a arte de bem morrer no rio de janeiro setecentista

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25 5  A a rt e de bem morr er  no Rio de Janeiro setecentista VA RIA HISTORIA, Belo Ho ri zo nte , vo l. 24, nº 39: p .255-272, j an/ j un 2008 A arte de bem mor r er   no R io de J a n eir o s et ecen t is t a * T h e W e ll Dyin g s a r t in Ri o d e J a n eiro C UDIA RODRIGUES Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense/UFF Universidade S al g ado de Oliveira. R ua Marechal Deodoro, 211 , B loco C, 1° anda r , C ent ro, Niterói, RJ, 24.030-060 an derclau@ alt ernex.com.br RESUMO E st e ar t igo a nalisa al g un s a sp ect o s e viden ci ador es d o co nt r o - l e eclesi ást i co so b re m or t e e o m o rr er, no Rio de Ja neiro do Set ecen t os. P a rti n d o da co nst at açã o da existênci a d e u m cer t o p ad r ão das ati t udes e se n sib i l id a des c a t ó l i ca s di a nte da m o r t e, n a so ci ed ad e b r a si l ei r a , do perí o do col o ni al até m ea dos do século X I X , p rocura d em o n str ar que este padrão resul t ou de um longo p rocesso de clericali zaç ão da m o rte, q u e rem o nt a ao p eríodo m edieval. Det en do-se na an álise da pr ep ar ão dos fiéi s p ara a m orte, p rop õ e qu e e sta evi d encia o cum p ri m en to d e a lg u m as d as deter m i naçõ es ec lesi ásti ca s so b re o m orr er p orp art e d e um p erce nt ual co nsi d erável d o s h ab itant es do R i o d e Ja n eiro, n o culo X V III. A o l o ngo do artigo, b usca-se j u sti f i ca r que est e c um p ri m en to expr es sa va o m edo d o s fiéis d as pu n i çõ es qu e, se g u ndo a Igreja,teri am n o a lém -tú m ulo,caso não seguissem o s e nsinam en t o s eclesi ás tico s so bre o bem morrer  , p ro f u nd a- m ente m ar cados pela cham ada  pe da g o g ia do m ed o . * A r tigo rece b ido em :10 / 03 / 2007.Aprovad o em :08/02 / 20 08 .

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Cláud ia Rodrigues 

Palavras-chave boa m orte, pedagogia do bem m orrer, história da m orte,m orte católica

ABSTRACT This article analyzes som e clear aspects of the ecclesiasticalcontrol about death and dying in Rio de Janeiro of the Seven H undred. Star-ting from the verification of the existence of a certain standard of the catholicattitudes and sensibilities facing death, in the Brazilian society of the colonialperiod to m iddle part of the nineteenth century, it tries to dem onstrate thatthis standard resulted from a long process of the clerical principles of deaththat dates back to the m edieval period. D w elling on details in the analysis ofthe preparation of the faithful and devoted ones for the death, it considersthat this evidences the fulfillm ent of som e of theecclesiastical determ inationsabout dying on the part of a considerable percentage of the inhabitants of Riode Janeiro on the eighteenth century. Throughout the article, it is tried to be

justified that this fulfillm ent expressed the fear of the faithful ones about thepunishm ent that, according to C hurch there m ight be in the beyond-gravein case they did not follow the ecclesiastical teachings on the well dying ,deeply m arked by the so called education of the fear .

Key words w ell dying, education of the w ell dying, H istory of the death,catholic death, clerical principles of death.

Morrendo em paz ... com a Igreja no Rio de J aneiro do séculoXVIII

Em dezessete de setem bro de 1779, nas proxim idades da rua de SantaEfigênia, um a das ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro, m ais um cadá-ver foi sepultado na igreja de Santo Elesbão e de S anta Efigênia. Tratava-sedo falecido N arciso José do A m aral, um dos m em bros da irm andade sob ainvocação dos referidos santos. Já bem antes de sua m orte, N arciso vinhase preparando para atuar com o principal personagem de m ais um a dascerim ônias fúnebres organizadas pelos seus confrades.1 

N arciso era negro e de origem africana –proveniente de C abo Verde.Fora escravo do padre José do Am aral Ribeiro, que o alforriara por ocasiãode sua m orte. A condição de ex-cativo e de africano o levavam a ser iden-tificado com o um “preto forro”, segundo ele m esm o se declarava. M orarana rua da Vala, na freguesia da Sé, que concentrava a m aioria das igrejase cem itérios de brancos e negros da cidade. D eixou viúva Teresa de Jesusdo Am aral, tam bém “preta forra”, com quem declarou ter vivido em “boa

1 Arquivo da C úria M etrop olitana do R io d e Janeiro. Livro d e registro d e óbitos e testam entos da freguesia da S é,nº.18 (1776-1784). Testam ento de N arciso José do A m aral, p.167.

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harm onia”e de quem recebera cuidados especiais por ocasião das suasm oléstias, até os últim os m om entos. N ão era despossuído, posto que tinhatrês escravos africanos adultos e um a m orada de casas na rua de São Joa-quim . Em virtude de não ter filhos, instituiu Teresa por sua única herdeira.

Q uatro m eses antes de m orrer, provavelm ente em razão do agrava-m ento de suas m oléstias e não querendo “ser pego de surpresa”, N arcisodecidira fazer seu testam ento. Para tal, solicitou a Boaventura Ribeiro daC osta que, por ele, o redigisse e, com o testem unha, o assinasse. Tem ianão estar preparado para a chegada da “hora derradeira”. M uito m ais doque a própria incerteza do que poderia acontecer à sua alm a após a “pas-sagem ”, havia o m edo de ela ocorrer sem que tivesse “se preparado”parao acontecim ento. A leitura de parte do seu testam ento nos perm ite verificara preocupação em garantir a salvação de sua alm a:

Tem endo-m e da m orte; e por não saber quando [D eus] será servido levar-m epara si, faço este m eu testam ento na form a seguinte. Prim eiram ente encom endoa m inha alm a à Santíssim a Trindade que a criou e rogo ao Padre E terno pelam orte e paixão de seu U nigênito Filho a queira receber assim com o recebeu asua estando para m orrer na árvore da Vera C ruz e a m eu Senhor Jesus C ristopeço pelas suas divinas chagas que já que nesta vida m e fez m ercê dar o seuprecioso sangue e o m erecim ento de seus trabalhos m e fez tam bém m ercê navida que esperam os dar o prêm io dela que é a glória, e peço e rogo à SantaVirgem M aria N ossa Senhora M ãe de D eus e a todos os santos e santas da cortecelestial particularm ente ao anjo da m inha guarda e ao santo de m eu nom e eaos Santos G loriosos Elesbão e Efigênia, e Patriarca Senhor São D om ingos e a

Virgem N ossa Senhora dos R em édios a quem tenho [ilegível] devoções, queirampor m im interceder e rogo ao m eu S enhor Jesus C risto agora e quando a m inhaAlm a deste corpo sair e que com o verdadeiro cristão protesto viver e m orrer naSanta Fé C atólica Rom ana e nela espero viver e salvar a m inha alm a não porm eus m erecim entos m as sim pela santíssim a m orte e paixão do U nigênito Filhode D eus...2

Posteriorm ente a estes pedidos de encom endação e intercessão pelasua alm a e da sua profissão de fé católica, N arciso declarou sua naturalidadeafricana e seu estado m atrim onial, instituiu seus testam enteiros em ordem

de preferências –a m ulher sendo a prim eira –e determ inou a form a pelaqual seu funeral seria realizado. Em seguida, pediu orações em intençãode sua alm a e das de outrem e instituiu legados, bem com o deixou outrasdeterm inações pias, tais com o alforria de escravos e esm olas a pobres.

Apesar de todos estes preparativos, não seria naquele m om ento queN arciso m orreria. O próprio fato de ele ter esperado doze dias para aprovarseu testam ento dem onstra que, provavelm ente, sua saúde não estivessetão debilitada. Q uatro m eses depois, entretanto, a situação chegaria ao

2 Arquivo da C úria M etrop olitana do Rio de Janeiro. Testam ento de N arciso José do Am aral, p.167.

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ponto de sua esposa e seus confrades terem cham ado o pároco para lheadm inistrar os “últim os sacram entos”. Assim , antes de m orrer, N arciso rece-beria a penitência, a eucaristia e a extrem a-unção, conform e está registradoem seu assentam ento de óbito. Após a m orte, seria por ele encom endado,juntam ente com m ais doze sacerdotes, com o havia determ inado em seutestam ento. Finalm ente, seria sepultado na igreja de seus santos de devo-ção, com o era de seu desejo.

O ex-cativo dem onstrou ter estado bastante preocupado em garantirpara si um a “boa m orte”, seja procurando fazer seu testam ento, seja bus-cando os sacram entos da Igreja quando m oribundo. Am bas eram m edidasque, segundo a Igreja, deveriam ser cum pridas pelos fiéis na im inência dam orte, a fim de garantir a salvação da alm a.

Ao introduzir este artigo com a narrativa dos acontecim entos que en-volveram a m orte de N arciso José do Am aral, em 1779, procurei m ostrar

com o, para um africano residente na cidade do Rio de Janeiro e que passaraa professar o catolicism o, tornava-se im portante se preparar para a m orte.Atitude que, provavelm ente, foi reforçada pela própria valorização que asculturas africanas davam à preparação para a m orte e ao ritual funerário.3 N um a analise de outros testam entos redigidos naquela época, observa-sea grande sem elhança com a estrutura do texto presente na declaração das“últim as vontades”de N arciso, bem com o o fato de que tais preocupaçõesnão eram restritas aos negros.

A partir da análise de um a am ostragem de 23.924 registros paroquiais

de óbitos e de 277 testam entos relativos à freguesia da Sé/Santíssim o Sa-cram ento da Antiga Sé, no século XVIII e em parte do XIX,4 constatei que oSetecentos apresentou um a freqüência relativam ente alta de cum prim entodaquelas duas determ inações eclesiásticas sobre o bem morrer.5 

Através da análise quantitativa e serial dos registros de óbito, pudeidentificar que 45% dos m ortos com condições de fazer testam ento –serlivre/liberto e m aior de 14 anos –o fizeram , na prim eira m etade do séculoXVIII, enquanto 29,6% o fizeram na segunda m etade. C onsiderando que, noséculo XIX, 6,5% testaram na prim eira m etade e 0,9% o fizeram na segunda,

creio ser possível interpretar os índices da prática testam entária do Sete-centos com o significativos, principalm ente se levarm os em consideraçãoas características sócio-econôm icas do período colonial, em term os dospadrões de posse.6 

3 RO D RIG U ES, C láudia. Funerais sincréticos: práticas fúnebres na sociedade escravista.Cativeiro e Liberdade , R iode Janeiro, U FF/U FRJ, n.3, jan./jun. 1996.

4 C oletados junto ao Arquivo da C úria M etrop olitana do R io de Janeiro e ao Arquivo N acional. Para m aiores detalhessobre a m etodolog ia utilizada, ver R O D RIG U ES, C láudia.Nas fron teiras do além: a secularização da m orte no R iode Janeiro (séculos X VIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo N acional, 2005, p.26-27.

5 Para m aiores detalhes, ver RO D R IG U ES, C láudia.Nas fron teiras do além , p.128-140.6 Sob re a prática testam entária na C olônia, ver O LIVEIR A, M aria Inês C ôrtes de.O liberto: o seu m undo e os outros.Salvador, 1790-1890. São Paulo: C orrupio/C N Pq, 1988, p.5-8 e 74-102; PA IVA , Eduardo França.Escravos e libertos

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Acom panhando a freqüência do recurso aos sacram entos por ocasiãoda m orte, tam bém pude verificar altos índices relativos ao século XVIII: 75,5%na prim eira m etade e 72,8% na segunda; enquanto o século seguinte apre-sentou tendência para o declínio, sem elhante à prática testam entária, aindaque m enos acentuado: 53,4% na prim eira m etade do século e 28,0% nasegunda.7 O fato de os sacram entos apresentarem um percentual bem m aiorde recorrência em relação à prática testam entária, m uito provavelm ente seexplica pela m aior am plitude dos grupos sociais que a eles podiam recorrer,posto que poderiam ser recebidos por escravos e indivíduos independentede suas posses.

Em que pese o fato de as fontes pesquisadas serem eclesiásticas e avigência do sistem a de união entre Igreja e Estado, no período enfocadopela pesquisa, é possível questionar sobre o aparente sucesso da Igrejacatólica na sua em preitada de fazer os súditos cum prirem seus ensina-

m entos a respeito do m orrer. Afinal, sabem os, por interm édio da leiturade trabalhos sobre o cotidiano da religiosidade colonial, que m uitos dospreceitos eclesiásticos sobre casam ento, confissão e dem ais rituais nãoeram seguidos de form a rígida pelos fiéis.8 

C om efeito, pode parecer surpresa a freqüência com que os testado-res procuravam expressar um a fé contrita no catolicism o, no século XVIII.Ainda que se possa questionar se sua vida fora, efetivam ente, m arcadapela religiosidade que dem onstravam nas suas declarações de “últim avontade”, o fato é que no m om ento derradeiro, diante da possibilidade

de m orrerem , fizeram questão de dar sinais de que teriam vivido daquelaform a ou que, pelo m enos naquele últim o m om ento, se arrependiam denão o terem feito.

O presente artigo objetiva analisar os m otivos pelos quais se pode com -preender esta padronização das atitudes diante da m orte, no século XVIII,dem onstrando que ela representou o resultado do investim ento eclesiásticoem torno do que costum a ser cham ado de pedagogia do bem morrer .

nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através d os testam entos. São Paulo: Annablum e, 1995,p.31-44; FA RIA, Sheila de C astro.A colônia em movimento . Rio de Janeiro: N ova Fronteira, 1998, p.265-277; dentreoutros.

7 R O D RIG U ES , C láudia.Nas fron teiras do além , p.135-139.8 SO U ZA , Laura de M ello e.O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São

Paulo: C om panhia das Letras, 1986; VA IN FA S, R onaldo.Trópico dos pecados: m oral, sexualidade e inq uisiçãono Brasil. R io de Janeiro: C am pus, 1989; VAIN FA S, Ronaldo.A heresia dos índios: catolicism o e rebeldia no Brasilcolonial. São Paulo: C om panhia das Letras, 1995; LIM A, Lana Lage d a G am a.A confissão pelo avesso: o crim ede solicitação no B rasil colonial. São P aulo: U SP, 1990. (H istória, Tese de D outorad o); BR Ü G G ER , Silvia M aria

Jardim .Valores e vivênc ias matrimoniais: o triunfo do discurso am oroso (bispado do Rio de Janeiro, 1750-1888). N iterói: U FF, 1995. (H istória, D issertação de M estrad o) e B RÜ G G ER, Silvia M aria Jardim .Minas Patriarcal: fam ília esocied ad e (São João del Rei –séculos XVIII e XIX). N iterói: U FF, 2002, capítulo 3. (H istória, Tese de D outorad o).

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A clericalização da morte e a pedagogia do bem m orrer 

Redigir testam entos e buscar os sacram entos não eram as únicasatitudes católicas diante da m orte preconizadas pela Igreja. A leitura dositens relativos à parte escatológica do testam ento, perm ite-nos identificar

um a série de rituais e práticas que deveriam ser seguidos por ocasião dam orte do fiel e que resultaram do processo de assenhoream ento da Igrejacatólica sobre os costum es fúnebres e as representações sobre a m ortee o além-túmulo , desde fins da A ntigüidade até o final da Época M oderna,nos países de m aioria católica.

N este processo, dois fatores foram significativos do controle que aIgreja passou a exercer sobre as atitudes diante da m orte. O prim eiro foi asubstituição da gerência predom inantem ente dom éstica e fam iliar do cul-to dos m ortos –sobretudo na Antigüidade greco-rom ana –pela gerência

predom inante do clero e da com unidade eclesial.9

 O segundo, que nosinteressará diretam ente, foi a elaboração da liturgia dos m ortos, ao longoda Idade M édia, pela qual o clero se tornou interlocutor privilegiado entreos vivos e os m ortos, através da realização de orações e de m issas em in-tenção das alm as. N esse sentido, os “cuidados dos m ortos”, com o afirm ouM ichel Lauw ers, foram postos com o próprios da dim ensão do sagrado,do espiritual, do eclesiástico, ao m esm o tem po que as práticas funeráriase com em orativas adquiriram o significado de form as de intercessão dosvivos pelos m ortos, na perspectiva da salvação. C uidados que a Igrejapassou a considerar com o ato espiritual por excelência e que os eclesiás-ticos deveriam ser, se não os únicos a garanti-los, pelo m enos os únicosa enquadrá-los.10

O desenvolvim ento da liturgia dos m ortos se intensificou e com pletou apartir de finais do século XII e início do século XIII, com o desenvolvim entoda doutrina do Purgatório que, doravante, conform aria várias das práticase representações diante da m orte, com o afirm ou Jacques Le G off. C rençana C ristandade ocidental, o P urgatório seria com preendido com o um aléminterm ediário, entre o Paraíso e o Inferno, onde certos m ortos passariampor um a provação (que podia ser abreviada pelos sufrágios dos vivos), a

fim de expiar os pecados em relação aos quais a penitência não fora com -pletam ente cum prida. Este além interm ediário estaria estreitam ente ligadoà concepção de um tipo de pecado interm ediário, ligeiro, quotidiano, quepassou a ser identificado com o “pecado venial”, ou seja, perdoável.11

Esta concepção de purificação depois da m orte se faria acom panhardo investim ento que a Igreja fez, a partir dos séculos XII e XIII, em torno da

9 Para m aiores detalhes, ver RO D R IG U ES, C láudia.Nas fron teiras do além , p.40-46.

10 LAU W ERS, M ichel.La mémoire des ancêtres le souci des morts: m orts, rites et société au M oyen Âge. Paris:Beauchesne, 1996.11 LE G O FF, Jacques.O nascimento do purgatório . Lisboa: Editorial Estam pa, 1981, p.18-19.

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confissão auricular com o elem ento prim ordial do processo penitencial. Aculpa que, norm alm ente, levaria à condenação, poderia agora ser rem idapela contrição e pela confissão, em relação às quais a Igreja buscaria insistir,tornando a confissão auricular um a prática obrigatória pelos m enos um avez por ano para todos os cristãos adultos.12 

A im portância dada à confissão denota a ação eclesiástica no sentidoda culpabilização e, por conseguinte, do convencim ento do fiel acerca dapunição dada, após a m orte, aos que não se m ostrassem arrependidos eque não seguissem as diretrizes eclesiásticas. Esta pedagogia do medo  seutilizaria da m orte, do julgam ento divino e da possibilidade de condenaçãotransitória ou eterna com o elem entos de pressão sobre a consciência e ocom portam ento dos fiéis.13 

A crença na existência de um a purificação depois da m orte, seriaacrescida da intensificação da prática dos sufrágios, que passaram a ser

reforçados com o m eio de auxiliar na purgação das penas e na libertaçãodas alm as do purgatório, não m ais som ente por sua boa conduta pessoal,m as por causa das intervenções exteriores dos vivos, através das orações,das esm olas e, principalm ente, das m issas celebradas pela Igreja a pedidodos parentes e am igos do m orto. Segundo Jacques Le G off, um dos des-dobram entos deste sistem a do Purgatório foi a renovada im portância quese deu ao período que precedia a m orte, com a intensificação do m edodos “últim os instantes”–período im ediatam ente anterior à m orte.14 M edoque se justificaria tanto pelo receio de que não houvesse tem po de um a

preparação a tem po para o trespasse, através da penitência, com o pelocaráter doloroso das penas que a alm a sofreria no Purgatório; m uito em -bora Le G off m encione que o desenvolvim ento do m edo da m orte, nestem om ento, tam bém se explica pelas m udanças sócioeconôm icas do séculoXII15 que, ao atribuir um apego m aior à vida terrena, tornaria m ais tem ível om om ento de a deixar.16 

M as o m edo que se passou a sentir em relação aos últim os m om entostam bém esteve bastante relacionado ao progressivo desenvolvim ento dacrença no que poderíam os cham ar de “escatologia individual”, segundo a

qual logo após a m orte haveria um julgam ento individual, pelo qual seria

12 LE G O FF, Jacques. O nascimento d o purgatório , p.256-257.13 VAU C H EZ , André.Les laïcs au Moyen Age: pratiques et expériences religieuses. Paris: Éditions d u C erf, 1987,

p.142.14 LE G O FF, Jacques.O nascimento d o purgatório , p.253 e 346-347.15 As m udanças a que o autor se refere são as que acom panharam o desenvolvim ento econôm ico dos séculos de

expansão da B aixa Idade M édia, m arcad o pela expansão d em ográfica e pela difusão d e novas técnicas agrícolas,que deram im pulso à prod ução agrícola e artesanal e que se refletiu no renascim ento com ercial e urbano. C f.LE G O FF, Jacques.A civilização do Oc idente medieval . 2a.ed . Lisboa: Editorial Estam pa, 1995, v.1 e LE G O FF,Jacq ues.O apogeu d a cidade medieval . São Paulo: M artins Fontes, 1992; D U BY, G eorges.Econom ia rural e vida

no campo no Oc idente medieval . Lisboa: Edições 70, 1987, v.II; dentre outros.16 LE G O FF, Jacques.O nascimento do p urgatório , p.273 e LE G O FF, Jacques.A bolsa e a vida:  econom ia e religiãona Idad e M édia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.77.

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decidido o destino da alm a: se o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório. Eraum a idéia diferente da do Juízo Final, que afirm ava que o Julgam ento seriacoletivo e realizado no final dos tem pos. C om base nesta nova concepçãoescatológica, o tem po de espera entre a m orte e o Juízo Final seria m ini-m izado, posto que o destino da alm a seria decidido no próprio m om entoda m orte.17 

C om efeito, houve a tendência de se valorizar a agonia e os últim osinstantes com o o m om ento no qual se daria o Julgam ento Individual. A inser-ção do Purgatório neste esquem a se fez com o o local de destino daquelesindivíduos que, na im inência da m orte, possuíam pecados veniais e nãoteriam cum prido a penitência devida. D este m odo, o m edo que surgiu emrelação aos “últim os m om entos”seria em função do destino que caberiaà alm a. C om o a própria Igreja fazia questão de proclam ar que dificilm entese iria diretam ente para o Paraíso, a m orte causaria a angústia sobre se o

destino seria o Inferno ou o Purgatório, cujas penas e castigos seriam tãoterríveis quanto os do Inferno, com a diferença de serem tem porários, aocontrário dos infernais, que seriam eternos.18

D este m odo, a doutrina do Purgatório serviu em grande parte para oenquadram ento das atitudes e das representações dos cristãos em relaçãoà m orte e ao além -túm ulo. Tendo o final do século XII e o século XIII com operíodo crucial de sua elaboração e desenvolvim ento, será, contudo, entreos séculos XV e XVIII que ela m ais profundam ente se enraizará no siste-m a de crenças na sociedade cristã e católica. N este processo, o período

posterior ao C oncílio de Trento assinalaria um reforço da doutrina devido,dentre outros fatores, à ação contra os protestantes.19

O im portante aspecto de todo este em preendim ento eclesiástico sobrea m orte foi o direcionam ento da pastoral para o sentido do m edo, onde ojulgam ento e as penas do Purgatório e do Inferno adquiriram um lugar essen-cial. N ão foi por acaso que os séculos XIV e XV surgiram com o o período deouro das representações em torno da im agem do Inferno, segundo M ichelVovelle, justam ente no m om ento em que os tem as m edievais, dom inadospela im agem da punição coletiva –em torno do Juízo final –, cederam lugar

ao Julgam ento Particular, que se fez acom panhar, com força, do m edo dapunição e do castigo.20 N esta pedagogia do medo , os pregadores m endicantes tiveram lugar

essencial e cada vez m ais im portante nos séculos seguintes. U m a das

17 AR IÈS, Philippe.O homem diante da morte . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, v.1, p.115-116.18 Sobre o caráter das penas purgatórias, ver LE G O FF, Jacq ues.O nascimento d o purgatório , p.21-25 e parte II.19 Sobre as resistências protestantes à doutrina do P urgatório, ver FO U RN IÉ, M ichelle.Le ciel peut-il attendre? Le

culte du P urgatoire dans lê M idi de la France (1320 environ - 1520 environ). Paris: Les É ditions du C ER F, 1997,p.10-11 e 13-17. Sobre a reafirm ação e o investim ento da R eform a C atólica em relação à d outrina do Purgatório,

ver VO VELLE , M ichel.La mort et l’Occ ident : de 1300 à nos jours. Paris: G allim ard, 1983, p.239-366.20 VO VE LLE , M ichel.La mort et l’Occ ident , p.133 e 140-141; ALEXAN D RE-BID O N , D anièle.La mort au Moyen Age:XIIIe –XVIe siècle. Paris: H achette Littératures, 1998, p.38-40.

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forças de apoio dos frades m endicantes foram as confrarias ou ordensterceiras, algum as das quais erigidas em associação direta com o tem ada m orte, com o as das A lm as do Purgatório e, a partir da Reform a C ató-lica, as da Boa M orte.21 Fundada em Rom a, em m eados do Seiscentos, aC onfraria da Boa M orte foi difundida com êxito, em Portugal e no Im périoU ltram arino, durante o século seguinte, segundo Adalgisa Arantes C am pos.O culto à Boa M orte se fez presente na colônia brasileira e, na capitania dasM inas, ter-se-ia difundido, a partir do segundo quartel do século XVIII, soba denom inação de N ossa Senhora da B oa M orte. D a m esm a form a que nacidade do Rio de Janeiro, onde era com posta pelos pardos, as irm andadesda B oa M orte de São João del Rei e de Vila R ica eram form adas por estegrupo social.22

Se, por um lado, a Igreja adotava esta pedagogia da m orte baseada nom edo, por outro, ela m esm a ofereceria a esperança e a segurança, através

das garantias de proteção proporcionadas por ritos tranqüilizadores, con-form e analisou Jean D elum eau.23 N esta perspectiva, ela ofereceu a im agemde um D eus m isericordioso para aqueles que se confessassem , se arre-pendessem e se preparassem com antecedência para a m orte –testando,buscando os sacram entos, instituindo legados piedosos e sufrágios.

O bem m orrer  como uma arte

D iante de todos estes fatores, o m orrer seria gradativam ente trans-

form ado pelos pregadores em um a arte, na qual tinha im portante papel oensinam ento proporcionado pelos m anuais de preparação para a m orte–tam bém cham ados de artes moriendi  ou artes de bem morrer . D esenvolvidaentre os séculos XIV e XV, representaram um gênero de literatura devocional,com posto por textos e im agens que procuravam ensinar aos cristãos ospassos da preparação para o seu m om ento derradeiro, com o um a espéciede cartilha. O texto e as im agens que, por ventura contivessem , ilustravamo tem a da luta entre anjos e dem ônios, no leito de m orte, pela possessãoda alm a, levando ao fiel um a representação da cena que se passaria no

leito de m orte por ocasião do Julgam ento Particular.24

 

21 VO VE LLE , M ichel.La mort et l’Occ ident , p.141.22 C AM PO S, Adalgisa Arantes.A terceira devoção do Setec entos mineiro: o culto a São M iguel e A lm as. São Paulo:

U SP, 1994, p.28. (H istória, Tese de D outorad o). Segundo A na C ristina Araújo, o culto a N ossa S enhora da B oaM orte foi particularm ente defendido p elos jesuítas e as irm andades sob esta invocação expandiram -se p elosséculos XVII e XVIII. C f. ARAÚ JO , Ana C ristina.A morte em Lisboa : atitud es e rep resentações (1700-1830). Lisboa:Editorial N otícias, 1997, p.188.

23 D ELU M EAU , Jean.História do medo no Oc idente, 1300-1850. São Paulo: C om panhia das Letras, 1989; D ELU M EAU ,Jean.Le péchéet la peur: la culpabilisation em O ccident, XIII-XVIII siècles. Paris: Fayard, 1983; D ELU M EAU , Jean.Rassurer et proteger: le sentim ent de sécurité dans l O ccident d’autrefois. Paris: Fayard, 1989.

24 C H AR TIER, Roger.Les arts de mourir..., p.53; C H AU N U , Pierre. La m ort à Paris: 1450-1600.Annales E.S.C , p.176,jan-fév.1976 e, do m esm o autor, C H AR TIER, Roger.La mort àParis: 16e, 17e, 18e siècles. Paris: Fayard, 1978,p.279-282; VO VELLE , M ichel.La mort et l’Occ ident , p.144.

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A form a com o esta literatura se apresentou, anunciava o que se costum acham ar de devotio moderna , surgida em fins da Idade M édia, expressandoum a nova espiritualidade, que valorizava um a concepção m ais intim ista eascética da vida cristã, fundada sobre o recolhim ento, o exam e de consciên-cia e a leitura, conform e afirm a André Vauchez.25 N esse sentido, os m anuaisde preparação para a m orte tinham um form ato pequeno, praticam ente debolso, de m odo a proporcionar a leitura das orações e dos passos a seremseguidos no m om ento da m orte, de form a individual, íntim a e realizada àcabeceira do leito de m orte.

O desenvolvim ento desta devoção m ais individualizada, da qual fizeramparte as atitudes diante da m orte, foi acom panhado pela crescente afirm a-ção da “escatologia individual”e do correlato desenvolvim ento da doutrinado Purgatório, analisados anteriorm ente. N este contexto, nos m anuais depreparação para a m orte, os cham ados “últim os m om entos”ou a agonia

adquiriam grande dram aticidade, na m edida em que as im agens que osilustravam representavam o com bate realizado no leito de m orte, entre anjose dem ônios, pela posse da alm a do m oribundo no m om ento do trespasse.As obras apresentavam as recom endações sobre a arte de m orrer, as tenta-ções que assaltavam o m oribundo, as questões que deveriam ser postas aele, as orações que deveria pronunciar, a conduta que deveriam ter os quecercavam o m oribundo e as orações que os assistentes ou acom panhantes,junto ao leito de m orte, deveriam dizer para ajudar na intercessão celestialpor sua alm a. É neste sentido que os m anuais insistiram na necessidade

de que o fiel se preparasse para a ocasião, m unindo-se dos sacram entos,orações e ritos realizados pela Igreja e dirigidos pelo clero.

U m exem plo típico deste tipo de literatura no m undo ibérico foi o Breveaparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer um cristão.26 Escrita pelojesuíta Estevam de C astro, a obra se constituiu em um dos m aiores suces-sos editoriais portugueses deste tipo de literatura devocional, tendo a suaprim eira edição em 1621 e a últim a identificada em 1724. N o total, seriampelo m enos onze edições que circularam entre os portugueses por cercade cem anos e os ensinaram a m orrer segundo os padrões católicos.27 

C om esta obra, o jesuíta procurava ensinar o sacerdote ou leigo quefosse acom panhar o m oribundo os passos que se deveria seguir na im i-nência da m orte, especificam ente em situação de doença. Segundo otexto, logo assim que soubesse do estado do doente e visse que este eraperigoso, vendo-o capaz de falar, o sacerdote ou leigo que fosse consolá-

25 VAU C H EZ , André.Les laïcs , p.34-35. Sobre a associação feita entre as artes moriendi  e a devotio moderna , verC H AU N U , Pierre.La mort àParis , p.283.

26 C AS TRO , Estevam de.Breve aparelho e modo fácil para ajud ar a bem morrer um c ristão, com a recop ilação damatéria de tratamentos, e p enitênc ia, várias orações devotas , tiradas da Escritu ra Sagrada, e do Ritual Romano

de N. S. P. Paulo V, ac resc entada da devoção de várias m issas . Lisboa: O ficina M iguel M enescal, 1677. BibliotecaN acional/R io de Janeiro. (Agradeço ao professor Renato Pinto Venâncio pela ind icação desta obra).27 AR AÚ JO , Ana Cristina.A morte em Lisboa .

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lo, deveria lhe m ostrar que ele não estava só. C om citações de passagensda Bíblia , procurava-se afirm ar que D eus sem pre se m ostrara presente aolado do fiel com a sua infinita m isericórdia.28 Para alcançar a m isericórdiadivina, contudo, tornava-se preciso que o enferm o se confessasse, pois naconfissão D eus perdoaria a culpa e aliviaria a pena.29 

Assim , com base nas idéias de Jean D elum eau, percebe-se no texto dojesuíta aquela ação eclesiástica no sentido de am eaçar e, paralelam ente,indicar o apaziguam ento, através dos seus ritos, orações e palavras de con-solo, a fim de transm itir confiança e segurança ao fiel desesperado,30 numesquem a que parecia ser perfeitam ente encadeado. Era neste sentido que,segundo o m anual, o sacerdote deveria consolar o enferm o, deixando claroser fundam ental que este se m ostrasse confiante nos “últim os m om entos”.O s capítulos seguintes do Breve Aparelho  apresentavam os passos quedeveriam ser seguidos pelo m oribundo. Prim eiram ente, que era preciso

buscar o sacram ento da confissão e dem onstrava com o a penitência de-veria ser adm inistrada ao enferm o, enfatizando a necessidade de que estese m ostrasse arrependido de todos os pecados com etidos.31 

D epois de confessado o doente, o segundo passo indicado era que ele“ordenasse seu testam ento”. Segundo o jesuíta, o sacerdote que acom pa-nhasse o enferm o deveria abordar este assunto “sem rodeios”, avisando-osobre seu estado, ou do perigo em que se encontrava, dizendo que ele devia“se aparelhar no de fora”, dispondo de seus bens, pagando o que devia,fazendo o seu testam ento de m odo a restituir “o m al ganhado, satisfazendo

ao próxim o qualquer dano, ou injúria, que ele tenha feito, perdoar as ofensase agravos, que outros lhe fizeram ”. Para isso, Estevam de C astro ensinavacom o redigir, aprovar e fazer a abertura de testam entos.32 

U m a vez confessado e ordenado seu testam ento, o enferm o deveriapedir que lhe m inistrassem “o Senhor”, pois seria o “único rem édio de todosos m ales”. A eucaristia deveria ser levada a ele “com a pom pa, e aparatocostum ado dando-se por m odo de viático ”.33 O m anual indicava as palavraspróprias do ritual rom ano e a form a pela qual o enferm o deveria com ungar,as orações que deveriam ser ditas.34 À sua adm inistração seguiria a do sa-

cram ento da extrem a-unção que deveria ser dada ao enferm o quando se

28 ARAÚ JO , Ana Cristina.A morte em Lisboa , p.4.29 ARAÚ JO , Ana Cristina. A morte em Lisboa , p.6.30 D ELU M EAU , Jean.Le péchéet la peur.31 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p.9-97.32 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p..99-100.33 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p.140-141.Viático era o term o utilizad o para a Eucaristia levada aos

m oribundos. Seu significado etim ológico era de “provisão p ara a jornada”, “m antim ento de cam inhantes”. C f.M O RAES E SILVA, Antônio. Dic ionário d a língua p ortuguesa , p.849. Segund o M aria Fernanda Enes, tom adocom o adjetivo, o term o viático  significava “o que era próprio da viag em ”; tom ad o com o substantivo, significava

“provim ento p ara a viagem ”. C f. EN ES, M aria Fernanda.Reforma tridentina e relig ião vivida (os Açores na épocamoderna) . Ponta D elgada: Eurosigno, 1991, p.190.

34 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p.140-148.

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José de Santa M aria de Jesus, bispo de C abo Verde, cuja procura e boaaceitação im plicou num a segunda edição quatro anos depois.40

N o prim eiro capítulo desta obra, frei José abordou o tem a “da escolhada m orte na variedade de suas contingências”, afirm ando que, se era certoque todos haveriam de m orrer, ninguém sabia, contudo, com o seria a suam orte.41 C om isso, buscava alertar ao leitor sobre os perigos que haveriampara aqueles que deixassem para se preparar no “últim o m om ento”. Se eraperigoso até m esm o para os que tivessem se preparado com antecedên-cia, por ser o instante em que ocorreria a cena do com bate pela alm a dom oribundo, pior seria para aqueles que não tivessem se preparado comantecedência. C om este objetivo, apresentava as cinco tentações dem o-níacas dirigidas ao m oribundo, que dem onstravam a interpelação direta,pela qual cada diabo iria “lem brar ao m oribundo pecados passados, nosentido de o acabrunhar ou desm oralizar, e cuidados actuais, im peditivos

ou dispersivos da sua concentração plena nas disposições interiores, ne-cessárias à salvação”.42 

E era a tal representação que Estevam de C astro se referia ao alertar aosacerdote ou a quem fosse auxiliar o enferm o na sua “hora derradeira”paraestarem atentos. D aí a necessidade de o enferm o reagir a elas, conform eensinava o Breve Aparelho , pois, diante da reação com bativa e confiante, odem ônio não teria com o ganhar aquele com bate. Vendo-se de todo vencidoe confuso, o dem ônio se apartaria e não m ais tornaria a tentar a alm a que,com esta vitória, sentiria particular consolação. O s anjos e espíritos bem -

aventurados o cercariam com sinais claros, m ostrando-lhe a coroa queesperava o enferm o pela vitória, segundo Estevam de C astro.43 

Esta dem onstração da coroa com o expressão da vitória da alm a nocom bate representava o triunfo da “boa m orte”. N ão por acaso, um a dasim agens de N ossa Senhora da B oa M orte que circulava em Portugal e daqual existe um exem plar na Biblioteca N acional do Rio de Janeiro, apre-sentava o corpo da Virgem sobre um leito. A seus pés se encontra umbrasão oval, no qual se lê “Boa M orte”e sobre ele um a coroa real ladeadapor dois anjos. Esta estam pa foi feita, em Lisboa, por Pedro M assar de

Rochefort (1675-1740), em 1732,44

 e a figuração da coroa da vitória podeser associada a esta representação que E stevam de C astro fez da vitória

40 TAVA R ES, Pedro Vilas Boas. H ora e im agens da m orte na pastoral m issionária: os B rados do bispo de C abo Verde,d. Frei José d e Santa M aria de Jesus (1731).Revista da Faculdade de Letras, Porto, Anexo VIII, p.238, 1997.

41 JESU S, d. fr José de Santa M aria de. Brados do pastor..., p.1-2.42 TAVA RES, Pedro Vilas Boas.Hora e imagens da morte na pastoral missionária ..., p.247. Esta obra, bem com o a

im agem nela reproduzida, foi analisad a por ARAÚ JO , Ana C ristina.A morte em Lisboa  Am bos os textos abordamem detalhe de cad a um a das tentações apresentadas na im agem dos Brados do Pastor às suas ovelhas .

43 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p.165.44 Anais da Biblioteca Nac ional, R io de Janeiro, D ivisão de Pub licações e D ivulgação, vol.94, p.46, 1976. Biblioteca

N acional/R io de Janeiro. Esta im agem faz parte de um conjunto de estam pas religiosas im pressas em sua m aioriaem Portugal, nos séculos XVIII e XIX, e que enfeitavam as casas e figuravam nas paredes das igrejas. Foramrecolhidas por Augusto de Lim a Júnior e disponibilizadas na Biblioteca N acional do Rio de Janeiro, em 1946.

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celestial no “últim o com bate”em seu m anual de preparação para a m orte.45 Som ente após preparar o enferm o com estas advertências e lem brançassobre as tentações diabólicas é que a extrem a-unção lhe seria oferecida.Tal sacram ento coadjuvaria com as advertências, possibilitando que, “ani-m ado e reforçado”, o doente pudesse vencer com facilidade “as tentaçõesdaquele passo tão perigoso da m orte”.

Após m ostrar com o o doente deveria ser ungido e as orações que aele deveriam ser ditas,46 o m anual continha quatro lem branças do “devoto edouto G erson”,47 para consolar o enferm o no que tocasse a sua consciência.Palavras que deveriam preparar o cristão para a espera do m om ento docom bate, enfocando as idéias da inevitabilidade da m orte, visto ser ela umtributo pago pela vida no m undo terreno; do reconhecim ento dos benefíciose das m ercês que D eus estaria fazendo ao m oribundo, especialm ente na“últim a hora”, não lhe tirando a vida com m orte súbita, se ele se m ostrasse

contrito; a lem brança de que seriam inum eráveis os pecados e faltas quecom etera em sua vida, pelos quais m ereceria padecer grave pena e sofrer,“com m uita paciência”, as “m oléstias, dores, e trabalhos da enferm idade, em orte presente”, rogando a D eus que a gravidade de suas dores e angús-tias fosse em rem issão dos seus pecados, e que os “horríveis torm entosdo Purgatório, por sua m isericórdia”lhe fossem com utados na aflição quepadecia; a necessidade de cuidar som ente do que tocasse a salvaçãonaquela últim a hora e passo da sua vida, pedindo a intercessão por suaalm a e esquecendo-se do corpo.48

C om estas lem branças, Estevam de C astro finalizava a prim eira e longaparte do m anual sobre o prim eiro passo a ser tom ado para ajudar a “bemm orrer”um cristão. O s cinco passos seguintes consistiriam em orações epreces ditas pelo sacerdote e repetidas pelo enferm o, caso ainda tivessefala ou consciência, ou por ele repetidas, no caso de as ter perdido.49

A pedagogia do bem m orrer  no Rio de Janeiro setecentista

C ertam ente, o conteúdo desta obra tam bém circulou nas sociedades

coloniais do U ltram ar, com o a do Rio de Janeiro no século XVIII, influenciandoas atitudes dos fiéis, principalm ente no que dizia respeito à preparação para

45 C onsoante a todas estas representações do tem a do “bem m orrer”, as confrarias de N ossa Senhora da B oa M ortese tornaram um dos investim entos devocionais da Igreja tridentina, na Europa, bem com o no Brasil. C AM PO S,Adalgisa Arantes.A terceira devoção do Setecentos , p.28.

46 C AM PO S, Adalgisa Arantes.A terceira devoção do Setecentos , p.167-195.47 Jean G erson (1363-1429) foi um dos m ais em inentes teólogos da época m edieval, tendo suas ob ras grand e

influência no pensam ento político e eclesiástico do século XV. C f. LO YN , H .R.Dic ionário da Idade Média , p.165.Segundo M ichel Vovelle, sua ob ra Opusc ulum Tripartidum  pod e ser considerada com o ancestral direta das“artes de bem m orrer”, servind o de base p ara os textos posteriores. C f. VO VELLE, M ichel.La mort et l’Occident ,

p.142-143.48 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho.. ., p.196-199.49 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho.. ., p.213-270.

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a m orte. Tendo, inclusive, a acreditar que este texto do jesuíta foi um dosque funcionaram com o guia para aqueles que fossem redigir testam entos,possibilitando o acesso à fórm ula testam entária.

M uito em bora as Ordenações Filipinas  regessem , da perspectiva secu-lar, os assuntos relacionados a testam entos, elas não apresentavam a form acom o o testam ento deveria ser redigido, com os passos de sua escrita.Apenas legislava quanto aos que podiam ou não testar, às form as e aostipos de testam entos, à instituição e substituição de herdeiros, dentre outrosassuntos. O utro texto secular e norm ativo, com o a Orphanologia practica,50 tam bém não ensinava com o redigir testam entos, dedicando-se apenas àsregras quanto aos que podiam ou não fazer inventários e com o fazê-lo,dentre outros assuntos correlatos. D o m esm o m odo que estes dois textoslegais, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia 51 igualm ente secalavam quanto à fórm ula testam entária.

U m indício da repercussão do Breve Aparelho  enquanto texto queefetivam ente ensinava os indivíduos a fazerem testam entos na sociedadecolonial vem da análise de Alcântara M achado em seu clássico estudo sobreVida e morte do bandeirante . Ao abordar os pedidos de m issas presentesnos testam entos por ele analisados, relativos aos séculos XVI e XVII, o au-tor m enciona as disposições de M aria de Lara que, a certa altura do seutestam ento, solicitou que, além das centenas de m issas pedidas, fossemrezadas “m ais as três m issas do livro de bem m orrer, e tam bém as quarentae sete de São G regório e as C inco de Santo Agostinho, na conform idade

que o livrinho especifica, e m ais as trinta e três de Santo Am ador (...)”.52 O próprio Alcântara M achado aventou a possibilidade de o “livrinho”a

que M aria de Lara se referia ser “provavelm ente o Breve aparelho e m odofácil para ensinar a bem m orrer um cristão, do jesuíta Estevam de C astro,obra m uito espalhada nos m eios devotos do século XVII”.53 C om parando asm issas por ela pedidas com as m issas que Estevam de C astro propunhano seu m anual, verifiquei terem sido, justam ente, algum as das que o jesuítaensinava aos seus leitores com o eficazes para a intercessão daqueles quefossem se preparar para a m orte através da leitura do Breve Aparelho.54 

O que pode confirm ar as suspeitas de A lcântara M achado, e tam bém as

50 C AM PO S, M anoel Antônio M onteiro de. Orphanologia practica em que se descreve tudo o que respeita aosinventários, partilhas, e mais dependências dos pupillos , c om várias matérias aos mesmos pertencentes. Obrabreve, mas muito útil não só para os juízes, e advogados , mas também para os illiterados partidores, e os mais queconhec em, e intervem nas ditas partilhas . Lisboa: O ficina de M anoel Antônio M onteiro, 1759. Biblioteca N acionalde Lisboa. (Agradeço a M aria Tereza C ardoso pela indicação e cópia d esta obra).

51 VID E, Sebastião M onteiro da.Constitu ições Primeiras  e Ordenações Filipinas . Lisboa: Fundação C alouste G ul-benkian, 1985. Edição fac-simile  da edição feita p or C ândido M endes de A lm eida. Rio d e Janeiro: Typog raphiado Instituto Philom athico, 1870.

52 M AC H AD O , Alcântara.Vida e morte do b andeirante . São Paulo: Livraria M artins; Brasília: Instituto N acional do

Livro, 1972, p.210-211.53 M AC H AD O , Alcântara.Vida e morte do b andeirante, p.211.54 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p. 1-13 inum eradas.

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m inhas, sobre a circulação do m anual do jesuíta na colônia brasileira com otexto norm atizador no que diz respeito à fórm ula testam entária.

O utro indício foi a ocorrência de duas m enções ao term o “aparelho”e/ou o correlato verbo “aparelhar”entre os testam entos por m im analisados.Em 1790, M ariana Tereza de Jesus afirm ou que “...conhecendo a obrigaçãoque com o fiel católica tenho de m e aparelhar para o dia de m inha m orte (...)ordenei fazer m eu testam ento na form a que de direito valer”.55 Em 1792, An-tônio Pereira, um crioulo forro, natural da cidade, tam bém recorreu à referidaexpressão no testam ento que, a seu rogo, foi escrito por José M aria, em11 de janeiro de 1792. N o exórdio de sua declaração de últim as vontadesconstou o trecho: “e querendo m e aparelhar-m e para depois [da m orte], edispor de m eus bens ordeno m eu testam ento na form a seguinte”.56 Fora doRio de Janeiro, tal ocorrência se apresentou de m odo sim ilar. Em M ariana, aexpressão tam bém foi utilizada no testam ento da preta forra M aria da Silva¸

escrito por Antônio de Freitas, em 15 de julho de 1727. N ele, a expressão foiusada da seguinte form a: “querendo estar aparelhada para quando D eusm e quiser levar desta presente vida”.57

N o Dic ionário  de M oraes e Silva, o term o “aparelho”surge, dentre outrossignificados, com o “instrum entos, preparo, apresto, m eio, disposição ne-cessária, e conveniente para se fazer algum a coisa”. Já o verbo “aparelhar”,aparece com o significado de “dar aparelho, preparar, aprestar, aprontar,dispor do m odo conveniente”. Ainda segundo o dicionarista, “aparelhar-se”era a expressão utilizada para “dispor-se com os aparelhos pertencentes

para se fazer algum a coisa”.58 Tais significados condiziam com o objetivo dojesuíta de que seu Breve Aparelho  fosse um m anual bastante prático parao cristão se preparar para a m orte. E “preparar”, com o tam bém constata oDic ionário da língua portuguesa , era um dos significados dados ao verbo“aparelhar”.

Ainda que este term o fosse corrente no vocabulário português da época,já antes da redação do Breve Aparelho , a sua utilização no testam ento como significado de “preparar-se”para a m orte sugere um a relação entre o ver-bo e o m anual de Estevam de C astro. Em outras palavras, estou querendo

dizer que os testam entos que apresentaram a expressão “aparelhar para am orte”dem onstram a apropriação da fórm ula de Estevam de C astro e, porextensão, a circulação de seus ensinam entos entre aqueles que redigiram

55 Arquivo da C úria M etropolitana do R io de Janeiro. Livro de óbitos e testam entos d a freguesia da S é, nº.16 (1746-1758). Testam ento de M ariana Teresa de Jesus, p.41.

56 Arquivo da C úria M etropolitana do R io de Janeiro. Livro d e óbitos e testam entos d a freguesia do S antíssim o S a-cram ento, nº.2 (1790-1797). Testam ento de Antônio Pereira, p.111. Esta referência e as próxim as três m e foramgentilm ente cedidas por Anderson O liveira, que tam bém analisou este tipo de fonte em sua pesquisa d e d outoradosobre o culto dos santos negros –Santo E lesb ão e Santa Efigênia –no R io de Janeiro e em M inas G erais, durante

o período colonial.57 C asa Setecentista de M ariana. Livro d e registro d e testam entos, 1o. ofício, nº.71, f.118, verso.58 M O RAES E SILVA, Antônio.Dic ionário d a língua portuguesa , p.148.

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A arte de bem morrer  no Rio de Janeiro setecentista 

VARIA HISTORIA, B elo Horizo nte , vo l. 24, nº 39: p .255-272, ja n/jun 2008

testam entos na sociedade colonial, fossem os próprios testadores ou outrosque a seu rogo o fizessem .

M as esta apropriação é evidenciada no m om ento em que se com paraa estrutura dos testam entos por m im pesquisados com as orientaçõesem anadas do

Breve Aparelho , especificam ente as constantes do capítulo

24, dedicadas à “form a e ordem de se fazer o testam ento conform e asadvertências ditas”.59 Praticam ente todos os treze itens por ele propostosna ordenação do testam ento se apresentaram em parte significativa dostestam entos relativos ao século XVIII que pesquisei. U m exem plo disso éa estrutura textual do prim eiro item do testam ento, cham ado de “exórdio”por Estevão de C astro, que é literalm ente o reproduzido no fragm ento dotestam ento de N arciso José do Am aral, que abriu este artigo.60

Analisando os testam entos coletados, pude constatar que a estruturaproposta por Estevão de C astro predom inou no século XVIII, perm anecendo

com algum as alterações, no sentido da sim plificação, nas duas prim eirasdécadas da centúria seguinte, indicando a significativa influência do BreveAparelho  e de seus ensinam entos entre os cariocas no período colonial. M as,m uito m ais do que este aspecto form al, é a perm anência das concepçõesbaseadas na pedagogia do bem morrer  entre os habitantes da cidade doRio de Janeiro que devem os ressaltar. Estes são aspectos da obra do jesuítaque m e levaram a perceber a dissem inação de seus ensinam entos no Riode Janeiro, sobretudo no século XVIII, tornando-o um verdadeiro guia paraaqueles que buscassem o conforto espiritual diante da m orte, bem com o

para aqueles que precisassem se orientar quanto à redação do testam ento,tanto nos aspectos form ais do ato com o nos relativos à form ula do texto.

M uito em bora esta hipótese da circulação das idéias do Breve Aparelho  entre os cariocas, no século XVIII, deva ser m elhor dem onstrada através denovos estudos, creio que os indícios apresentados anteriorm ente podemexplicar o fato de parte significativa dos m oribundos da freguesia analisadaterem se preparado para m orrer segundo as determ inações eclesiásticas.M uito provavelm ente, as orientações em anadas do m anual de Estevão deC astro eram de conhecim ento daqueles que fossem redigir testam entos,

fossem os próprios testadores ou as pessoas que por eles redigissem odocum ento. M ais significativo do que o conhecim ento da form a de se fazero testam ento era, ao m eu ver, a própria atitude de testar e de buscar ossacram entos; na im inência da m orte. Justam ente os dois cam inhos ensi-nados pelo jesuíta.

Aspectos que dem onstram o sucesso do investim ento que a Igrejacatólica fizera, por séculos, na transform ação da m orte em instrum ento de

59 C AS TRO , Estevam de.Breve Aparelho. .., p.131.60 Para m aiores detalhes da sem elhança da estrutura dos testam entos pesquisados com o texto do Breve Aparelho ,ver: RO D RIG U ES, C láud ia.Nas fron teiras do além , p.100-103, 112-115 e 353.

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Cláud ia Rodrigues 

pregação de parte de suas doutrinas e, porque não dizer, de cristianização.Assim , é possível com preenderm os o significado que estava por trás dafreqüência da prática testam entária e de recurso aos sacram entos dianteda m orte; ou seja, o tem or da punição, no além -túm ulo, em virtude do nãocum prim ento das determ inações eclesiásticas sobre o viver.

Conclusão

A análise acim a realizada evidencia que, na sociedade colonial brasilei-ra, a proxim idade da m orte se constituiu na ocasião propícia para a Igrejacatólica convencer os fiéis a respeito das conseqüências, no além -túm ulo,de suas atitudes em vida. Para tal convencim ento, fez uso da cham adapedagogia do medo . Afinal, a “passagem ”era o m om ento em que os fiéisse viam m ais próxim os da possibilidade de salvarem ou não a sua alm a e

de irem ou não para o Inferno, de acordo com as pregações que a Igrejarepetira insistentem ente ao longo de suas vidas. Por este m otivo, m orria-sefazendo questão de expressar o exercício daquela aprendizagem , princi-palm ente através da preparação para o m om ento por m eio da redação dotestam ento e/ou do recurso aos últim os sacram entos, conform e preconi-zavam as artes de bem m orrer.

Atitude que fazia parte do m anancial pedagógico que a Igreja construiudesde a Baixa Idade M édia, segundo o qual a m orte era ocasião para aqual era preciso estar devidam ente preparado, a fim de se obter a salvação

da alm a no além -túm ulo ou, o que era m ais com um , a fim de se abreviaro tem po de espera no Purgatório e o sofrim ento causado pela expiaçãodos pecados. Justam ente por isso, ensinava que o fiel precisava recorrer àrede intercessora dos santos, dos anjos, da Virgem e de C risto; precisavam ostrar-se contrito, arrependendo-se de seus pecados e, através do testa-m ento, instituísse sufrágios e legados pios. Tanto quanto isso, era precisoque o fiel vivesse com o pensam ento na m orte.

Ainda que se possa questionar se este viver teria sido pautado pelopensam ento na m orte, com o preconizava a Igreja, pelo m enos pude verificar

que, no século XVIII, na im inência da m orte, o paroquiano procurava fazerseu testam ento com o sentido de um a prestação de contas de sua vida,procurando dem onstrar que ela teria sido conduzida, pelo m enos nos seusúltim os m om entos, na direção do catolicism o; inclusive no caso de negrosafricanos, a exem plo de N arciso José do Am aral.