a apÓdexis herodotiana: um modo de dizer o passado
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A APDEXIS HERODOTIANA:
UM MODO DE DIZER O PASSADO
Tatiana Oliveira Ribeiro
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Ttulo de Doutor em Letras Clssicas.
Orientadora: Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
Rio de Janeiro Dezembro de 2010
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A apdexis herodotiana: um modo de dizer o passado
Tatiana Oliveira Ribeiro
Orientadora: Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
Tese de Doutorado apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Ttulo de Doutor em Letras Clssicas.
Examinada por:
_______________________________________________________________Presidente, Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
________________________________________________________________Professora Doutora Filomena Yoshie Hirata - USP
________________________________________________________________Professor Doutor Fernando Brando dos Santos UNESP-Araraquara
________________________________________________________________Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ
_________________________________________________________________ Professor Doutor Auto Lyra Teixeira UFRJ
_________________________________________________________________Professor Doutor Luiz Barros Montez - UFRJ, Suplente
_________________________________________________________________Professora Doutora Ana Thereza Basilio Vieira UFRJ , Suplente
Rio de JaneiroDezembro de 2010
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Ribeiro, Tatiana Oliveira
A apdexis herodotiana: um modo de dizer o passado / Tatiana Oliveira Ribeiro Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2010
206 f.; 31 cm. Orientador: Nely Maria Pessanha Tese (Doutorado) UFRJ/ Faculdade de Letras/Programa de Ps-
Graduao em Letras Clssicas, 2010. Referncias Bibliogrficas: f. 164-179.
1. Historiografia grega. 2. Histrias, de Herdoto. 3. Apde(i)xis e epde(i)xis. 4. Performance e gnero. 4. Prosa grega. I. Pessanha, Nely Maria. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas. III. Ttulo.
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RESUMO
A APDEXIS HERODOTIANA: UM MODO DE DIZER O PASSADO
Tatiana Oliveira Ribeiro
Orientador: Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas (rea de Concentrao: Culturas da Antiguidade Clssica) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas.
Esta apdexis histores de Herdoto de Halicarnasso. Este dito, com o qual se iniciam as Histrias de Herdoto, legou ao Ocidente no apenas o nome que resume a atividade de pesquisa do Historiador, a histore, mas tambm um nome que vem a designar o modo de organizao e de exposio de todo o vasto material por ele recolhido e repensado: a apdexis. Esta Tese tematiza este conceito, observando, desde seu emprego no promio das Histrias, os matizes por ele assumidos ao longo da obra e tambm o grau de permanncia de sua significao em outros textos de prosa, mormente em escritos epidticos. Da relao de convergncia entre apde(i)xis e epde(i)xis, o trabalho sugere a considerao da perspectiva da performance do texto de Herdoto, apoiando-se em referncias textuais que indiciam a existncia de uma prtica de apresentao corrente na Grcia antiga a partir do V sculo. A apdexis herodotiana se afigura como um modo de dizer o tempo, o espao, os povos e seus nmoi, e tambm como um modo de reelaborar as narrativas do passado e interpretar o presente.
Palavras-chave: Historiografia grega; Herdoto; apde(i)xis; epde(i)xis; performativo; performance.
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ABSTRACT
HERODOTUS APODEXIS: A WAY OF TELLING THE PAST
Tatiana Oliveira Ribeiro
Orientador: Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas (rea de Concentrao: Culturas da Antiguidade Clssica) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas.
This is apodexis histories of Herodotus from Halicarnassus. This saying, opening Herodotus Histories, has transmitted to the western culture not only the word epitomizing the research activity of the Historian, the historie, but also the one denoting how all the large amount of the material he had collected and pondered is organized and exhibited: the apodexis. The present dissertation thematizes this latter concept and observes the nuances it assumes in the course of Herodotus work, as well as its relative constancy of signification in other prose texts, mainly epideictic writings. As a result from the relationship of convergence between apode(i)xis and epide(i)xis, the present work suggests to consider the performance perspective of Herodotus text, based on textual evidence pointing to the existence of a display practice circulating in Ancient Greece from 5th century onwards. Herodotus apodexis figures as a way of telling time, space, people and their nomoi, and also as a way of reelaborating the narratives from the past and interpretating the present.
Key-words: Greek historiography, Herodotus, apode(i)xis; epide(i)xis; performative; performance.
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RSUM
LAPDEXIS HRODOTIENNE: UNE FAON DE DIRE LE PASS
Tatiana Oliveira Ribeiro
Orientador: Profa. Doutora Nely Maria Pessanha
Rsum da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas (rea de Concentrao: Culturas da Antiguidade Clssica) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas.
Celle-ci est lapdexis histores dHrodote dHalicarnasse. Ces paroles qui ouvrent les Histoires dHrodote, ont transmis lOccident non seulement le nom rsumant lactivit de recherche de lHistorien, lhistore, mais aussi le nom dsignant le mode dorganisation et dexposition de tout le vaste matriel quil avait recueilli et repens : lapdexis. Cette thse thmatise le concept dapde(i)xis en observant les nuances quil revt au cours de l'uvre dHrodote, ainsi que la constance relative de ses significations dans dautres textes en prose, notamment les crits pidictiques. Etant donn le rapport de convergence dans les significations dapde(i)xis et epde(i)xis, ce travail de recherche suggre de prendre en compte la dimension performative du texte dHrodote, en sappuyant sur des rfrences textuelles attestant lexistence dune pratique de la prsentation orale en usage en Grce ancienne depuis le 5me sicle. Lapdexis hrodotienne se dessine en tant que faon de dire le temps, lespace, les peuples et leurs nmoi, et galement en tant que faon de r-laborer les rcits du pass et dinterprter le prsent.
Mots cls: Historiographie grecque, Hrodote, apde(i)xis; epde(i)xis; performatif; performance.
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Para Madiana,
minha amada filha,
e
Peggy,
exemplo todo de afeto e resistncia
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Professora Titular Doutora Nely Maria Pessanha, pela orientao zelosa
desde os tempos da Iniciao Cientfica;
A Henrique Cairus, meu exemplo,meu amor, meu companheiro,
pelo apoio pleno e pela presena constante;
Profa. Doutora Celina Maria Moreira de Mello,pelas sugestes ao longo de toda a pesquisa
e pela ateno prestimosa;
A todos os professores do Proaera,pelo aprendizado, pelo exemplo de seriedade
e compromisso com o saber;
Ao Proaera,espao do possvel, lugar de vigncia
da alegria e da competncia;
Profa. Doutora Andra Daher,pelas inesquecveis lies;
Profa. Doutora Luciana Villas Bas,
sempre solcita,pela fidalga convivncia;
Ao Prof. Dr. Daniel Rinaldi,
pelo incentivo e pela amizade;
querida Agatha Bacelar,que, mesmo distante, se fez presente em todos os momentos,
pelas indicaes e discusses sempre profcuas, pelo carinho e generosidade;
Aos meus tios, Carminha e Orlando,pelo afeto incondicional;
agradeo.8
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SUMRIO
1. INTRODUO 10
2. DOS PRLOGOS E PROMIOS 19
2.1. Os prooimia da poesia em Homero, Hesodo e Pndaro 27
2.2. Prlogos historiogrficos de Hecateu, Tucdides e Antoco 43
2.3. O promio de Herdoto 52
3. APDE(I)XIS E EPDE(I)XIS EM CONTRASTE 81
3.1. Ocorrncias de apdexis e epdexis em Herdoto 91
3.2. Ocorrncias de apodeknymi e epideknymi em Herdoto 104
3.3. Apde(i)xis e epde(i)xis em outros discursos de prosa 122
4. PERFORMANCE E GNERO: UMA PROPOSTA INTERPRETATIVA PARA AS HISTRIAS DE HERDOTO 137
4.1. O gnero na obra de Herdoto 141
4.2. Apdexis hde: a construo da histria de um performativo 145
4.3. Performance das Histrias: testemunhos tardios 151
5. CONCLUSO 162
6. BIBLIOGRAFIA 165
7. ANEXO 182
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1. INTRODUO
Esta Tese tem por motivao e origem o desejo de estar diante de Herdoto
de Halicarnasso e de ouvi-lo, o desejo, enfim, de unir s palavras que jazem
silenciosas em suas Histrias a pulsao vibrante de um tom que expresse o
maravilhamento que lhes d sentido, causa e estrutura. Desde a primeira leitura de
sua obra, descortinou-se-me um universo em que figuravam diversas formas de
representaes, que me faziam olhar para as Histrias e a partir delas depreender as
formas de expresso dos gregos, desde tempos mais remotos ao V sculo a.C.
Foi com a imaginao plena de sentidos que fui levada, primeiramente, a
pensar acerca das apresentaes orais das Histrias de Herdoto. Secundarizei, em
meu pensamento e em minha imaginao, a retrica e privilegiei a potica, pois me
pareceu, desde a primeira hora, que o pthos herodotiano no servia ao
convencimento, mas, ao contrrio, o convencimento ali estava a servio do pthos.
Era impressionante observar a habilidade de suas narrativas, nas quais o verossmil,
por apelo do imaginrio, tornava-se o real aos olhos dos gregos, reverberando tantas
vezes em narrativas de outros, poetas, filsofos ou historiadores.
Essa Tese, portanto, um apelo s palavras que nos esperam em repouso nas
pginas das edies de Herdoto, a fim de que elas pudessem indicar o caminho da
voz. Procurei, assim, extrair delas tudo o que me foi possvel para esse objetivo,
perscrutando, em algumas passagens das Histrias, em que medida a voz
herodotiana parecia ir alm do apelo autoral.
Imediatamente afigurou-se-me o conceito de apdexis como uma porta de
acesso entre o luminoso mundo das palavras escritas e o obscuro universo das
palavras ditas e da performance. Entrei por essa porta e caminhei o quanto pude at
agora pelo caminho que ela desvelou. Para adentrar por essa via, no entanto, o
primeiro problema com o qual me deparei foi saber qual o lugar da prpria
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apdexis na obra de Herdoto, definida por ele mesmo, logo a princpio, como
histores apdexis no famoso e em tudo controverso promio de suas Histrias.
declarao, no promio, de se tratar o seu feito de uma apdexis, segue
uma construo lingstica que indica finalidade, o porqu do ato. De fato, o
discurso herodotiano, como se depreende das proposies iniciais do Historiador, se
inscreve em um projeto de construo de identidade, grega e brbara, e de
preservao da memria social, que, tendo por ponto de partida o trabalho de
investigao pessoal, de histore, ganha forma, seno concretiza-se, no ato de
apresentao, de leitura pblica dos resultados colhidos, pensados e construdos a
partir de dados coletados e trabalhados. Dessarte, as Histrias de Herdoto assumem
contornos mais precisos no instante de sua apdexis, de sua, talvez possamos chamar
assim, performance pblica. Todo o trabalho de investigao herodotiana, com
suas diferentes posturas epistemolgicas, a ako, a escuta dos legmena, a psis, a
observao ocular, in loco, e as gnmai, os juzos crticos do material recolhido pelo
historiador, fundamentam a exposio da pesquisa, a histores apdexis.
Considero primeiramente em meu trabalho o ato de apresentao, de leitura
pblica do texto de Herdoto, e relaciono aqui a noo de apdexis com aquela de
performance, tomando por base alguns estudos que se voltam para a idia de que o
texto das Histrias constitudo a partir de uma srie de apresentaes para um
pblico diverso1. Herdoto, ao apresentar publicamente suas narrativas, fosse em
forma de leitura ou mesmo de recitao2, como crem alguns estudiosos que
aproximam o historiador dos lgioi ou dos aoido 3, as teria colocado em teste, at
chegar a uma redao final, na qual teve em conta a eficcia textual dessas narrativas.
1 Jacoby (RE 1913); Myres (1953);; Gould (1989); Munson (1993); Bakker (in Van Wess 2002); Slings (in Van Wess 2002); Evans (in Pigo 2008); Waterfield (2009).2 Gould (1989); Walker (2000).3 Nagy (1987; 1990), sobretudo a partir das leituras de Pndaro (cf. Ptica I, vv.92-94, onde e so aqueles que proclamam as glrias dos mortais; cf. tambm Nemeia VI, v.45); contra Luraghi (2009) acredita que o termo no designa uma categoria de pessoas, mas uma qualidade que pode ser possuda em nveis diversos: possvel ser sbio, como Anrcasis; cultivador da memria, como os egpcios; hbil na arte de contar mitos, como os persas.
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O termo apdexis, seus usos, seus contextos e sua recepo, ao qual me
dedico em minha tese, parecem indicar, de acordo com as pesquisas desenvolvidas
acerca da obra de Herdoto, mormente no que diz respeito sua forma estrutural e
ao propsito de seu discurso, no apenas a noo de prova, de exposio
argumentada4, de um discurso que intenta a comprovao de fatos e feitos, mas
tambm a de modo de apresentao, que implica em um modo de dizer. A
percepo desse sentido duplo e complementar do termo parece ter sido h muito
apontada nos estudos de epistemologia da histria, como se pode entrever dessa
passagem de um escrito de Johann Gustav Droysen, fillogo, helenista e terico da
histria do sculo XIX:
Da mesma maneira como tudo que move o nosso esprito exige a sua respectiva expresso para que se configure, assim tambm o que historicamente pesquisado exige formas de apresentao ( , Herdoto. Histrias, I, 1.), para que nessas formas a pesquisa fornea, por assim dizer, a prestao de contas de seu propsito e de seus resultados5 (2009 [1858]: 77).
O uso do termo histore na abertura das Histrias, alm de ter oferecido
tradio um ttulo para o legado do Historiador, redimensionou o termo, alando-o
mais tarde tarefa de designar um campo de saber que ainda hoje busca suas
fronteiras sem abrir mo de sua identidade. Histore, ao tempo de Herdoto,
designava uma espcie de investigao, de inquirio que se pautava no
levantamento e apontamento de provas, constataes objetivas, que
determinavam, ou ao menos buscavam delimitar, os campos da filosofia natural e da
medicina, por exemplo. Conforme assinala Simon Goldhill (2002: 12), histore
uma palavra notavelmente contempornea, que liga a abordagem de Herdoto s
discusses metodolgicas da medicina hipocrtica e dos fsicos, e sugere uma
indagao sobre a natureza e sobre a natureza do homem em sentido extenso.
4 Zambrini (LHG&L). 5 Utilizo a traduo de Sara Baldus e Julio Bentivoglio.
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Com suas interfaces com o que viria a chamar-se de etnologia, geografia e
sociologia, a obra do historiador de Halicarnasso se afirma como obra que trata,
sobretudo, da Histria, da histria de uma guerra que cumpre um papel
fundamental na construo e fixao de uma identidade e de uma alteridade para os
gregos. Contudo, no esto ausentes daquele vasto escrito as especulaes de cunho
diverso inseridas nas reflexes antropolgicas de vrias ordens. O relato das guerras
entre gregos e brbaros assim entremeado de informaes de naturezas mltiplas
que o historiador-viajante colheu, ao ver e ouvir, nos tempos em que partiu em
busca de cumprir o projeto declarado de seu promio. No promio, no h uma
delimitao precisa do assunto do trabalho, no se tem um recorte do tema, o que
poderia ser determinado pela multiplicidade de discursos a serem apresentados
dependendo da audincia, qui do contexto de apresentao. Segundo Bakker (in
VAN WESS, 2002: 4-5), a no delimitao do assunto, o no recorte do tema, se
deve ao contexto intelectual predisciplinar, sem fronteiras demarcadas entre
geografia, antropologia e histria, conjugando Herdoto, assim, uma srie de
prticas discursivas. Prticas essas que se deixam entrever, muitas vezes, por meio da
disposio de algumas estruturas formais presentes nas Histrias.
Havelock (1996 [1963]:71 n.8) acredita que o termo apdexis no promio
das Histrias implica seguramente uma divulgao oral, maneira da tradio pica,
obedecendo mesmo aos objetivos da epopia homrica6, mas nota que, per contra, a
comparao que Tucdides faz entre seu , sua possesso para sempre, e
o , a pea para audio momentnea, de
seus predecessores, denota certa influncia de um manuscrito estilisticamente
composto para leitores em contraposio aos efeitos momentneos de uma
composio destinada recitao. Tucdides, no trecho de sua Histria da Guerra
do Peloponeso conhecido como Metodologia (I, 20-22), nos diz que a busca da
verdade ( ) negligenciada pela maioria dos homens que
prefere o previamente estabelecido e afirma que os poetas adornaram seus hinos com
6 Cf. tambm Nagy (1987; 1990)13
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o intuito de engrandec-los, enquanto os loggrafos compuseram visando ao que
mais atraente para a audincia em detrimento do que mais verdadeiro
( , I,
21). Mais adiante (I, 22.4) Tucdides sublinha que o que no tem a aparncia de mito
( ) parece menos atraente para o auditrio. A referncia aos loggrafos
inclui no s os antigos cronistas da Jnia, mas em especial Herdoto. Tucdides
parece requerer para si a imagem do historiador capaz de romper com os horizontes
de experincia de um pblico leitor/ouvinte em prol de uma factualidade objetiva,
tentando se distanciar de uma prtica dos loggrafos e dos poetas.
Hartog (1999 [1980]: 283-87) reconhece no promio das Histrias um duplo
posicionamento do historiador no que concerne tradio pica: por um lado,
Herdoto busca aproximar-se, e mesmo rivalizar com ela; por outro, procura um
caminho de ruptura. Rosalind Thomas (2002:249-69) tambm percebe traos de
confluncia e de ruptura com esta forma de representao e apresentao do passado,
e nota igualmente na obra herodotiana um elogio tradio pica; mas, para alm
da evocao da pica, uma valorizao do novo, das novas formas de representao e
de saber. Na mesma esteira, Bakker, assim, considera a traduo de apdexis como
publicao algo anacrnico, pois no captura a realidade da recepo da histore
de Herdoto por seu pblico original. Tratar-se-ia, de acordo com a leitura de
Thomas (2002: 257-60), de uma pr-publicao de um work in progress7 sob a
forma de leituras que refazem o contedo do discurso a cada circunstncia de
apresentao.
Rosalind Thomas (2002: passim) situa o trabalho de Herdoto no universo
do antigo discurso cientfico, conforme evidenciado pela introduo de alguns
tratados hipocrticos. A apresentao oral busca a recepo de novas idias por parte
de uma audincia variada, que ouve tambm discursos, lgoi variados, por que no
dizer, selecionados ao gosto das circunstncias. Estamos, em certa medida, no campo
da epdeixis retrica, da exibio, se considerarmos a leitura pblica, a performance
7 Cf. tambm James Evans (1991:89-146)14
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do texto das Histrias. Tratar-se-ia de uma apresentao de erudio e
conhecimento que pode ser feita atravs de uma apresentao oral. As palavras finais
de Rosalind Thomas (2000:269) em seu estudo acerca do carter da apdexis na obra
de Herdoto parecem elucidativas no que tange a essa questo:
O promio e os captulos iniciais parecem, ento, apresentar muito deliberadamente o fundo homrico e mtico, somente para revesti-los com uma nova linguagem de pesquisa cientfica e investigao intelectual - histore, apdexis e a linguagem do conhecimento (...). A combinao, ento, nas Histrias de Herdoto, de precedentes e da influncia homrica identificveis, e a recente linguagem da 'investigao contempornea', poderiam implicar, longe de diminuir a importncia de ambos, uma caracterstica bem especfica de um perodo no qual os poetas passam a ceder espao, como mestres fundamentais, a uma nova gerao de especialistas, pseudo-especialistas, persuasores, e da exposio da composio em prosa para performance.
De fato, as cinco primeiras linhas de abertura das Histrias, que se
convencionou chamar de promio, refletem mais claramente uma axiologia pica,
enquanto os cinco captulos iniciais, ao mesmo tempo que evocam os discursos da
pica, tambm apresentam uma similaridade temtica, retrica e verbal com escritos
sofsticos, mais precisamente com o Elogio de Helena de Grgias, como
demonstrou Hayden Pellicia (2009 [1992]:63-84), que tambm mostra a influncia
gorgiana no discurso do Slon herodotiano (I.32,5-6), repleto de poliptotos,
isoclones e repeties de prefixos antitticos8. Discordando de Race, que reconhece 8 , . , , , , , , , , , , . (Negrito para prefixos, grifo para repeties inteiras de palavras, itlico para elementos que se repetem so marcas de Pellicia). Dentre os homens, muitos plenamente ricos so infaustos, enquanto muitos, possuidores de poucos recursos, so afortunados. O homem de grandes riquezas, mas infausto, supera o afortunado somente em duas coisas, mas este supera o rico e o infausto em muito. Um tem mais capacidade de satisfazer o desejo e de suportar uma grande desgraa que lhe
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nos captulos iniciais das Histrias uma estrutura em priamel semelhante
encontrada em Safo, no fr.16 L-P9, Pellicia os entende como um expediente retrico
por ele denominado false-start recusatio, no qual uma histria, com suas verses,
introduzida, desenvolvida e, ao fim, abandonada em funo de outra abordagem.
Assim, de acordo com a leitura de Pellicia, algumas passagens do texto de Herdoto
estariam bem prximas de discursos que constituam verdadeiros exerccios
retricos, apresentados sob a forma de epidexeis.
A fim de examinar em que medida a abertura das Histrias dialoga com
outras formas de introduo da poesia e da historiografia, seja em um gesto de
continuidade ou de ruptura, proponho, no segundo captulo, o estudo de algumas
formas proemiais da poesia de Homero, Hesodo e Pndaro, bem como dos prlogos
da prosa historiogrfica de Hecateu, Tucdides e Antoco. Busco tambm observar
como os prprios antigos conceitualizavam o promio, atravs de definies de
autores de tratados como Aristteles, Quintiliano, Luciano de Samsata. Sigo de
perto tambm o lxico de Hesquio e a Suda. Como aporte metodolgico, destaco
os trabalhos de Lallot & Constantini (1987), Porciani (1997), Hartog (2001) e
Murari Pires (2003); dos estudos especficos sobre o promio de Herdoto, destaco
os trabalhos de Krischer (1965), Erbse (1995), Bakker (in VAN WEES 2002) e
Wcowski (2004).
No terceiro captulo, dedico-me ao estudo das ocorrncias dos termos
apde(i)xis e epde(i)xis na obra de Herdoto e tambm em outros discursos de
prosa, mormente na historiografia de Tucdides e nos tratados hipocrticos Da arte,
Dos flatos e Da medicina antiga, que constituem exemplos de prosa epidtica, na
tentativa de constatar-lhes os matizes e significados, em seus graus de proximidade e
sobrevenha, mas o outro o supera no seguinte: no capaz de suportar, de modo semelhante quele, a desgraa e o desejo, mas a fortuna o afasta destas; no estropiado, no doente, no passvel de sofrer males, bom pai, tem bela aparncia. 9 ] / ' [] []/ ] , ' -/ Uns afirmam ser uma tropa de cavaleiros, outros, de infantaria/ outros ainda uma frota de navios/ o que h de mais belo sobre a negra terra, eu afirmo ser/ aquilo que se ama.
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distanciamento. Observo as ocorrncias dos verbos apodeknymi e epideknymi, em
que medida so contrastantes. Utilizo os lxicos de Enoch Powell (1977) e de How
& Wells (1962 [1912]), e os comentrios dos livros I-IV de Asheri, Corcella e Lloyd
(2007) para a anlise das ocorrncias em Herdoto especificamente, e os
comentrios de Hornblower (1991; 1996) para o texto de Tucdides. No que tange
aos textos hipocrticos, apio-me nas leituras de Jacques Jouanna. Examino ainda,
maneira de testemunho, alguns dilogos platnicos que buscam reproduzir o
universo das epidexeis sofsticas, a fim de reconhecer as caractersticas dessas prticas
e perceber como delas se aproxima a apdexis herodotiana. Para o estudo das
variaes dos conceitos de apdeixis e epdeixis, observo os respectivos verbetes na
Suda, em duas edies da Paulys Realencyclopedie der classichen
Alterstumswissenchaft (1844 e 1907), na Brills New Pauly (2010) e no Lexicon
Historiographicum Graecum et Latinum (2007). Destaco ainda que os trabalhos de
Burguess (1902), Nagy (1987; 1990) e Thomas (2002) suscitaram importantes
questionamentos para esse estudo.
No quarto captulo, proponho a observao da apdexis herodotiana como
um ato de fala performativo, considerando sobretudo a perspectiva das apresentaes
orais do texto das Histrias e mesmo de sua composio. A partir do texto
Herdoto ou cion, de Luciano de Samsata, teo consideraes sobre possveis
pblicos e ocasies de apresentao das narrativas de Herdoto. Luciano, claro,
no nos serve de testemunho sobre Herdoto diretamente, mas nos vale como
testemunho de uma tradio que inseria o Historiador em uma prtica corrente de
apresentaes pblicas. Fundamento-me no conceito de performativo desenvolvido
por John Langshaw Austin (1962) e em alguns dos estudos sobre gnero e
performance de Richard Bauman (2004) e Paul Zumthor (2007). Sobre as leituras
pblicas do texto de Herdoto, destaco os estudos de Momigliano (1978), Johnson
(1994) e Stadter (1997).
Por fim, esta tese traz um anexo com o restante do corpus traduzido, a saber,
as ocorrncias de apodeknymi, e seus respectivos contextos, nas Histrias. Embora
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no tenham sido utilizadas como exempla no captulo em que me dedico
exclusivamente ao estudo da apdexis em Herdoto, essas ocorrncias foram
observadas e os contextos em que se inseriam foram traduzidos. Para a traduo
tomei como base a edio de Ph-E Legrand, cotejada com as de Hude (livros I-IV),
de Stein (texto base da traduo de Godley) e a de Berenguer Amens (livro I).
Em todo esse percurso de ideias e pginas, procuro apresentar uma
interpretao da herodotiana sob a gide da performance e do discurso
performativo. Tentando responder questes como seria a (), ao tempo de
Herdoto, um tipo de performance, um gnero, uma demonstrao respaldada ou
autorizada ou nenhuma dessas coisas, ou todas elas?, a resposta que defendo desde
o ttulo desta Tese a de que a (ao menos a herodotiana) um modo
de dizer que envolve fatores que incluem e pressupem a articulao entre a
performance - determinada tambm pela circunstncia e a audincia, numa
interao sem a qual Calope no teria dividido suas glrias com Clio.
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2. DOS PRLOGOS E PROMIOS
Muitos estudiosos da obra de Herdoto comparam a abertura das Histrias
aos promios da pica homrica10, com o objetivo de sugerir um diferencial entre o
discurso historiogrfico e o discurso pico, de buscar entre eles traos hereditrios e
ressaltar-lhes as respectivas peculiaridades. Nos promios historiogrficos, no s
apresentada a matria da narrativa, como tambm definido o gnero no qual essa
narrativa se inscreve, dando-se a conhecer ao ouvinte ou ao leitor o tema e o modo
como se vai trat-lo, ainda que isso no implique numa descrio da proposta
metodolgica. Conforme assinala Jacyntho Lins Brando em seu estudo
introdutrio ao tratado lucinico Como se deve escrever a histria (2009:217), os
promios historiogrficos costumam trazer, guisa de ttulo e prefcio, um texto
no qual apresentado o nome do autor em terceira pessoa, a definio do assunto a
ser exposto, sua inteno e finalidade. Como tambm sublinha Claude Calame
(2004:20), esses breves preldios programticos das obras dos historiadores, ou de
historiopoetas, do sculo V, substituem o apelo instncia inspiradora de origem
divina, as invocaes s Musas por uma postura de afirmao do autor diante de sua
obra.
Sobre a funcionalidade dos prefcios historiogrficos, Franois Hartog
(2001:11) destaca a argumentao feita em prol da importncia da temtica da
narrativa e o posicionamento do autor contra aqueles, predecessores ou no, que
manifestaram ignorncia, no recorreram experincia, ou, muito simplesmente,
mentiram. Assim, tais prefcios dariam conta de um projeto autoral, no qual se
demarca, salvo alguns casos, um contraste entre contedos e formas de apresentao,
e, sobretudo, onde se tenta estabelecer fronteiras entre o que herdado de outros
discursos e o que imprime um carter inaugural da narrativa. maneira de
ilustrao, pode-se contrastar o objeto de Herdoto, os feitos e as grandes e
10 Krischer (1965); Nagy (1987; 1990); Bakker (2002); De Jong (2004); Thomas (2002); Hartog (2000); Bouvier (2008); Woodman (1998); Race (1992).
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maravilhosas obras dos homens e a etiologia da guerra entre gregos e brbaros e
aquele de Tucdides, a guerra dos peloponsios e atenienses, como a fizeram uns
contra os outros. Quanto aos seus modos de apresentao, pode-se contrastar a
apdexis herodotiana com a xyngraph de Tucdides.
As motivaes do relato e seus propsitos tambm, muitas vezes, so expostos
nos promios, cuja extenso, no conjunto da composio, estabelecida
diversamente pelos estudiosos. Franois Hartog (2001: 43-47), por exemplo,
considera prefcio das Histrias no somente as linhas 1-5 da abertura do livro I,
mas tambm os cinco primeiros captulos da obra. Legrand (1946:9) prope uma
diviso do prembulo em duas partes: a primeira, na qual Herdoto apresenta o
programa de sua obra (linhas 1-5); a segunda, na qual d incio explicao sobre as
motivaes dos conflitos, apresentadas a partir da tica dos persas e dos fencios
(captulos I-V). David Asheri (2007:72), em seu comentrio ao livro I, considera
promio, em sentido estrito, somente a sentena de abertura (linhas 1-5), mas em
sentido mais extenso tambm os captulos I a V. A extenso do promio at os cinco
primeiros captulos das Histrias pode ser explicada pelo fato de, somente ao final do
quinto, Herdoto afirmar de que ponto iniciar seu relato, conjugando nesse dito,
uma arqueologia e uma etiologia das guerras. Tambm ao final do quinto captulo
das Histrias, o Historiador nos diz algo que se poderia interpretar como seu
entendimento do mecanismo da Histria: certo de que a felicidade humana nunca
permanece em um mesmo ponto, tratar das pequenas e das grandes cidades dos
homens. De modo circular, Herdoto, ao fim do captulo V, retoma e acresce o dito
inicial da primeira parte, como quer Legrand, ou do promio em sentido estrito,
segundo Asheri. Immerwahr (1986 [1966]: 17) tambm recorta assim o promio,
dividindo-o em trs partes: 1) sentena introdutria com nome do autor e definio
do contedo da obra; 2) relatos dos persas e fencios reportados por Herdoto, com
as origens mticas da hostilidade entre gregos e brbaros; 3) afirmativas de Herdoto
sobre o motivo da guerra e o reinado de Creso como ponto de partida de sua obra .
Jacoby (apud Krischer 1965:159), no verbete sobre Herdoto da RE Suppl.2 cols.
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207-9, 1913, considera o relato do rapto das mulheres como primeiro exkurs,
primeira digresso das Histrias e prope uma diviso do promio em duas partes:
uma, preliminar, onde se atesta o interesse geral da obra; outra, que figura como
digresso.
Marek Wcowski (2004:149ss) prope outra interpretao para os captulos
1-5 do livro I das Histrias, entendendo-os como um divertimento, uma
composio ldica, na qual as verses persas e fencias sobre os raptos, como aite das
guerras, seriam uma demonstrao da competncia do autor, uma espcie de convite
sedutor a uma audincia to familiarizada com narrativas mticas, ou ainda uma
pardia das epidexeis sofsticas que tematizavam episdios da mitologia. Herdoto,
nessa explicao preliminar dos motivos das guerras, sutilmente teceria uma crtica
pseudo-causalidade pica, ou mesmo aos prosadores de seu tempo, segundo
Wcowski. E, de fato, penso que ao afirmar logo adiante (I.5.9-18) que prosseguir
seu relato a partir daquele que ele sabia ter sido o primeiro a cometer atos injustos
contra os gregos, Herdoto passa a atribuir a responsabilidade pelas hostilidades a
Creso, rei da Ldia, personagem do primeiro lgos das Histrias (I, 6-94). Em I,5,9-
10, pela primeira vez o Historiador refere-se si prprio em primeira pessoa. A forma
pronominal surge em posio contrastiva com , sujeitos
da orao anterior (o contraponto marcado em uma clusula por ; na outra, por
). Tal posicionamento reafirmado de modo bastante evidente, ou ainda
declaradamente manifesto, no livro III, 122, 10, onde o Historiador opta por tratar
em seu relato daquilo que relativo idade dos homens:
II, 122, 7-12. , , . Polcrates foi o primeiro dentre os gregos, que ns sabemos, que sonhou em dominar o mar, exceo de Minos de Cnossos e se algum
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-
outro antes dele dominou o mar; da chamada raa dos homens, Polcrates foi primeiro a ter muitas esperanas de governar a Jnia e as ilhas.
Tal escolha pelo relato que tenha por referncia a raa dos homens pode ser
notada tambm em VII, 20, onde Herdoto ope a expedio de Xerxes de
Agammnon, contrastando aquilo que se sabe, de fato, de uma ( ) e aquilo
que se diz de outra ( )11.
Os termos promio, prlogo e prefcio guardam uma relao de
sinonmia no que tange ao carter introdutrio de um discurso. No entanto, ao
adotar-se a terminologia prlogo ou prefcio no caso dos discursos
historiogrficos, parece deliberado o intuito de diferenciar um tipo de introduo
dos demais denominados pelo termo , que foi assumindo ao longo dos
tempos sentidos diversos, em distintos gneros discursivos e poticos da literatura
grega. Segundo Lallot e Constantini (1987:13ss.), designaria, num
primeiro momento, o hino preliminar (cf. Chantraine, p.783 ou
o que se encontra antes do desenrolar do poema, preldio12) cantado como
introduo aos poemas picos nos festivais ou agnes rapsdicos. Nesse sentido, a
tradio considera os Hinos Homricos como performances de promios,
introdutrios do recital para uma audincia, conforme se pode depreender do que
diz Tucdides (III, 104, 3-4) acerca das festividades atenienses em honra a Apolo
Dlio ao fazer referncia ao Hino a Apolo homrico (
11 VII, 20. , . , , , , (Desde a tomada do Egito, por quatro anos inteiros preparou o exrcito e as coisas que lhe eram necessrias, e, no decorrer do quinto ano, comandou a tropa com punho forte. Esta foi, em muito, a maior das expedies que ns sabemos, de modo que a expedio de Dario contra os citas parece nada ao lado desta; nem a dos citas, quando, perseguindo os cimrios, aps tomar o territrio medo, ocuparam, tendo saqueado quase tudo da alta sia, por causa deles, Dario posteriormente se vingou; nem, segundo o que foi dito, a expedio do Atrida contra Troia, nem a dos msios e dos teucros que ocorreu antes dos troianos,). 12 ce qui se trouve avant le dvelopement du pome, prlude.
22
-
, Homero
deixa bem claro que eram assim, nos seguintes versos, que pertencem ao promio do
Hino a Apolo:).
Se nos deixarmos guiar pela perspectiva de Pseudo-Plutarco no De musica,
podemos pensar nos promios como uma sorte de gnero na tradio citardica
grega. Em 1132D10, Ps-Plutarco afirma que Terpandro comps promios
citardicos em versos picos (
) e, em 1133C, que, aps terem rendido aos deuses as devidas
honras como queriam, os citaredos passavam ao poema de Homero e de outros
poetas, como o evidenciam os promios de Terpandro (
,
. ' )13.
Por extenso da noo primeira de preldio funcional (cf. Nagy, 1990: 354),
viria a designar tambm o prlogo, ou o exrdio de um discurso.
Assim, Aristteles, na Retrica, ao dispor sobre as partes constitutivas do discurso,
em 1414b (14) define como princpio do discurso14, correspondente ao
prlogo na poesia e ao preldio na aultica, sendo este idntico ao promio do
gnero epidtico ( ).
Mais adiante, em 1415a5, o Estagirita acrescenta que os promios dos discursos
epidticos provm do louvor, da censura, do conselho, da dissuaso, do que
referente audincia. Pseudo-Plutarco, em De Homero 2 (Vitae Homeri) 2005-8,
nos diz:
,
(Ento, todos os oradores sempre fazem uso dos promios a fim de
tornar o ouvinte mais atento ou mais benevolente, e o prprio poeta faz uso dos
13 Como ressalta Calame (2005:45), tambm Pndaro, na Ptica I, 4, refere-se forma preludial do canto dos citaredos, e na Ptica VII,2, a uma forma mlica e coral. Tambm na Nemeia II, 1-3, tem-se referncia ao preldio do canto dos homeridas, dos rapsodos. 14 Tambm segundo o lxico de Hesquio, 3610.1 , . promio: prlogo, princpio de todo discurso.
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promios que podem estimular mais e levar escuta). Tambm Quintiliano, em
Institutio Oratoria, traa um paralelo entre promio e exrdio, considerando-os
discursos introdutrios, semelhana de Aristteles na Retrica, 1415a12:
O que se diz em latim principium ou exordium, com maior razo os gregos consideram que se deva nomear prohoemium, porque entre ns s significa incio, mas eles mostram com bastante clareza que essa parte a que precede o que se deve dizer. De fato, isso acontece porque significa um canto, e os citaredos chamaram de promio aquelas breves palavras que entoam antes de comearem o legtimo certame, em razo de favor a ser obtido; os oradores tambm assinalam, com essa mesma denominao, o exrdio que antecede a preleo jurdica (causa) para falar antes ao nimo conciliador dos juzes, ou, ento, porque os gregos chamam tambm a via de , tornou-se uma prtica cham-lo assim: certamente o promio o que pode ser dito, junto ao juiz, antes que ele conhea a causa (ao jurdica), e camos nos vcios nas escolas porque sempre usamos assim o exrdio, como se o juiz j conhecesse a causa (ao jurdica)15. (Institutio Oratoria, IV, I, 1-3)
Quintiliano, ao pensar a natureza do promio, busca-lhe indcios no termo e
recorre, como lhe peculiar, etimologia, estabelecendo uma relao entre e
para apontar duas possibilidades de emprego: uma na poesia; outra, na prosa
oratria, respectivamente. Chantraine corrobora a perspectiva quintiliana, ao
considerar a hipstase de ou , e apontar uma provvel
proximidade semntica entre e alguns empregos do substantivo .
Segundo Lallot e Constantini (1987:27), , termo exclusivamente potico,
designaria o canto como dom potico, atributo da Musa, ou ainda a criao
manifesta desse dom (cf. Odissia, VIII, 74, 481; XX,347), enquanto , que 15 Quod principium Latine uel exordium dicitur, maiore quadam ratione Graeci uidentur prohoemium nominasse, quia a nostris initium modo significatur, illi satis clare partem hanc esse ante ingressum rei de qua dicendum sit ostendunt. Nam siue propterea quod cantus est et citharoedi pauca illa quae antequam legitimum certamen inchoent emerendi fauoris gratia canunt prohoemium cognominauerunt, oratores quoque ea quae prius quam causam exordiantur ad conciliandos sibi iudicum animos praelocuntur eadem appellatione signarunt, siue, quod idem Graeci uiam appellant, id quod ante ingressum rei ponitur sic uocare est institutum: certe prohoemium est quod apud iudicem dici prius quam causam cognouerit possit, uitioseque in scholis facimus quod exordio semper sic utimur quasi causam iudex iam nouerit.
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significa geralmente caminho, pode ser empregado em sentido metafrico para
indicar o caminho do canto, do poema (cf. , Hino homrico a
Hermes, v.451; , Pndaro, Ol., VII, 47). Aristteles, em sua Retrica
1414b19-21, parece fazer tambm referncia a essa dupla etimologia quando afirma
que o promio o princpio do discurso, o que na poesia prlogo e na ao de
tocar aulo preldio. Todos eles so princpios, e como que abertura de um
caminho para o que vem a seguir ( ,
' ,
.) Aristteles compara ento o promio a uma
. De modo semelhante, na Rhetorica Anonyma, VII, 54, 1-3, a
etimologia de promio associada noo de caminho (diz-se que promio o
que colocado antes do discurso; o caminho,
).
Luciano de Samsata, em seu tratado Como se deve escrever a histria16,
preceitua que atravs do promio deve-se buscar obter a ateno e o interesse dos
16 de Luciano de Samsata a nica obra antiga sobrevivente que se ocupa integralmente da historiografia sob o vis terico: o tratado Como se deve escrever a histria, vindo luz em 165 d. C. Ainda que Luciano seja lido, em certa medida, como um clssico controvertido, conforme sentenciou Jacyntho Lins Brando (2001:12), seu tratado sobre a histria constitui uma vvida crtica produo historiogrfica de sua poca e tambm de um passado que figurava como modelo de escrita da Histria. O tratado Como se deve escrever a histria se inicia com uma anedota de um certo humor cido, to prprio da pena de Luciano: no tempo do rei Lismaco, o povo de Abdera, vitimado por uma epidemia (nsema) que tem, dentre outros sintomas, uma violenta febre, sai s ruas gritando iambos e cantando versos da tragdia Andrmeda, de Eurpides, crendo estar representando tragdias. Luciano ento prossegue, dizendo que, semelhana do ocorrido com os abderitas, tambm um pthos havia acometido os homens de seu tempo: desde que a situao atual se apresentou a guerra contra os brbaros, o desastre na Armnia e as contnuas vitrias no h quem no escreva histria; ainda mais para ns todos so uns Tucdides, uns Herdotos e uns Xenofontes, e, ao que parece, verdadeiro aquele (dito) a guerra o pai de todas as coisas, visto que (isso) de uma s vez fez surgir tais historiadores. Assim, Luciano reconhece o pthos dos homens de seu tempo: escrever e recitar narrativas sobre a guerra contra a Prtia, como se histria estivessem fazendo. Como se deve escrever a histria um exerccio de crtica forma e finalidade da escrita historiogrfica. O autor dedica 19 de seus 63 pargrafos crtica aos maus historiadores (14-32) e 27 aos preceitos sobre a Histria (34-60). No ltimo pargrafo de seu tratado, Luciano afirma: . . (63) preciso que tambm a Histria assim seja escrita, com a verdade, em funo da esperana futura, mais do que com adulao, em funo do prazer dos elogios do momento. Eis a regra e o prumo de uma histria justa. Luciano critica ento aqueles que escrevem histria com fins de adulao.
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ouvintes, ao mostrar-lhes, logo de incio, que o discurso tratar do que grande,
necessrio, particular e til ( ,
53). E como exemplo desse tipo de promio, os modelos de Luciano so justamente
Herdoto e Tucdides, em contraposio a certos historiadores que ele diz estar
acostumado a ouvir. Desses , Luciano destaca uma srie de
caractersticas negativas no que concerne composio do promio, como
sistematiza Jacyntho Lins Brando (2009:218):
Na relao de Luciano, os exemplos negativos incluem os seguintes erros: a) ttulos pomposos, em descompasso com a simplicidade da obra; b) promios brilhantes, trgicos e extensos at o exagero (...), mas o corpo da histria (...) minsculo e vulgar; c) promios que adotam procedimentos poticos, como a invocao Musa; d) promios argumentativos e silogsticos; e) auto-encomisticos ou elogiosos ptria, aos comandantes e contendo declaraes do partido que toma o historiador ao escrever; f) finalmente, registra-se a existncia de textos acfalos, ou seja, absolutamente sem nenhum promio.
Os promios, como prescreve Luciano, mais do que simples introduo, so
determinantes para a construo de um todo orgnico, harmnico, da narrativa a ser
apresentada a seguir. E mesmo que a obra possa dele prescindir, preciso que se
apresente um comeo, uma , onde se esclarea o que se vai dizer (52). Luciano
denomina essa espcie de comeo e no captulo seguinte utiliza o verbo
ao retomar o caso de existncia de promio na composio (53), e logo,
no captulo seguinte, menciona Herdoto e Tucdides como exemplos de
historiadores que usaram o tipo de promio por ele prescrito. Em linhas gerais,
parece haver aqui um jogo de palavras com as duas formas, e seu
correspondente na forma contrata , para indicar que, na verdade,
necessrio que exista um promio no discurso dos historiadores. O prprio Luciano 26
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chama de o trabalho daqueles historiadores que, companheiros de
Xenofonte, e semelhana das primeiras linhas de sua Anbase, constroem obras
.
O promio ento parte constituinte da poesia, da oratria e tambm da
prosa historiogrfica; nele so apontados quem enuncia, o qu se enuncia, e
tambm fundamenta-se a motivao, define-se o tom do discurso. Com o tempo,
promio foi assumindo uma relao de estreita sinonmia com prlogo, como
atestam os lxicos de Hesquio e o de Fcio17, como tambm a Suda18. No entanto,
conforme ressaltam Lallot e Constantini (1987:19), o termo prlogo, pouco
utilizado no sc. V, restringiu-se primeiramente ao vocabulrio tcnico do teatro19,
ao contrrio de promio, que, assumindo contornos semnticos vrios, se fazia
presente em muitos discursos sobre a tkhne do discurso.
2.1. OS PROOIMIA DA POESIA EM HOMERO, HESODO E PNDARO
O termo promio remete-nos tanto poesia quanto prosa. Assim, torna-se
necessria uma perspectiva de contraste entre esses dois tipos de promio, a fim de
que possamos saber se possvel trat-los como expresses distintas de um mesmo
gnero ou, ao menos, de um mesmo hbito discursivo. Gregory Nagy, em seu
Pindars Homer (1990: passim), traa interessantes paralelos entre essas formas de
apresentao, ressaltando-lhes peculiaridades, mostrando como elas se nos
apresentam como ditos programticos ao todo das obras.
Embora o termo promio seja usado tambm como referncia ao intrito
dos poemas picos, preciso lembrar que o termo correspondente em grego no se 17 : . , p. 456, l. 18.18 : . (. 2899).19 Cf. Aristfanes, Rs, v, 1119-21: {.} ' ,/ . {Eurpides} Pois bem, voltarei aos teus prlogos [squilo], / de modo que, primeiramente, examinarei a primeira parte da tragdia desse destro homem. Tambm Aristteles, Potica, 1452b . Prlogo uma parte completa da tragdia, que vem antes da entrada do coro.
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faz presente no texto homrico, e o nome promio lhe dado por analogia e no
por autodenominao. No o que acontece, por exemplo, com o epincio
pindrico. Em algumas de suas odes, Pndaro anuncia o comeo do canto como
promio, nomeadamente. Na Ptica I, vv.3-4, l-se:
' 20 .
e os aedos obedecem a teus sinaissempre que, vibrando, crias as primeiras notas dos promios que conduzem o coro.
Nesses versos, Pndaro nos diz que os aedos obedecem aos sinais da lira de
ouro ( ), que preludia os promios. A 2 pessoa invocada nos
primeiros versos da ode pindrica o instrumento musical do canto lrico, apangio
de Apolo e das Musas.
Na Ptica VII, a estrofe nos traz uma comparao digna de nota: a cidade de
Atenas apresentada maneira de promio do canto; a partir dela so compostos os
versos:
'
4
A grande cidade de Atenas o mais belopromio para lanar a base dos cantosem honra forte raa dos Alcmenidas,pela vitria na quadriga (vv.1-4).
20 , at. , o preldio da lira, a nota introdutria do canto. Segundo o Lexicon Pindaricum de RUMPEL (1961): praeludia, h.e primi ad Carmen cantatum soni. Tanto quanto remeteriam noo de princpio, estando aquele restrito esfera da poesia lrica, a includos os ditirambos, como refere Aristteles, na Retrica 1409a25 , como os preldios nos ditirambos. Sigo aqui a traduo proposta por Aim Puech, a fim de demarcar uma diferena entre ambos.
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Comparado o mais belo () promio a uma edificao, a ode, por
meio de metforas arquiteturais21, louva a grandeza dos feitos dos Alcmenidas.
Como nota Immerwahr (1960:273), a construo do templo em honra a Apolo em
Delfos, parte expressiva do atribudo aos Alcmenidas, a reafirmao de
um dos monumentalizado pelo canto. Procedimento semelhante
utilizado por Pndaro tambm na Olmpica VI, na qual os primeiros versos do
promio, como um smile visual, comparam o incio da ode em honra a Agsias de
Siracusa a um slido prtico:
. - ' . ' - , 5 , - , ,
Tendo colocado colunas de ouro sob um slido prtico22 da casa,
como quando um admirvel palcio erigimos; iniciada a obra deve-se erguer-lhe uma fronte que ao longe resplandea. Se ele fosse vencedor em Olmpia, e responsvel pelo altar proftico de Zeus em Pisa, cofundador da ilustre Siracusa,
21 Como se pode notar do uso do termo fundamento de uma construo, base, pedestal, no verso 3, por exemplo.22 Como afirma Race (1992:17): a metfora do prtico (=), com suas colunas de ouro e as associaes hericas do termo , indicam que o poema promete um tratamento altura de um personagem proeminente. Race destaca ainda a importncia do termo , que indica o comeo do poema como a fachada de um palcio que resplandece ao longe, assim como os grandes feitos de Agsias de Siracusa.
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que hino de louvor faltaria a esse homem, que usufrui dos amveis cantos dos cidados sem inveja alguma?
Na Nemeia II, vv. 1-5, tm-se:
' , - , ' - 5 - , .
De onde os Homeridas,cantores de versos urdidos, muitas vezescomeam, do promio de Zeus; tambm este herirecebeu pela primeira vez recompensa pela vitria nos jogos sagrados,no bosque, de Zeus Nemeu, celebrado em muitos hinos.
Os primeiros versos dessa ode, em honra a Timodemo de Acarnes,
nomeiam, como assinala Nagy (1990:356), o comeo da composio como
promio da performance, maneira de um preldio de uma performance adica ou
rapsdica, e seu verso final exorta os cidados a darem incio ao canto com voz
agradvel ( ' , v.25). A referncia a um comeo a partir do
promio de Zeus, de onde () partem os homeridas, enseja uma discusso sobre
um possvel lugar e uma possvel funo desses ditos promios na tradio das
performances de poesia. Sob esta tica, pode-se pensar nos hinos homricos como
promios citardicos23 ou rapsdicos, propiciatrios aos agnes e cerimnias rituais.
De pocas diversas e extenso variada, os poemas hexamtricos que integram
a coleo dos hinos homricos constavam de um padro de frmulas iniciais24 que 23 Cf. De Hoz (1998:66). 24 So freqentes as formas de abertura: ' (XIII; XVI; XXII; XVI; XXII; XXVIII; XI); nome da divindade em acusativo + (XVIII; XXVII; XII); nome da divindade em acusativo + epteto + (X; XV; XXIII); nome da divindade + , na invocao Musa (III; IX). J as frmulas de concluso, como assinala Clay (1995), parecem marcar a transio para um canto futuro
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constituiam o promio do que seria, provavelmente, em sua totalidade de versos, um
prprio preldio da dana coral, do canto citardico ou do canto pico. Assim, tais
hinos, como afirma De Hoz (1998:64), no so promios de uma mesma espcie de
canto, nem so apresentados em uma mesma ocasio. Sobre a ocasio de
performance e a recepo desses poemas, Clay (1995:496) se interroga se os hinos
mais longos no seriam uma expanso do que foram originalmente preldios que
precediam a recitao pica ou se, ao contrrio, os hinos curtos no seriam verses
abreviadas para um determinado contexto de apresentao. Seja como for, bastante
plausvel que o , em princpio um preldio para uma composio, possa
ter dado origem ao promio, tal como o entendemos, conforme defende Clay
(1995: passim).
Quintiliano, em Institutio Oratoria, ao fazer referncia tradio proemial,
lega-nos um precioso testemunho que atribui a Homero a constituio de uma lei
dos exrdios:
A respeito desses costumes ou das paixes, no haver ningum to ignorante a ponto de no reconhecer que esse autor os tenha em seu poder. Vejamos, pois: [Homero] com o comeo da obra, tanto de um quanto de outro poema, em pouqussimos versos no digo que observou, mas que constituiu uma lei dos promios? De fato, tornam o ouvinte benevolente pela invocao das deusas que este julga presidirem os vates, e o faz atento pela magnitude do tema e dcil pela brevidade de sua exposio25.
( ' e ainda eu lembrarei de ti e de um outro canto / ' e eu, tendo comeado por ti, passarei a outro hino/ ' mas eu me lembrarei de vs e de outro canto). 25 X, 1, 48. Adfectus quidem uel illos mites uel hos concitatos nemo erit tam indoctus qui non in sua potestate hunc auctorem habuisse fateatur. Age uero, non utriusque operis ingressu in paucissimis uersibus legem prohoemiorum non dico seruauit sed constituit? Nam et beniuolum auditorem inuocatione dearum quas praesidere uatibus creditum est et intentum proposita rerum magnitudine et docilem summa celeriter comprensa facit.
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Os poemas homricos, na percepo de Quintiliano, teriam fundamentado as
bases de um modelo de promio narrativo. E, de fato, h no promio de Herdoto,
como se ver mais adiante, elementos que permitem entrever a presena modelar do
incio da Ilada, fazendo emergir quase espontaneamente uma perspectiva de
ressonncia que corrobora a ideia de que a pica o referencial talvez maior ou
primeiro do que se estabeleceu como uma regra das prelees orais, musicadas ou
no, na Antiguidade. No promio da Ilada, determinado o motivo do canto e
demarcado seu princpio. Assim, l-se no promio:
, ' ' , ' , , ' 5 .
Canta, Deusa, a clera do Aquiles Pelidafunesta, que inmeras dores trouxe aos aqueus,e muitas almas valentes de heris lanou ao Hades, e tornou-os presas de ces e de avesde rapina todos, cumpria-se o desgnio de Zeus;desde que, primeiro, tendo entrado em dissenso [separam-se os doiso Atrida, rei dos homens, e o divo Aquiles.
A do heri Pelida a matria do canto pico, para o qual o
aedo pede a interveno da figura inspiradora da deusa. Como afirma Calame
(2000:113), em toda a literatura arcaica, o enunciado da enunciao caracterizado
pela projeo do eu narrador em uma instncia superior, dotada de poder e saber
potico, que opera como garantia da competncia do poeta, que toma a voz da
Musa como exerccio de oniscincia. Essa funo autoral das Musas contribuiria
assim para constituio da competncia que o aedo busca no ato da performance, na
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execuo eficaz do poema diante de seu pblico. As circunstncias de execuo do
poema e igualmente sua audincia so plurais, mas a cada momento de recitao a
memria de uma temporalidade mtica atualizada (Pires, 2003:81), os kla dos
heris so reafirmados e a tradio, qui a histria dos antepassados, revisitada. Os
versos do promio, alm de apresentarem a matria do poema, a ira de um heri
digno de ser cantado em funo do lugar que ocupa no quadro social da aristocraria
homrica, tambm do a conhecer os desdobramentos da clera funesta e onde
repousa sua origem.
O porqu da dissenso entre Aquiles e Agammnon, atribudo em princpio a
uma causalidade divina, anunciado nos dois versos seguintes ao promio, que
marcam o incio da narrativa propriamente dita:
... (Il., I, vv.8-9)
Qual dos deuses os levou a combater em discrdia?O filho de Let e Zeus...
Mas uma causalidade divina enunciada tambm no promio ( '
, cumpria-se o desgnio de Zeus, v.5), ainda que no diga respeito
clera, tema principal do poema, mas posio que o divino ocupa face ao
desequilbrio ocasionado pela atitude de Agammnon contra o Pelida. O poder de
interveno do deus evidenciado desde o promio, mas est longe de anular a
responsabilidade humana. Philippe Rousseau (2001:152) considera o que se poderia
chamar, penso eu, em certa medida, de horizonte de experincia da audincia na
interpretao do papel que ocupa esse desgnio de Zeus na narrativa da de
Aquiles, ao formular que:
Se o promio no define mais explicitamente o projeto divino, e se a proposio que nos detm se insere, como inciso, na frase que define o tema do canto da Musa, porque pretende dizer mais que uma simples evocao do quadro lendrio no qual se
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inscreve o episdio ilidico. Ela se volta, como o resto da frase onde a lemos, para o desenrolar do poema, que ela convida o auditrio a ouvir corretamente. Seguramente seria falso pensar que ela formula uma espcie de explicao teolgica geral, segundo a qual o curso dos acontecimentos obedeceria vontade soberana do deus. Mas certamente preciso tom-la em sentido aberto. O contedo dessa boul no enunciado de imediato pelo narrador. Seu conhecimento no simplesmente pressuposto. Ela reservada reflexo do auditrio, como um enigma que ele deve aprender a decifrar medida que a narrativa avana. Pois assim que ele poderia compreender de que modo a trama de Zeus, na Ilada, conduz a idade dos heris a seu desaparecimento26.
A idade dos heris cantada na pica parece dar lugar, se pensarmos no
prlogo historiogrfico de Herdoto, a um tempo dos homens, marcado em
alguma medida por intervenes da divindade, mas sobretudo construdo por aes
humanas, dignas de serem memorizadas, e
. Herdeiro de uma axiologia pica,
Herdoto, nas suas Histrias, conjuga elementos presentes na pica homrica, tanto
a Ilada quanto a Odisseia. Se por um lado, o relato da guerra e dos feitos humanos
nesta podem remontar ao discurso da Ilada, por outro, a grandeza da ao humana,
a viagem, o conhecimento dos the selvagens e civilizados, podem remontar
Odisseia. Ulisses, heri singular da Odisseia, o homem que, maneira de
26 Si le prome ne dfinit pas plus explicitement le projet divin, et si la proposition qui nous arrte s'insre, comme en incise, dans la phrase qui dfinit le thme du chant de la Muse, c'est qu'elle vise dire plus que le seul rappel du cadre lgendaire dans lequel s'inscrit l'pisode iliadique. Elle est tourne, comme le reste de la phrase o nous la lisons, vers la suite du pome, qu'elle invite l'auditoire entendre correctement. Il serait assurment faux de penser qu'elle formule une sorte d'explication thologique gnrale selon laquelle le cours des vnements obirait la volont souveraine du dieu. Mais il faut certainement lui prter un sens ouvert. Le contenu de cette boul n'est pas nonc d'entre de jeu par le narrateur. Sa connaissance n'est pas non plus simplement prsuppose. Elle est promise la rflexion de l'auditoire, comme une nigme qu'il doit apprendre dchiffrer mesure que progresse le rcit. Car c'est ainsi qu'il pourra comprendre de quelle manire l'intrigue de Zeus, dans l'Iliade, conduit l'ge des hros sa disparition.
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Herdoto de algum modo, de muitos homens viu cidades e o pensamento
conheceu, como nos diz os versos que compem o promio27 do poema:
, , , , ' , ' ' , . 5 ' ' , , , . , , , . 10
Conta-me, Musa, o homem multiforme, que muitssimovagou, depois que a sagrada cidade pilhou de Troia;de muitos homens viu cidades e o pensamento conheceu,muitas dores, no mar, sofreu, em seu coraolutando por conservar sua vida e o retorno dos companheiros.Mas nem assim os companheiros salvou, embora o desejasse;por seus prprios desatinos pereceram,nscios, que os bois do Sol Hiperiniocomeram; ele privou-os do dia do retorno.disso, de algum ponto, Deusa, filha de Zeus, conta-nos tambm.
Ver e conhecer so aes importantes no percurso do heri. Ulisses, que luta
todo o tempo para no esquecer e concretizar seu nstos e o dos companheiros,
constri uma histria a partir de suas experincias, das cidades que v, dos
pensamentos humanos que passa a conhecer. O ltimo porto de Ulisses, e
precisamente aquele que lhe propicia o retorno certo, a Esquria, espao do
humano, de civilizao, onde o heri, na condio de hstor, narra suas aventuras,
conta o que viu e conheceu. As lgrimas de Ulisses fazem com que as palavras de
Demdoco, o aedo que canta como se estivesse estado presente a tudo ou o tivesse 27 Embora alguns estudiosos considerem como promio estendido tambm os versos 11-21 (Rter e Basset, apud. Clay 1976: 314, n. 3), tomo aqui somente os versos 1-10.
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ouvido de outro ( Od. VIII, 491),
sejam substitudas pelo relato do heri em 1 pessoa.
diferena do aedo, porta-voz da palavra sagrada das Musas, Ulisses conta o
que ele prprio experimentou e que o tornou poltropos28. As viagens de Ulisses,
ainda que involuntrias, propiciam-lhe um conhecimento do outro e tambm um
reconhecimento de si e de sua condio humana29. Responsveis pela atribuio do
klos, na Odisseia, Fmio e Demdoco cantam os feitos de Troia, campo de
faanhas hericas dignas de serem memoradas, mas no so capazes de dizer sobre as
inmeras dores sofridas pelo heri em suas errncias, em seu nstos polykeds, seu
retorno mui aflitivo (Od. IX, 37; XXIII, 351). Fmio, no canto I, cessa o canto do
nstos lygrs, do triste retorno, dos aqueus a pedido de Penlope, que lhe solicita
cantar os ' , as gestas dos homens e
dos deuses, que os aedos celebram (v.338); Demdoco, no canto VIII, canta
primeiramente os amores de Afrodite e Ares (vv.266-367) e, em seguida, o episdio
do cavalo de madeira (499-520).
Como afirma Franois Hartog (2004:40), a viso dos aedos no alcana os
espaos do no humano e do selvagem pelos quais vaga Ulisses. Espao akles, o
mundo no humano faz do heri um homem annymos (Od. VIII, 551), que s
vem a recobrar sua identidade na corte fecia (Od. IX, 19-21). Desse espao de
angstia e de esquecimento o nico aedo , afinal, Ulisses, que sempre se recorda:
Alcnoo compara seu mythos, a narrativa de suas aventuras, ao canto verdico do
28 No canto IX da Iliada, v-se tambm Aquiles, o melhor dos aqueus, desempenhar, de algum modo, o papel de aedo quando, em sua tenda, com a lira obtida por prmio pela tomada da cidade de Ecion, o heri ecida canta os kla andrn (v. 189. , ' com ela alegrava o corao, enquanto cantava as glrias dos homens). Mas o poeta no especifica que kla so cantados por Aquiles, se os feitos recentes dos heris na guerra, se os feitos de Hracles na primeira tomada de Tria (cf. Il. V,v.638ss. ), se a gesta de outros heris como os referidos por Peleu, no canto I (v.260ss.). Aquiles poderia aproximar-se do Ulisses da Odisseia, se canta os feitos que viu; ou dos aedos de taca e da Fecia, que cantam o que sabem das Musas. 29 Ainda que a contragosto, o heri da Odisseia o primeiro viajante que observa costumes, como se pode depreender de sua narrativa acerca do territrio dos Ciclopes (Od. IX), por exemplo. Mas no Ulisses o nico viajante do poema de Homero. Telmaco, ao contrrio do pai, guiado pelo caminho traado por Atena ( , ' , queria em seu corao o caminho que Atena lhe indicara Od., I, v.444), viaja para saber do paradeiro do heri; Menelau narra sua trajetria por Chipre, pela Fencia, pelo Egito, pela Lbia (Od., IV, vv. 81-89).
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aedo, como conclui Hartog. Ulisses, entretanto, no exatamente aedo desse
canto, mas seu prprio personagem e testemunha, que historia os mundos
percorridos. Ao tomar o lugar de Demcodo, Ulisses faz calar a pica
exclusivamente humana, ainda que herica, para introduzir o elemento monstruoso,
necessrio para traar fronteiras e limites que delinearo os contornos do prprio
humano, condizente com uma pica que se inicia por ndra.
Retomando os promios da epopeia homrica, cabe observar mais
atentamente suas estruturas enunciativas. Ambos os poemas iniciam-se por uma
invocao Deusa ou Musa ( na Ilada e na Odisseia), gesto esse que se
inscreve em uma tradio potica, no exclusivamente pica, como se pode notar,
maneira de exemplo, nos Erga hesidico (
, / ' , ' Musas da Piria que
gloriais com cantos,/ vinde, dizei de Zeus, vosso pai celebrando em hinos). Na
Ilada, no h uma primeira pessoa nomeada no promio, destacando-se o prprio
motivo do canto, a ira do Pelida. Na Odisseia, embora esteja em relevo o projeto da
narrativa, no primeiro verso uma primeira pessoa referida, precisamente aquela
que apela interveno da Musa, marcada pelo pronome pessoal em dativo, .
Tambm o ltimo verso desse promio pluraliza a primeira pessoa ( ... ,
logo aps a cesura buclica). Mas ainda na Ilada, na dita segunda invocao, que
introduz o catlogo das naus, v-se um eu anunciar-se e tambm um ns opor-se a
vs:
' 30 , 485 30 A frmula ' aparece em outros cantos na Ilada, em contextos em que o poeta apela figura da Musa, para narrar momentos primeiros de uma ao (em XI, 218, quem foi o primeiro dos troianos a enfrentar Agammnon; em XIV, 508, quem foi o primeiro dos aqueus a levar os despojos da batalha; em XVI, 112, como primeiro foi lanado o fogo contra as naus aqueias, respectivamente). Ao recorrer interveno divina para trazer lembrana feitos mais remotos, o poeta reafirma a presena das Musas, filhas da Memria, na tessitura de seu canto, como forma de legitim-lo.
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' ' , ' , ' , ' , , 490 ' .
Dizei-me agora, Musas que tendes Olmpia morada;pois vs sois deusas, estais presentes e tudo sabeis,mas ns somente a fama ouvimos, nada sabemos;quem eram os chefes dos dnaos e seus comandantes.a multido eu no poderia narrar nem nomear,nem se dez lnguas e dez bocas tivesse,voz inabalvel, e de bronze corao em mim houvesse,se as Musas Olmpias, de Zeus portador da gidefilhas, no lembrassem quantos foram a Troia;dos chefes das naus falarei ento e de todas as naus.
Nesses versos, as formas e trazem tona uma primeira
pessoa do singular, bem demarcada pelo pronome , um eu que no sabe o
quanto est presente. Esse , ainda que no seja capaz de operar por si mesmo tais
aes de narrar e de nomear, como se depreende da negao que as precede, afirma
uma presena tanto diegtica expressa pelo verbo quanto epidtica (de
ordem descritiva e demonstrativa) como se depreende a partir do uso do verbo
. Ambos os verbos so sintetizados pelo uso, no verso 493, de ,
tambm em primeira pessoa, que, por sua vez, indica o projeto de uma ao possvel,
ainda que condicionada rememorao das Musas (
... /... ). O verbo , no excerto acima, sintetiza, pelo auxlio
das Musas, a capacidade do poeta de cumprir o invivel: o catlogo que ali se inicia.
Os versos 486-7, a despeito das querelas filolgicas que questionam sua
datao, estabelecem um contraste interessante entre (vs) e (ns)
ambos espondeus iniciais de seus hexmetros, com uma ressonncia que evidencia o
carter antittico, marcado ainda pela partcula . possvel pensar tambm no
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contraste que esses versos criam entre o potencial de ao da figura divina e o limite
da ao humana. um lugar, uma funo que pode ser ocupada por quem
quer que leve o canto execuo; , um possvel identificador daquele que
canta com a audincia que o ouve e tambm um distanciador desse aedo e seu
pblico e as Musas. O primeiro pronome sujeito dos verbos que indicam estar
presente () a tudo e tudo saber (), e o segundo, dos verbos que
expressam ouvir () e no saber ( ). Isso parece tanto
referendar a idia to recorrente na literatura grega de que os olhos so testemunhas
melhores do que o ouvido quanto estabelecer uma simetria dicotmica entre os
, que chegam pela audio mas que podem ser enganosos e os
, que se apresentam aos olhos pela presena fsica e que, a julgar pelo
trecho acima, geram o saber. O poeta, contudo, - e a vemos uma distncia abissal
entre Homero e Herdoto pode transformar o que ouve em saber porque o ouve
das Musas. Herdoto, no. E, por isso, precisa constituir uma certa categorizao
dual de saberes, em que uma certa do olhar conviva com uma do
ouvir.
O promio hesidico da Teogonia, poema dotado de uma dico homrica e
repleto de estruturas formulares que remetem aos versos da pica, oferece um dado
singular no que concerne a uma identificao autoral na poesia arcaica. A
nomeao de Hesodo, nos versos iniciais do extenso promio (vv.1-115), surge
mutatis mutandis maneira de uma sphrags, de um selo, procedimento corrente na
lrica posterior31. A Teogonia se inicia, de modo similar a alguns dos poemas da
tradio hnica, como um hino s Musas, com o verso
' , Comecemos a cantar as Musas Heliconades (v.1), e nos versos
22-23 o poeta aparece nomeado e como aprendiz das Musas, em um dado instante e
lugar determinado:
31 Como afirma Calame (2000:97-8), essa emergncia no enunciado da enunciao das condies extradiscursivas da comunicao prefigura o procedimento da sphrags, da assinatura, frequente na poesia posterior. Doravante o locutor/narrador tem um nome e uma identidade biogrfica: Hesodo.
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' , ' ,
Elas certa vez ensinaram a Hesodo um belo canto, quando apascentava ovelhas ao p do divino Hlicon32.
Nos versos seguintes do promio, h uma srie de menes atribuio de
uma funo por parte das Musas a Hesodo, expressas pelas formas pronominais
/. As Musas aqui falam diretamente ao poeta e lhe conferem um status diverso
daquele dos demais pastores, oprobriosos, ventres somente:
, 25 , ' , , , ' ' . , 30 , , ' ' , ' ' , ' .
tal palavra primeiramente disseram-me as Musas Olmpicas, filhas de Zeus portador da gide:pastores dos campos, triste oprbrio, ventres somente,sabemos dizer muitas mentiras semelhantes a realidades,mas sabemos , se quisermos, dar a ouvir verdadesAssim disseram as donzelas do grande Zeuse deram-me como cetro um ramo de florescente loureiroque colheram, admirvel; e sopraram-me vozinspirada, para que eu glorie o futuro e o passado,e ordenaram-me celebrar em hinos a raa dos sempre
32 Cf. tambm Erga, v. 662: ' pois as Musas ensinaram-me a cantar um inefvel hino. Como assinala West em seu comentrio obra (1996:321), o termo no tem ainda o sentido especializado de hino, mas pode ser usado de modo anlogo na poesia narrativa e didtica.
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[bem-aventurados, e a elas prprias, no princpio e no fim, sempre cantar.
Hesodo se apresenta nesses versos como tributrio das Musas, como pessoa
qual elas ordenam a conservao dos kla do futuro e do passado e o canto constante
em sua honra33. Responsvel pela execuo do canto laudatrio, o referido eu
hesidico passa a entoar, seno retoma, o hino s Musas (,
, / ... eia! comecemos pelas Musas, as que a Zeus
pai entoam hinos..., v.36-7). Tambm nos Erga34, h aluso funo potica
atribuda pelas Musas:
['] , 650 , ' . ' ' ['] 655'
33 Nos versos 93-103, Hesodo ainda nos diz sobre a relao entre Musa e aedo: ./ / , / ' , / ./ / , / / ,/ ' / . Este o dom sagrado das Musas para os homens./ Pois das Musas e de Apolo, que lana ao longe/ surgem sobre a terra aedos e citaristas, / e de Zeus, os reis; e prspero aquele que as Musas/ amam: doce, flui-lhe da boca a voz./ Pois se algum, lutuoso no nimo recm-dolente/ teme o corao, aflito, de pronto um aedo/ servo das Musas, as glrias dos primeiros homens/ celebram em hinos, e os deuses bem-aventurados que tm o Olmpo,/ logo das aflies ele esquece e de pesar algum/ se lembra; rpido o distraem os dons das deusas. 34 Na primeira parte dos Erga, cada um dos exempla dirigidos a Perses, dito destinatrio do poema, so introduzidos por versos nos quais se v, em posies destacadas, o pronome e verbos em primeira pessoa. Assim: eia! eu a Perses contarei o que h de fato (v.1 introdutrio narrativa das duas rides), com o pronome antes da cesura triemmere e o verbo aps cesura buclica; ' , se queres, a ti outra histria exporei (v.106 introdutrio ao mito das cinco raas), com o pronome aps a cesura trocaica e o verbo a partir da buclica; ' Agora, direi aos reis uma fbula, mesmo sendo eles sbios (v. 202 como intrito fbula do gavio e do rouxinol), com o verbo na cesura trocaica; ' , A ti, eu, tendo em mente boas coisas, falarei, Perses, grande tolo! (v.286 introdutrio ao tema do trabalho), com o verbo na cesura pentemmere.
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' . ' ' .
Jamais em uma nau naveguei pelo vasto mar,se no para Eubia, sado de ulis, onde outrora os Aqueus,ao permanecerem por mau tempo, reuniram vasta tropada sagrada Hlade para Troia, de belas mulheres.Ali, para os jogos em honra ao valoroso Anfidamasrumo a Clcis eu atravessei o mar; os muitos prmios anunciadosseus generosos filhos dispuseram; l, afirmo,com um hino tendo vencido, levei eu uma trpode de asas.Ela eu dediquei s Musas Heliconadesali onde, primeiro, guiaram-me ao mavioso canto.
Em termos comparativos, dos promios de poesia aqui estudados, pode-se
afirmar que alguns apresentam um carter annimo na enunciao, como no caso
dos poemas picos e da lrica pindrica, em que o lugar do eu enunciador pode ser
assumido por quem quer que execute o canto, em circunstncias diversas35. Esse
carter annimo contribui, de certa maneira, para uma autonomia da performance
no que tange a seus executores. Por outro lado, como se pode depreender do
promio da Teogonia hesidica, ainda que a referncia autoral seja feita em terceira
pessoa e esse canto possa ser retomado por outros que no o prprio Hesodo, essa
35 Esta considerao de Calame (2005:37) amplia ainda os limites dessa discusso: Si l'on veut bien considrer le genre (potique) comme constitu d'une srie de rgles la fois discursives et institutionelles qui, souvent implicites, s'inscrevent dans le consensus et la tradition d'une communaut culturelle, on admettra que cette nature composite des genres joue un rle essentiel non seulement dans l'articulation entre l'intra- et l'extra-discursif, mais aussi dans l'largissement d'une "instance d'nonciation" se trouvant elle-mme la croise entre usages singuliers d'une langue potique et dterminations institutionelles et sociales, sinon psychologiques et affectives. Se se pretende considerar o gnero (potico) como constitudo de uma srie de regras ao mesmo tempo discursivas e institucionais que, muitas vezes implcitas, se inscrevem no consenso e na tradio de uma comunidade cultural, admitir-se- que essa natureza mltipla dos gneros desempenha um papel essencial no somente na articulao entre o intra- e o extradiscursivo, mas tambm no alargamento de uma "instncia de enunciao", encontrando-se ela prpria em um cruzamento entre usos singulares de uma lngua potica e determinaes institucionais e sociais, seno psicolgicas e afetivas.
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marca permanece presente. Pelo procedimento da sphrags; est ali um nome de
autor, de um responsvel pela composio.
2.2. PRLOGOS HISTORIOGRFICOS DE HECATEU, TUCDIDES E ANTOCO
Da produo historiogrfica grega anterior a Herdoto, chegaram-nos
apenas nomes e escassos fragmentos dos chamados loggrafos36, ou logopoio 37
como os denomina Herdoto, oriundos de diversas cidades da Grcia, que viveram
entre os sculos VI e V a.C. A produo desses loggrafos, em prosa jnica e de
temtica bastante variada, inclua narrativas mitolgicas, genealogias, histrias locais,
relatos de fundao de cidades, descries geogrficas e etnogrficas, fundamentados
em critrios de verossimilhana, a partir de uma observao crtica das tradies
orais ancestrais. Felix Jacoby, em sua edio, inconclusa, dos Fragmente der
griechischen Historiker (FGrHist), props a seguinte tipologia para os escritos desses
historiadores, divindindo-os em trs sees, a saber: I. Genealogia e mitografia, que
rene fragmentos que tratam da tradio herica; II. Histria, que rene relatos dos
feitos38 dos povos gregos; III. Horografia e etnografia, que rene, respectivamente,
histrias locais de cidades gregas desde sua fundao (ktseis) e a descrio do modus
vivendi, o marco geogrfico e histrico de pases e povos fundamentalmente no
gregos (Aigyptiak, Babyloniak, Indik, Lydiadik, Persik).
Dionsio de Halicarnasso, em seu tratado Sobre Tucdides (V.2), faz meno
a esses loggrafos como , escritores antigos, e, na longa lista 36 Cf. Tuc. I. 21, 1, onde se afirma o compromisso para com a audincia por parte dos loggrafos, colocados em posio semelhante a dos poetas. Em nota a esta passagem, Anna Lia de Almeida Prado (1999:210) ope os loggrafos, compositores de lgoi, aos autores picos, os epopoio, e afirma que, sob essa designao, Tucdides se refere aos antigos cronistas e, sobretudo, a Herdoto. Cf. tambm Aristteles, Ret., 1388b21, onde loggrafos aparecem tambm em oposio aos poetas ( e daqueles de quem elogios e encmios so ditos ou por poetas ou por loggrafos). poca de Aristteles, os loggrafos eram profissionais que compunham discursos a serem lidos por outros. 37 Cf. Hdt. II. 136,15, sobre Esopo; II.143.1.; V, 36,6; 125,1, sobre Hecateu de Mileto. 38 Segundo Fornara (1988:1), no sentido de prxeis (Aristteles, Ret. 1360a35) ou ainda a expositio rerum gestarum (Quintiliano, I.O, 2,4,2).
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apresentada por ele, figura o nome de Hecateu de Mileto, do qual temos as seguintes
palavras de abertura das Genealogias, citadas por Pseudo-Demtrio, no De
elocutione, 12:
, , , Hecateu de Mileto assim fala: escrevo isso, como me parece ser verdadeiro; pois os relatos dos gregos so muitos e risveis, conforme se me apresentam. (FGrHist 1F1)
Este fragmento de Hecateu, que temos hoje como o mais antigo promio
historiogrfico, e que encabea a edio dos fragmentos dos historiadores gregos de
Felix Jacoby, traz explcito o nome do autor em terceira pessoa, maneira de uma
sphrags, seguido do ditico e do verbo . Logo adiante, a primeira
pessoa de Hecateu sugerida pela forma verbal , antecedida do ditico ,
e tambm sugerida pelo dativo / . Para alm do gesto autoral de Hecateu,
evidenciado por sua assinatura, o promio das Genealogias apresenta tambm uma
postura crtica de seu sugerido autor, que busca diferenciar seu relato dos demais
legados pela tradio: escrever algo que assume cortornos de verdade em oposio
aos muitos lgoi dos gregos, que so dignos de riso. Leone Porciani (1997: passim),
ao estudar as formas de abertura dos escritos historiogrficos do V sculo, observa
certa afinidade existente entre estas, sobretudo a de Hecateu, e as frmulas iniciais da
epistolografia oriental, na qual o incipit nome + ditico e verbum dicendi (/
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) faz-se predominante39. Mas Porciani no deixa de reconhecer certa
adaptao dessa frmula para a realidade grega:
Os novos intelectuais, e entre estes certamente Hecateu, foram forados a repensar no s os termos do saber tradicional, mas tambm a maneira de expor ao pblico seus resultados. Fazendo isso, passaram a comear suas ou com um mdulo que, de fato, tinha pontos de contato com aquele empregado nas inscries e nas cartas dos soberanos persas, mas que no podia ser percebido como persa pelo fato de que era tambm grego. No s isso, mas o uso do mesmo estilema tinha conotaes diversas na Grcia e na Prsia: enquanto o estilema O Rei (assim) fala (Fala o Rei em persa antigo) era uma expresso de solenidade, para os gregos X (assim) fala/diz/disse/conta era, antes, a frmula da comunicao cotidiana distncia. E improvvel que essa diferente nfase sociolgica fosse conscientemente explorada pelos gregos: Hecateu deve ter conhecido bem o persa ou ainda o aramaico, para poder transferir de modo polmico para sua lngua um modelo persa que no original gozava de certa aura majesttica40.
39 Porciani (1997:71): I pi antichi proemi storiografici hanno le stesse caratteristiche delle lettere: enunciazione alla terza persona, passaggio dalla terza alla prima persona dopo lintroduzione. La prima caratteristica va da s; per quanto riguarda la seconda, il caso di Ecateo chiarissimo perch il passaggio immediato (-); Erodoto e Tucidide, quando riprendono la parola dopo la sezione iniziale, usano anchessi stabilmente la prima persona (Hdt. 1,5,3 ; Th., 1,1,3 ); ancora Tucidide, nel proemio del quinto libro, dopo liniziale (5,26,1), su cui avremo occasione di soffermarci, adopera . Os promios historiogrficos mais antigos tm as mesmas caractersticas das cartas: enunciao em terceira pessoa, passagem da terceira para primeira pessoa aps a introduo. A primeira caracterstica evidente; no que diz respeito segunda, o caso de Hecateu clarssimo porque a passagem imediata (-); Herdoto e Tucdides, quando retomam a palavra depois da seo inicial, usam tambm de modo estvel a primeira pessoa (Hdt. 1,5,3 ; Th., 1,1,3 ); Tucdides ainda, no promio do livro V, depois do inicial (5,26,1), sobre o qual teremos ocasio de nos deter, usa . 40 Porciani (ibidem: 77): I nuovi intellettuali, e tra questi certo Ecateo, ne furono spinti a ripensare non solo i termini del sapere tradizionale, ma anche la maniera di porgere al pubblico i loro risultati. Facendo questo, si trovarono a cominciare le loro o con un modulo che aveva s punti di contatto con quello adoperato nelle iscrizioni e nelle lettere dai sovrani persiani, ma che non poteva essere percepito come persiano per la buona ragione che era anche greco. Non solo, ma luso dello stesso stilema aveva connotazioni differenti in Grecia e in Persia: mentre qui lo stilema Il Re (cos) parla (Parla Il Re in antico-persiano) era unespressione di solennit, p