a abordagem de krishnamurti

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A ABORDAGEM DE KRISHNAMURTI -KRISHNAMURTI ‘S APPROACH By Alsibar (Parte 1 de 10) INTRODUÇÃO Uma das características mais notáveis de Krishnamurti é, sem dúvida, a forma como ele abordou o Dharma, ou Verdade Universal. A

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Page 1: A Abordagem de Krishnamurti

A ABORDAGEM DE KRISHNAMURTI -KRISHNAMURTI ‘S APPROACH

By Alsibar

(Parte 1 de  10)

INTRODUÇÃO

Uma das características mais notáveis de Krishnamurti é, sem dúvida, a forma como ele abordou o Dharma, ou Verdade Universal. A originalidade e profundidade de sua visão, aliados a sua revolucionária abordagem, tornou-o um dos maiores – senão o maior- iconoclasta religioso do século passado. Personalidade ímpar na história da

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espiritualidade humana, este sábio foi considerado o marco de uma nova era – no que concerne à evolução da consciência espiritual da humanidade.

 Krishnamurti é muitas vezes considerado complexo até mesmo por aqueles que conviveram com ele . Na verdade, à luz de uma análise mais acurada e serena, percebemos que pode ser exatamente o contrário .  O problema reside, talvez, na nossa resistência. Quebrar crenças profundamente arraigadas em nossa psiqué, frutos de anos de educação condicionadora e alienante, não constitui tarefa fácil. Em outras palavras, parece que nós é que somos entidades bastante complexas e, por isso, temos uma grande dificuldade de compreender aquilo que é simples . Afinal,  libertar-mo-nos dessas complexas, poderosas e intrincadas estruturas pscicossociais exige muita dedicação, seriedade  e energia que, muitas vezes, não queremos dispor.

Krishnamurti é, algumas vezes, considerado repetitivo e evasivo . Como alguém pode passar uma vida toda ensinando a mesma coisa? Mas, dizia ele, cada vez que pregava, exprimia-se a partir da percepção do momento, pensava novamente no assunto como se fosse a primeira vez. Desta forma, ele não procurava lembrar-se do que tivera dito no passado, pelo contrário forjava um novo e fresco raciocínio. Todavia, penso que houve algumas mudanças em sua abordagem ao longo dos anos .  Aos diversos leitores de seus livros, fica a constatação dessas mudanças. Basta que se compare as diversas fases de seu trabalho : antes da Ordem da Estrela do Oriente; após o rompimento; os primeiros anos após o rompimento; o processo de amadurecimento da linguagem ; o uso de uma oratória mais prolixa e rebuscada, até culminar com sua última fase, onde retoma  uma linguagem mais simples, enxuta e objetiva. Essas mudanças, não se operaram na essência dos ensinamentos, mas apenas em  aspectos mais superficiais e periféricos. Certas inclusões posteriores, algumas alterações nas ênfases e ângulos dos ensinamentos, o ajustamento de algumas expressões e termos - mas a essência permaneceu a mesma . 

 Por que será que K. parecia evasivo às vezes? Ou seja, dava a impressão de não responder as perguntas e até mesmo fugir delas? Lembremos que K. tinha como principal missão contribuir com a libertação da consciência humana . Tarefa nada fácil, tendo em vista a complexidade e armadilhas da mente – ansiosa por respostas fáceis e prontas.  Geralmente, eram perguntas do âmbito das crenças e que ele, se recusava a respondê-las de forma simplória e direta. Tais perguntas,

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em geral, eram consideradas por ele como “incorretas”. E perguntas incorretas levam à respostas incorretas -costumava dizer. Mais importante do que discutir sobre “o sexo dos anjos”, K. levava o leitor ao confronto com própria mente questionadora em si. O segundo passo, seria a transcendência da mesma, de forma que não houvesse mais  questionamentos nenhum mas apenas um grande silêncio e tranquilidade. Em seus discursos costumava asseverar que o importante não é saber se existe Deus, reencarnação, vida após morte etc. Mas se podemos nos libertar do sofrimento psicológico e encontrarmos a Verdade libertadora. Esta atitude era muito parecida com a de Buda, que também evitava responder questões metafísicas.

K. também é visto como um sábio sem grandes “atrativos” pelas mentes sedentas pelo “miraculoso” ou “fantástico”.  K. raramente citava, ou demonstrava poderes e percepções extrassensoriais. Não que não os possuíssem, há muitos relatos de curas e experiências fantásticas sobre ele. Todavia, dizia não ser esta sua missão. K. priorizou a mensagem de libertação pura e simples. Mesmo assim, não deixou de reconhecer a existência do miraculoso, chegando até mesmo a citá-lo algumas ocasiões como no livro “Nossa luz Interior” em que disse : “Há diversas formas de percepção sensoriais e extra-sensoriais. A clarividência, os processos de cura, tudo isso acontece, mas são fatores secundários, pois a mente que está de fato preocupada em descobrir a verdade, nunca toca nessas coisas”.

 Ao longo deste texto, não vamos “explicar” os ensinamentos de Krishnamurti . Mas vamos refletir sobre  as características de sua abordagem, tentando entender porque ele exerceu tanta influência sobre toda uma geração de buscadores, pensadores, sábios, cientistas, educadores, místicos e pessoas em geral.

(PARTE 2)

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 “A VERDADE É UMA TERRA SEM CAMINHOS”  

Krishnamurti,  no discurso de rompimento com a Estrela do Oriente, deu o tom de rebeldia que iria se tornar sua marca pelo resto da vida: “Eu afirmo que a verdade é uma terra sem caminhos”. Ao proferir sentença tão original, K. rompe não só com seus antigos seguidores, mas também com toda uma tradição milenar que afirmava haver um caminho, ou vários caminhos para a Verdade. Dizer que não há caminhos para a Verdade soa, à primeira, vista chocante e enigmático. O que ele realmente queria dizer com isso? Será mesmo que ele afirmou que não há uma estrada, uma via de acesso para o Desconhecido? Sim. É isso mesmo. E ele continuou fiel à essa premissa durante toda sua longa vida.

Ao afirmar que não há caminhos para a Verdade, K deu um golpe certeiro em todas as religões e gurus que afirmavam o contrário. Todos eles afirmam- ter, ser ou conhecer o caminho para a Verdade ou Deus, sendo este um dos principais instrumentos de exploração e dominação. De uma só vez, K. libertou o homem do esforço cruel e penoso que muitos enveredam na busca pela  libertação final. Derrubou também o fundamento da maioria das organizações religiosas, esotéricas e espiritualistas. Estas alegam ser as únicas autorizadas para ensinar o verdadeiro caminho para os céus. Mas, os cristãos poderiam perguntar:  Jesus não afirmara ser ele o Caminho, a Verdade e a Vida? Fugindo ao escopo deste artigo, mas sem querer deixar os leitores mais confusos – principalmente os principiantes – afirmo: essa sentença é verdadeira, mas ao longo dos séculos vem sendo maquiavelicamente manipulada pelas miríades de religões e seitas cristãs. Quando Cristo diz que é o Caminho, não refere-se à sua personalidade histórica de Jesus, mas à Consciência Universal, à

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Verdade Universal e Atemporal, Braman - que habita em todos nós. Basta lembrar  de Lucas 17:21 “ O Reino de Deus está dentro de Vós”. Então, esta Verdade, ou Reino de Deus é o mesmo que Krishnamurti chamou de Desconhecido , Atemporal, Impensável– são apenas nomes diferentes e nada mais.

( PARTE 3)

 “O PRIMEIRO PASSO É O ÚLTIMO PASSO”

Como pode o primeiro passo ser o último passo? Simplesmente não vemos sentido nessa sentença. Nossa mente não está acostumada a movimentos que não sejam lineares, progressivos e temporais. Mas, as premissas estão interrelacionadas pois se não há caminhos para a Verdade, então não há como caminharmos até ela. O primeiro passo é compreender isso. Não há como nos dirigirmos até a Deus, pois, na verdade, Ele não se encontra distante, como um alvo  fixo a ser alcançado  no tempo e no espaço. São nossos pensamentos e nossa ilusão de separação que nos mantém distante da Verdade ou de Deus. Mas essa separação simplesmente não existe. Ela é uma ilusão. E se é uma ilusão, o primeiro passo é compreender isso. Se não existe buscador separado do objeto buscado então, você não caminha mais em direção nenhuma. Você nem procura mais pois você percebe que a Verdade sempre esteve aqui agora, em você e em tudo aquilo  “que é”.

( PARTE 4)

 “NÃO EXISTE O ‘COMO’, NEM MÉTODO, NEM SISTEMA”

Algumas pessoas nunca entenderam muito bem porque as perguntas sobre o "Como" nunca eram respondidas.  “Como devo me libertar? Como devo parar meus pensamentos? Como devo vencer meus medos ? Como faço para melhorar? " etc Ele sempre respondia insistentemente “ não há ‘como’, não há nada a se fazer, apenas perceber passivamente o fato e dele ficar cônscio”. Confesso que cheguei a duvidar desta abordagem de K. e durante muito tempo fiquei desconfiado, duvidando se realmente não existia o tal “como”. Mas, finalmente pude perceber que realmente não existe . K. costumava dizer que a exigência do método ou da prática só pode mantê-lo preso ao conhecido, impedindo a manifestação do Desconhecido. Ora, se não há caminhos, nem há buscador, como pode haver um "como'? Isso já era dito por outros mestres iluminados do passado, mas nunca com tanta ênfase como o fez Krishnamurti. 

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Uma visão geral sobre o Zen-budismo e Taoísmo em sua visão antiga, mais pura e original podem nos dar algumas pistas. Peguemos dois conceitos básicos destes dois movimentos espiritualistas: o Wu-wei (ação pela não ação) dos Taoístas e o Zazen (sentar-se sem fazer nada) dos Zen-budistas. Lá no fundo, o que são esses dois senão a não-prática e o não-método? Se não há nenhum lugar a se chegar e não há ninguém para chegar ou  nada para se alcançar, então paramos e descansamos em nosso ser, sem fazer ou praticar nada. Para os cristãos isso é o mesmo que entregar-se à vontade do Pai e deixar que ele aja em nossa vida. A diferença é que K. aborda isso de uma forma diferente, usando uma outra ótica mas que, em essência é a mesma coisa. Se desistimos de fazer, praticar ou seguir métodos e sistemas então deixaremos de alimentar o EGO. Quem pratica algo, ou segue algo, tem algo em vista, todavia só há libertação quando morremos para todos os desejos de ser, não-ser ou vir-a-ser. Se não há nenhum lugar para se ir, ninguém para ir, nem nada para se alcançar, onde fica o ‘como’?

(PARTE 5)

 “QUEM CRIA O PENSADOR É O PENSAMENTO, NÃO O CONTRÁRIO”

Krishnamurti repete esta sentença várias vezes e de diversas formas. Dizer que o “pensador é o pensamento” é mesmo que dizer que o “controlador é o controlado”,  ou  que o “observador é o observado”, ou que “a experiência é o experimentador”. Essa compreensão, raramente divulgada pelos “gurus”, lança novas luzes sobre o homem e o seu eterno conflito consigo mesmo. Este conflito marcou tanto a humanidade que, em determinadas épocas, chegou a influenciar até mesmo o estilo artístico como, por exemplo, a Arte Barroca. Ou seja, o conflito era tão comum que passou a ser considerado algo natural que ninguém questionava, como se fosse  imanente à condição humana.

K. quebrou com este paradigma e estabeleceu uma visão profundamente esclarecedora: porque haver conflito se  o controlador é o controlado? Não há porque lutar para controlar os pensamentos pois “o pensador” é o próprio pensamento. Ao se  dividir entre "pensador" separado do "pensamento", instala-se um conflito dentro dele mesmo. K. percebeu que é uma armadilha da mente, um processo errôneo e desgastante. Quando percebemos a verdade de que "só há pensamentos" - o conflito é extinto de um golpe só.

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Mas a quem interessaria, a manutenção de tal conflito? Parece-me que esta guerra interior não somente era aceita, como também servia aos propósitos de pessoas e organizações opressoras ( até hoje serve). Ora, tudo que é dividido é fraco. Jesus dizia que um reino dividido contra si mesmo não se mantém de pé. Imagina o homem dividido contra si mesmo. Ao ser massacrado pela dor do conflito, este seria facilmente manipulado e explorado. Mas, K. alertou-nos: o sofrimento resultante do conflito não é condição necessária à percepção da verdade. Pelo contrário, pode ser um estorvo, um obstaculo. Uma mente em conflito é uma mente confusa, sendo assim, o primeiro passo é libertar-se da confusão e do conflito, pois este se torna um círculo vicioso no qual o homem se vê preso.

Novamente K. quebra um paradigma secular.  O conflito sempre escravizou e oprimiu o homem em sua eterna busca pela ascensão espiritual. O conflito, pois , é mais uma ilusão da Matrix, do Ego. Ora, se o controlador é o controlado, então é como se eu lutasse com minha própria sombra. Ou, talvez, como se minhas mãos lutassem contra si mesmas. É uma divisão medonha, terrivelmente forjada ao longo dos séculos. Um perverso processo que serve apenas para manter a ilusão de que o homem está progredindo quando, na verdade, está estagnado. Dizem os líderes espiritais conservadores : "você não está se esforçando. Seja forte! Lute mais, tente mais, não desista!" E quanto mais se luta, mais energia é desperdiçada, mais fraco se fica .Caminha-se em círculos, não chegando a lugar nenhum. Quer situação mais confortável para Maya (Ilusão), ou, como diria os cristãos, para Satã?

( PARTE 6)

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 “O CONHECIMENTO É UM ESTORVO”

Muita gente não compreende ou não aceita quando Krishnamurti afirma que o conhecimento é um obstáculo à compreensão da Verdade. Os religiosos tradicionalistas, tão apegados aos seus livros sagrados e às suas tradições criticam veementemente esse posicionamento de K. O que não é de se estranhar, pois, novamente os livros e as tradições são as colunas em que sustentam suas organizações e seu poder. Que seria das várias seitas cristãs e das várias religiões sem  a valorização e defesa radical dos seus livros sagrados? Não que eles devam ser desprezados. Não é isso. Mas não podemos confundir “a lua com o dedo que aponta para a lua”- como se diz no zen. Os livros são importantes na medida em que nos informam sobre a história, ciência, atualidades, conhecimentos gerais etc. Mas NUNCA como sendo a VERDADE. Pois nunca devemos confundir os meios com o fim. 

Claro que, para conhecer sobre Krishnamurti, Buda e Cristo precisamos dos livros - mas os livros não podem nos revelar a Verdade, pois ela  se encontra dentro de nós. Buda costumava dizer : use o barco para atravessar o rio, depois abandone-o, é tolice carregá-lo ou a ele apegar-se. Do mesmo jeito é o conhecimento. Ele te ajuda a compreender onde está a Verdade, mas só podemos encontrá-la após abandoná-lo, superar o nível das palavras e dos conceitos. Isso não quer dizer que você esquecerá tudo o que aprendeu, como se sofresse de amnésia. Você, simplesmente saberá que o conhecimento tem seu

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lugar na realização de tarefas específicas, mas nunca poderá ser usado como meio de compreensão ou percepçaõ da verdade. Esta é sempre nova e irreconhecível – pois, como dizia K. se fosse reconhecível, não seria a Verdade. O Real, Deus dever ser algo sempre novo ,vivo, nunca dantes experimentado. Por isso o nível das palavras mortas e das experiências do passado tem que ser transcendido.

( PARTE 7)

 “O TEMPO PSICOLÓGICO É UMA ILUSÃO”

Outro aspecto pouco ou mal compreendido da abordagem de Krishnamurti é a assertiva de que  o tempo psicológico é uma ilusão. Mas, o que K. entende por tempo psicológico? É simplesmente o tempo que leva para você transformar o que você é no que você deseja ser. Estamos tão acostumados em pensar em termos de transformações e mudanças que cremos piamente que este processo é algo natural e necessário. Ora, para transformar processos físicos e químicos realmente preciso do tempo cronológico. A questão é: posso considerar os processos psicológicos nos mesmos parâmetros dos processos físicos? Obviamente que não. E é aí que Krishnamurti desponta, novamente, como um grande iconoclasta, derrubando paradigmas e crenças dominantes. Todas religiões, com raras exceções , insistem que devemos melhorar, devemos nos tornar mais amorosos, mais bondosos, mais isso , mais aquilo.

Krishnamurti percebeu que o processo do “mais”  constitui, na verdade, um dos aspectos de fortalecimento do EGO. Tornar-se melhor, mais amoroso, mais caridoso, mais bondoso, ou menos violento, menos ciumento etc. apenas perpetua e vitaliza a entidade ilusória criada pelo pensamento.  O EGO camufla-se sob a capa da bondade e respeitabilidade e, por consequência, não sente nenhuma necessidade de se libertar do sono. Assim sendo, sob esta perspectiva, vemos que o processo do "mais" ou "menos"  é, la no fundo, uma atividade egoísta. O ego se perpetua e se fortalece à medida que torna-se cada vez mais virtuoso e respeitável. Não quer dizer com isso, que a pessoa tenha que se tornar má, cruel ou avarenta.  K. advoga que existe um estado de virtude e bondade que está além do domínio  venenoso do EGO e isso só poderá ser encontrado na extinção deste último.

Assim, todo  desejo de ser, tornar-se, não ser ou vir a ser, ainda é o EGO. As mudanças feitas neste nível são superficiais. Todavia,

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sabemos que, em alguns casos,  certas mudanças são necessárias para o bom convívio social. O indivíduo se ajusta aos padrões morais e sociais da sociedade tornando-se um cidadão melhor e mais respeitável mas e depois? Isto é o que os psicólogos chamam de normose: a “normalidade doentia” da sociedade moderna. Temos que superar o nível da normose. A sociedade está neurótica, doente e fragmentada em seu eterno e tortuoso conflito. Isso apenas sustenta a Ilusão e o domínio da Matrix, enquanto a neurose toma conta da sociedade.

Por último, quero dizer que a transformação para Krishnamurti existe, mas não se realiza no tempo. Nem sendo o desejo de mais ou de menos, o caminho para sua efetivação. Apenas na extinção do EGO é que a verdadeira transformação pode acontecer, do contrário o centro continuará. E se o EGO, o centro, continua então a mutação é superficial e ilusória – o que não constitui transformação verdadeira mas apenas “continuidade modificada do que é”.

( PARTE 8)

“ O ÁTMAN É UMA INVENÇÃO DA MENTE”

Outra posição polêmica de Krishnamurti foi a negação da existência do Átman ou Alma- o que chocou os conservadores hindus e cristãos.  Na tradição hindu, o ser humano é considerado um ser dual: existe o Eu Superior, também chamado de Átman, Alma ou centelha divina, e existe o Eu inferior, também chamado de ego ou falso eu. O problema é que, ao longo dos séculos, o homem foi cada vez mais se identificando com o Eu Superior, esquecendo-se que era Ego. Assim, ao se considerar como sendo  o EU SUPERIOR o homem esqueceu-se da necessidade de  " matar" o EGO. Ora, se já sou o "EU SOU", então por que devo me preocupar? Por que devo meditar? Por que devo procurar minha libertação? Todavia, basta uma simples reflexão para se perceber o erro: quem diz a si mesmo " eu sou o Eu Superior"? O ego não? Se o Átman existe mesmo, só pode estar além do pensamento e do EGO, então como posso saber com certeza quem ele é se antes não vencer, transcender o nível do pensamento? Neste ponto, Krishnamurti usa de extrema sabedoria e sutileza. Ele não afirma categoricamente a existência do Átman ou Eu Superior,  mas sempre disse que, ao libertar-se do desejo, do tempo e do pensamento (EGO), o Desconhecido, o Eterno e Atemporal poderia manifestar-se . Jesus falou a mesma coisa usando de metáforas: se não morreres não entrarás no Reino dos Céus. Não estou afirmando que K. pregou a existência do Átman. De forma alguma. Pois isso seria apenas mais uma crença, fator de discórdias e opiniões. Mas, substitua a palavra

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Atemporal ou Desconhecido por Átman, que vai dar no mesmo. Simples questão de nomenclatura.

Tradicionalmente os gurus e as religiões  afirmam que somos   divinos, (Aham bramasmi – Eu sou Deus) e que não percebemos isso por causa de nossas ilusões e do ego. Krishnamurti diz a mesma coisa subvertendo apenas a ordem das coisas. Para ele, somos EGO ( pensamento, tempo, memória e desejo) no cessar deste é que o Eterno poderá se manifestar. A diferença é que K. não denomina esse “algo”. Ele não o chama de " Eu Superior".  São apenas termos diferentes para um mesmo fenômeno. Em outras palavras, você pode dizer para a lagarta que ela  não é uma larva, mas uma borboleta em potencial. Ou você pode dizer para a lagarta que ela é uma larva e somente quando a larva morrer é que nascerá a borboleta. O ego-lagarta nunca se encontrará com o Eu-borboleta, somente quando um morrer é que o outro nascerá. O problema é que, em geral, queremos encontrar Deus ou a Verdade e continuar sendo o EGO que somos. O Ego-limitado nunca poderá encontrar o Átman- ilimitado, somente com a morte de um é que o outro nascerá. Agora, o nome que se dá a esse algo divino – centelha divina, alma, Deus, Verdade, Desconhecido, Atemporal , Eterno- não tem muita importância.

( PARTE 9)

“A LIBERDADE ESTÁ NO COMEÇO, NÃO NO FIM”

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Tradicionalmente, considera-se a libertação, ou Moksha como o coroamento de um processo. O resultado de uma empreeitada longa, difícil e espinhosa em que o buscador após anos e anos de esforços, disciplina e luta poderá finalmente desfrutar do gozo da libertação ou Nirvana . Na perspectiva de Krishnamurti a libertação está no começo, pela compreensão do que é falso e do que é verdadeiro. Assim, seria perda de tempo, energia e um grande erro protelar a libertação para o futuro. A libertação não é o resultado final de todo um longo processo. Para que alguns iniciantes não achem que K. estava louco, essa afirmação concorda completamente com a posição de muitos patriarcas do Zen –budismo. Para eles nós já somos budas, o que nos falta é a percepção desse fato .  Ora, porque deixar para se libertar dos falsos conceitos no final se podemos nos libertar já, no aqui-agora?

Outra falácia criada ao longo dos séculos pelas organizações religiosas e gurus espertos. Sustentar que a libertação é algo que será alcançado, talvez, no futuro após longos anos de dedicação e esforços, estabelece uma estrutura de poder que propicia o controle das massas,  garantindo o estabelecimento, a manutenção e a continuidade do domínio das organizações religiosas. K. nos convida à libertação desde o começo, talvez, por isso, tanta gente se assuste com sua abordagem revolucionária – pois muitos temem a responsabilidade que a liberdade traz. Mas, nosso próprio raciocínio nos diz que realmente não faz sentido usar os meios errados para se atingir fins corretos. Meios errados levam a fins errados, meios corretos levam a fins corretos e para K. o próprio meio é o fim. Ou seja,  se começo meu caminho, fundamentado em premissas erradas, não posso "chegar" ao lugar certo. Se percebo que toda minha estrutura de crenças acerca da Verdade está errada, consequentemente me liberto da mesma. Esta própria percepção me liberta, fazendo com que eu não mais cometa os erros e equívocos de antes.  A liberdade só pode surgir desde o começo, pois não posso começar a construir uma casa de maneira errada. Devo, desde o começo fazer o certo, só assim minha casa poderá ser corretamente erguida. Se sou livre no começo, o serei também no meio e no fim.

(PARTE 10)CONCLUSÃO

Concluindo, a originalidade de Krishnamurti não se encontra na essência de seus ensinamentos – que é a mesma de todos os grandes

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avatares e iluminados que passaram pela terra.  Mas na forma original, singular e pessoal com que abordou pontos mal compreendidos pela humanidade. O Everest é tão vasto que você pode falar dele de várias maneiras, pode descrever vários de seus aspectos, mas será muito difícil descrevê-lo fielmente em toda sua vastidão e riqueza . Alguns podem tentar descrevê-lo numa visão de cima, outros lá de baixo, ou de lado, ou focalizar aspectos pouco conhecidos pelas pessoas . Mas será sempre o mesmo Everest. Assim, também, penso eu, acontece com o Dharma . As muitas visões, explicações e descrições que existem sobre a Verdade Universal são aspectos, características ou facetas de uma mesma e única Verdade tão vasta e ampla que comporta diversas visões e versões.  

Além disso, devido à complexidade e heterogeneidade da espécie humana com sua miríade de diferenças de percepção, de desenvolvimento e visão, Deus por sua natureza infinita e incognoscível manifesta sua mensagem em diversas épocas, culturas e povos para alcançar o máximo de pessoas possíveis, ajudando-as a se libertar da ilusão do EGO e da prisão de Maya . Krishna disse no Bhagavad-Gita que ele se manifesta ao mundo sempre e onde quer que haja um declínio do Dharma ou princípios religiosos originais. Afirma, ainda, que o próprio Deus desce para salvar os piedosos e aniquilar os canalhas bem como para restabelecer os princípios da verdadeira religião, ele próprio desce milênio após milênio.

Nunca saberemos se Krishnamurti foi um pensador, místico, sábio, mestre da espiritualidade moderna ou um Avatar- de acordo com o que reza o Gita. Todavia, sua abordagem é absurdamente original, inovadora e revolucionária. Ao rever conceitos e tradições dominantes, K. certamente reconstrói conceitos antigos, ajudando o homem moderno a compreendê-los, adaptando-os à necessidade e exigência de uma nova era e de um novo homem que surge com a pós-modernidade. Krishnamurti ajudou e continuará ajudando centenas e milhares de pessoas do mundo todo a se libertarem das falsas concepções e dos falsos ensinamentos, levando a cabo sua principal e grande missão proferida por ocasião da dissolução da Ordem : “tornar o homem absoluta e incondicionalmente LIVRE”.

Autor : ALSIBAR

Referências : As ilusões da mente – Krishnamurti – Edições de ouro

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                      A luz que não se apaga – Krishnamurti- ICK -2004