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REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 15 MARÇO/2016
Luís Alberto Casimiro
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A ÁGUA NOS RELATOS BÍBLICOS E SUAS REPRESENTAÇÕES ICONOGRÁFICAS
Prof. Dr. Luís Alberto Casimiro1
http://lattes.cnpq.br/6128842638959902
RESUMO – Neste artigo pretendemos chamar a atenção para a Iconografia da Água e
sua relação com certos episódios bíblicos em que o tema da água se faz presente. Tal
como os textos das Sagradas Escrituras que lhes servem de fonte, tais representações têm
em conta, não somente as referências à importância da água como origem de vida e
elemento indispensável para a sobrevivência humana, como ainda fazem alusão ao seu
emprego para finalidades muito práticas e, também, ao seu valor simbólico que deriva da
experiência do cotidiano do povo hebreu para o qual a água surgia com uma
ambivalência notória devido à sua ação benéfica ou destruidora. Partindo desta realidade,
apresentaremos alguns episódios bíblicos em torno da questão da água e analisaremos o
modo como os artistas os representaram contribuindo para reforçar a importância dada à
água, tornando-a num elemento importante, ou mesmo o aspeto central das suas
composições.
PALAVRAS-CHAVE – Bíblia, relatos bíblicos, iconografia, iconografia da água.
ABSTRACT – This article aims to bring attention to the iconography of the water and
its relationship with certain biblical episodes in which the water theme is present. As the
texts of the Holy Scriptures that serve as a reference, such representations take into
consideration not only the references to the importance of water as a source of life and
indispensable for human survival, but also allude to its use for very practical purposes
and also the symbolic value that derives from the experience of the Jewish people
everyday for which the water came with a remarkable ambivalence due to its beneficial
or destructive action. Based on this reality, we will present some biblical episodes
around the issue of water and analyze how artists represented the contributing to
1
Doutor em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) e investigador
do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» (Unidade de I & D
ligada à Universidade do Porto).
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reinforce the importance given to water, making it an important element, or even the
central aspect of his compositions.
KEYWORDS – Holy Bible, biblical accounts, iconography, iconography of water.
Introdução
Como é sobejamente sabido, a água constitui um bem essencial e indispensável à
vida, seja ela humana, vegetal ou animal. Quando a sua escassez é grande e frequente,
como sucede em regiões desérticas ou semidesérticas, então maior valor lhe é dado e mais
cuidado há na sua preservação e utilização. Assim sucedeu ao povo bíblico que, como
outros povos e durante os longos séculos dedicados à redação das Sagradas Escrituras,
manteve contato com o elemento «água» nas suas diversas funções e significados,
experimentando os seus efeitos benéficos, mas também a sua capacidade destruidora.
Não é de estranhar portanto que, ao longo dos textos bíblicos, as referências à água
estejam presentes de uma forma constante. Com efeito, desde a primeira página do
Antigo Testamento até à última do Novo Testamento, existem constantes alusões à
água, feitas pelos mais diversos motivos. Por sua vez, os artistas, ao fazerem a
representação de episódios bíblicos onde a água está presente – e são imensos – também
contribuem para evidenciar a importância que a água tinha para o povo hebreu. São
algumas destas particularidades que pretendemos apresentar e esclarecer, começando por
referir e classificar as ações mais práticas e evidentes da água para depois serem analisadas
outras funções próprias da simbologia. Tudo será baseado em algumas passagens bíblicas
e ilustraremos o modo como os artistas lhe deram expressão plástica 2
.
É impossível enumerar e analisar os exemplos que encontramos ao longo das
centenas de páginas das Sagradas Escrituras onde se refere a água, sua utilização prática e
simbólica pois levar-nos-iam à escrita de uma infinidade de páginas que não se
enquadram no contexto da presente publicação. Dada a necessidade de síntese, faremos
2
Gostaríamos de esclarecer que neste trabalho não existe qualquer intenção de validar ou refutar os textos
bíblicos com base na falta de rigor histórico, científico ou de outro tipo. Não serão apresentadas quaisquer
interpretações dos textos usados, com base na exegese moderna, pois apenas se procura analisar as obras de
arte que surgem a partir da interpretação dos textos bíblicos segundo o pensamento da sociedade da época
que deu origem à obra de arte.
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somente uma seleção cuidadosa e bastante limitada de alguns casos mais ilustrativos da
relação que existe entre certos textos bíblicos referentes à água e sua representação
iconográfica. Devido a estas mesmas limitações também não iremos utilizar as
referências à água nos textos apócrifos do Antigo ou do Novo Testamentos, os quais,
apesar de não serem reconhecidos pela Igreja, constituíram para a Iconografia, valiosas
fontes literárias e muito usadas pelos artistas.
A água e suas funções
Como já referimos, o elemento «água» está presente desde a primeira página da
Bíblia até à última. Logo no primeiro capítulo do livro do Génesis podemos ler: “No
princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas
cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas.” (Gn 1, 1-
2). Por sua vez, no último capítulo do Apocalipse continua a fazer-se alusão à água:
“Mostrou-me, depois, um rio de água viva, resplendente como cristal, que saía do trono
de Deus e do Cordeiro. […] O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba
gratuitamente da água da vida.” (Ap 22, 1. 17).
Querendo quantificar as referências à água feitas nos textos bíblicos, chegamos
às seguintes conclusões: o termo é empregue, de forma direta, 614 vezes no Antigo
Testamento e 88 vezes no Novo Testamento. Porém, se alargamos o conceito de água a
outros termos com ela associados tais como «mar», «rio», «fonte», «poço», «chuva» ou
«orvalho» por exemplo, então contabilizamos 1500 versículos do Antigo Testamento e
430 no Novo Testamento 3
.
A experiência secular do povo bíblico levou-o a ver na água muito mais do que
um bem precioso e indispensável à vida, pois pode também, ser causa de catástrofes e de
morte, ou seja, uma ação negativa e prejudicial, ao mesmo tempo que poderia ser
utilizada, ainda, como sinal visível de algo que os olhos humanos não são capazes de
3
Os números relativos à utilização destes termos foram definidos com base em OLIVEIRA, Oséias
Gomes. Concordância Bíblica Exaustiva – Joshua. Rio de janeiro: Ed. Central Gospel, [s. d.], 4 vols e
Concordância Bíblica. [S.l.]: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.
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enxergar e que classificámos de função simbólica. Sintetizando, iremos analisar as
referência à água nos textos das Sagradas Escrituras, enquadrados em 3 categorias:
1- Ação positiva (fonte de vida e purificadora)
2- Ação negativa (causa de destruição e morte)
3- Ação simbólica (sinal de algo não visível ou de uma intervenção
extraordinária).
1- Ação positiva (fonte de vida e purificadora)
O contato do povo hebreu com a água existente na natureza, nos limites do
pequeno espaço geográfico que ocupa, é relativamente restrito. Os habitantes do litoral
beneficiam da presença do Mar Mediterrâneo, enquanto os do interior apenas podem
tirar partido do grande curso de água que é o rio Jordão e seus afluentes. Este rio, com
cerca de 190 km de extensão, nasce a norte na encosta do monte Hérmon e dirige-se para
sul unindo dois «mares» no seu curso: a norte o «mar» da Galileia (Lago de Genesaré)
formado pelo próprio Jordão e, a sul, o «mar» Morto onde desagua. As populações que
vivem longe destes locais com mais água veem-se na necessidade de abrir poços para ter
acesso a esse líquido precioso.
Nesta relação elementar com a água está patente, em primeiro lugar, a sua ação
positiva, enquanto fonte de vida. Situação vivenciada no cotidiano não apenas porque é
imprescindível para a sobrevivência humana e de outras espécies animais e vegetais,
como ela própria contém em si seres vivos que também sustentam o ser humano,
nomeadamente, através de todo o tipo de peixes que vivem nos rios, nos lagos e nos
mares. Além disso, ela é necessária para a fabricação de tijolos de adobe usados para a
construção de diferentes tipos de edifícios e também é indispensável para a agricultura de
modo a tornar férteis os campos e, assim, proporcionar o necessário alimento ao ser
humano e ao gado. Há, portanto, a consciência clara de que a água é suporte da vida sob
diversas formas.
Outra dimensão positiva é a função purificadora da água. Trata-se de uma
utilidade prática, mas não necessariamente vital, com a qual o povo lidava em cada dia,
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não só para as abluções previstas na Lei 4
como, também, para outros tipos de limpeza
que diga respeito às pessoas, utensílios, alimentos, vestes, animais, casas, etc., muitas
delas bem descriminadas no livro do Levítico 5
. No que se refere ao ser humano, esta
purificação diz respeito ao seu exterior, ou seja. ao corpo, mas também à regeneração
interior, portanto no âmbito da vertente espiritual, não visível e, como tal, a
integraremos na função simbólica.
Atendendo a estas funções positivas que envolvem a totalidade do ser humano e
das suas necessidades vitais ou básicas, não será de estranhar que o elemento «água» esteja
presente ao longo das páginas da Bíblia de uma forma preponderante e que também os
artistas, servindo-se dos textos bíblicos como fonte de inspiração, tenham introduzido a
água como tema nas suas obras de arte de cariz religioso.
2- Ação negativa
O povo hebreu, a partir das vivências do cotidiano e das notícias que recebia de
povos vizinhos, também conhecia bem a ação negativa da água enquanto causadora de
inundações, grandes catástrofes, morte e destruição de culturas, pessoas e animais.
Decerto que, ao longo dos séculos, através da tradição oral ou escrita, o povo transmitia
e guardava na memória a maior destruição de todas, ocorrida em tempos longínquos: o
dilúvio.
Os textos bíblicos relativos a este episódio, que é descrito no capítulo 7 do
Gênesis, salientam o arrependimento de Deus em ter criado o homem pela degradação
de vida e pela profundidade do pecado a que chegara. Deus decide, então, suprimir toda
humanidade da face da Terra poupando, contudo, a vida de Noé, considerado um
4
Tal como se refere, por exemplo, no livro do Êxodo: “O Senhor disse a Moisés: «Farás uma bacia de
bronze com uma base de bronze para abluções. Colocá-la-ás entre a tenda da reunião e o altar, e nela
deitarás água. Aarão e os seus filhos lavarão ali as mãos e os pés. Quando entrarem na tenda da reunião,
lavar-se-ão com esta água, para não morrerem; e também quando se aproximarem do altar, para o exercício
do culto e para oferecerem sacrifícios ao Senhor, lavarão os pés e as mãos, a fim de não morrerem. Esta é
uma norma perpétua para eles: para Aarão e para os seus descendentes, por todas as gerações.»” (Ex 30,17-
21).
5
A este tema estão dedicados, essencialmente, os capítulos 11 a 15 do livro do Levítico.
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homem bom e justo, bem como a de sua família. Este castigo divino enviado à
humanidade se realiza, precisamente, através da água que inundará toda a Terra.
A descrição do dilúvio que encontramos no livro do Gênesis sofreu influências
de lendas semelhantes provenientes de povos vizinhos, nomeadamente o poema
mesopotâmico conhecido como «Epopeia de Gilgamesh» e mostra que a água era vista
como causadora da morte dos seres humanos e de animais e até com capacidade para
destruir toda a vida na Terra como é relatado nos capítulos 6 a 8 do Gênesis.
Paradoxalmente, depois de causar destruição e morte, a regeneração e renovação da vida
também está dependente da água. Estamos, pois, perante situações ambivalentes e com
efeitos opostos causados pelo mesmo fator: a água.
Mas o dilúvio não foi o único caso bíblico em que a morte e a destruição, em
grande escala, foram causadas pela água. No Êxodo, o segundo livro do Pentateuco 6
,
refere-se outra catástrofe de grandes dimensões. Após Moisés ter conseguido que o faraó
libertasse os filhos de Israel que estavam prisioneiros no Egito há vários séculos, o povo
dirigiu-se ao Mar Vermelho para o atravessar e regressar a Canaã, a terra prometida. Foi
então que o faraó se arrependeu de ter libertado os israelitas e, levando consigo o seu
numeroso exército, saiu em sua perseguição. Uma vez chegados junto do Mar Vermelho
e com os exércitos do faraó atrás de si, os israelitas encheram-se de temor e voltaram-se
para Moisés. Este, obedecendo às ordens de Deus, ergueu a sua vara e estendeu a mão
sobre o mar. As águas abriram-se em duas muralhas de modo a que os filhos de Israel
pudessem atravessar em terra seca. O exército do faraó avançou pelo mesmo caminho
perseguindo o povo hebreu, mas Moisés erguendo de novo a sua vara sobre o mar, fez
com que as águas voltassem ao seu nível normal arrastando consigo os carros e os
cavaleiros de todo o exército do faraó, tal como descreve o Êxodo:
Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o mar voltou ao seu leito
normal, ao raiar da manhã, e os egípcios a fugir foram ao seu encontro.
E o Senhor desfez-se dos egípcios no meio do mar. As águas voltaram e
6
Pentateuco é um termo de origem grega e que significa “cinco rolos”, ou livros, sendo formado por:
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, os primeiros cinco livros da Bíblia.
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cobriram os carros de guerra e os cavaleiros; de todo o exército do faraó
que entrou atrás deles no mar, não ficou nenhum. Os filhos de Israel
caminharam em terra seca, pelo meio do mar, e as águas eram para eles
um muro à sua direita e à sua esquerda. O Senhor salvou, naquele dia,
Israel da mão do Egito, e Israel viu os egípcios mortos à beira do mar.
(Ex 14, 27-30).
3- Ação simbólica
Como se sabe, o povo de Israel considerava-se o «povo eleito» do Senhor, e a
dimensão religiosa, que ocupava um lugar central no cotidiano deste povo, tudo
condicionava e determinava mediante normas de comportamento e regras estritas sobre
o que se deveria ou não fazer para se manter fiel à Aliança de Deus, para ser agradável
aos seus olhos, cumprir as prescrições e, assim, receber os seus benefícios. Neste
ambiente religioso não é difícil perceber que as ações práticas e imediatas da água, sejam
positivas ou negativas, vão estar a par com outra função que reporta à sua simbologia.
De fato, em diversos momentos os escritores sagrados fazem alusões à água que
ultrapassam a sua finalidade prática e surgem como manifestação de um significado mais
profundo. Referimo-nos, por exemplo, ao simbolismo da água resultante de ações
extraordinárias de Deus em favor do seu povo, ou como sinal de realidades espirituais,
invisíveis, mas atuantes no ser humano, ou ainda, com outros significados de caráter
simbólico. Sem sermos, de modo algum, exaustivos, salientamos certos aspetos em que a
utilização da água remete para uma dimensão simbólica alguns dos quais serão
posteriormente analisados em detalhe:
- Meio de libertação do povo hebreu (Moisés na travessia do Mar
Vermelho)
- Sinal da presença de Deus que cuida seu povo (Moisés faz brotar água da rocha)
- Sinal de purificação interior (Ritual do Batismo)
- Elemento que materializa o milagre (Cura de Naamã; Milagre nas Bodas de
Caná)
- Gesto de ilibação de culpas (Pilatos lava as mãos)
- Prova de humildade e serviço (Jesus lava os pés aos apóstolos)
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- Confirmação da vontade divina (Gedeão e o velo probatório)
Iconografia da água nos relatos bíblicos
Após termos sistematizado e esclarecido, de uma forma simples, mas
abrangente, as diversas ações da água nas Sagradas Escrituras, utilizaremos as categorias
anteriormente estabelecidas para apresentarmos o modo como diferentes artistas, ao
longo dos séculos, interpretaram as referências à água nos textos bíblicos.
1- Ação positiva
Neste item salientámos a água como fonte de vida e como agente de purificação
externa. Dentro destas duas categorias analisaremos, de forma resumida, alguns textos e
as respetivas representações iconográficas. Logo nas primeiras páginas da Bíblia, os
escritores sagrados, ao fazerem o relato da Criação, servem-se da água como um dos
elementos mais importantes para o sustento da vida.
Ao longo dos séculos, o fascinante e
controverso relato da criação do Universo e da Terra
deve ter causado grande impacto nos pintores e seus
mecenas pois foram abundantes as respetivas
representações nas quais se salienta a sequência dos
dias e se introduzem diversas referências a água. Para
justificar as representações da Criação, não
poderemos colocar de lado a ação da Igreja que
apresentava aos fiéis um Deus criador que com a sua
benevolência para com o homem, o centro da criação,
se dispôs a criar a Terra a fim de servir de habitação do
ser humano e lhe proporcionar todas as condições de
vida. Assim começa o relato:
Figura 1
Deus Pai criador do Universo.
Bíblia Moralizada de São Luís (1220-
1240). Toledo, Tesouro da Catedral de
Santa Maria.
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No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e
vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a
superfície das águas. Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. Deus
viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz,
e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o
primeiro dia. (Gn 1, 1-5)
Curiosamente, nenhum texto refere a criação das águas, porém elas vão ocupar
um lugar central neste processo criativo, tal como se pode confirmar pela leitura
continuada da narrativa. Sobretudo na Idade Média, estes primeiros momentos em que
Deus cria e coloca ordem nos diversos elementos foram muito representados. Um
exemplo pode ser visto na figura 1, que reproduz a primeira iluminura de uma Bíblia
Moralizada datada do início do século XIII. Nela podemos ver Deus-Pai como Arquiteto
do Universo, que tudo cria e ordena com peso e medida: o caos inicial e todos os
elementos primordiais. A representação do Pai
Eterno é feita com barbas e cabelo comprido e
com nimbo crucífero iconografia que mostra
grande semelhança com a aparência mais
própria de Jesus Cristo, sinal da identificação
medieval entre as três pessoas da Santíssima
Trindade. Na mão direita segura o compasso
cuja forma se relaciona com a primeira letra
grega «Alfa», sinal do princípio de todas as
coisas 7
. Simboliza também a ordem, a
precisão, a medida e o poder de medir. Com a
mão esquerda sustenta o globo do universo em
criação, onde se pode ver a ondulação das águas, a matéria informe, o vazio.
E era neste vazio da terra informe onde a escuridão cobriam o abismo que o
espírito de Deus pairava sobre a superfície das águas, como refere o texto bíblico. O
7
Cf. CIRLOT, Juan-Eduardo – Diccionario de Símbolos. Barcelona: Editorial Labor, SA. 1992, p. 142
Figura 2
Mosaicos da Criação (1215-1235). Cúpula sul.
Venezia, Basilica di San Marco.
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«espírito de Deus» será referido no Novo Testamento, como assumindo a forma de uma
pomba, nomeadamente nos textos alusivos ao Batismo de Jesus, pelo que os artistas não
tiveram dificuldade em apropriar-se desta imagem para representarem o Espírito Santo.
Ilustramos na figura 2 uma representação dos vários dias da Criação tal como é feita na
cúpula sul do nártex oeste da Basílica de São Marcos, em Veneza. Chama-se a atenção
para a imagem inferior onde se representa a escuridão do abismo, a ondulação das águas
e o espírito de Deus, movendo-se sobre elas.
No segundo dia da Criação as águas são
protagonistas: “Deus disse: Haja um firmamento
entre as águas para as manter separadas umas das
outras. Deus fez o firmamento e separou as águas
que estavam sob o firmamento das que estavam
por cima do firmamento.” (Gn 1, 6-7). A
dificuldade em representar algo tão complexo
como são estes relatos parece não ter constituído
grande obstáculo para a sua figuração plástica na
arte medieval. No exemplo que apresentamos
[figura 3], o artista, com uma concepção muito
simples e facilmente compreensível, ilustra
perfeitamente o segundo dia da Criação com a
separação das águas. A inscrição latina refere: “FIAT FIRMAMENTUM IN MEDIO
AQUARUM” (Faça-se o firmamento entre as águas). De fato, o círculo central
representa as águas inferiores formadas pelos rios, oceanos, lagos, que se dividem embora
permaneçam comunicantes, enquanto no círculo exterior figuram as águas superiores
responsáveis por todo o tipo de precipitação (chuva, neve, granizo e orvalho) 8
. No
espaço entre as águas está o firmamento que as separa. Para mais facilmente serem
8
Como se sabe o orvalho não se precipita, mas forma-se sobre a terra. Porém, na conceção da época se
acreditava que o orvalho também caía do céu como resulta claro no livro do profeta Isaías Is 45, 8 e no
episódio do velo de Gedeão Jz 6, 36-40.
Figura 3
Segundo dia da Criação: Separação das
águas. (c. 1140-1170). Palermo, Cappella
Palatina del Palazzo dei Normanni.
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identificadas as águas superiores e inferiores são representadas mediante as tradicionais
linhas onduladas, como sinal de águas correntes portadoras de vida.
Após a separação entre a terra e água e depois da terra ter produzido todo o tipo
de plantas, no quinto dia são criados os seres que habitam as águas e as aves que sulcam
os céus:
Deus disse: «Que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos, e
que por cima da terra voem aves, sob o firmamento dos céus.» Deus
criou, segundo as suas espécies, os monstros marinhos e todos os seres
vivos que se movem nas águas, e todas as aves aladas, segundo as suas
espécies.” (Gn 1, 20-21).
Nos mosaicos ilustrados na figura 4, encontramos uma magnífica e
esclarecedora figuração deste quinto dia da criação.
A legenda latina, que transcreve o versículo 20, é
esclarecedora: “PRODUCANT AQUAE
REPTILE ANIMAE VIVENTIS ET VOLATILE
SUPER TERRAM” (Gn 1, 20). Na imagem vemos
Deus-Pai, representado com o gesto oratório e
mostrando o poder da sua Palavra criadora: depois
de ter criado todo o tipo de animais marinhos,
dirige-se às aves chamando-as à existência.
No capítulo 2 do Gênesis, onde se
apresenta um novo relato da Criação, embora
proveniente de outra tradição, sublinha-se a
estreita relação entre a água e a existência de vida
das espécies vegetais: “Quando o Senhor Deus fez
a terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta
germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra.” (Gn
2, 4-5).
Figura 4
Quinto dia da Criação: Criação dos
peixes e das aves. (c. 1140-1170). Palermo,
Cappella Palatina del Palazzo dei
Normanni.
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Após termos analisado textos e imagens em que a água surge como suporte de
vida nos relatos da Criação, vamos ver como ela é também indispensável para a
manutenção da vida dos seres humanos que dela necessitam para beber e como a sua falta
é causa de morte.
De fato, no livro do profeta Ezequiel Deus fala com o profeta nos seguintes
termos: “Filho de homem, eis que vou destruir a reserva de pão em Jerusalém: na
angústia, comerão pão rigorosamente pesado e beberão com pavor água racionada,
porque o pão e a água faltarão; desfalecerão uns sobre os outros e definharão, por causa
do seu pecado.»” (Ez 4, 16). No Êxodo encontra-se, também, um episódio esclarecedor: o
povo de Israel, depois deter sido libertado por Moisés da escravidão do faraó, no Egito,
ao sentir a falta de água volta-se contra o seu libertador culpando-o de os ter trazido ao
deserto para morrerem de sede. O texto é o seguinte:
Eles acamparam em Refidim, mas não havia água para o povo beber. O
povo litigou com Moisés, e disse: «Dá-nos água para beber.» Disse-lhes
Moisés: «Porque litigais comigo? Porque pondes o Senhor à prova?».
Ali o povo teve sede de água, e murmurou contra Moisés, dizendo:
«Porque nos fizeste subir do Egipto para nos fazer morrer à sede, a nós,
aos nossos filhos e ao nosso gado? Moisés clamou ao Senhor, dizendo:
«Que farei a este povo? Mais um pouco e vão apedrejar-me.» O Senhor
disse a Moisés: «Passa diante do povo e toma contigo alguns anciãos de
Israel; e leva na tua mão a vara com que feriste o rio, e vai. Eis que
estarei diante de ti, lá, sobre a rocha no Horeb. Tu ferirás a rocha e dela
sairá água, e o povo beberá.» Assim fez Moisés diante dos anciãos de
Israel. (Ex 17, 1-6).
Esta intervenção extraordinária de Deus em favor de seu povo, por intermédio
de seu servo Moisés, desde muito cedo foi usada pela Igreja para incutir nos fiéis uma
certeza: que o Deus libertador cuida do seu povo sem o abandonar nas dificuldades,
ainda que tenha de realizar feitos notáveis porque a Deus nada é impossível. Assim, a
função da água neste episódio não se restringe à sua finalidade prática de matar a sede,
mas reveste-se, também, de uma componente simbólica segundo uma das categorias
indicadas anteriormente: como sinal da presença de Deus que cuida do seu povo.
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Na pintura paleocristã assiste-se já a representações deste feito extraordinário,
tal como se ilustra na figura 5, um afresco das catacumbas de São Calisto, em Roma. Os
elementos da pintura estão reduzidos ao mínimo necessário para a compreensão da cena
relatada: com apenas 3 personagens, Moisés toca no rochedo com a sua vara e da rocha
brota água com abundância que é captada por um dos sequiosos membros do povo.
O tema perdurou pelos séculos através da arte de diversos pintores como é o
caso de Tintoretto que ilustramos na figura 6. Nesta imagem, o jorro de água que brota
da rocha assume um destaque de grande relevo na composição. O pintor revela a sua
habilidade através de uma composição dinâmica, bem elaborada e com detalhes
abundantes. O ponto de vista inferior confere monumentalidade à cena e os gestos das
personagens que se agitam e, sob o olhar atento de Deus-Pai, buscam, avidamente, um
pouco de água, mostra as grandes dificuldades pelas quais estava a passar o povo hebreu
com a falta de água no deserto.
Dentro da categoria de funções positivas, a segunda vertente refere-se à ação
purificadora da água. Já não nos situamos no âmbito de uma necessidade vital, mas sim
no domínio de uma função prática e também no campo de preceitos religiosos. A este
respeito encontramos nos textos bíblicos imensas referências à utilização da água para as
lavagens e purificações necessárias. O livro do Levítico está repleto de normas e
prescrições identificando o que torna puro e impuro tanto as pessoas como animais e o
Figura 5
Moisés fere a rocha para sair água (séc. IV). Roma, Catacumbas de São Calisto
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modo como se pode purificar o que se tornou impuro. Nesta ação, a água surge como o
agente purificador fundamental. Vejamos alguns episódios selecionados.
No capítulo 18 do Gênesis, Abraão recebe a visita de três personagens
misteriosas. Parte do ritual desta hospitalidade é realizada oferecendo água para lavar os
pés: “Permite que se traga um pouco de água para vos lavar os pés” (Gn 18, 4). No
mesmo livro destacamos
outro exemplo muito
esclarecedor sobre esta
hospitalidade: “O homem
entrou em casa. Labão
mandou descarregar os
camelos, deu palha e feno aos
animais, e água para lavar os
pés do homem e daqueles
que o acompanhavam.
Depois, serviram-lhe de
comer.” (Gn 24, 32-33).
Ainda no tempo de Jesus se
mantinha esta tradição como
se pode comprovar pelas
palavras que dirigiu ao
fariseu Simão que o tinha
convidado a jantar em sua casa e não tinha cumprido com este ritual de hospedagem:
“Entrei em tua casa e não me deste água para os pés […]” (Lc 7, 44). Mais tarde, no
decorrer da Última Ceia, será Jesus a lavar os pés aos apóstolos (Jo 13, 1-11). Nesta
passagem, porém, o destaque não está na purificação do corpo, mas o gesto possui um
significado de serviço e humildade e, como tal, enquadramos este episódio no âmbito da
função simbólica da água e que não será desenvolvida no contexto desta publicação.
Outras passagens do Antigo Testamento referem a lavagem ritual das mãos e
dos pés. Isso mesmo pode ser comprovado no livro do Êxodo:
Figura 6
Moisés fere a rocha para sair água (1577). Tintoretto. Veneza,
Scuola di San Rocco
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O Senhor disse a Moisés: «Farás uma bacia de bronze com uma base de
bronze para abluções. Colocá-la-ás entre a tenda da reunião e o altar, e
nela deitarás água. Aarão e os seus filhos lavarão ali as mãos e os pés.
Quando entrarem na tenda da reunião, lavar-se-ão com esta água, para
não morrerem; e também quando se aproximarem do altar, para o
exercício do culto e para oferecerem sacrifícios ao Senhor, lavarão os
pés e as mãos, a fim de não morrerem. Esta é uma norma perpétua para
eles: para Aarão e para os seus descendentes, por todas as gerações.» (Ex
30, 17-21).
No Novo Testamento, o evangelista Marcos confirma a tradição de proceder a
inúmeras lavagens das mãos e de diversos utensílios:
Os fariseus e alguns doutores da Lei vindos de Jerusalém reuniram-se à
volta de Jesus, e viram que vários dos seus discípulos comiam pão com
as mãos impuras, isto é, por lavar. É que os fariseus e todos os judeus
Figura 7
Arca de Noé e o Dilúvio Universal (975). Beato de Gerona, Fol. 102 v e 103 r. –
Catedral de Santa Maria de Gerona.
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em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme
a tradição dos antigos; ao voltar da praça pública, não comem sem se
lavar; e há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem
das taças, dos jarros e das vasilhas de cobre. (Mc 7, 1-4).
Tratando-se de uma vertente com menor importância em termos iconográficos,
não apresentaremos imagens de episódios relacionadas com esta utilização da água.
A ação purificadora da água não se limita ao exterior do corpo, mas também é
entendida como purificação interior e, nesse caso, a incluiremos na ação simbólica. É o
caso da purificação referida no livro do profeta Ezequiel: “Derramarei sobre vós uma
água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os
pecados.” (Ez 36, 25).
Esta purificação dos pecados através do sinal tangível que é a água, será o
essencial do ritual do batismo praticado por João, como veremos ao tratar da função
simbólica da água.
2- Ação negativa
Como referimos ao tratar anteriormente desta ação, na mente e no imaginário
do povo hebreu, a imensa catástrofe causada pelo dilúvio terá sido aquela que perdurava
na tradição oral e através dos escritos bíblicos não só pela sua dimensão territorial, como
pelas incalculáveis mortes causadas entre as pessoas e os animais. O relato deste episódio
que sofreu influências de lendas semelhantes provenientes de povos vizinhos, aparece no
livro do Gênesis, alguns capítulos mais à frente do relato da criação. Depois de ter
construído a arca, de acordo com as indicações divinas, Noé abrigou nela a sua família e
os animais e, tendo sido avisado por Deus, entrou na arca e começou a chover. Para
melhor compreender a respetiva representação iconográfica, selecionámos o seguinte
texto:
Choveu torrencialmente durante quarenta dias sobre a terra. As águas
cresceram e levantaram a arca, que foi elevada acima da terra. As águas
iam sempre crescendo e subiram muito acima da terra; e a arca flutuava
à superfície das águas. A enchente aumentava cada vez mais, e tanto que
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cobriu todos os altos montes existentes debaixo dos céus; as águas
ultrapassaram quinze côvados por cima das montanhas. Todas as
criaturas que se moviam na terra pereceram: aves, animais domésticos,
animais selvagens, tudo o que rastejava pela terra e todos os homens.
Todos os seres que tinham sopro de vida e viviam na terra firme
morreram. Foram assim exterminados todos os seres que se
encontravam à superfície da terra, desde os homens até aos
quadrúpedes, aos répteis e aves dos céus. Desapareceram da face da
terra, exceto Noé e os que se encontravam com ele na arca. As águas
cobriram a terra, durante cento e cinquenta dias. (Gn 7, 17-24).
A função negativa da água é aqui muito evidente: em consequência do dilúvio, a
água trouxe morte e destruição. Este episódio, entendido à letra durante muitos séculos,
apresenta um Deus castigador da humanidade que, à exceção dos que estavam dentro da
arca, dizimou todos os homens e animais sobre a terra, devido ao modo de vida imoral,
pecador e contrário à vontade de Deus que os seres humanos levavam.
A impressão causada por um desastre de tamanha envergadura deve ter deixado
os crentes atemorizados e impressionados com o poder destruidor de Deus. O
acontecimento é relatado com imensos detalhes e, como tal, extremamente rico em
motivos plásticos capazes de inspirarem os artistas ao longo de séculos. Além disso, a
recordação desta tragédia estava também associada a objetivos pedagógicos respeitantes
ao cumprimento dos preceitos divinos, que convinha à Igreja incutir nos crentes, os
quais, se não fossem acatados, teriam trágicas consequências diante da ira divina, tal
como outrora sucedera, no tempo de Noé. Esta mentalidade, perdurando durante
séculos, contribuiu para a propagação do tema do Dilúvio Universal no domínio da
pintura.
De fato, os pintores, ao longo dos séculos, representaram este episódio com
abundantes pormenores como é o caso, muito elucidativo, da iluminura do Beato de
Gerona que podemos ver na figura 7. A imaginação dos artistas conduziu a desenhos
curiosos da arca de Noé, tal como a disposição interna das várias espécies de animais e de
Noé e sua família. A arca, que assume a forma de um pentágono, mostra no piso
superior Noé ao centro rodeado de seus três filhos Sem, Cam e Jafet e das mulheres de
seus filhos.
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Está em falta a representação da própria mulher de Noé, talvez por uma
questão de simetria ou de salientar o número 7 de grande significado bíblico. Esta
representação inclui também outros aspetos interessantes, nomeadamente a figuração das
montanhas que se mostram completamente cobertas pelas águas que se elevam em
grande distância sobre o seu cume, tal como refere expressamente relato bíblico: “as
águas ultrapassaram 15 côvados por cima das montanhas” (Gn 7, 20). Talvez
representem as próprias montanhas de Ararat sobre as quais a arca se deteve no fim do
dilúvio (Gn 8, 4). No interior das águas são visíveis os animais marinhos e 12 corpos que
representam todas as pessoas mortas pelo dilúvio. Um deles está a ser picado pelo corvo
que foi solto por Noé e que não regressou.
Por sua vez, Michelangelo Buonarroti, nos afrescos do teto da Capela Sistina,
representa diversos episódios do Gênesis e, entre eles, o Dilúvio que podemos ver na
figura 8. Numa composição dinâmica e inovadora, Michelangelo revela toda a sua
mestria ao tornar claro o desespero das figuras humanas que procuram fugir à subida das
águas e se auxiliam mutuamente. Numa amálgama de corpos despidos ou seminus,
estampa-se no rosto e nos gestos das pessoas o drama que vivenciam e a consciência do
final trágico que se aproxima. Crianças que choram agarradas às suas mães, corpos já sem
Figura 8
Arca de Noé e Dilúvio Universal (1508-12). Michelangelo Buonarroti. Vaticano, teto da Capela Sistina.
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vida, desespero de quem procura alcançar terra firme segurando alguns haveres, este é, na
visão de Michelangelo, o retrato da humanidade pecadora castigada por Deus. Do lado
esquerdo uma árvore morta à qual se segura desesperadamente um jovem, contrasta com
a árvore ainda vicejante do lado direito, junto à qual um grupo de pessoas tenta alcançar
o cimo de uma formação rochosa. Esta dualidade chama a atenção para a realidade do
binômio vida/morte que envolve o ser humano e a sua condição de grande fragilidade.
Ao centro do espaço pictórico, outro grupo procura refúgio numa pequena embarcação
que está prestes a afundar enquanto em último plano sobressai a solidez da arca que
alguns tentam alcançar e manter-se sobre uma plataforma apesar das lutas pela
sobrevivência em que se envolvem.
Figura 9
Dilúvio Universal (1840). James Francis Danby. London, Tate Gallery
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Ainda no século XIX o mesmo tema continua a captar a atenção dos artistas,
como é o caso de James Francis Danby e que ilustramos na figura 9. Nesta magnífica
pintura, o artista procura centrar a atenção do espetador no drama vivido pela
humanidade que sucumbe no dilúvio e que ocupa todo o primeiro plano, enquanto a
arca de Noé, ao centro, sob uma intensa luz focal que a assinala, quase desaparece no
plano secundário. Este pintor irlandês levou ao extremo a representação do drama com a
profusão de corpos que se amontoam num rocha que sobressai do nível das águas, ou
que se agarram, desesperada e inutilmente, a troncos de árvores que ainda não
submergiram. O sol, cor de fogo, timidamente sobressaindo da água, mostra como o fim
desta tragédia ainda está longe pois as trevas do abismo e as cataratas das águas ainda vão
continuar a encher mortalmente a superfície da terra.
Nesta ação negativa, o tema da passagem do Mar Vermelho por Moisés e os
israelitas, anteriormente invocado, constituiu, também, um motivo inspirador para os
artistas. De fato, o relato assombroso possui inúmeros motivos que permitem aos
Figura 10
Moisés e os israelitas atravessam a salvo o Mar Vermelho (1825). James Francis Danby.
Preston, Harris Museum and Art Gallery
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pintores encher as suas telas com dinamismo, grandiosidade e composições arrojadas,
como mostramos nas figuras 10 e 11.
A figura 10 mostra uma obra do pintor James F. Danby, acima referido. Vemos,
em primeiro plano, os israelitas que acabam de atravessar a salvo o Mar Vermelho.
Exaustos pelo esforço da travessia, eles deitam-se por terra e são representados em
diferentes gestos e atitudes: cuidando de seus filhos, ajoelhando-se ou prostrando-se
tocando com a cabeça no chão para agradecer a Deus terem conseguido fugir à ira do
faraó. Outros se agitam em animada troca de impressões, apontam para o alto, recolhem
os seus pertences ou cuidam dos animais. Curiosamente, Moisés, o líder do povo e
responsável pela libertação, não surge entre a multidão que ocupa o primeiro plano, mas
aparece ao longe, numa figura diminuta vestida de branco, junto ao mar, quase no centro
da pintura, recortado contra o fundo escuro. Ergue ao alto o seu braço com a vara, e
ordena ao Mar Vermelho que retorne ao seu nível normal. Quando tal acontece, as águas
arrastaram consigo todos os carros e cavaleiros do exército do faraó.
O artista reservou para esta cena grande parte do lado esquerdo da tela e
escolheu um ponto de vista elevado que contribui para captar a insignificância da
dimensão humana perante a força imparável das águas do Mar Vermelho que se fecham
sobre os egípcios. Os jogos de luz e sombra contribuem para sublinhar o dramatismo do
episódio e para destacar certos grupos de pessoas ou mesmo a figura de Moisés.
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194 Na figura 11, a opção do pintor foi muito diferente da que acabámos de analisar.
Neste caso, uma linha diagonal ascendente da esquerda para a direita divide a pintura em
duas partes distintas, separando o lado dos israelitas do lado dos egípcios. Assim, o lado
direito, ocupado por um reduzido número de pessoas, animais e utensílios, é dominado
pela figura imponente de Moisés que se coloca numa posição mais elevada, sobre uma
rocha, no momento em que ergue sobre o mar o braço direito onde sustenta a vara,
levando a que, sob as ordens de Deus, o mar retorne ao seu nível normal, segundo os
relatos bíblicos que analisamos. Do lado esquerdo, a agitação das águas foi muito bem
registrada em termos plásticos, tal como o drama vivido pelos egípcios que estão prestes
a morrer sob o mar.
Perante a sua libertação, os israelitas salvos da opressão do faraó são
representados em gestos agitados que traduzem o assombro e admiração pelo sucedido, e
também o louvor a Deus pela saída exitosa do Egito, graças aos feitos extraordinários de
Deus, por intermédio de Moisés, que se serviu do elemento «água».
Figura 11
Moisés e os israelitas atravessam a salvo o Mar Vermelho (1855). Frédéric Schopin.
Bristol Museums, Galleries & Archives
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3- Ação simbólica
As páginas da Sagrada Escritura também estão repletas de referências à água nas
quais se salienta a sua ação simbólica. Os autores dos textos servem-se da água, neste
caso, não para chamar a atenção para a sua função prática, mas como sinal de realidades
mais profundas no âmbito de uma dimensão espiritual e sagrada. Anteriormente
salientámos diversos aspetos onde se verifica uma utilização da água devido à sua
simbologia, porém, neste contexto, iremos analisar apenas quatro:
- meio de libertação do povo hebreu (Moisés na travessia do Mar Vermelho)
- sinal da presença de Deus que cuida seu povo (Moisés faz brotar água da rocha)
- sinal de purificação interior (Ritual do Batismo)
- elemento que materializa o milagre (Cura de Naamã; Milagre nas Bodas de
Caná).
Em cada um destes aspetos a presença da água vai para além da sua função
imediata. Assim, na primeira situação o escritor sagrado utiliza a água do Mar Vermelho
como meio pelo qual Deus, agindo através do seu servo Moisés vai obter a libertação do
povo de Israel, tal como acabámos de ver.
Por sua vez, o segundo caso em que a água é utilizada em termos simbólicos
como sinal da presença de Deus que cuida do seu povo, já foi esclarecida e analisada
quando referimos o gesto de Moisés que, obedecendo à indicação de Deus, fere a rocha
com a sua vara a fim de que dela possa brotar água para matar a sede do povo hebreu
[Figuras 5 e 6].
O terceiro aspeto da utilização da água na sua vertente simbólica foi referido
como sinal de purificação interior. No contexto desta publicação iremos ter presente
essencialmente o rito batismal praticado por João Batista no rio Jordão. O significado
desse batismo é indicado pelos próprios textos bíblicos. No caso de São Mateus: “Eu
batizo-vos com água, para vos mover à conversão; mas aquele que vem depois de mim é
mais poderoso do que eu e não sou digno de lhe descalçar as sandálias.” (Mt 3, 11). Por
sua vez o Evangelista Marcos refere: “João Baptista apareceu no deserto, a pregar um
batismo de arrependimento para a remissão dos pecados. Saíam ao seu encontro todos os
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da província da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém e eram batizados por ele no rio
Jordão, confessando os seus pecados.” (Mc 1, 4-5).
Nestas passagens fica claro que o batismo praticado por João era ministrado
para conversão interior, para a remissão dos pecados. E todos quantos se aproximavam
para serem batizados sem que o seu interior mostrasse sinais de arrependimento e de
mudança de vida, o profeta vociferava intempestivamente contra eles com palavras
muito duras:
Vendo, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao seu batismo,
disse-lhes: «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está
para vir? Produzi, pois, frutos dignos de conversão e não vos iludais a
vós mesmos, dizendo: ‘Temos por pai a Abraão!’ Pois, digo-vos: Deus
pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão. O machado já está posto
à raiz das árvores, e toda a árvore que não dá bom fruto é cortada e
lançada no fogo (Mt 3, 7-10).
Porém, o episódio algo controverso e que terá marcado os discípulos e as
primeiras comunidades cristãs terá sido o batismo de Jesus descrito pelos quatro
Evangelistas 9
. Utilizaremos a versão de São Mateus:
Então, veio Jesus da Galileia ao Jordão ter com João, para ser batizado
por ele. João opunha-se, dizendo: «Eu é que tenho necessidade de ser
batizado por ti, e Tu vens a mim?» Jesus, porém, respondeu-lhe: «Deixa
por agora. Convém que cumpramos assim toda a justiça.» João, então,
concordou. Uma vez batizado, Jesus saiu da água e eis que se rasgaram
os céus, e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre
Ele. E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o meu Filho muito amado,
no qual pus todo o meu agrado.» (Mt 3, 13-17)
9
Não pretendemos esclarecer aqui aspetos teológicos que não têm qualquer relevância para a Iconografia.
Contudo, referimos que ao assemelhar-se aos que se dirigiam ao batismo praticado por João, Jesus que em
determinado período da sua vida terá sido discípulo de João, identifica-se com os pecadores e, por outro
lado, apresenta-se numa posição inferior em relação a João, pois mostra necessitar dele para receber o
batismo.
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Jesus entrou no rio Jordão e colocou-se junto com os pecadores que recorriam a
João para serem batizados e, assim, receberem o perdão dos seus pecados. O Batista sabe
que Jesus não possui qualquer mancha de pecado e, como tal, não necessita de receber o
batismo. Uma vez justificada pela Igreja esta identificação de Jesus com os pecadores, o
Batismo de Jesus tornou-se um exemplo do dever de quem se quer tornar cristão em
receber este sacramento para ser considerado membro da Igreja. Se a esta motivação,
agregarmos o fato deste episódio marcar o início da vida pública de Jesus, entenderemos
os motivos pelos quais foi extremamente representado pelos artistas ao longo dos
séculos, em particular nos ícones da Igreja Oriental, ou como parte integrante dos
programas iconográficos cristológicos.
Antes de analisarmos algumas pinturas convém referir que a Iconografia do
Batismo não teve os relatos bíblicos como a única fonte de inspiração para os artistas,
pois também recebeu uma forte influência do rito batismal da liturgia oriental. As
caraterísticas Iconográficas do Batismo de Jesus resultaram, assim, de uma síntese entre
os relatos dos Evangelhos e o ritual do batismo dos fiéis na tradição bizantina, aspeto
que iremos esclarecer.
A prática inicial do batismo na Igreja Oriental começa por ser um batismo de
imersão pois se assemelhava ao Batismo de Cristo, considerado o protótipo do Batismo
cristão. Neste ritual estavam presentes os diáconos que ajudavam no sacramento
segurando a túnica branca que os neófitos vestiam depois da imersão na água. Este aspeto
marcará a iconografia do Batismo, de forma muito forte e terá influência sobre os
pintores orientais que, mesmo não tendo conhecimento desta influência da Igreja
oriental, seguiam certos modelos iconográficos, embora esvaziados de significado.
Por questões práticas e pelo crescente batismo de crianças e doentes começa a
praticar-se e a impor-se o batismo por aspersão. Assim, entre os séculos VI e XII a arte
bizantina, ou por ela influenciada, representa Jesus completamente nu imerso nas águas
do Jordão podendo a água chegar à cintura, às axilas ou aos ombros. Porém, a partir do
século XII, a iconografia vai começar a alterar a fórmula antiga substituindo-a pelo
batismo por aspersão, mas que só se estabelecerá definitivamente na arte ocidental no
seculo XIV, com Taddeo Gaddi (1290-1366) e Andrea Pisano (1290-1348).
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Importa, ainda, clarificar que, com base nos relatos bíblicos, a representação do
Batismo de Cristo integra sempre dois elementos diferenciados:
- A Purificação (imersão de Jesus na água do rio Jordão)
- A Teofania (a descida do Espírito Santo e, por vezes, a presença de Deus-Pai)
Começamos por analisar algumas representações do Batismo de Cristo que
receberam influências da iconografia bizantina como é o caso da figura 12, uma
reprodução do Hortus Deliciarum (c.
1176-1196) de Herrad de Landsberg e
hoje disperso em várias cópias.
Constatamos a completa imersão de
Cristo, totalmente despido, na água
que o envolve até aos ombros
(Purificação). Do seu lado direito está
a figura de João Batista que apesar de
colocar a mão sobre a cabeça de Jesus,
não segura qualquer recipiente nem
derrama água sobre Cristo, pois ainda
não estava estabelecido o batismo por
aspersão. João ostenta vestes muito rudimentares e apresenta o cabelo e a barba em
desalinho dando a entender a vida austera do profeta no deserto. A seus pés um machado
encontra-se à raiz de uma árvore, numa interpretação literal dos textos bíblicos acima
transcritos. Do lado oposto ao de João estão três anjos segurando túnicas brancas
(influência da liturgia oriental) destinadas a receber Jesus depois da sua saída das águas,
como sucedia com os neófitos no rito oriental. Os anjos cobrem as mãos em sinal de
respeito.
O curso do rio é representado com linhas que se elevam em vez de afastarem
numa perspectiva «infantil» e algumas ondulações junto das mãos e dos pés de Jesus. A
necessidade de representar o curso do rio deve-se ao facto de primitivamente se
considerar que o batismo para ser eficaz teria de ser praticado em águas vivas, portanto
Figura 12
Batismo de Jesus - Hortus Deliciarum (1176-1196)
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em águas correntes. Aos pés de Jesus encontra-se dentro do rio uma figura masculina que
representa a personificação do rio Jordão. O cruzeiro ao seu lado mais que um presságio
da Crucificação é uma marca de peregrinação no rio Jordão, pois para assinalar aos
peregrinos o local do Batismo de Cristo, fora erguida uma cruz no alto de uma coluna 10
.
Envolvendo a cabeça de Cristo está um nimbo crucífero, sobre o qual se situa a
pomba do Espírito Santo (Teofania). Ao alto, um círculo envolve a representação de
nove anjos que identificamos como uma alusão à nova hierarquias celestes segundo a
concepção de Pseudo Dionísio Areopagita, significando a presença de toda a corte celeste
neste acontecimento, ampliando, assim, a Teofania assinalada pela presença da pomba.
Outra representação do batismo, mais simplificada, mas ainda recebendo
influências bizantinas é a que ilustramos na figura 13, da autoria de Giotto di Bondone
(c. 1267-1337), pertencente aos afrescos da Capella degli Scrovegni, em Pádua. Esta obra,
distanciada no tempo cerca de dois séculos depois da anterior, foi muito mais
simplificada, ficando apenas reduzida aos elementos mais importantes. Jesus continuou a
ser representado completamente
despido, imerso nas águas do rio
Jordão, que o envolvem até pouco
acima da cintura (Purificação). Ainda
se representa o batismo por imersão,
apesar de João, do lado direito da
pintura, acompanhado de dois
discípulos, colocar a mão direita sobre
a cabeça de Jesus. Quatro anjos,
situados no lado oposto, seguram nas
mãos não já as túnicas brancas
próprias dos neófitos, mas as vestes
10
As informações fornecidas sobre a Iconografia do Batismo tiveram como fonte, essencialmente a obra:
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996, Tomo 1/Vol. 2, p.
307-316.
Figura 13
Batismo de Jesus (c. 1303-1305).
Giotto di Bondone. Padova, Capella degli Scrovegni
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coloridas de Jesus, o que mostra que já se começara a perder o sentido inicial que
justificava a presença destas figuras na Iconografia do Batismo. Sobre a figura de Jesus
está representado Deus-Pai cuja voz se fez ouvir e a pomba do Espírito Santo que
completa a referida Teofania. A paisagem é inóspita e reduzida aos elementos
estritamente necessários para contextualizar o episódio: o rio Jordão e duas montanhas
simetricamente dispostas.
Passado mais de um século, uma pintura de Fra Angelico (1395-1455) mostra
como a iconografia já se tinha alterado
começando a fixar-se o batismo por
aspersão como podemos ver na figura 14
que reproduz o afresco da cela 24 do
Convento de São Marcos em Florença.
Também aqui se representa uma
paisagem agreste com enormes rochedos e
montanhas entre as quais corre o rio
Jordão que é assinalado mediante uma
forte presença, salientando, assim, a sua
importância para o tema. Este
despojamento iconográfico fica a dever-se
ao fato da pintura ser destinada
unicamente a ser contemplada pelo frade
que habitava a cela. Jesus envergando
somente o perizonium branco entra no
rio que apenas lhe cobre apenas metade das pernas para receber o batismo por aspersão.
Estamos perante uma iconografia muito distante da representação de Jesus
completamente imerso no rio Jordão.
Próximo de Jesus encontra-se João Batista que segura um recipiente na mão
direita, derramando água sobre a cabeça de Cristo, sinal de que já era comum o batismo
por aspersão. Estão também dois anjos, de joelhos, que aguardam a saída de Jesus
sustentando nas mãos as suas vestes e não a túnica branca como era hábito na liturgia
Figura 14
Batismo de Jesus (início séc. XV). Fra Angelico.
Firenze, Convento di San Marco
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bizantina. Dominando superiormente a composição encontra-se a pomba do Espírito
Santo envolvida por um imponente conjunto de nuvens dispostas em círculo e da qual
sai um feixe de raios luminosos de modo a dar a impressão da grandiosidade da Teofania
ocorrida nesse momento. O Batismo de Jesus é contemplado por duas personagens
situadas à direita da composição: a Virgem Maria e São Domingos de Gusmão, fundador
da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) à qual pertencia Fra Angelico.
Piero della Francesca (1415-1492) mostra-nos uma conhecida, mas enigmática
representação do Batismo de Jesus [figura 15]. O abundante rio da pintura de Fra
Angelico deu aqui lugar a um quase inexistente curso de água. A composição, fortemente
marcada por uma rigorosa geometria, apresenta Cristo situado no eixo central, de frente
para o observador. Ao seu lado João Batista derrama água sobre a sua cabeça. Do lado
esquerdo, separados pelo tronco de uma árvore estão três anjos sem qualquer relação
com a anterior função dos diáconos e sem sustentarem as vestes de Jesus. Piero
Figura 16
Batismo de Jesus (c. 1452). Piero della Francesca.
Esquema geométrico.
Figura 15
Batismo de Jesus (c. 1452). Piero della Francesca,
London, National Gallery.
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seguramente os utiliza para simbolizar a Santíssima Trindade. Em segundo plano um dos
peregrinos despe a roupa para se preparar para o batismo.
A pomba do Espírito Santo situa-
se na confluência de vários elementos
geométricos: o eixo horizontal que separa
o quadrilátero inferior do semicírculo que
sobrepuja a pintura e a linha vertical que
serve de eixo de simetria do painel, como
se ilustra na figura 16. Na verdade toda a
obra é um tratado de geometria o que era
uma situação frequente nos trabalhos
artísticos de Piero della Francesca, pintor e
matemático. Podemos apreciar uma
pequena parte do cuidadoso estudo
geométrico subjacente através da definição
do «Triângulo de Ouro» que delimita o
tronco de Jesus e orienta a colocação dos
antebraços. Este triângulo é definido por
diversas linhas geométricas próprias do esquema de composição e que aqui não foram
consideradas, dada a complexidade do estudo. A extensão das asas da pomba situada
sobre a cabeça de Jesus coincide com dimensão da base deste «Triângulo de Ouro» 11
.
A evolução do tema do Batismo de Jesus fica bem patente com as duas próximas
pinturas. Na figura 17, da autoria de Gerard David (1460-1523), assistimos à
representação do batismo inserido numa paisagem trabalhada com todo o realismo e
detalhe próprios da pintura dos Países Baixos. Trata-se do painel central do tríptico do
11
Piero della Francesca foi o autor de um importante tratado de geometria denominado De Prospectiva
Pingendi terminado por volta de 1482. Os complexos estudos relacionados com o esquema geométrico de
composição da pintura o “Batismo de Jesus” foram apresentados por nós diversas vezes e sob formas
variadas, sendo a última no Minicurso de Iconografia que decorreu entre 19 e 21 de Outubro de 2015, na
Unicamp (Campinas/SP), no âmbito do XI- Encontro de História da Arte. A complexidade deste esquema
e as explicações que o justificam não permitem a sua inclusão nesta publicação.
Figura 17
Batismo de Jesus (c. 1505). Gerard David. Bruges,
Groenige Museum
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“Batismo de Jesus” no qual os doadores são representados nos volantes laterais que não
reproduzimos.
Cristo ocupa o eixo central da composição, o qual é utilizado para a colocação
da Teofania Trinitária. Com efeito, tal como referem os textos bíblicos, além de Cristo,
está presente a pomba do Espírito Santo e, ao alto, a presença majestosa de Deus-Pai cuja
voz se fez ouvir depois de Jesus ter sido batizado. A figura de João deixou de ser a de um
profeta marcado pela dureza da vida austera do deserto, para passar a ser um burguês de
ricas vestes.
De igual modo, os anjos das
pinturas bizantinas, que ocupavam o
lugar dos diáconos no ritual da
liturgia oriental e envergavam
simples túnicas, deram lugar aqui a
um único anjo, de cabelos louros,
vestido com uma suntuosa capa de
asperges, de longos panejamentos e
trabalhada minuciosamente como
era próprio da pintura flamenga. O
anjo, genufletindo, segura nas mãos a veste de Jesus, aguardando a sua saída da água.
A cena tem lugar no meio da natureza, com a presença obrigatória do rio
Jordão, mas em que a povoação que se vislumbra ao fundo representa a cidade de Bruges.
Em segundo plano, do lado esquerdo está representada a pregação de João Batista e, do
lado oposto, entre as árvores da floresta, alguns dos discípulos em torno de uma
personagem vestida de vermelho que poderá ser, novamente, João Batista. A obra
transparece o grande cuidado do pintor que, como era próprio da pintura flamenga do
seu tempo, procurava representar tudo com o maior realismo possível capaz de rivalizar
com a própria natureza. Prova disso é o detalhe que ilustramos na figura 18 onde se pode
ver a difícil representação das pernas de Jesus vistas através da transparência das águas do
rio Jordão. Do mesmo modo se percebe o trabalho minucioso que define as plantas, as
Figura 18
Batismo de Jesus (c. 1505). Gerard David. Pormenor da
figura anterior
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flores, as rochas, o brocado da capa de asperges e as carnações. Naturalmente que, para a
época, o tema era também um pretexto para evidenciar os dotes artísticos e o
virtuosismo técnico do seu autor que com a sua capacidade artística representava a
natureza e outros elementos com a maior perfeição.
Por fim, apresentamos a figura 19 que continua a revelar a imensa evolução do
tema. Nesta pintura de Guido Reni (1575-1642), Jesus, coberto apenas com o perizonium,
está imerso num minúsculo curso de água. Situado a nível inferior a João Batista e
inclina-se para a frente numa atitude que transparece humildade e submissão, o que está
de acordo com os textos bíblicos. A rigidez dos corpos de outrora deu lugar ao
contraposto de Jesus e aos movimentos delicados de todas as personagens representadas.
Por sua vez, a injustificada nudez de João não encontra suporte em termos
históricos, mas explica-se pelo fato dos temas
religiosos, conhecerem uma intensa
secularização e, como tal, terem começado a
perder o seu profundo significado espiritual e
serem usados como pretexto para expor o
virtuosismo técnico do artista. O profeta segura
na mão direita um pequeno recipiente metálico
e derrama água sobre a cabeça de Jesus
cumprindo o ritual de Purificação. Três anjos
de cabelos louros e segurando nas mãos as
vestes de Jesus, ocupam o segundo plano. O
significado da sua presença está longe do que
encontrámos nas representações ligadas à
tradição bizantina, mas a sua figuração
permaneceu como uma caraterística
iconográfica do tema. A atenção dos anjos situa-
se na figura do Filho de Deus sobre o qual se vê a pomba do Espírito Santo vinda do alto
(Teofania), de um espaço dourado, símbolo da divindade, que se abre entre as nuvens. A
vegetação presente tenta reproduzir a que o pintor imaginou existir nas margens do
Figura 19
Batismo de Jesus (c. 1623) Guido Reni.
Vienna, Kunsthistorisches Museum.
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Jordão. Nesta pintura, ao invés de outras anteriores, a água apesar de fundamental para o
tema, torna-se um elemento de reduzida importância e fraca presença na composição.
A última das alusões simbólicas a que nos referimos apresenta a água como
sendo o elemento que materializa o milagre. Para ilustrar esta situação recorremos a dois
episódios: um do Antigo e outro do Novo Testamento. Em primeiro lugar analisaremos
a cura de Naamã, um general dos exércitos do rei da Síria, guerreiro valente e um
homem respeitado por todos e que contava imensas vitórias. Porém estava marcado por
uma doença terrível e temível no seu tempo: a lepra. O episódio está descrito do seguinte
modo:
Naamã, general dos exércitos do rei da Síria, gozava de grande prestígio
diante do seu amo e era muito estimado, porque, por meio dele, o
Senhor salvou a Síria; era um homem robusto e valente, mas leproso.
[…] Eliseu mandou dizer-lhe por um mensageiro: «Vai, lava-te sete vezes
no Jordão e a tua carne ficará limpa. […] Naamã desceu ao Jordão e
lavou-se sete vezes, como lhe ordenara o homem de Deus e a sua carne
tornou-se como a de uma criança e ficou limpo. (2 Rs 5, 1-14).
Neste caso, a água não é
referida como fator de limpeza externa,
já que, por si só, não seria suficiente
para promover a cura da lepra, mas sim
como sinal exterior, visível, de uma
ação extraordinária de Deus que realiza
a cura de Naamã e a regeneração do seu
corpo mediante a imersão nas águas do
rio Jordão. As figuras 20 e 21 ilustram
este milagre.
Na figura 20, uma iluminura
do século XII, mostra como a cura de
Naamã se fica a dever à ação de Deus: do
alto, entre um cirro de nuvens surge a mão de Deus símbolo do poder divino que através
Figura 20
Cura de Naamã (séc. XII) iluminura.
London, British Museum.
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da Palavra (o gesto da mão corresponde ao gesto oratório) realiza o milagre, curando
Naamã, depois deste se ter lavado sete vezes no rio Jordão, identificado pela inscrição
latina «IORDANEM». O artista fez sobressair da mão de Deus três raios que se dirigem
para Naamã e o envolvem completamente reforçando a presença da Santíssima Trindade
nesta ação curadora, tal como indica a inscrição latina «CVRATIO NAMAM».
Ocupando o lado esquerdo encontram-se três personagens servos do general sírio,
identificados pela inscrição latina «FAMVLI».
Na imagem não existe qualquer alusão à paisagem circundante além do rio,
também ele identificado por uma inscrição latina e representado com forte presença
estando o movimento das suas águas assinalado mediante linhas onduladas. Naamã é
representado completamente despido e imerso nas águas do Jordão até á cintura,
olhando para o alto e erguendo as mãos em sinal do reconhecimento da sua cura.
A figura 21 também reproduz uma iluminura, neste caso do Speculum Humanae
Salvationis, (século XV), na qual a iconografia da cura se apresenta mais detalhada nos
seus pormenores, mas não se verifica a presença de Deus. Assim, voltamos a presenciar a
figura de Naamã, que, deixando as roupas na margem se lava no rio, tendo diante de si
dois dos servos que o acompanhavam. Na margem oposta uma figura solene com vestes
dignas sustenta um cajado na mão
direita e com a esquerda aponta na
direção do general sírio. Poderá tratar-
se do próprio profeta Eliseu que
indicou a Naamã o que deveria fazer
para ser curado da lepra.
A cena tem lugar numa
paisagem com abundantes pormenores:
o rio Jordão que se bifurca e ocupa
todo o eixo central do espaço, as
árvores nas suas margens, os campos
verdejantes a perder de vista e mesmo a
Figura 21
Cura de Naamã (séc. XV). Miniatura do Speculum
Humanae Salvationis (Ms139-folio 14r) Chantilly,
Musée Condé.
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representação de uma cidade, provavelmente a cidade da Samaria onde vivia o profeta
Eliseu.
O episódio do Novo Testamento selecionado para ilustrar a dimensão simbólica
da ação da água é o milagre de Jesus nas Bodas de Caná. O relato consta apenas no
Evangelho de São João e o texto apresenta-se do seguinte modo:
Ao terceiro dia, celebrava-se uma boda em Caná da Galileia e a mãe de
Jesus estava lá. Jesus e os seus discípulos também foram convidados para
a boda. Como viesse a faltar o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: «Não têm
vinho!» Jesus respondeu-lhe: «Mulher, que tem isso a ver contigo e
comigo? Ainda não chegou a minha hora.» Sua mãe disse aos serventes:
«Fazei o que Ele vos disser!» Ora, havia ali seis vasilhas de pedra
preparadas para os ritos de purificação dos judeus, com capacidade de
duas ou três medidas cada uma. Disse-lhes Jesus: «Enchei as vasilhas de
água.» Eles encheram-nas até cima. Então ordenou-lhes: «Tirai agora e
levai ao chefe de mesa.» E eles assim fizeram. O chefe de mesa provou a
água transformada em vinho, sem saber de onde era - se bem que o
soubessem os serventes que tinham tirado a água; chamou o noivo e
disse-lhe: «Toda a gente serve primeiro o vinho melhor e, depois de
terem bebido bem, é que serve o pior. Tu, porém, guardaste o melhor
vinho até agora! (Jo 2, 1-10)
A água neste episódio é também
o meio pelo qual Jesus realiza uma ação
extraordinária, convertendo-a em vinho
e, segundo indicação do texto, o melhor
vinho servido na boda. O texto permite
imaginar alguns detalhes específicos: a
presença dos noivos, o ambiente de festa
próprio de um casamento, a sala ou o
espaço onde decorre o banquete, a
presença dos convidados, os serventes
e, naturalmente a figuração de Jesus,
sua mãe e os apóstolos que o relato indica terem sido convidados juntamente com seu
Figura 22
Milagre de Jesus nas Bodas de Caná. (1303-1305)
Giotto di Bondone. Padova, Capella degli Scrovegni.
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mestre. O texto refere pormenorizadamente que o prodígio envolveu seis vasilhas,
aspeto importante a ter em conta na análise das pinturas.
O milagre ganhou importância por ter sido o primeiro realizado por Jesus após
ter iniciado a sua vida pública. No episódio sobressai a recusa inicial de Jesus perante a
informação dada por sua mãe e, depois, a sua anuência à realização de um feito
extraordinário perante a firme certeza de Maria de Nazaré numa ação extraordinária de
seu Filho que viesse a livrar os noivos de uma grande humilhação por falta de vinho. Por
isso, apesar da resposta fria e distante de Jesus, ela se dirige aos serventes com a
recomendação de estarem atentos ao que lhes vai ser pedido por Jesus. A Igreja também
entende que este episódio constitui uma alusão à Eucaristia, motivo pelo qual igualmente
se justifica a sua imensa difusão nas artes plásticas ao longo dos séculos.
A ação de Jesus foi muito simples e
discreta: mandou encher de água seis vasilhas que
estavam destinadas à purificação dos judeus e pede
que sejam levadas ao chefe da mesa o qual era o
responsável para que nada faltasse. Sem que este
soubesse o que tinha acontecido provou o vinho
para autorizar que fosse servido e mostra a sua
admiração por estará ser servido em segundo lugar
o melhor vinho.
As opções dos artistas são muito variadas
tanto na composição, quanto no ambiente criado
ou na quantidade de pormenores representados. Na
inúmera variedade de obras selecionámos apenas
quatro para analisar.
A primeira é o afresco de Giotto da
Capella degli Scrovegni ilustrado na figura 22. Numa sala de reduzidas dimensões,
desenhada com evidentes dificuldades perspécticas, são representadas somente onze
pessoas. Entre elas encontra-se, do lado esquerdo, Jesus e alguns apóstolos, os noivos ao
Figura 23
Milagre de Jesus nas Bodas de Caná
(séc. XV). Bernat Martorell Catedral de
Barcelona Altar da Transfiguração.
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centro e ao lado da Virgem Maria, os serviçais e, por fim, o chefe da mesa que se
encontra a provar o vinho e se converte, em parte, num dos centros de atenção, dada a
sua importância para a confirmação do milagre. O conhecimento das escrituras levou o
pintor a representar seis talhas, mantendo-se, assim, fiel ao relato. Na extremidade
direita, um dos serviçais, a três quartos voltado de costas para o observador derrama água
com um cântaro diretamente para as seis vasilhas. A água das vasilhas já não serve para a
purificação, mas tornou-se o meio pelo qual se consumou o milagre.
A figura 23 ilustra o mesmo tema no qual o pintor procurou chamar a atenção
para a dimensão e importância deste primeiro milagre de Jesus através da forte presença
das seis talhas na composição. O seu tamanho, a cor clara e a colocação tornam evidente
que o artista pretende destacar as vasilhas e, portanto, o milagre. A pintura, altamente
descritiva, como era próprio da arte medieval, ilustra diferentes momentos do
acontecimento. Assim vemos por detrás das talhas a figura da Virgem Maria que fala
com seu Filho pedindo a sua intervenção. Jesus, com nimbo crucífero tem atrás de si os
apóstolos que, com Ele, foram convidados para as Bodas. Os seus gestos são a expressão
da pergunta que coloca à sua mãe e, ao mesmo tempo da sua ligação com os momentos
seguintes e o iminente milagre. Com efeito do lado direito da pintura uma das serviçais,
colocada ao centro da composição e em grande plano, verte a água de um recipiente de
madeira para o interior de uma das vasilhas, enquanto a sua companheira transporta
água para o mesmo fim, o que mostra que Jesus já teria dado a ordem para encher de
água as talhas.
Nos planos de fundo, sentados à mesa, estão seis personagens. Chama à atenção
a figura de um homem idoso, de barbas brancas vestido de negro. Na sua mão esquerda
segura o cálice com que acabou de provar a água transformada em vinho e elogia a
qualidade do vinho. É, portanto, o chefe da mesa. Diante dele outro serviçal explica de
onde provém aquele vinho, apontando com a mão esquerda para a figura de Jesus. Os
noivos ao cimo e ao centro do espaço pictórico, mediante os seus gestos, parecem estar
surpreendidos com as explicações dadas pelo chefe da mesa e o fato de estar a ser servido,
agora, o melhor vinho. As duas figuras da esquerda parecem também conversar entre si
de algo que os deixou admirados.
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Numa composição muito condensada de personagens e de significado o artista
conseguiu reunir uma grande parte da narrativa do milagre da transformação da água em
vinho que pretendeu tornar bem visível ao colocar em primeiro plano á agua derramada
para as vasilhas de enormes proporções e de cor apelativa.
Uma representação muito diferente da anterior é a que ilustramos na figura 24.
De uma complexidade extrema, esta famosa pintura de Véronèse incorpora tantos
elementos, personagens, arquiteturas, atividades, perspectiva, animais e outros
pormenores que o episódio que motivaria esta pintura: o milagre de Jesus nas Bodas de
Caná, passa quase despercebido e absorvido pelo ambiente envolvente. Na verdade o
pintor representa uma verdadeira festa veneziana na qual incorporou o tema do primeiro
milagre de Jesus. Com alguma dificuldade, nesta composição magistral, consegue-se
vislumbrar a figura de Cristo e sua mãe, ao centro por baixo da linha horizontal formada
pela balaustrada. Também o ato de encher as talhas e a prova do vinho pelo chefe da
mesa se encontram representados no lado direito da pintura, mas quase absorvidos pelas
personagens e atividades envolventes. A ação simbólica da água ao ser transformada em
vinho, não é o motivo que se destaca de imediato nesta pintura, o que mostra que, por
vezes, os temas são meros pretextos para grandiosas composições.
Figura 24
Milagre de Jesus nas Bodas de Caná (1562-63). Véronèse.
Paris, Musée du Louvre.
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Por fim, ilustramos na figura 25, a grandiosa pintura de Julius Schnorr von
Carolsfeld (1794-1872), a qual consegue um grande equilíbrio entre as duas obras
anteriores. Com efeito, são múltiplas as personagens, os espaços, as arquiteturas, os
detalhes, porém não lhes confere o domínio da obra de modo a diluir o tema principal.
O milagre de Jesus fica bem evidenciado porque ocupa o primeiro plano, sendo dada à
água o merecido destaque. Diante de Jesus, encontram-se as seis vasilhas de pedra que são
o centro de atenção de diversas pessoas, entre elas da mãe de Jesus e do apóstolo João que
se encontram detrás de Jesus e também de outras figuras do primeiro plano. A fonte de
água e a sua relação com as talhas é muito clara e o gesto de Jesus indica a iminência do
milagre, estabelecendo, assim, o simbolismo da água enquanto elemento que materializa
o milagre.
Considerações finais
Depois de esclarecermos a importância da água para o povo hebreu, dada a
relativa aridez do seu território, comprovámos que são imensas as referências à água nos
textos bíblicos, tanto no Antigo como no Novo Testamentos. Ela é referida sob as mais
diversas utilizações e para variados fins que procurámos sintetizar em apenas três
Figura 25
Milagre de Jesus nas Bodas de Caná (1820) Julius Schnorr von Carolsfeld.
Hamburg, Hamburger Kunsthalle
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categorias, conforme a sua ação era positiva, negativa ou simbólica. Para cada uma destas
variantes apresentámos alguns episódios das Sagradas Escrituras que serviram de base aos
artistas e foram imprescindíveis para entender a iconografia da água que lhes estava
associada.
As pinturas que incorporam a água, tal como as passagens bíblicas que lhe
deram origem são muito numerosas e a presença da água encontra-se assinalada com
graus de importância diferenciados, de acordo com a fonte literária, o seu significado, e a
imaginação e criatividade de cada pintor. Verificamos que os artistas interpretam os
textos com certa fidelidade e os ilustram segundo a cultura e os conhecimentos da época,
servindo-se do tema da água para criar composições mais simples ou grandiosas que
servem não só como representação dos textos, mas também a função pedagógica e
catequética da Igreja junto dos crentes, atitude soube conservar ao longo dos séculos.
A vastidão do tema levar-nos-ia a um trabalho demasiado extenso, que não se
enquadrava no âmbito da presente publicação, pelo que foi necessário apresentar,
somente, uma breve síntese, deixando por referir nomes e obras de arte muito
importantes, mas que serão devidamente tratados em futuros trabalhos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia Sagrada. Lisboa/Fátima: Difusora Bíblica, 2002.
CHISESI, Ino. Dizionario Iconografico. Milano: RCS Libri, 2000.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de Símbolos. Barcelona: Editorial Labor, SA.
1992
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ESTEBAN LORENTE, Juan Francisco. Tratado de Iconografía. Madrid: Ed. Istmo,
1998.
OLIVEIRA, Oséias Gomes. Concordância Bíblica Exaustiva – Joshua. Rio de janeiro:
Ed. Central Gospel, [s. d.], 4 vols.
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano. Barcelona: Ed. del Serbal, 1996, Tomo
1/Vol. 2.