a acupuntura no ocidente

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1 Print ISSN 0102-311X Cad. Saúde Pública vol.6 no.2 Rio de Janeiro Apr./June 1990 doi: 10.1590/S0102-311X1990000200002 ANÁLISE/ANALYSIS A acupuntura no ocidente Guido Palmeira Pesquisador do DEMQS/ Ensp/ Fiocruz RESUMO O reconhecimento da eficácia da acupuntura não depende da demonstração empírica de seus resultados. Problemas metodológicos e conceituais dificultam o estabelecimento de seu valor terapêutico, com base na ciência ocidental moderna. Por outro lado, o crescimento da demanda e da oferta de terapias alternativas (entre elas a acupuntura) implica em certa legitimação, que depende mais do reconhecimento da utilidade dessas práticas, do que da demonstração de sua cientificidade. A crise da ‘medicina científica’ e de seu paradigma mecanicista pode ser um dos fatores responsáveis pela maior aceitação da acupuntura no Ocidente. Se isto é verdade, os estudos científicos sobre acupuntura serão de pouca utilidade, enquanto persistirem em negar a possibilidade de uma medicina que tem a sua lógica própria, diferente daquela da ciência ocidental. Talvez a maior colaboração que o Oriente possa trazer à medicina ocidental não esteja na sua técnica, mas no seu saber. No entanto, é apenas através da compreensão da cultura e da civilização chinesas, da aceitação de que Yin e Yang se organizam em um sistema coerente, que o saber tradicional pode ser realmente apreendido. ABSTRACT The recognition of acupuncture's effectiveness doesn't depend on the empirical demonstration of its results. There are methodological and conceptual barriers to the establishment of its therapeutical value, on a scientific basis.

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A Acupuntura No Ocidente

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    Print ISSN 0102-311X

    Cad. Sade Pblica vol.6 no.2 Rio de Janeiro Apr./June 1990

    doi: 10.1590/S0102-311X1990000200002

    ANLISE/ANALYSIS

    A acupuntura no ocidente

    Guido Palmeira

    Pesquisador do DEMQS/ Ensp/ Fiocruz

    RESUMO

    O reconhecimento da eficcia da acupuntura no depende da demonstrao emprica

    de seus resultados. Problemas metodolgicos e conceituais dificultam o

    estabelecimento de seu valor teraputico, com base na cincia ocidental moderna.

    Por outro lado, o crescimento da demanda e da oferta de terapias alternativas (entre

    elas a acupuntura) implica em certa legitimao, que depende mais do reconhecimento

    da utilidade dessas prticas, do que da demonstrao de sua cientificidade.

    A crise da medicina cientfica e de seu paradigma mecanicista pode ser um dos fatores responsveis pela maior aceitao da acupuntura no Ocidente. Se isto

    verdade, os estudos cientficos sobre acupuntura sero de pouca utilidade, enquanto

    persistirem em negar a possibilidade de uma medicina que tem a sua lgica prpria,

    diferente daquela da cincia ocidental. Talvez a maior colaborao que o Oriente possa

    trazer medicina ocidental no esteja na sua tcnica, mas no seu saber. No entanto,

    apenas atravs da compreenso da cultura e da civilizao chinesas, da aceitao de

    que Yin e Yang se organizam em um sistema coerente, que o saber tradicional pode ser realmente apreendido.

    ABSTRACT

    The recognition of acupuncture's effectiveness doesn't depend on the empirical

    demonstration of its results. There are methodological and conceptual barriers to the establishment of its therapeutical value, on a scientific basis.

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    On the other hand, the increase of demand and supply of alternative therapies implies

    in a certain legitimation, which depends rather on the recognition of the utility of these

    practices, than on the demonstration of its scientific status. The crisis of the "scientific

    medicine" and its mechanistic paradigm may be one of the factors influencing the

    acceptation of acupuncture in the West. If this is true, scientific studies on acupuncture

    won't be very useful unless they admit the possibility of a medicine which has its own

    logic, different from the western science.

    Perhaps the greatest contribution brought by the East to the western medicine is its

    knowledge, and not its technique. But it's only through the understanding of the

    chinese culture and civilization, the acceptance that Yin and Yang form a coherent system, that the tradicional knowledge can be really seized.

    INTRODUO

    Temos assistido a um crescente interesse pelas chamadas "prticas alternativas de

    sade". Sob esta designao genrica, destacam-se, pela freqncia com que so

    mencionados, especificamente, o uso de plantas medicinais, a homeopatia e a

    acupuntura.

    No Brasil, a acupuntura j vinha sendo incorporada como alternativa teraputica, em

    geral associada a procedimentos da medicina cientfica ocidental, em vrios hospitais

    universitrios, desde o incio dos anos 80. A homeopatia foi reconhecida como

    especialidade mdica pelo Conselho Federal de Medicina em 1980, passando a ser

    oferecida como opo teraputica, em algumas unidades da Previdncia Social, desde 1986.

    Durante o ltimo Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, o assunto mereceu destaque

    atravs de "Comunicaes Coordenadas". Sob o ttulo geral de "Proposies

    alternativas de assistncia sade", discutiram-se a histria e a "fundamentao

    cientfica" da homeopatia e da acupuntura, as experincias de implantao dessas

    prticas na rede pblica, em vrios Estados da Federao, e os problemas existentes para estender as 'prticas alternativas' ao SUS.

    Vale observar que a oferta de "terapias alternativas" pelo servio pblico foi precedida

    da multiplicao de consultrios privados de homeopatia e acupuntura, o que supe a

    existncia de uma demanda especfica a este tipo de terapia, por parte de uma parcela

    da populao que pode pagar por servios de sade privados. Por outro lado, a

    aceitao dessas prticas, pelos usurios dos servios pblicos, tem mostrado que esta

    demanda no exclusiva daquela parcela da populao.

    A oferta de tratamentos por ervas, homeopatia ou acupuntura por servios pblicos de

    sade supe o reconhecimento oficial de sua utilidade. Esse reconhecimento vem

    sendo buscado e, em certa medida, tem sido conquistado, atravs de diversos

    argumentos e estratgias. Pretende-se, neste artigo, discutir, no caso especfico da

    acupuntura, algumas questes decorrentes dos caminhos pelos quais se tem buscado

  • 3

    sua legitimao no ocidente. Cabe observar que, uma vez que as estratgias para a

    legitimao so as mesmas, tanto para a acupuntura quanto para a homeopatia e para

    o uso de ervas medicinais, consideraes semelhantes tambm poderiam ser feitas em relao a estas prticas.

    O APELO DEMONSTRAO EMPRICA DO SUCESSO DO MTODO

    O relato de curas, muitas vezes espetaculares, com o uso da acupuntura, tem sido

    recurso freqente. O sucesso da anestesia com acupuntura, em diferentes cirurgias,

    tem produzido um grande impacto no ocidente desde a dcada de 70; os casos

    observados por Bland foram, nas suas prprias palavras, "suficientes para provar o valor da acupuntura como tratamento e como anestsico." (Bland, 1979),

    Verifica-se, no entanto, que a demonstrao emprica dos resultados obtidos com a

    acupuntura, por si s, tem se mostrado insuficiente para o reconhecimento da sua

    eficcia teraputica, pois tais resultados so interpretados pelos cticos como embuste

    ou, na melhor das hipteses, como conseqncia de pura sugesto; segundo estes, as agulhas agiriam, no mximo, como placebo.

    A preocupao de mostrar que os resultados obtidos com a acupuntura no se devem

    a sugesto est presente no discurso de Huan Xiang Ming (vice-diretor do Instituto de

    Pesquisa Mdica Chinesa, em Xangai), em um seminrio patrocinado pela OMS na

    China, em 1979 (ver: A Sade do Mundo 12/79): "o xito da anestesia por acupuntura

    e a cura da disenteria bacilar pela acupuntura abalaram a opinio de que o efeito

    desse procedimento no passa de uma iluso psicolgica' (Huan Xiang Ming, 1979),

    ou, nas palavras de Bland: "... mas se a funo anestsica da acupuntura

    'puramente mental' (aspas no original), como explicar que as agulhas parecem ser igualmente eficientes na veterinria?" (Bland, 1979),

    Se, por um lado, o ceticismo continua presente no ocidente, de outro, muitos autores

    ocidentais j compartilham da opinio de que "... o nmero de casos estudados

    fornece alguma indicao da presena de um fenmeno que requer investigao adicional". (Patel, 1987).

    A BUSCA DE UMA 'EXPLICAO CIENTFICA' PARA OS EFEITOS E MECANISMOS DE AO DA ACUPUNTURA

    A tentativa de demonstrar a cientificidade da acupuntura tarefa a que vm se

    dedicando inmeros acupuntores, desde o incio do sculo. As pginas preliminares de

    " L'Acupuncture Chinoise", publicada na Frana por Souli de Morant, em 1939, e que

    marcou o renascimento do interesse pela acupuntura no ocidente, j mostram certa

    preocupao neste sentido. Os trabalhos de Noboyet, demonstrando a diferena da

    resistncia eltrica da pele nos pontos de acupuntura, "que permitiu a deteco dos

    pontos por multivoltmetros" (Cintract, 1982), foram publicados, inicialmente, em

    1955.

    Neste perodo, a medicina cientfica alcanava grande prestgio. A descoberta dos

    antibiticos, das vacinas e do DDT levavam crena de que, com o desenvolvimento

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    da tecnologia, seriam erradicados, um a um, os agentes etiolgicos especficos de cada

    uma das doenas conhecidas. O desenvolvimento da acupuntura e sua credibilidade

    dependiam, neste contexto, de que se pudesse demonstrar alguma cientificidade no mtodo das agulhas.

    Entre 1912 e 1949, mesmo na China, verificaram-se tentativas de eliminar a prtica da

    medicina tradicional, sob a alegao de que no tinha bases cientficas. Segundo Cai

    Jing Feng, "... antes da fundao da Nova China, em 1949, o conflito entre a medicina

    tradicional chinesa e a medicina ocidental foi, basicamente, a luta do sistema

    tradicional em continuar existindo, contra a idia reacionria e subjetiva de que o

    sistema tradicional era retrgrado e no-cientfico", (Ca Jing Feng, 1988).

    Aps a revoluo socialista de 1949, a poltica oficial do governo chins passa a ser a

    da integrao entre os dois sistemas. Os mdicos chineses, de estilo ocidental', so

    encorajados a aprender a medicina tradicional e, ao mesmo tempo, incentivados a

    estud-la com base em mtodos cientficos modernos. Um dos artigos da constituio

    chinesa estipulava que: "A nao, no desenvolvimento de cuidados de sade e de

    programas de higiene, desenvolveria a medicina moderna e a tradicional". (citado por Cai Jing Feng, 1988).

    Em 1979, Huan Xiang Ming declarava (no seminrio j referido) que "A pesquisa

    cientfica voltou (com Hua Kuo Feng) a ser chamada a desempenhar uma atividade

    fundamental em nossa construo socialista e para nossas quatro modernizaes; o

    campo da pesquisa acadmica volta a recender a doura da primavera" (Huan Xian

    Ming, 1979), e Bland falava dos estudos desenvolvidos na China "envolvendo o

    emprego de aparelhos eletrnicos altamente complexos... (que) esto se aprofundando nos mistrios das endorfinas." (Bland, 1979).

    Aos poucos, a resistncia inicial ao emprego da acupuntura, no ocidente, vai sendo

    substituda pela opinio de que vantajosa a integrao entre os dois sistemas, o

    "progresso da integrao do conhecimento tradicional com o mtodo cientfico" visto

    por alguns representantes da academia ocidental como "uma grande promessa". (Kao, 1979).

    Se, durante a primeira metade do sculo, os estudos 'cientficos' procuravam,

    sobretudo, a confirmao da existncia dos meridianos (1) e pontos descritos pela

    tradio, atravs da sua demonstrao anatmica, a grande maioria dos estudos mais

    recentes de ensaios clnicos que procuram medir a eficcia da acupuntura no

    tratamento de patologias especficas, ou de investigaes que buscam elucidar os

    mecanismos de ao das agulhas, principalmente pela identificao de substncias

    neurotransmissoras envolvidas nos fenmenos de analgesia e anestesia com

    acupuntura. Os artigos relacionados no Index Medicus dos primeiros cinco meses de

    1989, a maioria publicada em revistas chinesas ou de pases da Europa oriental, mostram claramente esta tendncia.

    Os estudos publicados no ocidente, na maioria dos casos ensaios clnicos onde se

    busca avaliar a eficcia da acupuntura no tratamento de dores crnicas de diferentes

    etiologias e localizaes anatmicas, em geral, tm apresentado importantes deficincias metodolgicas. (Lewith, 1984 e Patel, 1987).

    Muitos estudos foram realizados com pequeno nmero de pacientes, prejudicando a

    aplicao de testes de significncia estatstica. Em muitos casos, os critrios para a

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    seleo inicial dos pacientes a serem includos no estudo so imprecisos ou mal

    definidos; em outros, os critrios para a definio do que deve ser considerado sucesso ou falha do tratamento no foram bem estabelecidos desde o incio do estudo.

    Um dos freqentes problemas metodolgicos est na dificuldade de se obterem

    estudos cegos. Se o grupo-controle for submetido a procedimentos teraputicos,

    claramente distintos da acupuntura (tratamento mdico ocidental, injeo de

    anestsicos e/ou esteroides etc), tanto pacientes como terapeutas tm,

    necessariamente, conhecimento do grupo (experimental ou controle) a que cada

    membro do estudo pertence. Ao contrrio do que ocorre com a comparao entre duas

    drogas, cujas apresentaes podem ser indistintas, quando se utiliza a prpria

    acupuntura como placebo (agulhas inseridas fora dos pontos de acupuntura)

    impossvel impedir que o terapeuta, um acupuntor que conhece a localizao precisa

    dos pontos, identifique os pacientes que pertencem ao grupo experimental, que

    recebem o tratamento adequado, e aqueles que compem o grupo-controle, tratados com 'acupuntura placebo'.

    Depois de chamar a ateno para o fato de que a insero aleatria das agulhas no

    tem apenas um efeito placebo, Lewith afirma que "... difcil definir um placebo vlido

    que pode ser usado, consistentemente, sem o conhecimento dos terapeutas"', e

    acrescenta que, dadas as diferenas individuais dos pacientes no que tange resposta

    ao tratamento com acupuntura, os ensaios cruzados so "virtualmente impossveis", dificultando que os estudos possam ser definidos em bases comparveis.

    Enquanto a acupuntura tradicional baseia o tratamento no entendimento tradicional da

    doena, seleciona os pontos a serem picados em funo das necessidades individuais

    dos pacientes e, no curso do tratamento, modifica os pontos utilizados, segundo a

    variao das necessidades dos doentes, na maioria dos estudos examinados por Patel,

    os pontos so selecionados com base no diagnstico da medicina cientfica. Identifica-

    se um conjunto de pontos definidos a priori como indicados para a patologia em

    questo, que sero utilizados maneira de uma frmula ou prescrio que no varia

    de um doente para outro, e que no modificada durante o tratamento. Considera-se

    que tais diferenas podem prejudicar, significativamente, os resultados do mtodo

    tradicional.

    O mesmo autor chama a ateno para o fato de que a maioria dos ensaios tem como

    objetivo avaliar os efeitos da acupuntura sobre a dor, embora o principal objetivo da

    medicina tradicional seja a preveno da doena e a manuteno da sade, restando

    ao tratamento da doena um papel secundrio e, ao alvio da dor, uma funo apenas

    complementar; e sugere a utilizao de indicadores que possam medir o 'estado de sade global' dos pacientes, a principal preocupao da teraputica tradicional.

    Os dois autores, Lewith e Patel, consideram que os estudos desenvolvidos no ocidente

    so insuficientes para estabelecer, definitivamente, o valor teraputico ou analgsico

    da acupuntura. Por outro lado, ambos concordam em que necessrio realizar estudos

    mais bem elaborados, seja para justificar a eficcia da acupuntura como tratamento,

    seja como uma resposta da comunidade cientfica ao crescimento da utilizao da medicina alternativa.

    Embora os estudos cientficos no permitam concluses definitivas, o reconhecimento

    de vantagens da acupuntura tem sido um argumento em favor de sua utilizao no

    ocidente. A partir dos anos 60, o prestgio da medicina cientfica comeava a ser

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    abalado, as campanhas de erradicao, iniciadas na dcada de 50, com raras

    excees, haviam malogrado (a este respeito, ver Yekutiel, 1981); a idia de causa

    nica, nascida no incio do sculo, da demonstrao de agentes etiolgicos especficos

    para cada uma das doenas infecciosas, vinha se mostrando inadequada para a

    compreenso das doenas crnico-degenerativas, que assumiam importncia cada vez maior no quadro nosolgico dos pases industrializados.

    A cincia mdica reconsiderou a importncia dos fatores ambientais e scio-culturais

    na determinao das doenas. As patologias crnico-degenerativas passaram a ser

    descritas em termos de distrbios celulares; para seu estudo, diagnstico e tratamento

    foi necessrio aumentar a preciso tanto da medio de constantes vitais, como da

    identificao de metablitos especficos, envolvidos na gnese de diferentes patologias.

    A tecnologia mdica desenvolveu instrumentos de investigao diagnstica cada vez

    mais sofisticados e caros. O objetivo de erradicao das doenas transferiu-se para o

    da extenso de cobertura de servios de sade; ganhava espao a idia de que a

    sade funo da assistncia mdica individual; e o acesso aos servios de sade passou a ser reivindicados por um contingente cada vez maior da populao.

    Segundo Bland, um delegado da OMS na Europa ocidental, no mesmo seminrio de

    1979 (ver: A Sade do Mundo 12/79), declarava que: "... a forma praticvel de

    introduzir servios gerais de sade, em condies, de atender a todos no ano 2000",

    seria atravs de "mdicos descalos", que em "... um curso de 18 meses...

    aprenderiam as tcnicas de acupuntura, o emprego de ervas medicinais e outras

    formas de tratamento... trabalhariam em reas rurais, e constituiriam a linha de vanguarda contra a doena" (citado por Bland, 1979).

    A LEGITIMAO DAS MEDICINAS ALTERNATIVAS E A CRISE DA MEDICINA CIENTFICA

    Apesar das dificuldades em provar seu valor teraputico com suficiente rigor cientfico,

    o crescimento da demanda e da oferta de terapias alternativas (inclusive pelo servio

    pblico) implica em certa legitimao no-acadmica dessas prticas. Existem indcios

    de que, hoje, a legitimao das prticas alternativas no depende apenas do

    reconhecimento de sua cientificidade, mas tambm do reconhecimento de sua utilidade

    teraputica; ao contrrio do que era dado pensar durante a primeira metade do sculo,

    quando o reconhecimento da utilidade teraputica de qualquer mtodo estava intimamente relacionado ao reconhecimento de sua cientificidade.

    Aparentemente, tal mudana est relacionada crise da medicina moderna. Se, por

    um lado, como veremos, alguns autores identificam a crise da medicina cientfica com

    a crise de seu paradigma, por outro, as prticas alternativas esto orientadas por

    paradigmas suficientemente distintos daqueles da medicina cientfica para que sejam identificadas exatamente como "alternativas" a esta ltima.

    Queiroz fala de uma "crise profunda" da prtica e do saber da cincia mdica moderna,

    que "... se refere crise de seu paradigma dominante... o positivismo", e cujo sintoma

    principal "... produzir servios extremamente caros e ineficazes" mostra que "...

    historicamente, o desenvolvimento da medicina (cientfica) implicou a perda de uma

    viso unificadora do paciente, e deste com seu meio ambiente fsico e social" e que

    este "... um fenmeno recente e sem similar, quando confrontado com sistemas

    mdicos no-ocidentais. Nesses sistemas mdicos alternativos... o fator social existe

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    como componente fundamental, ao contrrio do que ocorre com o paradigma

    dominante da medicina ocidental moderna." (Queiroz, 1986)

    Capra tambm reconhece, na "influncia do paradigma cartesiano sobre o pensamento

    mdico" a origem dos problemas da moderna medicina cientfica: "... ao reduzir a

    sade a um funcionamento mecnico, (a medicina moderna) no pode mais ocupar-se

    com o fenmeno da cura... a prtica mdica, baseada em to limitada abordagem (a

    cartesiana) no muito eficaz na promoo e manuteno da boa sade. De fato, essa

    prtica, hoje em dia, causa freqentemente mais sofrimento e doena, segundo alguns autores (cita Illich), do que a cura" (Capra, 1986).

    Lembra que "... a crescente dependncia da medicina em relao alta tecnologia

    suscitou um nmero de problemas que no so apenas de natureza mdica ou tcnica,

    mas envolvem questes sociais, econmicas e morais muito mais amplas". Fala do

    desenvolvimento da quimioterapia e do uso inadequado e abusivo de medicamentos,

    que "... tornaram-se um problema de sade pblica de alarmantes propores"\ da

    relao entre a complexificao tecnolgica do ato mdico e a proliferao de

    especialidades mdicas, que "... reforou a propenso dos mdicos de tratar partes

    especficas do corpo, esquecendo-se de cuidar do paciente como um ser total"\ e da

    transferncia da prtica mdica "... do consultrio do clnico geral para o hospital, onde

    se tornou progressivamente despersonalizada, quando no desumanizada."

    No deixa de referir-se "impressionante desproporo entre o custo e a eficcia da

    medicina moderna", destacando que "As intervenes biomdicas, embora

    extremamente teis em emergncias individuais, tm muito pouco efeito sobre a

    sade de populaes inteiras"; nem s doenas crnico-degenerativas, tidas pela

    cincia mdica "... como conseqncia inevitvel do 'desgaste' geral, para o qual no existe cura" (Capra, 1986).

    Considera ainda que, como conseqncia da "... imagem pblica do organismo

    humano... uma mquina propensa a constantes avarias se no for supervisionada por

    mdicos e tratada com medicamentos", no so valorizadas "... a noo do poder de

    cura inerente ao organismo e a tendncia para manter-se saudvel, ...a confiana do indivduo em seu prprio organismo, ... (ou) a relao entre sade e hbitos de vida"

    O mesmo autor, no captulo em que trata do "Holismo e Sade", acredita que "...

    podemos aprender com os modelos mdicos existentes em outras culturas" Embora

    no seja seu objetivo apresentar a medicina chinesa como prtica ideal, e apesar de

    advertir que "as comparaes entre sistemas mdicos de diferentes culturas devem ser

    feitas com todo o cuidado", reconhece que "... a noo chinesa do corpo como um

    sistema indivisvel de componentes intercalados est, obviamente, muito mais prxima

    da abordagem sistmica do que o modelo cartesiano clssico." Ressalta que, para a

    medicina chinesa, "... a doena no considerada um agente intruso, mas o resultado

    de um conjunto de causas que culminam em desarmonia e desiquilbrio... (e) ser, em

    dados momentos, inevitvel no processo vital... a sade perfeita no o objetivo

    essencial... o papel principal dos mdicos chineses sempre foi o de evitar o

    desequilbrio de seus pacientes. " Observa que as diferentes tcnicas teraputicas da

    medicina chinesa visam "... estimular o organismo do paciente de tal modo que ele

    siga sua prpria tendncia natural para voltar a um estado de equilbrio. Assim, um

    dos principais princpios da medicina chinesa sempre administrar uma terapia a mais branda possvel" (Capra, 1986).

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    Se a crescente aceitao da acupuntura, no ocidente, est relacionada crise da

    medicina cientfica; se, em conseqncia do alto custo da medicina tecnolgica,

    preciso referendar prticas no totalmente legitimadas pela cincia mdica, com o

    argumento de que so teis, mais simples e mais baratas (2); se a procura de terapias

    em princpio 'mais brandas' pode ser vista como resposta agressividade da

    interveno mdica tecnologizada; se a procura por uma medicina, cujos princpios so

    considerados 'mais holsticos' (Capra), pode significar uma reao segmentao do

    olhar da cincia mdica (explicitado pela profuso de especialidades e

    subespecialidades), ou mesmo desumanizao da prtica mdica hospitalar; ento a

    questo que se coloca no mais a da investigao dos mecanismos de ao da acupuntura, mas a investigao de seus princpios, de sua lgica, de seus paradigmas.

    A INTEGRAO DOS DOIS SISTEMAS NO OCIDENTE

    A acupuntura apenas uma das tcnicas teraputicas que compem um conjunto de

    saberes e procedimentos culturalmente constitudos, e dos quais no pode ser

    dissociada. Alm das agulhas, a medicina tradicional utiliza ervas, massagens,

    exerccios fsicos, dietas alimentares, e prescreve normas higinicas de conduta. Sua

    lgica a mesma que orientou toda a vida social da China, no perodo em que foi

    desenvolvida: o calendrio agrcola, as festas coletivas, os princpios de

    comportamento social, as regras de etiqueta no trato com as autoridades, a religio, a

    msica, a arquitetura... Os princpios tericos a partir dos quais as doenas so

    entendidas, classificadas e tratadas so os mesmos que servem para entender,

    classificar e lidar com as coisas do mundo', a natureza, o espao e o tempo. (A este

    respeito ver: Granet, 1968).

    Pretender que a eficcia de um saber que, segundo Cai Jing Feng, "tem controlado as

    maiores epidemias de doenas infecciosas na histria da China", deva-se a que a

    introduo de agulhas, em determinados pontos, tenha como conseqncia a liberao

    de mediadores bioqumicos que interferem no fenmeno da dor; e que o sucesso

    obtido pelos chineses com a acupuntura durante dois mil e quinhentos anos de

    desenvolvimento seja fruto apenas da acumulao de observaes empricas, fechar

    os olhos ao saber tradicional, descaracteriz-lo, optar por uma 'cegueira

    etnocntrica'.

    Embora os autores orientais considerem que a poltica de integrao entre os dois

    sistemas, praticada na China desde 1949, tenha permitido um grande desenvolvimento

    no s na ateno sade do povo chins, como da prpria medicina tradicional e o surgimento das tcnicas de anestesia cirrgica com acupuntura nos anos cinqenta

    testemunha que tm razo , a recproca pode no ser verdadeira.

    Nos ltimos quarenta anos, o oriente desenvolveu novas tcnicas teraputicas,

    associando o saber milenar com o saber e a tcnica ocidentais. Ao ocidente, que no

    domina o saber tradicional, ao contrrio, o nega restou a pobre e limitada perspectiva de procurar esclarecer, com seus prprios recursos tericos, os

    mecanismos de ao e os efeitos de uma tcnica oriental isolada em uma situao

    especfica, a dor. No ocidente, a procura da cientificidade da acupuntura, ao contrrio

    de esclarecer (ou legitimar) o saber que lhe d sentido, tem sido a busca da

    confirmao da hegemonia da cincia mdica, a possibilidade de faz-la capaz de

    explicar os efeitos at ento enigmticos das agulhas.

  • 9

    Se o crescimento da aceitao da acupuntura no ocidente pode ser o reflexo da crise

    da medicina cientfica, e se a crise da medicina ocidental se identifica com a crise de

    seu paradigma positivista; ento os estudos 'cientficos' da acupuntura pouco podero

    contribuir para a superao dessa crise, enquanto insistirem em negar a possibilidade

    de uma medicina, de uma cincia de dois mil e quinhentos anos, que tem a sua lgica prpria, diferente daquela da cincia ocidental.

    possvel (qui provvel) que a maior colaborao que o oriente possa trazer a

    medicina ocidental no esteja na sua tcnica, mas no seu saber, nos conceitos a

    respeito da natureza e da causalidade das doenas, na sua viso holstica do ser

    humano, na valorizao da tendncia autocura inerente ao organismo, no significado do "equilbrio" que se busca com a terapia.

    No entanto, para ter acesso ao saber tradicional, ser preciso compreender os seus

    princpios, poder perceber claramente o Yin e o Yang no mundo, e a possibilidade do

    Tao (3); ser preciso reconhecer na natureza, no cu e na terra, as seis energias e os

    cinco elementos, aprender a distinguir, no exame do paciente, onde est o frio e onde est o calor, onde esto as insuficincias e onde esto os excessos.

    Para ter acesso ao saber tradicional, ser preciso admitir a possibilidade de que estas

    categorias possam se organizar em um sistema coerente cuja lgica, que orientou

    tanto a ordenao biolgica quanto a ordenao social da China, durante a maior parte

    dos ltimos vinte e cinco sculos, deve ser apreendida no s pelo estudo da medicina,

    como pela compreenso da religio, da filosofia, dos costumes, enfim, da histria e da cultura da civilizao chinesa.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    (1) Meridianos so canais virtuais que percorrem todo o corpo, e pelos quais circula a energia vital Ch'.

    (2) Em nossa opinio, tanto a simplicidade quanto o baixo custo atribudos

    acupuntura so muito mais reflexo da falta de conhecimento mais profundo do

    mtodo, do que caractersticas reais da medicina tradicional chinesa.

    (3) O Yiang e Yin constituem um par de opostos complementares a que so

    relacionadas as dualidades/dades da natureza: dia x noite, claro x escuro, calor x frio,

    masculino x feminino, resistncia x complacncia, movimento x repouso, ... Granet

    reconhece o Yin e o Yang como 'smbolos' de grande poder sugestivo, uma vez que,

    constituindo uma dupla, evocam, agrupando em pares, todos os outros 'smbolos'.

    " o Tao que faz surgir ora o obscuro (Yin) ora o luminoso (Yang)" diz o I Ching (TA

    TAUN, Cap. 5). Granet comenta as diferentes possibilidades de traduo da expresso

    "Uma vez Yin, Uma vez Yang, o Tao" "primeiro o Yin, depois o Yang...", ou "aqui o Yin, l o Yang...", ou "um tempo Yin, um tempo Yang...", ou, ainda, "um lado Yin, um

    lado Yang..." (p. 104) segundo o autor, "como o Yin e o Yang, o Tao uma categoria concreta", uma totalidade "alternante e cclica", um "poder regulador'' que

    "no cria os seres, os faz ser como so", e que "regula o ritmo das coisas". (p. 269).

    De acordo com a tradio: "O Tao possui todas as coisas em plena abundncia, este

    o seu campo de ao. Renova todas as coisas, todos os dias; este o seu glorioso poder." (I Ching, TA TAUN cap. 5).

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