “marca”, que determinou grupos de
artistas anteriores, principalmente relacionados aos pressupostos modernistas10,
Fábio Noronha pretende que suas pinturas sejam diferentes, e nessa busca pode-se
encontrar o primeiro impulso motivador de suas diversificações em relação aos
meios e linguagens que aparecerão mais tarde em sua carreira.
Os elementos que o artista utiliza para encontrar uma nova identidade a cada
trabalho são: gestos diferenciados, elementos gráficos, áreas de cor e a presença da
palavra. Esta também é utilizada como imagem, pois é quase impossível entender
7 GUALANDI, op. cit. p.74 8 CRIMP, D. Sobre as Ruínas do Museu. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.103 9 NORONHA, F. Entrevista concedida a Deborah Alice Bruel Gemin. Curitiba, 24 fev. 2005. 10 Para Jameson: “Os grandes modernismos baseavam-se na criação de um estilo pessoal e particular, tão inconfundível como a impressão digital, tão inimitável como o próprio corpo. Mas isso significa que, de algum modo, a estética modernista está organicamente ligada à idéia de um eu único e uma identidade particular, de uma personalidade e de uma individualidade única, da qual se espera que gere sua própria e única visão do mundo e forje seu estilo próprio, único inconfundível”. JAMESON, Postmodernism and Consumer Society. p. 114. apud CRIMP, op. cit. p.272
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8
seu significado literal, exceto em raros momentos em que o artista nos permite essa
clareza. Para Fábio
parece [...] que existe uma orientação teórica proposta, ou pelo menos que [lhe] foi proposta, que percebe a idéia de especificidade em arte hoje inviável, já que vivemos num mundo contaminado onde as esferas se misturam com muita freqüência. Talvez essa fuga de “uma” identificação com “um” tipo de mídia ocorra nesse sentido, mais do que como um plano meu; é um contexto muito interessante justamente por propor, pelo menos no nível teórico, liberdade de escolha.11
As pinturas são muito expressivas e possuem narrativas nas formas, também
sugerem relações com outras formas e com imagens de memórias. Na sua maioria
eles são dípticos ou trípticos, poucos são constituídos de uma única tela (figuras 1 a
8). São duas ou três superfícies em que a imagem de uma permite uma troca com a
outra, ignorando a fissura real existente entre elas. Esse agrupamento remete às
séries que virão depois. Podem ser consideradas pré-séries, em que as imagens
formadas por duas ou três partes possuem conexão ambígua: são diferentes, mas
ao mesmo tempo, estão relacionadas. O problema colocado é do espaço, pois
fisicamente são distintos, mas visualmente se aproximam. A linha que ora
circunscreve o espaço, une formas, define palavras, é o desafogar dessas formas, é
por onde vazam os limites impostos pelas áreas de cor. As massas coloridas em
quase todos os trabalhos desse período têm o preto como contraponto. Cor que está
presente nas linhas, que ora preenche formas, mas que também inunda a superfície
criando áreas rasas e densas ao mesmo tempo.
Fábio começa sua carreira com estes trabalhos, que Tadeu Chiarelli analisou
inseridos no gestualismo. Segundo o próprio artista, cada pintura era como uma
nova página de um diário, cada uma com uma discussão diferente, uma
singularidade. Buscando essa diferença, onde a cada pincelada, a cada camada de
tinta acrescida, a pintura é repensada, negando a condição anterior e eterna.
São pinturas onde a abstração mescla-se com a sugestão de figuras e de
palavras que são dissolvidas pelo gesto. Para o artista estas pinturas estavam muito
iguais, confirmando uma continuidade, apesar da aparente diferença. A partir daí, o
artista passa a pensar na repetição contida na identidade como um pressuposto
para sua produção seguinte.12 Essa discussão sobre a repetição e o idêntico será
11 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002. 12 Ibid.
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FIGURA 1 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm
FIGURA 2 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm
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aprofundada no próximo capítulo com a análise da série Acidez, que trás estes
temas.O gestualismo nestes trabalhos não revela apenas a ação do artista, como a
action painting de Pollock, em que a ação determinava onde a tinta iria cair.
Diferente de Pollock e De Konning, artistas do expressionismo abstrato norte-
americano, o gesto do Fabio Noronha não é fruto da ação mecânica, e tampouco é
resultado de um impulso sentimental. Para ele o gesto está experimentando o
espaço pictórico. Esta é sua preocupação. Intenção que é reforçada quando junta
uma ou mais telas, e o limite desse espaço e sua exploração adquirem novas
proporções. As linhas que recortam o espaço pictórico e invadem a outra tela fazem
com que as bordas da pintura comecem a se aproximar, como comenta Chiarelli:
“…uma pincelada nascendo numa tela e terminando na outra, uma mesma massa
de cor tomando conta de uma área que abarca as duas telas. Eram ainda pinturas
que, ignorando a fenda entre um suporte e outro - um índice do espaço real no meio
do espaço virtual da pintura, tentavam se concretizar alheias a qualquer bloqueio à
sua pura expansão”.13
FIGURA 3 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm
13 CHIARELI, Tadeu. A autocrítica do Gestualismo. Texto para catálogo. Museu da Arte Contemporânea do Paraná. Curitiba, 1994.
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FIGURA 4 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm FIGURA 5 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm FIGURA 6 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 260cm
![Page 13: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/13.jpg)
12
FIGURA 7 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 360cm
FIGURA 8 – PINTURA (1992 à 1995)
óleo sobre tela – 170 x 130cm
![Page 14: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/14.jpg)
13
A decisão de unir duas ou mais telas num mesmo trabalho tem um significado
maior do que a discussão do espaço da pintura. A emenda entre as partes da
pintura, espacialmente é uma fissura entre os planos do trabalho. Há uma
descontinuidade do gesto, da cor, é um corte que suspende o olhar. Deixa claro para
o espectador que aquilo é uma tela, não é um outro espaço ilusório para onde a
pintura leva seu pensamento, não permite essa transcendência.
Em algumas pinturas do início da carreira, junto às áreas coloridas de
vermelhos, amarelos e laranjas aparece uma cor de carne, que é uma referência
direta ao corpo; suas pinturas e desenhos indicam a presença do corpo: cores de
carne, formas de carne, massa de carne. Além do gesto que indica o corpo que o fez
e a matéria corporificada nas áreas de tinta. Portanto apesar das pinturas mais
gestuais apresentarem uma maior abstração, pode-se dizer que essa presença
constante do corpo não deixa dúvidas quanto à necessidade da presença da forma,
que nos próximos trabalhos vai se apresentar de maneira mais sólida, muito mais
definida. Outro artista a quem é possível relacionar essas pinturas é sem dúvida
Basquiat, pela gestualidade, grafismos e até mesmo a maneira como agrupa telas. É
claro que os trabalhos deste artista possuem uma narrativa mais óbvia e objetiva.
Seu trabalho também é mais engajado, tem um caráter mais político. Mas, a
intensidade pictórica é semelhante, na utilização do gesto e da cor Fábio possui
algo da violência presente nos trabalhos de Basquiat.
Quando Fábio afirma que nessas pinturas a sua preocupação se concentrava
nos aspectos formais e em como resolvê-los dentro da própria obra, é preciso
perceber que aí também está presente uma outra intenção, a de discutir o espaço da
pintura. E essa discussão acontece em vários níveis: dentro de uma mesma pintura,
entre seus elementos, ou na relação dessa pintura com outras. E, não é por acaso,
que seu próximo trabalho é a série Condutores de Limites produzida entre 1995 e
1998. São desenhos e pinturas em aquarela, grafite e cera sobre papel. O próprio
nome da série já indica qual será a abordagem. Neles Fábio questiona os limites da
obra, do suporte e os limites que o material utilizado impõe, como a cera que ao
endurecer delimita uma área (figuras 9 a 13).
O gesto, que nas pinturas anteriores explorava a superfície, nesta série dá
lugar às possibilidades de cada material. A forma é muito mais fluida com a
utilização da aquarela e da cera. O controle é mais difícil, ambas se espalham e
determinam seus próprios limites, embora de maneira diferente, já que a aquarela
![Page 15: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/15.jpg)
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penetra no papel e a água a faz espalhar-se. A cera escorre enquanto está quente, e
à medida que esfria vai endurecendo e tomando uma forma rígida, limitada pelo
tempo de esfriamento.
Diferente dos grafismos encontrados nas pinturas anteriores, o desenho a
grafite dessa série deixa as formas muito mais sutis, são linhas frágeis que se
escondem atrás das veladuras de aquarela e cera. A força do desenho não está no
contraste, mas na sutileza das linhas e no emaranhado que elas apresentam. As
formas que nas pinturas eram soltas, nesta série estão muito mais condensadas,
como que construindo figuras. Esta leveza só é interrompida pela cera que se
sobrepõe em alguns desenhos, ela comprime e toma conta, impondo sua presença
pela matéria. O próprio papel se submete a sua força e conformação final. Os
desenhos remetem às formas do corpo, são indicação da figura humana, desenhos
fálicos, que mais tarde estarão presentes também na série Acidez. As linhas
permanecem como incisões no espaço, uma linha que divide duas áreas, ou seja,
mais um elemento limitador.
O limite é dado pelo material, como já foi dito, ora controlado como o grafite,
ora menos controlado como a aquarela. Mas outro limitador é o tempo, presente na
demora da aquarela em ser absorvida pelo papel e também necessário para que a
cera esfrie. Esse tempo da estabilização da cera, também é utilizado pelo artista
para produzir o trabalho. Portanto é o tempo que limita o espaço, mas também é o
espaço que permite essa permanência eterna, da forma temporalmente definida,
que depois permanece imutável por muito tempo.
Abordando essa questão, o crítico e historiador da arte Paulo Reis escreve
“dentro de uma perspectiva de que o tempo não é uma categoria mensurável, mas
um fluxo contínuo, estes desenhos são registros de nosso confronto e assombro
com esse tempo, e resgates de sua urdidura esgarçada na trama firme do papel.” 14
O artista se refere a esta série como um “fazer eco”, “penso na espera, no
tempo na permanência necessária diante de algo para captar sua inteligência, nesse
sentido, começo esta série por onde ela acaba, seu limite real, limite este que é
imposto a qualquer artista”.15 A questão permanece também na sua produção atual,
até porque o tempo é um elemento presente em tudo, a relação temporal implícita
em qualquer ação humana, como por exemplo: no tempo que levo para escrever
14 REIS, P. Texto, 1996. Disponível em <www.rizoma.cjb.net> Acesso em 20 abr. 2005 15 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002.
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essas linhas e para pensar o que vou escrever. Nos trabalhos do Fabio, a relação
que ele estabelece entre o tempo e o espaço e seus limites é muito importante,
dificultando o claro entendimento do que vem a ser cada um deles.
Nas pinturas da série Condutores de Limites, o tempo se revela nas
camadas sobrepostas que escondem o que estava anteriormente ali, de maneira
permanente, como uma negação da história, e uma busca por uma nova solução e
possibilidade pictórica.
Nos trabalhos de série Condutores de Limites o tempo se apresenta nas
discussões do limite dos meios utilizados pelo artista: tempo de secagem, tempo
para o grafite percorrer o suporte e limitar o desenho, tempo para a cera se
estabilizar e depois permanecer. E também, a idéia que o próprio artista suscita do
tempo que o espectador precisa para captar a inteligência das coisas, mais
especificamente dos trabalhos. Também aqui os dípticos, que como nas pinturas
anteriores rompem o espaço do suporte e se completam.
FIGURA 9 – CONDUTORES DE LIMITES (1996 à 1998)
Desenho – aquarela, grafite e cera sobre papel
![Page 17: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/17.jpg)
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FIGURA 10 – CONDUTORES DE LIMITES (1996 à 1998)
Desenho – aquarela, grafite e cera sobre papel
FIGURA 11 – CONDUTORES DE LIMITES (1996 à 1998)
Desenho – aquarela, grafite e cera sobre papel
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FIGURA 12 – CONDUTORES DE LIMITES (1996 à 1998)
Desenho – aquarela, grafite e cera sobre papel FIGURA 13 – CONDUTORES DE LIMITES (1996 à 1998)
Desenho – aquarela, grafite e cera sobre papel
![Page 19: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/19.jpg)
18
Além das pinturas e desenhos, a partir desse momento ele incorpora a
fotografia ao seu processo, prática que surgiu da necessidade de registrar e
documentar sua produção, e apresentou-se ao artista como uma nova possibilidade
plástica. É na próxima série a Conservadores de Carne que o artista dá o primeiro
passo na experimentação de novos suportes. É curioso que justamente a fotografia
seja esse novo suporte, como se fosse o símbolo do rompimento com as práticas
tradicionais desenho e pintura. Não que o artista deixe de utilizá-los, pois ainda por
um bom tempo ele fará desenho e pintura. Mas, como veremos no último capítulo,
surgirão também o vídeo, o áudio e a internet. Percebemos então, que
cronologicamente o caminho percorrido pelo Fábio, no que diz respeito aos suportes
e meios, é: pintura e desenho, fotografia, imagens digitais, vídeos e internet. Tendo
sido explorados mais ou menos nessa ordem.
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19
CAPÍTULO II
ENFIM, A FOTOGRAFIA
Para muitos historiadores, a utilização da fotografia pelos artistas plásticos de
uma forma mais contundente é o divisor de águas do modernismo e pós-
modernismo. A invenção da fotografia coincide também com a do museu, tal como o
conhecemos, e com a prática da teoria estética modernista. De acordo com Crimp,
quando se analisa o período final do modernismo é preciso “levar em conta a
enorme variedade de práticas questionadoras que propõem uma alternativa à
hegemonia da pintura e da escultura”.16 E, ainda afirma sobre a pintura: “[ela],
principal arte de museu, desenvolveu-se ao longo da era moderna em oposição aos
poderes descritivos da fotografia, sua ampla disseminação e seu apelo de massa.
Isolada no museu a pintura cada vez mais rejeitou a representação objetiva, afirmou
sua singularidade material, tornou-se hermética e difícil.” 17 A pintura, como aponta a
teoria modernista, forja-se auto-referente, garantindo seus significados específicos,
porém submetida à soberania subjetiva do sujeito - o artista. No entanto, essa
valorização da autoria é contestada em seguida pelas práticas artísticas que têm o
readymade de Duchamp como referência. “Diante de um readymade, não existe
mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte.” 18
Outros artistas também utilizaram diversos meios no decorrer de sua carreira,
como Rodchenko que abandonou a pintura em favor da fotografia, pois “via a pintura
como vestígio de uma cultura ultrapassada, e a fotografia como um instrumento
possível para a criação de uma nova cultura.” 19 Assim como Rodchenko, Fábio não
pode ser caracterizado apenas como um artista versátil, que trabalhou com mais de
um meio. No entanto, é importante ressaltar que no caso dele a decisão por uma
técnica diferente da que costumeiramente vinha utilizando não caracteriza um
abandono da pintura por esta não dar conta das questões contemporâneas da arte.
E, muito menos seria uma mera troca de técnicas. Essa escolha é antes uma busca
por soluções plásticas às questões da própria pintura.
As fotografias de paisagens da série Conservadores de Carne apresentam
um céu coberto de grafite, essa área plana, chapada, cinza, que logo acima do que 16 CRIMP, op.cit. p. 238 17 CRIMP, op.cit. p. 16 18 DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. Revista do Mestrado de História da Arte EBA, UFRJ, Rio de Janeiro, 2º semestre, 1998. p. 128 19 CRIMP, op.cit. p. 234
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20
seria a linha do horizonte impede que o espectador complete a cena. O véu de
grafite não permite o reconhecimento da imagem, e força o olhar a fixar-se na areia
e procurar então o que ela contém (fig. 14). Como diz o artista: “…uma construção
que edifica a cegueira”.20 Uma forma de pensar a imagem de acordo com Daniela
Vicentini é, “tal torção do espaço, que chega a impedir nosso olhar de alcançar (e
dominar) o horizonte, uma vez que fomos levados a permanecer com os olhos
cegos, presos ao solo, tendo somente o amparo de absurdas coordenadas espaciais
(os números nas bordas inferiores das fotografias).”21
Essas imagens contêm números, e a numeração usada pelo artista reforça a
intenção de série. Quando se olha algo numerado, trás à mente a idéia de
seqüência, ordem, como um arquivo, uma organização ou serialização. Neste caso,
um arquivo de imagens, como se cada uma delas fizesse parte de um todo
“composto”. Nas gravuras os números referem-se também a quantidades de cópias
da mesma imagem, não é esse o caso da Conservadores de Carne, mas a utilização
da numeração pode ser também referente à possibilidade de cópias que a técnica
fotográfica permite.
De acordo com Susan Sontag a imagem fotográfica, que começa a ser
utilizada como processo pelo artista, está muito relacionada à representação real, fiel
do mundo, e também, a uma tendência estabilizadora do mundo. 22 Portanto,
quando Fábio nos apresenta fotos de espaços reais, mas, faz uma interferência a
ponto de impedir que esse olhar adestrado se complete, ele provoca um despertar
dessa letargia da imagem fácil. A maneira como ele utiliza a fotografia, vedando
áreas com grafite, colocando números de referência, e ainda compondo as imagens
com desenhos e pinturas, desperta inquietação. Há um desejo de ver o que está
atrás do grafite, o que foi escondido. E porque? Mas, a questão é: o que estou
vendo? Quais proposições são feitas aqui?
O artista usou a fotografia como suporte, mas o processo é da pintura, ele
preencheu grande parte da cena com grafite, num ato pictórico. O uso do grafite
como matéria para cobrir a área parece ter sido uma escolha em função do material
ser orgânico e resultar numa cor muito próxima a da fotografia. E também, o grafite
20 NORONHA, op.cit. 21 VICENTINI, D. Texto para exposição Conservadores de Carne. Disponível em: <www.rizoma.cjb.net > Acesso em 20 abr. 2005 22 SONTAG,S. Sobre Fotografia. Tradução Rubens Figueredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 125.
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21
tem ponta, preenche através de linhas e com isso não cobre totalmente a imagem, o
contrário do que aconteceria se fosse utilizada uma tinta, que isolaria realmente o
que está atrás. Os traços do grafite visíveis permitem leve transparência, com um
pouco de esforço é possível vislumbrar alguma imagem por detrás deste véu.
Assim como a fissura das pinturas dípticas ou trípticas dos primeiros anos,
esta área plana revela uma atitude anti-ilusionista. Rebate a intenção de perspectiva
da fotografia, que não se completa. Torna plano o que ilusoriamente era profundo. E
mostra, que aquilo que se vê é só um papel, onde uma ilusão em forma de imagem
está projetada, ou seja, o grafite evidencia a planaridade da imagem. Fábio junta
num mesmo trabalho a discussão da fotografia e da pintura modernista.
As propostas artísticas apresentam imagens que se diferem das veiculadas
pela publicidade, das ruas, instituições, etc. A arte utiliza uma linguagem própria, que
não se fecha numa especificidade, pois utiliza objetos e imagens do mundo real,
mas propõe significados próprios ao mundo artístico, e que só o conhecimento da
história da arte pode revelar. Daniela Vicentini escreve sobre a linguagem artística:
sabe-se que a linguagem poética se estabelece com outros princípios que não os da linguagem científica. Na forma poética da linguagem humana, a comunicação se dá na linguagem que é bem diferente de uma comunicação através da linguagem. As artes visuais, muitas vezes, parecem subtrair-se a proporcionar significações lógicas, que suscitem claros entendimentos. Essa sensação não significa ausência de comunicação. Para compreendermos o que um quadro significa (ou um desenho, uma escultura e uma fotografia) devemos aprender o vocabulário próprio dessa forma de linguagem: o conteúdo torna-se visível no quadro.23
A linguagem poética do Fábio Noronha apresenta muitas questões, como
espaço, limite e suporte. E na busca de soluções a essas questões o artista
experimenta meios, técnicas e linguagens diversas.
Crimp cita como exemplo de prática pós-moderna um trabalho de 1979 de
Christy Rupp, onde a artista utilizou reproduções de uma foto de um rato emprestada
da Secretaria de Saúde, e espalhou estas fotos na região sul de Manhattan,
trazendo à tona questões não só da arte contemporânea e suas possibilidades de
exposição fora dos eixos institucionais, como também denúncias dos problemas que
uma grande metrópole enfrenta quando as diferenças sociais não são levadas em
conta pela administração pública.
23 VICENTINI, op. cit.
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22
A Patrulha de Ratos de Rupp, conforme ela chamou sua atividade, é uma daquelas práticas artísticas, existentes hoje em dia em número razoável, que não faz nenhuma concessão às instituições da exposição, chegando mesmo a confundi-las de propósito. Como resultado a maioria das pessoas não a considera arte, pois, na atual conjuntura histórica, qualquer prática só pode ser plenamente legitimada como arte pelas instituições de exposição.24
A multiplicidade de meios, suportes, feituras, etc, é uma característica da arte
contemporânea. Mas, além dessa pluralidade, o que então caracteriza esse
momento pós-moderno? O termo pós-modernismo vem sendo conceituado por
teóricos e historiadores de arte, muitas vezes trazendo polêmicas referentes às suas
definições. . Sabendo que esta definição pode parecer arbitrária e ingênua devido às
muitas discussões que existem a respeito desse termo, são aceitas para este estudo
algumas definições adotadas por Douglas Crimp. Para ele, apesar do termo pós-
modernismo se referir “a uma postura que repudia as práticas materialistas
politizadas das décadas de 60 e 70 ‘redescobre’ linhagens nacionais ou históricas e
nos devolve ao ininterrupto continuum do museu de arte” no que ele chama dum
ambiente cultural mais amplo. A arte pós-moderna é o que se encontra nas práticas
politizadas de artistas como Daniel Buren e Marcel Broodthaers, Richard Serra,
Hans Haacke, Cindy Sherman, Sherrie Levine, etc. “Empregando estratégias
variadas estes artistas têm trabalhado para revelar as condições sociais e materiais
da produção e da recepção artística – condições cuja dissimulação tem sido a
função do museu.” E segue: “Em suma, ‘meu’ pós-modernismo submeteu o
idealismo dominante do modernismo majoritário a uma crítica materialista,
mostrando portanto que o museu – fundado nos pressupostos do idealismo – era
uma instituição ultrapassada que não tinha mais um relacionamento tranqüilo com
a arte inovadora contemporânea.” O museu passa a ser um espaço de exclusões e
confinamentos.25
No entanto, recorrer à fala do próprio artista, também possibilita uma das
muitas compreensões possíveis, e que parecem muito próprias e coerentes com seu
trabalho.
Para Fábio “a pós-modernidade não [é] como um espaço definido por uma ruptura
dos pressupostos que caracterizam o modernismo, mas construído, acima de tudo,
por definições provisórias, muitas delas propiciadas por reavaliações da história”. Ele
define o espaço pós-moderno como agenciador de fragmentos, e explica: “muitas
24 CRIMP, op.cit. p. 214 25 CRIMP. op.cit. p. 254 e 255
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23
vezes não sabemos a que se refere grande parte da produção artística atual, o que
devemos ver, ou melhor, de que maneira nos aproximamos dela”,26 esse espaço
multidisciplinar propõe “investigações simultâneas, o que pode provocar dúvidas
porque, “não podemos perceber/apreender tudo ao mesmo tempo”, mas por outro
lado “define cada parte de um objeto, estabelecendo assim uma espécie de
cronograma para esse espaço descontínuo; uma espécie de passo a passo.” 27
FIGURA 14 –CONSERVADORES DE CARNE (1998)
Fotografia e grafite
26 NORONHA, F. O Readymade e a Colagem. Curitiba, 2003. 40 f. Monografia (Especialização em História da Arte do Século XX) – Setor de Pós-Graduação, Escola de Música e Belas Artes do Paraná. p.06. 27 DAMISCH, H. Trans – A conversation between Hubert Damish and Hans-Ulrich Obrist, n.8 2000 apud NORONHA, op.cit. p.10
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24
Capítulo III
DA AURA ÀS SÉRIES
Para Walter Benjamin a aura é “uma peculiar fantasia de espaço e tempo: a
aparição única da algo distante, por mais próximo que possa estar”.28 Ou seja, algo
que é único, irreprodutível e quando se refere ao momento da percepção diz que
“toda oportunidade perdida está irremediavelmente perdida”. Juntando-se a ele,
Flusser acredita que a reprodução, a cópia, e a excessiva proliferação de imagens
iguais são sinais de uma era que não zela mais pela aura da obra de arte, e aponta
para o “final dos tempos” ou “eterno retorno do sempre idêntico”.29
Benjamin afirma que as massas “acolhendo as reproduções tendem a
depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez”. Flusser chama o turista de
“funcionário do aparelho” numa referência à dependência que as pessoas criam da
máquina fotográfica para registrar todas as etapas e lugares de sua viagem. E,
comenta que “uma viagem…documentada fotograficamente, não registra as
vivências, os conhecimentos adquiridos, os valores do viajante. Registra os lugares
onde o aparelho o seduziu para apertar o gatilho.” 30
A Revolução Industrial trouxe para o convívio do homem a máquina, a
indústria, os produtos, e modificou, portanto, a relação homem-espaço (enquanto
natureza) e principalmente a relação homem-tempo. A velocidade com que a
informação circula nos meios de comunicação em massa, a possibilidade de novos
conhecimentos e vivências indiretas através de imagens reproduzidas coloca o
homem num nível de informações e imagens onde a aura, não se encontra mais. O
que se vê é uma constante troca de imagens e uma busca desenfreada por
informações e novos anseios.
Mario Ramiro resume dessa forma o texto do Flusser: “em outras palavras
para além de seu propósito antifascista o texto é mais que um manifesto, ele é um
pressentimento do esvaziamento, do distanciamento da vivência do real que as
novas tecnologias estão nos impondo “por mais próximo que tudo possa estar” e
mais, “ele é uma tomada de consciência das modificações da própria noção de 28 BENJAMIN, Walter . A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Magia e técnica, arte e política:ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. 29 RAMIRO, M. A perda da aura da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica – texto de aula -tentativa de entendimento de um conceito nada fácil, com a ajuda de V. Flusser-. 2002 30 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 20.
![Page 26: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/26.jpg)
25
arte,…”31 Não temos (nós, os homens) de olhar o entorno, de contemplar? As
tecnologias nos impõem uma quantidade enorme de imagens e informações que nos
torna insensíveis às vivências próximas, essas imagens criam uma nova realidade.
Essas colocações fazem eco em outros pensadores como Susan Sontag, que estão
preocupados em discutir a efemeridade, a cópia e a reprodução banalizadas pelas
novas tecnologias. Para Crimp há aura na fotografia, só que ela existe em relação
ao fotografado, ou seja o referente. Na pintura é “determinada pela presença
inconfundível da mão do pintor no quadro.” 32
Penso que há uma forte relação do conceito de aura com identidade, pois, se
a aura é a essência própria do objeto, da coisa ou da obra de arte, pode então ser
entendida como a própria identidade – o que é único, o que faz aquilo ser
reconhecido. Para a obra de arte, a aura pode ser o que a identifica como tal,
portanto sua identidade. Assim como a fotografia provocou o “desaparecimento da
aura” pela reprodutibilidade da imagem segundo Benjamin, também provocou a
desinvidualização do ser. A identidade entra em crise realmente com a modernidade,
embora isso já fosse percebido nos retratos renascentistas, onde o importante não
era a representação fidedigna do indivíduo e sim “conformar o arquétipo de uma
classe ou um grupo”.33 É nesse período que a crise de apresenta com a proliferação
dos cartões de visita fotográficos, conforme o que diz Annateresa Fabris:
O retrato fotográfico está, sem dúvida, na base da crise e da transformação do gênero pictórico no qual se inspira e do qual deriva boa parte de seus recursos representativos. Mas é impossível não perceber que ele próprio coloca em crise uma definição de identidade que remontava ao Renascimento, ao criar um paralelo absoluto entre fisionomia e personalidade e ao escamotear o indivíduo por trás do tipo. A identidade do retrato fotográfico é uma identidade construída de acordo com normas sociais precisas. Nela se assenta a configuração de um eu precário e ficcional – mesmo em seus usos mais normalizados –, que permite estabelecer um continuum entre o século XIX e o século XX, entre uma modernidade confiante na ideologia de progresso e uma modernidade problematizada pela desconstrução pós-moderna.34
Referindo-se a Raushenberg, Douglas Crimp corrobora a constatação de que
a obra pós-moderna discute a autoria e a originalidade da obra de arte. “Feita por
meio de tecnologia reprodutora sua obra dispensa aura. A ficção do sujeito criador
dá lugar à atitude aberta de confisco, citação, reprodução parcial, acumulação e
31 RAMIRO, op.cit. 32 CRIMP, op.cit. p. 104 33 FABRIS, A. Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 31. 34 FABRIS, op.cit. p.55
![Page 27: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/27.jpg)
26
repetição de imagens já existentes. São minadas as noções de originalidade,
autenticidade e presença, essenciais ao ordeiro discurso do museu.” 35 É nesse
momento da pós-modernidade que artistas como Rosângela Rennó, Cindy Sherman
e tantos outros vão resgatar a discussão acerca de uma identidade para a imagem,
e para o indivíduo, discussão que foi inaugurada pela pop-art, especialmente por
Warhol.
Ao transformar a própria auto-imagem em mais um de seus tantos ícones artificiais e intercambiáveis que povoam seu panteão particular, Warhol despoja-se do caráter de sujeito para tornar-se mais um objeto de seu sistema. Personagem e não indivíduo como todos os seus modelos, Warhol não se cansa de sublinhar o caráter inautêntico da identidade contemporânea e de remete-lo àquelas instituições que definem a visibilidade pública do indivíduo.36
Já as fotografias de Cindy Sherman “ invertem os termos da arte e da
autobiografia. Elas usam a arte não para revelar o verdadeiro eu da artista, mas para
mostrar o eu como um constructo imaginário.” Existem apenas os disfarces
assumidos por ela.37
Os trabalhos da série Acidez (1998-2003) de Fábio Noronha discutem a
identidade e o idêntico, de uma maneira onde a intenção é fazer aparecer ou deixar
surgir a diferença. A repetição dos semelhantes, segundo Fábio, exacerba as
diferenças, muitas vezes o que superficialmente é diferente, diz a mesma coisa.
Observando suas pinturas do início da carreira, que se pretendiam diferentes e
originais, Fábio percebeu que na verdade havia muita semelhança entre elas. Ele
acreditava que um artista não precisava ter uma “marca registrada”, ou seja,
pretendia abordar sempre novas questões em suas pinturas, mas embora esse
fosse seu desejo e nisso houvesse feito todo o empenho, percebeu que havia essa
semelhança, que eram as mesmas proposições. A partir dessa constatação resolveu
trabalhar com as séries e repetições. Verificou que o que aparentemente é igual e
repetitivo, esconde sutilmente as singularidades. Por meio desse trabalho, portanto,
surgiram as questões de reprodutibilidade e repetição em suas obras.
35 CRIMP, op.cit. p.54 36 FABRIS, op.cit. p.85. 37 CRIMP, op.cit. p.123. Crimp coloca a fotografia no centro do momento de transição do modernismo para o pós-modernismo, por ela questionar a autenticidade (característica exigida pelos espaços institucionais de arte) e a autonomia da pintura modernista. Para ele os trabalhos de Sherman são “...fotogramas artificiais (...) que implicitamente atacavam o culto ao autor ao equiparar a conhecida artificialidade da atriz diante da câmera com a suposta autenticidade do diretor por trás da câmera.”
![Page 28: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/28.jpg)
27
As séries denunciam também uma atitude passiva do homem perante a
aparente multiplicidade de imagens. As tecnologias parecem impor uma alucinada
busca pela aura, por algo inatingível, irreal, e para isso novas imagens são criadas e
nos são apresentadas todos os dias. E essa variedade esconde as semelhanças e
mesmices, o que parece novo, muitas vezes, é a confirmação de práticas
institucionalizadas e aceitas. A repetição de imagens desses trabalhos alerta para
essa aceitação.
Nos trabalhos de Fábio percebem-se ambigüidades e pluralidade de
significados, provocando com isso leituras complexas. A repetição, por exemplo, ao
invés de apenas dar a idéia do mesmo, suscita a diferença. A série Acidez,
apresenta auto-retratos numa referência ao que é o mesmo e sempre igual e
diferente ao mesmo tempo. É sempre a imagem que lembra o retrato do artista, mas
que se modifica, repete e difere, e torna-se irreconhecível . Ele explora as
possibilidades que uma imagem tem de ser alterada, subvertida, e assim surgem as
diferenças, apresentando inquietações ao olhar. Os títulos, textos ou palavras que o
artista usa, também servem para causar essa inquietação ambígua, onde a imagem
visual nos leva à subjetividade. O texto verbal nos coloca frente às questões
conceituais, e não se pretende uma legenda cheia de significados, mas é o que está
ali, e nisso se basta. Qual é o nível da tensão necessária para me movimentar com segurança? Qual é a forma da estrutura que sustenta algumas paredes de borracha? Retrato feito sem considerar o duplo criado pelo espelho. Beijo de língua desarticulado = acidez. O espelho não compartilha o peso da língua. Um duplo feito de originais. cabeças de borracha para possíveis ampliações e reduções. Que tipo de desarticulação um pedaço de carne pode causar? O olhar rompe o espelho. A cabeça em contração e expansão não costuma ser a mesma: o mofo e o brilho. Não tenho escolha, a pressão realizada de fora para dentro descarta coisas sólidas desconhecidas. Quando a estrutura se alarga devo tomar cuidado com aquilo que é incorporado. Método não simétrico para apresentar um duplo. Alargar uma fissura que reage com violência.38
Para Umberto Eco “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante”. Para
explicar seu conceito de obra aberta, ele fala da “estrutura” da obra que “é uma
38 NORONHA, F. Acidez. Catálogo Panorama 99. Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1999.
![Page 29: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/29.jpg)
28
forma,(…) enquanto sistema de relações” entre seus diversos níveis (semântico,
sintático, físico, emotivo, etc…). A estrutura de uma obra é o que ela tem em
comum com as outras obras, suas relações. Assim “a estrutura de uma obra aberta
não seria a estrutura isolada das várias obras, mas o modelo geral, que descreve
não apenas um grupo de obras enquanto postas numa determinada relação fruitiva
com seus receptores.” 39
É possível perceber nas obras do Fabio Noronha essa inter-relação da sua
poética com os demais trabalhos contemporâneos, e numa escala maior, com
questões da vida contemporânea. Para Umberto Eco os universos culturais nascem
de contexto histórico-econômico, e não há como compreender a fundo os primeiros,
sem fazer a relação com o segundo. Não se pode descartar as questões sociais,
políticas, econômicas, quando se fazem análises de qualquer manifestação cultural,
seja ela erudita ou popular. Mas, para ele a obra não nasce diretamente do contexto
histórico, e sim “de uma rede complexa de influências, a maioria das quais se
desenvolve ao nível específico da obra ou do sistema de que faz parte.”40 Mas, é
compreendida como uma prática social.
Nos trabalhos, auto-retratos da série Acidez, Fabio discute a natureza da arte
utilizando desenho e pintura como meio desse processo conceitual, contrariando a
afirmação de Kosuth de que meios tradicionais não dariam conta da arte
contemporânea. No texto “Arte depois da Filosofia”, Kosuth defende que a função
da arte é ela mesma, não tem nenhuma função estética, e arte é arte enquanto
conceito, “uma obra de arte é uma proposição apresentada dentro do contexto de
arte como um comentário da própria arte”, e o resultado disso, ou seja o objeto
artístico em si, ele chama de “resíduo físico das idéias de um artista”..41 Sustenta
uma distinção entre arte e estética e rejeita qualquer forma de arte convencional
desde Duchamp. Mas, esse discurso possui muitas lacunas como aponta Thierry De
Duve no texto Kant depois de Duchamp.42 Kosuth se refere a um momento
39 ECO, U. Obra Aberta – forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Tradução Giovanni Certolo. São Paulo: Perspectiva, 1991. p.22. 40 Ibid. 41 KOSUTH, J. Arte depois da filosofia. Texto. Studio International, October/November 1969. 42 Neste texto Thierry de Duve analisa a terceira Crítica do Juízo de Kant, e confronta os pressupostos modernistas de Greenberg, a provocação de Duchamp, a ideologia de Beuys, e o radicalismo de Kosuth. “Todos os sintomas apontam para uma única e mesma contradição, pertencente à história da recepção do readymade nos anos 60, ..., estético no sentido de Greenberg, ou arte, no de Kosuth; gosto ou conceito.” A hipótese que De Duve discute é a de que “a afirmação ‘isto é arte’,” apesar da não ser necessariamente mais um julgamento de gosto, se mantém enquanto julgamento estético”. Para De Duve, o pensamento kantiano de gosto foi mal interpretado por
![Page 30: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/30.jpg)
29
específico da arte, e suas afirmações são datadas, portanto presas àquele momento
específico. De qualquer modo sua contribuição representou um ponto chave na
experiência da arte conceitual: “uma indagação, enquanto arte, com respeito ao que
era arte.” 43
Nos trabalhos mais recentes de Fábio Noronha, principalmente nos vídeos,
podemos sentir esse julgamento do sistema em que a arte está inserida.
Principalmente, quando o artista utiliza imagens que não são suas e estão à
disposição de todos, e inverte sua utilização, instigando o espectador a pensar, ao
invés de apenas apreciar passivamente.
Embora os trabalhos da série Acidez sejam posteriores à série Condutores de
Limites, onde trabalhou com fotografias, - uma novidade para quem se ocupava
principalmente do desenho e da pintura, mas que não se caracteriza como uma
atitude isolada, já que na época a fotografia se tornou um meio bastante comum
para vários artistas -, apresentam na sua formalização algo novo, que é a utilização
das silhuetas, das línguas e figurações mais explícitas, como nos dez retratos à
grafite feitos por outra artista, dos quais ele se apropriou para fazer inserções e
modificações com guache e grafite. Ou seja, ele trabalha sobre suas imagens
criadas por outro autor.
Também nas pinturas com a inscrição Um Mundo Feito de Catarro (fig. 15 e
16), as figuras que sugerem a silhueta do artista são repetidas nas dez telas, mas
recebem tratamento diferente. As cores não são as mesmas, tampouco a
composição em todas elas. Trabalhar com o igual e repeti-lo, torná-lo diferente é o
que pretende, é o que o trabalho apresenta. A imagem que está presente não é dele
como pessoa, é uma silhueta que sugere essa aproximação. O auto-retrato refere-se
ao processo e às inúmeras possibilidades que uma imagem pode oferecer.
As áreas de cor se tornam objetos provocativos ao olhar. A cor só tem
importância na medida em que se torna matéria e se relaciona aos outros objetos
presentes na tela e nos outros trabalhos da série. Os tons cinzas ele chama de
cores que significam nada.
Greenberg, e assim foi assumido por todos aqueles que se opuseram ao modernismo, o que resultou num equívoco por parte dos conceitualistas em separar radicalmente arte e estética, por esta estar vinculada ao gosto e aquela ao conceito. (p. 134- 136) 43 WOOD, P. Arte Conceitual. Tradução Betina Bishop. São Paulo: Cosac & Naif , 2002. p.43. (Col.Movimentos da Arte Moderna)
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Começo um novo pensamento sobre cor, que vai ser base para meus últimos trabalhos, os auto-retratos da série acidez, a partir das pinturas cinzas da série Conservadores de Carne. Por mais que você tenha diante de si vários módulos “da mesma cor”, que seriam “nada” em termos de cor, a construção desses cinzas envolve um pensamento mais elaborado sobre cor; justamente por ter escolhido uma cor que supostamente signifique “nada”, mas significa nada, na minha opinião, por que é extremamente contaminada. Se colocadas lado a lado, as pinturas começam a ficar coloridas, aquele cinza que parece um cinza qualquer, perto de um outro, vira azul, rosa.44
A área do trabalho que menos se altera de uma pintura para outra é a
mancha verde que ocupa grande parte da composição e que leva a frase, em cor-
de-rosa: UM MUNDO FEITO DE CATARRO. É estranho que justamente essa forma
que se repete praticamente igual em todas as pinturas cause maior inquietação, seja
pela cor verde “ácida”, seja pelo significado das palavras, que no seu sentido literal é
no mínimo nojento. Embora Fábio não assuma a intenção de que a frase tenha um
conteúdo político, afirma que ela é o que é. Não tem mensagem, não tem crítica ao
mundo real, tudo está ali e se contém nela mesma.45 Não podemos supor que essa
atitude seja ingênua, o texto está pleno de significados. A frase poderia levar a uma
explicação da imagem, mas está colocada como qualquer outro elemento da tela, e
sugere algo que é uma secreção humana, que sai de dentro da cabeça (talvez o
mundo) para fora (a imagem). A palavra catarro está relacionada à língua, à boca, à
cabeça, ao homem. Cria uma outra possibilidade de imagem, dá uma maior
complexidade ao entendimento. E, não é somente neste caso, pois em vários outros
trabalhos do artista, o texto como imagem ou como título, é responsável pelo o que
poderia ser chamado de “enriquecimento” da leitura.
Os títulos, textos ou palavras que o artista usa, também servem para causar
inquietação ambígua. O olhar está saturado de imagens prontas e se depara com o
inusitado da proposta de Fábio. Então busca no texto algum sentido, e aí se desvia
da obra, procura uma resposta, um significado. Onde a imagem nos leva à
subjetividade, o texto verbal nos coloca frente à questões mais abertas, dúbias, e
não se pretende uma legenda com significado determinado. O texto está ali, e se
basta. O artista diz “uso frases que geram sentido”. O texto formula uma imagem
possível, cria uma outra realidade ao espectador, cria o que o artista chama de
descompasso.
44 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002. 45 NORONHA, F. Entrevista concedida a Deborah Alice Bruel Gemin. Curitiba, 24 fev. 2005.
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FIGURA 15 – ACIDEZ (1999/00)
s/título, auto-retrato – óleo e bastão oleoso sobre tela 93x93 cm
FIGURA 16 – ACIDEZ (1999/00)
s/título, auto-retrato – óleo e bastão oleoso sobre tela 93x93 cm
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Outros trabalhos dessa série que também são denominados sem título - auto-
retratos/Série Acidez, são fotografias manipuladas em computador no padrão de
retrato de identificação, como as fotos 3x4 que são utilizadas para documentos de
identidade. As fotos digitalizadas parecem resultar em imagens de outros seres, que
diferem do retrato fiel do artista e também daquilo que seria uma face humana. As
interferências chegam a descaracterizar totalmente o retrato como produto e o
referente enquanto representado.
Ainda dentro dessa série, Fábio fez outros trabalhos que são apropriações de
retratos feitos por outra artista, mas na tradição do retrato enquanto representação
de um indivíduo (figura 17). Nestes trabalhos ele suprime a autoria. Os retratos não
são feitos por ele, pois são desenhos feitos por outra artista. O ato de desenhar
nega a reprodução, no sentido dado por Benjamin, mas também revela que com
uma boa técnica é possível fazer cópias quase idênticas. Não são reproduções, mas
clones feitos a partir de uma mesma gênese: o modelo, e com uma mesma técnica:
o grafite. São réplicas, andróides como aqueles que Blade Runner persegue no
cinema, personagens sem memória, despersonificados, mas capazes de conviver
perfeitamente dentro dos sistemas existentes.
É possível fazer uma relação, desses dez retratos do Fábio feitos por outra
artista, aos quais ele acrescenta interferências, e a discussão de identidade feita por
Rosangela Rennó. As imagens de Rennó são fotografias, das quais ela se apropria,
de pessoas reais que foram tiradas para registro e catalogação, principalmente para
identificação, por carregar a fotografia, nesse sentido, o conceito de fiel
representação da realidade. Mas ao se apropriar dessas imagens e apresentá-las,
Rennó mostra quão impessoais e despidas de humanidade elas estão. Essa falta de
identidade, se revela por esse tipo de registro ter um mesmo enquadramento, luz,
execução. E também, pela expressão do fotografado, isenta de qualquer traço de
personalidade. A fotografia do retrato de identificação tira a pessoa do seu meio,
limpa os possíveis indícios da sua vida pessoal e limita-se a registrar suas
características físicas, numa única pose e enquadramento.46 Então, é como se todas
as fotos fossem iguais, porém diferentes, porque são pessoas reais, mas que
resultam em imagens iguais. Voltamos à repetição do idêntico, ao eterno retorno do
46 FABRIS, A. Identidades Seqüestradas. In SAMAIN, E. (org.) O Fotográfico. 2ª ed. Ed Hucitec e Senac SP, São Paulo, 2005. p. 265.
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sempre idêntico de Deleuze, que nos revela as diferenças, aquelas que poderiam
passar despercebidas não fossem a mão e o olhar da artista.
As pinturas denominadas Um Mundo Feito de Catarro, apresentam múltiplas
figuras e silhuetas que lembram o retrato, mas que ao invés de buscar uma
unicidade, revelam uma infinidade de possibilidades de re-apresentações. Porém,
nesses dez desenhos apropriados de outra artista, que ele também chama de Auto-
retrato, a unicidade parece maior, e as imagens são mais tradicionalmente
reconhecidas como retratos. Mas, como afirmar que são auto-retratos, se na
verdade houve uma apropriação de retratos dele, do artista, feitos por outra artista?
Podemos dizer que são auto-retratos na medida em que Fábio os assume como tal,
seqüestrando as imagens para si, e acrescentando interferências a elas. Ele
conecta todos os desenhos por uma linha que parece um conduto. Essa linha dá
uma temporalidade à imagem, dá o sentido de repetição, mas de diferença na
permanência. Prestando muita atenção percebe-se que são dez desenhos
diferentes, e não o mesmo reproduzido. Então, revela-se outro valor do original que
se assemelha à cópia.
FIGURA 17 – ACIDEZ (1999/00)
s/título, auto-retrato – série acidez, 2000/01 (grafite, guache e verniz sobre papel) 64x150cm
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Capítulo IV
Novas mídias, novos meios.
O percurso de Fábio Noronha no que tange a utilização de técnicas e
materiais, é paralelo às mudanças ocorridas dos movimentos modernos para os pós-
modernos.47 Ou seja, ele começou a lançar mão de técnicas, processos e objetos
não tradicionais ao meio artístico para executar seu trabalho, como muitos outros
artistas também o fazem. Deixou de lado a pintura e desenho, técnicas preferidas
até então, e passou a utilizar imagens digitais e vídeos, tanto feitos e dirigidos por
ele, como apropriados da internet. Existem várias razões que justificam sua opção
de utilizar vídeo, que é recente em sua carreira (começou no ano 2000). Uma delas
é sua vocação para experimentação, a utilização de ferramentas diferentes, como
ele mesmo diz: “essa coisa de menino de trocar de brinquedo e de fuçar, descobrir
coisas novas.”48 Ele tem em seu ateliê aparelhos de edição de vídeo e áudio
conectados ao seu computador, onde está sempre experimentando e trabalhando.
Quando perguntado sobre essas escolhas, se as havia feito porque realmente
não acreditava que a pintura e desenho não davam mais conta da arte
contemporânea, sua resposta foi de que o problema não estava na pintura ou no
desenho. Para ele, estes meios são legítimos para a arte contemporânea assim
como todos os outros, mas, no momento em que escolheu os vídeos, foi antes por
uma necessidade de experimentação e, principalmente, por questões ligadas ao
espaço físico que as pinturas ocupam, menos por questões de forma e técnica. Ou
seja, os vídeos e imagens “retirados“ da internet, podem e são vinculados por ela
também, o que facilita sua circulação, além de ocuparem apenas espaço virtual e
nenhum espaço físico, tal qual as pinturas ou esculturas ocupam, por exemplo. Em
suas palavras:
Mas, também, por uma questão de espaço físico, chega uma hora que ele acaba, pinturas ocupam muito espaço. Não tem mercado, não tem fluxo para este produto que deveria circular, e como não circula, fica literalmente encalhado ocupando espaço. Daí perguntar: como vou me situar no mundo. As mídias digitais circulam de uma forma absolutamente veloz, simultaneamente podem ser assistidas e copiadas por várias pessoas.49
47 Para Douglas Crimp o termo pós-modernismo não tem uma definição consensual, e muitas vezes é empregado como sinônimo de liberdade do artista, pluralismo de linguagens, utilização de meios diversos dos tradicionais, como contra-revolução ao paradigma modernista, o pós-modernismo começa quando a fotografia chega para perverter o modernismo. Ver CRIMP, op. cit. p.71 48 NORONHA, F. Entrevista concedida a Deborah Alice Bruel Gemin. Curitiba, 24 fev. 2005. 49 Ibid.
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A apropriação para Fábio tem relação com Duchamp e com as primeiras
colagens cubistas. Mas também, com a história da arte em geral.
Mas como lembra Walter Benjamin, a história da arte sempre foi a história da reprodução: reproduziam os falsários, os discípulos, os mestres. Dentro da história da arte a idéia de repetição é clássica, quantas crucificações, quantos santinhos fazendo isso ou aquilo... Acho que uma certa idéia de apropriação, ou melhor, de escolha como diria Duchamp, é a própria medida da arte. Somente se faz arte porque o campo da arte existe e depende da sua contínua confirmação, mesmo que essa confirmação venha mediada pela rejeição: ao se rejeitar alguma coisa, confirma-se a sua existência. A apropriação tem a ver tanto com Duchamp, quanto com história da arte em geral. Mas quando me aproprio desse material da Web, não compartilho da mesma lógica dos ready-mades ou das primeiras colagens. Pois, no começo do século XX existia uma distinção mais ou menos clara entre o espaço da arte e o espaço do mundo, ainda eram dois espaços distintos. Na medida em que hoje estes espaços se confundem, e a arte é melhor definida pela maneira como um grupo específico olha (diga-se: com um olhar e vocabulário específicos) do que pela forma do objeto, não sei se dá para aproximar de forma tão direta o gesto de Duchamp ao do artista que hoje trabalha com apropriação. Quando coleto esses vídeos, mais do que me apropriar, transfiro dados de um HD para outro HD, de um sistema para outro, parece não existir condição física, ou melhor, não lembramos dela – condição necessária para o ready-made e para as primeiras colagens. Se quisermos, a própria transmissão da TV é uma grande colagem; a visualidade do mundo constituído é uma grande colagem, cheia de apropriações, etc. Impossível não ver a produção artística contemporânea feita a partir dessa lógica, seja na pintura, na apropriação ou construção de objetos, nos vídeos... Mais uma variação disso acontece quando, recentemente, utilizo vídeos declaradamente de domínio público, nem sei mais se isso é apropriação. 50
A resposta a essa pergunta daria outra monografia. Mas, pode-se considerar
que existe apropriação na medida em que os vídeos, ou parte deles, estão
disponíveis na internet para um fim determinado, que é satisfazer fetiches e
curiosidades sexuais. A partir do momento que o artista utiliza estas imagens,
ignorando o conteúdo pornográfico e subvertendo seu significado, está tornando
esta imagem numa alegoria, num objeto artístico que discute repetição,
temporalidade e outras questões que ele torna visíveis. O ato alegórico do Fábio não
acontece por ele dar um significado totalmente novo à imagem de que se apropria,
mas retira, resgata dela valores intrínsecos, encobertos pelos objetivos mais diretos
e fáceis para os quais elas foram feitas.
Annateresa Fabris faz algumas considerações sobre o ato de apropriação e o
ato artesanal de confeccionar o objeto artístico, estabelecendo vínculos entre
Duchamp e a fotografia, utilizando algumas considerações de Anne Cauquelin:
A idéia de que o autor desaparece enquanto fazedor para tornar-se aquele que mostra; o lembrete de que o ready-made não pode ser dissociado do ‘continente temporal’, pois a
50 NORONHA, F. Entrevista concedida a Deborah Alice Bruel Gemin. Curitiba, 24 fev. 2005.
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escolha do objeto pertence ao acaso, ao encontro, à ocasião; a concepção do artista como produtor, ou seja, como alguém que abdica da criação em favor da utilização do material e do deslocamento do objeto em termos de lugar e de temporalidade.51
Para Hal Foster o artista pós-moderno “era menos um produtor de objetos do
que um manipulador de signos, engajado criticamente com a ampla esfera da
representação.” 52 O artista é um mediador de imagens, o objeto artístico do fetiche,
do espaço tradicional da arte é sempre negado pelo artista pós-moderno, São
imagens que descendem da antiarte, da negação da autoria, da colagem e da arte
conceitual.
Além de estarem à disposição do público, os vídeos pornográficos retirados
da internet são vídeos sem autoria, pois normalmente são fragmentos de filmes,
onde geralmente não aparecem os créditos de direção, montagem, etc. O máximo
que pode aparecer nos créditos são os nomes das atrizes e atores mais famosos da
pornografia que chamam atenção do consumidor desse tipo de produto.53 Portanto,
voltamos para a questão do autor, tão discutida no final da arte moderna pelos
artistas conceituais e pop, e largamente ampliada no que chamamos de pós-
modernismo. A discussão em torno do objeto e da autoria é o cerne da crise
ontológica da arte nesses últimos tempos.
Nos vídeos de Fábio o título também tem importância para dar maior
complexidade à imagem. É a utilização da linguagem, da palavra, tão importante às
vezes, pois expressa uma idéia e constrói uma outra imagem para o espectador, ou
melhor, através da palavra ele visualiza outra imagem na sua mente, induzido pela
linguagem. Referindo-se aos artistas conceituais Kosuth e Laurence Weiner, Michael
Archer afirma que palavras têm uma particularidade essencial que é perfeitamente
apropriada à investigação do artista visual, e como diz Owens: “essa confusão do
verbal e do visual é apenas um aspecto da desesperada confusão de todos os
meios estéticos e categorias estilísticas da alegoria.[...] Essa confusão de gênero
51 CAUQUELIN, A. A arte contemporânea. Apud FABRIS, A. Da reivindicação de Nadar a Sherrie Levine: Autoria e direitos autorais na fotografia. Revista do mestrado de História da Arte EBA UFRJ, Rio de Janeiro. P.117 52 FOSTER apud WOOD, op. cit. p.43. 53 O artista utiliza vídeos de domínio público, que são encontrados no site <http://www.archive.org/details/prelinger>. Mas os vídeos pornográficos não são de domínio público, eles apenas estão à disposição de usuários da internet.
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antecipada por Duchamp, reaparece hoje na hibridização, em trabalhos ecléticos
que, ostensivamente, combinam de antemão meios distintos de arte”54
Por exemplo em Courbet (fig.18), o título é uma referência à pintura A Origem
do Mundo de Gustav Courbet, a composição da imagem também lembra muito à da
pintura, mas isso só faz sentido para quem conhece esta obra de Courbet. Essa
atitude é típica das “homenagens” que os artistas contemporâneos fazem aos
clássicos da arte, pois as citações dão “aura” aos trabalhos. Quando cita Courbet,
Fábio faz alusão ao que a obra representou ao universo da arte. A Origem do Mundo
tem uma história peculiar, por muito tempo ficou desconhecida do público. Foi
inicialmente encomendada por um turco e esteve em propriedade privada por muitos
anos, só passou a domínio público por volta dos anos 90, quando foi descoberta, e
hoje encontra-se no Museu D’Orsay em Paris. Este período anônimo deve-se ao fato
da pintura representar uma cena inadmissível aos padrões morais da época. No
entanto, aquilo que foi considerado pornografia, hoje é admirado também pelas suas
qualidades estéticas, e passou do domínio privado para o domínio público. A
apropriação de Fábio faz o caminho inverso, ele retira o vídeo da internet, portanto,
algo que está à disposição do público e, empresta o título de uma obra que pertence
à humanidade. Leva-os ao seu processo privado de produção, e retorna-os ao
público como obra de arte.
O jogo com as palavras já estava presente nos desenhos Você sabia que o
pato quando está rezando tem a cabeça inchada? e nas pinturas Um mundo feito de
catarro, que são trabalhos onde a linguagem escrita literalmente cria uma imagem e
não têm, segundo o artista, outra intenção a não ser essa, a de ser uma imagem,
não há mensagem implícita e nem narrativa.
O que interessa nesse vídeo Courbet é a repetição mecânica do gesto, que
esvazia de significado a cena e, que a aproxima de uma fatura repetitiva qualquer.
São duas situações repetidas continuamente, como um retorno sem fim. A imagem
da esquerda, que dá nome ao vídeo por sua relação com a pintura de Courbet –
mesmo enquadramento – é toda em vermelho o que dá uma dramaticidade maior à
cena em contraste com a imagem da direita, um movimento técnico de operação de
uma máquina repetido várias vezes, que está em preto e branco. A imagem da
direita reduz o choque que a cena pornográfica pode causar, a repetição coloca as
54 OWENS, Craig. O Impulso Alegórico: sobre uma teoria do pós-modernismo. Revista do mestrado de História da Arte EBA UFRJ, Rio de Janeiro, 2º semestre. 2004. p.117.
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duas no mesmo grau de importância, porque o assunto é outro, é a repetição e a
diferença. Douglas Crimp coloca a pluralidade de cópias da arte pós-modernista,
como ele chama o período pós anos 60, em contrapartida ao pluralismo de originais
da arte moderna, onde o trabalho de arte era único e original. Ele chama de
pluralismo “aquela fantasia de que a arte é livre”, e essa liberdade significa isenção
de discurso, instituições e, acima de tudo, livre da história.55
Fábio afirma que a escolha de imagens pornográficas, não tem o objetivo de
chocar e nem de discutir a sexualidade. Para ele, são imagens banais e que não
surpreendem por causa da quantidade de vezes que já foram mostradas e repetidas.
Porém, ao que remete a imagem, e o que ela representa nessa sociedade é algo
que é difícil de ignorar. Mesmo que a intenção do artista não esteja em dar
conotação sexual ao seu trabalho, a cena está ali e mostra algo. O resultado de um
trabalho não se limita à intencionalidade do artista e Fábio admite que o projetado
pelo artista não é o que o trabalho apresenta ao ser terminado, e esse elemento
novo, essa dissonância, é o que lhe interessa.56 Nos trabalhos da série Acidez
existem muitas formas fálicas, que são encontradas também nas primeiras pinturas,
confirmando portanto a freqüência de sua presença.
Não cabe aqui uma análise psicanalítica dessa constante, mas também não
podem ser ignorados o conteúdo sexual e a escolha do artista. Há que se considerar
que a escolha nunca é indiferente, não é uma atitude isenta, provoca
conseqüências, como diz De Duve “a indiferença visual absoluta é impraticável”. 57
O tratamento que Fábio dá aos vídeos e à estas imagens mediadas é uma
atitude alegórica no sentido em que Craig Owens trata a alegoria: “Ela [alegoria] não
restaura um significado original que possa ter sido perdido ou obscurecido: a
alegoria não é hermenêutica. Mais do que isso ela anexa outro significado à
imagem.” Além dessa característica, outra atitude que pode ser chamada de
alegórica é a apropriação. Segundo Owens “o imaginário alegórico é um imaginário
apropriado, o alegorista não inventa imagens, mas as confisca”.58 Benjamim Buchloh
vem corroborar esta tese, quando se refere à apropriação que Duchamp fez do
ícone da história da arte, a Mona Lisa, e submeteu a imagem dessa obra impressa
55 CRIMP, D. A Atividade Fotográfica do Pós-Modernismo. Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais EBA. UFRJ, ano XI. 2004. p. 127. 56 NORONHA, F. Entrevista de concedida a Livia Piantavini. Curitiba, nov. 2002. 57 DUVE, op.cit. p.130 58 OWENS,op. cit. p.114.
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“aos procedimentos essencialmente alegóricos de confiscação”, e ainda essa
imagem tecnicamente reproduzida de uma “obra única e aurática, opera como
complemento ideológico de mercadoria manufaturada que o ready-made enquadra
em seu esquema alegórico.” 59
FIGURA 18 – COURBET / Série Insônia Valeriana
vídeo
Um vídeo importante nesse sentido é O Olho (fig.19). Fábio novamente se
apropria de um fragmento de filme, do triller Terror na Ópera, 1998, de Dario
Argento. No filme original a personagem é refém de um assassino que a obriga
assistir os assassinatos cometidos por ele. Para isso ele a obriga a ficar de olhos
abertos, com uma grade de alfinetes coladas à face que a impedem de fechar os
olhos. O vídeo de Fábio consiste na imagem em close desse olho aberto que se
movimenta para os lados como se quisesse fugir à prisão, representada pelos
alfinetes. A fita foi colocada na pálpebra inferior e funciona como uma grade que
impede o olho de fechar. Para Ronald Simon, O Olho “nos fala, entre outras coisas,
59 BUCHLOH, B. Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea. Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais EBA. UFRJ, ano VII, número 7. 2000. p.128.
![Page 41: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/41.jpg)
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da relação entre poder e olhar, poder aqui no sentido de domínio. (...) o poder do
olhar como elemento de controle do outro”. 60
O olhar é instrumento do artista visual. Percebe-se e analisa-se imagens pela
visão. No entanto, o olho do vídeo está aprisionado no ver sempre, não pode decidir
o que vai olhar, não pode fechar. Isso lembra a cena do filme Laranja Mecânica
onde o protagonista, um sujeito violento, está sendo submetido a um tratamento
para sua reintegração à sociedade, onde a imagem é o remédio. Nesse filme o
personagem também não consegue fechar o olho, não pode fugir à imagem, seu
olho é escancarado, e a realidade tem que ser vista. O olhar é submetido a um
condicionamento.
Além da imagem, há uma espécie de diálogo cujo som é deturpado
impossibilitando o entendimento do que é dito, mas assim como a imagem, o som se
repete continuamente. O conteúdo de áudio também foi criado pelo Fábio, a partir da
performance Para acabar com o julgamento de Deus do escritor Antonin Artaud,
apresentada em 1947, com interferências de sons gerados pelo computador.61 Outro
meio muito utilizado pelo artista é o áudio, onde ele cria e manipula sons.
O vídeo Olho causa-nos uma inquietação, assim como o mal estar ambíguo
causado pela obra EAT ME - A gula ou a luxúria ?– de Lygia Pape, como ela
mesma define, as duas obras além da semelhança por terem um close do olho
numa, e na outra, da boca, são manipulações alegóricas de imagens, e do que
esses símbolos representam. A boca, é utilizada para lembrar o sensual, mas ao
mesmo tempo com uma mensagem controversa de contestação da mulher-objeto e
seu uso como consumo. O olho, janela da alma, ele que nos aprisiona às imagens,
está agora preso a uma situação de estranhamento, de impossibilidades. A obra
acontece na relação do espectador com ela, porque a imagem fica, permanece a
mesma, se repete num devir que suscita inquietações. Ambos trabalham com o
fetiche. Claramente a obra de Lygia Pape tem conotação sexual, inclusive como
protesto do fetiche. Na obra de Fábio, embora a imagem não seja de um órgão
fálico, a atitude a que o olho é submetido é sádica, pode ser entendido como um
fetiche, relacionada à dominação sexual. O Olho revela uma atitude alegórica, é uma
imagem que permite uma mediação do pensamento e a realidade, do ser e a arte.
60 SIMON, R. Texto in Catálogo de Exposição Síntese Paraná.Casa Andrade Muricy, Secretaria de Cultura do Estado do Paraná, 2002 61 Ibid.
![Page 42: A Arte de Fábio Noronha](https://reader031.vdocuments.com.br/reader031/viewer/2022022405/557202ad4979599169a3eec9/html5/thumbnails/42.jpg)
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FIGURA 19 – O OLHO
Vídeo
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Considerações Finais
Como em toda produção artística, existem várias possibilidades de leituras e
análises. A de Fábio Noronha não é diferente. Não se pretendeu aqui, esgotar todas
as possibilidades, e sim apontar algumas questões e características de sua poética.
Seu trabalho abarca desde conceitos tradicionais de arte até soluções pós-
modernas quando lança mão de tecnologias mais novas, como os vídeos. O que há
é uma multiplicidade de fazeres, de meios e imagens, que refletem o artista atual,
que assim como tantos outros contemporâneos aceitam o fato da esfera da arte
estar completamente misturada com as outras esferas da vida, e aí forjam seus
trabalhos. E, é com essa linguagem nova permeada pela filosofia, pela ciência, pelo
cotidiano, que Fábio Noronha faz o seu trabalho, não mais como a criação de algo
único e aurático, mas como uma atitude de pensar esta interdisciplinaridade, de
entender e tentar resolver onde está o meio artístico, qual é o seu objeto de estudo e
como vamos nos aproximar de seu produto. Se as diferenças entre os espaços da
arte e do cotidiano deixaram de existir após Duchamp, hoje temos espaços híbridos,
intercâmbios interdisciplinares, e isto é bastante evidente na trajetória de Fábio
Noronha.
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primeira versão. In Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Arte Contemporânea do Paraná. Curitiba, 1994. CRIMP, Douglas. Sobre as Ruínas do Museu. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _____, A Atividade Fotográfica do Pós-Modernismo. Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, Rio de Janeiro, ano XI, 2004. DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. Revista do Mestrado de História da
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ANEXOS
Entrevista de Fábio Noronha a Deborah Bruel concedida em 24/02/2005 - Curitiba D B – Você diz em certo momento que tinha a preocupação de não ter uma identidade fixa, “um padrão de produção”, e isto o levou às séries, que questionam essa aparente igualdade. Mas embora os trabalhos sejam muito diferentes, consigo perceber uma unidade entre as últimas séries de pinturas e fotos e seus primeiros trabalhos. Estes eram mais abstratos, mais gestuais, mas à medida que seu trabalho vai desenvolvendo tudo parece ter ficado mais palpável, mais direto, mais aparente. As formas são quase como objetos. É isso mesmo? F N – Nas primeiras pinturas, estava preocupado principalmente com aspectos formais, com problemas ligados à composição e às possíveis variações do espaço pictórico; daí, talvez, o maior grau de abstração das formas e a presença da figura ser localizada e desmaterializada pelo próprio gesto, pela maneira como foi feita. Estas pinturas obedeciam a um padrão formado pela idéia de identidade, apesar de aparentemente diferentes. O que passa simultaneamente a me incomodar e interessar bastante, justamente por que não queria pensar na minha produção artística como um padrão. Nesse momento, começo a organizar meus trabalhos em séries, e pensar a repetição contida na identidade como um pressuposto para minha produção, e ver que a repetição poderia ser ligada à diferença. Trata-se de uma inversão: primeiro, da diferença para a repetição, depois, da repetição para a diferença. Principalmente nos auto-retratos da série Acidez: é como se as manchas e as linhas edificassem coisas, linhas que, ao mesmo tempo, definem a presença de um sujeito, um possível auto-retrato, e das coisas. Um auto-retrato formado por coisas, daí essa solidez. Quanto à unidade da minha produção em geral, desde o início até agora, acredito que seja possível identificar áreas comuns. Afinal, todos os trabalhos foram feitos pela mesma pessoa, são contaminados por um certo olhar que certamente varia, mas também permanece. D B – Eu vejo a pintura como uma questão da cor, não consigo pensar de outra forma. Mas em seus trabalhos a cor é mínima, pelo menos até a série Acidez quase não faz falta, e isso é intrigante. A cor é uma massa, adquire status de um objeto, não forma uma totalidade colorida, são vários objetos independentes. Como a cor se apresenta para você? F N – Acho que você tem razão. Mas, de fato, começo a lidar com a cor de forma mais cuidadosa na série Conservadores de Carne, não simplesmente como valor de oposição como acontecia até a série Condutores de Limites. Iniciada um pouco antes da série Acidez, as pinturas e mesmo os desenhos da série Conservadores de Carne são feitos por variações muito sutis de cinza; e, justamente por causa dessa proximidade dos tons, e para que ela não anule as diferenças, preciso tratar a cor com muita sensibilidade, ter um olhar muito apurado e atento a sua confecção. Nos auto-retratos da série Acidez uso cores mais sintéticas, cores que cobrem as coisas do mundo em geral. São menos orgânicas, tem um sentido sintético mesmo – cores dos carros, das embalagens dos produtos, etc. – não são cores ditas “artísticas”. A esse respeito, lembro quando na exposição da série Acidez o Ronald Simon comentou: “Puxa Fábio essas cores não são artísticas, não são cores “belasartianas”. Mesmo quando uso algumas cores que poderiam ter esse aspecto orgânico – prateado, dourado, alguns tons de cinza – faço questão de enfatizar a presença do contorno, sua materialidade, seu aspecto de coisa, e não como algo desmaterializado no espaço… D B – ou como ilusão?
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F N – Como ilusão. D B– Poderia se dizer que você já estava utilizando a apropriação, se apropriando de cores que são produtos também, ou estou errada? F N – Não pensava nisso, mas acho que é bem possível. Esta relação entre cores e produtos está ligada diretamente a um contexto, é imposta mesmo pelo mercado, o que faz com que em muitos casos a escolha das cores não seja afetiva. A tinta produzida no Brasil é muito vagabunda, e a importada é muito cara, resumo: tenho que comprar fora, onde são comuns os “balaios de liquidação”; não preciso dizer que são essas tintas as escolhidas. Por isso, as cores das pinturas são em grande parte determinadas pelo que está em liquidação, pelo que não vendeu, pelas cores rejeitadas, ou seja, pelas tentativas não muito bem sucedidas das empresas em introduzir novas cores no mercado. O fato é que essas cores “não artísticas” impregnaram meu trabalho e trouxeram um novo caráter. Quanto à idéia de apropriação, vejo-a mais ligada às formas e aos elementos que compõem os trabalhos. Apropriação que, inicialmente, não acontecia como um pressuposto, antes era a repetição de um certo vocabulário, apropriação de soluções já conhecidas – talvez de forma um pouco dissimulada ou inesperada, mas ainda assim pode ser uma idéia de apropriação. O que acontece nas séries mais recentes, a partir da série Acidez, é que esse retorno a soluções já encontradas, torna-se um padrão. Não mais distorço formas conhecidas, se quiser, apropriadas, para se que pareçam ou lembrem, mas somente de longe, outras. Pelo contrário, assumo: são formas iguais mesmo, espécie de carimbo feito com máscaras/estêncil; o que vai diferenciá-las é o fato de serem preenchidas manualmente, e é justamente esse preenchimento que vai fazer com que a repetição seja abalada. D B – Como é que acontece o aspecto formal nos vídeos. Nessa escolha do vídeo. Porque eu percebo que tem uma elaboração formal do olhar, da escolha. Tem uma composição, porque você escolhe um enquadramento. Como é que acontece isso? F N – Trabalho com vídeo há pouco tempo, mais ou menos cinco anos. Nos primeiros projetos, como para qualquer um que está no começo, não conseguia dimensionar muito bem as coisas. Acho que isso ocorre por que o vídeo, na minha opinião, atrai a idéia de algo grandioso, contaminado com freqüência pelo espaço da produção cinematográfica. Embora meus primeiros vídeos sejam extremamente econômicos, essa idéia estava presente como um fantasma. Que logo se desfez. Além disso, pretendia que a narrativa funcionasse como linha condutora para as seqüências de imagens, por mais que esse sentido narrativo fosse muito precário. Confesso que cansei rápido de gravar, selecionar, enquadrar, etc – não sei se já influenciado pela série Acidez, onde começo com mais freqüência a usar moldes, formas pré-estabelecidas, eventualmente, coisas inventadas por outros; ou, pelo meu envolvimento com a computação, onde pude perceber questões sobre repetição, apropriação, multiplicação. O fato é que deixei de gravar e passei a mapear certos assuntos e construir meus vídeos a partir de apropriações. A primeira tentativa nesse sentido, utilizando filmes do tipo “hollywoodianos”, na verdade os trailers desses filmes disponíveis na Web, absolutamente não deu certo. É que esse material editado anteriormente “por Hollywood” é praticamente indestrutível, por menor que seja o fragmento, ainda assim tem a cara de videoclipe ou trailer, é como uma praga – e isso absolutamente eu não queria. Principalmente, porque queria discutir uma idéia de repetição que já vinha da pintura, especificamente a relação entre repetição e diferença: a repetição tem como objetivo a diferença. Daí vídeos pornográficos, que, além de tratar da repetição, não tem autor; assim como urinol, o vídeo pornô também não tem autoria. Não se procura o autor desses vídeos disponíveis na Web, é algo inconcebível, no máximo o nome da atriz…
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D B – que vai fazer o marketing para eles,… F N – …isso, exatamente, mas esse “eles” não significa um autor, é uma equipe sem nome; e, depois, a idéia de que o vídeo tem sempre um conteúdo esperado: não se espera algo diferente do que se recebe, sabe-se o que vai ser encontrado. Essa idéia de repetição me interessou bastante. Além disso, esses vídeos são distribuídos em fragmentos, para facilitar o download, numerados na maioria das vezes, ou seja, um outro padrão repetitivo, não importa se no site X ou no site Y. A série Insônia Valeriana foi construída com esse material, e nela discuto essa idéia de repetição e diferença, que aconteceu nas pinturas, de uma forma relevante. Embora formalmente esses vídeos tenham uma presença um pouco perturbadora, um pouco agressiva para a maioria das pessoas, acho que o escopo dele, digamos assim, fez-me pensar muito sobre algumas idéias importantes para o meu trabalho, principalmente essa idéia de repetição e de diferença que vem mapeando a minha produção em diferentes níveis. D B – Então, com relação ao vídeo e também já na série Acidez, e principalmente naqueles desenhos dessa série, a gente percebe que existem formas fálicas, a língua por exemplo. Há um contexto sexual ali, e que também esse contexto está presente nos vídeos. Como é essa abordagem do sexo, isso tem importância? F N – Eu não penso nisso. Algumas vezes já me falaram que o meu trabalho era pornográfico, não esses vídeos, nem a série Acidez, mas os anteriores, que eram cheios de formas fálicas, nos contornos, nos limites do desenho. Que aquilo era quase obsceno. Absolutamente não pensava e não penso nisso quando faço trabalhos. Não é um assunto, uma questão que, em princípio, pretenda desenvolver. D B – Ele não é o tema? F N – Não, absolutamente. Quando falo beijo de língua desarticulado, não penso em nenhum conteúdo sexual, nem fetiche, nada disso. É uma imagem apenas. D B – Observando alguns desenhos da série Condutores de Limites como da Acidez, dá para perceber que tem formas que você pode relacionar, são fálicas mesmo como a língua. Talvez seja por uma questão cultural que a gente enxergue a língua como algo relacionada ao sexo, que é um pudor, revela um pudor, por isso que devo perguntar existe a presença fálica intencional ou não? F N – Quando faço os trabalho isso não é uma questão, mas quando olho para eles obviamente percebo que aquelas formas são fálicas, remetem a partes do corpo normalmente censurados, e isto é muito claro. Tanto que na exposição de Foz do Iguaçu, o vídeo censurado era justamente o de uma mulher fazendo sexo oral com outra. Mas, como era um close desta cena, o que de fato aparecia era a língua lambendo uma parte do corpo, uma superfície, a pele, e não uma cena explícita de sexo oral. Essa presença já incomodava as pessoas. Mas, o vídeo somente foi censurado depois que eu disse o que era: uma cena de sexo oral entra duas mulheres. Até então, só incomodava, não era motivo de censura – foi a legenda do vídeo, não o que era visto, que motivou a censura. Sem dúvida, o trabalho ganha outra dimensão para aquele que olha nos vídeos formas fálicas que devam ser censuradas, talvez uma a dimensão inicialmente não prevista; não tem como controlar o olhar do outro, na verdade, não tenho essa pretensão. Da mesma forma, aconteceu na exposição da série de auto-retratos Acidez, com as pinturas com a frase Um mundo feito de catarro. Várias pessoas comentaram: Ah, eu também acho que o mundo está horrível; é uma crítica ao mundo, não? Normalmente respondia: não, acho que você não leu direito; um mundo feito de catarro é uma imagem, estou propondo uma imagem, foi o que disse na época. É um mundo onde todas as coisas são feitas da mesma matéria, catarro. Nele, qualquer contato vai anular as diferenças e no final temos um globo gigantesco da mesma coisa, uniforme. Nesse mundo, por exemplo, se
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arremesso uma pedra contra alguém ela vai ser tragada, já que ambas são feitas da mesma matéria. Se existe uma crítica aí, é muito mais sobre a idéia de homogeneidade. Propus uma imagem, a imagem tem sua potência, e, em primeiro lugar, existe como imagem, não como crítica social. D B – De onde vem os nomes para os vídeos, porque em alguns é possível fazer uma relação imediata, por exemplo Courbet, que eu conheço por causa da composição do quadro “A origem do mundo”. Essa associação do nome é livre ou existe uma intenção? Pelo que você acabou de dizer não existe, é livre. A pessoa vai fazer uma associação e de repente pode derivar para um lado que não era sua intenção, é isso? F N – Em Courbet, essa associação só faz sentido, só é possível para quem conhece Courbet, especificamente para quem conhece a “A Origem do Mundo”, portanto, a ligação é dirigida. Não é uma associação qualquer. Mas isso não é uma rotina no meu trabalho, nem sempre procedo assim. Tanto posso construir a frase “Um mundo feito de catarro”, que é absolutamente auto-referente, como, por outro lado, em Courbet, conectar o trabalho diretamente com a história da arte, ou ainda, na série “Bikini”, dar uma pista falsa: “Bikini” é o atol onde os norte-americanos fizeram testes nucleares, e não uma peça de vestuário. Este duplo sentido da palavra, num determinado contexto, faz a legenda indicar algo que é praticamente impossível de ser resgatado, ao contrário de um jornal ou de um anúncio onde a legenda diz o que deve ser visto. A série de vídeos “Insônia Valeriana”, deriva de outra série de trabalhos que não deu muito certo, mas o título foi mantido. “Valeriana” é uma raiz usada contra insônia, não tem a ver com Paul Valery, como poderia se pensar. Não tenho uma rotina, é meio caótico mesmo; dependendo do trabalho posso estabelecer bordas mais definidas ou deixar tudo completamente aberto, deslocado, meio à deriva. O que às vezes é perigoso: ficar à deriva no próprio espaço da arte. D B – Tem sempre uma provocação. Incita alguma coisa, é isso que eu percebo. Seja uma conexão direta com a imagem ou não, o texto incita, só que também ele propicia que as pessoas tomem sua próprias conclusões. F N – É importante criar esse conflito por que ele mostra como, muitas vezes, olhamos para uma determinada coisa e logo a substituímos, esquecemos mesmo o que está na nossa frente. Por exemplo, trocamos a pintura pelo seu título. D B – Acho que passa por aquilo da arte ter que passar uma mensagem, dizer alguma coisa que modifique de alguma forma, só que uma maneira muito superficial. F N – É, muito velada, muito ineficiente... aquilo que eu disse: se quisesse falar que o mundo está horrível, está podre, falaria exatamente isso. Não preciso usar artifícios, acho que vivemos num mundo com um nível de censura mais leve. D B – Uma coisa que eu queria saber também é se essa atitude de se apropriar das imagens da internet, reforça essa intenção de repetição, ou seja, de imagens que parecem diferentes e são iguais, banais, repetitivas, é isso? F N – De quais vídeos? D B – Dos pornográficos que você se apropria. F N – Acho que sim. Nesse caso acentua a idéia de repetição. D B – Mas é a repetição que torna essas imagens banais, como diz a Sontag, ou elas já são banais e é isso que interessa?
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F N – Puxa, não sei. Alguém me disse uma coisa que pode interessar: se os jornais começassem a estampar a mesma notícia todos os dias as pessoas iriam estranhar, ou seja, a repetição que banaliza as coisas, que as torna invisíveis num certo sentido, pelo contrário, chamaria a atenção. Não dá para generalizar, dizer que a repetição sempre banaliza; depende do contexto, da situação. Os vídeos da série Insônia Valeriana são feitos a partir de um material que carrega a idéia de repetição, pois a repetição é esperada. Eles são banais, não sou eu quem os torna banais; banalidade que ocorre também num nível formal, eles são extremamente toscos, sem requinte formal algum. Mas meu interesse principal não reside aí, mas no fato de eu ver neles um bom material para se discutir repetição, eles têm essa idéia como medida, em vários níveis: na produção, na distribuição, na própria forma. D B – Com relação ao gesto da apropriação, você acha que é um gesto aproximado ao gesto do Duchamp? Ou funciona como uma colagem, tipo, essa imagem me interessa vou utilizar. F N – É difícil não pensar nas primeiras colagens, em Duchamp como responsáveis pelo que faço hoje. São os primeiros responsáveis. Mas como lembra Walter Benjamin, a história da arte sempre foi a história da reprodução: reproduziam os falsários, os discípulos, os mestres. Dentro da história da arte a idéia de repetição é clássica, quantas crucificações, quantos santinhos fazendo isso ou aquilo... Acho que uma certa idéia de apropriação, ou melhor, de escolha como diria Duchamp, é a própria medida da arte. Somente se faz arte porque o campo da arte existe e depende da sua contínua confirmação, mesmo que essa confirmação venha mediada pela rejeição: ao se rejeitar alguma coisa, confirma-se a sua existência. A apropriação tem a ver tanto com Duchamp, quanto com história da arte em geral. Mas quando me aproprio desse material da Web, não compartilho da mesma lógica dos ready-mades ou das primeiras colagens. Pois, no começo do século XX existia uma distinção mais ou menos clara entre o espaço da arte e o espaço do mundo, ainda eram dois espaços distintos. Na medida em que hoje estes espaços se confundem, e a arte é melhor definida pela maneira como um grupo específico olha (diga-se: com um olhar e vocabulário específicos) do que pela forma do objeto, não sei se dá para aproximar de forma tão direta o gesto de Duchamp ao do artista que hoje trabalha com apropriação. Quando coleto esses vídeos, mais do que me apropriar, transfiro dados de um HD para outro HD, de um sistema para outro, parece não existir condição física, ou melhor, não lembramos dela – condição necessária para o ready-made e para as primeiras colagens. Se quisermos, a própria transmissão da TV é uma grande colagem; a visualidade do mundo constituído é uma grande colagem, cheia de apropriações, etc. Impossível não ver a produção artística contemporânea feita a partir dessa lógica, seja na pintura, na apropriação ou construção de objetos, nos vídeos. Mais uma variação disso acontece quando, recentemente, utilizo vídeos declaradamente de domínio público, nem sei mais se isso é apropriação. D B – Por que você está utilizando e destinando para um fim que é o seu trabalho? F N – É como se fosse uma mangueira com várias saídas, agora está jorrando aqui, é um mesmo fluxo. Não tiro de lá e ponho aqui, ou melhor, o que está “aqui” é idêntico ao que está “lá”. Essa transferência não modifica o estatuto da coisa. A idéia da apropriação duchampiana é exatamente contrária, ao remover a coisa de um espaço para outro, é preciso ter essa distinção, de “um” para “outro”, o estatuto se modifica; por mais incrível que pareça, hoje é mais difícil modificar o estatuto das coisas. No meio digital, é certo que dependemos de um aparato físico que possibilita conectar as informações, mas é o espaço entre que realmente importa para o virtual, o numérico.
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D B – Você acha que existe uma atribuição de valor quando você escolhe uma imagem, quando você se apropria dela, dá mais importância a ela, essa atitude faz isso? F N – É, isso é agregar valor. A imagem não se torna mais importante por isso, apenas tem um novo valor, portanto, tem um novo poder. Uma outra constituição, porque ela vai ser pensada por um outro viés e mediada por outras condições. Por exemplo, recentemente escolhi uns vídeos que confirmam essa idéia de repetição, ou pelo menos, confirmam essa idéia na minha produção. Um deles falava de um tipo de organização que deveria ser sempre utilizada quando se vai arrumar a mesa para uma recepção. Este vídeo ensinava como é que faz isso; em cena, são duas mulheres, uma jovem e outra idosa, é a senhora quem ensina. Vejo este vídeo como uma perspectiva temporal, como continuação e permanência, quer dizer: provavelmente a avó daquela senhora a ensinou e agora ela vai ensinar a neta. Tradição que tem muito a ver com a arte. No seu contexto original ele tinha uma função específica, orientar e educar as pessoas. Quando me apropriei, meu interesse não estava somente no fato de eu ver nele um projeto de padronização e repetição, mas também, por que vi na organização formal desse vídeo uma possível natureza morta. Naturalmente, depois da edição, o vídeo terá outro peso e a condição dele não será a mesma: educar as pessoas a se organizar melhor, a pôr a mesa de forma mais correta para que as pessoas não esbarrem nos copos e derrubem as coisas, ou como diz o vídeo: para que os convidados se sintam bem à vontade, sejam tratados com respeito. Nada disso, a possível natureza morta deve ser sobreposta ao conteúdo original. Esse será o novo valor do vídeo que, com a intervenção, comentará a natureza morta. E, esse é, muitas vezes, o risco que se corre ao trabalhar com apropriações. Pois, não quero depender de uma legenda ou da minha fala para que esse vídeo seja uma natureza morta. Mas, ao mesmo tempo, quero preservar ao máximo a forma original do vídeo. Ou seja, é preciso indicar algumas coisas, ou, como você disse, atribuir valor para fazer com que a natureza morta, de alguma forma, coloque-se mais potente. Nesse caso, acho que consegui fazer com que a natureza morta se sobrepusesse. D B – Daí entra a questão estética e formal do trabalho? F N – Que para mim é muito importante, um grande barato, especular, experimentar, adoro isso. Vício de pintor. D B – Com relação aos meios, porque você vem de uma tradição do desenho, da pintura e esses meios foram se modificando, como você vê isso? Você acha que há possibilidade da pintura, ou seja, são meios que dão conta ainda dessa produção atual. O fato de você ter passado para outros meios é porque você está experimentando outras possibilidades? F N – Não é por um motivo, são vários: um deles é a experimentação, essa minha vocação especulativa, descobrir coisas, mexer com ferramentas. É como para a criança, o brinquedo cansa rápido. Mas, também, por uma questão de espaço físico, chega uma hora que ele acaba, pinturas ocupam muito espaço. Não tem mercado, não tem fluxo para este produto que deveria circular, e como não circula, fica literalmente encalhado ocupando espaço. Daí perguntar: como vou me situar no mundo. As mídias digitais circulam de uma forma absolutamente veloz, simultaneamente podem ser assistidas e copiadas por várias pessoas. Por isso fiz um site, que inicialmente presta-se à documentação do meu trabalho. Virtualmente, posso fazer com que várias pessoas, ao mesmo tempo, tenham acesso a minha produção, e isso é muito legal. Além desse aspecto, gosto de ver meus trabalhos impregnados, feitos de luz; literalmente a imagem acontece para além da superfície. No começo tinha um pouco de resistência em pensar meus vídeos como pintura. Um dia desses, o Geraldo Leão viu algo que eu tinha gravado sem saber que era meu, perguntou quem tinha gravado, quando soube disse: é óbvio, é um vídeo de pintor. Tenho um pouco de resistência porque conceitualmente são duas coisas muito diferentes, mas acho que não tenho como fugir disso, dessa contaminação
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entre a pintura e o vídeo. Eu faço os dois – pintura e vídeo –, sei que são diferentes, mas a forma dos meus vídeos é emprestada da minha pintura, mesmo do meu desenho, no sentido compositivo, gráfico, das hierarquias entre claro e escuro. E não tem como não ser, a minha formação é essa, a minha medida também é essa.