a abordagem imunitária de roberto esposito biopolítica e medicalização

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http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2012v9n2p39 A ABORDAGEM IMUNITÁRIA DE ROBERTO ESPOSITO: BIOPOLÍTICA E MEDICALIZAÇÃO THE APPROACH OF ROBERTO ESPOSITO'S IMMUNITY PARADIGM: BIOPOLITICS AND MEDICALIZATION EL ENFOQUE INMUNITARIO DE ROBERTO ESPOSITO: LA BIOPOLÍTICA Y LA MEDICALIZACIÓN Marcos Nalli 1 Resumo: O objeto do presente artigo é fornecer uma breve apresentação da filosofia de Esposito acerca da biopolítica à luz de suas considerações sobre a pertinência hermenêutica do “paradigma da imunização”, para seu entendimento bem com suas implicações na medicalização da vida. Terminamos por apresentar de modo sumário como o filósofo italiano crê ser possível conceber a biopolítica numa outra estrutura semântica, que tem a vida não mais como objeto de política e sim como realização da potência inovadora da vida. Palavras-chave: Esposito. Biopolítica. Comunidade. Imunidade. Medicalização. Vida. Abstract: The purpose of this article is to provide a brief presentation of the philosophy of Esposito on biopolitics in light of his considerations on the relevance of hermeneutics "paradigm of immunization", for their understanding and their implications in the medicalization of life. We end by presenting a summary of how the Italian philosopher believes it is possible to conceive biopolitics in another semantic structure, which has life not as an object of politics but as realization of the innovative power of life. Keywords: Esposito. Biopolitics. Community. Immunity. Medicalization. Life. Resumen: El objetivo de este artículo es ofrecer una breve presentación de la filosofía de Esposito sobre biopolítica en vista de su examen de la pertinencia de la hermenéutica "paradigma de la inmunización", para su comprensión y sus implicaciones en la medicalización. Finalizamos por presentar un resumen de cómo 1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas,UNICAMP, Pós-Doutorado no Centre de Recherche Historique École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França. Professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina, UEL, Londrina, PR, Brasil. E-mail: [email protected] Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada.

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  • http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2012v9n2p39

    A ABORDAGEM IMUNITRIA DE ROBERTO ESPOSITO: BIOPOLTICA E MEDICALIZAO THE APPROACH OF ROBERTO ESPOSITO'S IMMUNITY PARADIGM: BIOPOLITICS AND MEDICALIZATION EL ENFOQUE INMUNITARIO DE ROBERTO ESPOSITO: LA BIOPOLTICA Y LA MEDICALIZACIN

    Marcos Nalli1 Resumo: O objeto do presente artigo fornecer uma breve apresentao da filosofia de Esposito acerca da biopoltica luz de suas consideraes sobre a pertinncia hermenutica do paradigma da imunizao, para seu entendimento bem com suas implicaes na medicalizao da vida. Terminamos por apresentar de modo sumrio como o filsofo italiano cr ser possvel conceber a biopoltica numa outra estrutura semntica, que tem a vida no mais como objeto de poltica e sim como realizao da potncia inovadora da vida. Palavras-chave: Esposito. Biopoltica. Comunidade. Imunidade. Medicalizao. Vida. Abstract: The purpose of this article is to provide a brief presentation of the philosophy of Esposito on biopolitics in light of his considerations on the relevance of hermeneutics "paradigm of immunization", for their understanding and their implications in the medicalization of life. We end by presenting a summary of how the Italian philosopher believes it is possible to conceive biopolitics in another semantic structure, which has life not as an object of politics but as realization of the innovative power of life. Keywords: Esposito. Biopolitics. Community. Immunity. Medicalization. Life. Resumen: El objetivo de este artculo es ofrecer una breve presentacin de la filosofa de Esposito sobre biopoltica en vista de su examen de la pertinencia de la hermenutica "paradigma de la inmunizacin", para su comprensin y sus implicaciones en la medicalizacin. Finalizamos por presentar un resumen de cmo

    1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas,UNICAMP, Ps-Doutorado no Centre

    de Recherche Historique cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris, Frana. Professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina, UEL, Londrina, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

    Esta obra foi licenciada com uma Licena Creative Commons - Atribuio 3.0 No Adaptada.

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    el filsofo italiano cree que es posible concebir la biopoltica en otra estructura semntica, que tiene la vida no como un objeto de la poltica, sino como realizacin del poder innovador de la vida. Palabras clave: Esposito. Biopoltica. Comunidad. Inmunidad. Medicalizacin. Vida.

    Atualmente, pode-se sustentar que h duas leituras majoritrias sobre Michel

    Foucault. Uma de carter mais histrico-filosfico e outra de carter mais

    polemizante. Pela primeira entendemos a leitura feita por comentadores do filsofo

    francs, que buscam compreender os meandros de seu pensamento, sua prolfica

    provocao conceitual, sua singularidade e originalidade argumentativa, seja no todo

    ou em partes de sua obra filosfica. Nesta perspectiva, parece haver uma tendncia

    atual dentre seus comentadores em fornecer interpretaes consistentes sobre a

    fase final de sua produo terica, aquela de natureza mais tica e, de um ponto de

    vista estilstico, mais prximo da argumentao filosfica, principalmente luz de

    seus cursos no Collge de France. Por outro lado, tambm se percebe no cenrio

    internacional outro gnero de leitura, que aqui chamamos de polemizante, que tem

    por fim se valer de algumas categorias conceituais, de algumas abordagens, de

    algumas sugestes e provocaes de Foucault acerca de alguns temas que

    certamente transcendem a alcunha de temas foucaultianos. A, percebe-se que o

    foco direcionado para um conjunto de textos de Foucault diverso daquele que

    parece ter se tornado prioritrio aos comentadores. O foco recai principalmente

    sobre os textos em torno do ano de 1976, tendo como texto nuclear a ltima aula do

    curso daquele ano, Il faut dfendre la socit, que Foucault ensaia uma anlise do

    fenmeno totalitrio, particularmente o nazista, no qual poltica e biologia se

    confundem de modo extremo. Essas leituras focadas na provocao interpretativa

    de Foucault podem ser tomadas como polemizantes, pois no tm como escopo

    analisar a perspectiva foucaultiana, mas aceit-la em seu tom instigante e

    provocativo e, assim, buscam fornecer suas prprias leituras sobre o conjunto de

    fenmenos polticos que pode ser articulado em torno do binmio poltica-biologia e

    que no pode ser facilmente explicvel luz da filosofia poltica clssica. Essas

    leituras aceitam repensar a poltica a partir da perspectiva da biopoltica.2

    Nessa perspectiva de leitura biopoltica, aps Foucault, vrios so os autores

    relevantes, mas certamente so os autores italianos que mais tm se destacado. E

    2 Obviamente, no se trata de afirmar que h apenas essas duas perspectivas. Aqui, o objetivo foi

    apenas demarcar aquelas que parecem ser as duas abordagens majoritrias.

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    um desses mais expressivos, prolficos e pertinentes Roberto Esposito. Sua

    contribuio tematizao biopoltica pode ser inicialmente colocada a partir de

    duas perspectivas no conflitantes: primeiramente sua posio diante de dois outros

    filsofos italianos que tambm investiram suas reflexes na mesma perspectiva

    geral, mas cujos posicionamentos podem ser vistos como polarizaes antagnicas,

    isto , uma perspectiva positiva da biopoltica, expressa pelas reflexes de Toni

    Negri exemplificadas por textos como Impero (2001) e Moltitudine (2004) e outra

    abordagem negativa, com Giorgio Agamben que pode ser tomada a partir de

    Homo Sacer (1995), Quel che resta di Auschwitz (1998) e Stato di Eccezione (2004).

    A contribuio de Esposito seria, assim, em linhas gerais, uma espcie de mediania

    aristotlica a esses dois polos, nem extremamente positiva e nem extremamente

    negativa (CAMPBELL, 2008, p. 12). Outro ponto de partida consiste em perceber

    quais os seus textos importantes para esta discusso; e assim tem-se um conjunto

    de textos, livros, artigos, captulos em coletneas, que pode ser resumido a uma

    trilogia: Communitas: Origine e destino della comunit (1998), Immunitas: Protezione

    e negazione della vita (2002) e Bos: Biopolitica e filosofia (2004); ou talvez at uma

    tetralogia (pelo menos at o presente momento), se incluirmos a tambm Terza

    persona: Politica della vita e filosofia dellimpersonale (2007). a partir dessa

    trilogia, ou tetralogia, que se pode captar a essncia da contribuio de Esposito ao

    debate em torno da biopoltica.

    No entanto, para bem se entender sua contribuio, preciso salientar desde

    o comeo como que Esposito visualiza o debate. Para ele, o que est em

    discusso de modo premente entender aquilo que ele chamou de o enigma da

    biopoltica, a saber, como a biopoltica que se caracteriza por um conjunto de

    aes e estratgias polticas que tem por objetivo a promoo e proteo da vida e

    da subjetividade pode decair numa tanatopoltica (ESPOSITO, 2004 p. 34; 2010, p.

    65), isto , na adoo de medidas que dessubjetivam e suprimem formas de vida

    tomadas como dispensveis, deletrias e perigosas comunidade. Como ele diz

    expressamente:

    Qual o efeito da biopoltica? Chegado a este ponto a resposta do autor [isto , Foucault] parece bifurcar-se em direes divergentes que levam em conta outras duas noes, desde o incio implicadas no conceito de bios, mas situada nos extremos de sua extenso semntica: aquela de subjetivao e aquela de morte. Ambas no que diz respeito vida constituem mais do que duas possibilidades. So ao mesmo tempo sua

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    forma e seu fundo, sua origem e seu destino. Mas em cada caso, segundo uma divergncia que parece no admitir mediao: ou uma ou outra. Ou a biopoltica produz subjetividade ou produz morte. Ou torna sujeito o prprio objeto ou o objetiva definitivamente. Ou poltica da vida ou sobre a vida (ESPOSITO, 2004, p. 25; 2010, p. 54s).

    Para dar conta de refletir, e assim resolver o enigma da biopoltica, Esposito

    formula o que chamou de paradigma imunitrio pelo qual, semelhante dinmica

    do sistema imunolgico de um organismo, a imunizao poltica uma proteo

    negativa da vida (ESPOSITO, 2004, p. XIII; 2010, p. 24). A resoluo da natureza

    paradoxal da biopoltica reside justamente em estabelecer uma relao de

    imanncia entre uma e outra.

    Ora, a vantagem hermenutica do modelo imunitrio est precisamente na circunstncia que estas duas modalidades, estes dois efeitos de sentido positivo e negativo, conservador e destrutivo encontram finalmente uma articulao interna, uma conexo semntica, que o dispe em uma relao causal, ainda que seja de tipo negativo. Isto significa que a negao no a forma da sujeio violenta que de fora o poder impe vida, mas o modo intrinsecamente antinmico em que a vida se conserva atravs do poder. Deste ponto de vista, pode-se muito bem dizer que a imunizao uma proteo negativa da vida (ESPOSITO, 2004, p. 42; 2010, p. 74).

    Ao ajuizar que a abordagem foucaultiana da biopoltica falha conceitualmente

    por no ser capaz de esclarecer o paradoxo em que a biopoltica incorre, a

    estratgia de resoluo elaborada por Esposito consiste em realar a relao de

    imanncia que existe entre vida e poder, e entre vida e norma, a partir do conceito

    de imunidade; e isto fica ainda mais patente pois, pela categoria de imunizao,

    pode-se articular aqueles dois efeitos de sentido, aparentemente antinmicos, entre

    o poder de conservar a vida e o de poder destru-la. Na verdade, esta articulao

    fica ainda mais patente na medida em que se esclarece o prprio modo de

    funcionamento da imunizao, da autoconservao imunitria (ESPOSITO, 2004,

    p. 43; 2010, p. 76), pelo qual se pode entender definitivamente o sentido de sua

    afirmao de que a imunizao uma proteo negativa da vida: todo o empenho

    de Esposito consiste em demonstrar como, smile ao sistema imunolgico de um

    organismo, as sociedades reguladas pelo paradigma imunitrio podem se valer de

    elementos e fatores encarados como perniciosos, comprometedores da vida, fatores

    etiolgicos, carreadores de morte e dessubjetivao, para assegurar alguma

    proteo da vida coletiva, comunitria.

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    O primeiro passo para se entender o funcionamento geral do sistema

    imunitrio fornecido por Esposito pela articulao de dois livros anteriores a Bos,

    isto , Communitas (1998) e Immunitas (2002). Em Communitas, Esposito identifica

    o grande problema niilista da comunidade, a partir da anlise etimolgica do

    conceito de comunidade, demonstrando que seu sustentculo reside na

    obrigatoriedade, no dever de dar, assinalado pelo termo latino munus (em oposio

    a aquele de dom, caracterizado pela espontaneidade e gratuidade do presente, ou

    da ddiva, assinalada em ensaios do antroplogo Marcel Mauss ou do linguista

    mile Beveniste), acirrado com a reciprocidade da obrigatoriedade. O munus, pois,

    na anlise de Esposito, No implica de modo algum a estabilidade da posse [...]

    seno perda, subtrao, cesso: uma prenda, ou um tributo, que se paga

    obrigatoriamente. O munus a obrigao que se contraiu com o outro, e requer uma

    adequada desobrigao (ESPOSITO, 2007, p. 28). Por esse motivo, Esposito

    sustenta a tese que o ncleo fundamental de toda a vida e organizao da

    comunidade uma impropriedade: no h, na comunidade, uma comunho por

    identificao; os indivduos no se reconhecem a como semelhantes, mas como

    coobrigados ao nus do tributo devido, numa cumplicidade pela ausncia, pela

    irrealizao do prprio do sujeito e do indivduo. Por essa razo, h uma estreita

    vinculao entre comunidade e o nada, ou dito ainda de outro modo, a comunidade

    tem uma intrigante natureza niilista, pela qual se impede a realizao plena dos

    indivduos, de seus partcipes em sujeitos. Nesse sentido, a comunidade nutre-se e

    se mantm com base num complexo processo de dessubjetivao do homem.

    Obviamente, tal tese no mnimo surpreendente, posto que em linhas gerais

    a comunidade vista como uma espcie de porto seguro, que garante a todos os

    indivduos a possibilidade de ter a sua subjetividade assegurada e protegida. No

    entanto, partindo da anlise filolgico-semntica empreendida por Esposito, e tendo

    como resultado a explicitao da reciprocidade da obrigao tributria, a estrutura

    da comunidade desde seus fundamentos acaba por revelar uma faceta bem diversa,

    ao mesmo tempo em que bem incmoda, uma vez que com ela, Esposito evidencia

    a natureza niilista da comunidade. A comunidade uma inveno tecnolgica que

    tem por finalidade primeira proteger os indivduos que abriga de toda e qualquer

    ameaa, real ou provvel, que se pode lanar contra eles. Certamente, a funo

    poltica da comunidade o conceito aristotlico de cidade j o evidencia o de

    promover e garantir a felicidade dos indivduos e do homem, transformando-o em

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    bios politikos, mas sob o preo de lhes exigir como tributo que parte fundamental de

    sua essncia, a saber, sua potncia subjetiva de agir, seja devota ao bem comum.

    Da a natureza niilista desse modelo koinocntrico (ESPOSITO, 2008, p. 96): a partir

    da possibilidade justificada, ou melhor, legitimada, no apenas da submisso do

    indivduo, mas inclusive de sua supresso em nome do bem comum, as estratgias

    comunitrias podem perfeitamente assumir a forma legitimada de prticas variadas

    de violncia contra todos os possveis inimigos de seu princpio comunal

    (ESPOSITO, 2007, p. 33).

    Ora, mas interpretar a comunidade nesses termos no apenas evidencia a

    sua natureza niilista, j revela tambm seus traos imunitrios, j previstos desde

    Communitas (ESPOSITO, 2007, p. 30), como forma de desobrigao tributria,

    smile quela interpretao de Alain Brossat (2003, p. 26-29) da mxima latina noli

    me tangere em termos de contraposio entre intangveis e intocveis. O que de

    qualquer modo no invalida sua anlise, posto que a contraposio entre

    comunidade e imunidade, no entender de Esposito, reside no entre os dois termos

    e sim entre imunidade e a reciprocidade da obrigao tributria, que deve ser

    quebrada (ESPOSITO, 2009, p. 15). O que, nesse sentido, ainda que

    paradoxalmente, a prpria comunidade exige, mesmo que a reciprocidade seja

    instituda desde seus preceitos fundamentais, pois o modo pelo qual ela tambm

    se justifica.

    A funo maior do sistema imunitrio , assim, interrompendo o sistema de

    reciprocidade, impedir ou ao menos neutralizar o risco da deflagrao niilista a que a

    comunidade est sujeita; e, assim, a funo do sistema imunitrio proteger a

    comunidade de si mesma. Para isso, o sistema imunitrio pressupe o negativo,

    aquilo que deve ser combatido como uma presena constante. nesse contexto de

    sentido que se justifica a interpretao espositiana dos perigos que acometem uma

    comunidade modelo semntico de base para se pensar todas as organizaes

    scio-polticas, desde as mais simples at as mais complexas, tpicas de nossa

    modernidade como doenas, infeces, e o seu risco em termos de contgio; ou

    quando se constata o prprio perigo que pode irromper da comunidade, de doena

    autoimune. Contudo, por outro lado, para alm do aspecto metafrico, h a sua

    pregnncia hermenutica que possibilita compreender de modo mais contundente a

    prpria ambiguidade das estratgias biopolticas que Esposito definiu como seu

    enigma na medida em que com o paradigma da imunizao Esposito explicita o

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    modo prprio de funcionamento da proteo por imunizao, a saber, de que ela se

    vale daqueles elementos negativos, potencialmente desagregadores da vida

    comunal, para se proteger deles na iminncia de sua intensificao, evitando assim

    os riscos de desagregao, de dessubjetivao e de morte, que em ltima instncia

    so produzidos pela prpria comunidade:

    Isto que vai imunizada, em suma, a comunidade mesma em uma forma que juntamente a conserva e a nega ou melhor, a conserva atravs da negao de seu originrio horizonte de sentido. Deste ponto de vista se poderia chegar a dizer que a imunizao, mais que um aparato defensivo sobreposto comunidade, est em sua engrenagem interna. [...] Para sobreviver, a comunidade, cada comunidade, constrangida a introjetar a modalidade negativa do prprio oposto; ainda que tal oposto permanea um modo de ser, na verdade privativo e contrastante, da comunidade mesma (ESPOSITO, 2004, p. 48-49; 2010, p. 82).

    Desse modo, portanto, Esposito equaciona e explicita como, ao menos a

    partir da modernidade, a comunidade apresenta implicaes e desdobramentos

    totalitrios e violentos, uma vez que ao buscar preventivamente se proteger de todos

    os riscos, possveis e provveis, ela tende a desarticular os indivduos de sua

    potncia criativo-afirmativa, de sua fora subjetivadora. A imunizao, cujo fim de

    proteger a comunidade, acaba por acirrar ainda mais a tendncia expropriativa de

    toda forma de vida conflitante e refratria aos padres koinomnicos. Uma vida, uma

    subjetividade extrnseca s normas comunais, no uma vida a ser protegida, mas

    uma vida a ser suprimida por ser um potencial perigo comunidade em sua

    totalidade: pela simples possibilidade de se configurar como perigo em potencial

    que ela deve ser ao menos isolada e excluda. E isso se faz patente justamente

    quando a vida apropriada como objeto poltico, por isso, reduzida a um estado de

    absoluta imediaticidade, desnudada de toda e qualquer forma, estando assim

    totalmente entregue a toda espcie de interveno poltica: para relacionar-se com

    a vida, a poltica pareceria ter que priv-la de toda dimenso qualitativa, tornando-a

    s vida, pura vida, vida desnuda (ESPOSITO, 2009, p. 25s); ou como dir ainda

    no mesmo texto:

    Resulta at demasiado evidente que a poltica entra de pleno direito no paradigma imunitrio quando toma a vida como contedo direto de sua prpria atividade. O que falta, neste caso, toda mediao formal: objeto da poltica no j uma forma de vida qualquer, um modo de ser especfico seu, seno a vida mesma: toda a vida e s a vida, em sua simples realidade biolgica. Que se trate da vida do indivduo ou da vida da espcie, a poltica

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    tem de por a salvo a vida mesma, imunizando-a dos riscos que a ameaam de extino (ESPOSITO, 2009, p. 160).

    E o ponto de contato entre as duas acepes gerais de vida a individual e a

    coletiva, a do sujeito e a da espcie justamente o corpo, seja sob a possibilidade

    inevitvel da morte, mas ainda de modo mais contundente a enfermidade, como

    ndice e como condio preparatria ou deflagradora da morte. Nesse sentido,

    preciso perceber que no se trata apenas de uma mera contraposio entre o

    biolgico, o biomdico, e o poltico, mediante uma transposio metafrica. Trata-se

    de perceber como o corpo, o corpo vivo, a um s tempo alvo de interveno

    mdica e de interveno poltica: no corpo que poltica e biologia se cruzam e se

    mesclam tornando-se um s. A metfora imunitria de proteo do corpo poltico

    diante dos riscos e ameaas como demonstra Esposito tem que ser

    compreendida inicialmente da poltica para a patologia e s depois, numa espcie de

    movimento de retroalimentao, da patologia para a poltica: a tese da defesa do

    organismo diante dos perigos de contaminao adotada pela patologia antes a

    metfora poltica da proteo e fortificao das cidades contra as ameaas externas.

    Nesse sentido, se possvel articular, hoje, a temtica da medicalizao da

    sociedade e da vida das pessoas por que antes o entendimento mesmo do

    organismo e da sade dos indivduos e toda forma de teraputica j assumiram,

    ainda que por metfora, uma postura beligerante e, por conseguinte, poltica; ou

    como diz Canguilhem, citado por Esposito, uma teoria biolgica dominada por

    uma filosofia poltica (CANGUILHEM, 1971, apud ESPOSITO, 2009, p. 185).3

    Tal passagem, Canguilhem a reporta a Haeckel, discpulo de Virchow, a quem

    Esposito por sua vez imputa o crdito de ter sido o primeiro a se valer da metfora

    poltico-organicista para explicar o funcionamento do organismo e das clulas: para

    3 Em uma passagem clebre de seu artigo publicado originalmente em 1978, possvel uma

    pedagogia da cura?, Canguilhem (2002, p. 73-75; 2005, p. 52-53) ainda mais enftico sobre o sentido blico da metfora da cura: bastante conhecido, por meio da etimologia, que curar proteger, defender, munir, quase militarmente, contra uma agresso ou uma sedio. A imagem do organismo aqui presente a de uma cidade ameaada por um inimigo exterior ou interior. Curar conservar, abrigar. Isso foi pensado muito antes que alguns conceitos da fisiologia contempornea, como os de agresso, stress, defesa, entrassem no domnio da medicina e de suas ideologias. E a assimilao da cura a uma resposta ofensiva-defensiva to profunda e originria que ela penetrou no prprio conceito de doena, considerada como reao de oposio a uma efrao ou a uma desordem. Essa foi a razo pela qual, em alguns casos, a inteno teraputica pde respeitar provisoriamente o mal do qual o doente esperava que o tomassem de imediato como alvo. [...] Disso decorre a tendncia geral e constante de conceber a cura como final de uma perturbao e retorno ordem anterior [...] Nesse sentido, cura implica reversibilidade dos fenmenos cuja sucesso constitua a doena.

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    o patologista alemo e notrio opositor ferrenho de Bismarck o indivduo uma

    espcie e instituio social na qual e pela qual suas partes so interdependentes ao

    mesmo tempo em que desenvolvem atividades especficas, derivadas de si

    mesmas, conforme clebre passagem de sua Cellularpathologie (1858). Esposito

    interpreta os termos da metfora de Virchow como uma inverso tanto das teorias

    biolgicas vigentes quanto do despotismo de Bismarck, isto , a vida se articula com

    o corpo do organismo, no por que forma um todo nico e que se irradia para seus

    limites a partir de um centro, mas por que o corpo forma uma unidade comunitria,

    ou uma disposio federativa (estas expresses so do prprio Virchow), ou ainda

    nos termos mesmos de Esposito (2009, p. 188), uma comunidade aberta

    diferena constitutiva de seus membros; o que , na biologia e na poltica, pensar a

    relao entre comunidade e indivduos de tal modo que j se vislumbra a

    possibilidade de uma afirmao biopoltica da vida comunal e individual com vistas a

    superar as limitaes desagregadoras da comunidade e dessubjetivadoras do

    indivduo.

    Entretanto, o que a poderia ser visto com um forte indcio da superao do

    modelo soberano pelo biopoltico, deve ser encarado como uma remodelao do

    princpio de soberania luz do paradigma imunitrio (ESPOSITO, 2004, p. 54 e 58;

    2010, p. 89 e 92); mais ainda, a ideia mesma de comunidade como unidade

    federativa foi recapturada numa estratgia imunitria: para tornar-se objeto de

    cuidado poltico, a vida deve ser separada e encerrada em espaos de progressiva

    dessocializao que a imunizem de toda deriva comunitria (ESPOSITO, 2009, p.

    199; cf. ESPOSITO, 2004, p. 59; 2010, p. 94); bem como, em nome da segurana

    a proteo imunitria que acaba por produzir o risco do qual pretende defender a

    comunidade e a vida, debilitando-os e os mantendo a deriva dos riscos possveis,

    principalmente nos tempos atuais em que a interveno biolgica e mdica j

    atingem o corpo humano em suas estruturas fundamentais, isto , em seu cdigo

    gentico, e sobre suas implicaes para uma perspectiva determinista do indivduo e

    de sua liberdade, reduzida a instrumento de conservao da vida intensa como a

    propriedade inalienvel que cada um tem de si mesmo (ESPOSITO, 2004, p. 73;

    2010, p. 110). Elementos que encontraram sua forma mais acabada e drstica na

    biocracia racista do Terceiro Reich, exemplo histrico da inverso e decadncia da

    biopoltica em tanatopoltica, pela qual, nos termos de Rudolph Hess, secretrio de

    Hitler, o nacional-socialismo nada mais que biologia aplicada (apud ESPOSITO,

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    2004, p. 117; 2010, p. 161); ou seja, no mais se tratando de questo de

    transposio metafrica, mas agora na prpria realizao poltica a partir de critrios

    biolgicos: agir politicamente, seja para proteger a sociedade, seja para proteger os

    indivduos dignos de cidadania, significa identificar os fatores negativos

    assemelhados a agentes infecciosos e sumariamente elimin-los (ESPOSITO,

    2004, p 148; 2010, p. 197). Nesse sentido, a poltica racial nazista foi realmente uma

    desinfeco social (Soziale Desinfektion), como patente neste discurso de Hitler

    (apud ESPOSITO, 2004, p. 123; 2010, p. 168):

    A descoberta do vrus hebraico uma das maiores revolues deste mundo. A batalha em que estamos empenados hoje em dia igual que travaram no sculo passado Pasteur e Koch [...] S readquiriremos a nossa sade eliminando os judeus.

    H uma sada no fim do tnel? Dito de modo mais coerente: possvel pensar

    e repensar a biopoltica numa outra estrutura que no a imunitria, isto , que

    evidencia a biopoltica como uma poltica que tem a vida por objeto e, por

    conseguinte tambm a morte, o que implica dizer que ela pode acabar numa

    tanatopoltica? possvel pensar outra modalidade de biopoltica que efetivamente

    neutralize os riscos de que a comunidade, sociedade moderna est sujeita,

    notadamente a de desenvolver uma compulso desagregadora autoimune? Esta a

    proposta de Esposito ao tentar pensar que, j desde seu ncleo semntico, a

    biopoltica tem que ser pensada no mais como uma poltica sobre a vida, que tem a

    vida como objeto de suas aes, mas se transforme numa poltica da vida, isto ,

    que seja a realizao de toda a potncia da vida em se produzir e constituir a si

    mesma. Uma nova forma de biopoltica que tenha como fim intensificar a vida como

    possibilidade de inovao de si (ESPOSITO, 2004, p. 172; 2010, p. 224; 2008, p.

    147). Como uma biopoltica afirmativa se colocaria diante do cenrio atual de

    objetivao da vida e do corpo, individual e coletivo, por expedientes mdicos,

    sanitrios, genticos, biotcnicos, e como no dizer tambm eugnicos? Esposito

    concebe duas possibilidades: diante da indistino do corpo, a multiplicidade da

    carne que nos toca a todos, diante da medicalizao sobre vida que culmina no seu

    controle e politizao normativa, e o reconhecimento da natalidade como quebra

    dessa politizao de contornos potencialmente totalitrios e possibilitadora de

    inovaes inconcebveis e imprevisveis. Como as daquelas mulheres Tutsi,

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    R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.9, n.2, p. 39-50, Jul./Dez. 2012

    grvidas pelos estupros, pelos seus agressores Hutu, que interrogadas pelos

    relatores da ONU em Ruanda em abril de 2004, declararam amar seus filhos de

    qualquer modo, produzindo um fenmeno biopoltico e imunitrio paradoxal, que a

    de uma nova gerao de vida num sentido imprevisto aquando do estupro:

    [...] que a extrema prtica imunitria aquela de afirmar a superioridade do prprio sangue com o fito de imp-lo a quem no o compartilha destinada a voltar-se contra si mesma produzindo exatamente isto que queria evitar. Os filhos hutu das mes tutsi, ou tutsi dos homens hutu, so o xito objetivamente comunitrio vale dizer multitnico da mais violenta imunizao racial. Ento, deste lado, estamos diante de uma sorte de indizvel, de um fenmeno de dupla face, no qual vida e poltica se ligam em um vnculo cuja interpretao requer uma nova linguagem conceitual. (ESPOSITO, 2004, p. XI; 2010, p. 22)

    neste registro, nesta incurso de repensar a biopoltica e o paradigma da

    imunizao, que esclarece sua natureza enigmtica, bem como toda sorte de

    medicalizao da sociedade, que Esposito se esfora em trabalhar, fornecendo

    novos conceitos, uma nova linguagem para a filosofia poltica e assim explicitando a

    semntica inerente s prticas biopolticas e imunitrias, ampliando seu horizonte

    hermenutico e semntico (ESPOSITO, 2008, p. 148); o que, ao menos em parte,

    explica sua curiosa insistncia com a semntica da biopoltica. Mera questo de

    finesse terica, mero produto de um acadmico da filosofia? Ou j outro modo de

    explicitar, tambm, a semntica da ao poltica? (ESPOSITO, 2004, p. 164; 2010,

    p. 215).

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    R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.9, n.2, p. 39-50, Jul./Dez. 2012

    REFERNCIAS

    BROSSAT, Alain. La dmocratie immunitaire. Palis: La Dispute, 2003. CAMPBELL, Timothy. Politica, immunit, vita: il pensiero di Roberto Esposito nel dibattito filosofico contemporaneo. In: ESPOSITO, Roberto. Termini della politica: comunit, immunit, biopolitica. Milano: Mimesis Edizione, 2008. P. 9-61. CANGUILHEM, Georges. La connaissance de la vie. Paris: Vrin, 1971. CANGUILHEM, Georges. crits sur la mdicine. Paris: Seuil, 2002. CANGUILHEM, Georges. Escritos sobre a medicina. So Paulo: Forense Universitria, 2005. ESPOSITO, Roberto. Bios: biopoltica e filosofia. Lisboa: Edies 70, 2010. ESPOSITO, Roberto. Bos: biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004. ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2007. ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Proteccin y negacin de la vida. Buenos Aires: Amorrortu, 2009. ESPOSITO, Roberto. Termini della politica: comunit, immunit, biopolitica. Milano: Mimesis Edizione, 2008.

    Dossi: Recebido em: Setembro/2012 Aceito em: Outubro/2012