a amÉrica latina e as relaÇÕes internacionais: o projeto

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Revista Transformar Ago/Dez/2020 E-ISSN:2175-8255 11 A AMÉRICA LATINA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: o projeto de integração de Simon Bolívar (1815-1826) LATIN AMERICA AND INTERNATIONAL RELATIONS: the integration project of Simon Bolívar (1815-1826) AMÉRICA LATINA Y RELACIONES INTERNACIONALES: el proyecto de integración de Simón Bolívar (1815-1826) Vítor Rangel1 Letícia Carvalho2 Drielle da Silva Pereira 3 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar o projeto integracionista de Simon Bolívar, líder máximo do processo de independências da América Espanhola. Nesse sentido, a abordagem busca compreender as motivações, ações e resultados das iniciativas empreendidas por Bolívar como forma de resistência à ameaça imperialista exercida por forças como a Europa, por meio da Santa Aliança e os Estados Unidos. Este estudo se insere no âmbito da História Política numa interlocução com a História das Relações Internacionais. Realizou-se uma pesquisa com fontes bibliográficas de cunho historiográfico e internacionalista em uma abordagem qualitativa e descritiva dos dados. O projeto idealizado por Bolívar fracassou, entretanto, percebe-se que após as conquistas da independência as ações de iniciativas para implementação do projeto bolivariano cujo objetivo era a consolidação da liberdade e a ascensão como força política no cenário internacional influenciaram as aproximações e digressões dos países latino-americanos ao longo dos séculos até a contemporaneidade. Palavras-chaves: integração. pan-americanisno. Imperialismo. Bolivarianismo. Simon Bolívar. Abstract - This article aims to analyze the integrationist project of Simon Bolívar, the top leader of the Spanish American independence process. In this sense, the approach seeks to understand the motivations, actions and results of the initiatives undertaken by Bolívar as a form of resistance to the imperialist threat exerted by forces such as Europe, through the Holy Alliance and the United States. This study falls within the scope of Political History in a dialogue with the History of International Relations. A research was carried out with bibliographic sources of historiographic and internationalist nature in a qualitative and descriptive approach to the data. The project idealized by Bolívar failed, however, it is clear that after the conquests of independence, the actions of initiatives to implement the Bolivarian project - whose objective was the consolidation of freedom and the rise as a political force on the international scene - influenced the approaches and digressions Latin American countries over the centuries to the present. Keywords: integration. Panamericanismo. Imperialism. Bolivarianism. Simon Bolívar. Resumen - Este artículo tiene como objetivo analizar el proyecto integracionista de Simón Bolívar, máximo líder del proceso independentista hispanoamericano. En este sentido, el enfoque busca comprender las motivaciones, acciones y resultados de las iniciativas emprendidas por Bolívar como una forma de resistencia a la amenaza imperialista que ejercen 1Graduado em História pelo Centro Universitário São José. Contato: [email protected]. 2Graduada em História pelo Centro Universitário São José. Contato: [email protected]. 3Doutoranda em História (UFF). Mestra em Estudos Estratégicos da Segurança e Defesa (UFF). Docente na Rede Estadual do RJ (Seeduc-RJ). Docente no Centro Universitário São José. Contato: [email protected].

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Page 1: A AMÉRICA LATINA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: o projeto

Revista Transformar Ago/Dez/2020 E-ISSN:2175-8255

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A AMÉRICA LATINA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: o projeto de integração de Simon Bolívar (1815-1826)

LATIN AMERICA AND INTERNATIONAL RELATIONS: the integration project of Simon Bolívar (1815-1826)

AMÉRICA LATINA Y RELACIONES INTERNACIONALES: el proyecto de integración de Simón Bolívar (1815-1826)

Vítor Rangel1

Letícia Carvalho2

Drielle da Silva Pereira 3 Resumo – O presente artigo tem por objetivo analisar o projeto integracionista de Simon Bolívar, líder máximo do processo de independências da América Espanhola. Nesse sentido, a abordagem busca compreender as motivações, ações e resultados das iniciativas empreendidas por Bolívar como forma de resistência à ameaça imperialista exercida por forças como a Europa, por meio da Santa Aliança e os Estados Unidos. Este estudo se insere no âmbito da História Política numa interlocução com a História das Relações Internacionais. Realizou-se uma pesquisa com fontes bibliográficas de cunho historiográfico e internacionalista em uma abordagem qualitativa e descritiva dos dados. O projeto idealizado por Bolívar fracassou, entretanto, percebe-se que após as conquistas da independência as ações de iniciativas para implementação do projeto bolivariano – cujo objetivo era a consolidação da liberdade e a ascensão como força política no cenário internacional – influenciaram as aproximações e digressões dos países latino-americanos ao longo dos séculos até a contemporaneidade. Palavras-chaves: integração. pan-americanisno. Imperialismo. Bolivarianismo. Simon Bolívar. Abstract - This article aims to analyze the integrationist project of Simon Bolívar, the top leader of the Spanish American independence process. In this sense, the approach seeks to understand the motivations, actions and results of the initiatives undertaken by Bolívar as a form of resistance to the imperialist threat exerted by forces such as Europe, through the Holy Alliance and the United States. This study falls within the scope of Political History in a dialogue with the History of International Relations. A research was carried out with bibliographic sources of historiographic and internationalist nature in a qualitative and descriptive approach to the data. The project idealized by Bolívar failed, however, it is clear that after the conquests of independence, the actions of initiatives to implement the Bolivarian project - whose objective was the consolidation of freedom and the rise as a political force on the international scene - influenced the approaches and digressions Latin American countries over the centuries to the present. Keywords: integration. Panamericanismo. Imperialism. Bolivarianism. Simon Bolívar. Resumen - Este artículo tiene como objetivo analizar el proyecto integracionista de Simón Bolívar, máximo líder del proceso independentista hispanoamericano. En este sentido, el enfoque busca comprender las motivaciones, acciones y resultados de las iniciativas emprendidas por Bolívar como una forma de resistencia a la amenaza imperialista que ejercen

1Graduado em História pelo Centro Universitário São José. Contato: [email protected].

2Graduada em História pelo Centro Universitário São José. Contato: [email protected]. 3Doutoranda em História (UFF). Mestra em Estudos Estratégicos da Segurança e Defesa (UFF). Docente na Rede Estadual do RJ (Seeduc-RJ). Docente no Centro Universitário São José. Contato: [email protected].

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fuerzas como Europa, a través de la Santa Alianza y Estados Unidos. Este estudio se enmarca en el ámbito de la Historia Política en diálogo con la Historia de las Relaciones Internacionales. Se realizó una investigación con fuentes bibliográficas de carácter historiográfico e internacionalista en un enfoque cualitativo y descriptivo de los datos. El proyecto idealizado por Bolívar fracasó, sin embargo, es claro que luego de las conquistas de la independencia, las acciones de iniciativas para implementar el proyecto bolivariano -cuyo objetivo era la consolidación de la libertad y el ascenso como fuerza política en el escenario internacional- influyeron en los planteamientos y digresiones. Países de América Latina a lo largo de los siglos hasta la actualidad. Palabras-clave: integración. Panamericanismo. Imperialismo. Bolivarianismo. Simón Bolívar.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa compreender as motivações, ações e resultados do

projeto de integração nos anos de 1815 a 1826, proposto por Simon Bolívar para

América espanhola. Em relação aos campos históricos, localiza-se na dimensão da

História Política em uma interlocução com a História das Relações Internacionais. Este

artigo baseia-se em fontes bibliográficas e tem como referencial teórico a integração

regional como forma de união política e econômica da América Espanhola, visando

sua inserção no cenário internacional numa articulação de interdependência. Esse

acordo de vontades busca solução uniforme numa conjuntura de imposição

imperialista, em que além das forças europeias, percebia-se o monroismo, doutrina

antagônica ao bolivarianismo dentro de uma perspectiva dicotômica do pan-

americanismo, tendo como égide os Estados Unidos para a primeira e uma entidade

supranacional vinculada ao bolivarianismo.

Este artigo se propõe a responder qual o objetivo do projeto de integração

política proposto por Simon Bolívar, para uma América Latina recém independente,

no âmbito das relações internacionais do século XIX, em que se buscava a segurança

econômica para fazer frente a um capitalismo avançado, e garantir um papel de

destaque na economia global, afastando assim as investidas de recolonização das

potências europeias, bem como da potência estadunidense. Para isso realizou-se

uma pesquisa com fontes bibliográficas de cunho historiográfico e internacionalista

em uma abordagem qualitativa e descritiva dos dados. Esse estudo se justifica pela

análise mais detalhada do projeto, como mais uma contribuição para os estudos

históricos, percebendo que o projeto de integração ajuda a entender as raízes

históricas do processo que está em voga na política externa latino-americana

contemporânea, uma influência secular de inspiração para os atuais blocos

econômicos.

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Em um primeiro momento, contextualizam-se as transformações ocorridas nas

Relações Internacionais do século XIX à luz da expansão napoleônica e seus efeitos

nas lutas de independência da América espanhola, em uma análise dos desafios do

pós-independência. Em um segundo plano observam-se as origens, influências e

experiências que moldaram as iniciativas de Simon Bolívar, fazendo um percurso

biográfico do então Libertador sem deixar de abarcar sua relevância no processo de

independência da América Espanhola, bem como os movimentos pós processo, que

buscava afastar o espectro imperialista. Como ponto precípuo, pretende-se apontar o

projeto integracionista como forma de resistência, à ameaça imperialista exercida por

distintas forças e principalmente o perigo da reconquista, em que desponta a

integração política bolivariana em observação conjunta de suas iniciativas para a

união pretendida, assim como o produto desse processo.

1. A AMÉRICA LATINA E A NOVA DINÂMICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

NO SÉCULO XIX

1.1. A DINÂMICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO SÉCULO XIX:

EXPANSÃO NAPOLEÔNICA E SEUS EFEITOS NO CONTINENTE EUROPEU

No século XIX o sistema de equilíbrio, pautado em uma hegemonia de múltiplas

independências, que expressava as relações entre os Estados na Europa durante os

séculos XVII e XVIII, em substituição a hegemonia da Cristandade4, sofreu uma

ruptura que teve, por sua vez, impacto na dinâmica das relações internacionais

daquele período. A partir de então, as relações europeias teriam como base o arranjo

conhecido como hegemonia coletiva, fruto das mudanças promovidas pela chamada

Era das Revoluções (1789-1848). Segundo Eric Hobsbawm (2010), este período foi

composto por dois acontecimentos que erodiram as bases do Antigo Regime, a saber,

a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

4Segundo Amado Luiz Cervo na Idade Média, a Cristandade era o traço da sociedade que determinava conceitos, práticas de governo, autoridade e comportamento. Com o Renascimento e as Reformas Religiosas ocorre o enfraquecimento da Cristandade e a abertura para o estabelecimento de Estados territoriais sob mando fortalecido dos Reis que, por sua vez, vão integrar uma sociedade anti-hegemônica que tinha por objetivo maior autonomia em relação a Cristandade. Ver: CERVO, A.L. In: SARAIVA, F.F.S. (Org.). História das Relações Internacionais Contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2007.

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A Revolução Francesa tributária à Ilustração5 provoca efeitos significativos no

continente europeu e no resto do mundo em função da propagação dos seus ideais,

marcando juntamente com a Revolução Industrial, o que Eric Hobsbawm (2010)

identificou por Dupla Revolução6. Os insurgentes franceses defendiam que a

autoridade deveria basear-se na razão, e questionavam o caráter sagrado do poder

defendido pelos reis, pela aristocracia e pela Igreja. Pautavam ideais como liberdade

e constitucionalismo, sendo fortes defensores da separação entre Igreja e Estado.

A vitória do Terceiro Estado na França em 1789 não significou, por sua vez, o

início de tempos tranquilos, pelo contrário, a partir de então a sociedade francesa se

viu em meio aos dilemas relacionados aos rumos do processo revolucionário, bem

como, às ameaças internas e externas. O desequilíbrio causado diante desta

conjuntura acabou catapultando o Exército como um importante ator político na

França, afinal, ganhou prestígio ao enfrentar as forças externas da contrarrevolução

vindas das potências absolutistas e da Inglaterra aterrorizadas com o

desenvolvimento e alcance dos ideais iluministas em detrimento da monarquia

absolutista.

Será desse cenário que despontou Napoleão Bonaparte que, com apenas 24

anos, ascendeu ao posto de General do Exército após sucessivas vitórias contra as

forças contrarrevolucionárias. Seu prestígio chamou atenção de políticos do Diretório,

entidade que dirigia a França naquele momento da revolução, e dos girondinos que o

apoiaram em um golpe, que seria conhecido como o Golpe 18 de Brumário, fechando

a Assembleia Constituinte, dando início ao período Napoleônico. A República, a

imagem da Revolução e seus ideais na figura de Napoleão, além da urgência da

industrialização francesa, deixavam em estado de alerta os países absolutistas e a

Inglaterra, sua adversária secular, em pleno aumento e expansão econômica:

5De acordo com Salinas Fortes, expressões como Filosofia das Luzes, Iluminismo, filosofia da Ilustração são sinônimos de Ilustração. Trata-se de nomes atribuídos a um movimento cultural que domina a Europa Ocidental, especialmente a França, Inglaterra e Alemanha do final do século XVII até 1780 aproximadamente. Foi uma filosofia que combateu o regime absolutista e mercantilista, pregando liberdade econômica e jurídica, além da defesa da razão em detrimento das crenças religiosas que até então imperavam, bem como a valorização do homem. Ver: SALINAS FORTES, Luiz Roberto. O Iluminismo e os reis filósofos. Brasília: Editora Brasiliense, 1981. 6De acordo com Eric Hobsbawm o termo “Dupla Revolucao” compreende a analise da Revolucao Francesa (1789) e Industrial (1760), iniciadas na França e Inglaterra respectivamente, mas que se ampliou e alcançou grande parte do mundo. Ambas as revoluções foram responsáveis por grandes mudanças no mundo, a primeira pelo vocabulário político, e a segunda pela formação do mundo econômico. Ver: HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1789 – 1848). São Paulo: Paz e Terra S.A, 2010.

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Mas não somente a estrutura de Estados europeus foi progressivamente desfeita. Junto aos exércitos franceses, marcharam também as instituições da França revolucionária. Elas foram desconstituindo a arquitetura das sociedades tradicionais do Antigo Regime, os três estados, suas ordens e privilégios, a servidão do mundo feudal e a estrutura política e administrativa, redesenhando e desfragmentando o mapa político europeu. (MORAIS, 2020, p. 72).

Napoleão colocava em jogo a sociedade europeia e o sistema de múltiplas

independências. Ao iniciar o seu processo expansionista, Napoleão tinha como

objetivo, além do fortalecimento do Estado francês, levar adiante os valores da

Revolução Francesa, seus ideais liberais, visando o enfraquecimento de seus

adversários, sobretudo, a Inglaterra. Obstinado a comprimir a economia inglesa,

institui o Bloqueio Continental a partir de 1806, que consistia no impedimento

comercial dos Estados da Europa Continental com a Inglaterra. Contudo, não logrou

o pleno objetivo, uma vez que os ingleses juntamente com outras entidades,

estabelecem o contrabando de mercadorias. O bloqueio napoleônico impulsionou a

Inglaterra a buscar novos mercadores consumidores.

1.2. RELAÇÕES INTERNACIONAIS NA AMÉRICA ESPANHOLA: AS LUTAS POR

INDEPENDÊNCIA

Por mais de três séculos parte do continente americano, com destaque para o

sul7, esteve sob a supremacia Espanhola. A estrutura agrária da economia castelhana

impactava diretamente no crescimento econômico da América, pois limitava seu

desenvolvimento industrial e impedia o comércio direto com outras nações. Apesar

das profundas mudanças que vinham acontecendo nos séculos XVIII e XIX, a

Espanha permanecia na inércia com uma economia atrasada, em relação aos

avanços experimentados por outros Estados europeus. Entretanto, a expansão da

Revolução industrial e os avanços políticos do mundo capitalista fomentaram na

7Conforme afirma Leslie Bethell esse destaque é estabelecido pela ampla dominação espanhola sobre o território da América Meridional, salvo o território português e as Guianas. O que não pode ser observado na América Central e do Norte dada às ocupações por uma maior variedade de potências europeias e as dinâmicas nas mudanças de dominação. Ver: BETHELL, L. M. (Org.). História da América Latina: da independência a 1870, volume III. Tradução por CESCATO, M.C. São Paulo: EDUSP, 2004.

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Espanha a necessidade de modernização da sua economia, sociedade e

instituições.8

De acordo com Bethell (2004), além do atraso econômico, a América

Espanhola era marcada por configurações sociais próprias. Sua sociedade operava

sobre uma configuração desigual, os grupos que exerciam o poder eram formados por

uma minoria dividida entre a administração, a igreja e a elite local, em contrapartida,

os negros, mestiços e índios localizados nos setores mais baixos dessa hierarquia,

constituíam a maioria da população. As oligarquias locais no século XVIII, composta

por uma maior parcela de criollos9 e uma pequena porção de peninsulares10,

estavam muito bem estabelecidas. Com a fragilidade do governo espanhol e a

necessidade de renda em razão do seu atraso econômico, a Coroa passou a ofertar

a venda de títulos que possibilitava a elite criolla ocuparem altos cargos na

administração local, o que promovia sua ascensão política e econômica.

A formação de uma administração quase que independente da metrópole

preocupava os Bourbons, e para conter esses avanços implementaram medidas

reformistas que incluía a abolição do sistema empreendido pelos criollos, estes

suprimidos dos seus cargos em benefício dos intendentes atribuídos pela coroa a

fiscalização da administração das colônias, o que resultou em um período de agitação

contra o novo absolutismo espanhol, sabotado dentro das próprias possessões.

8Em conformidade com Xavier Guerra, acima da forte trama municipal, a única política mais ampla que se encontra em algumas regiões da América Espanhola é o reino. No lado oeste do Atlântico a palavra reino é definida pelo autor, como unidade política que engloba múltiplas comunidades locais, em um território com as mesmas instituições e governo, num sentido de unidade moral, pertencimento a um território, e que também abarca uma diferença comum com comunidades análogas, uma comunidade imaginada. Tanto os espanhóis quanto os índios lançavam mão sobre o uso do termo ao se referirem: ao México como Vice-reino da Nova Espanha; ao Vice-reino do Peru, bem como os Vice-Reinos do Rio da Prata e da Nova Granada além das capitanias gerais: Guatemala, Quito e Chile. Internamente não havia esfera secundaria transitória, a divisão era feita basicamente por cidades em que as principais se comportavam como centro de poder de uma região. Estas cidades, segundo Xavier, eram uma pequena “república” com seu territorio, instituicões e governos próprios, um centro administrativo: Cabildo. Suas instituições eram centradas em uma praça maior em que se erguem as sedes dos poderes: igreja principal, cabildo e a residência das mais altas autoridades monárquicas. Ver: Ver: XAVIER GUERRA, F. A nação na América espanhola: a questão das origens. Tradutor: Marco Morel. Rio de Janeiro: Revista Maracanan, v. 1, n.1, 1999. 9De acordo com Leslie Bethell, os criollos eram homens brancos nascidos nas colônias espanholas, recorte espacial do artigo. A expressão em questão abarca tambem os demais homens brancos, europeus, nascidos fora do território europeu. Ver: BETHELL, L.M. (Org.). História da América Latina: da independência a 1870, volume III. Tradução por CESCATO, M.C. São Paulo: EDUSP, 2004. 10Segundo Leslie Bethell os peninsulares eram homens nativos da Espanha que viviam em território americano. Ver: BETHELL, L.M. (Org.). História da América Latina: da independência a 1870, volume III. Tradução por CESCATO, M.C. São Paulo: EDUSP, 2004.

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Para Bethell (2004), os criollos sob a influência da filosofia iluminista

representavam uma consciência profunda e a concepção de que eram americanos e,

não espanhóis. Porém, segundo Anderson (2008), as ideais iluministas, por si, não

justificam o desenvolvimento de uma consciência nacional. Para essa tarefa o papel

histórico decisivo foi desempenhado pelos funcionários-peregrinos11 e impressores

locais12. Embora as forças profundas, como os fatores geográficos, que limitavam a

locomoção e em último grau contribuíram para a desintegração da Grã Colômbia de

Bolívar, os funcionários-peregrinos, bem como mais tarde a chegada da imprensa

local, antes sob a égide da Igreja e agora sob julgo do Estado, desempenhavam a

importante função de transportar informações e valores de uma colônia para outra,

estabelecendo uma ligação entre indivíduos que provavelmente jamais se

conhecerão, mas que apesar das diferenças, passariam a ser unir a partir de

elementos comuns, como a religião e a língua, formando o que Anderson denominou

como uma Comunidade política Imaginada, inerentemente limitada e, ao mesmo

tempo, soberana.

Essa união em torno dessa comunidade imagina ao que diz respeito de ser

americano, passa pelo processo de fomentação de um nacionalismo incipiente tendo

em vista o tratamento e os privilégios dos peninsulares recebidos da Coroa Espanhola

em detrimento dos criollos e das classes baixas. Essa incipiência nacional é gerada

pela crise de 1808 em que a Espanha é invadida por Napoleão, ficando assim a coroa

acéfala e sem, segundo Xavier Guerra (1999), o elo da ligação vertical da América ao

mundo hispânico, o rei. Um cenário para uma revolução se forma ao passo que, na

11Segundo Benedict Anderson os funcionários peregrinos foram criados pelas monarquias absolutistas e, mais tarde, se expandiram pelos Estados imperiais mundiais com sede na Europa, ficando sob a égide da Igreja, usada como mecanismo de controle pela Coroa. O absolutismo tinha como objetivo criar um aparato estatal unificado e controlado diretamente pelo governante, proporcionando o encontro de homens que, apesar do solo que os separavam, eram orientados pela mesma entidade, o Estado absolutista. Na América espanhola esses funcionários atuaram como um meio de comunicação extremamente importante numa época anterior à imprensa, promovendo o contato entre as regiões do vasto império Espanhol. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 12Conforme afirma Benedict Anderson as oficinas tipógrafos chegaram à América espanhola, ainda

que de modo gradual, já na segunda metade do século XVIII. Um fenômeno essencialmente estadunidense que surgiu como elemento chave da vida intelectual comunitária dos EUA. Os jornais impressos, englobado de um caráter local, permitia o desenvolvimento da consciência de que os habitantes de determinada província compreendesse a existência de mundos paralelos aos deles, pois devido á vastidão do império hispano-americano e ao isolamento das suas partes constituintes, tornava-se difícil imaginar uma simultaneidade. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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busca pela representatividade e defesa diante de Napoleão, levou os habitantes a

assumirem os poderes detidos pelo rei.

Xavier Guerra (1999) aponta um problema em relacao aos “povos” que de

acordo com o autor precede a nação, no caso às cidades principais que formam juntas

de governo e assumem a soberania e as reuniões a caminho de uma unidade política

superior. Em suma, nesse processo de ruptura e transformações o nacionalismo

incipiente estava diretamente ligado à elite criolla em detrimento das classes baixas,

a margem das resoluções. Logo nação na América insurgente deriva de um pacto

entre as elites locais, sem base cultural, mas essencialmente política, pois a única

identidade existente era a de serem americanos, ainda que não fosse um sentimento

concreto. Xavier Guerra (1999) ainda aponta que as classes baixas continuavam

como referência abstrata em proveito do indivíduo-cidadão com seu destaque e

privilégios.

Bethell (2004) aponta, que o movimento iluminista introduzido no centro político

pela Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos, inspirou nos criollos

a adoção de condutas e ações inclinadas em uma preferência pela razão, forneceu

algumas das ideias que inspiraram os processos de independência da

Hispanoamérica e tornou-se um elemento fundamental do liberalismo latino-

americano no pós-independência. Alguns criollos se destacaram por transformarem

seus ideais em ação política, entre eles, Simon Bolívar e seu companheiro de luta San

Martín. Esses adquiriram em suas viagens à Europa e nas leituras como: Hobbes,

Locke, Montesquieu, Voltaire e Rousseau, uma devoção à razão, à liberdade e à

ordem, que os acompanharam em suas lutas pela independência de parte da América

espanhola.

A Revolução Industrial na Inglaterra promoveu um alto crescimento mercante

que exigia mais matéria-prima e mercado consumidor. Além disso, posteriormente, o

bloqueio continental imposto por Napoleão sobre os ingleses incitava ainda mais a

necessidade de novos mercados. Nessa perspectiva, o comércio com a América

espanhola significava um ótimo negócio, não só para exportação das suas

manufaturas, mas para importação de produtos primários, o que fez com que a

Inglaterra desejasse expandir sua relação comercial com as possessões espanholas

sem o intermédio da metrópole.

Para Bethell (2004), isso foi possível dada escassez de bens de consumo e de

produtos básicos na América espanhola, acentuada pela guerra Anglo-espanhola

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(1796-1805) motivada por questões econômicas, e a aproximação da Espanha com a

França. O comércio colonial ficou quase completamente entregue aos estrangeiros,

entre eles, indiretamente, os ingleses, cujas mercadorias inicialmente entravam no

país por intermédio dos Estados neutros. Posteriormente com a imposição do bloqueio

total nos portos hispano-americanos a transação comercial das colônias espanholas

com a Inglaterra tornou-se direta, e nessa conjuntura o governo espanhol temia perder

o controle da região.

Ao estabelecer linhas ativas de negócios com os estrangeiros, especialmente

com a Inglaterra e os Estados Unidos, os hispano-americanos perceberam as

vantagens que lhes havia sendo negada pela Espanha. Essas relações influenciaram

diretamente no desenvolvimento econômico da América Espanhola, e no final do

século XVIII tudo o que restava era o controle político, e mesmo esse estava sob

crescente tensão.

Conforme Bethell (2004), a investida napoleônica sobre a península ibérica no

início do século XIX submeteu a Espanha uma série de reajustes políticos que atingira

suas possessões na América. Os esforços da metrópole para manter sua

independência nacional a deixavam sem recursos necessários para resolver os

problemas de política externa. A renúncia de Carlos IV e o estabelecimento de José

Bonaparte no poder central produziram uma crise de legitimidade política na América

espanhola, pondo em questão a estrutura do poder e sua distribuição entre os

funcionários reais e a classe governante local. Por fim, o declínio do sistema político

espanhol unido a independência econômica das colônias em relação à metrópole, e

as questões sociais repercutiram no fim do domínio colonial que, em meio aos

desafios, abre caminhos para os processos de independências e o surgimento da

América Latina.

1.3. DE AMÉRICA ESPANHOLA PARA AMÉRICA LATINA: OS DESAFIOS PÓS-

INDEPENDÊNCIA

Os levantes por independência, espalhados em quase toda América espanhola,

no início do século XIX, somado às condições políticas e econômicas do

subcontinente, resultaram na separação da Espanha, e com isso a necessidade de

construir Estados novos viáveis. O sistema erigido pela elite criolla consentia na

transferência do poder por meio das eleições a fim de atestar as liberdades individuais.

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A desintegração das instituições políticas, econômicas e sociais inserida pela

antiga metrópole foi uma consequência não só das guerras de independência e dos

conflitos regionais, mas também da ideologia liberal que predominava no centro

político da América Latina. Na esfera política a transformação não ocorreu apenas de

monarquia para república, mas também nas estruturas centralizadas, pois a maioria

das elites políticas responsabilizava o atraso econômico dos países hispano-

americanos a hegemonia de instituições e políticas espanholas liberais, e procuraram

eliminar as estruturas coloniais que insultava os princípios do liberalismo.

Além das demandas internas que preocupavam a formação dos novos Estados

e de sua manutenção, a então América Latina se depara com novas forças que

ameaçava sua soberania: Quádrupla Aliança, juntamente com a Santa Aliança. Nessa

dinâmica de alinhamento e integração da região à economia internacional, três

caminhos se mostraram mais eminentes: o alinhamento à economia inglesa13, o

monroismo14 e o bolivarianismo15, sendo este nosso obejeto de análise e que por

sua vez está ligado a Simon Bolívar tido como herói da libertação e que buscava a

integração regional possibilitando, segundo ele, a relação de interdependência no

âmbito da economia mundial.

2. SIMON BOLÍVAR: DAS ORIGENS AO PÓS-INDEPENDÊNCIA

2.1. AS RAÍZES DO LIBERTADOR: BREVE PERCURSO BIOGRÁFICO

José Antonio de la Santíssima Trindad Simón Bolívar y Palácios nasceu na

cidade de Caracas, em 24 de julho de 1783, herdeiro de uma rica e tradicional família

de fazendeiros de cacau. Órfão desde muito cedo, foi criado pelo avô que lhe

proporcionou uma educação baseada nos preceitos liberais confiado ao preceptor

Simón Rodriguéz.

Durante sua estadia na Europa para conclusão de seus estudos, Bolívar terá

contato com as ideias iluministas. Na Espanha conheceu e casou-se com María

Teresa Del Toro que veio a falecer após oito meses de casados, já em solo

venezuelano fruto de enfermidade contraída em terras americanas. Após a morte de

13 O tema será aprofundado posteriormente na seção III 14 O tema será aprofundado posteriormente na seção III 15 O tema será aprofundado posteriormente na seção III

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sua esposa retorna ao continente europeu, passando pela França onde participou da

coroação de Napoleão, Itália em que fez o famoso juramento do Monte Sacro16. Por

fim foi aos Estados Unidos, cujo processo contribuiu para a formação do pensamento

e inspiração bolivariana em conformidade com os ideais da Ilustração.

Um dos nomes mais conhecidos da história sul-americana, Simón Bolívar, foi

um líder político e militar, tendo chefiado as lutas de libertação da Venezuela, Equador,

Panamá, Peru e Bolívia do domínio espanhol. Entre idas e vindas da Europa, instalou-

se por definitivo na Venezuela, em 1807, onde é considerado um herói nacional até o

presente momento, por seu intenso envolvimento com o processo independentista do

país.

2.2. O PAPEL DE BOLÍVAR NOS PROCESSOS DE INDEPENDÊNCIA DA

AMERICA ESPANHOLA

Segundo Prado e Pellegrino (2020), para se compreender o processo de

independência das colônias espanholas, é preciso computar fatores tanto de ordem

econômica, social, como cultural, religiosa, jurídica e política. Esses fatores somados

as vontades individuais e coletivas de homens e mulheres que fizeram suas escolhas

e decidiram envolver-se em uma longa guerra que terminaria na sua separação da

Espanha, contribuíram para a autonomia da America hispânica frente ao jugo dos

espanhóis.

Embora algumas lideranças locais opunham-se ao processo de independência,

Prado e Pellegrino (2020), apontam que a insatisfação dos mais diversos setores

coloniais com relação à má administração espanhola era evidente, e as elites

gradualmente expressavam suas inquietações através do estabelecimento das Juntas

autônomas. Um movimento que se apresentou, inicialmente, didático, aos poucos

sofreu alterações, até chegar à radicalização e atingir a luta armada, separando o

império colonial entre rebeldes e defensores da coroa real. Os exércitos insurgentes

conquistaram muitas vitórias sobre as forças realistas, e as lideranças militares que o

comandaram desempenharam um papel extremamente importante. Os dois grandes

16Local na Itália, nos arredores de Roma para onde a peble se retirava em suas rebeliões. Bolívar na companhia de seu antigo mestre Simón Rodrigues, profere o juramento de libertar toda a América Espanhola do jugo ibérico percebido ai como uma incipiência do Bolívar revolucionário. Ver: FIGUEIREDO, A.G.B. Simon Bolívar: uma persistência latino-americana. Dissertação (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

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generais que se destacaram na América do Sul foram o argentino José de San Martín

e o venezuelano Simon Bolívar conhecido como “Libertador”.

Bolívar participou, desde o início, dos movimentos pela independência da

Venezuela, alcançada em 1811, sendo o primeiro território da América Hispânica a

declarar emancipação frente a Coroa17. Em 1819 foi declarada a independência do

Vice-reinado de Nova Granada e a união das principais províncias do norte:

Venezuela, Equador e Colômbia, constituindo a república da Grã-Colômbia, onde

Bolívar tornou-se o primeiro presidente.

As batalhas finais pela libertação da América do Sul sob o domínio dos

espanhóis aconteceram na serra peruana, local que servia de baluarte para as forças

realistas. As lutas pela independência do Vice-reinado do Peru, anteriormente

chefiada por San Martín, terminaram após a intervenção do exército bolivariano, com

a vitória da batalha de Ayacucho liderada pelo general José Antônio de Sucre, em

1824. Sucre por ser muito próximo de Bolívar, propôs que a região do Alto Peru

passasse a ser chamada de Bolívia. Após a derrota definitiva dos espanhóis em um

dos vice-reinados mais importantes do Império, quase todo continente rompera com

a metrópole, apenas as ilhas de Cuba e Porto Rico permaneciam sob o controle da

Espanha.

Nesse processo de independência da América Espanhola, Prado e Pellegrino

(2020), afirmam que diferentemente de San Martin que, apesar do talento para as

demandas militares, não dispunha de habilidades políticas para gerenciar os

problemas da então América Latina, Simon Bolívar lançou mão de articulações e

manifestações políticas na busca pela implementação de seu projeto integracionista.

Ocupou cargos executivos, trabalhou na elaboração de textos constitucionais, deixou

cartas, a exemplo a Carta da Jamaica, entre outros escritos, expressando suas ideias

e propostas para uma união latina americana que nasceu a partir do projeto de uma

constituição da liga que se formaria no Congresso do Panamá em 1826.

2.3. A TRAJETÓRIA DE BOLÍVAR NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

17De acordo com Prado e Pellegrino, a república proclamada em 1811 não se manteve, e foi somente em 1821, após a batalha de Carabobo que a Venezuela conquistou sua independência. Ver: História da América Latina, 2020.

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De acordo com Figueiredo (2015) aos que pretendem observar o pensamento

de Simon Bolívar devem perceber que além um teórico da política, buscou arquitetar

uma nova ordem institucional diferente da América Colonial, em que se debruçou na

formulação e construção de um projeto que buscava um caminho próprio diante da

ameaça do espectro da reconquista, haja vista que a luz da invasão napoleônica ao

território peninsular, fora possível enxergar a liberdade à luz de um pensamento latino-

americano inerente, para o território cujo sentimento incipiente de nação como aponta

Xavier (1999) surgia entre os americanos. Algo que muitos já não aceitariam abrir

mão.

A obra do Libertador, assim consagrado, dividi-se em cartas, discursos,

constituições, entre outras produções, cuja produção é identificada num intervalo de

vinte anos: 1810 a 1830 em uma atuação pela formulação e aplicação política que

julgou necessária para a América já independente, objetivando a inserção econômica

da América Espanhola no âmbito internacional, com destaque para a região norte da

América Meridional.

O Juramento do Monte Sacro realizado na Itália, em 1805, pode ser

entendido conforme Figueiredo (2015), como ponto de partida importante para a

trajetória de Bolívar como revolucionário e seu projeto de integração. De volta a

Venezuela, presenciou uma convulsão social, que além das demandas do lado oeste

do Atlântico, teve relação direta com a invasão da Península Ibérica por Napoleão

Bonaparte, logo o enfraquecimento espanhol, que somado aos eventos locais como a

independência dos Estados Unidos, a Revolução Haitiana e a difusão do pensamento

ilustrado, conduz o que era agitação à um processo de independência.

Forças locais se organizam em uma junta autônoma de governo diante da coroa

acéfala, em que num primeiro momento não tem a participação de Simon, que

posteriormente se junta ao movimento. Entre vitórias e batalhas e a busca por ajuda,

o processo logra resultado positivo, embora temporário em 1811 constituindo assim a

Primeira República da Venezuela, o que de acordo com Prado e Pellegrino (2020) não

se sustenta, ao passo que as forças realistas assumem o controle do território,

obrigando Bolívar a fugir.

Ele se refugia em Cartagena onde escreve um manifesto, uma reflexão sobre

os caminhos que levou a ruína da primeira república. Posteriormente inicia nova

marcha levando-o e seu exército à vitória, iniciando-se assim o período da segunda

república da Venezuela iniciada em 1813, derrubada em 1814. Em nova fuga por não

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conseguir apoio, vai para Jamaica em que escreve a famosa carta objetivando aclarar

as ideias pretendidas e a importância da união das nações da América Meridional

como forma de proteger a soberania local, além de pretender apoio externo para o

processo, o que só acontece quando já no Haiti, recebendo apoio dos revolucionários

caribenhos, tendo como contrapartida a abolição da escravidão.

Bolívar retorna a Venezuela em 1816, já com o apoio do exército haitiano. Após

vitória, ele liberta os escravos cumprindo o que prometera a Alexandre Pétion, então

presidente do Haiti. Conquistou Angostura e estabeleceu a Terceira República. Em

1819 partiu para libertar a Nova Granada em que logrou vitória, estabelecendo assim

a República da Grã-Colômbia. De 1819 a 1830, Bolívar ocupou a presidência da Grã-

Colômbia em uma busca constante pela implementação de seu projeto de integração

da América Espanhola.

O projeto integracionista proposto por Bolívar, muito embora não tenha sido o

primeiro idealizado pelas lideranças americanas, visava a manutenção da

independência do continente, numa tentativa de afastar as forças que pudessem

comprometer o plano de união hispano-americano. Desse modo o programa pode ser

entendido como forma de resistência a essas frentes.

3. INTEGRAR PARA RESISTIR: A PROPOSTA BOLIVARIANA DE INTEGRAÇÃO

PARA AMÉRICA LATINA

3.1. RESISTÊNCIA VIA INTEGRAÇÃO POLÍTICA

O espectro da reconquista e as forças externas pairavam sobre a América

independente. Era preciso estabelecer formas de resistência à pressão extrínseca.

Umas das tentativas de resistir a esse ímpeto, seja das forças europeias ou próprias

da América, foi o projeto integracionista de Simon Bolívar. Contudo Bolívar não fora o

primeiro a estabelecer esse ideário. Segundo Figueiredo (2015) o projeto de forjar a

união dos estados, que surgiram após a independência da América Espanhola, é tão

antigo quanto os processos de independência.

Antes do Libertador, Francisco Miranda (1750 – 1816), uns dos precursores do

processo emancipacionista, já pensava a unificação da América espanhola em um

único grande estado que seria chamado de Colômbia e defendia um governo único

para todo o continente. Outro expoente dessa ideia foi José Cecílio Del Valle (1780 –

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1834), sendo este um dos principais líderes da República Centro-Americana. Este

desejava um congresso com deputados de todas as províncias da América espanhola,

fundando assim uma federação. Contudo não se concluiu, tendo em vista que a

própria região de que era líder, fundada em 1823 se fragmenta em 1838.

Apesar dos esforços das proposições antes elencadas, Figueiredo (2015)

afirma que o mais importante formulador desse primeiro integracionismo foi Simon

Bolívar, que sob influência de suas ideias e esforços políticos, realizou-se em 1826 o

Congresso Anfictiónico do Panamá.

O congresso entre as repúblicas hispano-americanas tinha como objetivo a

criação de uma autoridade supranacional, cujos elementos ideológicos principais

seriam o republicanismo e o anti-escravismo, o que colocava de lado o Brasil e os

Estados Unidos, isso sem levar em consideração a divergência cultural em relação à

herança da colonização. A palavra pátria pode ser entendida como lugar em que se

nasce ou se pertence como cidadão, no pensamento bolivariano seu sentido ganha

amplitude e passa a compreender toda a América Espanhola, objetivando uma

coletividade. Nesse sentido o projeto integracionista estaria amparado em uma nova

identidade: a americana.

O primeiro passo para o programa de Bolívar foram os tratados bilaterais entre

a Grã-Colômbia e os demais estados que surgiram na fragmentação do império

espanhol. Esses tratados prepararam o terreno para um acordo multilateral e a criação

de instituições integracionistas. Inicialmente limitou-se a um pacto militar em

decorrência da guerra que estava em curso, caminhando para ampliação em que, no

âmbito comercial facilitasse o trânsito de mercadorias entre os países parte, bem

como a taxação igualitária de importação e exportação. Em suma o tratado serviria

para sedimentar as bases para a constituição de um organismo de governo e

cooperação: uma permanente Assembleia de Plenipotenciários, que será discutida no

Congresso do Panamá.

Apenas a vitória sobre os espanhóis, não era garantia para a independência.

Derrota-los não era o bastante, tendo em vista o passado colonial. Então qual o

caminho a ser percorrido para garantir o projeto de liberdade? Dois ambitos se

apresentavam: local e mais amplo, em que o primeiro se trata da formação de

governos republicanos, mas central, indo ao encontro do Bolívar pragmático que

adequava às experiências e influências recebidas à realidade do continente. Sobre o

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âmbito macro, Bolívar tinha como meta, conforme Figueiredo (2015), uma “nacao de

repúblicas”, constituida de uma associação de governos livres:

A integração é apresentada como a solução necessária para a preservação da independência e da opção republicana em um mundo no qual essa opção era minoria e em que era seriamente considerada a hipótese de uma intervenção disciplinadora das forças da Santa Aliança na América. (FIGUEIREDO, 2015, p. 94).

Entende-se que a integração fortalecia os estados americanos, pois permitiria

uma atuação conjunta frente a essa ameaça, paralelamente em uma busca do

preenchimento do vácuo deixado por uma coroa acéfala. Desse modo destaca-se que:

Em 7 de dezembro de 1824, dois dias antes da vitória definitiva contra as forças realistas na Batalha de Ayacucho, Bolívar remete o convite à realização do Congresso Anfictiónico do Panamá, resultado de seu esforço político e diplomático realizado desde as negociações pelos tratados bilaterais. (FIGUEIREDO, 2015, p. 98).

Pretendia com essa convocação, constituir uma autoridade política superior aos

estados, oriundos do processo de independência, constituída em uma assembleia

composta por representantes de todos os Estados membros, pois como demonstra na

Carta da Jamaica, não acreditava na possibilidade de um governo central único, ainda

que monárquico, a julgar pela própria Espanha.

Uma vez que fosse estabelecido o acordo, o novo passo de Simon era o caráter

permanente da assembleia que seria composta por plenipotenciários, diplomatas que

deveriam se reunir periodicamente com o mesmo peso de representatividade, sob a

égide política-ideológica, que além da independência, tinha em comum a república

como forma de governo, ainda que não federalista, governo impessoal, submisso às

leis, isonomia, isto é, igualdade perante a lei, bem como difusão da educação

idealizando uma sociedade virtuosa.

Tais aspectos se configuravam nas experiências e influências recebidas

filtradas e adaptadas a realidade da América Espanhola. Outro ponto importante era

a abolição da escravidão, tanto a legal e ilegal. Essa inclinação era fruto, além da

influência da Ilustração, a promessa que fizera ao presidente haitiano que o apoio no

terceiro embate contra as forças realistas que lograra vitória, um reconhecimento pela

contribuição não só pela liberdade alcançada, bem com a construção do continente

americano. A abolição iria refletir diretamente na ascensão na pirâmide social dos

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mestiços, modificando assim parte das amarras que configurava a sociedade hispano-

americana em casta, uma verdadeira revolução para o contexto vivido.

Uma aliança econômica com a Inglaterra fora lançada como reforço para a

segurança necessária, a fim de que o conglomerado de novos países sedimentassem

e estabilizassem suas instituições políticas, fazendo frente a uma possível ameaça da

Santa Aliança as pretensões do Libertador. A ideia era de uma aliança com prazo de

validade. Outro ponto dessa aliança, era a garantia de reconhecimento da

independência, em que a contrapartida de Bolívar seria dar aos ingleses, acesso aos

mercados internos da comunidade hispano-americana.

Figueiredo (2015) estabelece que o projeto de Simon Bolívar, não fora utópico,

fruto exclusivo de sua razão, algo apenas imaginado, mas sim possível, lançando mão

da já estrutura deixada como herança pelo Império espanhol, uma federação de

reinos, substituídas por uma federação de repúblicas, em que a liberdade não abriria

espaço para a escravidão e desigualdade jurídica.

3.2. AS INICIATIVAS DE BOLÍVAR PARA A INTEGRAÇÃO

O Congresso Anfictiónico do Panamá realizado no Convento de São Francisco,

em 1826, foi o primeiro ensaio integracionista da América Latina, reunindo

representantes das quatro repúblicas hispano-americanas: Peru, Colômbia, México e

Centro-América. Os brasileiros, assim como, estadunidenses e ingleses foram

convidados a observar a reunião, porém, apenas o enviado inglês Edward James

Dawkins chegou ao destino pretendido. Essa iniciativa de união da América hispânica,

proposta por Simón Bolívar, é saudada como um ato político de impacto universal,

seus ideais transpassaram as fronteiras do continente americano.

A datar o início das negociações foram realizadas nove conferências formais

entre os delegados representantes dos aliados. Seguindo os princípios de Bolívar, a

representação de cada estado na Assembleia era equitativa, não havia qualquer

distinção entre eles por qualquer critério que fosse. As repúblicas compareceram ao

Panamá com demandas diferentes, mostrando a liberdade com que se abriram os

debates. E apesar das desconfianças entre os estados membros, começaram as

negociações dos tratados.

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O principal Tratado18 do Congresso manteve o desejo de Bolívar em contribuir

para a manutenção da paz e da amizade entre os poderes confederados, servindo de

conselho nos grandes conflitos e de conciliador nas discordâncias e diferenças, mas

alterou a natureza do poder que caberia a Assembleia, e ficou estabelecido que ela

tivesse apenas caráter temporário. A periodicidade das reuniões, a cada dois anos, e

em caso de guerra aconteceria uma reunião anual, determinada pelos

plenipotenciários acabou por enfraquecer o poder da liga. E embora o Tratado

celebrasse uma união perpétua, os poderes conferidos ao órgão, que representaria

os interesses maiores dos estados, não foram concedidos.

A necessidade de afastar definitivamente a possibilidade de uma nova

intervenção deu destaque às questões relacionadas a uma aliança militar, em que se

determinou que a obrigação de defesa fosse mútua contra qualquer ataque que

ameaçasse a existência política dos aliados. Quanto ao plano de defesa do território

formaram uma Convenção de Contingentes na qual foram definidas as estratégias

militares e os números de homens que cada membro cederia.

Outra discussão foi a despeito a nova sede da Assembleia, tendo em vista que

o Panamá não apresentava condições para sediar uma reunião daquele porte, devido

ao clima e a carência de estrutura física, decidiu-se que o estado a sediar as próximas

reuniões seria o México. Embora Bolívar, assim como, os colombianos, fossem contra

essa decisão, ela predominou.

Os estados americanos que não participaram do Congresso poderiam

incorporar-se transcorrido o prazo de um ano após as ratificações, sem o direito de

exigir qualquer alteração. Contudo, por pressão dos delegados mexicanos, foi

introduzido ao final do texto um Artigo Adicional abrindo ainda mais o leque para que

os países neutros e amigos também pudessem se juntar a Liga, dando lugar para uma

possível organização incorporando o Novo e o Velho mundo.

Em termos políticos, só a possibilidade de uma aliança com os estadunidenses

dirigia-se em sentido contrário a opção de Bolívar por um pacto exclusivamente

hispano-americano. De acordo com Figueiredo (2015) a estratégia de vincular um

18Em relação às clausulas do Tratado foram discutidas questões pertinentes as relações entre os estados membros e destes com terceiros, assim como, deveres de respeito à integridade territorial e a soberania de cada país. Quanto aos ideais políticos, caberia aos aliados intervir em um dos estados caso fosse alterada sua forma de governo, visando defender o modelo republicano e manter a ordem interna. Condenou-se também o tráfico de escravos, mas não acabou com a escravidão ainda existente. Além de estabelecerem normas facilitando o trânsito de cidadãos entre os territórios aliados. Ver: FIGUEIREDO, Alexandre. Simon Bolívar: uma persistência latino-americana, 2015.

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maior número possível de estados assegurava a independência conquistada e

afastava qualquer ação contra a soberania dos países americanos. Porém, esse

arranjo descaracterizaria a natureza da organização criada no Panamá e pensada por

Bolívar.

Os acordos definidos no Congresso do Panamá foram em direção oposta às

propostas de Bolívar e nada o agradou. Nesse mesmo ano de 1826, ele lançou um

novo projeto: uma integração dos estados sul-americanos sob sua influência, na qual

Colômbia, Peru e Bolívia formariam uma federação aos moldes do projeto que não

prosperou no Panamá. Contudo, assim como a primeira iniciativa essa também não

progrediu.

Ao fim do Congresso, o processo de ratificação enviado aos legislativos dos

estados membros não obteve êxito, e o ideal de união não se concretizou, terminando

no esfalecimento dos países. Porém, vale ressaltar que, apesar do resultado, os

protocolos do Istmo foram e ainda são a base dos projetos de unidade continental da

América Latina.

3.3. O SALDO DO PROCESSO

O projeto integracionista bolivariano, que na concepção idearia do Libertador,

serviria como escudo frente as forças extrínsecas e intrínsecas. Em relação a primeira

destaca-se a Santa Aliança temida por uma possibilidade de intervenção, lançando

mão do Concerto Europeu, muito embora essa desconfiança não tivesse base

concreta, uma vez que as ações eram estabelecidas pelos membros da entidade

composta pela Inglaterra que objetivando a implementação do liberalismo econômico,

teria mais vantagens com uma América livre e fragmentada, facilitando a prática

imperialista. Desse modo, tanto a Doutrina Monroe quanto a projetada liga anfictiônica

de Bolívar foram desnecessárias para defender a independência (CERVO: 2007), pois

era percebido como vantajoso para as potencias em que já não mais configurava a

Espanha.

No que diz respeito a segunda aponta-se as elites locais e seus planos

divergentes, contrárias a independência e afirmação como força política e econômica

da América espanhola, em sua busca pela inserção no cenário internacional como

ator ativo: fracassou. Figueiredo (2015) levanta hipóteses que levaram a esse

fracasso em que se aponta uma não disposição para uma associação estreita entre

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os signatários, assim como a não ratificação dos acordos formulados pelo congresso.

Contudo a resposta a esses questionamentos é mais complexa.

Várias frentes são apontadas como veículos condutores para a não integração,

denominado por Gonçalves (2007) como forças profundas, como uma nova elite

forjada no processo revolucionário, um novo ator político: o exército libertador, dotada

de um sentimento de pertencimento a uma comunidade mais ampla do que suas

localidades de origem. Diante desse novo ator, se mostra também um antagonismo

exercido pelas elites locais, fortalecidas pela acefalia da coroa e desagregação do

Império espanhol, possuidoras de projetos distintos de seus vizinhos e que não

coadunava com o projeto bolivariano.

Com base em explicação de cunho estrutural, Figueiredo (2015) aponta a

política, principalmente no que diz respeito a força das elites locais. Para o autor tais

grupos mantiveram-se fortes e capazes de impor seus próprios projetos, motivado

talvez por uma identidade de localidade, em que nascera um embrioneirismo de um

nacionalismo denominado por Xavier Guerra (1999) como Nacionalismo incipiente.

A geografia também é apontada como fator determinante, tendo em vista o

imenso território, população escassa e esparsa associada a uma dificuldade de

comunicação e de deslocamento, contribuindo para a antipatia mútua, fortalecendo as

elites locais. Tal aspecto influenciou na organização econômica, que desde o período

colonial, não se vinculavam, mas diretamente com a metrópole, substituída pela

Inglaterra após o processo de independência.

Todos esses elementos contribuíram para a nutrição de desconfianças entre os

membros do congresso que temiam perder a soberania conquistada, tendo em vista

um suposto poder concentrado na Grã-Colômbia e Bolívar, tido como tirano nessa

perspectiva. O autor afirma que foi suposta, pois pouco tempo depois o território se

fragmentaria dadas as suas contradições internas.

Essa desconfiança das partes para com a Colômbia e Bolívar influenciou

diretamente no processo decisório do congresso, que foi pautado pela insuficiência ou

inadequação das informações que detinham os estadistas mergulhados em seus egos

localistas em associação com mal-entendidos, impedindo a percepção do custo-

benefício do projeto. Essa não percepção foi também provocada pela ação externa

tanto da Inglaterra como dos Estados Unidos, cujos interesses eram contrários ao

projeto.

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Essas potências preferiam a América fragmentada e fragilizada, tornando-se

alvo de uma disputa como área de influência entre esses atores, num contexto da

primeira onda integracionista da América Latina, apontada por Araujo de Souza

(2012). À Inglaterra coube a América do Sul e aos Estados Unidos as Américas do

Norte e Central.

Em vista das observações feitas, acerca do projeto de integração de Simon

Bolívar, embora tenha fracassado dadas as circunstâncias e conjunturas, entende-se

que é valida a análise do empreendimento que ainda hoje influencia os processos de

aproximação e digressão política e econômica dos países da América Latina,

abarcado aí tanto a espanhola quanto a luso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se propôs a examinar o projeto integracionista para a América Latina

idealizado por Simón Bolívar no século XIX, em um contexto de ameaça à

consolidação da emancipação e autonomia político-econômica dos países hispano-

americanos, em que se objetivava sua inserção no cenário internacional oitocentista.

A análise dialoga com o campo da História Política em uma interlocução com a História

das Relações Internacionais.

A pesquisa é relevante por possibilitar o entendimento dos esforços

enfrentados pelo continente americano recém independente na afirmação da sua

liberdade. Contribui para uma melhor compreensão histórica das inspirações e

desdobramentos do processo integracionista latino-americano. Para os estudos

históricos, perceber esse projeto de integração ajuda a entender as raízes do processo

que está em voga na política externa latino-americana contemporânea, servindo de

inspiração para as formações dos atuais blocos econômicos, em uma fuga dos limites

geográficos até então estabelecidos.

Diante das mudanças políticas e econômicas nas relações internacionais do

século XIX, sob um prisma de ameaças constantes de forças internas e externas,

perspectiva imperialista do processo, percebe-se um olhar próprio da América na

pretensão de criar as próprias reflexões num constructo de sociedade. Observa-se

que as iniciativas como as cartas, os discursos, as constituições e os acordos

bilaterais e o Anfictiónico Congresso do Panamá, de Simon Bolívar não lograram êxito,

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contudo seguiu como inspiração para os processos integracionistas e os acordos

estabelecidos ao longo dos séculos que se seguiram.

No desenvolver do artigo, não se pretendeu esgotar a problemática levantada,

uma vez que o projeto de integração bolivariano continua provocando influências na

sociedade contemporânea em meio aos processos de união e ruptura entre os países

latino-americanos. Observa-se em um contexto atual uma ampliação no arcabouço do

que é ser latino-americano, tendo em vista que as aproximações não ficam mais

restritas ao âmbito político e econômico, numa ampliação da interação sociocultural

entre outros aspectos.

REFERÊNCIAS

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Revista Transformar Ago/Dez/2020 E-ISSN:2175-8255

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