9 7 7 1 8 0 8 0 9 1 0 0 2 revista ano 3 - edição nº 4 · el alba de cuba y venezuela: ... na...

109
REVISTA REVISTA 9 ISSN 1808-09X 771808 091002 » Francisco Dominguez » Tiago Coelho Fernandes » Gilberto Calil » Carlos Batista Prado » Enrique Serra Padrós » José Pedro Cabrera Cabral » Renato Barbieri » André F. Berenger de Araújo » Roselena Leal Colombo » Katia I. Marro » Carla Ferreira » Raúl Zibechi » Gilson Dantas Ano 3 - Edição Nº 4 Julho 2007 - R$ 15,00 América América Contemporânea Latina

Upload: phamcong

Post on 11-Oct-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

REVISTAREVISTA

9

ISSN 1808-09X

7 7 1 8 0 8 0 9 1 0 0 2

» Francisco Dominguez

» Tiago Coelho Fernandes

» Gilberto Calil

» Carlos Batista Prado

» Enrique Serra Padrós

» José Pedro Cabrera Cabral

» Renato Barbieri

» André F. Berenger de Araújo

» Roselena Leal Colombo

» Katia I. Marro

» Carla Ferreira

» Raúl Zibechi

» Gilson Dantas

Ano 3 - Edição Nº 4Julho 2007 - R$ 15,00

América América

ContemporâneaLatina

3

Revista História & Luta de Classes Nº 4 – Julho de 2007

SUMÁRIO

Organizadores gerais deste número: Enrique Serra Padros e Gilberto CalilComissão Editorial: Carla Luciana Silva, Enrique Serra Padros, Florence Carboni, Francisco Dominguez, Gilberto Calil, Marcelo Badaró, Mario Maestri, Theo Piñeiro, Virgínia FontesConselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (RS), Adriana Facina (UFF), Afonso Alencastro (UFSJ), Alvenir de Almeida (FAC e

IDEAU-RS), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Armando Boito (UNICAMP), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Bonamigo (UNIPAR), Carlos Zacarias (UNEB), Claudira Cardoso (UFRGS), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Eduardo Palermo (RS), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Érika Arantes (UFF), Eurelino Coelho (UEFS), Euzébio Assunpção (Faculdade de Osório), Fabiano Faria (RS). Felipe Demier (UFF), Florence Carboni (UPF), Francisco Carvalho (UFRGS), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelson Rosentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gláucia Konrad (UFSM), Helen Ortiz (RS), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Isabel Gritti (URI), João Pinto (UFG), João Raimundo Araújo (FFSD), Jorge Magasish (Bélgica), José Pedro Cabrera (UNOESC), Kátia Paranhos (UFU), Leonardo Bruno (UFRRJ), Luciana Pereira Lombardo (UFF), Luciano Pimentel (UPF), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Carlos Amaro (RS), Magali Engel (UFF), Marcelo Badaró (UFF), Marcos Alvito (UFF), Maria Aparecida Papali (UNIVAP), Maria do Carmo Brazil (UFGD), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Nara Machado (PUCRS), Nildo Viana (UFG), Noeli Woloszyn (Universidade do Contestado), Olgário Vogt (UNISC), Patrícia Trópia (UNICAMP), Paulo Esselin (UFMS), Paulo Zarth (UNIJUÍ), Pedro Paulo Funari (UNICAMP), Pedro Marinho (MAST), Philomena Gebran (USS), Renata Gonçalves (UEL), Renato Dalla Vecchia (RS), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Roberto Radunz (UNISC / UCS), Romualdo Oliveira (USP), Sean Purdy (USP), Selma Martins Duarte (UFGD), Sérgio Lessa (UFAL), Setembrino dal Bosco (UPF), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydernham Lourenço (UERJ), Tarcísio Carvalho (UFF), Teones Pimenta de França (FSSSL) Thaís Wenczenovicz (URI), Theo Piñeiro (UFF), Valéria de Almeida (UNIVAP), Valério Arcary (CEFET-SP), Valter Almeida Freitas (UNISC), Vera Barroso (FAPA), Virgínia Fontes (UFF), Zilda Alves de Moura

Distribuição: [email protected] - Foram impressos 1.000 exemplares em Julho de 2007

Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Marcio Alexandre Fragoso Machado - Impressão: Gráfica Lider, Av. Maripá, 796 - Telefax: (45) 3254-1892 - 85.960-000 - Marechal Cândido Rondon - PR.

Capa: Diego Rivera. O arsenal - Frida Kahlo distribuindo armas (1928).

Enrique Padrós e Gilberto CalilApresentação 5

Francisco DominguezEl ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea 9

Tiago Coelho FernandesMariátegui e as raízes da rebelião indígena 19

Gilberto CalilO Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina 27

Carlos Batista PradoCuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina 35

Enrique Serra PadrósAmérica Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado 43

José Pedro Cabrera Cabral

Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004 51

Renato BarbieriColombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia 59

André Francisco Berenger de Araújo“Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina 67

Roselena Leal ColomboCuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário 75

Katia I. Marro

Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina 83

Carla FerreiraBolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano 91

Raúl ZibechiEl Alto: un mundo nuevo desde la diferencia 99

Gilson DantasKirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI? 105

5

A década de 90 ficou marcada pela ofensiva neoliberal em escala planetária. O caráter destrutivo das suas experiências privatistas e a minimização da função social do Estado em proveito da hipertrofia de sua função repressiva condenaram milhões de pessoas à extrema indigência, determinando a generalização da desigualdade social extrema e da corrupção sem limites, a qual perpassou as estruturas institucionais (particularmente no âmbito da Política e da Justiça). Por sua vez, as camadas trabalhadoras viram, tragicamente, os direitos historicamente conquistados serem negados e qualificados como “privilégios”, enquanto os sindicatos, até então instrumentos fundamentais de resistência e mobilização social, eram acuados, cooptados e esvaziados de conteúdo. Simultaneamente, tradicionais partidos políticos de esquerda - de antecedentes combativos -, empreenderam uma radical guinada à direita, enredando-se em contradições perturbadoras resultantes de desvios programáticos e da priorização de miraculosas alianças políticas visando uma rentabilidade eleitoreira que os constituísse em governo.

A América Latina foi sensivelmente atingida por esse processo. No final dos anos 80 as expectativas de mudança estrutural, represadas durante anos de autoritarismo, haviam sido soterradas pela imposição das “recomendações” ditadas pelo FMI que impunham prioridade aos compromissos financeiros internacionais em detrimento das históricas demandas sociais. O saldo para a região foi terrível: a década perdida. Nem crescimento econômico, nem ruptura com as estruturas internacionais de dominação, muito menos soluções para as mazelas sociais crônicas. No plano da política externa, o fim da URSS acirrou ainda mais a agressividade dos EUA em relação à Cuba, agravando o bloqueio com a aprovação da Lei Torricelli e, posteriormente, da Emenda Helms pelo Congresso dos EUA, revigorando sua presença regional, que já era fortemente visível nos Estados de Segurança Nacional da América do Sul e na contra-revolução centro-americana, nas décadas anteriores. Assim, os anos 90 anunciavam novamente formas agressivas de intervenção, expressas, por exemplo, no Plano Colômbia e na articulação de golpe contra Chávez.

Nos anos 90, a combinação da crise estrutural que atingiu o mundo do trabalho e o abandono de políticas estatais que, de uma forma ou de outra, permitiam certa regulação da vida social, agravaram sensivelmente o quadro social regional e as economias nacionais; a miséria e a luta pela sobrevivência se espalharam como flagelo no interior das formações sociais, marcando a falência de qualquer projeto ou perspectiva nacional-desenvolvimentista. A cultura política do medo que resultou do período dos regimes repressivos é certamente elemento determinante deste processo. Sua superação se tornou um dos grandes desafios para a formação de novas gerações de lideranças. Aliás, a destruição física, política e/ou mental que as ditaduras realizaram contra a militância social e política latino-americana redundou na sua ausência e na desconexão na transmissão de experiências de luta social entre duas gerações de latino-americanos, fatores que facilitaram enormemente o assalto neoliberal.

APRESENTAÇÃO

A

No final dos anos 90 as políticas neoliberais deram sinais evidentes de desgaste, inclusive, atingindo parte da burguesia anteriormente favorecida com elas. A generalização da perigosa embora atomizada instabilidade social obrigou as autoridades do Banco Mundial, do FMI e dos EUA a reclamar dos efeitos “perversos” do neoliberalismo. Cinicamente, nessa atitude, escondiam que: 1º) a instabilidade social gerada pelas políticas neoliberais ameaçava seus interesses; 2º) as promessas de crescimento econômico feitas pelos apologistas da desregulamentação e da primazia total do mercado haviam caído no vazio da criminosa exclusão; 3º) o fato do trabalho “sujo” já ter sido feito (privatizações, desnacionalizações, flexibilizações), tornava desejável suavizar o neoliberalismo; 4º) o pedido de substituição se tornou a estratégia do Império e dos seus associados para preservarem-se e dissociarem-se dos nefastos efeitos responsáveis pela fermentação política continental.

Assim, após uma década de hegemonia neoliberal e de suas formas de anestesiamento, parafraseando Eduardo Galeano, podemos afirmar que “as veias da América Latina” continuam abertas, expostas e os efeitos devastadores das políticas neoliberais conformaram graus diversos de respostas e possibilidades de resistência. E mesmo sem clareza nos rumos a tomar, é inegável que essas preocupam aos donos do poder. A América Latina continua pulsando e tem sido palco, nestes últimos anos, do ressurgimento de esperanças e expectativas a partir de projetos políticos que acenaram com possibilidades de mudanças concretas.

A “suavização” das políticas neoliberais – com a conseqüente revigoração da dominação de classes em suas diversas dimensões – caberia aos governos de “centro-esquerda”, através de algumas políticas redistributivistas focalizadas. A escassa margem existente, determinada por mais de uma década de políticas neoliberais e acentuada pelos inúmeros compromissos assumidos pela “centro-esquerda” eleitoral com setores do grande capital financeiro e do agronegócio, tornam compreensível a linha geral de manutenção das políticas anti-sociais. A mobilização social, no entanto, tensiona esses governos de “centro-esquerda”, os quais tem mantido, até agora, com poucas mudanças substanciais, o modelo econômico herdado das administrações que antes denunciavam como neoliberais. Por outro lado, é inegável que os interesses dos EUA (sintetizados na recolonização proposta pelo complexo militar-industrial liderado por Bush e seus falcões ) e do capital internacional continuam tendo um protagonismo central nos caminhos e descaminhos que se colocam como possibilidade à região.

No início de 2007, com eleições presidenciais recém realizadas na maior parte da América Latina, sobressaem algumas características gerais. No âmbito governamental, através da fraude e da repressão generalizadas, mantiveram-se governos explicitamente reacionários em vários países, destacadamente Colômbia e México. Partidos que um dia foram de esquerda – como o PT, a FSLN, a Frente Ampla e o PS chileno – conduzem governos pretensamente de “centro-esquerda” que em realidade renovam e atualizam as

6

políticas neoliberais, assim como o faz o governo Kirchner, com as especificidades de um processo que se inicia em uma crise de hegemonia e que se constitui a partir do peronismo e não de um partido outrora de esquerda. Já os governos da Bolívia, Equador e Venezuela apresentam a particularidade de empreenderem em algumas situações embates efetivos com setores importantes da burguesia e com o imperialismo, sem, no entanto, colocar em questão os fundamentos da ordem capitalista. As diferenças de projetos e estilos sintetizados nos atuais governos da Argentina, do Brasil, da Bolívia e, particularmente, da Venezuela, assinala a existência de perspectivas nacionais diferenciadas diante do tão citado processo de integração latino-americano.

A reflexão em torno das políticas governamentais seria, no entanto, falha e insuficiente, sem referência ao desenvolvimento da luta de classes nos espaços não-institucionais. Nos últimos anos têm sido constituídas formas, organizações e métodos de lutas diversos, enfrentando a repressão, denunciando as políticas anti-sociais e recolocando o protagonismo das massas trabalhadoras. Formas organizativas tão diversas como o movimento piquetero argentino, a Comuna de Oaxaca no México, as insurreições indígenas no Equador, a constituição da Coordenação Nacional de Lutas no Brasil, a insurreição estudantil chilena e as juntas vecinales de El Alto, na Bolívia recolocam o protagonismo das massas. Ainda assim, o avanço destas lutas efetivamente coloca em crise a dominação burguesa. A derrubada inúmeros governos neoliberais na Argentina, Bolívia e Equador evidencia a força deste movimento e, ao mesmo tempo, sua limitação, na incapacidade de articular uma ofensiva que permitisse a efetiva transformação da ordem social. Limitação que se expressa, por exemplo, na participação reduzida do movimento sindical nos movimentos mais radicalizados, na influência da ideologia pós-moderna que interdita a reflexão em torno do poder (“mudar o mundo sem tomar o poder”) e na ausência de uma organização partidária de massas com perspectiva revolucionária. Ainda assim, para além das limitações, sobressaem os avanços da luta da classe trabalhadora, através das lutas de rua desmente o discurso do “fim da História”, acirra a crise do neoliberalismo e explicita a incapacidade do capitalismo em equacionar à crise social que provoca. Ou sequer amenizá-la nos moldes que outrora constituíram os governos nacional-desenvolvimentistas.

7

Enrique Padrós e Gilberto Calil

El ALBA de Cuba y Venezuela:

el poder de una idea

História & Luta de Classes - 9

Francisco Dominguez*

Antecedentes – Los orígenes del ALBA

Alternativa Bolivariana para las Américas y el Caribe (ALBA) es una proposición de integración diferente. Mientras que el ALCA responde a los intereses del capital transnacional y persigue la liberalización absoluta del comercio en mercancías, servicios e inversiones, el ALBA pone el énfasis en la lucha contra la pobreza, la exclusión social y, por lo tanto, expresa los intereses de los

pueblos latinoamericanos.”

Con esta simplicidad que desarma Cuba socialista y la Venezuela bolivariana y revolucionaria plantean la construcción del ALBA. Los componentes centrales del ALBA son:

a) el establecimiento de mecanismos que compensen las asimetrías existentes entre los países del Hemisferio que se integren en el proceso bolivariano continental, en la forma de fondos compensatorios, a fin de encarar las disparidades que ponen a las naciones más débiles en posición desventajosa en relación a las naciones más desarrolladas;

b) dar prioridad a la integración latinoamericana por medio de bloques sub-regionales a objeto de ampliar el proceso de consulta y profundizar el conocimiento mutuo e identificar áreas de interés común que podrían ser la base de alianzas estratégicas para impedir la dispersión de los esfuerzos que podrían debilitar a algunos países individualmente frente a las presiones que el ALCA representa;

c) buscar consensos estratégicos para lograr desarrollo económico nacional y regional

1

orientados a la erradicación de la pobreza, reducción de las desigualdades sociales y aumentos en el standar de vida de los pueblos de la región;

d) el objetivo estratégico específico del ALBA es la creación de una Confederación de Estados Latinoamericanos y Caribeños, la alternativa definitiva al ALCA, al neoliberalismo y a la globalización.

Los orígenes del ALBA se remontan al 2000, a la firma de un Convenio Integral de Cooperación entre Cuba y Venezuela que ocurrió en La Habana el 30 de abril de 2000 y que involucró el suministro de bienes y servicios (principalmente en la forma de miles de doctores y otros especialistas de salud) por 53.000 barriles de petróleo diarios entre Venezuela y Cuba. El Convenio involucró también expertizaje técnico en la industria del azúcar, turismo, desarrollo agrícola, vacunas, equipo médico, control de pestes, transporte, educación y deportes.

Hasta hace poco, el ALBA era para muchos una retórica interesante que no iba ni iría más allá del intercambio de doctores cubanos por petróleo venezolano. Sin embargo, como intentaremos demostrarlo, su creciente resonancia y el número de países latinoamericanos que, en grados diferentes, se están uniendo al proceso bolivariano de integración, demuestra que el ALBA es mucho más que una aspiración abstracta y un mero “eje” Cuba-Venezuela. La razón de su éxito se encuentra en el desastroso legado de treinta años de desenfrenado neoliberalismo en el continente. Las cifras lo confirman: a fines de los 1970 el 19% de la población

2

“La

*

1

Doutor em Economia Política e investigador do Centre for Brazilian and Latin American Studies da Middlesex University, Inglaterra.Alternativa Bolivariana para las Américas ¿Qué es la Alternativa Bolivariana

para América Latina y El Caribe? www.alternativabolivariana.org

2..Ya en 1999 Chávez había firmado con el Presidente de Brasil, Fernando

Henrique Cardoso, una carta de intención para integrar las compañías petroleras de ambos países, Petrobras y PDVSA, bajo el nombre común de Petroamérica.

10 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea

de América Latina vivía en la pobreza; en el 2004 era 44% (y en 1990, en el apogeo del neoliberalismo, los niveles de pobreza alcanzaron un 48.3% de la población!).

La adopción del neoliberalismo representa la lógica brutal de un modo específico de acumulación de capital que requería la restructuración drástica de las economías de la región y que involucró el desmantelamiento de todo remanente “populista” del período de la posguerra. Como es bien sabido esta restructuración involucró también la completa eliminación de la protección a la industria nacional, el favorecimiento de aquellos sectores de la economía que producían para el mercado exterior, la eliminación de todas las restricciones al influjo y operación del capital extranjero en la economía nacional, la privatización de todos los bienes estatales, y la eliminación de toda política de bienestar social.

Es interesante registrar el hecho que, con pocas excepciones, fueron corrientes políticas y partidos tipo “Tercera Vía” que se convirtieron en el instrumento clave para la consolidación y/o profundización del neoliberalismo en la región. Cierto, en la mayoría de los países del Cono Sur, el neoliberalismo fue originalmente impuesto a sangre y fuego por dictaduras despiadadas tales como en Chile, Argentina, Uruguay y Brasil, pero fueron gobiernos como los de la Concertación en Chile, el “peronista” Menem en Argentina, los tradicionales partidos Blanco y Colorado en Uruguay, la alianza MIR-Banzer en Bolivia, ADECO y COPEI en Venezuela, el Partido Social Democrático Brasileño de Fernando Henrique Cardoso en Brasil, y las facciones más pro-EUA en el PRI mexicano, para citar sólo los ejemplos más destacados, quienes sistematizaron, perfeccionaron y consolidaron el neoliberalismo en estos países. Tales coaliciones contaban generalmente con el apoyo de las clases medias y de los sectores de mejores ingresos de la clase obrera, politicamente hegemonizados por una pequeña elite nacional, financieramente orientada, que a su vez, obtuvo migajas significativas de la mesa de las multinacionales, quienes se apoderaron de la parte del león. Estas alianzas descansaban también en la exclusión de amplios sectores de la sociedad que devinieron política y socialmente irrelevantes. Sociedades tales como la venezolana tenían 80% de su población viviendo en la pobreza y la mayoría de su proletariado era parte del sector informal; incluso ejemplos “exitosos” como Chile, tenían todavía en los 1990 cerca del 48% de su población viviendo en la

pobreza. Los niveles de exclusión en naciones previamente prósperas, como Argentina, alcanzaron grados simplemente catastróficos, y era obviamente mucho peor en países como Perú, Ecuador y Bolivia.

Fue el fracaso rotundo del neoliberalismo y la catástrofe social que trajo consigo en todos los países donde se aplicó que llevó al surgimiento de poderosos movimientos sociales y luego a la desarticulación de las coaliciones que habían hecho posible la aplicación y consolidación del neoliberalismo – en algunos casos llegando al desplome y virtual desaparación de esos partidos. Durante los largos y duros años de oposición al neoliberalismo, los movimientos sociales formularon sus demandas de una manera que las universalizaba en un nuevo tipo de quehacer político que se puede resumir en el slogan del Foro Social Mundial: Un Mundo Mejor Es Posible. El fenómeno combinado de la crisis de legitimidad de los partidos políticos tradicionales y el surgimiento de poderosos movimientos sociales, llevó a la aparición de vehículos políticos poco comunes y heterodojos por medio de los cuales el movimiento de masas canalizó sus energías y formuló sus aspiraciones. Este es claramente el caso de Venezuela, donde un ex militar se convierte en el mecanismo que el movimiento de masas utiliza para oponerse no sólo al neoliberalismo de Carlos Andrés Pérez, sino también al sistema de puntofijo en todos sus aspectos. Y quién se iba a imaginar que Evo Morales sería quien asumiría la transformación estructural de una de las naciones más pobres del hemisferio.

La naturaleza “heterodoxa” de estos vehículos políticos se origina en la compexidad de los movimientos sociales mismos que tienen profundas raíces en las masas, en la historia de lucha de estos movimientos, y cuyo universo ideológico está profundamente influenciado por la historia nacional. Por ello no sorprende que busquen establecer vínculos políticos e intelectuales entre sus propias luchas y las de sus ancestros, tales como Bolívar, Zamora, Rodríguez, Pachakuti, Artigas, Tiradentes, Zapata, y otros tantos. Estos movimientos se ven a sí mismos como bolivarianos en el sentido de procurar “completar” lo que los líderes históricos comenzaron en el pasado, pero lo son también en un sentido latinoamericanista: comparten una historia común, un enemigo común, enfrentan obstáculos similares a su progreso, sus países están hipotecados a las mismas instituciones financieras internacionales, sufren formas similares de discriminación y de exclusión cultural, económica y política, y sus sociedades se encuentran atrapadas en la misma camisa de fuerza, a

3

3.Por cierto, el paisaje político regional es mucho más complicado: en Brasil el pueblo ha apoyado al PT con resultados ambiguos hasta ahora; en Argentina, una corriente dentro del peronismo, dirigida por Kirchner, es el mecanismo allí; pero el fenomenal surgimiento de Ollanta Humala en Perú, parece confirmar la tendencia general.

saber, el neoliberalismo. Así, tanto las fuerzas sociales como políticas motoras del bolivarianismo propelen a sus direcciones nacionales logicamente hacia la convergencia y a adoptar soluciones similares. Esta es la base material sobre la que descansa el ALBA.

El documento oficial de lanzamiento del ALBA (Constuyendo el ALBA “Nuestro Norte es el Sur”) desarrolla esta idea al señalar que el debate sobre el ALBA no sólo es necesario sino que debe ser profundo y debe llevar a la renovación del pensamiento latinoamericano tanto en la política como en las cuestiones relacionadas a la integración regional. Así, el documento postula “nuevas definiciones, nuevas ideas, propuestas que provean al bolivarianismo de coherencia, vigor intelectual al adaptarse para confrontar el contexto mundial de hoy que es el de la globalización.” Esto, de acuerdo a Construyendo, implica la construcción de un futuro común próspero y viable para América Latina, un futuro que elimine las abominables desigualdades sociales y que permita a la región insertarse en el mundo globalizado por medio de un modelo que tenga posibilidades de desarrollo sustentable. Aunque el ALBA es una reacción contra el ALCA, es decir como una estrategia económica alternativa para la región, abarca también áreas tales como la cultura, el medio ambiente, la política, la sociedad, la economía y muchos otros aspectos de América Latina.

La época que acaba de comenzar por medio de largas y difíciles batallas, es la del ALBA del Presidente Chávez, que es el sueño de Martí y Bolívar de una América Latina solidaria y unida en la justicia social, la realización del potencial humano de sus habitantes, la defensa de su cultura y la conquista de una posición digna en el siglo que comienza.

ALBA se presenta como la alternativa al ALCA primero como los derechos de la sociedad como un todo (los derechos específicos de obreros, campesinos, los pobres, indígenas, mujeres, juventud, los niños, etc.) y, segundo, como la experiencia acumulada de las utopías que los latinoamericanos han intentado por siglos desde la invasión europea y la conquista en el siglo XVI.

El ALBA propone el renacer de los proyectos de vida que quedaron inconclusos, que fueron abortados, reprimidos por siglos / por décadas. Que renazcan y se unan los sueños retenidos en el tiempo. El ALBA lo elaboramos todos y cada uno de nosotros, reúne proyectos múltiples y diversos como son diversos los pueblos que habitan el continente. Marchamos

4

5

juntos respetando los ritmos. Sí somos todos significa ritmos diversos. Este planteamiento desconcierta. Todos los sujetos sociales plantean lo suyo sin sujetar a los otros guíados por la premisa de que la felicidad es una construcción cultural y asumiendo como política de Estado que la pobreza sólo se supera dándole poder a los pobres.

Así, es la nueva sociedad ya contenida en la diversidad de aspiraciones de los movimientos sociales y sus luchas la que subyace en la raíz de la factibilidad del ALBA. Esta relación dialéctica entre objetivos socio-económicos inmediatos, aspiraciones de largo alcance y su legitimidad en las luchas del pasado, existe en cada uno de los movimientos sociales de América Latina. Es esta la fuerza motora que propele al ALBA.

Los proyectos específicos del ALBALos acuerdos firmados con Cuba se basan en el

principio de recononcer las asimetrías entre los socios y en la necesidad de construir mecanismos compensatorios que eliminen estas asimetrías, pero que no afecten la soberanía de los participantes. Desde julio de 2002, Chávez ha planteado la idea de crear Petroamérica, lo que hizo por primera vez en la II Cumbre de Jefes de Estado de América del Sur, en Guayaquil, Ecuador. Insistió en esta propuesta en agosto de 2003 en Trinidad y Tobago donde los participantes firmaron una Carta de Intención, orientada a la cooperación entre las compañías de gas y de petróleo de América Latina. Finalmente, es con la Declaración de Iguazú del 8 de julio de 2004, cuando Petroamérica se establece definitivamente. Dos días más tarde, Caracas propone la creación de Petrocaribe y el 27 de agosto de 2004, en Jamaica, donde se firma el acuerdo que lo crea.

Petroamérica y Petrocaribe son concebidas como alianzas estratégicas que se basan en la comercialización del gas y del petróleo pero que se orientan a la conservación de los recursos naturales no renovables, la solidaridad y la responsabilidad compartida dirigida a asegurar al acceso democrático de los pueblos a la energía a un precio barato. Son también acuerdos entre gobiernos que desechan la posible fusión de estas empresas con el capital privado, ni tampoco aceptan la tranferencia de recursos del estado al sector privado. La estrategia consiste en concebir las compañías energéticas nacionales como complementarias para que así tengan un alcance continental.

Una de estas inciativas ocurrió el 17 de junio de

6

7

4 Diputado Rafael Correa Flores, Constuyendo el ALBA “Nuestro Norte es el

Sur”. Ediciones del 40 Aniversario del Parlamento Latinoamericano, 1ª Ed., Caracas/República Bolivariana de Venezuela, Mayo 2005, p. 4.

5

6

7

Idem, p. 16. Idem. Idem, p. 21.

História & Luta de Classes - 11

2003, Brasil y Venezuela realizaron el III Encuentro de Empresarios de Brasil y Venezuela en Manaus y a la cual asistieron Lula y Chávez. En el evento Chávez enfatizó la necesidad de reforzar Mercosur a fin de crear un bloque regional Sudamericano y propuso el establecimiento de un Fondo de Integración de América Latina para fomentar un modelo de integración regional donde los intereses de los pueblos estén por encima de los intereses del mercado y el objetivo de las políticas comunes sea el mejoramiento del standar de vida de los pobres buscando reducir las desigualdades sociales existentes lo que puede ser logrado sólo con la erradicación del neoliberalismo y el establecimiento de mecanismos de cooperación regional.

En mayo de 2005 Argentina, Brasil y Venezuela crearon conjuntamente Petrosur que se convirtió de facto en la empresa energética del Mercosur. En agosto de 2005, Uruguay se unió a la iniciativa que se orienta al desarrollo económico regional así como también a abordar los problemas sociales más urgentes de los estados miembros por medio de programas de salud, de bienestar social y de educación, así como de planes para reducir el desempleo.

Petroamerica firmado por Brasil, Venezuela, Argentina y Bolivia el 8 de junio de 2004, es un projecto de largo plazo, de desarrollo gradual, cuyo objetivo es que las compañías energéticas estatales involucradas asuman la inversión, la explotación y la exploración de petróleo y gas natural conjuntamente, primero como una alianza de compañías individuales que terminarán fusionándose en una multinacional continental. Venezuela ya ha firmado acuerdos bilaterales con Petrobras, Petroecuador, Cupet, y Petrocin, todos orientados a objetivos similares a los de Petroamérica. También Venezuela montó una refinería con Brasil en Pará, Noredeste del Brasil en 2002, que es administrada conjuntamente por Petrobras y PDVSA. El objetivo más amplio es establecer una red de plantas de extracción de petróleo, refinerías y estaciones de gasolina en todo el Nordeste del Brasil (la parte más populosa y más pobre del país) para suministrar petróleo a precios fuertemente subsidiados. En el 2003, un acuerdo similar se firmó entre PDVSA y Petroecuador que dio vida a la “Unidad Hidrocarbuférica Regional” y cuyo sector de gas natural será operado conjuntamente por las dos compañías lo que también involucrará la comercialización conjunta de gas licuado, kerosén,

asfalto, y materias primas para producir lubricantes. Luego, en octubre de 2003, fue el turno de Argentina cuando Néstor Kirchner firmó un acuerdo con Venezuela por el cual las compañías energéticas estatales de provincia entraron en sociedad con PDVSA y Petrobras. En el 2004, Kirchner montó la Empresa Nacional de Energía, ENARSA, con participación mayoritaria del estado para que Argentina pudiera beneficiarse mejor de los acuerdos energéticos con Venezuela, Brasil y otro productores de petróleo de la región. En abril de 2004, Venezuela firmó un acuerdo energético con Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolivia, compañía estatal reforzada por el Presidente Carlos Mesa que había sido reducida a la nada por el ex-Presidente Gonzalo Sánchez de Losada. PDVSA proveerá el expertizaje técnico a objeto de asistir a Bolivia en el proceso de recuperación de sus recursos naturales. Ramírez, jefe de PDVSA, explicó el objetivo estratégico de Petroamérica así:

Juntos seremos más fuertes y tendremos mayor poder de negociación. Tenemos una cultura, idioma, historia y problemas que son parecidos, pero debemos encontrar un consenso en relación a la tecnología y el comercio para abaratar la energía en

nuestros países.

El 26 de setiembre de 2005, los ministros de energía de Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Ecuador, Guyana, Paraguay, Perú, Uruguay, Suriname y Venezuela firmaron la Declaración de Caracas de la Comunidad de Naciones Sudamericanas que intenta continuar dando pasos concretos para la integración energética de los países de la región. En Septiembre de ese mismo año, Brasil y Venezuela firmaron un acuerdo de complementaridad energética e integración entre PDVSA y Petrobras que incluye intensa colaboración en las áreas de suministro y comercialización del petróleo crudo, así como también en la exploración y extracción de petróleo y gas, diseño, construcción y operación conjunta de refinerías, facilidades de almacenamiento y depósitos, transporte y logística, tecnología, adiestramiento y políticas públicas. El propósito, como lo dijo Lula, es un paso gigante en el proceso de integración doscientos años después de la iniciación de ese proceso por los Libertadores. Y el 3 de enero de 2006, Chávez celebró la victoria electoral de Evo Morales en las elecciones de diciembre de

8

9

10

11

8 ENARSA es un retroceso para la privatización dado que reemplaza a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), la antigua compañía estatal que fue vendida por una miseria a Repsol, una corporación española, durante la administración de Menem. 9 Miguel Lora, “Petroamerica, la estrategia sudamericana para recuperar la soberanía energética”, www.granma.cubaweb.cu/secciones/alba.10

PDVSA, Se robustece Petroamérica en el ámbito de la integración, 26-20 September, 2005, www.pdvsa.com 11 PDVSA, Acuerdo energético Venezuela – Brasil fortalece Petrosur y estructura Petroamérica, 30-09-2005, www.pdvsa.com

..

12 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea

12 PDVSA, Presidente Chávez: “Con la llegada de Evo se fortalece Petroamérica”, 03-01-2006, www.pdvsa.com 13

PDVSA, Petroamérica controlaría 11.5% de reservas mundiales de petróleo, 06-10-2004, www.pdvsa.com 14 Venezuela se inclina por la firma de acuerdos de 25 años de largo, tales como en los casos de Uruguay y las naciones del Caribe.

. 15Stephen Lendman, Venezuela's Bolivarian Movement: Its Promise and

Perils, Wednesday, Jan 04, 2006, www.venezuelanalysis.com16 En Enero de 2005, Venezuela compró US$25 millones, un 4%, de los primeros bonos ecuatorianos emitidos desde la bancarrota económica de ese país en 1999 (Simone Baribeau, Venezuela to Buy Argentine Bonds, Backs IMF Payoff Wednesday, Dec 21, 2005, www.venezuelanalysis.com).

.

.

História & Luta de Classes - 13

siendo desarrollados en la agricultura, salud, educación, seguridad en la energía y otros sectores a fin de superar los problemas creados por décadas de Paquetes Estructurales del FMI y siglos de colonización. En una reciente Cumbre de las Américas, Chávez propuso una Alianza Contra el Hambre y la Pobreza y ofreció US$10 billones por toda la próxima década para financiarlo.

Chávez argumenta que el Banco del Sur está pensado como un fondo acumulativo con parte de las reservas de los países participantes (Brasil, Argentina y Venezuela han sido específicamente mencionadas por él) para que sus miembros puedan obtener préstamos y así impedir que sus políticas económicas sean determinadas por Washington. Sin embargo, la propuesta de Chávez va más lejos que el mero establecimiento de una institución financiera. El Banco del Sur es concebido por Venezuela como un instrumento clave en el proceso actual de integración regional y - como lo explicara Gastón Parra, Presidente del Banco Central de Venezuela - se orienta también a la creación de una moneda única, el establecimiento de una zona con tarifas arancelarias comunes y la coordinación de las políticas económicas de los países miembros.

La más reciente manifestación del ALBA es el acuerdo Cuba-Venezuela-Bolivia para la campaña de alfabetización que los dos primeros países realizarán en Bolivia y que beneficiará casi de inmediato a 200.000 personas por medio del método audiovisual cubano “Yo Si Puedo” y que establecerá 10.000 centros de alfabetización en esa nación. El número total de analfabetos en Bolivia es 1.1 millones, es decir, 13.3% de la población. Un número similar en Venezuela fueron alfabetizados en menos de dos años.

El impulso hacia la adopción de políticas de bienestar social por los bolivarianos ha sido sistematizado, desarrollado y concretizado en la Carta social de las Américas , que es hasta ahora, el proyecto anti-neoliberal más completo que se concoce en el terreno de las políticas sociales, desarrollo humano, derechos de las minorías, derechos políticos, nacionales, étnicos e identitarios de los pueblos, así como también en el terreno de la protección del medio ambiente.

17

18

19

20

21

TELESUROtra iniciativa que surge del ALBA es

TELESUR, un canal de TV primeramente orientado a América Latina y que resulta de los esfuerzos conjuntos de los gobiernos de Venezuela (51%), Cuba (19%), Uruguay (10%) y Argentina (20%) con al apoyo de Brasil (el gobierno de Evo Morales acaba de integrarse al proyecto con 5% del total). Su objetivo declarado es rivalizar con las redes como Fox y CNN que dominan el mundo hispánico de la TV y otros medios de audiencias masiva. Jorge Botero, director colombiano de Telesur, señala que con el nuevo canal de TV “Queremos que nuestras cámaras vayan a lugares donde nunca han estado, para dar una perspectiva desde abajo [...]. La verdadera cara de América Latina.” Esta es la perspectiva del Sur desde el Sur, y la relación del Sur con el Sur, así como también la relación del Sur con el Norte, como bien lo señala el eslogan del canal: “Nuestro Norte es el Sur.” La construcción de otra perspectiva, una perspectiva colectiva de los latinoamericanos mismos sobre si mismos, implica la construcción de otro mundo. Como lo explica Florencia Copley:

En el mundo social, la palabra “otro”, es sinónimo de una nueva construcción. Otro mundo posible, otra América Latina, otro tipo de comunicación de masas. Es la búsqueda de una forma de ser diferente, que se necesita, justa y digna, aparte de cualquier otro punto de vista impuesto por el sistema que oprime y aliena. Esa es la razón por la que Telesur – televisión del sur – nos da ‘otra perspectiva’, su propio compromiso, que se opone de forma fundamental a la perspectiva que tiene el Norte de nosotros.

Telesur es un proyecto de telecomunicaciones anti-hegemónico, único en su campo, y que representa un esfuerzo mayor debido a que enfrenta a poderosos oligopolios mediáticos que abrumadoramente dominan las transmisiones. La importancia de tener una perspectiva alternativa, crítica de la noticia es cada vez más crucial en la medida en que América Latina gira a la izquierda y los partidos tradicionales, pro-EE.UU., confían cada vez más en la manipulación y la mentira para ocultar la verdad. En el golpe de abril de 2002 contra el

22

23

17Stephen Lendman, Venezuela's Bolivarian Movement: Its Promise and

Perils, Wednesday, Jan 04, 2006, www.venezuelanalysis.com 18

En un seminario sobre integración regional organizado por Venezuela, Brasil y Argentina realizado en Caracas el 24 de Marzo de 2006, al que asistieron los presidentes o representantes, de Belize, Ecuador, Honduras, Uruguay, República Dominicana, Haití, Cuba, Perú y de otras 16 instituciones regionales financieras.19

Prensa Latina, Venezuela urges Lat Am Banco del Sur, March 25, 2006, http://www.plenglish.com/article.asp?ID=%7B65AF16BA-D011-47D6-A6AA-F9E905370052%7D&language=EN

..

..

..

20 Ministerio de Comunicación e Información de la República Bolivariana de

Venezuela, Venezuela-Cuba-Bolivia: Plan de Alfabetización para América Latina, 20 Marzo, 2006; La Razón, Venezuela-Cuba-Bolivia: El Plan de Alfabetización, 20 Marzo, 2006; Prensa Latina, Primera Oleada de Alfabetización Alcanzará a 200 Mil Bolivianos; 20 Marzo, 2006.21 Ediciones Emancipación, www.emancipacion.org 22

Ian Bruce, Caracas Venezuela sets up “CNN rival”,http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/4620411.stm23 Florencia Copley, Telesur construye otra perspectiva, www.venezuelanalysis.com, 14 Deciembre, 2005.

14 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea

Presidente Chávez, los medios, en particular las redes de TV, jugaron un rol central al contribuir a la creación de la atmósfera que hizo posible el derrocamiento temporal de Chávez. En Venezuela, el 90% de los medio son compañías privadas, anti-chavistas y su mensaje, que es normalmente vociferante, se ha hecho cada vez más estridente, abiertamente propagandístico, y se ha abandonado cualquier pretensión de objetividad.

Además, en la region el 70% de la programación televisiva se importa y Estados Unidos son responsables del 62% de ese total. La industria de exportación más grande de Estados Unidos es la industria del cine y de la televisión. Adicionalmente, Estados Unidos, la Unión Europa y Japón controlan el 90% de la información mundial, y de las 300 corporaciones de la información más grandes del mundo, 144 son norteamericanas, 80 son europeas y 49 son japonesas. Para coronar todo esto, las corporaciones oligopólicas que “informan” a América Latina son compañías tales como:

CNN de Time Warner; ABC de Disney/Cap Cities; NBC de General Electric y CBS de Westinghouse. Sólo una [agencia] tiene vínculos latinoamericanos: el grupo Cisneros, que controla Galaxy Latin America (que introdujo DirectTV) y Caribean Communications Networks que manejan TV, radio y prensa escrita [...] El grupo Cisneros está asociado con la GM Hughes Electronics Corporation de los Estados Unidos, con TV Abril de Brasil y Multivisión de Mexico. Además, domina Univisión, una red que controla tres cuartos de la audiencia hispánica en los Estados Unidos, Imagen Satelital, el proveedor de TV cable en la Argentina, Venevisión International Film Group y Chilevisión.

La perspectiva alternativa que Telesur proyecta ha quedado en manos de probados intelectuales quienes, cada uno en su propia forma individual, y utilizando métodos diversos, han formulado, con el correr de los años, una crítica coherente y consecuente de la globalización y todas sus nefastas consecuencias. Entre los miembros del Comité Asesor de Telesur encontramos a Ernesto Cardenal de Nicaragua, Eduardo Galeano de Uruguay, Luis Britto de Venezuela, Fernando “Pino” Solanas de Argentina, Ignacio Ramonet de Francia, Danny Glover de Estados Unidos, y Tariq Alí, británico de origen paquistaní.

Pese a la desafavorable y distorsionada

24

información de los medios tradicionales, Telesur es independiente de los gobiernos que la auspician y tiene corresponsales en Bogotá, Brasilia, Buenos Aires, Caracas, Ciudad de México, La Habana, Montevideo, La Paz y Washington, además de una red de conexiones con otras redes. Telesur procura activamente vínculos con los movimientos sociales y de masas en la región para poder informar sobre su situación y sus luchas. Telesur activa y concientemente muestra “la otra América”, la que nunca aparece en las pantallas de las grandes cadenas de TV: las comunidades indígenas, las comunidades negras, campesinos, trabajadores, mujeres, jóvenes de los barrios (incluyendo hasta su música rap), y los pobres en general, todo combinado con documentales informativos, entrevistas a intelectuales, artistas y políticos radicales. El irresistible atractivo de Telesur reside en que es el único medio que informa a los latinoamericanos sobre ellos mismos, por ellos mismos y sobre sus aspiraciones. Nunca antes la hegemonía propagandística y cultural de Estados Unidos había sido contrarrestada tan eficazmente y tan completamente.

Obstáculos politicos y económicos al ALBAEl proceso que se ha descrito más arriba es

verdaderamente formidable y puede aún parecer imparable, sin embargo, los obstáculos a su desarrollo no son menos formidables. Los obstáculos son de dos tipos: la oposición total de Estados Unidos a su continuo progreso, además de las complejidades objetivas de armonizar economías enormemente diversas en un proceso de integración regional.

Un puntal importante de la táctica estadounidense es atraer tantos países como sea posible en la región a firmar TLC individuales como una forma de inocularlos contra el bolivarianismo de Cuba y Venezuela. Ya en América Central el gobierno de Bush ha encajonado a todos los países de la sub-región en el CAFTA. La firma de TLC individuales se ha extendido a Colombia, Ecuador, Perú y Chile. De la misma manera, Estados Unidos tiene mucho interés en alejar a los gobiernos izquierdistas más moderados de la región como Brasil, Argentina y Uruguay del proyecto ALBA y hacia una alianza con el gobierno de Bush por medio de la implementación de algún tipo de TLC. Cuando eso no da resultados, busca desestabilizarlos para impedir su reelección. El programa de desestabilización contra Evo Morales parece ya haber empezado y parece consistir en una

25

24 Idem.25

Telesur ha sido objeto de duros ataques por parte de Republicanos tales como Connie Mack [R-Florida] para quien Telesur disemina la más perniciosa propaganda “comunista” de Chávez para promocionar su Revolución Bolivariana en el continente y socavar la posición de Estados Unidos en el

Hemisferio Occidental. En su website Mack presenta a Telesur como algo todavía mucho peor: “Nueva alianza entre el Telesur de Chávez y Al-Jazeera crean una red de TV del terror”:(http://mack.house.gov/index.cfm?FuseAction=PressReleases.View&ContentRecord_id=173).

História & Luta de Classes - 15

combinación de terrorismo con apoyo a las corrientes secesionistas de Santa Cruz. Pero la estrategia global esencial del imperio consiste en aislar a Venezuela, Cuba y a Bolivia para lograr un cambio de régimen en los tres países.

El ALBA enfrenta también otro obstáculo organizativo puesto que no está claro qué tipo de organismos o instituciones regionales pueden ser o serán creadas que comanden autoridad suficiente para tomar decisiones por encima de la soberanía de los estados nacionales.

Está, además, el aparentemente insuperable problema de las asimetrías. Este problema es evidente en las significativas diferencias en los costos de mano de obra de Brasil y Argentina, por ejemplo, y su significancia se puede colegir en el hecho de que ambos países son responsables de la abrumadora mayoría del comercio en Mercosur. Recientemente, en 2004-2005, Argentina rompía las reglas del bloque al practicar el proteccionismo contra las importaciones de su poderosos vecino, debido a que frustraban la recuperación industrial del país. Además, Brasil y Argentina son rivales comerciales en practicamente todas las áreas económicas ya que exportan a los mismos países y procuran atraer inversión extranjera de las mismas fuentes.

La elección de Morales en Bolivia consolida la posición de los bolivarianos al nivel continental al cambiar la relación de fuerzas más aún en su favor y contra Estados Unidos pero:

La cuestión del gas presentará un desafío clave a las relaciones de Bolivia con el gobierno argentino de Kirchner y el gobierno brasileño de Lula. Por muchos años, estos países se han beneficiado de las transnacionales que les vendían gas boliviano a precios con fuertes descuentos. Mientras que el precio internacional del gas era unos US$10 por un millón de BTU, por ejemplo, Argentina recibía gas a US$3.25 el millón de BTU. Para los bolivianos, esta situación tiene que cambiar para poder sacar al país de la pobreza.

Además, si Morales quiere aumentar su fuerza electoral y política tiene que dar satisfacción a las demandas acumuladas del movimiento social que representa la inmensa mayoría de los bolivianos. La única posible fuente de recursos económicos para financiar esos programas sociales es el gas natural.

26

27

28

No será nada fácil para Argentina y Brasil absorber los costos extras. Morales tiene que cumplir con el movimiento social, de otra manera su estrategia de reformar la constitución por medio de una Asamblea Nacional a la Chávez no dará resultados.

Estos obstáculos objetivos, que se originan en el desarrollo desigual y combinado de los países latinoamericanos, pueden multiplicarse ad infinitum véase el intenso conflicto entre Argentina y Uruguay sobre la construcción de dos plantas de celulosa en la frontera. Disparidades similares se pueden encontrar entre Perú y Bolivia, Perú y Ecuador, Bolivia, Ecuador, Argentina y entres estos tres y Brasil. Ningún proceso de integración - y el ALBA no es excepción - puede superar estos enormes obstáculos en el corto plazo.

El ALBA y Estados Unidos: la confrontación que viene

El ALBA y el ALCA son fundamentalmente incompatibles y el gobierno de Bush (o sus posibles sucesores Demócratas) harán lo que sea para detener y revertir la lógica objetiva y subjetiva del ALBA. Es inimaginable que el imperio esté dispuesto a coexistir y cohabitar un hemisferio en el cual acepte que sus vecinos – tradicionalmente bajo su dominio económico, político y cultural – reafirmen su independencia, nacionalismo y autonomía contra los intereses financieros, industriales y militares de la oligarquía financiera en cuyos intereses Estados Unidos y toda la región han hasta ahora sido gobernados.

Dada la intensa hostilidad expresada por altos personeros de la administración Bush, tales como Condoleezza Rice, Donald Rumsfeld, Roger Noriega, John Negroponte, John Bolton y unos cuantos otros, la oposición de Estados Unidos a la integración bolivariana de algunos de los países de América Latina es total y absoluta. La hostilidad estadounidense es intensa: si pueden derrocar el gobierno de Chávez, lo harán, no importa si es a través del apoyo a una campaña de desestabilización de largo plazo (lo que ya han intentado y fracasado, varias veces), o un conflicto fronterizo que involucre a Colombia y que justificaría una invasión “conjunta” de Venezuela, o por medio de una invasión puramente yanqui, la decisión del imperio es que el “problema Venezuela será resuelto”. Esta hostilidad se exacerba

26 La falta de una infraestructura institucional supranacional ha sido uno de los

mayores obstáculos en el desarrollo de Mercosur (para una discussion detallada de estas cuestiones ver Francisco Domínguez and Marcos Guedes de Oliveira (eds.), Mercosur: Between Integration and Democracy, Peter Lang European Publishers, Berne, 2003).27 Green Left Weekly, Reversing neo-liberalism: an interview with Bolivia's

new energy minister, 1 February, 2006,www.greenleft.org.au/back/2006/654/654p12.htm 28

Los primeros pasos se dieron al día siguiente de la investidura de Morales. PDVSA abrió una oficina en La Paz el 23 de Enero de 2006. Ese mismo día, Chávez y Morales firmaron un acuerdo de cooperación entre PDVSA y YPFB para desarrollar proyectos de infraestructura, procesamiento y refinamiento de gas y petróleo. Idem.

16 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea

por el hecho que uno de los aliados estratégicos de Venezuela es Cuba. En ambos casos, la lógica de los planes yanquis es la subversión y el derrocamiento de estos dos regímenes por medio de una invasión militar.

Es difícil interpretar el deseo obsesivo de la administración Bush de establecer tantas bases militares en América Latina que no sea como parte de la preparación sistemática para la “guerra preventiva” contra “estados delincuentes” en la región. Estados Unidos tiene bases militares en Guantanamo Bay, Roosevelt Roads y Forth Buchanan en Puerto Rico, bases aéreas en Aruba y Curaçao, Palmerola y Soto Cano en Honduras, Manta en Ecuador, y estaciones de radar en Colombia y varias otras posiciones secretas en la región y está aceleradamente militarizando la Triple Frontera (área fronteriza de Brasil, Paraguay y Argentina), donde voceros estadounidenses afirman – sin evedencia alguna - que Al-Qaida e Hizbollah tienen vínculos con guerrillas marxistas, populistas radicales, narco-traficantes izquierdistas y, por supuesto, con Chávez, Castro y Evo Morales también. Además, Estados Unidos ya opera en las dependencias militares de Coronel Oviedo, Salto de Guairá y Pedro Juan Caballero, en Paraguay, y desde mayo de 2005, tiene su propia base militar otorgada por el gobierno y parlamento paraguayos en Mariscal Estagarribia.Recientemente, Estados Unidos ha establecido un campo militar en Barahona, República Dominicana, con el pretexto de proveer a la población local de agua potable, que se está rapidamente convirtiendo en una base militar. En este sentido, se manifiesta una tendencia precoupante en el gasto militar estodounidense: de los US$333.7 billones que EE.UU. gasta en defensa, 43% está dedicado a América Latina.

Cierto, el imperio está empantanado en Irak y parece que le será imposible salir del lío en el que se metió allí por un buen tiempo. Por ello, parece difícil que Estados Unidos lance una invasión militar contra Venezuela o Cuba, o contra ambas simultáneamente. Sin embargo, está desesperado. En el corto plazo la administración Bush tiene apenas dos años para crear

29

30

las condiciones que le permitan primero hacer retroceder, y luego aplastar completamente, el proceso bolivariano y así “resolver” en forma definitiva los problemas en su “patio trasero”. Es muy improbable que la elección presidencial en el 2008 resulte en otro gobierno Republicano aunque, desde el 2000, las elecciones presidenciales en Estados Unidos se han convertido en eventos bastante impredecibles. Por ello, el imperio está ocupadísimo expandiendo sus posiciones y capacidades militares en la región para el enfrentamiento que sabe que se aproxima. El conflicto entre el ALBA y el ALCA se aproxima inexorablemente a su denouement. Todos a apostar por el ALBA.

29 En relación a Cuba, Estados Unidos tiene pleaneado un cambio de régimen

que incluye, entre otras preciosuras, la disolución completa de las instituciones armadas del Estado, la ilegalización del Partido Comunista de Cuba, de la Confederación de Trabajadores de Cuba, la Federación de Mujeres Cubanas y muchas otras organizaciones en la isla, la transformación de Cuba en un país capitalista, la recuperación de la tierra, propiedades, edificios, casas, empresas y todo lo demás que “pertenecía” a las compañías estadounidenses y a algunos de los cubanos exiliados en Miami. Estados Unidos ha además nominado a un “Coordinador de la Transición”, Caleb McGarry.30

Cristian Lora, Fuerzas de EE.UU Inician Operativo "Medrete", Portalba, Alternativa Bolivariana para la América, 10 March, 2006. www.alternativabolivariana.org

História & Luta de Classes - 17

Mariátegui e as raízes da

Tiago Coelho Fernandes1

Apresentação2

R

“Tupac Amaru, sol vencido,de tua glória desgarradasobe como o céu no mar

uma luz desaparecida.As fundas aldeias de argila,

os teares sacrificados,as úmidas casas de areia

dizem em silêncio: 'Tupac',e Tupac é uma semente,

dizem em silêncio: 'Tupac',e Tupac se guarda no sulco, dizem em silêncio: 'Tupac',e Tupac germina na terra.”

Pablo Neruda

rebelião indígena

ebelião no Equador, avanços na Bolívia, confrontos no Paraguai, rebeldia no México, insubordinação no sul do Chile, inquietação no Peru. Dê-se o nome que queira, mas a tomada de cena pelas populações originárias em nosso continente aos poucos foi ampliando seu eco e já não pode ser ignorada, deixando muitos intelectuais perplexos, outros eufóricos e ainda outros indignados, ou pelo menos incomodados. Para os liberais, representa a crise da democracia; para os pós-modernos, uma saudável afirmação da diversidade que se arrisca a cometer alguns excessos; para os “marxistas” mais dogmáticos, um fenômeno difícil de aceitar, que tentam enquadrar nos tradicionais esquemas teóricos. Daí a necessidade de buscar ferramentas que nos ajudem a compreender e estabelecer um diálogo crítico, mas aberto, com esses processos.

Neste trabalho, analisarei as reflexões do revolucionário peruano José Carlos Mariátegui sobre a temática indígena. Sua abordagem se destaca pela originalidade, a partir de um ponto de vista marxista, podendo ser uma produtiva fonte de diálogo com as atuais tendências dos movimentos indígenas. O debate aqui se enfocará nas suas idéias sobre o tema. Explorar as possibilidades, as tensões e os limites desse diálogo, enfocando o discurso das organizações contemporâneas dos povos originários é parte do trabalho que estou desenvolvendo no mestrado.

O contexto peruano: falência do projeto de nação e resistência secular

O Peru no final do século XIX era um país em crise. Humilhadas na Guerra do Pacifico, as classes dirigentes ficaram desmoralizadas internamente e o

sistema de poder estruturado após a independência (1821) profundamente abalado. Despreparado e dividido, o antigo centro do Império Inca e da administração colonial espanhola viu sua economia ser destruída e o exército chileno tomar sua capital. Com a desestruturação do exército, a elite recorreu à massa indígena, que vivia na serra. Porém, esses, que eram a maioria da população, não abraçavam a guerra como se fosse sua, o que de fato nunca poderia ter sido. De qualquer forma, essa mobilização detonou diversas rebeliões contra a condição secular de exploração e miséria. Outros grupos seriam acaudilhados por chefes criollos locais nas disputas pela recomposição do poder. As contradições chegaram a tal ponto que um setor significativo da classe dominante, inclusive com apoio na própria oficialidade, abandonou os princípios nacionalistas e adotou uma atitude colaboracionista com os chilenos, buscando negociar condições mais favoráveis para um acordo de paz. No dia 23 de outubro de 1883 é assinado o Tratado de Ancón que concede ao vencedor uma importante região de nitrato e ainda a administração das províncias da Tacna e Arica.

Esse quadro acarretou um clima de tensão nas comunidades, gerando conflitos, instabilidade e rebeliões. Nas disputas que se seguiram à guerra, o marechal Andrés Cáceres, um dos caudilhos que se opunha aos acordos de paz, armou milícias indígenas na sierra central. Mas os “montoneros”, até então

1

2

Graduado em História (UFF) e Mestrando em Serviço Social (UFRJ).O presente texto é uma versão reduzida de minha monografia de fim de curso, apresentada no ano de 2004, no Curso de Graduação em História da UFF.

História & Luta de Classes - 19

sistematicamente excluídos daquele projeto de nação, não se conformaram em serem peões do jogo político e atacaram, não só as forças do governo, mas também membros da elite considerados traidores, ocupando fazendas que eram reclamadas pelas comunidades.

O marechal retrocedeu, reprimindo as manifestações indígenas em apoio aos fazendeiros. Mas a caixa de Pandora já estava aberta. Pouco depois, em 1885, irrompeu a revolta de Astuparia, no departamento de Ancash. Essa insurreição teve grande repercussão, por sua extensão e intensidade. Astuparia era um curaca que apoiara Cáceres na guerra civil, mas que não aceitou a imposição de novos tributos aos indígenas – na verdade a reedição de antigos impostos – para cobrir os custos da guerra. Comandou o levante de milhares de camponeses que chegaram a tomar a capital do departamento, Huaraz. À derrota para as forças governistas, se seguiu um inevitável massacre. Não obstante, ao resenhar em 1925 uma obra sobre o tema, Mariátegui apontaria novas mobilizações na mesma região, enquadrando-as na longa tradição de luta dos indígenas e notando seus limites.

“El indio, tan fácilmente tachado de sumisión y cobardía, no ha cesado de rebelarse contra el régimen semifeudal que lo oprime bajo la república como bajo la colonia. (...) Oficialmente, no se registra sino a Túpac Amaru, a título de precursor de la revolución de la independencia, que fue la obra de otra clase y la victoria de otras reivindicaciones. Ya se escribirá la crónica de esta lucha de siglos. (...) La derrota de Astuparia y Uschu Pedro es una de las muchas derrotas sufridas por la raza indígena. Los indios de Ancash se levantaron contra los blancos, protestando contra los trabajos de la república, contra el tributo personal. La insurrección tuvo una clara motivación económico-social. (...) Pero cuando la revuelta aspiró a transformarse en una revolución, se sintió impotente por falta de fusiles, de programa y de doctrina”.

O século XX trouxe no Peru, desde o início, a marca das rebeliões indo-camponesas. Na região sul, foram registrados mais de 300 conflitos esporádicos de 1901 a 1930 em Arequipa, enquanto outra pesquisa aponta 11 sublevaçeُs nos trinta e quatro anos que se seguem a 1890 na região vizinha de Puno. A mais famosa ocorreu em 1915 até hoje é envolta em mistério. Seu principal líder fora Teodomiro

3

4

5

6

Gutiérrez, um mestiço major do Exército, que assumiu o nome quéchua Rumimaqui (Mão de Pedra) e comandou o levante de um exército de indígenas. Pouco se sabe sobre seu desenrolar ou objetivos. O relato da rebelião foi todo produzido por fazendeiros da região e os poucos documentos e declarações atribuídos a Rumimaqui falam da expulsão dos gamonales e de uma restauração do Tawantisuyu incaico, mas são de autenticidade duvidosa. O líder do levante foi preso em maio de 1916 e negou qualquer participação no movimento. Há duas versões para o seu fim: a mais provável é a de que tenha sido fuzilado; a mais popular é a de que sumiu através da fronteira com a Bolívia e teria se integrado ao movimento anarquista.

Ao mesmo tempo em que o país passava por essa situação de humilhação e acerto de contas, num processo aparentemente contraditório iniciava uma etapa de modernização capitalista. “Nos cinqüenta anos que se seguiram a seu término [da guerra], o Peru, a sociedade ‘feudal’ por excelência da América Latina seria impelido para a economia mundial então em crescimento e reformularia seus modos de produção, tendo em vista as exigências especiais do capitalismo industrial do Ocidente na era de expansão imperial”. A economia passou a ser marcada pela penetração do capital estrangeiro sob hegemonia estadunidense, em particular no setor mineiro, enquanto a oligarquia se recompunha, abrindo-se a novas gerações – obviamente sem superar as antigas estruturas – e mantendo-se a hegemonia do partido civilista.

A paisagem urbana também passou por grandes transformações, com a formação de uma incipiente classe operária concentrada na capital Lima e seu porto Callao responsável por importantes mobilizações, como a greve geral de 1918. A classe média se expandiu, trazendo novos agentes e demandas ao quadro político e inclusive se aliando às mobilizações operárias, destacando-se a radicalidade da Reforma Universitária que, iniciada em Córdoba (Argentina) em 1918, se espalhou por todo o continente mas perdurou por mais tempo e com mais resultados no Peru.

Do comunismo incaico ao comunismo modernoEm torno às sublevações de finais do século

XIX e início do XX, se formou no Peru um

7

8

3

4

5

KLARÉN, Peter. As origens do Peru moderno, 1880-1930. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina, vol. V: de 1870 a 1930. São Paulo/Brasília, Edusp/Imprensa Oficial do Estado/Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p. 324.

Chefes comunitários, em geral cooptados para a estrutura de dominação colonial e oligárquica.

“Prefacio a El Amauta Astuparia” (1930) in: MARIÁTEGUI, J.C.

Invitación a la vida heroica/Antología. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1989. pp. 426-427.KLAREN, Peter. op. cit., p. 354.LEIBNER, Gerardo El mito del socialismo indígena en Mariátegui. Lima,

Fondo Editorial de la PUC Peru, 1999. p. 199.KLARÉN, Peter . op. cit., p. 317

6

7

8

20 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena

importante corrente “indigenista” contemporânea. Na capital e pelo interior do país, diversos intelectuais abraçaram a causa dos povos originários, escrevendo romances, lançando manifestos e revistas. Vale notar que essa tendência coincide com o movimento das vanguardas modernistas, de forma que alguns dos principais expoentes das artes no início do século XX se ocuparam dessa temática. Esse encontro é sem dúvida um fator de radicalização desses escritores. Mesmo aqueles que não podem ser qualificados exatamente de “indigenistas”, mas se dedicaram a refletir um projeto para o Peru, foram obrigados a pensar essa questão, já que ela se impôs como uma contradição fundamental em um país que se questionava sobre o passado recente e debatia como seguir em frente.

Clorinda Mattos de Turner é uma das precursoras da literatura indigenista. Seu romance Aves sin nido (1889) é apontado como pioneiro na denúncia humanista da exploração de que padeciam os povos originários. Por outro lado, Manuel González Prada (1848-1918) foi a maior expressão intelectual da desilusão com as classes dirigentes. De origem aristocrática, alternou fases onde eram maiores as influências positivista, romântica e socialista, até chegar ao anarquismo. Porém, o que o caracteriza não é um programa para ação, mas os ataques demolidores àquela sociedade e seus valores. Atribui à aristocracia peruana a impotência e o fracasso na guerra. Nas páginas de livros como Horas de Lucha, Pájinas Libres seus ataques atingem sem eufemismos a liberais, conservadores, magistrados, aristocratas e Igreja. Esta é seu alvo predileto; o seu anticlericalismo lembra o velho anarquismo ibérico. Prada sintetiza o fracasso do Peru no fato de a maior parte da população não estar incorporada à vida nacional, denunciando o oportunismo caudilhista. “Con las muchedumbres l ibres aunque indisciplinadas de la Revolución, Francia marchó a la victoria; con los ejércitos de indios disciplinados i sin libertad, el Perú irá siempre a la derrota. Si del indio hicimos un siervo ¿qué patria defenderá? Como el siervo de la Edad media, sólo combatirá por el señor feudal”.

Seu estilo e suas idéias influenciaram não apenas os anarquistas peruanos, mas toda a geração seguinte de intelectuais radicais. Mariátegui reconheceu criticamente a importância e o pioneirismo do anarquista, que era cético quanto a apelos humanitários à classe dominante, pregou a

9

10

libertação pela violência e pela auto-organização e adiantava a questão indígena como uma questão sócio-econômica:

“La condición del indígena puede mejorar de dos maneras: o el corazón de los opresores se conduele al extremo de reconocer el derecho de los oprimidos, o el ánimo de los oprimidos adquiere la virilidad suficiente para escamotear a los opresores. Si el indio aprovechara en rifles y cápsulas todo el dinero que desperdicia en alcohol y fiestas, si en un rincón de su choza o en el agujero de una peña escondiera una arma, cambiaría de condición, haría respetar su propiedad y su vida. A la violencia respondería con la violencia, escarmentando al patrón que le arrebata las lanas, al soldado que le recluta en nombre del gobierno, al montonero que le roba ganado y bestias de carga”.

A Asociación Proindigena, de tendência liberal e assistencialista, surgiu em 1909, liderada por Dora Mayer. Sua ação está próxima daquela criticada por Prada. Pelas vias legais, buscava garantir os direitos e o bem-estar dos povos indígenas, alertando a sociedade – o que incluía a classe dominante – para sua situação. Porém, atuando em seu nome, não eram entidades próprias das comunidades. Na análise de sua fundadora, seu efeito mais positivo foi justamente auxiliar no “despertar indígena”, ou seja, instigar as comunidades a criar mecanismos próprios de reivindicação e defesa.

A vanguarda modernista surge na década de 1920 pelas letras de César Vallejo (autor de Los heraldos Negros, Trilce). Em Cuzco se articula o grupo Risorgimiento, onde se destaca Luís E. Valcárcel (Tempestad en los Andes) e em Puno o Boletim Titikaka, que reuniu os irmãos Arturo Peralta (El pez de oro) e Alejandro Peralta (Ande, El Kollao) e chegou a publicar dois poemas de Mário de Andrade. Muitos desses setores mais radicalizados se integraram ao projeto da revista Amauta e acompanharam a fundação do Partido Socialista, em 1928, ambos projetos liderados por Mariátegui.

Nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, seu livro mais importante e um dos poucos publicados em vida, Mariátegui desenvolve uma breve revisão crítica dos enfoques que a questão indígena recebera até então:

“Todas as teses sobre o problema indígena, que o ignoram ou dele se esquivam como problema

11

12

13

9

10

..

..

Cf. SCHWARTZ, Roberto, Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp/Iluminuras/ FAPESP, 1995, p. 167-169.

PRADA, Manuel G. “Discurso en el Politeama”. In: Pájinas libres. <http://www.evergreen.loyola.edu/~tward/gp/libros/paginas/pajinas6.html>. Acesso em 12/02/2007. Mantida grafia original.

11

12

13

PRADA, Manuel G. “Nuestros índios”, in: ZEA, Leopold (compilador). Fuente de la cultura latinoamericana. México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 1995 (reimp.). p. 43 (vol. I).

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da interpretação peruana. São Paulo, Alfa-Omega, 1975. pp. 25-26. SCHWARTZ, op. cit., 168.

..

História & Luta de Classes - 21

econômico social, não passam de estéreis exercícios teoréticos – e, às vezes, unicamente verbais –, condenados a um total descrédito. A boa fé de algumas não as redime. Na prática, somente serviram para ocultar ou desfigurar a realidade do problema. A crítica socialista o descobre e explica, porque busca suas causas na economia do país e não no mecanismo administrativo, jurídico ou eclesiástico, nem na dualidade ou pluralidade de raças, nem nas condições culturais ou morais. A questão indígena emerge de nossa economia. Suas raízes estão no regime de propriedade da terra. Qualquer tentativa de resolvê-la através de medidas administrativas ou policiais, através de métodos de ensino ou com obras de irrigação, constitui um trabalho superficial ou adjetivo, enquanto subsistir o método feudal dos ‘gamonales’”.

Assim, seu autor se insere no debate corrente, explicitando qual seria o enfoque marxista. É a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí decorrentes que possibilita compreender a situação dos povos indígenas e elaborar um programa de sua emancipação. São inócuas as tentativas de soluções unilaterais do ponto de vista administrativo, jurídico, étnico, moral, educacional ou eclesiástico, que eram apresentadas e praticadas pelos governos, pela Igreja ou por entidades civis com o intuito de amenizar o sofrimento dos povos originários. O exemplo mais dramático é a própria independência do país que, sob a liderança da elite criolla igualou todos juridicamente na condição de cidadãos e empreendeu a modernização do Estado, elaborando uma nova legislação que explicitava preocupação com a população indígena. No entanto, atendeu unicamente aos interesses dessa elite, mantendo a condição das massas indígenas pouco alterada e em alguns momentos até pior, pois acrescentou à antiga estrutura agrária a super-exploração capitalista, o avanço mercantil sobre as terras comunais e a reedição de impostos e tributos do período colonial. Diante desse quadro, de maneira objetiva, conclui Mariátegui: “O novo enquadramento consiste em pesquisar o problema indígena no problema da terra”.

Por isso os três primeiros ensaios de sua obra básica, nos quais ele estuda o “Esquema da evolução econômica”, o “Problema do índio” e o “Problema da terra”, articulam-se dialeticamente.

No pr imeiro, Mariátegui anal isa o desenvolvimento da economia do Peru, destacando os aspectos básicos dos períodos colonial e republicano. Logo na abertura do texto, observa que a conquista espanhola representou uma ruptura na história do

14

15

país. “Até a Conquista, desenvolveu-se no Peru uma economia que brotava espontânea e livremente do solo e do povo peruanos”. Uma economia que se desenvolvia com afluência foi destruída e substituída por um sistema de exploração e atraso: “Sobre as ruínas e os resíduos de uma economia socialista, lançaram as bases de uma economia feudal”.

Seu trabalho recebeu muitas críticas, pelas informações imprecisas e idealizadas do Império Inca. De fato, podemos dizer que esse seria um “ponto fraco” de suas pesquisas. Hoje, este é reconhecido por muitos como um Estado aristocrático e expansionista que oprimia diversas etnias. A idéia que fazemos de socialismo dificilmente seria adequada à estrutura dessa sociedade. No entanto, para Mariátegui, o essencial não é reconstituir o funcionamento do Império Inca pelo método histórico-científico. Na sua perspectiva, inclusive na forma como entende a história, muito influenciada pelo combate ao positivismo dominante, o que importa é como os povos originários atuais interpretam e absorvem o passado inca e como os ayllus se organizam e se inserem na sociedade contemporânea. Isso porque seu interesse não é acadêmico e sua proposta não é o retorno a esse passado, mas o aproveitamento de elementos potenciais na construção do socialismo, seu objetivo estratégico. Daí a centralidade do conceito de “mito”, que cumpriria o papel de catalisador das mobilizações e da construção do projeto socialista. Para ele, está clara a impossibilidade de voltar atrás a roda da história e por diversas vezes anuncia não apenas essa impossibilidade, mas a inconveniência de abrir mão das técnicas e das ideologias modernas. Em uma extensa nota na qual defende o emprego do conceito de “comunismo incaico”, adverte enfaticamente que “O comunismo moderno é uma coisa diferente do comunismo incaico. Isto é, a primeira coisa que deve entender o estudioso que explora o Tawantisuyu. Um e outro comunismo são produto de diferentes experiências humanas. Pertencem a diferentes épocas históricas. Constituem a elaboração de civilizações dessemelhantes. A dos incas foi uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial. Naquela, o homem submetia-se à natureza. Nesta, a natureza se submete, às vezes, ao homem. É absurdo, portanto, confrontar as formas e as instituições de um e outro comunismo. O único que podemos confrontar é a sua incorpórea semelhança essencial, dentro da diferença essencial e material de tempo e espaço. E para esta confrontação é

16

17

1 8

14

15

MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), p. 21.Idem, p. 28..

16

17

18

Idem, p. 3Idem, p. 4.Cf. SOREL, George. Reflexões sobre a Violência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

.

22 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena

necessário um certo relativismo histórico”.E mais à frente, respondendo à acusação de

autocrático ao regime dos Incas, argumenta: “A autocracia e o comunismo são incompatíveis em nossa época; mas não o foram em sociedades primitivas. Nos dias atuais, uma nova ordem não pode renunciar a nenhum dos progressos morais da sociedade moderna. O socialismo contemporâneo – outras épocas tiveram outros tipos de socialismo, que a história designa com nomes diversos – é a antítese do liberalismo; mas nasce de suas entranhas e nutre-se da sua experiência. Não rejeita nenhuma de suas conquistas intelectuais. Escarnece e vilipendia apenas suas limitações.”

Portanto, se o problema do índio é o problema da terra, mais importante do que interpretar com precisão o funcionamento interno das comunidades é compreendê-la no contexto geral da sociedade peruana. E nesse ponto se destaca em sua análise a identificação de três regimes econômicos diferentes que se sobrepõem. Na serra, os resquícios das comunidades incaicas sobrevivem sob o que ele chama de regime feudal. No litoral, o capitalismo se insere sem formar uma burguesia forte. É essa interpretação pioneira que fundamenta materialmente a defesa do socialismo e não apenas um ideal de sobrevivência das comunidades. Mariátegui aponta a inexistência de uma burguesia peruana capaz de liderar a revolução antifeudal. Por outro lado, ao analisar a realidade peruana não encontra o proletariado do qual falava Marx. Isso não o impede de defender o socialismo justamente como alternativa ao atraso colonial de seu país e à opressão histórica dos indígenas. A solução da questão agrária, a emancipação dos índios e a revolução socialista, além do próprio processo de formação da nação se unem em um só processo.

Enquanto isso, a APRA de Haya de la Torre e o comunismo oficial a partir dos anos 1930 partem de premissas opostas para chegar às mesmas concluseُs. Para ambos, os resquícios feudais e a industrialização incipiente no continente colocavam a tarefa prioritária de uma revolução antifeudal, antiimperialista e democrática, dirigida pelas burguesias locais.

No documento enviado à reunião de partidos comunistas do continente em 1929 , esse programa é mais bem sistematizado. Após uma breve introdução onde coloca a questão nos termos já apresentados nos Sete ensaios, o documento analisa o conceito de “raça”, numa perspectiva que supera as teorias

19

20

21

22

racistas do século XIX. Em seguida, relaciona o aumento da exploração capitalista com os conflitos raciais. Em sua análise sobre os países andinos, relaciona de forma brilhante as reivindicações indígenas com as demandas gerais da população, já que compõem sua maioria. Suas observações levam em conta as nuances de se trabalhar com o intercruzamento entre os fatores raça e classe.

Preocupado com questões “técnicas” da possibilidade de penetração da propaganda socialista nas comunidades, Mariátegui indica a necessidade de preparar agitadores indígenas, a partir do contato com o proletariado e os sindicatos urbanos. Analisa de forma sintética a situação dos povos originários no Peru e faz alguns apontamentos sobre os demais países do continente, quando cai em algumas imprecisões. Sobre México e Guatemala, afirma que o problema foi resolvido com a incorporação à vida nacional, o que é negado pelos processos mais recentes. No Brasil, aparentemente (mal) informado pelo delegado deste país, afirma não existir questão racial em relação ao negro. Porém, ao apontar o caráter da luta dos indígenas, o autor do documento lembra do seu potencial revolucionário no México e se detém novamente sobre o caso peruano, destacando a combatividade e o número de insurreições dos povos originários nesse país. Lembra o caso de Rumimaqui e o desenvolvimento posterior dos movimentos.

Ao enumerar as propostas e tarefas sobre o tema, recusa a idéia de solução da questão indígena pela constituição de um Estado autônomo. Essa proposta, defendida pelos delegados alinhados à III Internacional com base na tese da autodeterminação dos povos, não daria na sua visão origem a um Estado socialista, mas burguês. A tarefa básica portanto seria desenvolver um movimento de reivindicações classistas, priorizando a reivindicação básica da terra, fundamentando a luta na resistência dos ayllus e pautando outros elementos, como liberdade de organizaç o, supressão do enganche, aumento de sal rios, jornada de oito horas.

Contra as dificuldades da propaganda dentro das haciendas, deve-se confiar no aumento do tr fego, mobilizando operários do transporte. Esse intercâmbio com os sindicatos urbanos é fundamental no desenvolvimento da consciência e na garantia do sucesso de uma educação socialista. Devido à desconfiança em relação ao branco e ao mestiço, dificuldade da língua, é essencial a formação de

ãá

á

19

20

21

MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), 54. Grifos meus.Idem, 54-55.Cf. LÖWY, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de

1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. pp. 10-11.“O problema das raças na América Latina” in: MARIÁTEGUI, José Carlos.

Op. cit. (1982) pp. 49-75.

22

História & Luta de Classes - 23

militantes vindos das comunidades. Para isso, destaca a importância do desenvolvimento do trabalho entre os mineiros bolivianos e peruanos, entre os quais o contingente de indígenas é significativo. E aposta no seu sucesso com palavras que parecem antecipar os processos atuais, mesmo que em termos distintos: “Uma consciência revolucionária indígena tardará talvez a formar-se, mas, quando o índio tiver feito sua a idéia socialista, ele a servirá com disciplina, tenacidade e força que poucos proletários de outros meios poderão superar”.

A seguir, enumera as reivindicações básicas em três pontos que buscam tocar no fundamental da situação dos trabalhadores indígenas e negros: 1) Expropriação da terra, sem indenização; 2) formação de organizações camponesas específicas (sindicatos, ligas camponesas, blocos operários), ligadas, “sem preconceitos raciais”, às organizações urbanas, com reivindicações comuns entre o proletariado e o campesinato negro e indígena e armamento para a defesa das conquistas; 3) revogação das leis que pesavam especificamente sobre os negros e os povos originários: “sistemas feudais escravistas”, recrutamento militar, o tributo conscripción vial.

Por fim, defende o potencial socialista das comunidades, assim como das grandes empresas agrícolas, delimitando de que forma esse potencial é visto.

“Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se presta ao livre ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de suas forças e espírito nativos, não significa em absoluto uma romântica e anti-histórica tendência de reconstrução ou ressurreição do socialismo incaico, que correspondeu a condições históricas completamente superadas e do qual somente restam, como fator aproveitável dentro de uma técnica de produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos camponeses indígenas. O socialismo pressupõe a técnica, a ciência, a etapa capitalista; e não pode admitir o menor retrocesso na aquisição das conquistas da civilização moderna, senão, pelo contrário, a máxima e metódica aceleração da

incorporação destas conquistas à vida nacional...”

Desta forma, me parecem equivocadas as comparações com o populismo russo. Nos Sete ensaios, s o feitas menções ao histórico russo, o que

23

24

ã

mostra algum conhecimento sobre o tema. Ao referir-se ao indigenismo literário, compara-o ao “mujikismo” pré-revolucionário russo. No t pico em que examina a comunidade durante o período colonial, compara a mir russa ao ayllu andino, não para elogiar sua imutabilidade, mas para observar a forma como o regime senhorial, a que ele chama feudalismo, descaracteriza-os, tornando funcionais à exploração dos camponeses e como o latifúndio avança vorazmente sobre a propriedade comum. Ao analisar a relaç o entre a comunidade e o latifúndio no período republicano, novamente compara com a realidade russa, para defender a improdutividade da grande propriedade.

Nenhuma dessas referências cita os populistas russos como poss veis interlocutores para a questão agrária. Há apenas a afirmação de que o desenvolvimento do ayllu na economia peruana tem semelhanças com a mir no contexto russo. Por outro lado Marx e Engels, que jamais poderiam ser confundidos com os populistas, deixaram sobre a Rsْsia afirmações muito semelhantes às que Máriategui fez sobre o Peru. No Prefácio à edição de 1882 nesse país do Manifesto Comunista, observam que:

“O Manifesto Comunista propôs-se como tarefa proclamar a desaparição próxima e inevitável da moderna propriedade burguesa. Mas na Rússia, ao lado do florescimento febril da velhacaria capitalista e da propriedade territorial burguesa em vias de formação, mais da metade da terra é propriedade comum dos camponeses. Cabe, pois, a pergunta: poderia a comunidade rural russa – forma por certo já muito desnaturada da primitiva propriedade comum da terra – passar diretamente à forma superior da propriedade coletiva, à forma comunista ou pelo contrário, deverá primeiramente passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do Ocidente?A única resposta que hoje se pode dar a esta pergunta é a seguinte: se a revolução russa dá o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo que ambas se complementem, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de

partida para uma evolução comunista”.

Marx, em sua célebre correspondência com Vera Zasulich j apontara nos anos anteriores a potencialidade da mir para um desenvolvimento

25

26

27

28

í

ã

í

á

23

24

25

26

Idem, p. 74.Idem, p. 78.MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), p. 31.Idem, p. 44.

27

28

Idem, p. 60.MARX, Karl e ENGELS, Friedrich Manifesto do partido comunista. Rio de

Janeiro: Vitória, 1960. p. 15.

24 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena

direto do socialismo, enquanto Engels seguiria debatendo o seu papel no processo russo, mesmo mantendo suas diferenças com populistas e anarquistas.

Portanto, entendo que Mari tegui conseguiu de forma coerente e original aplicar o método marxista para propor uma alternativa socialista para Peru. Isso, apesar de algumas imprecisões conceituais como o emprego do termo “feudal” para essa estrutura ou as poucas informações sobre o passado incaico. Ao analisar as estruturas e o processo histórico de seu país, tornou a teoria um instrumento útil para a interpretação e ação revolucionárias e não seguiu a tendência dominante de tentar adaptar a realidade a uma teoria universal acabada. Com isso, sua obra se destaca na trajetória do pensamento social de Nossa América.

Consideraç es finais: apontamentos sobre um possível diálogo

Se o século XX começou com a marca de Astuparia e Rumimaqui, no atual vemos um verdadeiro “redespertar ind gena”, em que assumiram definitivamente um papel protagônico nas

lutas emancipatórias de Abya Yala os descendentes dos seus primeiros habitantes. Dos levantes no Equador na década de 1990, às “comemoraç es” dos 500 anos de invasão européia em diversos países, da insurreição zapatista de 1994, ao complexo processo boliviano, a temática indígena se impôs novamente como uma questão fundamental a se levar em conta para qualquer tentativa de solucionar as graves contradições do continente. São milhares de quechas, ayamaras, tzeltales, zapotecas, tojolobales, lancadones, mapuches, guaranis, kunas, mayas e inúmeras etnias ou nacionalidades que em todo o continente se organizaram em congressos, confederações, entidades campesinas, partidos, para exigir a reparação da enorme dívida histórica e lutar pela construção de novas relações sociais.

Nesse quadro, Mariátegui merece ser revisitado, já que suas palavras parecem ecoar em diversos processos que hoje movem o continente. Seu projeto foi interrompido prematuramente, quando a morte coincidiu com o advento das imposições e imposturas stalinistas. Porém, a versatilidade de sua obra, assim como o caráter aberto e de disposição ao diálogo das experiências atuais parecem fornecer canais propícios para o pretendido encontro. Este pode ter pontos de tensões, mas por isso mesmo será certamente rico e

á

õ

í

õ

29

produtivo, num momento em que os diferentes movimentos indígenas começam a avançar por caminhos diversos, que vão da condução da máquina estatal (Bolívia) ao protagonismo no debate sobre um novo projeto nacional, por fora dos aparatos oficiais (México); passando por experiências frustradas de poder e iniciativas de reorganização (Equador). Tudo isso deixa o futuro indefinido para além da certeza de que eles vieram pra ficar, o que mais uma vez ressalta a importância de buscar ferramentas explicativas.

Se Mariátegui colocava no centro da problemática indígena a questão da terra, hoje esse ainda é um ponto nevrálgico do conflito, como atestam as inúmeras organizações camponesas compostas majoritariamente por indígenas. Mas estes ampliam o conceito de luta pela terra, colocando na pauta a defesa do território, a mãe terra – Pachamama – que provém o sustento coletivo e é elemento-chave da identidade cultural. Nessa perspectiva, não está só a preocupação com a terra como fonte de sustento, mas com o território como parte da vida comunal e portanto a defesa intransigente dos recursos naturais.

Enquanto o marxista apontava a insuficiência da nação peruana, os movimentos atuais denunciam as fraturas de quase 200 anos de exclusão dos “projetos de nação” e se afirmam sem pedir licença na disputa de projeto de Estados que foram constituídos e sustentados historicamente pela dinâmica colonialista. No México, os zapatistas ecoaram a demanda por “autonomia”, que hoje a constroem sem esperar a autorização dos poderes constituídos. No Equador, desenvolveram o conceito de “plurinacionalidade” no centro de sua proposta de refundação do Estado. Em ambos os casos, se subverte o conceito liberal de nação.

Outro tema recorrente na análise mariateguiana é a força do gamonalismo, representante do “sistema feudal”, ainda que numa realidade em que diferentes sistemas se sobrepunham. Apesar das inúmeras transformações no mundo rural andino, a leitura da fusão de arcaico e moderno, recorrente nas interpretações sobre países periféricos, preserva ainda atualidade, se refletindo ao longo do século XX no avanço da modernização conservadora e nos debates atuais sobre o colonialismo interno, denunciado pelos movimentos indígenas e a colonialidade.

Por timo, há o conceito de “mito”, que já me referi e que deixo aqui apenas como interrogação sobre sua aplicabilidade às propostas atuais. Até que ponto esse conceito não faz sentido quando os

30

úl

29 Denominação dada pelo povo kuna (Panamá) ao continente, adotada pelos movimentos indígenas atuais. Significa “Terra Madura”.

30 Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes países como Pablo González Casanova, Anibal Quijano, Enrique Dussel e Edgardo Lander trouxeram ricas contribuições sobre o tema.

História & Luta de Classes - 25

zapatistas afirmam terem se levantado em nome de 500 anos de luta ou as rebeliões evocam a figura de Tupac Katari na Bolívia e Tupac Amaru no Peru?

Esses exemplos são apenas referências breves a possibilidades de um diálogo contemporâneo com a obra de José Carlos Mariátegui. Eles mostram que, de maneira crítica e sem buscar um modelo fechado, é possível encontrar diversos pontos vigentes para auxiliar a compreensão dos processos deste continente que continuam a instigar e desafiar seus intérpretes. E na questão indígena, suas reflexões se apresentam de forma mais rica e original. Os movimentos recentes têm o mérito inovador de produzir um discurso reflexivo próprio e em grande medida prescindindo da academia e de intelectuais “de fora” para criar uma interpretação sofisticada do seu próprio significado, seus conceitos e demandas. No entanto, e talvez justamente por isso, é possível buscar chaves interpretativas que, de outros ângulos, dialoguem criticamente com as teorias produzidas nesses e por esses movimentos. Não com o sentido de se sobrepor a elas, corrigi-las ou desqualificá-las, mas testando suas possibilidades, buscando inseri-las em um ponto de vista totalizante, ampliando suas possibilidades de aplicação. E nesse esforço, a contribuição de um socialista peruano do século passado parece ser muito produtiva.

26 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena

O Populismo e a Hegemonia

Burguesa na América Latina1

Gilberto Calil2

O conceito de populismo é objeto de um vasto debate historiográfico, no qual se expressam desde posições que defendem o abandono do conceito até autores que o utilizam em uma acepção demasiadamente ampla, englobando processos sociais completamente distintos. A primeira posição– constituída a partir de uma perspectiva claramente conservadora -, pode ser encontrada nos diversos artigos reunidos no livro O populismo e sua história: debate e crítica. A segunda tem como defensor mais destacado Ernest Laclau. Sua proposição é de um conceito que abarque simultaneamente movimentos como o narodniki russo, o agrarismo dos pequenos proprietários do oeste dos Estados Unidos no século XIX e os diferentes populismos latino-americanos do século XX:

Se se afirma que entre o Varguismo, o movimento de William Jennings Bryan e o Narodnichestvo há pelo menos um elemento em comum, e que este elemento é o populismo, é evidente que sua especificidade terá de ser procurada fora, e não a partir das bases desses movimentos, que são totalmente diferentes. Se, por outro lado, se restringe o uso do conceito a movimentos com uma base social semelhante, ter-se-á deslocado, ilegitimamente, o campo de análise: estaremos tentando explicar um fenômeno distinto desse “algo em comum”, presente em movimentos sociais diversos.

Parece-nos necessário questionar se este “algo em comum” é suficiente para sustentar a construção de uma categoria teórica. Que sentido há em afirmar-se que o elemento em comum “é o populismo”, antes mesmo de defini-lo? A pressuposição acerca da existência deste “elemento em comum” revela-se

3

4

arbitrária, como se percebe pela generalidade da definição apresentada por Laclau: “Nossa tese é que o populismo consiste na apresentação de interpelações popular-democráticas como um conjunto sintético-antagônico com relação à ideologia dominante”, interpelações estas que seriam provenientes das mais diferentes classes sociais. Esta definição genérica permite a Laclau definir o socialismo como “a forma mais elevada de populismo”: “A dialética entre o povo e as classes encontra aí o momento final da sua unidade. Não há socialismo sem populismo. Esta é a profunda intuição presente, de Mao a Togliatti, e em todas as tendências do marxismo que, de posições políticas e tradições culturais bem diversas, tentaram superar o reducionismo classista”. Outro autor que sustenta um conceito de populismo extremamente amplo é Eduardo Gonzáles Calleja. Para ele, seriam populistas “uma série muito heterogênea de movimentos nacional-populares dos países em vias de desenvolvimento (especialmente nas áreas latinoamericana e africana) influídos por ideologias antiliberais de caráter híbrido nacionalista, socialista ou fascista”. Com base nesta definição, o autor inclui a Falange Espanhola no rol dos movimentos populistas.

Em sentido contrário, entendemos que a avaliação do conteúdo social é deve ser o ponto de partida para a avaliação de um fenômeno social. Nesse sentido, é necessário concordar com Armando Boito, quando lembra os fenômenos agraristas do século XIX tem conteúdo social claramente distintos

5

6

7

1

2

3

Este artigo foi produzido a partir de uma seção do primeiro capítulo da Tese de Doutoramento defendida junto à UFF em 2005, sob orientação da Profa. Dra Virgínia Fontes. CALIL, Gilberto. O integralismo no processo político brasileiro – a trajetória do Partido de Representação Popular (1945-1965): Cães de guarda da ordem burguesa. Tese de Doutorado em História. Niterói: UFF, 2005. 2 volumes. Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História,

Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Doutor em História Social (UFF). [email protected] FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.LACLAU, Ernest. Política e ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1978, p. 151.Idem, ibidem, p. 179.Idem, ibidem, p. 202. Grifo meu.GONZÁLEZ CALLEJA, Eduardo. Populismo o captación de elites? Luces y

sombras en la estrategia del Servicio Exterior de Falange Española. In: ALVARES JUNCO, José & GONZÁLES LEANDRI, Ricardo. El populismo en España y América. Madrid: Catriel, 1994. p. 61-90, p. 61.

4

5

6

7

História & Luta de Classes - 27

do populismo latino-americano: “Tanto o movimento russo quanto o norte-americano são, portanto, movimentos de resistência ao desenvolvimento do capitalismo, que procuram preservar a pequena produção camponesa. O populismo, ao contrário, articulou-se no Brasil com a política de industrialização capitalista, pleiteando, no interior das forças pró-industrialização, uma política social que contemplasse os interesses econômicos dos trabalhadores assalariados urbanos”. Boito aponta as conseqüências das propostas generalizadoras: “O populismo permanece, nessa caracterização, sem um conteúdo de classe definido e o grau de generalidade do conceito permite que os autores que o utilizam empreguem-no tanto para caracterizar o narodnichestvo – o chamado populismo russo, movimento inspirado num socialismo de base camponesa – quanto para caracterizar o varguismo no Brasil ou o peronismo na Argentina”. As explicações tradicionais acerca do populismo latino-americano, de corte funcionalista – dentre as quais se destacam as de Gino Germani e Torcuato di Tella -, igualmente não caracterizam o populismo pelo seu conteúdo de classe, mas, ao contrário, “partem do pressuposto de que o populismo ocorre numa situação de ‘transição’, isto é, na passagem da assim chamada sociedade tradicional – agrária, pré-capitalista, atrasada – para a sociedade moderna – capitalista, urbana e industrial”. Para eles, os populismos “seriam fenômenos socioculturais e políticos fundamentais e característicos da época de transição da sociedade tradicional à sociedade urbano-industrial”. Além disso, tomando como referencial a democracia liberal, terminam por considerar o populismo “como um desvio no que deveria ser a evolução natural ou desejável, para o regime democrático”. Nesta proposição, a “modernização” é tomada como objetivo naturalizado, que obscurece as contradições e antagonismos, permitindo, mais uma vez, assimilar em uma mesma categoria fenômenos diversos a partir de traços organizacionais em comum.

Também as teorias que tratam o populismo como um “estilo político” ou como “fenômeno carismático”, não permitem a identificação de sua base de classe, conduzindo à qualificação de diversos movimentos como populistas, e inclusive assumindo a existência de um “populismo de esquerda” e um

8

9

10

11

12

“populismo de direita”. A presença de uma liderança carismática configuraria o aspecto “pré-político” do populismo (justificando sua qualificação como anomalia) e uma marca do atraso das relações política, além do que “não seria uma política com conteúdo de classe determinado, mas, justamente, uma política personalista que uniria o líder carismático à massa, isto é, a um conglomerado de indivíduos cuja posição política não decorreria de sua situação de classe”. Desta forma, como lembra Décio Saes, “a identificação do populismo como um estilo político preciso, fundado em elementos como a demagogia, o paternalismo, o carisma ou o apelo emocional, poderia induzir-nos a admitir a existência de um ‘populismo de direita’”. A imprecisa contraposição esquerda / direita termina, desta forma, sobrepondo-se à definição de conteúdo social concreto, com o que são classificadas como “populistas” lideranças políticas que sustentam os mais distintos projetos sociais. Assim, no caso brasileiro, por exemplo, além das lideranças diretamente associadas ao projeto varguista, são classificados como populistas, dentre outros, Adhemar de Barros, Miguel Arraes e até mesmo Jânio Quadros e Carlos Lacerda: Weffort considera Barros e Quadros como “populistas notórios”; Boito considera Jânio Quadros um “populista de direita”, tendo em vista que “ao longo da história do janismo, a proteção dos trabalhadores foi quase sempre se confinando ao terreno do discurso”; Edgard de Barros propõe que “o estilo autoritário, moralista e extremamente personificado de Jânio Quadros evocava um populismo de direita – militarista e associado aos grandes grupos empresariais”; e Guita Debert analisa a trajetória de quatro lideranças que expressam projetos sociais distintos, sob o mesmo marco do populismo: Adhemar de Barros, Miguel Arraes, Carlos Lacerda e Leonel Brizola. Consideramos, ao contrário, que a percepção do populismo como um “estilo de condução das massas” e a qualificação como “populistas” de lideranças com projetos sociais claramente diversos retira do conceito qualquer conteúdo social efetivo.

Outro elemento presente em diversas análises é a referência ao caráter pluriclassista da base social de apoio do populismo como pretexto para a tentativa de desqualificação da análise marxista e, igualmente,

13

14

15

16

17

18

8

9

10

11

12

13

BOITO, Armando. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. São Paulo: Hucitec / Campinas: Unicamp, 1991, p.77.Idem, ibidem, p. 67.PRADO, Maria Ligia. O populismo na América Latina. São Paulo:

Brasiliense, 1981, p. 10.IANNI, op. cit., Octávio. A formação do Estado populismo na América

Latina. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1989, p. 20.Idem, ibidem, p. 25.BOITO, op. cit., p. 67.

.

.

14

15

16

17

18

SAES, op. cit., p. 91.Weffort refere-se à “vitória de um populismo notório como Adhemar de

Barros, nas eleições de 1962 para governador de São Paulo, derrotando aliás um outro populismo tão notório como Jânio Quadros”. WEFFORT, O populismo..., op. cit., p. 25.

BOITO, op. cit., p. 73.BARROS, Edgard Luis. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: Contexto,

1990, p. 53.DEBERT, Guita. Ideologia e populismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

..

28 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina

para rejeitar o reconhecimento de seu conteúdo social. Isto se encontra, por exemplo na posição de José Alvarez Junco:

“Infelizmente, também não funciona o recurso, aportado em seu momento [sic] pelo materialismo histórico para superar os limites da interpretação política tradicional, a análise dos ‘interesses materiais’ que se supõe unirem e lançarem à ação aos componentes de um movimento social. Porque tampouco recrutam aderentes de uma única classe social ou grupo com interesses e reivindicações comuns, mas se compõe de um magma difícil de delimitar socialmente, em muitos casos uma verdadeira radiografia da coletividade histórica em questão”.

Ainda mais explicitamente, o autor afirma que “o chamamento populista é ‘interclassista’, como se observou tantas vezes, o que significa que fracassa com ele a análise em termos de interesses ou luta de classes”. Tal proposição parte, desta forma, da composição social “interclassista”, para concluir– absurdamente – pela inexistência de um projeto social ou de interesses de classe expressos no populismo.

Nossa premissa para a discussão em torno do populismo latinoamericano é, ao contrário, o entendimento de que ele deve ser avaliado a partir de seu conteúdo social histórico concreto, o que implica em reconhecer os interesses de classe que expressou e o projeto social que sustentava. Desta forma, uma primeira definição que se torna necessária é a rejeição das alternativas que propõe uma definição conceitual que unifique fenômenos com distintos conteúdos sociais, produzidos em épocas distintas e em sociedade com grau de desenvolvimento absolutamente diverso. A possibilidade de compreensão do conteúdo social do populismo se dá, portanto, na medida em que delimitamos a abordagem à América Latina, em especial no período compreendido entre a Crise de 1929 e a afirmação plena de um modelo de desenvolvimento associado-dependente, nos anos 60. Como indica Ianni, foi nos governos de Getulio Vargas, no Brasil (1930-1945 e 1950-1954), e Juan Domingo Perón, na Argentina (1945-1955) e de Lázaro Cárdenas, no México (1934-

19

20

1940) que o projeto populista foi colocado em prática de maneira plena.

Os estudos clássicos sobre o populismo latinoamericano, dentre os quais se destacam as obras de Weffort e Ianni, indicam importantes elementos para o dimensionamento do conteúdo do populismo, em oposição às explicações tradicionais. De acordo com Weffort, a emergência do populismo corresponde a um contexto de crise de hegemonia, no qual nenhuma fração da classe dominante tem condição de se impor isoladamente: “Encontramo-nos, pois, diante da seguinte situação: nenhum dos grupos (classes médias, setor cafeeiro, setores agrários menos vinculados à exportação) detém com exclusividade o poder político. Esta circunstância de compromisso abre a possibilidade de um Estado, entendido como um órgão (político) que tende a afastar-se dos interesses imediatos e sobrepor-se ao conjunto da sociedade como soberano”. Esta situação conduziria a um “Estado de Compromisso”: “Todos os grupos, inclusive as massas populares, participam direta ou indiretamente do poder; não obstante, como nenhum deles possui a hegemonia, todos o vêem como uma entidade superior, do qual esperam solução para todos os problemas”. Isto se daria através de um “complexo sistema de alianças entre grupos ou setores de classes diferentes”. Em síntese, para Weffort, “se trata de um ‘Estado de Compromisso’ que é ao mesmo tempo um ‘Estado de massas’, expressão da prolongada crise agrária, da dependência social dos grupos de classe média, da dependência social e econômica da burguesia industrial e da crescente pressão popular”. Ianni, por sua vez, analisa de maneira mais cuidadosa a crise hegemônica e a “aliança de classes”, propostos por Weffort. Embora reconhecendo que “na época da crise do poder oligárquico nenhuma das 'novas classes' sociais parece estar em condições de assumir o poder e impor o seu mando às outras classes, definindo a feição do Estado”. Também Maria Ligia Prado considera que o populismo afirmou-se no Brasil e na Argentina “como resposta a um vazio no poder correspondente à quebra de hegemonia política oligárquica pós-crise do modelo agro-exportador”. Ianni sustenta que “a aliança das ‘novas’ classes

21

22

23

24

25

26

27

Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. Outubro, São Paulo, n. 13, 2005, p. 59-78. p. 77 e 61-62..

WEFFORT, O populismo..., op. cit., p. 53.Idem, ibidem, p. 62.Idem, ibidem, p. 113.Idem, ibidem, p. 79.IANNI, A formação..., op. cit., p. 32. Segundo Ianni, no Brasil, “todos os

anos 1930-1964 estão marcados por essa crise de hegemonia. E o populismo que se forma desenvolve e transforma ao longo desses anos é uma expressão dessa crise de hegemonia”. IANNI, Octávio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 81.

PRADO, op. cit., p. 73.

22

23

24

25

26

27

.

.

.

19

20

21

ALVAREZ JUNCO, José. El populismo como problema. In: ALVARES JUNCO, José & GONZÁLES LEANDRI, Ricardo, op. cit., p. 11-38. p. 15.

Idem, p. 17O historiador Felipe Demier sustenta que a teoria do populismo de Ianni e

Weffort, em vários aspectos, retoma proposições desenvolvidas por Leon Trotsky. Segundo o autor, estes autores “se omitiram de reconhecer sua dívida intelectual com o mesmo”. De acordo com ele, os dois cientistas sociais brasileiros vislumbraram nos governos que se sucederam após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930 características que, de antemão, haviam sido expostas por Trotsky como presentes nos governos latino-americanos que possuíam um caráter‘semibonapartista democrático’ (ou ‘semidemocrático’), em especial o de Lázaro Cárdenas”. DEMIER, Felipe.

História & Luta de Classes - 29

sociais urbanas resulta muito menos do vazio político em que a sociedade se encontrava, devido à crise do poder oligárquico, do que da mudança das condições sociais, políticas e econômicas inerentes à nova situação”. Critica de maneira especial o suposto implícito de que o populismo resulta de uma aliança entre iguais, alegando que “as camadas ou classes sociais combinadas no populismo não são iguais, principalmente em seu peso político específico. Elas são heterogêneas, inclusive quanto aos graus de desenvolvimento das suas consciências. Mais que isso, nas estruturas e decisões do populismo, a bu rgues i a t em sempre acabado po r fazer prevalecerem os seus interesses”. Este reconhecimento nos parece extremamente importante para a caracterização do papel histórico desempenhado pelo populismo. Ianni reconhece ainda que “as classes assalariadas do populismo, inclusive o proletariado, não participam da coalizão enquanto classes sociais autônomas, organizadas e politicamente conscientes da sua situação de

30 classe”. Tal proposição dá a dimensão exata do caráter do “compromisso” que dá origem aos populismos, tornando necessário investigar os agentes sociais e os detentores da hegemonia no interior dos movimentos populistas.

O Populismo como projeto hegemônicoUma primeira questão que se coloca para a

avaliação do populismo enquanto projeto de hegemonia refere-se ao sujeito social que sustentou o projeto populista, partindo-se do pressuposto de que o populismo “só pode ser compreendido adequadamente como expressão

31 política de interesses determinados de classe”.Tratando do caso brasileiro, Armando Boito recusa a preponderância da burguesia industrial à frente do populismo, propondo, ao contrário, que o sujeito do populismo seria a “burocracia de Estado”: “A definição dessa política de desenvolvimento não foi obra da burguesia industrial. Quem define, em última instância, a política de desenvolvimento, isto é, a política econômica e social no decorrer do período 1930 - 1964 é a burocracia de Estado – as cúpulas da burocracia civil e das Forças

32 Armadas”. Assim, para ele, embora correspondendo aos interesses da burguesia industrial, a política de industrialização não teria sido proposta por ela, mas pela burocracia de Estado, com apoio de setores

28

29

populares:

Entre 1930 e 1964, a política populista é, no essencial, a política de industrialização capitalista dirigida pela burocracia de Estado (cúpulas da burocracia civil e das Forças Armadas), apoiada em amplos setores das classes populares (as classes trabalhadoras – proletariado, classe média assalariada e pequena burguesia proprietária – que, enquanto classes exploradas, encontram-se excluídas do poder de Estado) e que se encontra fora do controle das frações burguesas quem integram o bloco no poder (conjunto heterogêneo de classes e frações exploradoras que, enquanto

33tais, exercem o poder de Estado).

Posição semelhante é sustentada por Weffort: “Nessa democracia de massas, o Estado apresenta-se de maneira direta a todos os cidadãos. Todas as organizações importantes que se apresentam como mediação entre o Estado e os indivíduos são, em verdade, antes anexos do próprio Estado que órgão

34 efetivamente autônomo”. Esta posição parece-nos operar uma desvinculação demasiadamente radical entre a burocracia de Estado e as classes dominantes, para além da margem de autonomia que lhe é

35 própria. A subordinação ao Estado não se verifica historicamente nem para as classes populares, nem para as classes dominantes. As primeiras, mesmo quando absorveram grande parte da ideologia populista, não deixaram de interpretá-las de acordo com seus interesses e sua luta. Já as classes dominantes, em momento algum delegaram autonomia ao Estado a ponto de abrir mão ou subordinar ao Estado seus poderosos aparelhos privados de hegemonia. Lembre-se que quando se sentiram ameaçadas pelo crescimento das mobilizações populares autônomas e crescentemente radicalizadas, as classes dominantes não tiveram grande dificuldade para destruírem este Estado “de compromisso”, utilizando-se das inúmeras organizações de classe burguesas.

A proposição da burocracia de Estado como sujeito social do populismo complementa-se com a tese de que “a ideologia populista era uma ideologia pequeno burguesa”, fundada no culto do Estado protetor, isto é, na “expectativa de que o Estado tome a iniciativa de proteger, independentemente da correlação política de forças vigentes num momento dado, os trabalhadores da ação dos capitalistas”,

28

29

30

31

32

33

IANNI, A formação...op. cit., p. 33.Idem, ibidem, p. 38.Idem, ibidem, p. 39.WEFFORT, O populismo..., op. cit., p. 25.BOITO, Armando. O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. 2ª

edição. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 18.Idem, ibidem, p. 22.

34

35

Idem, ibidem, p. 57.A respeito da margem de autonomia do Estado no capitalismo, ver

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 3ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1990. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 3: Maquiavel: notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

.

30 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina

através da “identificação de setores populares, não com a pessoa do líder, mas sim com o aparelho de Estado burguês: com a burocracia civil e militar do

36Estado”. Nessa perspectiva, Saes avalia como incorreta “a caracterização do populismo como uma 'ideologia burguesa'”, sustentando que “o populismo caracteriza-se como a ideologia das camadas médias já desembaraçadas da ascendência social das oligarquias e politicamente representadas pelo

37 tenentismo nacionalista”. A utilização de elementos pequeno-burgueses no discurso populista não pode, no entanto, obscurecer o fato de que, em todos os seus desdobramentos concretos, o populismo efetivamente atendia aos interesses concretos da burguesia, ainda que sua expressão tenha de dado através de uma forma que lhe permitia disseminar-se com eficácia no interior da pequena burguesia e de setores da classe trabalhadora.

Nossa proposição é que o populismo corresponde a um projeto hegemônico conduzido pela burguesia industrial, que hegemonizou vastas parcelas da pequena burguesia e do proletariado e colocou o Estado a serviço de uma política de industrialização. Nesse sentido, concordamos com Ianni que “o populismo parece corresponder a uma etapa específica na evolução das contradições entre a sociedade nacional e a economia dependente. A natureza do governo populista (que é onde se exprime mais concretamente o caráter do populismo) está na busca de uma nova combinação entre as tendências do sistema social e as determinações da dependência

38 econômica”. Sua característica mais evidente é a promoção do desenvolvimento industrial: “No que diz respeito aos seus fins econômicos mais gerais, os movimentos, partidos e governos populistas são abertamente favoráveis à industrialização e à hegemonia da indústria sobre a agricultura e a mineração. A industrialização é encarada como equivalente de desenvolvimento econômico em geral

39e indicador de bem-estar social para o proletariado”. Nesse sentido, concordamos com a apreciação do sociólogo argentino Eckart Dietrich: “A aliança populista anti-oligárquica teve como objetivo o desenvolvimento da economia capitalista nacional e definiu claramente a divisão de tarefas entre sócio maior e sócio menor: enquanto o proletariado deveria servir como tropa de apoio, a condução política correspondia aos setores 'dinâmicos' da burguesia

40nacional”.

A ideologia populista usualmente apresentava seu projeto industrializante como oposto a uma ordem atrasada representada pelo latifúndio, o que era particularmente característico do discurso assumido pelos partidos comunistas, que sustentavam a tese de que o conflito fundamental era entre a burguesia “nacional” e o latifúndio com características “feudais” e subordinado ao imperialismo, embasamento da tese da “revolução por etapas”. Esta interpretação ignorava o entendimento entre burguesia industrial e burguesia agrária, sendo incapaz de perceber que a principal oposição ao projeto de industrialização acelerada provinha da burguesia comercial. Como indica Debert, “é enganosa a atribuição de antagonismo entre burguesia agrária e burguesia industrial, por um lado, e por outro, entre estas últimas e o

41imperialismo”. Para Régis de Castro Andrade, “a República populista apresenta-se imediatamente como uma forma de supremacia burguesa baseada na aliança entre a burguesia industrial e a oligarquia rural, cuja peculiaridade institucional foi a inserção de um sistema eleitoral dentro das estruturas do Estado

42Novo”. Os termos desta “aliança” no processo brasileiro são discutidos por Décio Saes: “A rigor, as oligarquias e a burguesia industrial chegaram, através da revolução de trinta, a um ‘compromisso político’. (...) Este pacto consagrava, de um lado, a participação da burguesia industrial no poder político, bem como seu acesso aos instrumentos institucionais de desenvolvimento, e, de outro lado, a manutenção da ordem social no campo, salvaguarda da propriedade

43fundiária e do estatuto das relações de trabalho”. Boito sustenta que era a burguesia comercial que defendia uma política radicalmente anti-industrialista: “a grande burguesia comercial exportadora e importadora aliada ao imperialismo norte-americano se opõe à política econômica industrialista que começa a tomar corpo a partir de

441930”.No que se refere a relação com os setores médios

e populares, o populismo constituía-se na imposição de uma ideologia de colaboração que viabilizava sua incorporação subordinada, consolidando a afirmação da hegemonia burguesa:

O populismo se apresenta como forma objetiva de encaminhamento da supremacia burguesa num contexto de crise de hegemonia. No nosso entender o

36

37

38

39

40

BOITO, O sindicalismo de Estado no Brasil, op. cit., p. 70.SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A.

Queiroz, 1979, p. 93.IANNI, A formação..., op. cit., p. 9.Idem, ibidem, p. 108.DIETRICH, Eckart. Populismo y la izquierda o el populismo de izquierda: .

aproximaciones a uma teoría del populismo. Herramienta: Revista de debate y crítica marxista. Buenos Aires, n. 15, otoño de 2001, p. 155-164. p. 157.

DEBERT, op. cit., p. 19.ANDRADE, op. cit., p. 60.SAES, Classe média e sistema político no Brasil, op. cit., p. 95.BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 28.

41

42

43

44

História & Luta de Classes - 31

que se chama de república populista não é outra coisa senão, pelo menos de forma imediata, uma forma de supremacia burguesa em realização. Essa supremacia burguesa está baseada, de um lado, nas alianças políticas entre burguesia industrial e oligarquia agrária e, de outro, na incorporação de amplos setores das camadas populares a esse pacto de dominação burguesa. (...) Em nenhum momento devemos perder de vista que estamos analisando a ideologia populista como forma objetiva de encaminhamento da supremacia burguesa num

45contexto de crise de hegemonia.

Nesse sentido, como afirma Andrade, “o populismo é uma forma de hegemonia, não um conjunto de alianças de classe, muito embora as alianças de classe estejam presentes em todas as

46ordens hegemônicas”, o que tornava necessário uma combinação peculiar de coerção e cooptação capaz de “preservar o bloco político-ideológico, isto é, não desacreditar a idéia do Estado neutro e benevolente”, para o que era necessário “a preservação e encobrimento do governo direto da burguesia exercido através do comando burguês sobre os poderosos órgãos econômicos do Executivo e sobre

47os ministérios”. Por um lado, impunha obstáculos ao exercício de uma repressão aberta e generalizada sobre o conjunto da classe trabalhadora mas, por outro, determinava uma repressão seletiva contra os setores populares que se orientavam por uma postura classista, não se subordinando à ideologia e à prática populista. Nas palavras de Dietrich, “a perseguição ideológica e a repressão física do classismo político-sindical é apenas a cara excludente daquela estratégia

48integradora”.Um dos elementos centrais da ideologia

populista é sua pretensão em apresentar-se como nacionalista, cujo efeito evidente era “obscurecer a divisão real da sociedade em classes com interesses sociais conflitantes e estabelecer-se a idéia do povo (ou da nação) como uma comunidade de interesses

49solidários”. Assim, mesmo a chamada “esquerda populista” reconhecia na burguesia industrial um caráter nacional e antiimperialista absolutamente inexistente, pois ela “nunca se voltou contra a

50associação com o capital estrangeiro”. Como indica Boito, “o principal núcleo da burguesia industrial brasileira, longe de pleitear um suposto ‘projeto de desenvolvimento autônomo’, procurava atrair o

capital imperialista para os setores de ponta da indústria de transformação, como no caso da indústria

51 automobilística”. Do ponto de vista ideológico, no entanto, o nacionalismo foi bastante eficaz, viabilizando, por exemplo, a crença em que Vargas sustentava um projeto consistentemente antiimperialista, e obscurecendo o sentido internacionalizante do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. No que se refere ao segundo governo Vargas, tal ideologia omite “a subordinação da orientação geral dessa política aos interesses do capital imperialista. Ao mesmo tempo em que sanciona o monopólio estatal do petróleo, Vargas esforça-se para atrair o capital estrangeiro para os

52setores de ponta da indústria brasileira”. Quanto a Kubitschek, seu grande êxito ideológico foi conseguir omitir o “processo de implantação de uma dinâmica monopolista submetida a centros externos, a verdadeira alavanca de um roteiro de desenvolvimento onde o capital nacional

53subordinava-se ao estrangeiro”. Este êxito é analisado por Pedro Tortima:

O desenvolvimentismo enquanto ideologia e prática político-econômica representou uma das mais expressivas manifestações da classe dirigente. Fiéis, no entanto, à tradição de procurar fazer com que os trabalhadores tomassem para si as reivindicações e o discurso de seus exploradores, os donos do poder não mediram esforços no sentido de que os mais variados mecanismos de pressão e de controle social fossem

54acionados.

Caracteriza-se desta forma, portanto, sua eficácia no amortecimento dos conflitos sociais (ainda que não logrando sua neutralização completa, como discutiremos a seguir), ao mesmo tempo em que viabilizava a implantação de um projeto de industrialização em conformidade com os interesses dos setores de ponta da burguesia brasileira.

A luta de classes sob o populismo: entre a cooptação e a repressão

Ainda que a ideologia populista visasse restringir a intervenção dos trabalhadores a marcos bastante delimitados (unidade de interesses entre as classes sociais; crença no nacionalismo; industrialização como sinônimo de liberação

45

46

47

48

49

50

.CERQUEIRA Filho, Gisálio. A “questão social” no Brasil: crítica do discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 147 e 170.ANDRADE, op. cit., p. 66.Idem, ibidem, p. 43.DIETRICH, op. cit., p. 157.WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit., p. 178.ANDRADE, op. cit., p. 73.

51

52

53

54

BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 15.Idem, ibidem, p. 15.BARROS, op. cit., p. 45.TORTIMA, Pedro. A estrutura sindical e a ordem desenvolvimentista, 1956-

1960. In: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Rio de Janeiro operário: Natureza do Estado e Conjuntura Econômica, Condições de Vida e Consciência de Classe, 1930-1970. Rio de Janeiro: s./ed., 1992, p. 266-297.

32 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina

nacional), o processo social concreto é mais complexo. Nesse sentido, parece-nos indevidamente generalizador o juízo de Ianni de que “o proletariado aceita a coalizão com outras forças sociais e políticas, particularmente a burguesia nacional. Aceita o nacionalismo, o desenvolvimentismo e a industrialização, nos termos propostos pela burguesia industrial ou seus ideólogos, como se fossem os objetivos de toda a nação, de todo o povo e da classe

55operária”. Isto parece ser verdade para grande parte das lideranças sindicais, incluindo-se aquelas vinculadas à direção dos partidos comunistas, sendo igualmente inegável a influência da ideologia populista em grande parte da classe trabalhadora. No entanto, nem todos os trabalhadores assumiram os pressupostos da ideologia populista, e mesmo dentre os que os assumiram, uma parte os reinterpretou de acordo com seus interesses, o que se comprova pela permanência de fortes conflitos sociais durante todo o período populista, como o próprio Ianni afirma: “O sindicalismo estatal politiza o proletariado segundo as diretrizes e os limites estabelecidos pelo regime populista. Na prática, todavia, essa modalidade de politização não pode impedir que as massas populistas assimilem a seu modo a própria

56experiência política”. Isto pode ser verificado, por exemplo, no caso brasileiro, na constituição de um “nacionalismo popular” que reinterpretando a ideologia nacionalista, rompeu os limites do nacionalismo burguês. Como indica Lúcio Flávio de Almeida:

“A greve de 5 de julho de 1962 exprimiu e aprofundou uma nova dimensão do nacionalismo populista brasileiro: mobilização dos trabalhadores por objetivos claramente políticos; mobilização não convocada por qualquer setor dirigente do aparelho estatal, mas por diretorias sindicais; criação, no mês seguinte, do CGT, ou seja, de uma central sindical nacional cuja existência se chocava com a legislação corporativista; certa capacidade de intervenção no sentido de alterar a correlação de forças no interior do regime; difusão, pelos setores organizados do movimento operário e popular, em uma conjuntura de crise do regime, de um programa que, apesar de suas limitações, apresentava às massas populares um instrumento de crítica do conjunto da organização

57social brasileira”.

Este limite da manipulação populista impunha o estabelecimento de uma dialética de cooptação e repressão, levando muitas vezes a atitudes ambíguas, como intervenção de Vargas frente à greve dos 300 mil, relatada por Boito: “O governo Vargas fez tudo para acabar com a greve, e reprimiu, de forma violenta, algumas das ações mais ousadas empreendidas pelos operários no decorrer do movimento grevista. Contudo, ao mesmo tempo, o governo (...) procurou fazer crer aos operários que

58simpatizava com a greve”. Os marcos legais, no entanto, seguiam adequados ao exercício da repressão quando esta se fizesse necessária e, mesmo no período visto como mais populista do governo Vargas, este editou um novo decreto facilitando a repressão: “Em janeiro de 1953, Vargas sancionou a lei sobre os crimes contra o Estado e a ordem política e social, prevendo a punção dos que convocassem comícios ou reuniões a céu aberto sem a autorização

59da polícia”. Pedro Tortima indica que também “o clima de liberdade alardeado pelos propagandistas do governo JK era absurdamente falso”, tendo sido fortalecidas “três instâncias do poder repressor do Estado: a Polícia (em especial o DOPS), o Ministério

60do Trabalho e a Justiça do Trabalho”. Em termos gerais, a lição é clara: “A burguesia rompe suas alianças ‘populares’ de maneira imediata, quando estas deixam de cumprir pelo menos com uma de suas funções: garantir a hegemonia burguesa e domesticar

61 ao sócio proletário”. Como aponta Eduardo Galeano, pressionada pela crescente politização e organização autônoma da classe trabalhadora, “a burguesia se associou à invasão estrangeira sem

62derramar lágrimas nem sangue”. A compreensão dos limites da cooptação e conseqüentemente, da necessidade de fortalecimento contínuo dos instrumentos de repressão, deve ser buscada na realidade concreta da luta de classes do período. O que deixa evidente que mesmo nos momentos de maior êxito na disseminação da ideologia populista, a consciência da classe trabalhadora não foi completamente destruída e sua organização autônoma não deixou de existir a despeito das barreiras impostas pela cooptação generalizada e pela repressão seletiva mas violenta.

55

56

57

58

59

IANNI, A formação..., op. cit., p. 75.Idem, ibidem, p. 93.ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues. O nacionalismo popular e a crise do

populismo no início dos anos 60. Lutas Sociais, São Paulo, n. 11/12, abril 2004, p. 98-108. p. 108. Grifo meu.

BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 58.RODRIGUES, Marli. A década de 50: populismo e metas desenvolvi-

mentistas no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Ática, 2000, p. 50. TORTIMA, Pedro. A estrutura sindical e a ordem desenvolvimentista, 1956-

1960. In: LOBO, op. cit., p. 278-279. DIETRICH, op. cit., p. 162.GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 29ª edição. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 226.

60

61

62

História & Luta de Classes - 33

Carlos Batista Prado1

anto na história da América Latina quanto na história mundial do século XX, a Revolução Cubana foi um fenômeno imponente, principalmente devido à natureza do seu reflexo imediato em outros países. A vitória dos barbudos de Sierra Maestra teve um impacto e influência enorme na história política recente da América Latina. O modelo cubano de revolução, por meio da luta armada, foi, na década de 1960, o referencial histórico para vários movimentos de esquerda em países do terceiro mundo que buscavam sua libertação do neocolonialismo.

Logo após a derrubada de Fulgêncio Batista, o novo governo cubano se empenhou em praticar uma política que almejava em última instância apoiar guerrilhas em outras nações, numa tentativa de “exportar” a revolução, principalmente para a América Latina. Che Guevara sistematizou o método da ação guerrilheira, fornecendo a base teórica da luta armada. Nesse contexto, o incentivo dos cubanos a formação de novos movimentos guerrilheiros, desencadeou uma série de conflitos, de reações da esquerda e dos setores conservadores das sociedades, principalmente dos norte-americanos. A análise dessas problemáticas constitui o objeto de estudo deste artigo.

Uma questão de sobrevivênciaJá nos primeiros meses após a vitória dos

guerrilheiros, Cuba se lançou na tarefa de apoiar movimentos revolucionários em outros países latino-americanos, almejava atingir também a África e a Ásia. Os cubanos davam apoio em treinamento de guerrilheiros, fornecimento de armas e até envio de soldados aos países onde as guerrilhas estavam brotando:

“Desde os primeiros dias do triunfo revolucionário, no clima entusiasmado de Havana, se formavam

T

Cuba, Che Guevara e a

“exportação” da Revolução pela América Latina

grupos de cubanos, juntos com gente de outras nacionalidades, dispostos a lutar contra a ditadura no continente, como as da República Dominicana, Nicarágua, Haiti. Não eram iniciativas oficiais, nem incentivadas pelo novo governo, mas o povo cubano sentia a luta dos outros povos como continuidade natural e parte integrante da sua luta. (...) Assim, a solidariedade internacionalista foi desde o início, um compromisso essencial da consciência política e ideológica do povo cubano no processo revolucionário”.

Num primeiro momento não era ainda uma iniciativa própria e estratégica do novo governo da ilha. Os vínculos internacionalistas entre os cubanos e outras nações latinas já existiam desde o período de luta contra a dominação espanhola. A independência colonial de Cuba sempre caminhou estreitamente ligada à luta no Haiti e em Porto Rico. Esses laços sempre estiveram presentes e durante a luta revolucionária, mais precisamente em 1955, quando Fidel Castro estava no exílio e o Movimento 26 de Julho estava se reorganizando, vários grupos de diferentes países foram solidários a causa da libertação de Cuba, entre eles, mexicanos e até norte-americanos.

A questão do apoio à guerrilha em outros países, passou a ocupar cada vez mais destaque entre os líderes da Revolução. “Desde a crise dos mísseis e a definição do governo cubano como socialista, em 1961, a questão da exportação da revolução para os países latino-americanos se colocou na ordem do dia, como condição para sobrevivência e consolidação da revolução em Cuba”. A “exportação” da revolução

2

3

1

2

3

Professor de História.SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 82.ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. p. 14.

.

História & Luta de Classes - 35

era uma necessidade para a manutenção do regime na ilha. Afinal, na década de 1960, o governo cubano passava por dificuldades políticas, sociais e econômicas. Isso se deve ao fato de que nesse período todos os países latino-americanos sofriram uma sucessiva escalada de golpes militares, orquestrados pelos norte-americanos. Salvo o México, todos os outros países latino-americanos, influenciados pela política hegemônica dos Estados Unidos, romperam relações diplomáticas com a ilha.

Cuba não estava apenas bloqueada pelo vizinho imperialista do norte, mas também estava isolada politicamente e economicamente por todo o continente. E é nesse sentido que a revolução precisaria triunfar em outros países. A manutenção da revolução cubana estava estreitamente vinculada e dependia da luta em outras nações do ocidente, para assim romperem com o isolamento político e com a dependência total aos soviéticos. É dentro dessas perspectivas que o governo cubano lançou o Projeto Andino, expresso na máxima de Fidel Castro: “A cordilheira dos Andes se tornará a Sierra Maestra da América...”

O impacto da revolução cubana na América Latina

A revolução cubana ao romper com a política hegemônica norte-americana, quebrou barreiras que pareciam consolidadas e contestou determinismos políticos-geográficos. O escritor e sociólogo francês Regis Debray que esteve nas montanhas bolivianas com Che Guevara, afirma que: “Historicamente, Cuba deu a arrancada para a revolução armada na América Latina”. A vitória em Cuba, mediante a luta armada, demonstrou para a esquerda do continente uma possibilidade de destruir por meio da guerra de guerrilhas um poder ditatorial e pró-imperialista.

Sobre o impacto da revolução cubana no continente, Che Guevara ressaltou:

“A revolução não se limita à nação cubana, ela já alcançou a consciência da América e alertou gravemente os inimigos dos nossos povos. Por isso advertimos claramente que qualquer tentativa de agressão será repelida com as armas na mão. O exemplo de Cuba aumentou mais ainda a efervescência em toda a América Latina e em todos os países oprimidos. A revolução colocou em xeque os tiranos latino-americanos, porque são inimigos dos regimes populares, assim como as empresas

4

5

monopolistas estrangeiras. Somos um país pequeno e precisamos do apoio de todos os povos democráticos, mais particularmente da América Latina”.

Nessa mesma perspectiva, Fidel Castro em recente entrevista concedida a Ignácio Ramonet declarou que: “É preciso entender que a nossa vitória de janeiro de 1959, estava longe de significar o fim dos combates armados. A traição imperialista nos obrigou a ficar a postos. Muitos dos nossos compatriotas tiveram de continuar dando a vida pela defesa da Revolução, tanto em Cuba como em outras terras do mundo, cumprindo seus deveres sagrados.”

A revolução cubana e sua posterior declaração de regime socialista, não surpreenderam apenas o governo dos Estados Unidos, mas também todos os movimentos e partidos da esquerda latino-americana:

“Já a Revolução Cubana (...) pôde estender sua influência para além dos marcos estritos da esquerda tradicional – em particular dos PCs – e, mesmo sem contar com instrumentos orgânicos como as Internacionais, teve efeitos concretos mais profundos e duradouros sobre o continente latino-americano, maiores, em termos relativos, do que os da Revolução Russa sobre a Europa. Justamente pela radiação de seus efeitos em múltiplas direções, é difícil delimitar precisamente sua extensão e dimensões, mas pode-se dizer que nenhum país do continente passou incólume pelo surgimento da Revolução Cubana, e provavelmente a história das esquerdas de cada país tenha nele um marco decisivo em sua trajetória”.

O governo cubano empenhado em consolidar o movimento guerrilheiro como estratégia de libertação do continente, organizou três encontros importantes. O primeiro foi chamado de Segunda declaração de Havana, ocorreu em fevereiro de 1962, no período entre a invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, e a crise dos mísseis, em outubro do ano seguinte. Esse evento é importante, pois acorre num período de definições e seu advento marcou a opção de Cuba pela “exportação” da revolução. O encontro contou com a presença de vários líderes de movimentos sociais latino-americanos. A Segunda declaração de Havana foi um chamado aos movimentos de esquerda do continente a optarem pela luta armada, era hora de se posicionarem claramente frente ao opressor e a guerra de guerrilhas era a estratégia de luta a ser seguida.

6

7

8

4

5

6

.

.

.

CASTRO, Fidel. apud SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política. São Paulo: Ática, 1981, p. 56.DEBRAY, Regis. Revolução na revolução. São Paulo: Centro Editorial

Latino Americano, 1980. p. 11.GUEVARA, Che. Apud SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política op. cit.,

p. 80.

7

8

.RAMONET, Ignácio. Fidel Castro: Biografia a duas vozes. São Paulo:

Boitempo, 2006, p. 283.SADER, Emir. Cuba no Brasil: Influência da Revolução Cubana na esquerda

brasileira. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). História do marxismo no Brasil: O impacto das revoluções. São Paulo: Paz e terra, 1991. vol. 1, p. 161.

36 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina

O segundo ocorreu em janeiro de 1966, Havana foi à anfitriã da Tricontinental, uma conferência que reuniu 743 delegados da América Latina, África e Ásia e ainda contou a presença de observadores russos e chineses. A problemática em pauta foi à unificação dos povos dos três continentes pela libertação frente ao imperialismo. Na abertura do encontro foi feita a leitura de uma carta de Che Guevara, que nesse momento em questão, já havia deixado suas responsabilidades com o governo cubano e lutava no Congo, no continente africano. O texto de Che, intitulado, “Mensagem aos povos do mundo através da Tricontinental”, ressaltava as condições favoráveis à luta armada nos três continentes e o exemplo do povo vietnamita, na luta contra a exploração imperialista norte-americana. Eis duas passagens:

“Os povos dos três continentes observam e aprendem sua lição no Vietnã. (...) não temer a guerra é a resposta justa. Atacar dura e ininterruptamente em cada ponto de confrontação deve ser tática geral dos povos.”

“O elemento fundamental dessa finalidade estratégica será, então, a libertação real dos povos; libertação que se realizará através da luta armada, na maioria dos casos, e que terá, na América, quase que indefectivelmente, a propriedade de se converter em uma revolução socialista.”

Essas duas citações de Che Guevara deixam evidentes as discussões da agenda do encontro e seus objetivos. Seguindo a mesma orientação, o terceiro evento foi a Organização Latino-Americana de Solidariedade. Este ocorreu no ano seguinte, entre 31 de julho e 10 de Agosto. “A Olas se reuniu sob o lema ‘O dever de todo revolucionário é fazer a revolução’, que já continha em si uma crítica aberta aos partidos comunistas latino-americanos e outras formas reformistas.” Era uma censura aos revolucionários que adotavam práticas e métodos burocráticos ou economicistas que tinham como resultado frear e adiar constantemente o clímax revolucionário.

As teses da III Internacional colocavam em destaque o papel que os comunistas teriam na vanguarda do processo revolucionário, organização da classe operária e derrubada da burguesia. No entanto, “a burocratização da III Internacional sob Stalin desvirtuou essa tática para a chamada ‘revolução em duas etapas’, colocando as forças do

9

10

11

proletariado como auxiliares de pretensas burguesias progressistas e nacionalistas em ruptura como imperialismo. Somente numa segunda etapa, quando estivesse consumada a revolução democrática e nacional, os comunistas poderiam avançar as bandeiras da revolução socialista.” Contrapondo essa tese, a palavra de ordem que emanava de Cuba pela América Latina, indicava que era hora de uma verdadeira ação revolucionária. A sigla Olas, em espanhol significa “ondas”. Nessa perspectiva, ela expressa o seu anseio maior, ou seja, a organização pretendia banhar a América com a Revolução.

A experiência cubana deu novo impulso à luta de classes na América Latina, sua influência transcendeu aos partidos comunistas de orientação soviética, e foi seguida por vários militantes de esquerda em diversos países. Um dos movimentos que aderiram à luta armada camponesa foi o Trotskista. O SU (Secretariado Unificado da IV Internacional) na década de 1970, sobretudo, a partir do seu IX Congresso, em 1969, impressionado e influenciado pela experiência cubana e pela guerrilha vietnamita, negou o Programa de Transição (1938) de Trotsky e passou a apoiar a guerrilha camponesa: “A mais significativa e bem sucedida experiência guerrilheira dos trotskistas foi a do PRT-Santucho que criou o ERP na Argentina”.

Nesse ínterim, a experiência da luta cubana se tornou o novo paradigma revolucionário. Para muitos movimentos que lutavam contra a manutenção da ordem estabelecida, Cuba era um exemplo a ser seguido. Assim, recebeu de seus adeptos latino-americanos, o título de “primeiro território livre da América”. Como resultado das ações do governo cubano em meados da década de 1960, surgiram ações guerrilheiras em quase todos os países da América Latina. Nesse período, Cuba teria treinado de 2.000 a 3.000 guerrilheiros. Os focos da luta armada surgiram na Venezuela, Guatemala, Peru, Colômbia, Bolívia, El Salvador, Uruguai, Brasil, Argentina e na Nicarágua com os sandinistas.

No Brasil, por exemplo, o governo cubano apoiou os movimentos guerri lheiros em t rês momentos diferentes. Primeiramente, num período anterior ao golpe militar de 1964, Cuba estabeleceu contato com importantes dirigentes das Ligas Camponesas. Num segundo momento, após a tomada do poder pelos militares, os cubanos mantiveram relações com o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), grupo liderado por Leonel

12

13

9

10

11

12

GUEVARA, Che. Socialismo e juventude. São Paulo: Anita Garibaldi, 2005, p. 97 – 98.

Idem. p. 103.SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção, op. cit., p. 83.ANDRADE, Everaldo de Oliveira. O debate sobre a construção do Estado

socialista. In: COGGIOLA, Osvaldo. (Org.) Revolução cubana: Histórias e problemas atuais. São Paulo: Xamã, 1998, p. 114.

BENOIT, Hector. Sobre o desenvolvimento (dialético) do programa. Crítica Marxista, São Paulo: Xamã, 1997, n. 4, p. 40 - 41

13

História & Luta de Classes - 37

Brizola e composto por militares expulsos das Forças Armadas Brasileiras. Adeptos da teoria do “foco guerrilheiro”, o grupo montou uma ação guerrilheira na serra da Caparaó, que acabou sendo dizimada pela Polícia Militar de Minas Gerais. E por fim, a ilha apoiou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo liderado por Carlos Marighela, que havia participado da Conferência da Olas.

O impacto da Revolução Cubana se distinguiu essencialmente devido ao rompimento com as estratégias definidas pelos partidos comunistas. E todas essas práticas do governo cubano não garantiram a adesão desses partidos ao Projeto Andino. Segundo Ayerbe: “A opção pela violência revolucionária não era consensual na esquerda latino-americana. Entre os críticos, destacavam-se os partidos comunistas vinculados à União Soviética, que viam a experiência de Cuba como expressão de uma realidade nacional específica.” Os soviéticos e os partidos comunistas latino-americanos não apoiaram à revolução armada. Nikita Kruchev acreditava que o socialismo venceria o capitalismo devido sua superioridade econômica. Os membros dos partidos comunistas que aderiram à luta armada eram minoritários. Dessa forma, os movimentos guerrilheiros que surgiram recrutavam homens em outros partidos de esquerda, em movimentos estudantis e até jovens sem experiência política.

Che Guevara e a teoria do “foco guerrilheiro”Toda a mobilização da esquerda latino-

americana pela luta armada teve como pano de fundo uma teoria que apontava os fundamentos essenciais dessa estratégia de luta. Che Guevara foi principal teórico da guerra de guerrilhas. Desde a vitória da revolução em Cuba, Che se preocupou em sistematizar a experiência guerrilheira cubana, numa tentativa de teorizar para generalizar a luta armada pela América. Cabe aqui uma citação de Guevara que expressa bem seus objetivos nesse momento em questão: “Encontrar as bases em que se apóia este tipo de luta, as regras a seguir pelos povos que buscam sua libertação; teorizar o fato, estruturar e generalizar esta experiência para o aproveitamento de outros, é a nossa tarefa no momento”.

No período de 1959 a 1967, partindo da análise da experiência de luta armada em Sierra Maestra, Che escreveu constantemente sobre as guerrilhas e seus fundamentos. “A Guerra de Guerrilhas” (1960) é seu texto mais importante. Trata-se de um manual de orientação prática para os guerrilheiros, esse livro se

14

15

destaca por que observa minuciosamente detalhes de organização interna de uma guerrilha.

Guevara dividiu o texto em três partes. O primeiro capítulo intitulado, “Princípio gerais da luta guerrilheira”, aborda a essência dessa luta, estratégia, guerra em terrenos favoráveis e desfavoráveis e a guerra suburbana. Na segunda parte, “A guerrilha”, o texto leva em conta o guerrilheiro como formador social e combatente, princípio, desenvolvimento e fim de uma guerra de guerrilhas. No último capítulo, “Organização da frente guerrilheira”, Che escreve sobre suprimentos, organização civil, papel da mulher, saúde, sabotagem, indústria de guerra, propaganda, informação, treinamento de doutrinamento e organização estrutural.

Sobre a característica de generalização da experiência cubana, numa abordagem geral, Che Guevara se preocupou em apontar três contribuições fundamentais para os movimentos de guerrilha na América latina:

“1) As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército.2) Nem sempre há que se esperar que se dêem todas as condições para a revolução; o foco insurrecional pode criá-las.3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo.”

Essa passagem expressa em síntese os elementos centrais da teoria do “foco guerrilheiro”. Suas observações são em um conjunto, uma crítica e uma reação à imobilidade e conformismo político dos partidos comunistas latino-americanos, que com métodos burocráticos se afastavam da luta e viviam numa permanente espera das condições objetivas para a revolução. Para Che não se tratava de esperar o clímax revolucionário, as condições objetivas deveriam ser forjadas por meio da atuação dos guerrilheiros junto à população camponesa.

Mediante a análise dos textos militares de Che, podemos observar que em sua concepção a “guerrilha não é um complemento, mas sim o eixo da estratégia de poder, porque é dela que deve surgir um exército popular. Por isso, seu terreno natural é o campo e sua relação com o campesinato. ” Che elucidou que o grande trunfo da guerrilha estava no cerne de seus procedimentos políticos, ou seja, no papel desempenhado pelos guerrilheiros junto aos camponeses. “É importante destacar que a luta guerrilheira é uma luta de massas, é uma luta popular: a guerrilha, como núcleo armado, é a vanguarda

16

17

14

15

AYERBE, Luiz Fernando. A Revolução Cubana. São Paulo: UNESP, 2004, p.17.

GUEVARA, Che. A guerra de guerrilhas. 2. ed. São Paulo: Edições .

Populares, 1982. p. 15.Idem. p. 13. SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política, op. cit., p. 23.

16

17

38 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina

combatente do mesmo, sua grande força reside na massa da população.” Sem o apoio do povo, a guerrilha não tem condições de transformar-se em uma guerra regular e derrotar o exército opressor.

Portanto, Che se preocupa que os guerrilheiros incorporem à luta armada,o fator social dos trabalhadores que, em sua concepção, não era outra senão a reforma agrária. Michel Löwy observou que: “Por este papel, em relação à consciência das massas populares, a guerrilha atua como um agente catalisador, (...) Desempenha, assim, papel político decisivo não apenas na região diretamente atingida pelas suas ações, mas também em toda a nação (ou continente!)

Guevara ainda salienta que às atitudes dos revolucionários, junto à população são fundamentais para incorporação do camponês à luta armada. Os guerrilheiros devem pagar por tudo que for fornecido pela população local, nunca devem se julgar superiores ou diferentes da massa, jamais agir de forma violenta em relação às famílias camponesas e sempre zelar pela justiça social.

Para Che Guevara, “Está bem estabelecido que a guerra de guerrilhas é uma fase da guerra que não tem por si oportunidades de chegar ao triunfo. É ainda uma das fases primárias da guerra e se irá desenvolvendo e progredindo até que o Exército guerrilheiro, em seu crescimento constante, adquira as características de um Exército Regular.” Dentro desta perspectiva, outra condição política necessária para a vitória é que a luta armada adquira proporções de uma guerra civil, e alcance todo território do país. A guerrilha é apenas o primeiro momento da guerra, ela precisa expandir, fundir-se com outros grupos, para assim, romper o isolamento político e então, ser capaz de derrubar um governo e estabelecer um novo.

Analisando sistematicamente o livro, Guerra de Guerrilhas, Eder Sader, observou:

“No plano mesmo do livro não é muito claro: volta freqüentemente a aspectos já tratados, passa de um assunto para outro e mistura níveis diferentes numa só passagem. É como se ele estivesse falando a um grupo de revolucionários dispostos a aplicar as lições da experiência cubana, para transmitir-lhes cuidadosamente em cada detalhe, da importância do calçado para as caminhadas na selva à distribuição igualitária da comida, até as leis gerais da ação militar. Mas, se é rigorosa a transmissão do conhecimento técnico dos detalhes militares, o próprio descuido acerca das condições de

18

19”

20

generalização da experiência cubana já trazem raízes de fragilidade maior. E a produção que segue essa linha é sempre grandemente devedora da capacidade de generalização das experiências

cubanas.”

As críticas de Eder Sader elucidam em princípio que o livro de Che falhou na discussão mais importante, que trata da capacidade e das condições de generalização da guerra de guerrilhas. E acabou se preocupando fundamentalmente em detalhes minuciosos da organização técnica e militar da guerrilha. E sobre as condições de luta armada na América Latina, expostas por Guevara, Eder Sader escreveu que: “A análise das condições gerais – sócio-econômicas - do continente é relativamente simples. Guevara retoma vários estudos contemporâneos sobre as heranças coloniais no campo sob a forma do latifúndio, sobre o significado da dominação econômica do imperialismo, sobre os limites da industrialização. A dependência econômica e a miséria das grandes massas são reproduzidas graças a sistemas de poder que reúnem os grandes proprietários rurais e uma burguesia industrial, associados ao imperialismo estrangeiro.” A teoria do “foco guerrilheiro” foi construída sobre uma análise precária das condições políticas, econômicas e sociais da América Latina. Nesse sentido, no calor dos acontecimentos Che Guevara deu pouca ênfase as conjunturas e particularidades de cada país.

Jorge Castañeda também critica as condições de generalização da luta armada: “O Che descreve de maneira insuficiente e em parte falsa o que ocorreu em Cuba; extrapola indevidamente para outras regiões os supostos ensinamentos e ignora o ponto central: o que se acontece uma vez raramente pode se repetir.” E Denise Rollemberg acrescenta: “os revolucionários passaram a contar a história da vitória de tal maneira que construíram um dos maiores mitos da esquerda latino-americana dos anos 1960: o do foco guerrilheiro.” As condições de luta do campesinato nos países latinos não eram as mesmas que os guerrilheiros cubanos encontraram em Sierra Maestra e não poderiam ser baseadas apenas na experiência da ilha caribenha.

Aproximadamente quarenta anos depois, Fidel Castro fez uma autocrítica e sobre a política de “exportação da revolução” concluiu que: “É claro que queríamos a Revolução, a desejávamos, por doutrina, por crença; mas respeitávamos o direito internacional.

21

22

23

24

18

19

20

21

GUEVARA, Ernesto Che. A guerra de guerrilhas, op. cit., p. 15.LÖWY, Michel. O pensamento de Che Guevara. 5 ed. Expressão Popular:

São Paulo, 2003, p.124.GUEVARA, Ernesto Che. A guerra de guerrilhas, op. cit., p. 18.SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política, op. cit., p. 19 – 20.

22

23

24

Idem. p. 21- 22. CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p. 184.ROLLEMBERG, op. cit., p. 14.

.

História & Luta de Classes - 39

E digo ainda que a Revolução não podia ser exportada, porque ninguém pode exportar as condições que possibilitam uma revolução. Sempre partimos desse critério e continuamos pensando assim.” A declaração de Fidel é completamente contraditória aos fatos. Como respeitavam o direito internacional se forneciam treinamento, soldados e até dinheiro aos movimentos guerrilheiros de outros países? A afirmação de que sempre partiram da concepção que a revolução “não podia ser exportada”, contradiz as ações realizadas pelo governo cubano.

As críticas desses autores são válidas e devem ser levadas em consideração. No entanto, elas não tocam em uma questão central. A teoria do “foco guerrilheiro” nega ou se esquece de uma premissa fundamental da revolução socialista mundial, expressa claramente por Marx, em O manifesto do partido comunista: “De todas as classes que hoje se opõem a burguesia, apenas o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As demais classes vão se arruinando e por fim desaparecem com a grande indústria; o proletariado é o seu produto mais autêntico.” Na contra mão da teoria de Marx, a guerra de guerrilhas de Guevara, apresenta o camponês como o verdadeiro agente revolucionário. Falha teórica irremediável. Pois, Marx descreve o camponês como “massa de produtores não envolvidos diretamente na luta entre capital e trabalho”;

Por que Che Guevara deslocou a luta revolucionária na América Latina para o campo? Isso ocorreu porque Guevara compartilhava da teoria de que os países latino-americanos são “subdesenvolvidos”. Essa dogmática do atraso “colonial”, “semicolonial”, e “feudal” da América Latina foi produzida pelos partidos comunistas burocratizados. O desenvolvimento desse dogma se deu essencialmente no VI Congresso da III Internacional Comunista realizado em 1928. As teses desse congresso estabeleciam que os países “subdesenvolvidos”, no qual incluíam a América Latina, precisavam viver uma longa etapa de desenvolvimento capitalista para, somente depois desse processo, pensar uma revolução socialista. É importante destacarmos que, se por um lado, Guevara rompe com a idéia da revolução como tarefa futura e a coloca na ordem do dia, como objetivo imediato, por outro, ele adere ao dogma da América Latina como “atrasada”.

Mas afinal, o que é um país “atrasado”, “subdesenvolvido” de acordo com Marx? Do ponto

25

26

27

de vista marxiano, trata-se de um país que conserva relações de um modo de produção anterior, ou seja, se caracteriza pela sobrevivência de “relações pré-capitalistas” de produção. Evidentemente, não é o caso da América Latina. Marx pensou a América como totalidade histórica e, de acordo com a teoria da história universal, nos países latino-americanos, as relações de produção tidas como pré-capitalistas, como por exemplo o trabalho escravo, eram na verdade, relações capitalistas de produção “encobertas” e, assim, fortes mecanismos de acumulação primitiva que integrados ao mercado mundial, preparavam o capitalismo industrial. Além disso, já no século XIX, nos principais centros da América Latina já existia um considerável setor de trabalhadores assalariados.

O dogma do “subdesenvolvimento” latino-americano enfatiza a “ausência de uma classe proletária”, quer dizer, de trabalhadores assalariados. Guevara adere a essa concepção e por isso, a teoria do “foco guerrilheiro” abandona a premissa de que a libertação da classe trabalhadora é obra da própria classe trabalhadora. Ao elucidar que apenas o camponês armado é capaz de trilhar o caminho até o poder, Che não leva em conta que o proletariado é a única “classe verdadeiramente revolucionária”, porque é o verdadeiro produto da contradição capital-trabalho. Ao desprezar a classe operária reunida nos centros urbanos latino-americanos, Guevara deixa de lado a tese de que a revolução socialista, ou seja, a emancipação dos trabalhadores, parte da organização e conscientização da própria classe trabalhadora. Além disso, essa teoria também não levou em consideração a possibilidade de uma revolução proletária nos Estados Unidos (centro do Capital mundial) ou no Canadá. Não considerando a organização da classe trabalhadora nos países mais industrializados, onde ela é mais importante.

A reação norte-americanaEm contrapartida à ofensiva armada

orquestrada pelos cubanos, os Estados Unidos organizaram a reação. E esse é outro aspecto importante para entender o malogro dos movimentos guerrilheiros que pretendiam seguir o exemplo cubano.

Em agosto de 1962, num encontro em Punta del Leste, no Uruguai, o presidente John Kennedy lançou o projeto Aliança para o Progresso. Que consistia na alternativa norte-americana à via armada incentivada pela ilha. O programa propunha a execução de amplas

28

25

26

27

RAMONET, op. cit., p. 271.MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São

Paulo: Martin Claret, 2002, p. 55.MARX, Karl. O que foi a Comuna de Paris? In: COGGIOLA, Osvaldo.

(Org.) Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo: Xamã, 2003, p. 43. BENOIT, Hector. O programa de transição de Trotsky e a América. Crítica

Marxista, São Paulo: Revan, n. 18, 2004.

28

40 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina

reformas, entre elas; a agrária, a da educação, da saúde e fiscal. Além disso, ofereceram uma ajuda financeira de vinte bilhões de dólares a serem investidos nos países latino-americanos, entre dez e quinze anos: “O programa também prometia apoio à integração econômica, propondo a criação de uma área de livre comércio, ações emergenciais de alimentos para a paz e intercâmbio científico entre as universidades”.

O objetivo era que os países latino-americanos superassem a grave crise econômica. Afinal, países mais fortes e estáveis economicamente não se deixariam seduzir pela revolução das armas. Assim, Kennedy pretendia combater os argumentas da esquerda armada. Além disso, também pretendia implantar uma política de isolamento de Cuba, pois, a condição para receber a ajuda econômica era cortar relações com a ilha caribenha.

O combate norte-americano ao projeto cubano de apoiar revoluções não teve conseqüências apenas pela via política e econômica. “Na Organização das Nações Unidas (ONU), 18 países latino-americanos culpavam Cuba pela ebulição do continente. Reunidos em uma comissão, exortariam a formação de equipes de segurança, espionagem, repressão e intervenção em todos os países da América – os futuros “boinas verdes” -, e a suspensão da venda de armas e implementos militares para Cuba.”

Os Estados Unidos aliado aos governos militares que se instalaram na América Latina, organizavam a reação militar às guerrilhas que surgiam no campo e nas cidades. Na Bolívia, por exemplo, o General Gary Prado Sálmon, um dos principais responsáveis pela captura de Che Guevara, afirma que: “No caso dos Estados Unidos, a ajuda veio por meio da presença de instrutores militares e de apoio logístico, como armamentos.” A Central de Inteligência Americana (CIA), na década de 1960, esteve empenhada em fornecer treinamento aos exércitos dos países latino-americanos. Os norte-americanos forneciam instruções de enfrentamento às guerrilhas e equipamento militar de ponta para os exércitos alcançarem melhores êxitos no combate aos focos guerrilheiros.

Junto a esses aspectos, também se deve levar em conta a propaganda anticomunista organizada pelos norte-americanos que sempre se empenharam fervorosamente em disseminar pela América Latina uma propaganda, que almejava em última instância a deturpação e depreciação da sociedade cubana. Esse fator, junto ao bloqueio econômico continua presente na política dos norte-americanos em relação a Cuba, até a atualidade.

29

30

31

O fracasso e a reaproximação com a URSSEm outubro de 1967, Che Guevara foi

capturado e assassinado nas montanhas bolivianas. Naquele momento Che, já era um mito entre a esquerda armada latino-americana e sua morte causou um profundo impacto na crença da guerra de guerrilhas, como estratégia de luta contra as ditaduras pró-imperialistas. Che não foi o primeiro guerrilheiro morto. Muitos outros já haviam sido derrotados e vários movimentos armados em toda a América, África e Ásia já haviam sido extintos. Em suma, no final da década de 1960, o Projeto Andino havia fracassado.

Diante dessas circunstâncias, Cuba teve que definir novas políticas para manutenção da sua revolução:

“Em 1968, diante de uma grave crise econômica, do isolamento internacional de Cuba e da derrota das guerrilhas na América Latina, (...) Fidel buscou uma reaproximação com a URSS, simbolizada no apoio à invasão à Tchecoslováquia. Nos primeiros meses de 1969, as negociações comerciais entre os dois países já apontavam para a distensão da crise. O compromisso de pôr fim à exportação da revolução acabou se concretizando em 4 de agosto de 1970”.

Nessa passagem, Rollemberg ressalta outro aspecto determinante para a reorientação da política cubana. A autora cita uma grave crise econômica. A Revolução Cubana estava próxima de completar 10 anos, no entanto, os problemas econômicos pe rmanec iam enormes . A ten ta t iva de industrialização e diversificação da economia proposta por Guevara, enquanto Ministro das Indústrias haviam fracassado. Portanto, as dificuldades não eram apenas externas, internamente a ilha sofria pressões sociais e a única alternativa naquele momento para solucionar tal crise, era a reaproximação com os soviéticos.

Para concretizar essa reaproximação política e econômica com os russos, o governo da ilha socialista teve que assumir o compromisso de não treinar guerrilheiros e nem fornecer qualquer tipo de ajuda a movimentos de luta armada na América Latina. Essa reaproximação entre cubanos e soviéticos, também teve que superar algumas divergências entre os dois países que vinham ocorrendo desde 1962, devido à “crise dos mísseis” e em conseqüência das várias críticas que Fidel Castro fazia à linha de atuação dos partidos comunistas latino-americanos que seguiam as orientações do Kremlin.

32

29

30

AYERBE, op. cit. p. 47.FURIATI, Cláudia. Fidel Castro: Uma biografia consentida. 4 ed. Rio de

Janeiro: Revan, 2003, p. 492.

31

32

GOMES, Saulo. Quem matou Che Guevara: O seu delator estava no Brasil. São Paulo: Elevação, 2002, p. 53.

ROLLEMBERG, op. cit, p. 17 - 18.

História & Luta de Classes - 41

Superada essa crise, Cuba passou a integrar o Bloco socialista em 1972, incluindo-se ao COMECOM (Mercado Comum dos Países Socialistas). Em suma, diante de pressões externas e internas, o governo cubano abandonou o projeto de “exportação” da revolução e partiu para a construção do “socialismo em um único país”, vinculados aos soviéticos.

Considerações FinaisA política de “exportação” da revolução

encabeçada pelo governo cubano durante a década de 1960, fundamentada pela teoria do “foco guerrilheiro” de Guevara, foi importante no sentido em que estabeleceu uma feroz crítica a burocracia dos partidos comunistas de orientação soviética. Pois, contrapondo as teses stalinistas, Che Guevara colocou a revolução como tarefa imediata e não para ser pensada no futuro, após uma revolução nacionalista-democrática como estabelecia a III Internacional.

No entanto, a teoria do “foco guerrilheiro” enfrentou limites teóricos e, ao aderir ao dogma do “subdesenvolvimento” latino-americano e, propor o desencadeamento de uma revolução mundial, indicando o camponês como agente revolucionário, rompeu decisivamente com as premissas fundamentais do pensamento de Marx. Pensar o processo de transição do capitalismo à Revolução Socialista, substituindo a organização e a construção de um partido verdadeiramente proletário pela luta armada camponesa é resultado de um grave erro teórico, de uma equivocada compreensão histórica. Ora, o resultado dessa política não poderia ter sido diferente. E nas montanhas e selvas da América Latina, diante do isolamento político, as guerrilhas caíram uma após a outra.

Qual então, o verdadeiro significado dessa política? Segundo Denise Rollemberg: “A perspectiva de exportar a revolução serviu, em última instância, como um meio de importar a revolução, garanti-la no interior de suas fronteiras e não de levá-la para além delas. Diante de tais circunstâncias, o treinamento de guerrilheiros latino-americanos acabou se tornando mais importante, na verdade, para os próprios cubanos, para a sua revolução”.

Em síntese, o projeto cubano de “exportar” a revolução, mesmo não alcançando seus objetivos, teve função extremamente importante para o fortalecimento interno do regime cubano, pois, consolidou a revolução dentro de suas fronteiras. Em contrapartida, representou um bloqueio à organização e conscientização da classe operária, significou o

33

33 Idem. p. 65 - 66.

abandono da teoria da Revolução Permanente de Marx e Trotsky e, por fim, traduziu-se em uma conciliação com a burocracia soviética.

42 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina

América Latina: Ditaduras,

Segurança Nacional e Terror de Estado

*

Enrique Serra Padrós**Introdução

política de Terror de Estado (TDE) implementada pelas ditaduras civis-militares que se disseminaram pelo Cone Sul latino-americano, entre as décadas de 1960 e 1980, foi o mecanismo utilizado para aplicar as premissas da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), visando defender os interesses dos setores dominantes locais e do capital estrangeiro e destruir as tendências de questionamento social e de exigência de mudança estrutural promovidas pelas organizações populares.

O estudo das ditaduras de Segurança Nacional (SN) mantém vigência diante da necessidade de responder a muitos questionamentos, particularmente dos formulados pelas organizações de direitos humanos, no que diz respeito aos fatos vinculados ao TDE, bem como à permanência de feridas produzidas pela impunidade e pela ausência de esclarecimentos, sobretudo nos casos de desaparecimento e de apropriação de crianças. Nos últimos anos, tornaram-se públicos depoimentos de quadros envolvidos no aparato repressivo, que, dependendo de cada caso nacional (Argentina, Uruguai, Chile, Brasil e Paraguai), oscilam entre um tênue arrependimento, a justificativa da obediência devida ou a reafirmação anticomunista. O aumento da visibilidade da problemática através do Caso Pinochet (desde sua polêmica detenção em Londres), as novas descobertas sobre a Operação Condor e a desclassificação de documentos do Departamento de Estado dos EUA relacionados àqueles eventos confirmam os esquemas repressivos das respectivas ditaduras, as conexões entre si e a co-responsabilidade estadunidense em todo este processo.

A produção historiográfica e as reflexões de

1 áreas afins sobre as ditaduras de SN na América Latina foram praticamente inviabilizadas durante as mesmas. As duras condições de sobrevivência, o patrulhamento ideológico, a proibição explícita e a autocensura foram empecilhos que restringiram o debate. A censura sobre os meios de comunicação comprometidos com posições críticas, a intervenção no ensino, o controle dos programas de conteúdo reflexivo e a perseguição de docentes e de estudantes que se opunham à lógica dos novos regimes marcaram a expansão autoritária. A própria temática América Latina foi alvo de interdição, principalmente sua história recente.

Somente no final dos anos 70, surgiram os primeiros debates sobre o caráter dessas ditaduras como o grande fórum promovido pela Revista Mexicana de Sociología. Neste espaço, debateu-se intensamente a validade ou não da aplicação do conceito “fascismo latino-americano” na realidade dos países enquadrados pelas ditaduras de SN. A partir da identificação de uma série de características que se consideravam comuns àquelas experiências clássicas de entre-guerras, elaborou-se uma teoria explicativa sistematizada, principalmente, por Agustín Cueva. Essa abordagem recebeu uma diversidade de adjetivações, expressão de divergências quanto aos critérios condutores da análise sendo, também, resultado de uma ênfase militante que visava contribuir na denúncia e na resistência frente às situações limite vivenciadas na América do Sul.

2

3

A

*

**

1

.

.

Este artigo é uma adaptação condensada de alguns itens do capítulo 1 da minha Tese de Doutorado: Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar. Doutorado em História. UFRGS, Porto Alegre, 2005.

Professor de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Referência explícita às ditaduras de Segurança Nacional da Argentina (1976-

1984), do Brasil (1964-1985), do Chile (1973-1989), do Paraguai (anos 70 e 80) e do Uruguai (1973-1985).

Revista Mexicana de Sociología, México, v. 39, n° 1 e 2, 1977. Dela participaram, entre outros, Agustín Cueva, Atilio Borón, Liliana de Riz, Theotônio dos Santos e René Zavaleta Mercado.

CUEVA, Agustín. La cuestión del fascismo. Revista Mexicana de Sociología, México, v. 39, n° 2, p. 469-480, abr./jun. 1977.

2

3

..

..

História & Luta de Classes - 43

No transcorrer dos anos 80, outro modelo explicativo ganhou espaço, assentado nas reflexões realizadas por autores como Juan Linz e Stanley Payne sobre as ditaduras de pós-guerra, no sul da Europa (Espanha, Portugal e Grécia), assim como suas transições à democracia. Como resultado de estudos comparativos e da elaboração de tipologias, surgiu, como uma das principais contribuições, a proposição do modelo burocrático-autoritário de Guillermo O'Donnell. O mesmo delineava um Estado caracterizado por forte presença tecnocrata e por responder à acentuada ativação política popular existente nos cenários anteriores aos golpes de Estado do Cone Sul. Enquanto modelo explicativo mostrou-se mais aberto às especificidades das ditaduras latino-americanas, contrapondo-se, no debate teórico, ao esquematismo do uso da categoria fascismo.

Dentro dos enfoques que pautaram o estudo dos casos de ditaduras de SN, à medida que os processos de abertura política possibilitaram a recuperação de direitos, os subtemas relacionados com as questões econômicas e com as formas de Estado ocuparam a centralidade da produção historiográfica. Um tema que parecia vigoroso nos últimos anos de quase todas as ditaduras, mas que logo se esvaziou parcialmente, foi o referente à questão dos direitos humanos. Apesar do grande impacto produzido pela onda da elaboração dos relatórios Nunca Mais e das revelações e depoimentos que vieram a público, a aprovação, por parte do sistema político, da anistia para os responsáveis pelos crimes de Estado cometidos durante as ditaduras e a reversão das expectativas de esclarecimento (implícitas na consigna “Verdade e Justiça”) reintroduziram uma situação de paralisia e de medo da sociedade civil diante da permanência da impunidade. Em termos práticos, com algumas variáveis em cada país, a destruição de documentos, a impossibilidade do acesso público aos mesmos e as ameaças físicas, verbais ou judiciais contra as vítimas daqueles regimes fizeram com que a temática do TDE e das múltiplas formas de violência estatal fossem pouco estudadas. A exceção foram as organizações de direitos humanos, que, através de trabalhos multidisciplinares, assumiram o confronto pela memória e contra o esquecimento induzido. É importante salientar que, no fim da década de 90, a descoberta ou disponibilização de novos arquivos, acompanhado da retomada de um posicionamento mais crítico de setores da população dos países do Cone Sul em relação à responsabilização jurídica dos

4

5

crimes de Terror de Estado, recolocaram a temática como objeto de pesquisa.

A clivagem do aprofundamento da Guerra Fria e sua maior visibilidade na região em função da Revolução Cubana e dos seus desdobramentos, exigem a análise das diretrizes basilares da política externa estadunidense para a América Latina. Entre elas, a proposta de Desenvolvimento e Segurança que pautou a criação da Aliança para o Progresso (1961) e a política de Contra-insurgência, ambas inseridas na estratégia de resposta flexível (contendo a possibilidade de implementação de todo tipo de ação) que perpassou as administrações Kennedy, Johnson e Nixon. Os conceitos básicos elaborados dentro do pensamento da Doutrina de Segurança Nacional (“inimigo interno”, “guerra interna”, “subversão”, “contra-insurgência”, “Estado como ser vivo”, “objetivos nacionais”, etc.) foram disseminados pelos países da região através de diversos mecanismos de transmissão (doutrinação militar, acordos na área do ensino, bens de consumo da indústria cultural).

A América Latina, nos anos 60/70, passou por uma intensa radicalização do processo de luta de classes. Projetos de mudança, que variavam entre matizes de cunho reformista/nacionalista até outros de contorno socialista, foram alimentados pelos exemplos históricos da Revolução Cubana, da guerra de libertação no Vietnã e da trajetória revolucionária de Che Guevara. Tais fatos, para o sistema, se prefiguraram como elementos desestabilizadores da ordem interna, pois foram referências de mobilização e potencialização dos setores populares em luta por mudanças estruturais.

Os regimes de SN (pese as singularidades de cada Estado nacional) foram o instrumento de reenquadramento dessas sociedades fortemente mobilizadas. Apesar da exposição do protagonismo militar e de certa autonomização conjuntural do mesmo, tais regimes representaram os interesses da fração burguesa que, hegemônica em termos internos, estava vinculada ao capital internacional como associada subordinada. Em termos econômicos, as ditaduras consolidaram, como características gerais, a internacionalização da economia, a aplicação das receitas do FMI e do Banco Mundial, o crescimento do endividamento externo, a concentração de renda e a exploração das “vantagens comparativas” (sobretudo a baixa remuneração da força-de-trabalho).

Em termos políticos, os objetivos foram muito

4

5

Ver: LINZ, Juan. Regimes Autoritários. In: O'DONELL, Guillermo et. al. O Estado Autoritário e os Movimentos Populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1982.Argentina (CONADEP. Nunca mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o

Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, s. d.). Brasil (Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1986). Uruguai (SERPAJ. Uruguay

Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos -1972-1985. Montevideo: SERPAJ, 1989). Chile (COMISIÓN NACIONAL DE VERDAD Y RECONCILIACIÓN. Informe Rettig. Santiago: 1991). O relatório argentino veio a público em 1984, o brasileiro em 1986, o uruguaio em 1989 e o chileno em 1991.

44 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado

claros: destruir as organizações revolucionárias; desmobilizar e despolitizar os setores populares; aprofundar a associação com os EUA e os aliados internos da região; enquadrar os espaços político-institucionais (partidos, Congresso, sindicatos, grêmios estudantis, etc.); impor uma ordem interna disciplinadora de segurança e estabilidade; esvaziar o pluralismo político e interromper a dinâmica eleitoral. A aplicação de tais medidas produziu, como herança, uma “cultura do medo”, que comprometeu o posterior processo de redemocratização, frustrando as expectativas suscitadas e conformando uma espécie de democracia imperfeita, inconclusa.

O debate sobre o caráter das ditaduras de Segurança Nacional

Embora existam outras contribuições interpretativas significativas sobre o caráter dessas ditaduras, centramos a análise nos três modelos que entendemos marcaram, de forma mais profunda o debate sobre as especificidades dessas experiências. O primeiro modelo explicativo baseia-se na concepção do Estado Burocrático-Autoritário (BA), desenvolvido por Guillermo O'Donell a partir dos estudos clássicos sobre Autoritarismo apoiados na proposição de um tipo ideal resultante da comparação de características e de uma tipologia que acolheu múltiplas formas históricas de manifestação. A procura de especificidades, caso a caso, inclusive de aspectos secundários ou formais, gerou, muitas vezes, um excesso de rótulos que tornou impreciso ou insuficiente tanto a comparação quanto a possibilidade de síntese explicativa que extrapolasse o caso em questão.

O'Donell procurou resgatar a especificidade das experiências latino-americanas apontando para as seguintes características: direção tecnocrática do Estado (pretensamente neutra e acima das contradições de classe); exclusão e desativação política dos setores populares; imposição de uma despolitização generalizada no conjunto da sociedade; formação de uma aliança diversificada de setores sociais (burguesia compradora, oligarquia, setores médios urbanos, etc.) em volta de um projeto de intervenção civil-militar e de um forte anticomunismo. Destacou ainda a pretensão de reordenamento do status quo diante da radicalização dos setores populares e da crise de hegemonia burguesa para garantir os interesses do capital internacional e as mudanças nos mecanismos de

acumulação. Segundo O'Donell, o bloco hegemônico resultante foi constituído pela alta burguesia (vinculada ao capital internacional), os tecnocratas, as Forças Armadas e, eventualmente, frações da burguesia nacional. Coube, à primeira, imprimir as mudanças estruturais necessárias para garantir maior internacionalização da economia - em detrimento dos interesses e dos projetos de desenvolvimento da burguesia nacional - e oferecer “vantagens comparativas” para atrair investimentos externos. O papel fundamental do Estado BA foi garantir a exclusão política e econômica, para permitir as mudanças nos padrões de acumulação que se vislumbravam a partir das transformações produzidas desde o final da Segunda Guerra.

A instalação do Estado Burocrático-Autoritário aconteceu em etapas. A primeira, quando se eliminou a ameaça das organizações populares, com o recurso das Forças Armadas, impondo a ordem e a estabilidade necessária para garantir os investimentos externos. A segunda, quando a tecnocracia e o capital internacional estabeleceram as medidas econômico-sociais exigidas pelo processo de internacionalização da economia. Finalmente, a última etapa, quando àqueles atores se juntaram frações da antiga burguesia nacional, agora subordinada, associada ou cooptada, principalmente pela ação do virulento discurso da existência de uma ameaça comunista. As características e as etapas apresentadas por O'Donell variaram de acordo com as especificidades de cada caso nacional. Deve salientar-se, por outro lado, que as críticas a este modelo de análise se pautaram, fundamentalmente, pela escassa margem explicativa para as contradições sociais (secundarização do conflito de classe), pelo grande peso concedido à tecnocracia militar e civil e pela diminuição do papel e da importância dos EUA na estruturação desses regimes.

O segundo modelo explicativo baseou-se na citada interpretação sobre a existência de um fascismo latino-americano, a partir das interpretações clássicas de Georgi Dimitrov e Palmiro Togliatti, ambas associadas a uma abordagem marxista-leninista mais ortodoxa presente na linha programática dos Partidos Comunistas da região. Agustín Cueva transpôs, à realidade latino-americana dos anos 70 e 80, o conceito de fascismo como “a ditadura terrorista que os setores mais reacionários do capital monopólico exercem sobre a classe operária, primordialmente em situação de crise”. Seus críticos avaliaram que esse

6

7

6 Posição que resultou do documento apresentado por Dimitrov na plenária do VII Congresso Mundial da Internacional Comunista (3ª Internacional), em agosto de 1935. Teve como característica principal a revisão da posição que considerava “irmãos gêmeos” o fascismo e a social-democracia. A partir da aprovação da proposta de Dimitrov, o movimento comunista internacional

passou a defender a construção de uma frente comum para enfrentar o fascismo envolvendo os setores esquerdistas, a social-democracia e certos setores liberais burgueses. CUEVA, Agustín. Teoría social y procesos políticos en América Latina. São

Paulo: Global, 1983. p. 165.

7

História & Luta de Classes - 45

referencial teórico era anacrônico e sua aplicação para a realidade latino-americana dos anos 70 era inadequada e mecanicista. Diante de tais objeções, Cueva argumentou que o fundamental na análise da categoria fascismo não era a existência concreta de um partido de massas, de um suporte pequeno-burguês ou de uma ideologia chauvinista (de fato, inexistentes na região). Ao contrário, afirmava Cueva, tal ausência era a característica da especificidade periférica latino-americana e da sua forma de inserção na economia capitalista mundial.

O fundamental, nessa linha de análise, era a natureza de classe do fascismo e a mudança qualitativa que impunha às formas de Estado. O controle monopólico dos setores chaves da indústria conformava um eixo externo-local vinculado às esferas de dominação civil-militar, com um forte potencial de fascistização em determinadas circunstâncias históricas. Mas o caráter periférico das economias regionais inviabilizava que o fascismo latino-americano cooptasse algum movimento de massa como base social de apoio. Da mesma forma, estava interditada a implantação de uma política nacionalista, em função da configuração dependente desses países em relação às economias centrais, o que, é claro, assinalava importantes diferenças em relação às experiências clássicas de fascismo. Atilio Borón, um dos principais críticos do uso desta categoria de análise, a considerava insuficiente para explicar a especificidade estrutural das ditaduras do Cone Sul, fundamentalmente por que as economias desses países eram periféricas em relação ao sistema capitalista mundial; portanto, inexistiam condições para que uma burguesia nacional pudesse assumir papel dirigente.

Independente das diferenças visíveis entre as duas abordagens apresentadas, há, no mínimo, um ponto de encontro entre elas: a questão do caráter inédito e global dos novos sistemas repressivos implantados na região, dentro do mesmo marco cronológico e numa escala sem precedentes na América Latina. Enquanto O'Donell afirmava que o grau de repressão - vista como mecanismo de ação permanente - aumentava quanto maior fosse a instabilidade no regime anterior e a capacidade de organização dos setores populares, os defensores da tese do fascismo latino-americano lembravam que o mesmo acabava com todas as formas democráticas para exercer uma ditadura terrorista aberta. Esta confluência denota um elemento diferenciador dessas estruturas de poder em relação a experiências autoritárias ocorridas na região em outros contextos

8

históricos e reconhece que o fator violência, aplicado em maior ou menor medida num patamar inédito, esteve presente em todas as ditaduras de SN.

Uma terceira abordagem que consideramos de maior pertinência explicativa é a que identificou as ditaduras latino-americanas dos anos 60 a 80 como regimes de Segurança Nacional, o que realçou, portanto, o papel que a Doutrina de Segurança Nacional assumiu na estruturação desses regimes. As Forças Armadas, nessa perspectiva, receberam uma legitimidade política para desempenharem o papel de ordenadores do sistema social, diante da falência das instituições da democracia representativa e do sistema político em geral, e se apresentaram como garantia suprema da unidade nacional ameaçada pelos efeitos desagregadores do “perigo comunista”. A DSN foi incorporada como o fundamento teórico justificador da proteção da sociedade nacional a partir da edificação de um Estado que precisava esconder sua essência antidemocrática.

A DSN apontou, da mesma forma, a existência de um “estado de guerra permanente” contra um (suposto) “inimigo interno”, que podia ser toda pessoa ou organização armada, política ou social de oposição aos interesses da ordem vigente. Embora a DSN e seus defensores proclamassem agir em defesa dos valores democráticos, consideravam, no fundo, que a democracia era uma fonte geradora de desordens por permitir a atuação dos setores desconformes com a ordem vigente, a qual devia ser defendida através de todos os meios disponíveis. O cenário da “guerra interna” extrapolou as ruas, as fábricas ou as universidades, chegando ao extremo de levar essa batalha aos cárceres políticos, onde as mentes dos prisioneiros políticos viravam campos de batalha para destruir as consciências críticas, militantes e libertárias, situação particularmente verificada no Uruguai, onde as autoridades carcerárias explicitaram o objetivo de enlouquecer os presos políticos.

A aplicação das premissas da doutrina destruiu as bases da democracia representativa com o fechamento do Parlamento, o controle sobre o Poder Judiciário, a proibição do funcionamento dos partidos políticos, a imposição generalizada da censura, a violação sistemática dos direitos humanos e uma repressão brutal contra toda a oposição. É importante sublinhar que a DSN esteve presente em todos os regimes ditatoriais do Cone Sul, no referido período, independente da especificidade adquirida em cada país. Portanto, o papel que cumpriu no cerne destas experiências constitui, de per si, um elemento inédito

9

8 aBORÓN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en América Latina. 3 ed.

Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC/Universidad de Buenos Aires, 1997.

9 SAMOJEDNY, Carlos. Psicología y dialéctica del represor y el reprimido. Buenos Aires: Roblanco, 1986. p. 31.

46 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado

que, por um lado, inviabiliza a possibilidade de associar tais ditaduras com o fascismo clássico e que por outro, sendo a DSN fluente elo de conexão entre os novos regimes da região e os EUA, exige da tese do Estado Burocrático-Autoritário um redimensionamento da importância da superpotência para o advento e a consolidação daqueles.

Terror de Estado e Segurança NacionalEm relação ao debate sobre o Terror de Estado,

deve registrar-se que ele é relativamente recente, apesar de que tal fenômeno se tenha manifestado, historicamente, pelo menos, desde a Revolução Francesa. Na passagem dos anos 60 para os 70, os setores dominantes introjetaram a aceitação da violência estatal e de ações paramilitares, encobertas ou não, como sendo legítimas diante do “inimigo”, fosse este um outro Estado ou sua própria população civil (“inimigo interno”). Fatos assim haviam ocorrido no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas haviam sido justificados em nome da necessidade real da sobrevivência. Fora desse contexto particular, porém, eram vistos sob o entendimento de que constituíam ações terroristas deliberadas do Estado ou dos dirigentes que o controlavam, contra sua própria população.

No cenário latino-americano, a novidade chegou acompanhada da orientação contra-insurgente proposta desde os EUA, no contexto da Guerra Fria, quando identificaram que todo o continente americano era área de interesse nacional. No entendimento da superpotência, entretanto, a região estava muito vulnerável diante do impacto desagregador produzido pelo comunismo internacional (“exportado” pela URSS) e, sobretudo, pelos associados locais, os “inimigos internos”. A defesa do uso ilimitado da força como mecanismo de controle e de combate às mobilizações sociais produzidas pelas contradições internas dos diversos países tornou-se mais agressiva a partir da vitória e da radicalização da Revolução Cubana. Todavia, já era um processo em marcha desde o final da Segunda Guerra. Apesar da propaganda dos programas de “ajuda” no marco da Aliança para o Progresso, essas “boas intenções” não passavam de tentativas de cooptação para aumentar o controle sobre a região.

10

Nesses termos, o treinamento de corpos de elite de oficiais latino-americanos em escolas norte-americanas (Escola das Américas, Fort Benning, Fort Leavenworth), a ajuda para o aparelhamento e modernização do fator militar e reconversão deste para enfrentar e destruir o “inimigo interno” foram fundamentais. A passagem do Secretário de Estado Nelson Rockefeller pela América Latina, em 1969, serviu para elaborar um preocupante diagnóstico: “[...] hoje nenhum país [latino-americano], per si só, é capaz de garantir a sua própria segurança interna. [...] Unicamente através da cooperação do Hemisfério poderão esses problemas que afetam tão vitalmente a segurança interna, ser devidamente enfrentados.”

Em função disso, Rockefeller, entendendo que estavam em jogo questões estratégicas vitais para a própria segurança dos interesses estadunidenses, recomendava, como “Objetivo da Política Nacional” da superpotência [grifo meu]: “Os Estados Unidos devem cooperar com as demais nações do Hemisfério Ocidental em medidas que fortaleçam a sua segurança interna”. O chamado “Informe Rockefeller” foi um dos arcabouços que permitiram ativar uma lógica repressiva, que atingiu sua forma mais sofisticada e brutal não só para enfrentar os crescentes movimentos guerrilheiros dos anos 60, mas também contra amplos setores da população, sobretudo após a derrota das organizações revolucionárias. Foi a partir da orientação da contra-insurgência que começou a manifestar-se, embrionariamente, na região, o gérmen do TDE, constituído como

“[...] um modelo estatal contemporâneo que transgride os marcos ideológicos e políticos da repressão “legal” (consentida pelo marco jurídico tradicional) e apela a “métodos não convencionais”, extensivos e intensivos, para eliminar à oposição política e o protesto social, armado ou desarmado.”

Nas experiências concretas latino-americanas as características repressivas mais comuns foram a criação de uma estrutura clandestina, paralela à estrutura legal e visível do Estado, e a implementação de uma metodologia de seqüestro, detenção ilegal, tortura e desaparecimento definitivo. A argumentação dos antigos responsáveis pelas ditaduras e seus

11

12

13

14

10

11

Ver: COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurança Nacional. O Poder Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; JELLINECK, Sergio; LEDESMA, Luis. Uruguay: del consenso democrático a la militarización estatal. Estocolmo: Institute of Latin American Studies, 1980; BAUMGARTNER, José Luis; DURAN MATOS, Jorge. América Latina: liberación nacional. Montevideo: Banda Oriental, 1985. 2 Vol.

Em 1963 Robert McNamara, Secretário de Defesa da administração Kennedy, afirmava: “[...] provavelmente, o maior rendimento dos nossos investimentos de ajuda militar provém do treinamento de oficiais selecionados e de especialistas chaves em nossas escolas militares e seus centros de treinamento nos EUA e ultramar. Estes estudantes são cuidadosamente selecionados em seus países para converterem-se em

..

instrutores quando voltem a eles. São os líderes do futuro [...] Não é necessário explicar o valor que tem dispor de homens com um conhecimento de primeira mão de como os norte-americanos atuam e pensam para os cargos de direção. Para nós, não há preço que pague o fato de sermos amigos desses homens [...]”. CONADEP, op. cit., p. 343.

ROCKEFELLER, Nelson. As condições de Vida nas Américas. Relatório de uma Missão Presidencial dos Estados Unidos ao Hemisfério Ocidental. Rio de Janeiro: Record, s. d. p. 66.

Idem.BONASSO, Miguel. Prefacio. In: PIETERSEN, Jan et al. Terrorismo de

Estado. El papel internacional de EE.UU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 9.

12

13

14

História & Luta de Classes - 47

associados (políticos e empresários que se reinseriram eficientemente no cenário “redemocratizado”( tem sido a de que, se ocorreram excessos, estes foram cometidos por grupos autônomos ou por funcionários do Estado que interpretaram as ordens com demasiado zelo. Entretanto, as provas que confirmam a existência de um TDE tornam inconsistentes tais conclusões. Ao considerar a repressão como um sistema eficiente, se aceita, em alguns casos, a possibilidade da ocorrência de autonomização parcial de certos setores da cadeia de transmissão, mas isso não contradiz a lógica do sistema nem invalida a interpretação de que o TDE foi um mecanismo fundamental para viabilizar a nova ordem interna e o estabelecimento de novos padrões de acumulação.

A identificação das ditaduras de SN com práticas de TDE foi uma tendência que se consolidou nos anos 90. Os motivos por não ter ocorrido antes são variados. Talvez porque, durante sua existência, foi difícil dimensionar o que efetivamente ocorria, ou porque as negociações políticas de saída desses regimes foram extremamente difíceis e permitiram a sobrevivência política de muitos dos atores centrais. Pode ser ainda porque determinados setores aceitaram a tese de que a repressão estatal foi um mal necessário e transitório diante dos “descalabros” cometidos por projetos populistas ou radicais “irresponsáveis”. O fato é que a associação das ditaduras com o TDE partiu, em primeiro lugar, das organizações de direitos humanos, especialmente as que surgiram como resposta à prática das detenções-desaparecimentos. Apesar do enorme esforço de falsificação histórica perpetrado pela propaganda oficial ao tentar mostrar o desprendimento dos que se apresentaram como último bastião do “mundo livre” contra a “ameaça comunista”, os resultados concretos mostraram as contradições de um projeto que, para garantir a “paz”, usou da coerção de forma ilimitada.

Com o transcorrer dos anos, foi possível armar o “quebra-cabeça” desses regimes. As informações e experiências recolhidas nas prisões, na tortura, na clandestinidade, na resistência, no exílio e no reconhecimento da ausência definitiva dos desaparecidos deram nova fisionomia ao esquema repressivo. Nas primeiras análises, a violência aparecia como uma questão menor diante das questões estruturais. Formularam-se também explicações sobre o uso da violência em doses excessivas, fruto do desajuste patológico de agentes repressivos. À medida que os relatórios Nunca Mais foram sendo elaborados, divulgados, analisados e comparados, as sociedades atingidas passaram a ter maior conhecimento sobre as especificidades, a dimensão e o papel que essas práticas desempenharam em cada país do Cone Sul.

Cabe, ainda, uma última observação a respeito de toda esta problemática. Conhecendo a dinâmica, os objetivos e os interesses que estão por detrás das ditaduras de SN, é inaceitável a tentativa de dissociação entre interesses econômicos e práticas repressivas, como tentou delimitar o discurso tecnocrático. Este procurou marcar distância das políticas coercitivas do mesmo governo do qual fazia parte, tentando isentar-se das responsabilidades pertinentes. É fundamental, nesse sentido, não perder a perspectiva do fenômeno. O TDE foi a expressão de um dos principais aspectos das ditaduras de SN. Embora a centralidade que recebe neste estudo, não se entenda, porém, que é considerado desconexo das demais dimensões que compõem os regimes de SN. Pelo contrário, reafirmamos sua relação intrínseca e subordinada ao processo de internacionalização da economia e de hegemonia do capital internacional e seus associados locais. Os mecanismos implementados pela violência estatal visaram as organizações e os indivíduos que podiam representar perigo de resistência ao projeto em andamento; impuseram também, a médio prazo, formas anestésicas de convivência, fosse através da “cultura do terror”, da autocensura ou até da possibilidade de cooptação. A estabilidade e a apatia resultante do medo da volta do recurso sistemático à força condicionou um clima político que se ajustou adequadamente aos anseios e necessidades da alta burguesia e do capital internacional.

Coerentemente com a DSN, a guerra contra o “inimigo interno” implicou numa “guerra interna”, permanente, “total” e, conseqüentemente, “suja” - ou seja, ilegal e clandestina. A necessidade de implementar as diretrizes da SN exigiu o confronto total com a oposição, numa luta sem compromissos nem negociações e que só poderia terminar com a destruição total e permanente do adversário. Para quebrar o “inimigo”, utilizou-se a detenção sob a forma de seqüestro, a tortura, a política do desaparecimento de pessoas, o extermínio e os instrumentos da “guerra psicológica”. Semeou-se o temor e a desesperança. Na medida em que se impôs a autocensura, o Terror de Estado cumpriu sua função pedagógica, dobrando vontades e resistências, o que, combinado com a sensação de impunidade, gerou medo e imobilismo.

A análise das especificidades de cada ditadura deve partir das relações intrínsecas existentes entre a realidade dos anos 60 e os diversos projetos em confronto. Nesse sentido, deve-se avaliar a introjeção das diretrizes estadunidenses sobre a Guerra Fria e a implementação de medidas que, dentro dos marcos gerais da DSN, legitimaram a organização de uma superestrutura estatal, a qual cumpriu as exigências

48 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado

necessárias para satisfazer dois objetivos fundamentais atribuídos pelos EUA. O primeiro, a liquidação dos projetos de mudança social existentes antes dos golpes de Estado. O segundo, a criação de condições necessárias para disciplinar a força de trabalho, em particular, e a sociedade, em geral, como fator de atração de capital internacional - que devia ser protegido sob qualquer hipótese.

Em nome da defesa da civilização ocidental e do sistema democrático, a DSN procurou desviar as atenções sobre o crescente mal-estar de uma população cada vez mais atingida pelo crescente desequilíbrio da distribuição de renda. Diante dos primeiros sinais de resistência contra esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capital internacional e dos seus aliados locais, o uso do Terror de Estado. Tudo justificado com o discurso da defesa da ordem, da estabilidade político-social, da nação ameaçada pelo “comunismo”, das liberdades e da civilização ocidental.

A essência da analise sobre o TDE não está na comprovação da discriminação da tortura ou da censura, por exemplo, e sim na compreensão da abrangência, da multiplicidade e da complementação das iniciativas repressivas que, sob hipótese alguma, podem ser reduzidas à violência física, e que compõem esse quadro opressivo, “cinzento”, resultado da dinâmica de aplicação do Terror de Estado. Terror de Estado que, mesmo respeitando as especificidades, se mostrou abrangente, prolongado, indiscriminado, retroativo, preventivo e extraterritorial.

ConclusãoA guisa de conclusão pode-se afirmar que o

TDE foi uma variante da violência de classe, que nele a imposição da força coercitiva, punitiva ou de “ação pedagógica” do poder do Estado se orientou, fundamentalmente e sistematicamente, a provocar o medo dissuasivo, o que de fato ocorreu, através de meios variados e eficientes como a coerção física, psicológica, econômica. Isto conferiu ao contexto que envolveu tal situação uma dinâmica que intensificou o desequilíbrio de forças internas da sociedade e aumentou o caráter onipotente do pólo de difusão do terror, enquanto se tornou mais palpável a incapacidade de resposta dos setores alvos. A multiplicação dos casos de vítimas de torturas, seqüestros, execuções, saques, desaparecimentos, ameaças de morte, expurgos, cassações, etc. - tudo ocorrendo sem direito à proteção alguma da lei - é um dado que confirma a configuração de “catástrofe humanitária”. 15

As justificativas para a manutenção de uma situação de alerta permanente do Estado contra o “inimigo interno” esconderam que, na prática, manteve-se um clima de ameaça contínua sobre toda a sociedade, apesar do discurso que afirmava que era justamente pela sua proteção (da sociedade) que zelava rigorosamente o TDE. A amplitude multidimensional da sua aplicação perturbou as regras da convivência social e atingiu as pessoas até nas suas relações e situações mais cotidianas, a ponto da banalização e da rotinização das formas de controle tornaram-se, para muitos, “normais” e corriqueiras nos espaços escolares, nos espaços públicos e nas atividades profissionais.

A paralisia da oposição pelo medo e pelo silêncio ajudou a gerar a “cultura do medo”, onde as pessoas introjetaram uma sensação de culpa pelo imobilismo político, pela evasão e pela diminuição ou ausência de solidariedade. Assim, introspecção, prudência, cautela, dissimulação e silêncio viraram recursos, individuais e cotidianos vitais para a sobrevivência nesses “tempos cinzentos”; receosas e acuadas, as pessoas tentaram entrincheirar-se em “casamatas de privacidade” ou deslocaram suas frustrações e ansiedades para a emigração, a religiosidade, o futebol, os jogos de azar e outras manifestações diversionistas que funcionaram como desaguadouro, válvulas de escape das tensões acumuladas. Confluindo com os objetivos de despolitização e desmobilização, é pertinente ressaltar que as ditaduras de SN procuraram esconder, com seus discursos patrióticos, moralistas e tecnocráticos, a conformação de políticas de TDE e que estas, se constituíram em estratégias contextualizadas de luta de classes.

16

15 MIR, Luís. Guerra Civil: Estado e Trauma. São Paulo: Geração Editorial,

2004. p. 377. 16 ABOS, Álvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo. Barcelona, 1986.

História & Luta de Classes - 49

Processos político-ideológicos

na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

José Pedro Cabrera Cabral1

1. Introdução

presente trabalho tem por objetivo a análise dos processos político-ideológicos acontecidos na esquerda eleitoral uruguaia, representada na coalizão Frente Ampla, desde sua fundação, em 1971, até as últimas eleições nacionais, em 2004, nas quais ascendeu ao governo nacional. Como se identifica essa esquerda “progressista” na atual conjuntura? A globalização e as profundas modificações das últimas décadas situaram as esquerdas latino-americanas diante de novos desafios, mas também – por diversos fatores – estas esquerdas mudaram na sua estrutura ideológica e programática.

A Frente Ampla passou por dois processos profundos na sua essência político-ideológica: em primeiro lugar, uma etapa ou período de transição (1984-1994), que foi do pós-ditadura até a consolidação da recuperação democrática. Em segundo lugar, outro processo, que teve seu marco inicial em 1994 e foi até 2004, o chamado período “progressista”, que levou a esquerda a assumir o governo nacional. Em ambos os processos – diferenciados entre si –, surgiram mudanças estruturais dentro e fora da coalizão, que a transformaram em uma nova opção eleitoral para os uruguaios e que levou ao fim do bipartidarismo secular.

As grandes perguntas que norteiam nosso trabalho têm como foco duas interrogantes principais: a primeira, quais foram as mudanças estruturais que a Frente Ampla protagonizou durante esses dois períodos, ou seja, desde a esquerda tradicional dos anos de 1960, passando pelo período de transição, até chegar à etapa progressista? A segunda interrogante é como essas mudanças se efetivam nas novas estratégias programáticas da coalizão e como elas se traduzem em um novo momento político para o país? Em definitivo, para onde caminha essa nova esquerda?

2. Contexto e antecedentes do frenteamplismo (1971-1984)

O programa fundacional da Frente Ampla – FA, de 1971, foi marcado pelo contexto econômico e social aberto na segunda metade da década de 1950, com uma longa crise de esgotamento do modelo de desenvolvimento baseado na industrialização pela substituição de importações, assim como do modelo de bem-estar social que ele sustentava. Ao longo da década de 1960, o fracasso aprofundou-se depois de sucessivas tentativas de inovação na política econômica – como a reforma monetária e cambial de 1959, e o congelamento de preços e salários de 1968 –, que se dividiam entre o reformismo liberal e a ratificação dos setores conservadores.

O contexto político e institucional do período de formação da Frente Ampla não escapou à crise que se configurou na esfera econômica e social. Nos extremos dessa deterioração política e institucional na década de 1960, instalava-se a violência política no país: de um lado, um setor militar ligado à direita nacionalista, convencido da necessidade de suprimir as instituições democráticas para prevenir o avanço da “ameaça comunista”; e por outro, grupos de militantes de diversas organizações de esquerda adotaram a luta armada para a tomada do poder através da guerrilha. Também o governo, desde 1968 – de forma explícita –, adotou a violência para reprimir as manifestações sociais e políticas oriundas do profundo mal-estar vigente na época.

Dentro da Frente Ampla de inícios dos anos 1970, as concepções de mudanças sociais e políticas se dividiam entre visões reformistas e revolucionárias. Esse aspecto revelava uma dissociação entre ideologia e programa; mesmo que no programa

O

1 Professor da Unoesc Xanxerê (SC). Doutor em História pela Unisinos (RS).

Contato: [email protected]

História & Luta de Classes - 51

se mantivessem legados da esquerda tradicional, também se incorporaram pontos reformistas que propunham mudanças pelo caminho do desenvolvimento capitalista. Os setores reformistas foram influenciados pelas teorias desenvolvimentistas e dependentistas. Os setores revolucionários, por sua vez, imprimiam, na ideologia frentista, a visão socialista como única alternativa de mudanças efetivas para a sociedade uruguaia.

As reformas estruturais propostas pela Frente Ampla para a modificação da inserção internacional do país passavam – na sua essência – por: a) planejamento nacional independente da economia, com objetivos sociais, criando, para tal, um organismo para dirigir o planejamento, do qual participassem os sindicatos, os produtores, os técnicos e os representantes do poder político; b) a expansão do patrimônio comercial e industrial do Estado, através de uma política de nacionalizações; c) uma reforma agrária radical, que redistribuiria a terra, eliminando o latifúndio; d) a nacionalização do sistema bancário e dos grandes monopólios que controlavam o comércio exterior; e e) uma reforma radical do sistema tributário, atingindo, através de impostos diretos, as grandes fortunas e o capital improdutivo.

O intenso debate ideológico e programático desenvolvido dentro da esquerda nas décadas de 1960 e 1970 chegou ao seu fim com a queda da “democracia”, em 1973, e a implantação do regime ditatorial civil-militar. A esquerda foi ilegalizada e a repressão massiva sobre todos os setores populares objetivou fazer desaparecer, do âmbito da política nacional, qualquer vestígio dos antecedentes político-ideológicos dos movimentos populares. Como afirmam Garcé e Yaffé, o encerramento do debate público impede de realizar, entre 1973 e 1984, qualquer tipo de observação a respeito do que aqui interessa (ideologia e programa), que possa ser atribuível à Frente Ampla de forma geral. De fato, a FA e suas partes integrantes lograram sobreviver, pese as inúmeras dificuldades, mas se achavam desarticuladas, até que se reencontraram em 1985.

3. O debate na fase de reorganização da Frente Ampla, a partir de 1985

A análise do debate interno da Frente Ampla necessita de duas leituras. Uma corresponde a suas expressões públicas. Outra, à luta ideológica e política que esse debate público oculta, suprime importância ou simplesmente omite. Igualmente importante é interrogar sobre o porquê de tal ocultamento. Uma das hipóteses possíveis é que a esquerda viveu, desde 1985, o desafio de se converter em uma esquerda

.

2

integrada e funcional ao sistema ou, pelo contrário, realizar-se como a forma política com capacidade de transformar a sociedade capitalista.

Uma segunda hipótese é que tal como se propiciou o debate, encarado como divergências táticas, quando na realidade se tratava de uma verdadeira mudança estratégica, não foi possível atingir uma clara formulação de alternativa política transformadora. E a maior responsabilidade de que isso fosse assim coube às organizações que exerceram a hegemonia na FA. Essa hipótese tem sua origem na ausência de uma síntese compreensiva do processo de reestruturação capitalista e de seus correlatos nas exigências de dominação e em toda a luta de classes. Essa elaboração deficitária permitiria manter a iniciativa das correntes de centro-esquerda que procuram mudanças funcionais do sistema. Dessa forma, a condução hegemônica vai lentamente abandonando os postulados transformadores em nome do “realismo político”.

A isso se agregam outros fatores. Em primeiro lugar, a iniciativa dos setores denominados de correntes de centro-esquerda, que teve seu ponto de partida na busca de alianças policlassistas com os partidos políticos burgueses. Isso se verificou nas tentativas de concertación econômica e social durante os anos de 1985 e 1986. Em segundo lugar, as limitações e deficiências encontradas pela esquerda durante a ditadura. Em terceiro lugar, as ações ideológicas dos centros mundiais do capitalismo, em especial os europeus, que procuraram reduzir as opções políticas a duas alternativas possíveis: autoritarismo militar ou democracia representativa, cooptando, para esta última alternativa, lideranças dos partidos e intelectuais dos mesmos.

Antes de se introduzir na análise do debate, torna-se necessário precisar aqueles aspectos nos quais a FA manteve uma atitude opositora coerente com sua plataforma de princípios: a) sua discrepância em geral com a política econômica governamental; b) a defesa genérica das demandas das classes populares; e c) a defesa dos direitos humanos. Isso implica a tentativa da abertura de processos contra militares acusados de violentá-los durante a ditadura e questiona um dos pré-requisitos que a direção política dos partidos tradicionais considerava indispensável para o exercício da dominação.

Além desses fatos, a linha política observou carências significativas em todos os níveis de sua ação. Isso modificou seu perfil opositor, causando uma geral insatisfação em grande parte de sua militância. Em 1985 e 1986, a direção da FA empenhou-se em realizar alianças com forças da

2 GARCÉ, Adolfo; YAFFÉ, Jaime. La Era Progresista. Montevideo: Fin de

Siglo, 2004, p.37-38.

52 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

burguesia, através de suas representações políticas, tendo a concertación como elemento de viabilidade. Participou em negociações que foram dirigidas pelo Partido Colorado, as quais tiveram algumas particularidades: a) excluíam toda discussão sobre a política econômica; b) aconteceram de forma simultânea a um discurso e a uma prática governamental anti-sindical.

O período foi caracterizado por uma política ambígua, visto que, ao mesmo tempo, realizavam-se preparativos para uma democratização dos organismos de direção da FA, incorporando representantes dos delegados dos comitês de base e das coordenadoras do Plenário Nacional, o que finalmente se concretizou em forma “mediatizada”, enquanto as negociações terminaram em fracassos, devido à irredutibilidade do Governo em modificar a política econômica. Nessas atitudes começavam a se evidenciar as primeiras manifestações do que logo seria um ponto-chave do debate político-ideológico: na linha de negociação primava a preocupação por aparecer como um partido “construtivo”, em vez de manter uma ação política “testemunhal e contestatória”.

Com esse qualificativo pejorativo, buscava-se diluir a atitude de oposição frontal, buscando converter a FA em uma esquerda coadjuvante para a tarefa de resolver as contradições da sociedade capitalista em crise. Por sua parte, a direita ganhou tempo para seus objetivos e para manter as condições de “governabilidade”, entendida como uma nova modalidade de exercer a dominação de classe. Isso não deve ser confundido com a análise ingênua de que o objetivo do governo era obter as maiorias parlamentares das quais carecia.

O ciclo de negociações em procura de um acordo social policlassista se fechou em dezembro de 1986, com a votação da lei de caducidade aprovada pelo Partido Colorado, com o apoio dos parlamentares do Partido Nacional, à exceção dos legisladores do Movimiento Nacional de Rocha. Em outro plano, a ausência de uma visão sobre o processo político real e sobre as diversas modalidades da dominação de classe e da dependência exterior teve duas expressões significativas: por um lado, o apoio à política exterior do governo uruguaio, sem incluir nenhuma atitude crítica. Isso implica uma gravidade que não foi avaliada na sua profundidade, tendo em conta que significou avalizar a política exterior em relação à dívida externa, com respeito à qual o governo aplicou pontualmente as diretrizes do FMI, ou a atitude condescendente com a política imperialista em relação a recuperar o domínio total do

Canal de Panamá, ou o intervencionismo na Nicarágua, El Salvador, etc. Em suas projeções, essas atitudes implicaram renunciar a construir uma nova concepção independente nas relações internacionais.

Por outro lado, a ausência de uma discriminação nas relações com o empresariado industrial e rural, que são as classes que exercem o poder econômico e, como tal, beneficiárias diretas da exploração que exercem sobre a população trabalhadora. Acreditava-se, na ilusão de que se estava “ganhando espaços”, sem se perguntar se eram espaços conquistados ou cedidos. Isso foi especialmente notório no setor agropecuário, com o relacionamento indiscriminado para os “produtores”, enquanto se excluiu qualquer ação privilegiada para os assalariados rurais.

Entretanto, desapareciam da análise questões tais como a das forças sociais que representavam a aliança de esquerda; ou as implicações político-ideológicas que derivavam da reestruturação capitalista e a magnitude selvagem que adquiria a luta de classes; ou a necessária articulação entre a frente política e o movimento sindical, o estudantil e o movimento social cooperativo, de bairros, etc. A temática foi abordada pelo presidente da FA em um ato realizado em abril de 1988, mas sem grandes conseqüências. O problema possuía especial importância na medida em que se pretendesse representar e conduzir o conjunto das classes populares.

O centro da luta ideológica verificou-se ao redor da busca – por parte da corrente integracionista – por impor concepções políticas que podem ser qualificadas como social-democratas; quer dizer, um movimento que preconizou reformas sociais por vias exclusivamente parlamentares, dentro do sistema político das classes dominantes e sem transcender o modo de produção capitalista.

4. A transição da esquerda uruguaia na década de 1980 e no início dos anos 1990

A transição da ditadura ao pós-ditadura marcou fortemente a esquerda na sua concepção de democracia. A experiência vivida entre 1973 e 1984 acabou dando suma importância a democracia “formal”. Se, em 1971, a defesa da democracia formal era uma concepção pragmática no contexto imposto pelo avanço do autoritarismo, em 1984 pode-se dizer que o conceito de democracia começa a se impor como componente ideológico da esquerda. Sem dúvida, esse sentimento “democrático” era produto de um contexto regional e internacional – o auge do governo de Raúl Alfonsin na Argentina e a reabertura

3

actual de América Latina. Montevideo: Tae, 1989, p.66-69.

3 ESTELLANO, Washinton; LATORRE, Raúl; ELIZALDE, Esteban. ¿Qué

Frente Amplio Necesitamos: un análisis crítico a la luz de la situación

História & Luta de Classes - 53

democrática brasileira –, conjuntamente com o avanço do neoliberalismo, particularmente a experiência chilena. A terceira onda democrática, desencadeada primeiro na década de 1970, no sul da Europa Ocidental e que atingiu a América Latina na década de 1980, colaborou com a revalorização da democracia.

A partir de 1985, os setores de centro-esquerda apresentaram uma nova alternativa apoiada no conceito da democracia e de sua valorizaçمo. Na saída do período autoritário foi unânime o discurso favorável à democracia, a qual se valorava positivamente. Mesmo assim, tal unanimidade deve ser analisada, visto que é possível designar, neste conceito, diferentes interpretações. Na análise da centro-esquerda, nas décadas de 1960 e 1970, a palavra democracia era empregada dentro da esquerda em conjunção ou adjetivada por termos desqualificantes e necessários de serem superados: democracia burguesa, democracia formal, entre outras. Hoje ela se emprega fundamentalmente associada a termos pertencentes ao desejável para as esquerdas: democracia participativa, autogestionária, avançada, social. Isso não necessariamente implica que a esquerda tenha realizado uma crítica de sua visão sobre a democracia.

Uma avaliação sistemática do discurso político interno e da ação material da esquerda poderia mostrar qual é o novo conceito existente hoje. O ponto-chave da “alternativa” formulada nos setores da esquerda política uruguaia se encontra na opção entre uma concepção que entende e aceita a democracia como um valor substancial (passível de ser aprofundado, melhorado e complementado), que forma parte do projeto desejável para o futuro, e outra que concebe a democracia como um valor instrumental de caráter estratégico, ou inclusive tático, que deve ser defendida em uma determinada conjuntura, mas que não forma parte do projeto a ser instituído na sociedade, visto que sua própria essência vincula-se a formações sociais que devem ser substituídas.

Dessa forma, pretendeu-se demonstrar que a estabilidade democrática que o país desejava dependeria – no que atinge a esquerda – da concepção predominante: assim, a dita estabilidade poderia ser percebida como um “obstáculo” para o processo de transformação ou, sem ser percebida como um “obstáculo”, poderia ser levada em consideração como um elemento de menor importância. A lógica da ação política, entretanto, quer observe a democracia como valor substancial

4

ou como valor instrumental, implicou em mudança na formulação ideológica da “nova esquerda” que, sem lugar para dúvidas, possui as características e pressupostos da social-democracia.

Depois de 1985, o sistema partidário uruguaio revelou um novo fenômeno substancial: o final do bipartidismo secular que caracterizou o modelo democrático no país. O surgimento da Frente Ampla implicou a consolidação de um terceiro espaço, que nasceu em 1971. O bipartidismo continuou determinando a lógica política nos âmbitos governamental e parlamentar, na medida em que ambos os partidos, somados, eram maioria. Após 1985, iniciou-se um lento e gradativo processo de crescimento da esquerda eleitoral que apresentou, como característica marcante, o fato de ser uma “verdadeira” oposição ao sistema de “compromisso” (entre blancos e colorados). Esse fenômeno deu início a um novo sistema partidário ideologicamente diferenciado. O mesmo se expressa, hoje, na existência de dois blocos: o bloco “tradicionalista”, do centro à direita, e o bloco “progressista”, do centro à esquerda.

Na composição do bloco tradicionalista não existiu nenhuma fração ou movimento de “esquerda”, como também não existiu nenhuma fração de “direita” no chamado bloco progressista. A polarização ideológica se evidenciava de forma clara. Mas isso não foi sempre dessa forma, como salienta Moreira : até os anos noventa , os partidos tradicionais tinham suas frações de centro-esquerda, especialmente o Partido Nacional. Antes da formação da Frente Ampla, mesmo existindo partidos ideológicos de esquerda, os partidos tradicionais possuíam uma dinâmica interna que os fracionava no eixo “conservador-progressista”.

A dinâmica da competição ideológica superou os limites das lutas de frações, tornou-se interpartidária, transcendeu as próprias fronteiras dos partidos, formando “coalizões ideológicas” que nuclearam vários partidos: o bloco tradicional (blancos e colorados juntos) e o bloco progressista (que junta partes do Partido Nacional, do “Nuevo Espacio” e de setores que contribuيram para o crescimento, “para dentro”, da FA). Esse processo se refletiu nas eleições que aconteceram no período pós-ditadura; no total, foram cinco eleições: 1985, 1989, 1994, 1999 e 2004. Na primeira eleição, em 1985, o Partido Colorado ganhou com um percentual de 41%, a FA cresceu 3% e o Partido Nacional perdeu 5%. Na segunda eleição, em 1989, o Partido Nacional recuperou quatro pontos, o Partido Colorado perdeu dois e a FA continuou com uma

5

4..MIERES, Pablo. Democratización en Uruguay: disyuntivas para la izquierda.

In: Cuadernos del CLAEH. Montevideo: Año 11, nº 39, 1986, p. 57.

5 MOREIRA, Constanza. Final de Juego: del bipartidismo tradicional al triunfo de la izquierda en Uruguay. Montevideo: Trilce. 2004. p. 21.

54 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

votação similar. A partir das eleições de 1994, as bases do bipartidismo uruguaio se modificaram e, na eleição desse ano, a votação dos três partidos foi quase idêntica.

O “Encuentro Progresista” – EP fundou-se em agosto de 1994 e formou uma slَida aliança com a FA que, a partir desta, passa a denominar-se “Encuentro Progresista - Frente Amplio” – EP-FA. Essa aliança feita pelo Partido Democrata Cristão e por membros da fração de “blancos progresistas”, liderada por Rodolfo Nin Novoa, não integrou a FA, e sim formou uma nova estrutura aliada a já existente coalizão de esquerda. Após as eleições de 1999, a corrente “Nuevo Espacio”, liderada por Rafael Michelini, decidiu dar apoio a Tabaré Vázquez no segundo turno da eleição; repetindo a experiência do EP, Michelini nucleou brancos e colorados dissidentes e formou uma nova estrutura que se aliou à FA com o nome de “Nueva Mayoria” – NM. Sob essa nova frَmula (EP - FA - NM), a esquerda ganhou as eleições de 2004 no primeiro turno, com 50,45% dos votos válidos.

A formação do EP, em 1994, marcou, dentro da esquerda nucleada na FA, um processo de “transição ideológica”. Essa transição foi produto de um intenso debate que teve suas origens desde 1985 e que circulou entre duas correntes: os partidários de uma renovação ideológica, estratégica e programática da esquerda, e os defensores do frenteamplismo tradicional. Entre os primeiros destacaram-se Hugo Batalla, Yamand ْFau, Éden Melo, Juan Pablo Terra e José Manuel Quijano. Entre os segundos, Danilo Astori, Eduardo De Leon, Manuel Laguarda e Esteban Valenti, entre outros. Como resultado desses debates, provocou-se uma divisão entre a “nova esquerda” e a “velha esquerda”, que culminou com a ruptura de 1989 e a criação do “Nuevo Espacio”.

Entre 1989 e 1994 aconteceu a segunda etapa da transição ideológica. Grande parte da esquerda abandonou o discurso ideológico e programático do frentismo fundacional. A criação do “Encuentro Progresista”, em 1994, foi o momento culminante dessa nova transição. O contexto que influenciou esse processo de mudanças foi marcado: a) no plano internacional, pelos anos da Perestroika e da posterior derrubada do sistema socialista, da crise do estado de bem-estar e do paradigma Keynesiano; b) no plano regional, foram os tempos da redemocratização (argentina e brasileira, fundamentalmente), do ajuste estrutural e da formação do Mercosul; c) no plano nacional, dois acontecimentos influíram fortemente: a transição

econômica, com um acelerado giro em direção ao liberalismo, especialmente no governo de Alberto Lacalle, e a assunção do governo municipal de Montevidéu, a partir de 1989, pela FA.

Segundo as observações de Garcé e Yaffé, com a derrubada do “socialismo real”, a partir de 1989, a evolução ideológica e programática da esquerda se acelerou. Dois anos depois de o Partido Comunista Uruguaio haver obtido a melhor votação de sua história, desmoronou-se abruptamente. Toda a esquerda foi afetada pelo desmoronamento do “socialismo real”, que viu corroerem-se de um dia para o outro, as principais bases que estruturavam sua ideologia: a teoria marxista, fortemente questionada a partir desses debates; o abandono do socialismo como uma meta que se considerava factível; a crise do marxismo e do socialismo, que provocou um impacto na valorização das garantias institucionais da democracia; e, por último, uma clara tendência à valorização do mercado que, até o momento, nunca despertara interesse dentro da esquerda.

Por outro lado, a experiência concreta do governo municipal colocou a esquerda, pela primeira vez (1989), na situação de administrador público e diante da necessidade de pensar em administrar, com escassos recursos, o mais importante município do país. O governo municipal exercido por Tabaré Vázquez contribuiu para acelerar o processo de renovação ideológico-programática da esquerda. Ela incorporou em seu discurso elementos até o momento distantes, como “competência” e “eficiência”. O ingresso da FA no cenário político como governo (municipal) revitalizou polêmicas sobre as mudanças ideológicas e programáticas que levaram à construção da “nova esquerda” e de sua virada político-ideológica.

5. A nova esquerda uruguaia: a esquerda progressista 1994-2004

A concepção da nova esquerda, vigente no início do século XXI, tem como base a revalorização da democracia como um fim em si mesma, como um estilo de vida, com base no “respeito e na tolerância do outro, de outros valores, de outras culturas, de outras religiões. Tornou relevante o convívio pacífico com o outro, que pode ser adversário, mas já não é inimigo a exterminar”. Assim, a democracia passou a ser uma promessa civilizatória e tomou um valor ético de equidade e igualdade. Nessa concepção, os conflitos sociais hoje não se resolvem mais pelo enfrentamento, e sim através do

6

6..COURIEL, Alberto. La Izquierda y el Uruguay del Futuro. Montevideo: Banda Oriental, 2004, p 9.

História & Luta de Classes - 55

diálogo, acordos, concertação, negociação, “todos instrumentos inerentes à democracia”. Os programas da nova esquerda já não possuem como epicentro o combate à oligarquia e ao imperialismo, senão que chamam os “antigos inimigos” à mesa das negociações, ou seja, como “novos parceiros”.

A esquerda se perfila como um movimento político que pode salvar a democracia, na medida em que consiga atingir seus objetivos de crescimento com justiça social, de desenvolvimento, de atenção aos direitos sociais dos cidadãos. Esse movimento deverá ser capaz de enfrentar o descrédito na política, nos políticos e nos partidos políticos. Portanto, segundo a nova esquerda, para enfrentar os problemas internos da sociedade tornam-se necessárias transformações do modelo econômico e mudanças sociais, políticas e institucionais que permitam a consolidação da democracia, para se poder “evoluir” da democracia política à democracia econômica e social.

A democracia política está instalada na maioria dos países da região e, segundo Couriel (2004), deve considerar-se como um fim em si mesma, como o melhor regime de convívio social. Os princípios básicos dessa democracia política são o sufrágio universal, o pluripartidarismo, a existência de um estado de direito, as liberdades básicas, a garantia dos direitos humanos, o governo das maiorias e o acatamento das minorias. Na opinião de Couriel, torna-se fundamental manter esses princípios básicos, mas só será possível de se consolidar a democracia avançando para uma democracia econômica e social que tenda a resolver as grandes desigualdades, a exclusão social, a marginalidade, a violência, avançando para o desenvolvimento dos países da região.

Na proposta da nova esquerda, avançar em direção à igualdade de oportunidades econômicas, sociais e políticas para se atingir o pleno desenvolvimento humano exigiria, necessariamente, mudanças estruturais nos planos econômico, social e político. As mudanças aconteceriam com a condição de que se transforme o Estado: reclama-se a presença de um Estado “reformado e modernizado”. As mudanças sociais passam pela necessidade de novos atores, dinâmicos e atentos à necessidade de se avançar para outros modelos alternativos aos hoje existentes. “Passar para alianças sociais básicas e novas formas de

7

participação cidadã. No plano político, torna-se imprescindível melhorar a representatividade dos partidos políticos e a articulação destes com a sociedade civil”. Nesse discurso, atribui-se ao Estado a capacidade de condução para governar a globalização e desenvolver uma política de inclusão, a partir de uma grande aliança de atores sociais com força para liderar o processo de transformações.

Um fato que chama a atenção, ao se observar as análises sobre a América Latina dos anos de 1980, é que se intensificavam cada vez mais as preocupações pelo problema da democracia e as expectativas por fortalecê-la, precisamente em um momento em que o ceticismo e as reservas frente a essa possibilidade eram os elementos mais característicos dos problemas internos dos países capitalistas desenvolvidos. Com efeito o tema dos limites da democracia e o esgotamento do Estado Nacional foram, na década de 1970, uma temática presente nos trabalhos da teoria política dos países capitalistas desenvolvidos (BRZEZINSKI 1970; SCHIESINGER 1974; HUNTINGTON 1975, entre outros). Se os processos de democratização dos países capitalistas dependentes estavam muito condicionados pelas perspectivas de desenvolvimento da democracia nos países capitalistas centrais, uma verificação importante refere-se ao estabelecimento dos “limites” do processo democrático nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.

Segundo a nova esquerda, uma transição da democracia política para a democracia econômica e social requer mudanças no poder político e “atores e alianças” sociais possuidores desses processos de mudanças. As mudanças no poder político passam pela revitalização dos partidos políticos e, fundamentalmente, por acordos políticos que influenciam em um processo de “revitalização” nas “negociações” internacionais, na modificação no sistema educativo, na democratização dos meios de comunicação, na transformação do Estado e do modelo econômico, e nas relações de poder. As mudanças nas relações de poder entendem-se como determinantes do conjunto de transformações para se atingir o desenvolvimento e consolidar os processos democráticos.

As propostas da nova esquerda foram o resultado de um acúmulo de discussões que tiveram como base um profundo processo de atualização

8

9

10

7

8

9

..COURIEL, Alberto. op. cit., p.27.COURIEL, Alberto. op. cit., p.28.As transformações que as sociedades latino-americanas têm sofrido como

conseqüência dos efeitos sociais da “crise da dívida”, a crescente internalização do comércio no marco de uma profunda revolução tecnológica e a substituição do modelo político estado-centro por um modelo crescente, centrado no mercado e coerente com o “Consenso de Washington”,

complicam significativamente o cenário no qual as democracias latino-americanas e seus sistemas de partidos devem funcionar e consolidar-se.

MAIRA, Luís. Forças Internacionais e Projetos de Mudança Política na América Latina. In: América Latina: novas estratégias de dominação. MAIRA, Luís: SOUZA, Hebert José de; et al. (Orgs.) São Paulo: Vozes, 1980, p. 12-13.

10

56 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

ideológica, na qual os atores centrais, dentro da Frente Ampla, provinham de diversos setores e tendências. Esse processo, que se acentuou com clareza a partir de inícios da década de 1990, acabou unificando, em torno de um programa eleitoral, a militância frentista e os votantes da esquerda. Assim, o processo contou com várias posições enfrentadas, que geraram um clima de insatisfação em importantes setores da militância frentista, levando ao confronto ideológico e programático que se definiu com uma virada geral da Frente Ampla para o centro.

Em claro confronto com as propostas da “nova” esquerda surgiu, no início da década de 1990, o Movimento de Participação Popular – MPP, como produto de uma aliança entre o Movimento de Libertação Nacional – MLN – Tupamaros e uma série de pequenas organizações localizadas na extrema esquerda da FA. Em 1994, o MPP fez oposição ao Encontro Progressista, por entender que sua proposta era uma forma de hegemonia no interior frenteamplista para a tomada de decisões e por não aceitar a estratégia implícita de moderação programática. Apesar disso, após a derrota do Encontro Progressista, em 1994, o MPP iniciou uma mudança radical que se tornou decisiva. A partir de 1995 somou-se à estratégia de Tabaré Vázquez e José Mujica – principal figura do MPP – começou a emergir como um dos referenciais mais importantes da FA.

A mudança tomada pelo MPP, fundamen-talmente na pessoa de Mujica, significou o protagonismo – nele identificado – da atualização ideológica e da modernização programática da FA. Essa situação provocou uma ruptura interna por parte dos setores que não fizeram acordo com essa guinada. Como conseqüência, o Partido pela Vitória do Povo – PVP afastou-se do MPP, conjuntamente com outros setores minoritários, e, juntos, fundaram a Corrente de Esquerda. De tal forma que, a partir de 1995, o MPP ficou configurado como um espaço ampliado do MLN – Tupamaros e de setores independentes. A ruptura provocou o afastamento do PVP, do Partido Socialista dos Trabalhadores e do Movimento Revolucionário Oriental.

O apoio público dos dirigentes do MLN – Tupamaros (representado em Mujica) e as estratégias do programa progressista contribuíram para a legitimação, perante a militância e os votantes da esquerda, da moderação programática que a FA trazia como bandeira, a partir de linhas de ampliação da política de alianças. As possíveis explicações do porquê de a FA ter conseguido modificar

profundamente seu programa e avançar em direção ao centro, sem perder seu eleitorado de esquerda, deve considerar esse fator. O MPP atuou também como fator limitador para o surgimento de uma oposição interna forte dentro do frenteamplismo, amparada, fundamentalmente, na mítica do passado de guerrilha do MLN – Tupamaros.

Além disso, outros dois fatores devem ser considerados: a institucionalização e a tradicionalização, visto que ambos têm contribuído muito com essa estratégia política. Ao longo dos anos, a FA foi se institucionalizando como partido, consolidando-se em organicidade e em estrutura, absorvendo as partes constituintes da coalizão. Conjuntamente com a institucionalização, que a fortaleceu como estrutura de partido, desenvolveu-se uma forte identidade partidária a partir de uma nova tradição política, potente e jovem, que transformou a FA no terceiro ator do sistema de partidos, quebrando definitivamente o bipartidismo tradicional e inaugurando o tripartidismo.

Desde o ponto de vista da trajetória ideológica, as grandes mudanças tiveram seu ponto central no IV Congresso da FA, chamado de “Tota Quinteros”, realizado em 22 e 23 de setembro de 2001. Esse Congresso foi marco culminante da atualização dentro da FA. No evento foram aprovados três documentos relevantes, com um considerável conteúdo ideológico e programático, intitulados: Pautas para el Desarrollo Ideológico y la Elaboración Programática; Grandes Liñas de Acción Política; e Nuestas Señas de Identidad. Entre eles, o primeiro e o terceiro foram particularmente importantes para o estudo da ideologia da esquerda progressista.

O documento “Nuestas Señas de Identidad” foi o primeiro a manifestar oficialmente, de forma explícita, a existência de uma ideologia propriamente frenteamplista, assumindo a necessidade de atualização permanente. Nele culminou o processo de institucionalização e consolidação partidário do que originalmente foi uma coalizão de partidos e frações. Durante um longo tempo, acredi tava-se , no âmbito frenteamplista, que a ideologia era reduto de seus grupos componentes e, portanto, que o acordo e a identidade frentista apoiavam-se no programa.

Em relação às referências ao marxismo, elas ficaram reduzidas a mínimas expressões de alguns grupos, predominando, no conjunto, uma definição socialista light, vinculada às críticas ao neoliberalismo e à globalização, como expressão à crítica do capitalismo. A versão do socialismo

11

11..FRENTE AMPLIO. Nuestras Señas de Identidad. Montevideo: Comité

Central, mimeo, 2003, p.5.

História & Luta de Classes - 57

existente na FA, a partir do IV Congresso, foi vinculada diretamente aos conceitos social-democratas europeus, mesmo que com uma pequena acentuação em direção à esquerda. Como afirmaram Garcé e Yaffé, a FA “propôs desenvolver um capitalismo levado a sério”, mantendo um horizonte utópico ou finalista, de tipo socialista.

Além dos discursos programáticos dos componentes da coalizão, o resultado foi que o processo de atualização ideológica e da reformulação programática da Frente Ampla levou a um novo dimensionamento dos princípios desta. As formulações social-democratas e, a partir destas, sua guinada ao centro, provocaram o abandono gradativo das bandeiras identitárias da esquerda tradicional. A nova esquerda deixou de lado as reivindicações que caracterizaram a Frente Ampla desde sua fundação: a reforma agrária, a nacionalização do sistema bancário e do comércio exterior, a dívida externa e um forte sentimento antiimperialista. As mudanças foram muitas, a sociedade também mudou, mas, apesar de todos os argumentos possíveis da social-democracia, os problemas que assolam o país são os mesmos: aqueles aos quais nem o capitalismo, nem o sistema democrático representativo conseguiram oferecer soluções.

12

12..GARCÉ, Adolfo; YAFFÉ, Jaime. op. cit., p.75.

58 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

Colombia: do surgimento

das guerrilhas ao Plano ColômbiaRenato Barbieri1

Guerrilhas e Resistências na Colômbia

A

“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia.”

(SHAKESPEARE, William. Hamlet)

República da Colômbia tem uma longa história de resistência popular organizada contra os governos das classes dominantes que exploram a população pobre do país. Voltando no tempo nos reportaremos ao Novo Reino de Granada (Colômbia), onde em 1781 nasceu o Movimento Comunero, que veio a se constituir em uma das resistências anticoloniais de maior importância do século XVIII. Os “Comuneros” reivindicavam e colocavam em xeque as autoridades espanholas que dominavam a região e comandaram as lutas daquele povo colombiano. Lutas essas que teriam seu apogeu na campanha de Simon Bolívar pelo fim do colonialismo espanhol e pela Independência política da Colômbia e das regiões vizinhas.

Avançando no tempo chegamos ao século XX, quando aparecem as primeiras guerrilhas colombianas motivadas pelo “El Bogotazo”, que foi uma insurreição popular ocorrida em abril de 1948, a qual foi traída pelos líderes do Partido Liberal durante o governo do presidente Mariano Ospina Pérez. A partir daquele momento os camponeses se levantaram empunhando as bandeiras de luta contra a ditadura estabelecida no país e, principalmente, pela reforma agrária. Quase todos os núcleos guerrilheiros eram influenciados pelo Partido Comunista Colombiano e pelas forças militares insurgentes originárias do Partido Liberal. O confronto dos movimentos guerrilheiros cresceu e passou, em pouco tempo, de uma reação à violência do governo para reivindicações de conteúdo social mais intenso.

No ano de 1953, assume a presidência o general Gustavo Rojas Pinilla e as guerrilhas do Partido Liberal depõem as armas, estabelecendo um acordo com o governo do Partido Conservador. Essa deposição gerou um ataque do Exército colombiano

contra as guerrilhas comunistas e os focos liberais que resistiam. O resultado da deposição das armas não podia ter sido outro: A traição do governo e das classes dominantes, resultando no assassinato das principais lideranças guerrilheiras.

Em 1964, ano em que surge o núcleo guerrilheiro que se transformará nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - FARC, tem início a “Operação Marquetalia”. Essa operação foi desencadeada pelo governo colombiano com apoio dos Estados Unidos da América – EUA, através do Plano OSAL (Operação de Segurança da América Latina), o qual visava derrotar as regiões de autodefesa camponesa organizadas da Colômbia. Durante o governo do presidente Guillermo León Valência Muñoz, a Operação Marquetalia deslocou um contingente de 16.000 soldados do exército colombiano, apoiados por helicópteros, aviões e instrutores norte-americanos, o que derrotou momentaneamente as guerrilhas, dentro da estratégia militar dos EUA para a América Latina conhecida como Doutrina de Segurança Nacional. Essa doutrina tinha seu ponto de irradiação na Escola das Américas, com sede no Panamá, e na Aliança para o Progresso instituída pelo governo do presidente dos Estados Unidos John Fitzgerald Kennedy.

A derrota das guerrilhas obrigou-as a uma reestruturação através de duas conferências guerrilheiras, em 1965 e 1966, a primeira no governo de Muñoz e a segunda no governo de Carlos Lleras Restrepo. Na primeira conferência foram definidos os planos de ação militar, política, de organização, educação e propaganda, fixando como objetivo prioritário a subsistência do movimento guerrilheiro

2

1

2

.Professor de História da Prefeitura de Porto Alegre – RS.SCHILING, Voltaire. Estados Unidos e América Latina: da Doutrina Monroe à Alca. 5ª ed. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002.

História & Luta de Classes - 59

unido que então passou a denominar-se “Bloque Sur”.Na segunda conferência, o “Bloque Sur” passa a

denominar-se Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - FARC, definindo a tática de expandir a ação da guerra de guerrilha móvel a outras áreas do país. Surgem nesse momento outras organizações guerrilheiras na Colômbia. As principais são o Exército de Libertação Nacional – ELN, da qual fazia parte o padre guerrilheiro Camilo Torres, assassinado em 1966, e o Exército Popular de Libertação - EPL. Nos anos 70 irá se constituir o Movimento Revolucionário 19 de Abril - M-19.

Com relação ao surgimento desses movimentos guerrilheiros na Colômbia, as FARC, de orientação marxista, aparecem em resposta à violência dos grandes proprietários rurais. Já o ELN (orientação marxista-leninista), o EPL (orientação maoísta) e o M-19, têm como centro político e ponto principal de suas atividades o movimento operário, sindical e popular.

Porém, essas organizações guerrilheiras se viram obrigadas a atuar no campo, entrando em guerra contra o exército colombiano. No entendimento da Liga Bolchevique Internacionalista – LBI (Brasil), do Partido Obrero Revolucionário – POR (Argentina), do Grupo Trostskista Ortodoxo (Brasil), do Comitê de Enlace de Militantes por una Internacional Comunista Revolucionária (CEMICOR): Poder Obrero (Bolívia-Peru), do Grupo Comunista Operário (Nova Zelândia) e do Grupo Solidaridad (Alemanha): “o conjunto dessas guerrilhas tem características de serem movimentos armados pequeno-burgueses, com base social no campo, que desejam criar um espaço político democrático para a oposição burguesa, fortalecendo a economia nacional, sem alterar as relações de classe, numa espécie de ‘reformismo armado’”.

O mesmo artigo afirma que “a estratégia das FARC-EP consiste em pressionar a burguesia a fazer algumas reformas no regime político e em suas instituições, constituindo-se em uma força auxiliar de um futuro governo democrático-burguês como revela a Declaração da Comissão Internacional das FARC-EP/maio de 1998: “Qualquer processo que se inicie deve ter como tarefa a concretização de uma assembléia constituinte que mude na Colômbia, as relações de poder em favor dos setores populares”. Diz ainda a Declaração que o processo de paz deve ‘...contribuir para a organização e luta dos colombianos por uma pátria generosa e democrática, para a constituição de um governo de reconciliação e

3

reconstrução nacional, pluralista, democrático e patriótico’”.

O peso decisivo das organizações guerrilheiras no movimento de massas explica uma das contradições mais difíceis de compreender na Colômbia: que ela seja um país com 70% da população localizada nos grandes centros urbanos, com um desenvolvimento fabril e capitalista similar ao dos países do cone sul do continente americano, mas cujo proletariado não realiza movimentos contestatórios e greves que sacudam o país.

Durante os anos 1970 e 1980, vários presidentes dos partidos Liberal e Conservador se revezaram no governo colombiano. Misael Eduardo Pastrana Borrero, Alfonso López Michelsen, Júlio César Turbay Ayala e Belisário Betancour Cuartas agudizaram a crise econômica do país e as revoltas camponesas tornaram-se mais intensas. As FARC e os demais grupos guerrilheiros estiveram à frente dessas mobilizações.

Na sétima conferência guerrilheira, em maio de 1982, no governo Betancour, a guerrilha conhecida como FARC decidiu converter-se em Exército do Povo, passando a se chamar Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo – FARC-EP, o que significou uma profunda transformação da ação militar da guerrilha, pois o movimento ampliou sua base dirigente aos setores até então excluídos do movimento.

Em 1984, as FARC-EP assinam com o presidente Belisário Betancur um acordo de cessar fogo, trégua e paz (Acordos de la Uribe), integrando-se à oposição civil e criando um novo movimento, a União Patriótica – UP.

Esse ato da guerrilha demonstrou-se catastrófico na prática, pois após a assinatura dos acordos de paz foram assassinados em torno de 5.000 dirigentes da União Patriótica pelas forças paramilitares e pelo Exército colombiano. Muitos dos parlamentares eleitos pela UP foram mortos, fazendo com que as FARC-EP rompessem a trégua e retornassem à guerrilha armada, da qual nunca deveriam ter saído.

Em 1987, durante o governo do presidente Virgilio Barco Vargas, organiza-se a Coordenação Guerrilheira Simon Bolívar – CGSB, agrupando a totalidade dos insurgentes colombianos.

No governo de César Augusto Gaviria Trujillo, em 1990, o M-19 e um setor do EPL depuseram as armas e se incorporaram à oposição parlamentar colombiana para concorrerem às eleições em todos os

4

3.ABAIXO a intervenção imperialista na Colômbia! Unir a luta do movimento operário com a ofensiva militar da guerrilha para pôr abaixo o governo Andrés Pastrana e o domínio imperialista e burguês!. Disponível em:

<http://www.us.geocities.com/pormasas/Portugues/colport.html?2000628>. Acesso em 30 de março de 2006.Idem.4

60 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia

níveis no país. O dirigente do M-19, Navarro Wolf, tornou-se ministro da saúde do governo Gaviria.

Nesse período as guerrilhas perderam consideravelmente parte de sua força política devido à crise no Leste Europeu e ao desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS e se viram obrigadas a buscar novas fontes de recursos para financiar a guerrilha nas suas necessidades de armamentos e subsistência dos combatentes. As FARC-EP criam o “imposto revolucionário”, taxa de 5% cobrada dos narcotraficantes nas regiões de refino e exportação de cocaína sobre o total da produção da droga. Com esse dinheiro a guerrilha adquiriu um arsenal bélico que a colocou em pé de igualdade com o Exército colombiano e com os movimentos paramilitares financiados por latifundiários, narcotraficantes e por setores “desconhecidos” que acredita-se incluam desde o governo colombiano e os grandes capitalistas, até recursos vindos dos EUA que poderiam estar sendo repassados pela Agência Central de Inteligência – CIA e pela Agência Anti-narcóticos - DEA.

A partir do final dos anos 1990, nos governos de Ernesto Samper Pizano e Andrés Pastrana Arango, acontece um crescimento exponencial das FARC-EP e do ELN. As primeiras se tornam um referencial de oposição ao governo Pastrana e passam a ser uma das guerrilhas mais atuantes no planeta. As FARC-EP têm domínio sobre 5 Estados (Departamentos) da Colômbia: Puntumayo, Caquetá, Guaviare, Meta e Vichada. Influenciam quase a totalidade das 1.000 cidades colombianas. Com um efetivo de cerca de 17.000 guerrilheiros e guerrilheiras, vêm expandindo seu território sob a liderança do Comandante em Chefe, Manuel Marulanda Vélez, também conhecido como “Tirofijo” (Tiro Certeiro). Além de Vélez, compõem o Pleno das FARC-EP os comandantes Timoleón Jiménez, Raúl Reyes, Ivan Márques, Alfonso Cano, Efraín Guzmán e Jorge Briceño.

Esse crescimento das FARC-EP mostrou-se produto do vazio político existente na Colômbia em função da integração da esquerda ao Estado burguês, tanto com relação às ex-organizações guerrilheiras como à oposição civil burguesa. Esse posicionamento reforçou a necessidade dos camponeses combaterem o governo com a luta armada.

O ELN, de orientação marxista-leninista, é comandado por Antonio García e conta com um efetivo aproximado de 6.500 combatentes. Sua área de atuação está ao nordeste da Colômbia em departamentos que fazem parte da Cordilheira dos Andes Oriental.

Para a LBI, POR e os organismos ligados a eles,

“o Partido Comunista, o MOIR - Movimento Operário Independente e Revolucionário - e as centrais sindicais (a CUT, CGTD e a CTC, além da Federação Nacional dos Educadores – FECODE), vêm tendo uma política de sistemática colaboração de classes, colocando-se sempre como forças auxiliares dos partidos burgueses tradicionais...a inexistência de um forte partido ligado ao movimento de massas nas cidades, a decomposição da ex-esquerda foquista, com seu completo fracasso ao tentar se credenciar como alternativa política no campo da oposição burguesa, deixou um espaço político que vem sendo ocupado rapidamente pelas FARC-EP, crescimento esse ligado também umbilicalmente ao avanço da crise social colombiana”.

No ano de 1998, Andrés Pastrana iniciou negociações de paz com as guerrilhas colombianas e com as autodefesas unidas da Colômbia. Em San Vicente Del Caguán, zona desmilitarizada aconteceram durante quatro anos uma série de negociações que na prática se mostraram infrutíferas. As guerrilhas exigiram como condição para o diálogo a retirada total do Exército colombiano de quatro municípios ocupados pelas FARC-EP (La Uribe, Mesetas, Vista Hermosa e La Macarena) e o fim das atividades dos grupos paramilitares, principalmente das Autodefesas Unidas da Colômbia – AUC, grupos que torturam, massacram, ameaçam, seqüestram e assassinam indiscriminadamente a população desarmada e que contam com um efetivo de aproximadamente 9.000 homens.

Na semana seguinte ao início das negociações de paz, as AUC mataram 148 pessoas na Colômbia. Após várias tentativas de acordo, o líder da AUC, Carlos Castaño, aceitou participar da mesa de negociação, propondo (apenas de fachada) a criação da Assembléia Nacional de Paz, organismo que contaria com a participação de entidades internacionais.

As guerrilhas defenderam a instalação de uma mesa de diálogo com o governo colombiano para juntos, governo e guerrilhas, buscarem a paz com justiça social, através de medidas políticas, econômicas, sociais e estruturais que acabem com as profundas desigualdades sociais expressadas pela crise que afeta a Colômbia.

Com base nesse programa, realizou-se em 07 de janeiro de 1999, a primeira negociação de paz entre as guerrilhas e o presidente colombiano Andrés Pastrana, em San Vicente del Caguán, no departamento de Meta.

O presidente Pastrana buscou a negociação com o objetivo de deter o crescimento das forças

5

5 Idem.

História & Luta de Classes - 61

populares. O enfrentamento com a guerrilha poderia gerar um crescente clima de revolta do movimento operário, popular e camponês, agravando-se devido à crise social. Os diálogos com as guerrilhas foram intensificados, por parte do governo, durante a greve dos professores em maio de 1999, visando a desmobilização do movimento, e receberam apoio, através de uma visita na selva colombiana, do presidente da Bolsa de Valores de Nova Iorque, Richard Grasso.

No dia 21 de setembro de 1999 (nove meses após a primeira negociação de paz), realizou-se, em Washington, uma entrevista com o presidente Bill Clinton e sem que o Congresso colombiano fosse consultado, o presidente Pastrana anunciou um plano de desenvolvimento “pela paz, pela prosperidade e pelo fortalecimento do Estado”. Esse plano foi chamado de Plano Colômbia e custaria U$ 7,5 bilhões, sendo que U$ 3,5 bilhões viriam de ajuda externa (U$ 1,6 bilhão dos EUA) e os restantes seriam a contrapartida da União Européia e do governo colombiano.

O plano era ambicioso, mas enquanto ele pregava a paz e os olhos do mundo estavam voltados para as negociações de San Vicente del Caguán, na prática o dinheiro recebido era empregado para fortalecer, equipar e treinar o exército colombiano, que sob a pressão de Washington, apenas declarava estar em guerra contra as drogas, negando veementemente a natureza social e política do conflito.

Em 2002, com a chegada ao poder do presidente Álvaro Uribe, que fez sua campanha de eleição com a promessa de usar todo o peso do aparato militar para derrotar os guerrilheiros esquerdistas que, segundo ele, levaram o país ao descalabro, foi confirmado no governo um “serviçal” aos Estados Unidos da América. Já no início de seu governo não reconheceu as guerrilhas do país. Isso implicou na não aceitação do conflito armado, o que quer dizer que as FARC-EP e o ELN, entre outros grupos guerrilheiros, foram tratados como grupos terroristas, melhor dizendo, como “narco-terroristas”, expressão criada em Washington.

No período de 2002 a 2005, Uribe negou-se a negociar com as lideranças das guerrilhas e o Plano Colômbia continuou a ser implementado. Porém, os resultados da ação militar não foram os esperados. As guerrilhas resistiram aos ataques do exército e dos paramilitares colombianos, fortalecendo-se, ao invés de enfraquecer, como queria o governo.

Para combater com mais intensidade as guerrilhas, foi criado o fracassado Plano Patriota, continuação do Plano Colômbia, que visava atacar o cerne das FARC-EP e do ELN nas áreas em que estas guerrilhas atuam.

No final de 2005, o presidente mudou de tática. Após perder apoio financeiro dos EUA, os quais enfrentaram dificuldades devido à devastação causada pelo furacão Katrina, em Nova Orleans, que causou estragos na ordem de centenas de milhões de dólares, Uribe propôs negociações aos grupos guerrilheiros e pediu a mediação da ONU no conflito.

Hoje, a Colômbia tem um exército treinado e equipado pelos EUA, graças aos recursos recebidos pelo Plano Colômbia. Embora saiba que não poderá derrotar a guerrilha, Uribe tem em mente obrigá-la a negociar em situação de inferioridade.

O Plano Colômbia e a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA, são os braços de uma “pinça” que, junto com a instalação de bases militares na América Latina, visam um objetivo maior.

Combater o narcotráfico, na verdade, é um pretexto para maquiar os verdadeiros propósitos dos EUA, entre eles uma futura intervenção para controlar essa região vital do planeta que é a Floresta Amazônica. Nesse aspecto, a guerrilha vem a se tornar o principal empecilho e resistência à militarização da América Latina e a uma intervenção que pode colocar em risco o domínio dos EUA na região Amazônica.

Bases militares instaladas na América Latina com a participação dos EUA

Países Bases

Colômbia Três Esquinas, Larandia e Porto Leguízamo

Equador Manta

Peru Iquitos e Nanay (Zona Amazônica)

Argentina Terra do Fogo

Bolívia Rio Itonamas

Aruba Rainha Beatriz

Curaçau Hato

Honduras Soto Cano (palmerora)

Costa Rica Libéria

El Salvador Comalapa

Cuba Guantánamo

Porto Rico Vieques

Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>

Financiamento dos Estados Unidos ao Plano Colômbia e seu destino

Distribuição dos recursos investidos pelos EUA no Plano Colômbia (em milhões de US$)

Apoio às tarefas de erradicação no sul da Colômbia – “Golpe ao Sul da Colômbia”

Apoio ao desenvolvimento econômico e alternativo (incluindo programas nacionais e no sul da Colômbia)

Apoio aos programas de interdição

Apoio a outros programas regionais e ao processo de paz

Apoio à Polícia Nacional da Colômbia

Total do apoio dos EUA ao Plano Colômbia

416,9

106,0

378,6

183,0

115,6

1.319,1

Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>

62 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia

Colômbia: A Porta de Entrada para a Inter-nacionalização da Amazônia

Na Geopolítica, por definição, considera-se um país ou Estado como sendo estratégico quando seu território satisfizer a uma destas duas condições: possuir riqueza ou possuir uma boa localização. Se ele satisfizer as duas melhor, será perfeito.

Com relação à região Amazônica, da qual faz parte a Colômbia, esta apresenta com nitidez essas duas características: riqueza e localização. Com a Nova Ordem Mundial que se estabeleceu nas últimas décadas do século XX, os EUA sustentam o fim das fronteiras nacionais dos países que integram a periferia do capitalismo mundial. Recai sobre os povos da América a culpa pelos desastres ambientais e de infração dos direitos humanos, como se os EUA não tivessem devastado suas florestas e exterminado seus índios (nativos). Contestam a capacidade gerencial dos países americanos com ações e um discurso de internacionalização da região amazônica.

Os laboratórios farmacêuticos dos EUA e da Europa têm mantido biólogos e pesquisadores em terras amazônicas, convivendo com as tribos indígenas e, repetidamente, patenteado plantas, raízes, frutos e substâncias animais que compõem a biodiversidade da Floresta para a fabricação de diversos remédios.

A Floresta Amazônica conta com 80% da matéria-prima bioenergética do planeta. Tem um parque protéico (peixes, castanhas, óleos) capaz de alimentar o planeta Terra com os seus mais de 6 bilhões de habitantes por 100 anos (um século). Seu manto vegetal é produtor de oxigênio, redutor de gás carbônico e regulador das chuvas e da temperatura do planeta. É uma região de salubridade cadastrada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, para eventual refúgio da raça humana em caso de catástrofe nuclear no planeta. Seu território constitui uma reserva para a expansão agrícola, demográfica e comercial. É um potencial mercado para a ALCA. A Floresta abriga inúmeras espécies vegetais e animais conhecidas e outras ainda desconhecidas. As várzeas ribeirinhas , mais férteis que as do Rio Nilo, permitem várias colheitas anuais, com nenhum custo e com o mínimo esforço humano. Segundo o engenheiro dos EUA, Hamilton Rice, que em 1924-25 chefiou uma expedição exploratória nas proximidades das Guianas, “só o Rio Branco é suficiente para salvar da ruína qualquer país do mundo” .

Como resultado da expedição de Rice, os Estados Unidos enviaram à região o geólogo da

6

subsidiária da Standard Oil do Peru, Mr. Pike, que ao regressar, assim escreveu: “Não compreendo como se dorme tantos anos sobre uma riqueza como o petróleo. Na Amazônia há mais petróleo do que água” . A Colômbia, o Equador e a Venezuela, países que fazem parte da Floresta Amazônica, possuem jazidas de petróleo. A Venezuela, inclusive, possui a maior jazida conhecida de petróleo do planeta.

Proporcionalmente ao planeta Terra, a Amazônia conta com o maior parque de minerais no subsolo. Grandes jazidas de ferro, manganês, ouro, prata, urânio, bauxita e diversos outros minerais estão adormecidos no subsolo ou são extraídos em grande quantidade na região.

A Bacia Amazônica, maior bacia hidrogrلfica do mundo, conta com 6,4 milhões de km² distribuídos por nove países sul-americanos: Colômbia, Brasil, Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia. A energia elétrica da região se constitui numa riqueza quase inexplorada.

A Floresta Amazônica conta, também, com as maiores reservas de água potável do planeta (cerca de 25%). Na água dos rios da Floresta é que reside uma das maiores riquezas do século XXI, a água potável. Sabemos que as reservas mundiais de água doce estão se esgotando e que nos próximos anos a maioria da população do planeta terá carência desse líquido precioso. Hoje, apenas 2,5% da água do planeta é doce. Os restantes 97,5% da água é salgada e está localizada nos mares e oceanos. A maioria da água potável está nos pólos Sul e Norte, em forma de gelo (1,75%). O resto está dividido entre lençóis freáticos (0,74%), pântanos (0,09%) e rios e lagos (0,01%). É pelo controle da água da Amazônia que a companhia de água de Manaus (AM) foi privatizada há alguns anos e parte de seu capital é dos EUA.

Porém, a maior riqueza cobiçada pelos Estados Unidos na região amazônica – leia-se Colômbia - é a cocaína. Produzida no país e escoada pela Floresta Amazônica, a droga tem se tornado o centro da discussão sobre a região. Dados do sociólogo estadunidense, James Petras, revelam que a produção anual de cocaína é de 1.000 toneladas. A rede de produção, refino e distribuição dessa droga movimenta as maiores máfias mundiais como a La Cosa Nostra, dos EUA; a Camorra e a Cosa Nostra italianas; a máfia chinesa; a Yakuza japonesa e a máfia russa, além de grupos empresariais, políticos e bancos do mundo todo. Para Petras, o lucro obtido com todo o processo da cocaína, desde a produção até a venda ao consumidor final, movimenta algo em torno de

7

6..BRASIL, Altino Berthier. Geopolítica da Amazônia Brasileira. In.

CARRION, Raul K. M. VIZENTINI, Paulo G. Fagundes (org.). Globalização, neoliberalismo, privatizações: quem decide este jogo? Porto

Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997. p. 211.BRASIL, op. Cit., p. 211.7

História & Luta de Classes - 63

US$ 500 bilhões. Esse dinheiro é lavado de várias formas, inclusive por bancos dos EUA: Citybank e o BankBoston .

Apenas o narcotráfico colombiano representa cerca de 30% do PIB do país. Esse filão de “ouro branco” é um dos principais motivos pelo qual os EUA buscam justificar uma intervenção na Colômbia.

O Comandante Raúl Reyes, do Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP, considera o narcotráfico como um grave problema da Colômbia e do mundo, porém não o principal. Na proposta de plataforma para um governo de reconstrução e reconciliação nacional da guerrilha, são apresentados elementos para o fim da produção, comercialização e consumo de narcóticos e alucinógenos. Esse fenômeno é entendido como um problema social que não pode ser tratado pela via militar, pois requer acordos com a participação das comunidades nacional e internacional e o compromisso das grandes potências mundiais, hoje as principais consumidoras de drogas.

As FARC-EP admitem que cobram uma taxa de 5% sobre a droga que sai da Colômbia, porém afirmam não ter qualquer outro vínculo com o narcotráfico. Por princípio e por ética são contrários ao narcotráfico por entender que ele é incompatível com a democracia e a cidadania, pois gera corrupção, impunidade e criminalidade. Denunciam as políticas antidrogas do governo que afetam os pequenos cultivadores de folha de coca, os quais são expulsos de suas terras e perdem seus poucos bens. A repressão é dirigida a essas maiorias camponesas que estão longe de serem narcotraficantes e somente subsistem com atividades relacionadas à droga porque são forçados pelas circunstâncias, pois de outra forma não teriam como ganhar um mínimo para o seu sustento. Os camponeses se organizam em defesa das suas vidas e não em defesa da coca.

Os verdadeiros narcotraficantes, milionários devido aos altos lucros com a venda do produto final do refino da coca, formaram redes de proteção que os permitem continuar seu negócio sem interferências do governo, pois são eles que financiam as campanhas eleitorais colombianas.

Na Colômbia, 70% das terras cultiváveis, estão nas mãos de narcotraficantes e dos seus testas-de-ferro. Essas terras foram adquiridas com o dinheiro do tráfico e através da falência de pequenos proprietários com a aplicação das políticas neoliberais, o que transformou o país no maior produtor de folha de coca do mundo.

8

O governo dos EUA obriga o governo colombiano a destruir as plantações de coca, dentro de programas de lutas antidrogas, pulverizando as pequenas lavouras com desfolhantes químicos que destroem o ecossistema. A cada dia a Floresta Amazônica é desmatada para o aumento das plantações de coca longe das zonas de pulverização.

A estratégia consiste em pulverizar herbicidas sobre as plantaçeُs de coca, equipar e treinar policiais, prender os principais traficantes e extraditá-los para cumprir penas intermináveis nas prisões americanas. O objetivo da operação é criar barreiras que elevem o preço do papelote nas ruas para, assim, reduzir o consumo.

Há evidências de fumigações com o Fusarium Oxyporu, fungo que além de destruir a folha de coca ameaça as culturas da banana, café, cacau, batata, baunilha, girasol, aspargos, cravos, palma africana, milho, feijão, borracha, noz, tabaco, além de bosques, entre outros. O fungo pode se manter vivo nos produtos mencionados, durante o consumo humano e há o risco dele se espalhar pela Floresta Amazônica.

Com base nos dados apresentados, podemos afirmar que o governo dos EUA e as empresas transnacionais americanas na Colômbia buscam, através do Plano Colômbia criar as condições propicias para estabelecer uma zona comercial viável para o futuro da economia dos EUA. A intervenção militar na região tornaria possível controlar toda a riqueza existente na Amazônia.

Existe na Colômbia uma oposição popular ao processo privatizador neoliberal que está sendo implementado pelo governo de Álvaro Uribe. O Plano Colômbia tenta ser um plano de paz que garanta a tranqüilidade para que o Estado colombiano se consolide e possa exercer o poder em todo o território colombiano, mas tem conseguido somente exercer o poder militar forte sobre a população e sobre as guerrilhas, que longe de estarem sendo derrotadas, saem cada vez mais fortalecidas deste processo.

8..PETRAS, James F. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e

Europa. Blumenau: Ed. FURB, 1999.

Planos militares e econômicos dos Estados Unidos para a América Latina

Plano Colômbia

Plano Dignidade

Com o álibi de lutar contra o narcotráfico, busca combater os grupos guerrilheiros (FARC/ELN). O financiamento é provido, em sua maioria pelos EUA e União Européia.

Este avanço colonialista foi disfarçado de luta contra o narcotráfico e se propõe à erradicação das plantações de coca na Bolívia. Começou em 1998.

Desenvolve-se em todo o território colombiano, especialmente na zona de Putumayo, e inclui área do Amazonas.

Abrange a r eg ião cocalera de Chapare, na Bolívia.

64 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia

Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>

Plano Iniciativa Regional Andina

Extensão do Plano Colômbia que inclui aspectos militares e comerciais direcionados aos países da região andina que circundam a Colômbia. Foi criado em 2001 com um forte financiamento dos EUA.

Abarca Colômbia , Equador, Venezuela, Bolívia e Peru.

Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)

NAFTA

Tratado de LivreComércio EUA-Chile

Impor uma área econômica continental que garanta a expansão e os lucros, com baixos custos trabalhistas às multinacionais ianques. Sua preparação foi secreta, com previsão inicial de implantação para janeiro de 2005.

Acordo firmado no início de 1994. Facilitou a espoliação dos trabalhadores por meio das maquiadoras instaladas na fronteira ianque-mexicana. Permitiu que os EUA aprofundassem o controle migratório de latinos.

Acordo firmado em junho de 2000 com objetivos similares ao NAFTA. Busca preparar o terreno, na América do Sul, para a implantação da ALCA.

Pretende incluir 34 países (exceto Cuba) da A m é r i c a d o S u l , América do Norte e América Central.

P a r t i c i p a m E U A , México e Canadá.

Somente EUA e Chile.

Plano PueblaPanamá (PPP)

Projeto criado pelo presidente mexicano Fox e está dirigido aos estados do sudeste do México (incluindo o estado de Chiapas) e os países da América Central. Busca facilitar os investimentos estrangeiros privados, privatizar empresas de serviços públicos e controlar fluxos migratórios aos EUA.

Envolve o México, Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá.

História & Luta de Classes - 65

“Um enigma aos nossos próprios

olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina1

André Francisco Berenger de Araújo2

‘formas’, ou ‘conteúdo’ de sua obra, agora considerados não abstratamente, mas como expressões dessas relações. Tal reconhecimento será inútil se for, em si, abstrato e estático. As relações sociais não são apenas recebidas: são feitas e podem ser transformadas” .

Através destes séculos, portanto, muito se fez e se escreveu sobre a América. Até mesmo Augusto dos Anjos, o poeta para quem o beijo é a véspera do escarro, não esquece de nos lembrar da América e seus habitantes originários, “desterrado[s] na sua própria terra, / Diminuído[s] na crônica do mundo”. Quando “a civilização entrou na taba”, tudo “exercia sobre ele ação funesta / Desde o desbravamento da floresta / À ultrajante invenção do telefone”. E, agora, “A gente deste século, espantada, / Vê somente a caveira abandonada / De uma raça esmagada pela Europa!” .

É claro que existem versões mais conservadoras destes índios: o índio Peri, de José de Alencar, por exemplo. Mas o importante é perceber que as palavras estão em permanente disputa na literatura, pois são parte das relações sociais e seus conflitos (e não “refletem” ou “simbolizam”). A literatura também é um campo, às vezes fundamental, do conflito social.

O termo América Latina, por exemplo, é um pouco mais difícil de definir do que simplesmente como o continente ao sul do Rio Grande. Tanto é que não são poucos os grupos que tentam encontrar noções que expressem melhor o que se quer dizer para se referir ao nosso continente. Aliás, não é pouco

5

6

É através das palavras que passamos a conhecer e exercer uma importante parte de nossas relações com o que nos cerca, as terras e as gentes. A própria Rainha Dona Juana e seu filho, o Imperador Carlos V, da Espanha do século XVI, só puderam estabelecer relações com a terra que acabavam de conquistar através das palavras. “Estes dados que estamos enviando a vossas majestades é que são corretos e trataremos aqui, desde o momento em que estas terras foram descobertas até o estado que se encontram no presente, para que vossas majestades conheçam a terra como é, a gente que a habita, sua maneira de viver, seus ritos e cerimônias, suas leis, e o fruto que dela vossas altezas reais poderão obter, e também para que vossas altezas reais saibam por quem nela têm sido servidos”, disse uma das inmْeras cartas recebidas pelos imperadores europeus dos seus subordinados em terras distantes.

É, assim, através da língua que uma parte importante de nossa interpretação sobre o mundo e as coisas é produzida. Quem escreve justamente interpreta o mundo em que vive e, como conseqüência, tenta transformar (ou manter) as relações que encontra diante de si. Porque um escritor não é somente e simplesmente determinado pelas condições em que vive, assim como também não é um indivíduo isolado que apenas “observa” o que acontece a sua volta. Assim, é preciso reconhecer a “ligação radical e inevitável entre as relações sociais reais do escritor (consideradas não só individualmente, mas em termos das relações gerais da ‘literatura’ numa sociedade e períodos específicos, e dentro destes as relações sociais existentes em determinados tipos de literatura), e o ‘estilo’, ou

3

4

1

2

3

4

Este texto foi escrito como trabalho final da disciplina Geografia da América Latina oferecida na graduação da Universidade Federal Fluminense, no departamento de Geografia, pelo professor Carlos Walter Porto Gonçalves no segundo semestre de 2005.Graduado em História (UFF), integrante do Grupo de Estudos de América

Latina e Caribe – GEALC.CORTEZ, Hernan. A Conquista do México. Porto Alegre: LP&M, 1996, p. 15“Encontramos então não uma ‘linguagem’ e ‘sociedade’ reificadas, mas uma

linguagem social ativa. Nem é essa linguagem (...) um simples ‘reflexo’ ou ‘expressão’ da ‘realidade material’. (...) Ou, mais diretamente, a linguagem é a articulação dessa experiência ativa e em transformação; uma presença social e dinâmica no mundo”. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 43.WILLIAMS, op. cit., p. 203ANJOS, Augusto dos. “Os doentes”. Eu / Outra Poesia. São Paulo: Círculo

do Livro, s/d, p. 61-2.

5

6

História & Luta de Classes - 67

termo inventado não pelos latinoamericanos, mas pelos franceses, no século XIX. E não adianta tentar dizer que essas palavras são pouco importantes, dizendo que são só nomes e é o “resto” que importa. A questão é que este “resto” é definido justamente por essas palavras. Não é à toa que se nomeiam as coisas... Para alguns, inclusive, estas duas palavras pouco servem para nomear nosso continente, preferindo, por exemplo, Abya Yala.

É assim que Eduardo Galeano constrói sua literatura. Desde As Veias Abertas da América Latina, e o título é bem sugestivo, Eduardo Galeano traça uma idéia do que seria este continente. Galeano se insere aí, com sua literatura, nesta disputa da América Latina, das “grandezas, maravilhas e estranhezas desta grande cidade de Tenochtitlán” que Hernán Cortez descreve à Coroa espanhola.

A América Latina é, portanto, mais difícil de definir do que aquele pedaço de terra ao sul do Rio Grande. “Eu não sabia como era a fronteira. Como seria? Nunca tinha visto uma fronteira. Teria orquestra? Teria. E baile e festa e tiro ao alvo. E circo? Orquestra, com certeza. Circo, não sabia”. Neste conto, o andarilho, quando percebe, já tinha passado a fronteira não se sabe quanto tempo atrás. Para Galeano, a América Latina é um projeto político, e não só uma denominação de uma região definida em fronteiras rígidas. Um projeto político que se constitui nas perdas e vitórias dos pobres e excluídos. Neste sentido que Eduardo Galeano constrói sua literatura, refazendo-se do termo, transformando-o de uma “denominação de região”, definida por fronteiras, em um “projeto político” que pega a América Latina e a transforma num continente dinâmico, de conflitos, “de amor e de guerra”.

Dias e noites de amor e de guerra foi um livro escrito em meio ao exílio de Eduardo Galeano. A trilogia Memória do Fogo termina seu relato da história da América Latina em 1984, “talvez porque tenha sido esse o último ano do meu exílio”. As Veias Abertas da América Latina é lançado em 1971, dois anos antes do golpe militar no Chile, três anos depois do AI-5 no Brasil. É neste período que foi produzida a obra de Galeano na qual vamos procurar identificar alguns traços deste projeto político. Sem dúvida, o lançamento de As Veias é um marco inicial, não só pela fascinante escrita, mas principalmente pelo alcance que teve: “a moça que ia lendo o livro para sua companheira de assento e terminou pondo-se de pé e

7

8

9

lendo em voz alta para todos os passageiros enquanto o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com o livro envolto nas fraldas do bebê; ou ainda o estudante que durante uma semana percorreu as livrarias da rua Corrientes de Buenos Aires e foi lendo de pedacinho em pedacinho, de livraria em livraria, porque não tinha dinheiro para comprá-lo” . Poderíamos acompanhar o marco que o próprio Eduardo Galeano nos deu com o fim do seu exílio, mas preferimos expandi-lo um pouco mais, até o fim da ditadura de Pinochet, quando, talvez, tenha realmente se encerrado um ciclo. “Viemos de diversos países, e estamos aqui, reunidos à sombra generosa de Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo do Chile, que diz não. Nós também dizemos não” ; isto é o que Galeano disse em uma das inmْeras manifestações contra Pinochet no final da década de 1980. É claro que seria preciso observar os livros posteriores a este marco, para saber se ele se justifica, mas nos contentemos com isso por enquanto.

É, portanto, nos livros escritos entre 1971 e 1990 que vamos identificar estes traços de projeto político que Eduardo Galeano acaba por defender quando empreende seu esforço de escrever sobre a América Latina. “Economia política no estilo de um romance de amor ou de piratas” como ele descreve As Veias, ou contos, ou romances, ou artigos de jornal, ou o que seja, Eduardo Galeano empreende um esforço de compreensão deste continente, pois “acontece que a América Latina constitui, ainda, um enigma aos nossos próprios olhos” . E é através deste esforço de compreensão que se define este projeto latinoamericano.

Em uma das histórias contadas em Memória do Fogo, aparecem duas artes: uma que artistas equatorianos enviam à Exposição Universal de Paris em 1867 cópias idênticas dos quadros europeus, e outra arte que “floresce nos mercados índios e nos subúrbios populares do Equador (...) Não a fazem os acadêmicos, mas as pobres gentes que comem corações de pulga ou tripas de mosquito” . O título do fragmento é “Ser ou copiar, este é o problema”. Em diversos momentos dos livros de Galeano aparece esta idéia. Tanto é que quando Galeano nos conta de alguma revolta, revolução ou insurreição está sempre presente a idéia de recuperação de alguma coisa. Por exemplo, sobre a reforma agrária de Artigas no Uruguai, eram “paisanos pobres (...) que recuperavam

10

11

12

13

14

7

8

9

10

CORTEZ, op. cit., 62.GALEANO, Eduardo. Vagamundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 29.GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 3: O Século do Vento. Porto Alegre:

LP&M, 1998, p. 359GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1978, p. 285.

11

12

13

14

GALEANO, Eduardo. Nós dizemos não. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 11.GALEANO, As Veias abertas da América Latina, op. cit., p. 285.GALEANO, Eduardo. Contra-Senha. São Paulo: Ícone, 1988, p. 93.GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 2: As Caras e as Máscaras. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 275.

68 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina

na luta o sentido da dignidade” ; ou então na Revolução Mexicana: “Em 1910, chegou a hora do desquite. México levantou-se em armas contra Porfírio” , o México, os pobres, camponeses, índios. Assim como a elite não faz parte da América Latina. “A burguesia se associou à invasão estrangeira sem derramar lágrimas nem sangue” . E Bolívar, que encarna uma independência das elites, funda escolas para que os índios “possam receber as luzes européias da civilização” . Há, assim, em Eduardo Galeano, uma identificação clara na América Latina de algo (ou alguém) que é sempre excluído, apagado, mas que ainda assim, constitui o que é a América Latina. Num fragmento do primeiro volume de Memória do Fogo, em 1563, indígenas fazem um cerco a um forte espanhol e ameaçam queimá-lo. Os espanhóis gritam que “com o tempo ganharemos a guerra! Seremos cada vez mais!” e, questionado sobre com que mulheres se reproduzirão, respondem: “Se não há espanholas, teremos as vossas (...) E nelas faremos filhos que serão vossos amos” . Parece, então, que quando se trata de elites ou de camadas dominantes não se trata da mesma América Latina que faz os cercos aos espanhóis. Até porque é a América Latina que invade os Estados Unidos quando Pancho Villa atravessa a fronteira em 1916.

Lendo Walter Benjamin, aparecem duas idéias que nos servem para entender o Galeano e esta América latina, que é um projeto. São as idéias de “experiência” e “narrativa”. Galeano diz num texto sobre Memória do Fogo que escreveu a trilogia “contra a amnésia das coisas que valem a pena ser recordadas”. E ainda se compara a um “caçador de vozes, perdidas e verdadeiras vozes que andam esparramadas por aí” . Walter Benjamin distingue a rememoração da memória, as duas saídas de uma origem comum, a reminiscência, que faz o laço de uma geração a outra. “A primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa” . Benjamin, assim, imagina que o romancista “é o mudo, o solitário” e que a “origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações e que não recebe conselhos nem sabe

15

16

17

18

19

20

21

22

23

dá-los” . O romance, portanto, está sempre buscando o sentido da vida, da história que conta, que chega inevitavelmente com o fim do livro. E, desta maneira, o romance se separa radicalmente da tradição oral. Não é o que parece fazer Eduardo Galeano. Ao contrário, seus livros se parecem incrivelmente com as definições que Benjamin dá para a “arte narrativa”.

Benjamin diz que a arte de narrar está escassa, “é como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” . Benjamin diz que isso, ainda que seja um processo bem anterior, se radicaliza com a Primeira Grande Guerra, quando os combatentes voltam “silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos” . E ele liga essa “pobreza de experiência” diretamente a “esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” . Talvez Walter Benjamin não soubesse, mas esta radicalidade já está na América Latina desde os primórdios, onde técnicas totalmente alheias aos povos que aqui viviam eram-lhes sobrepostas e impostas, destruindo todo um tipo de vida, e passam a ser explorados de forma intensa. Talvez aí os indígenas, e também os africanos (e estes talvez ainda de forma mais radical), também voltassem mudos, sem “experiências intercambiáveis”, mas não da guerra (ou também dela), mas principalmente do trabalho nas minas e latifúndios. Não é à toa que Galeano escreve que “nas comunidades, os indígenas viram ‘voltar muitas mulheres aflitas, sem maridos, muitos filhos órfãos de seus pais’, sabiam que na mina esperavam ‘mil mortes e desastres’” . Assim, poderíamos arriscar, ainda, seguindo Benjamin, que a origem do romance na América Latina está ligada irresistivelmente a este processo.

Mas o que estamos tentando identificar não é a ligação de Galeano com o romance, mas sim com a idéia do “narrador”. “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” . No texto que leva o nome de O Narrador, Benjamin leva essa idéia a uma dimensão nostálgica, sempre ligada ao passado, pois “o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva” . Em outro texto, Experiência e

24

25

26

27

28

29

30

15

16

17

18

19

20

21

22

GALEANO, As Veias abertas da América Latina, op. cit., p. 129.Idem, p. 134Idem, p. 226GALEANO, Memória de Fogo 2, op. cit., p. 187.GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 1: Nascimentos. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira,1986, p. 209.GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 75.GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 30.BENJAMIN,Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre

literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras

.

.

.

23

24

25

26

27

28

29

30

escolhidas; v. 1), p. 211.Idem, p. 54.Idem, p. 201.Idem, p. 198. Idem, p. 115.Idem.GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 71BENJAMIN, op. cit., p. 201.Idem, p. 197.

.

História & Luta de Classes - 69

Pobreza, ele chega a propor para assumirmos uma postura de reconhecimento desta pobreza generalizada de experiências comunicáveis: os homens “aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso” . Definitivamente, não é isso que Galeano parece fazer. Ele se parece com aquele tipo narrador, ainda que de forma diferente, como não podia deixar de ser. Os melhores narradores, para Walter Benjamin, são aqueles que menos se afastam da tradição oral, ou seja, a verdadeira narrativa está fundamentalmente na oralidade. Assim, se um narrador escreve, está somente registrando aquilo que ele ouve de pessoa a pessoa , de povoado a povoado, como uma forma em que as comunidades mantinham seus vínculos. Galeano já recebe um mundo, ou melhor, um continente, em que estas comunidades já estão radicalmente deixando de intercambiar experiências há pelo menos cinco séculos. Assim, Galeano não simplesmente “registra” experiências que são intercambiadas, mas tem que ir buscá-las. E é ao ir buscá-las que ele tenta reconstruir estes vínculos através de experiências que passam, por ele, a ser intercambiáveis. Assim, é através de uma técnica literária própria que Galeano intervêm no mundo em que vive, pois procura, com sua literatura, criar (ou recriar) vínculos que teriam sido destruídos continuamente pela colonialidade. E talvez seja em Memória do Fogo que, pela primeira vez, esta técnica ganha uma forma mais identificável, ainda que tenha sido construída por todos os livros anteriores, em maior ou menor grau.

O narrador “pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui somente a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer)” . A experiência, assim, é aquilo que é comum a uma coletividade, diferente de uma experiência individual. Esta é expressa pela forma do romance, e aquela, pela forma narrativa. O que nos parece que Galeano faz é, justamente, tentar construir esta experiência coletiva do continente latinoamericano. E, através desta experiência, que precisou ser resgatada, continuar uma história, que ainda não acabou. E isto é o que Walter Benjamin diz que faz o narrador. “O narrador é um homem que sabe dar conselhos”, que é “menos

31

32

33

responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo contada” . Ou seja, Galeano, assim como o narrador para Benjamin, não procura dar explicações para o que narra, mas, ao contrário, desperta “no passado as centelhas da esperança”, pois está “convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer” . A diferença, portanto, que talvez exista entre o narrador que Benjamin caracteriza e Galeano é que este precisa romper com uma tradição literária para reconstruir estas experiências, enquanto que aquele está em extinção, pois as experiências estão sendo cada vez mais destruídas.

Galeano, portanto, procura resgatar algumas experiências coletivas da história da América Latina, que procuramos classificar em três redes temáticas: a exploração da terra e dos homens e mulheres latinoamericanas; a revolta permanente contra esta injustiça; e o sentimento e situação de exílio dos povos latinoamericanos.

Assim, a América Latina tem se caracterizado pela sangria das riquezas e dos povos; é o que está em As Veias Abertas da América Latina: “a sangria do novo mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé” . Em Vagamundo, há dois contos que podem nos dar alguma dimensão disto. São sobre trabalhadores das minas, seus sonhos, seu trabalho interminável, a desconfiança dos capatazes que desconfiam “quando vêem os pacotes que os mineiros costumam levar debaixo de seus casacões de trabalho” . É a exploração de homens e riquezas reais que Galeano nos fala. O nome de um dos contos é “A terra pode nos comer quando quiser”, que fala bastante por si. “Cinqüenta índios caídos por terem-se negado a servir nos túneis da mina. Não faz um ano que apareceu o primeiro veio e já se mancharam de sangue as ladeiras do morro” , assim inicia um fragmento da trilogia Memória do Fogo, que nos dá um pouco a idéia do que significou para os índios a exploração da prata de Potosí.

Junto a isso está a exploração dos países latino-americanos por estrangeiros. Naquele mesmo fragmento, Galeano nos conta que a voz do morro tinha dito aos índios: “Outros donos têm esta riqueza” . As Veias dedica um capítulo inteiro (“Qual bandeira tremula sobre as máquinas?”) para mostrar como a maioria das empresas presentes na América Latina é de origem estrangeira. Aliás, não só as empresas são alheias à América Latina, mas a própria

34

35

36

37

38

39

40

31

32

33

34

Idem, p. 118.Benjamin defende o conceito de “técnica literária” para superar o contraste

entre forma e conteúdo, ou tendência política e qualidade artística, ou seja, um conceito “que torna os produtos literários acessíveis a uma análise imediatamente social”. BENJAMIN, op. cit., p. 122.

Idem, p. 221.Idem, p. 200.

35

36

37

38

39

40

Idem, p. 224-5.GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 52.GALEANO, Vagamundo, op. cit., p. 36.GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 172.Idem, p. 173.GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 232-7.

70 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina

sociedade que vai se formando: “o modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo” . A idéia de que os males que afligem este continente são determinados pelo que vem de fora é presente em muitos trechos dos livros. Em um outro fragmento de Memória do Fogo, intitulado “Sobre o canibalismo na América”, o canibalismo relatado é a guerra dos governadores europeus que se matam uns aos outros na luta pelo poder de certa região da América . “Na verdade, estrangeiro na América é o capitalismo, que não foi inventado por Manco Cápac nem por Montezuma, e sim imposto de fora e de cima pelos invasores europeus do século XVI”

Mas, ainda assim, nem tudo é determinado de fora. Num outro conto de Vagamundo, falantes da “velha língua dos antepassados”, espantados ao conhecer a cidade, suas máquinas e avenidas, perguntavam lentamente com seus corações “o que seria de todos vocês se nós não fizéssemos o sol sair todos os dias?” . O que não quer dizer também que Galeano pense que a América Latina tenha algum sentimento saudosista, do tempo em que os europeus não haviam chegado, apesar das desgraças de hoje, como se antes tudo fosse perfeito, alguma espécie de paraíso. Num conto seguinte de Vagamundo, chamado “tourist guide”, um velho rememorando dos tempos que ainda estava começando “a correr dinheiro”, a certa altura ele diz: “Se éramos felizes? Ninguém é feliz. (...) Mas todos tínhamos vida própria e havia muita união” .

É neste sentido que se define este projeto político latinoamericano. A América Latina é a América dos pobres, dos excluídos, mas que ainda vai acontecer. A América Latina se define nesta contradição de ser do povo, mas dominada de fora (ou pelas elites internas) e, na verdade, ainda não ter se realizado. Parece que é essa a sensação que se tem quando lemos Eduardo Galeano. E é definindo este projeto político, através de histórias e imagens da América Latina, que Galeano vai intervindo na realidade mesma deste continente. Os livros, sejam eles quais forem, não pairam acima da sociedade, mas intervêm diretamente, em maior ou menor grau, na realidade. Isto que estamos chamando de “projeto político” só se forma na medida em que o que Galeano escreve tem conseqüências nas relações sociais, nos

41

42

43.

44

45

conflitos sociais que ele está envolvido. Seja a mulher que fugiu com As Veias enrolado nos panos do bebê logo após o golpe de Pinochet no Chile, como foi citado mais acima; ou mesmo seu próprio exílio, proibição de seus livros em alguns países, fechamento de algumas revistas nas quais escrevia.

Eduardo Galeano escreve muito sobre as ditaduras militares da América Latina. E não é à toa, já que ele viveu neste período e sofreu as conseqüências diretas que um intelectual sofreria, pois poderia escrever em 1990, no fim destas ditaduras, que “na América Latina, o capitalismo é antidemocrático, com ou sem eleições: a maioria das pessoas está presa pela necessidade e condenada à solidão e à violência” . Um dos temas preferidos de Eduardo Galeano foram as conseqüências destas ditaduras e as resistências a elas, silenciosas ou barulhentas.

No terceiro volume de Memória do Fogo, sobre o século XX, em 1978, cinco mulheres começam uma greve de fome contra a ditadura militar e logo já são “três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isto. As cinco mulheres derrubaram a ditadura militar” . Seja o povo que se rebela, ou um aluno rebelde da “Faculdade de Impunidades” que escreve numa parede “Não queremos sobreviver. Queremos viver” , ou mesmo Chico Buarque que “revista seus interiores, para ver se a polícia não lhe meteu um censor na alma ou não apreendeu sua alegria num momento de distração” , Galeano, em diversas passagens, se encontra com esta resistência, silenciosa ou barulhenta. Na guerrilha da selva da Guatemala, Eduardo Galeano nos conta dos dias que esteve com os guerrilheiros, “uns quantos índios”, que “várias vezes tinham visto estalar napalm do céu, sobre as montanhas vizinhas” e das conversas que escutou ou imaginou: “‘Uma revolução de mar a mar. O país inteirinho levantado. E penso ver isso com estes meus olhos...’ ‘E vai mudar tudo, tudo?’ ‘Até as raízes.’ (...) 'E os ricos?’ ‘Não haverá mais ricos.’ (...) ‘Nem rico nem pobre.’ ‘Nem pobre nem rico.’ ‘Mas, então, não vai ficar ninguém na Guatemala. Porque aqui, você sabe, o que não é rico é pobre’” . Ou então “esta mulher viu morrer seu melhor amigo. Estavam ocupando uma fábrica, nos subúrbios de Santiago do Chile, nos dias seguintes ao golpe. Esperavam armas para resistir. Foi esquartejado na tortura, mas não

46

47

48

49

50

41

42

43

44

45

46

Idem, p. 14.GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 178.GALEANO, Contra-Senha, op. cit., p. 96.GALEANO, Vagamundo, op. cit., , p. 45.Idem, p. 46.GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 87

47

48

49

50

GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 317-8.GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 69GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., , p. 286.GALEANO, Eduardo. Dias e Noites de Amor e de Guerra. Porto Alegre:

LP&M, 2002, p. 14-7.

História & Luta de Classes - 71

disse que a conhecia” . Mas Galeano não se restringe a escrever somente sobre as revoltas, resistências e vitórias contra as ditaduras militares, citações que seriam inúmeras, mas também sobre outras diversas imagens e histórias dos que se levantam na América Latina (e também pela América Latina).

Galeano não só nos convida a perceber a todo momento as revoltas da América Latina, mas também não deixa de falar que estas revoltas, esta guerra existe desde quando Colombo chega por estas bandas. O que não falta são referências a revoltas na América Latina. “Para mim a guerra começou quando nasci” , diz Pancho Villa e nos perguntamos se não é a própria América Latina quem diz isso. “A esperança de renascimento da dignidade perdida incendiaria numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzcos” , escreve em As Veias Abertas da América Latina. E é, sem dúvida, através destas revoltas, insurreições e revoluções que vai se criando esta América Latina dos pobres, dos excluídos, que vai definindo aquele projeto político latinoamericano. Projeto político que reúne a dignidade, idéia sempre presente nas imagens rebeldes de Galeano, junto com um sentimento coletivo. De “uma revolução jovem”, a “Nicarágua em estado de assembléia. O povo se organiza, discute, decide” e, nas regiões indígenas, “por unanimidade, a assembléia pede um violão” até a boliviana que estranha a solidão na Suécia: “nós, lá na Bolívia, nem que seja para brigar, nos juntamos” . As revoltas, assim, na América Latina são justamente para fazer esta América Latina se realizar. E Galeano nos diz isso mesmo explicitamente na última página de As Veias: “para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país” .

Esta expressão “país por país” ainda nos lembra que Galeano está sempre falando não de um ou outro determinado país, mas de toda a América Latina. Che Guevara, por exemplo, “tinha estado, e não como turista, no torvelinho da revolução boliviana, e na agonia da revolução guatemalteca. Tinha carregado bananas na América Central e tirado fotografias nas praças do México, para ganhar a vida, e para apostá-la se lançou na aventura do Granma” . Bolívar e San Martín não carecem de referências pelo seu esforço de construir a união da América Latina. Este sempre

51

52

53

54

55

56

57

lutou “pela América, nunca contra ela: quando o governo de Buenos Aires mandou-o esmagar as colunas federais de Artigas, San Martín desobedeceu e lançou seu exército rumo às montanhas, para continuar sua campanha pela independência do Chile” . E ainda, esta união latinoamericana para além das fronteiras, através dos excluídos, é reforçada quando na primeira parte do primeiro volume da trilogia Memória do Fogo, “a América pré-colombiana se desenrola através dos mitos indígenas de base” .

A idéia de “país por país” também nos leva à outra conseqüência das ditaduras militares, o exílio involuntário, o sentimento de não-pertencimento. Eduardo Galeano não só escreve bastante sobre isso (Dias e noites de amor e de guerra é praticamente sobre isso e em A Canção de Nossa Gente o tema principal também é esse e um dos personagens principais está inclusive voltando do exílio, além de contos e artigos sobre o exílio e sobre a prisão de gente contra a ditadura), mas também acaba por fazer disto uma característica que forma a América Latina. É através do exílio que se reconhece a América Latina. Num trecho de Dias e noites, um chileno e um brasileiro se descobrem, se encontram num trem da França: “‘Porra! Então posso falar espanhol!’ E começaram a falar de suas terras perdidas enquanto o trem deslizava rumo a Paris. (...) Depois se disseram adeus com o punho erguido” . Assim, o exílio acaba fazendo parte de uma certa constituição da América Latina, dos povos da América Latina. O exílio do próprio Eduardo Galeano: “Vida cigana. As coisas me acompanham e vão embora. São minhas de noite, perco-as de dia. Não estou preso às coisas; elas não decidem nada” .

Mas o exílio não é só daqueles que viveram o tempo das ditaduras. Ao contrário, e é aí que o exílio parece ser constitutivo da América Latina, os povos latinoamericanos, aqueles pobres e excluídos por quem a América Latina ainda está para se realizar, são constantemente expulsos, “desplazados”. “Muitas favelas foram arrancadas do Rio. Foram jogadas longe dos olhos dos turistas. (...) A polícia fechou o terreiro de Vovô Catarino. Ele foi expulso da cidade” . Para se realizar os lucros daqueles que dominam a América Latina, estes tem de ser sempre

58

59

60

61

62

51

52

53

54

55

56

57

Idem, p. 111.GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 54.GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 55.GALEANO, Eduardo. Canção de nossa gente. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1978, p. 63-6.GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 336.GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit,. p. 281.GALEANO,Dias e Noites de Amor e de Guerra, op. cit., p. 62. Galeano aqui

encontra uma solução muito parecida com uma “das mais belas narrativas do incomparável Johann Peter Hebel”, citada por Benjamin, para mostrar a passagem do tempo: “'Os turcos prenderam o general Stein na grota dos

veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também'”, BENJAMIN, op. cit., p. 208. Um relato dos mais secos, sem procurar dar explicações, mas suscitar espanto e reflexão. Idem, p. 204.

GALEANO, Memória de Fogo 2, op. cit., p. 177.GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 16.GALEANO, Dias e Noites de Amor e de Guerra, op. cit., p. 96.Idem, p. 7.Idem, p. 40.

58

59

60

61

62

72 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina

deslocados. Assim, é esse sentimento de não-pertencimento à própria América Latina que faz os pobres deste continente pertencerem uns aos outros. “Eles fizeram Brasília, e de Brasília foram expulsos. A cada dia eles fazem o Brasil, e o Brasil é sua terra de exílio” . Não é à toa, aliás, que em A Canção de Nossa Gente, intercalam-se a história deste exilado que volta a sua cidade e a história de dois mendigos que tentam sobreviver nesta mesma cidade, que parece não os querer. Aliás, já no século XVI, “os índios eram arrancados das comunidades agrícolas e empurrados, junto com suas mulheres e seus filhos, rumo às minas” .

O que nos parece, então, é que são nessas viagens, nesses exílios que se reconhece a América Latina. Aliás, a própria escrita da trilogia Memória do Fogo nos sugere isso, ou seja, que viajamos, de forma mais ou menos forçada, e acabamos por conhecer a América Latina em que vivemos. Os livros da trilogia são escritos em pequenos fragmentos que contam episódios, cotidianos ou não, da história latinoamericana. Há uma data, um lugar, um título e a história. E depois outra data, outro lugar, outro título e outra história. E assim por diante, desde a “A rota do sol até as Índias”(antes ainda há os “mitos indígenas de base”) até a carta enviada ao editor junto com os originais dos livros em 1986. Lendo, parece estarmos viajando entre as histórias do continente, percebendo diferenças, contrastes, semelhanças, ou seja, identificando este continente por entre todas essas localidades e datas.

“Conheço esta história contada por aqueles que lá vivem e por aqueles que vão e voltam. Todos conhecem. Mas há tantas histórias quanto vozes para contá-las” . Essas palavras bem serviriam para falar de Memória do Fogo, mas fazem parte de um conto, escrito até antes da trilogia. No conto, assim como em outro que parece estar relacionado, sabemos de um vilarejo de pescadores latinoamericano justamente porque um exilado político por lá se refugiou. Assim como o vilarejo também conhece a cidade do exilado: “Perguntava-me sobre certos botequins e mercadinhos e eu lhe dizia que haviam desaparecido e ele se calava e cuspia tabaco. ‘Eu não acredito nos tempos de hoje’, dizia o Capitão” . Seja que “um barco havia virado, traído pela ventania. A maré tinha levado um pescador. Não o devolveu” ou mesmo que a história dos filhos

63

64

65

66

67

68

do Capitão pescador apaixonados pela mesma mulher acabou tragicamente, é através das viagens, causadas muitas vezes, e no caso, pelo exílio forçado, que o refugiado sabe da existência do vilarejo e vice-versa, pois quando ele vai embora, o Capitão diz “Vamos queimar a sua casa e tudo o que é seu” . Assim, parece que se dá um encontro entre a América Latina. E Memória do Fogo parece querer nos proporcionar justamente este encontro de suas histórias. E, através de suas histórias, o continente se realiza enquanto projeto de libertação (ainda em andamento) dos povos que nele habitam e, habitando-o, o definem.

É, então, “país por país” que Galeano define este projeto latinoamericano que estamos tentando identificar. Difícil é saber se é isso que Galeano pensa de seu trabalho. George Orwell, em 1946, escreveu em um texto chamado Por que escrevo que “todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério” . Ainda Orwell escreveu bastante sobre literatura, e especialmente sobre a relação entre literatura e política; e quando se trata de Galeano, me parece que suas observações podem nos ser valiosíssimas. É muito difícil avaliar a qualidade estética de livros (ou qualquer obra de arte), ainda mais quando são explicitamente políticos, mas Orwell talvez nos dê uma pista por onde começar quando diz que “para um escritor criativo a posse da ‘verdade’ é menos importante que a sinceridade emocional” . E talvez por isso mesmo, Galeano não escreve aqueles livros dentro de determinada cartilha de certo grupo, livros que “são julgados antes de ser lidos, e na verdade antes mesmo de ser escritos” , pois escreve “no máximo como um guerrilheiro importuno no flanco de um exército ativo” . Os textos de Galeano, “branco e macho mas nem militar nem rico” , parecem confirmar que “a atitude humanista é a de que a luta deve continuar e a morte é o preço da vida” , que “nossa tarefa é tornar a vida digna neste mundo, que é o único que temos” e que “o essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a perfeição, é que às vezes estamos propensos a cometer pecados em nome da lealdade, é que não assumimos o asceticismo a ponto de tornar impossível uma amizade, é que no fim estamos preparados para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos” .

69

70

71

72

73

74

75

76

77

63

64

65

66

67

68

69

GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 73-4GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 51.Aliás, isto combina muitíssimo com a definição da “extensão real do reino

narrativo” de Walter Benjamin, em que associa dois grupos de narradores: “o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”. BENJAMIN, op. cit., p. 199.

GALEANO, Contra-Senha, op. cit., p. 25.Idem, p. 14.Idem, p. 9.Idem, p. 18.

70

71

72

73

74

75

76

77

ORWELL, George. Dentro da Baleia e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 190.

Idem, p. 138.Idem, p. 156.Idem, p. 163.GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 30.ORWELL, op. cit., p. 190. Idem, p. 74.Idem, p. 76..

História & Luta de Classes - 73

Roselena Leal Colombo2

No entanto, é urgente a superação de análises típicas do pensamento idealista que, no afã de preservar a memória histórica da Revolução de 59 e as conquistas do povo cubano, se distanciam da realidade histórica atual.

No sentido de contribuir com esse difícil mas necessário debate, procurarei aqui apresentar algumas amostras de estudos que desembocaram em minha dissertação de Mestrado.

A situação de Cuba no início dos anos 90: Crise, Bloqueio e reformas na legislação

Com a crise dos anos 90 Cuba encontrou-se diante de uma nova e complexa realidade. O colapso do socialismo real ocasionou a desestruturação da cadeia produtiva cubana, extremamente dependente das relações com o ex-bloco socialista, onde cerca de 85% do comércio internacional cubano vinculava-se no campo do Conselho de Ajuda Mútua Econômica (CAME).

“En Cuba, 1993 ha sido el cuarto año consecutivo de decrecimiento económico. La caída acumulada del producto social global desde 1989 a 1993 se aproxima a un 45%. Las perspectivas de una recuperación de la actividad económica global en 1994 son, en el mejor de los casos, inciertas.”

5

6

7

D esde meados de 2006 a doença e o afastamento de Fidel Castro do cenário político público têm suscitado uma retomada de debates sobre os destinos de Cuba. É possível afirmar que a transição de poder em Cuba vem sendo gestada no círculo fechado do primeiro escalão do governo a um bom tempo e que há uma equipe de transição que de fato governa o país. No entanto, essa transição não está garantida sem sobressaltos, crises agudas e desestruturação do regime.

Passados vários meses, mantêm-se o estado de saúde de Fidel em sigilo e algumas hipóteses de senso comum na esquerda mundial refletem a imensa confusão teórica sobre o que aconteceu em Cuba a partir dos anos 90, como parte da crise daquela diante do colapso do socialismo real.

Para além da simbologia de resistência ao neoliberalismo e da continuidade de uma política formal de bloqueio econômico por parte dos EUA, é necessário que nos debrucemos a analisar Cuba procurando desvelar as novas contradições colocadas a partir dos anos 90, levando em conta tanto a conjuntura internacional quanto as particularidades históricas do país.

Este artigo não pretende, obviamente, fazer uma análise completa de um país que se constituiu e se mantém no imaginário da esquerda mundial como referência. Esta é uma tarefa coletiva e bastante complexa.

3

4

Cuba pós-colapso do Leste

Europeu: um debate necessário1

1

2

3

4

5

6

7

O presente artigo foi originalmente escrito em março de 2006. O afastamento de Fidel Castro e as incertezas e discussões em torno do processo sucessório impõem novas investigações no campo do marxismo. No entanto, apesar de breves atualizações, mantenho a essência matricial do artigo original, na medida em que os novos desafios analíticos colocados pela realidade imediata somente poderão ser interpretados levando em consideração o processo histórico aberto com o colapso do Leste Europeu no início dos anos 90. Professora da rede pública de ensino municipal de Porto Alegre . Especialista em História Contemporânea/FAPA e Mestre em História Ibero-Americana/PUCRS.Além da figura pouco carismática de Raúl Castro, foi nomeado um triunvirato formado por Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Legislativa, Carlos Lage,

atual vice-presidente e Felipe Pérez Roque, ministro das Relações Exteriores.Para entendermos o que se passa, não somente em Cuba, mas no conjunto dos países que expropriaram a burguesia no pós-guerra é necessário retomarmos o

debate sobre a natureza social desses Estados, as contradições entre os movimentos revolucionários e suas direções, os limites do nacionalismo e a importância do internacionalismo na geografia das revoluções. COLOMBO, Roselena Leal. Cuba pós-colapso do Leste Europeu: Reinserção Internacional e Reformas Estruturais na Revista Economía y Desarrollo – (1996-

2000). Porto Alegre: PUCRS, 2004. A análise da Revista Economía y Desarrollo, da Faculdade de Economia da Universidade de Havana, nos períodos de 1996 a 2000 foi estruturada em três grandes blocos temáticos: conjuntura internacional, reformas macroestruturais e reestruturação produtiva. Foram consideradas tanto as singularidades quanto as recorrências, na medida em que se produzem num mesmo ambiente intelectual marcado pela necessidade de responder às novas circunstâncias históricas.

Em janeiro de 1949 reuniram-se em Moscou representantes da Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Polônia e União Soviética com o intuito de discutir questões referentes à cooperação econômica e à contraposição ao Plano Marshall, então encabeçado pelos EUA. Na sua origem e segundo dados oficiais, o CAME foi uma organização entre Estados com o objetivo de coordenar atividades econômicas e desenvolver cooperação econômica, científica e técnica. Ver RECARTE, A. Cuba: economia y poder (1959-1980). Madrid: Alianza Editorial, 1980.CARRANZA, J.; GUTIÉREZ,I. e MONREAL, P. Cuba: La Reestructuración de la Economía. Madrid: IEPALA Editorial, 1995, p. 36.

..

..

..

..

..

História & Luta de Classes - 75

Especificamente o problema da agricultura e da produção de alimentos adquiriram uma nova dimensão na medida em que algumas estatísticas informam que ao final dos anos 80, ao redor de 57% das proteínas e mais de 50% das calorias consumidas pela população foram de origem importada, direta ou indiretamente.

Por sua vez, a menor disponibilidade de meios de produção teria provocado um colapso do sistema produtivo com a paralisação total ou parcial de empresas.

Soma-se a essa situação de crise generalizada o acirramento da política de bloqueio econômico por parte dos EUA no início dos anos 90. As Emendas Mack e Smith de 1989, a Lei Torricelli de 1991 e a Helms-Burton de 1996, caracterizam-se pela absoluta ruptura com pressupostos de direito internacional.

A Helms-Burton, intitulada originalmente Lei para a Liberdade e a Solidariedade Democrática Cubana, aprovada pelo então presidente democrata Bill Clinton, estabelece a permissão para que norte-americanos levem às cortes dos EUA todo estrangeiro que “trafique” com “propriedades norte-americanas” em Cuba. A Lei define como propriedades norte-americanas aquelas nacionalizadas pelo governo revolucionário depois de 1º de janeiro de 1959, proibindo às cortes norte-americanas invocar a “Doutrina de Ato de Estado”, princípio reconhecido internacionalmente que justifica o processo cubano de nacionalizações.

Curiosamente, apesar dessa lei ter sido aprovada poucos meses após a Lei de Inversões Estrangeiras de 1995 de Cuba, os sucessivos governos norte-americanos têm sido pressionados a não utilizá-la. Cabe ressaltar a forte pressão da comunidade internacional (fundamentalmente México, Canadá e União Européia) e de setores empresariais norte-americanos nesse sentido.

“Trás señalar que el impacto de la citada legislación no ha sido el esperado por sus promotores, prueba de ello es que el 57% de las asociaciones económicas internacionales en activo fueron constituidas

8

9

10 11

12

después de su aprobación, los peritos expusieron, no obstante, algunos ejemplos comprobados de los daños a importantes inversiones extranjeras en Cuba

[...].”

O quadro apontado acima e os dados apresentados a seguir colocam em novos patamares a questão do bloqueio norte-americano. Se por um lado é inegável a sua manutenção e recrudescimento conjuntural, por outro, Cuba tem conseguido estabelecer relações comerciais com vários países capitalistas.

A superestimação do bloqueio norte-americano cria uma falsa idéia de isolamento absoluto de Cuba, o que não corresponde à realidade atual. Nesse sentido, já a partir de 1994 os órgãos oficiais apontam uma inversão importante nos dados econômicos. No periódico Granma de 25 de dezembro de 1996, a manchete afirma que “Supera la economía cubana los umbrales de su recuperación”, informando um crescimento do PIB superior ao planejado, em torno de 7,8%. Tal balanço positivo da economia manifesta-se como uma tendência nos anos subseqüentes. Os dados apresentados pela CEPAL em 1999 apontam que enquanto o conjunto da América Latina e Caribe apresentaram, em termos de PIB por habitante, um decréscimo de 1,6%, Cuba cresceu 5,6% ocupando o primeiro lugar entre os países latino-americanos.

Para entendermos essa nova dinâmica apresentada oficialmente a partir da segunda metade dos anos 90, faz-se necessário investigar o processo de reestruturação econômica implementado pelo governo cubano.

Pode-se afirmar que o processo de transformações na organização da economia nacional cubana tem sua raiz no Decreto-Lei 50, de 1982. Denominada “Sobre Asociaciones Econômicas entre Entidades Cubanas y Extranjeras” esta legislação autorizou o direito de usufruto sobre instalações industriais, turísticas e de outro tipo, assim como o arrendamento das mesmas a entidades estrangeiras.

Pela primeira vez, desde a Constituição de 1976, iniciava-se um processo de modificação conceitual na

13

14

15

8

9

10

CARRIAZO MORENO, G. Cambios estructurales en la agricultura cubana: la cooperativización. Revista Economía y Desarrollo, n. 3-4/1996, p. 31-32.

Desde a Conferência Naval de Londres, de 1909, é um princípio aceito no direito internacional que “o bloqueio é um ato de guerra”, e sendo assim, só é possível seu emprego entre beligerantes. Geralmente se conhece como embargo a forma judicial de reter bens para assegurar o cumprimento de uma obrigação contraída legalmente. O Governo dos EUA emprega a figura do “embargo” para não reconhecer que aplica a Cuba medidas de tempo de guerra. Apesar de formalmente o bloqueio total contra Cuba ter sido implantado em 7 de fevereiro de 1962, já desde 1959, os EUA vinham aplicando medidas de estrangulamento à economia do país. MIRANDA BRAVO, O. Cuba-EUA: Nacionalizaciones y Bloqueo. Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1996. p. 37.

Apresentadas pela primeira vez em 1989, propõem a revogação da legislação vigente desde meados dos anos 70. Esta permitia o comércio de filiais

estadunidenses em terceiros países, com Cuba.Aprovada em 1992, esta lei pretendia regular a vida política cubana,

permitindo intervenção e apoio às ações de oposição ao regime.MIRANDA BRAVO, O. Op. cit., p. 38.LEE, S. Pérdidas causa el bloqueo en sensibles sectores de la economía. In:

Granma Internacional. Habana, 01.03.2000.MILLARES RODRÍGUEZ, M. Presentación a la Asamblea Nacional del

Poder Popular del Proyecto de Presupuesto del Estado para el 2000.Revista Economía y Desarrollo n. 1/2000, p. 223.

As modificações jurídicas das décadas de 80 e 90 foram objeto de estudos que realizei na graduação em História/UFRGS, nas disciplinas de Técnicas de Pesquisa. Ver CARRANZA, J.; GUTIÉREZ, I. e MONREAL, P. Op. cit.; VEGA VEGA, J. Cuba: Inversiones Extranjeras a partir de 1995. Buenos Aires: Endymion, 1996.

11

12

13

14

15

76 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário

questão da propriedade, que veio a se aprofundar com a Reforma Constitucional de 1992 e, finalmente, com a Lei de Inversões Estrangeiras de 1995.

Segundo VEGA VEGA, “Desde 1982 hasta 1989 se aprobó en Cuba un número insignificante de inversiones extranjeras”. Uma das explicações possíveis para tal constatação é que, apesar da crise já existente nas relações internas do bloco, o centro nevrálgico das relações de intercâmbio internacional cubano ainda estava no marco do Leste Europeu.

As experiências com o Decreto-Lei Nº 50 e, mais precisamente, as novas estratégias econômicas que se gestavam no interior do regime cubano pós-1989 precipitaram uma Reforma Constitucional que permitiu não só a legalização definitiva das inversões já existentes como o aprofundamento de reformas de natureza estrutural.

Como um de seus aspectos mais importantes, a Reforma Constitucional de 1992 introduziu a modificação explícita de conceitos quanto à natureza das formas de propriedade. Em primeiro lugar, retirou do antigo texto constitucional a irreversibilidade da propriedade estatal sobre os meios de produção e demais bens.

Em segundo, enumerou uma nova listagem de tipos de propriedade reconhecidas pelo novo texto constitucional: “La propriedad de las empresas mixtas y asociaciones económicas; la propriedad de las sociedads mercantiles.”

Quanto ao comércio exterior, no novo texto constitucional foi retirada a expressão “função exclusiva do Estado”. Ao Estado cabe repassar funções de operação de importação/exportação para pessoas naturais ou jurídicas.

Com essas modificações – o conceito de propriedade estatal, a forma de organização do comércio exterior e a ampliação de propriedades reconhecidas – o caminho estava aberto para o aprofundamento das medidas de inversões estrangeiras no país.

Em seu primeiro parágrafo do Artigo 1, ficam expressos os objetivos da nova lei, a de inversões estrangeiras de 1995: “[...]promover y incentivar la inversión extranjera en el território de la Republica de Cuba, para llevar a cabo actividades lucrativas que contribuyan al fortalecimiento de la capacidad económica y al desarrollo sostenible del país, sobre la base del respecto a la soberanía e independencia nacionales y de la protección y uso sostenible de los

16

17

18

recursos naturales; y establecer a tales efectos, las regulaciones legales principales bajo las cuales debe realizarse aquella.”

Enquanto a Lei de Inversões de 1982 colocava como objetivos “la expansión de las exportaciones y el turismo extranjero” , a nova Lei de 1995 explicita a busca de atividades lucrativas e estabelece a abertura a praticamente todos os setores da economia.

Esse conjunto de modificações na legislação cubana reflete um processo combinado de adaptações e opções conscientes frente às novas condições econômicas colocadas diante do desmantelamento da cadeia produtiva construída junto ao bloco de economias do Leste.

Reinserção Internacional e Reforma EstruturalA reinserção nas relações internacionais

combinou-se com um processo de releituras da história das relações de Cuba com o Leste. Através da análise temática de artigos publicados no período 1996-2000 , pode-se evidenciar algumas tendências discursivas.

Em primeiro lugar, a vinculação a um único mercado passou a ser vista como desvantagem, ao condicionar a inexistência de uma estratégia integral de inserção no mercado mundial.

Esse tipo de raciocínio conduziu, pela negativa, ao conceito de competitividade, sendo ressaltado de forma recorrente que a estabilidade e segurança nas relações com o Leste criou um ambiente produtivo, desde a macroestrutura até o gerenciamento local, onde não era necessário montar estratégias competitivas no mercado internacional.

Em segundo, a importação do modelo produtivo do Leste tendeu a ser percebida relacionando centralização e planificação econômicas com burocratismo e ausência de eficiência e produtividade.

Sob o ponto de vista da reinserção em si, apesar de recorrentes flutuações, a União Européia tornou-se um novo eixo de comércio internacional, representando já em 1995 cerca de 40% do comércio exterior cubano:

“[...] el perfeccionamiento de la Ley de Inversiones extranjeras, ha estimulado el establecimiento de empresas foráneas en sus diferentes modalidades, que de forma significativa proceden de países miembros de la Unión Europea. Así, de los 212

19

20

21

22

23

16

17

18

19

20

21

VEGA VEGA, J. Op. cit., p. 11. CARRANZA, J.; GUTIÉRREZ, I. e MONREAL, P. Op. cit., p. 47.Idem, p. 48VEGA VEGA, J. Op. cit., p. 39.Idem, p. 31.“Artículo 10. Pueden ser atutorizadas inversiones extranjeras en todos los

sectores, con la excepción de los servicios de salud y educación a la población y las instituciones armadas, salvo su sistema empresarial.” Ibidem, p. 65.

Dado o espaço deste artigo, optei pela discussão mais geral. Uma análise mais abrangente e minuciosa encontra-se na minha Dissertação de Mestrado.

Refere-se, no caso, ao periódico Granma e à Revista Economía y Desarrollo.

22

23..

História & Luta de Classes - 77

acuerdos de este tipo concluídos en 1995, 86 (el 40% del total) se han realizado com naciones de la región [...].”

Especificamente os setores vinculados à extração de níquel e petróleo vieram a produzir um resultado, no ano de 1996, superior ao ano de 1989, fruto da política de formação de sociedades de economia mista e associação econômica internacional.

“La presencia de capital extranjero es fuerte en ramas importantes y dinámicas de la economia nacional, entre otras, el turismo (16% del total de acuerdos), el níquel, sector petrolero, minería en general, biotecnología, productos farmaceuticos, textil, telecomunicaciones, representaciones bancarias, agricultura y azúcar, hasta un total de 34 ramas diferentes.”

Mas talvez o mais importante, numa análise sobre as novas relações internacionais, seja o fato de que, a partir das reformas na legislação, não há mais monopólio do comércio exterior e às empresas de capital totalmente estrangeiro é permitida a remessa de lucros ao exterior sem passar pelo Banco Central Cubano.

Sobre a natureza estrutural das reformas afirma-se que “[...] se produce actualmente una transformación económica, importante, de carácter estructural. No se trata simplemente de medidas a corto plazo para enfrentar uma situación conyuntural. El actual proceso de transformaciones genera una dinámica propia de cambios que abarcan necesariamente a toda la economía nacional y no se limita a los sectores que desempeñaron el papel protagónico.”

Essa é uma primeira questão crucial na discussão sobre o novo momento histórico de Cuba. O conjunto de mudanças na legislação e as reformas macroestruturais e internas das empresas não são passíveis de analogias com a NEP da URSS, não só

24

25

26

27

28

29

Os conceitos de descentralização e flexibilidade em oposição à planificação e centralização serviram de suporte a uma série de medidas macroestruturais – novas formas de propriedade, reestruturação do comércio exterior e descentralização e autofinanciamento das estatais –, entendidas como políticas que propõem a construção de um novo modelo e uma nova cultura econômicos.

O autofinanciamento das estatais merece um destaque especial por evidenciar uma importante mudança de paradigma que afeta a natureza mesma do Estado cubano. Sob a justificativa da necessidade de redução do déficit orçamentário (uma das estratégias traçadas no chamado “período especial” ), as estatais passaram a ser identificadas como “mais um setor da economia”, perdendo na

30

31

Revista Economia y Desarrollo, n. 01/1996-p. 22

FUNCIONAMENTO ECONÓMICO

Programa de medidas

apertura al capital extranjero

desarrollo del turismo

modificación del decreto ley 50.

descentralización del Com. Exterior

despenalización del dólar

creación de las UBPC

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

?

?

??

?

?

?

-

-

-

-

-

-

-

-

-

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

+

cen-traliz.

descen-traliz.

flexibi-lización

pian mercado

reactivación del trabajo por cuenta propia

readecuación del Estado y Gobierno

programa de ajuste fiscal (1994)

ley tributaria 1994

nueva legislación laboral

mercado agropecuario

mercado de productos industriales

ampliación del cuentapropismo

ley de inversión extranjera

apertura de casas de cambio

redimensionamiento

perfeccionamiento de la ley tributaria

inicio de la reforma bancaria

pelo total distanciamento de contexto histórico mas, principalmente, pela natureza estrutural das medidas adotadas em Cuba.

O quadro a seguir aponta tendências do funcionamento econômico na segunda metade dos anos 90.

24

25

26

27

PUERTA RODRÍGUEZ, H. Relaciones económicas Unión Europea-Cuba, análisis de sus perspectivas. Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1997, p. 130.

CARRIAZO MORENO, G. Cuba: câmbios econômicos. Revista Economia y Desarrollo, n. 2/1996, p. 15.

“[...] función que en la actualidad pasan a compartir las empresas mixtas, las representaciones de firmas extranjeras e, incluso, numerosas empresas estatales, lo cual las acerca a las condiciones del mercado. [...] Ya a finales de 1993 se había descentralizado la función del comercio exterior y unas 240 entidades estatales habían sido autorizadas a efectuar su comercio exterior directamente, cuando solo eran cincuenta en 1989.” Idem, n. 2/1996, p. 13.

“El Banco Central posee autonomía orgánica y personalidad jurídica independiente. Este es el encargado de formular la política monetaria, y una vez aprobada, dirige de forma independiente su aplicación.” HIDALGO DE LOS SANTOS, V.; GANCEDO GASPAR, N. M. Reforma del Estado y equidad: la experiencia cubana. Revista Economia y Desarrollo, n. 1-2/1998, p. 39.

..

28

29

30

31

CARRIAZO MORENO, G. Cuba: cambios económicos. Revista Economía y Desarrollo, n. 2/1996, p. 26.

Em 1921 o X Congresso implanta a Nova Política Econômica (NEP), em conseqüência da profunda crise das forças produtivas na jovem URSS após a guerra civil. Dentre as principais medidas adotadas estavam: imposto progressivo em gêneros, restabelecimento do mercado e economia monetária, concessões aos capitalistas estrangeiros em empresas mistas no setores de minas e atividades florestais. Tais medidas tinham como marco referencial a continuidade do monopólio do Estado sobre o comércio exterior. Ver BROUÉ, Pierre. União Soviética: Da Revolução ao colapso. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996.

HIDALGO DE LOS SANTOS, V.; VIDAL ALEJANDRO, P. e TABARES NEYRA, L. Equilibrios monetarios y política económica. Revista Economía y Desarrollo, n. 2/2000, p. 76.

Frente à dissolução da URSS e do CAME o governo cubano instaura um período de ajustes severos na economia. Ver CARRANZA, J.; GUTIÉRREZ, I. e MONREAL, P. op. cit.

78 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário

prática seu status de núcleo central econômico. Tal lógica reflete a opção pela teoria das

“vantagens competitivas” segundo a qual as empresas individuais adquirem maior relevância no mercado internacional, na medida em que “[...] las decisiones de las empresas transnacionales de transferir tecnología, invertir y generar corrientes de comercio internacional, pueden influir en gran medida sobre la competitividad internacional de los países en desarrollo.”

Essa opção é colocada como contraponto à teoria clássica das “vantagens comparativas” de Ricardo , em que é defendida a tese de que o comércio beneficia a todos e cada país se especializa na produção daqueles bens que dispõem de menores custos relativos. A combinação dos conceitos de descentralização/flexibilização com os de rentabilidade/eficiência/competitividade levam à idéia de individualização do parque industrial estatal. Inicialmente optou-se pela redução dos gastos com subsídios para as estatais, passando ao autofinanciamento, ou seja, o Estado passou a economizar com aquelas.

Tais medidas, que poderiam ser analisadas como emergenciais diante de uma conjuntura internacional adversa, refletem a adoção de uma nova lógica econômica onde os conceitos de rentabilidade/competitividade/autofinanciamento impõem uma dinâmica darwinista aos meios de produção administrados pelo Estado.

Essa dinâmica darwinista – sobrevivência do mais forte – se materializou numa drástica redução do subsídio às estatais e a um giro de prioridades, financiando as concessões privadas através das Unidades Básicas de Produção Cooperativas (UBPC) , como mostram os quadros abaixo.

32

33

34

Temos portanto um processo combinado de reinserção internacional e reforma estrutural em Cuba onde as novas geografias do comércio internacional vem produzindo internamente mudanças de cunho estrutural com marcada tendência à absorção de paradigmas da economia de mercado.

Algumas questões sobre Cuba e América Latina pós-11 de Setembro

Segundo dados do Ministério para a Inversão Estrangeira e a Colaboração Econômica, Cuba terminou o ano de 2002 com 403 associações econômicas internacionais ativas, sendo 82 delas radicadas no exterior.

Das informações coletadas no ano de 2003, aparecem entre os sócios estrangeiros com maior participação nos negócios com o arquipélago a Espanha com 105 associações, Canadá (60) e Itália (57). Do total das inversões, 56% provêem de negócios com a União Européia.

Desde que Cuba iniciou o processo de inversão estrangeira foram autorizados 578 negócios e dissolvidos 175 por vencimento dos prazos acordados contratualmente.

Se mantém relações de colaboração econômica com 163 países, essencialmente na África, Europa, Caribe e América Latina. Durante o ano de 2002 houve um maior desenvolvimento nos vínculos com o Caribe, África e União Européia e, por países, se avançou significativamente com Venezuela, China e Canadá.

Quanto às áreas de onde operam os negócios estrangeiros, somam 34 setores, sendo que os de maior expressão são os de prospecção e extração de petróleo, minérios em geral, particularmente o níquel, telecomunicações e turismo. Depois há uma grande

35

36

Subsidios a empresas estatales

Fonte: Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1998, p. 37.

Recursos destinados a las UBPC

Fonte: Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1998, p. 38.

32

33

34

JIMÉNEZ GÓMEZ, F. Globalización, desarrollo tecnológico y eficiencia económica: sus crecientes desafios. Revista Economía y Desarrollo, n. 2/2000, p. 71.

David Ricardo (1772-1823). Referência ao economista da escola clássica que trabalhou com a idéia de valor-trabalho, sendo utilizado como referencial nos estudos fundadores do marxismo. Ver FUSFELD, D. R. A Era do Economista. São Paulo: Saraiva, 2001.

Segundo dados quanto à extensão de formas de propriedade privada no

campo: “[...] coexistem 1.161 cooperativas de productores agrícolas privados y 86.000 productores agrícolas independientes que, junto a las UBPC abarcan el 73% de la tierra cultivable del país.” CARRIAZO MORENO,G. Cuba: câmbios econômicos. Revista Economía y Desarrollo, n. 3-4/1996, p. 18.

LOMAS, M. Balance del Ministerio para la Inversión Extranjera y la Colaboración Económica. In: Granma. Habana, 28.01.2003, p. 3

Idem, p. 4.

35

36

..

História & Luta de Classes - 79

diversidade: indústria alimentícia, ligeira, siderúrgica, eletrônica e de materiais de construção e, mais recentemente, nos setores imobiliário e energético.

Percebe-se aí a grande abrangência das inversões e associações com empresas estrangeiras em Cuba também no início dos anos 2000. Em que medida essa tendência tende a se fortalecer é uma questão de hipóteses.

Algumas declarações recentes – de 2005 - nos dão algumas pistas do quadro atual, como as abaixo:

“A economia cubana crescerá 9% neste ano, segundo anunciou o ministro da Economia e Planejamento, José Luis Rodríguez, na abertura do Quarto Congresso da Associação Internacional de Economistas e Contadores de Cuba.”

Recente feira internacional realizada em Cuba mostra, por outro lado, a existência de contratos econômicos com empresas norte-americanas ao mesmo tempo em que é enfatizada a estratégia de construção da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA).

“Contratos com entidades norte-americanas, venezuelanas, chinesas e canadenses são o prato forte da principal bolsa de comércio de Cuba. [...] a representação dos EUA à feira se manifestou na presença de 188 companhias provedoras de alimentos e 380 empresários de 31 estados[...].”

Temos então informações parcializadas que dão conta de uma situação de dubiedade e novas contradições colocadas entre, de um lado, um projeto de integração latino-americano com conotações independentizantes e, de outro, a continuidade e extensão da abertura ao mercado capitalista de natureza imperialista.

Essas novas contradições, por sua vez, se dão num novo ambiente conjuntural na América Latina onde as sucessivas vitórias eleitorais de plataformas de centro-esquerda (como uma expressão distorcida da retomada de mobilizações de cunho anti-imperialista) e as enormes dificuldades do Império na implantação da ALCA são expressão regionalizada

37

38

39

40

de um novo momento na conjuntura internacional. A retomada do internacionalismo, mesmo que difuso e fragmentário, questiona a ordem internacional pela própria natureza da globalização neoliberal.

Nesse marco de ofensiva e resistência, de acirramento das contradições do sistema capitalista no início do novo século, Cuba aparece resignificada como expressão de resistência ao neoliberalismo na América Latina.

Algumas idéias sobre a reestruturação em Cuba: um processo de restauração capitalista em curso

A popularização generalizada da figura de Che Guevara, presente em todos os atos de resistência mundo afora, para além de sua figura carismática e mitológica, expressa um sentimento geral de profunda simpatia com a Revolução de 59, o povo cubano e sua impressionante resistência ao poderio estadunidense.

Nesse sentido há um sentimento geral na maioria da esquerda de preservar o regime cubano, de poupar-lhe críticas no momento em função do inimigo maior, de relevar desvios possíveis e de entender que o governo está fazendo tudo o que pode dentro de determinados limites, etc.

Para entendermos o que se passa em Cuba é fundamental a crítica às limitações ontológicas do modelo do “socialismo real” como uma saída de longo prazo e de superação positiva ao capital.

A manutenção do aparato polí t ico/ administrativo/militar da Revolução de 59 não significa, por si só, a continuidade do processo histórico ao qual foi gerado. Assim como China, Coréia e Vietnã, a situação de Cuba pode ser caracterizada como sui generis na medida em que, diferentemente dos desdobramentos da crise no Leste Europeu, o regime político não foi derrubado mas as estruturas sócio-históricas que o geraram sim.

Essa é uma das questões importantes na discussão sobre o modelo do “socialismo real”: a manutenção de alguns regimes políticos desse modelo permite-nos classificá-los automaticamente como ainda no campo do socialismo? E seus novos modelos econômicos?

Hoje sabe-se que o esgotamento do modelo fordista de produção, em algum momento entre as décadas de 70 e 80, refletiu-se de forma dramática

41

37

38

39

40

LEE, S. Pérdidas causa el bloqueo em sensibles sectores de la economia. In: Granma Internacional. Habana, 28.01.2003, p. 3.

PAGÉS, R. Economia cubana crescerá 9% neste ano. Granma Internacio-nal. Disponível em: http://www.granma.cu/português/2005/noviembre/vier25/49economia.html.

Dado o espaço desta matéria não foi possível desenvolver aqui uma análi-se sobre a dubiedade do discursivo bolivariano.

ORAMAS, J. Contratos por mais de U$$ 400 milhões. In: Granma Inter-nacional, 01.11.2005. Disponível em:

..

..

http://www.granma.cu/portugues/2005/noviembre/un1/45contratos.html.Na formação social de Cuba a herança colonial monocultora e dependente

do mercado externo apresentou certas continuidades após a Revolução de 59 no tipo de relações estabelecidas com o bloco do Leste Europeu, mantendo parte da tradição histórica do modelo de “vantagens comparativas”, típica dos países agro-exportadores. Ver LE RIVERENT, J. Historia econômica de Cuba. La Habana: Ed. Ciencias Sociales, 1981; ACOSTA, J. Cuba: de la neocolonia a la construcción del socialismo. Economía y Desarrollo, n. 19-20. Habana: Universidad de Habana, 1973.

41..

80 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário

no Leste. No início dos anos 90 Robert Kurz já apontava que a chamada crise do Leste era em grande parte não a crise do socialismo mas sim a expressão da crise do modelo produtivo capitalista em seu elo mais frágil, que eram as economias híbridas do Leste Europeu.

Esta é uma idéia-chave importante para entender a essência do colapso do Leste Europeu para além das questões de gerenciamento burocrático-militar do aparato de Estado. É plausível a hipótese de que muitas das rebeliões de massas ocorridas e que redundaram na queda “em cadeia” dos regimes no Leste, refletissem, ao contrário da versão triunfalista de vitória do capitalismo, exatamente o seu contrário.

É plausível a hipótese de que, guardadas todas as proporções das particularidades históricas da região, houvesse em curso um processo de restauração capitalista, subterrâneo, gestando-se e sendo administrado pelo aparato de Estado, no marco da crise de acumulação capitalista mundial e cujo modelo de ‘socialismo real’ – engessado pelo burocratismo e refém do abandono do internacionalismo como via para o socialismo – não apontava saídas possíveis fora da adaptação à economia de mercado.

A combinação entre a reinserção internacional, os limites da formação social específica de Cuba e a lógica política do regime cubano (monolitismo de partido único e uma burocracia estatal que detém privilégios em relação à maioria da população) objetivamente apontam para uma reestruturação que privilegia o capital em detrimento do trabalho, aprofundando mecanismos de economia de mercado através da legalização de novas formas de acumulação capitalista, o que implica em uma desestruturação gradativa dos alicerces sócio-jurídicos da Revolução de 59.

Cuba sem Fidel: algumas tendências políticas do imperialismo para a sucessão

Não há dúvidas de que Fidel Castro se confunde com a própria Revolução Cubana e sua influência pessoal é enorme e simbólica de toda uma etapa histórica. No entanto, segundo Martin Hernandez, foi esse enorme prestígio que permitiu a aplicação,

42

43

por dentro do regime, de um processo de restauração sem grandes sobressaltos por parte da população.

Portanto, o que estaria em jogo hoje não seria a restauração ou não, mas sim um processo de desestabilização do mesmo regime que hoje garante vultosos lucros para as empresas capitalistas que lá aportam capital.

Segundo o autor e sua hipótese, a política atual dos imperialismos norte-americano e europeu é o de “pressionar sem desestabilizar”. “Por que não querem desestabilizar o regime cubano? Porque é com esse regime que está sendo restaurado o capitalismo. Então, por que pressionam por uma saída ‘democrática’? Porque os diversos setores da burguesia mundial buscam, mediante a legalização dos partidos políticos e as eleições, ganhar terreno no interior do processo de restauração, tanto em relação aos outros setores burgueses como frente ao próprio governo que hoje tem o controle do processo, o que está dando origem a uma nova burguesia ligada ao Estado.”

Essa política cautelosa, digamos assim, por parte tanto do imperialismo norte-americano quanto do europeu, tem evidentes diferenças, na medida em que a enorme pressão da burguesia cubana exilada no período da Revolução sobre o imperialismo estadunidense o coloca em desvantagem na corrida por espaços em Cuba.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Caleb McCarry , coordenador da Comissão de Assistência para uma Cuba Livre evidencia essa tendência de pressão sem grandes sobressaltos. Perguntado se os EUA estariam dispostos a ter relações com quem quer que seja o eleito pelos cubanos, mesmo que seja um “Castro”, responde: “O processo de transição, um processo que tem de culminar em eleições democráticas, livres e justas, é um processo que deve ser liderado por cubanos, somente os cubanos podem definir seu futuro democrático.”

Para além do evidente cinismo quanto à velha retórica da democracia, desgastada mais recentemente pelos escândalos envolvendo Guantánamo e Abu Ghraib e o desastre da política de apoio à tentativa de golpe contra Chávez na Venezuela, em 2002, uma política de

44

45

46

47

48

42

43

44

45

46

KURZ, R. O colapso da modernização: Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

HERNANDEZ, M. Cuba: O que virá depois de Fidel? In: Marxismo Vivo: Revista de Teoria e Política Internacional. São Paulo: Ed. José Luis e Rosa Sundermman, n. 14, 2006.

No estudo realizado para a elaboração de minha dissertação, há uma parte específica que aborda a exploração da mão-de-obra cubana altamente qualificada, com uma série de vantagens para o capital, na medida em que o Estado subsidia salários indiretos, fruto das conquistas da Revolução.

HERNANDEZ, M. Op. cit., p. 10. Oficialmente, ele é o coordenador da Comissão, órgão do Departamento de

Estado criado por George W. Bush e a secretária Condoleezza Rice em 2003

para “cuidar da transição de Cuba para a democracia”, mesmo antes de Fidel Castro dar qualquer sinal de que deixaria o poder.

Folha de São Paulo, Caderno A16, 07.08.2006.Ambas se constituem, atualmente, em prisões políticas para suspeitos de

atividades terroristas. Abu Ghraib, no Iraque, tornou-se conhecida mundialmente em 2004 pelas fotos de abusos cometidos por soldados dos EUA. Já Guantánamo em Cuba, tem sido alvo de denúncias de abuso e tortura, conforme relatos de suspeitos libertados a entidades de direitos humanos. A ONU pede o fechamento da prisão. Com apenas 116 km quadrados e conquistada logo no início da Guerra Hispano-Americana, em 1898, Guantánamo foi a primeira base naval estadunidense fora de seu território. Ver Folha de São Paulo, 02.04.2006.

47

48

História & Luta de Classes - 81

intervencionismo em Cuba não seria uma política inteligente na atual conjuntura internacional.

Ao contrário do que a maioria da esquerda mundial tende a perceber, é possível apontar como uma análise plausível a contradição entre a necessidade do capital internacional abrir o regime para melhor se colocar diante da partilha dos meios de produção e o temor de grandes sobressaltos. Por quê?

Talvez porque corre-se o risco de enfrentar levantes que, para além das exigências de implantação dos mecanismos formais da democracia burguesa, evidenciem as insatisfações pulsantes em Cuba contra o que de fato é um processo de restauração em curso.

De toda sorte, não podemos fugir nem adiar esse debate. Nele, muitas das certezas antigas e velhas polêmicas no interior da esquerda mundial deverão ser analisadas sob novos prismas. As experiências de restauração no Leste Europeu comparativamente à China são um bom caminho de início de debate. A experiência de 90 para cá tem nos mostrado que a manutenção do regime do PC na China não só não impediu como acelerou, organicamente, a restauração capitalista.

Esperamos que o povo cubano saiba, mais uma vez, defender as bases da Revolução de 59 e que a esquerda latino-americana aponte o caminho da mobilização popular com um programa anti-burocrático e anti-capitalista. No mais, somente o binômio História e Luta de Classes poderá responder.

49

49 No quarto ano de ocupação do Iraque, felizmente o Governo Bush não tem o

que comemorar. O efeito da política ofensiva mostra-se um tiro no próprio pé. A resistência iraquiana expande-se crescentemente e angaria simpatias globais; o governo amarga uma estrondosa derrota nas eleições do Congresso estadunidense como reflexo da insatisfação interna enquanto que nas tropas do exército ianque o descontentamento e desejo de voltar para casa anarquiza a lógica da ocupação.

82 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário

Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática

dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência

argentina1

Katia I. Marro2

meados da década de 90, é importante situá-lo numa dinâmica histórico-estrutural que expressa significativas mudanças na classe trabalhadora, e conseqüentemente, nas formas de expressão do conflito de classes. Próprio do momento histórico atual expressa uma redefinição em processo da identidade das classes subalternas, no quadro de uma mudança, também em processo, da forma histórica da identidade operária.

Estes movimentos formam parte dos fenômenos de protesto urbano, associados ao crescimento dos bairros pobres habitados por trabalhadores desempregados expulsos dos centros fabris, que confluiriam com outros trabalhadores historicamente imersos numa precariedade laboral estrutural. Suas primeiras manifestações se dariam através dos cortes de estradas, a partir dos quais ficariam evidenciados traços de confluência com uma herança histórica de luta e organização de classe: a tática dos cortes de estradas se remonta à longa história da classe trabalhadora, que por meio dos piquetes impediam que as greves fossem desarticuladas. No entanto, tanto trabalhadores desempregados, quanto empregados e empobrecidos reutilizam essa tática, durante a década de 90, como forma de obtenção das suas reivindicações, de construção de um cenário de negociação com o governo e de visibilidade social das suas demandas. Se o trabalhador empregado conta com a capacidade de interromper o ciclo produtivo através da greve, o piquete tem uma dimensão territorial porque pode bloquear a circulação de mercadorias através do corte de estradas . Voltaremos

3

4

. . .

P orque refletir sobre alguns processos organizativos construídos a partir dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados? Se suas lutas expressam uma reaparição do conflito em torno do trabalho com novas dimensões, herdando experiências políticas precedentes e recolocando sobre novas bases o conflito de classes na realidade Argentina contemporânea, talvez um dos seus méritos seja a sua capacidade para desnudar as características regressivas da intervenção do Estado frente aos conflitos sociais. Ao mesmo tempo, suas lutas trazem preocupações que desafiam e interrogam as experiências precedentes históricas da esquerda nos seus legados de resistência popular.

A prática destes movimentos de politizar as necessidades cotidianas dos setores subalternos constituindo-as como frentes de luta e organização e contrapondo alternativas concretas aos intentos governamentais de despolitização, privatização e individualização dessas necessidades, tem importantes ressonâncias universais. Lutas sociais que são germens de conquistas históricas, de extrema significação para a construção de uma realidade social mais progressiva, que caminham à conquista de grãos mais altos de liberdade e emancipação social do gênero humano.

Para uma breve historização dos MTDs No cenário de degradação das relações laborais

e perda do emprego como elemento integrador, fazem-se evidentes as atuações e intervenções políticas dos trabalhadores desempregados. Embora este se torne um ator político destacado a partir de

1

2

..O seguinte artigo traz algumas idéias presentes no nosso trabalho, “De luchas, movimientos y conquistas sociales. Reflexiones a partir de la práctica del MTD de Solano”. Rosario: UNR, 2006. Entregue para publicação em maio de 2006.Lic. em Trabalho Social pela UNR (Argentina), Mestre em Serviço Social e

Doutoranda da ESS/UFRJ. Integrante do Grupo de Estudos da América Latina (GEAL) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM).

3

4

Cf. PETRAS, James. El movimiento de los trabajadores desocupados en Argentina. Revista Libre Pensamiento, 2002. Disponible en http://www.cgt.es/publicaciones/ librepensamiento/primavera-02/Parados-Argentina.pdf.

COLECTIVO SITUACIONES. 19 y 20. Apuntes para el nuevo protagonismo social. Buenos Aires: De mano en mano, 2002. p. 91 y ss.

..

História & Luta de Classes - 83

depois a esta forma atual de reterritorialização do conflito social.

Os primeiros cortes de estradas nacionais significativos aconteceriam em cidades do interior do país (em 1996 e 97, Cutral-Có e Praza Huincul na província de Neuquén e na província de Jujuy; em 1997, Tartagal e General Mosconi em Salta e Cruz del Eje em Córdoba), ligados à generalização da precarização das condições de trabalho e as privatizações das empresas petroleiras estatais (em Neuquén, a YPF tinha sido privatizada no ano 1991), sendo seus atores principais setores de classe que tinham conhecido uma estabilidade relativa no seu emprego e que através destes protestos “intermitentes”, procurariam dar visibilidade às suas demandas. Eles se caracterizariam por serem massivos, com a presença de mais de uma fração social (trabalhadores ocupados em diversos ramos, desempregados, pequenos proprietários, etc.), com formas de exercício da democracia direta que vão transbordando os “canais” sindicais e partidários. A imprensa os batizaria como “piqueteros”, mas essas lutas resignificariam o atributo, apropriando-se dele e superando os preconceitos ideológicos que o constituía.

Anos depois – onde começaria um novo momento ascendente de lutas, produto da saturação dos “limites” construídos em torno da Aliança –, a tática proliferaria por todo o país, convertendo-se num elemento principal de luta. Assistiríamos a uma multiplicação de organizações de trabalhadores desempregados para além das práticas político-partidárias e sindicais existentes, que tão longe de indicar uma perda da significação do conflito de classes, expressa sua centralidade a partir de novas expressões históricas. Posteriormente, essa “saturação” se evidenciaria de forma extrema nos acontecimentos de 19 e 20 de dezembro de 2001, onde não só a atuação das forças sindicais, mas também dos partidos políticos de esquerda, ficaria por momentos superada pela dinâmica dos protestos sociais.

Deste modo, no final dos anos 90, aos enfrentamentos dos ex-trabalhadores petroleiros com a polícia, em General Mosconi (Salta), se somariam os crescentes cortes de estradas na Grande Buenos Aires (La Matanza; Florêncio Varela; Quilmes), caracterizados pela sua massividade, a tomada de decisões em assembléias e pela sua contundência e duração. Seus atores principais são exclusivamente trabalhadores desempregados (onde as demandas giram em torno da obtenção de programas de

“emprego”), cuja organização não se dissolveria com o término do corte de estrada. A importância que tem o corte de estrada para estes movimentos populares, na sua capacidade de perturbar a produção econômica e produzir um fato político, fica evidenciada nas seguintes palavras de um referente piquetero do MTD de Solano que fala sobre a potencialidade de uma luta que vem trasladando o eixo do conflito da fábrica às estradas: “Quando o trabalhador era operário numa empresa e tinha exigências que o patrão não aceitava terminávamos tomando a empresa. Nós, hoje, não temos empresa para tomar. Ao tomar a estrada, descobrimos que com essa tomada travamos os meios de circular [...]. A produção se paralisa. Para nós, como desempregados, é uma ferramenta de luta valiosíssima”.

Assim, as diversas experiências dos MTDs, muitas herdeiras de outros germens organizativos, irão se consolidando a partir da ressignificação dos programas governamentais de “emprego”. Disputando e confrontando com as práticas eleitoreiras dos partidos dominantes (sobretudo do Partido Justicialista), estes movimentos lutariam pela organização autônoma desses subsídios e da contraprestação exigida, com vistas à superação do seu uso clientelar e partidário.

Durante o ano de 2000, os diversos e heterogêneos MTDs – através de duas assembléias e ações de alcance nacional – vão se instalando como ator coletivo de importância, a partir de uma forte ativação dos protestos na periferia urbana de Buenos Aires, e não mais através de um movimento operário que teve historicamente nos metalúrgicos a sua ponta de lança.

Sobre suas formas organizativas: autonomia, território e horizontalidade

Dentre os MTDs que se reivindicam autônomos às centrais sindicais, ao Estado e aos partidos, podemos destacar os seguintes princípios organizativos: a horizontalidade, a democracia direta e a autonomia, caracterizando uma luta que reivindica um sentido anticapitalista.

O debate em torno da autonomia atravessa muitas experiências político-sociais da Argentina contemporânea; e isso não é casual se levamos em consideração as características da intervenção regressiva do Estado em face dos conflitos sociais e a degradação da vida política acontecida durante os últimos anos. Reconhecendo que a autonomia política é uma precondição fundamental da formação de um sujeito não mais subalterno, mas capaz de abonar

5

5 Entrevista realizada com representantes do MTD de Solano pelo Jornal Pagina 12 apud FERRARA, Francisco. Más allá del corte de rutas. La lucha por una nueva subjetividad. Buenos Aires: La rosa blindada, 2003. p. 39 e 40.

..

84 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina

processos de transformação, consideramos como um signo de autonomia extremamente progressivo, a ressignificação dos programas de “emprego” governamentais presente na prática do movimento. Por outro lado, a construção de uma representação crítica das idéias dominantes, é também um momento essencial na superação de uma posição passiva por parte de qualquer experiência que se pretenda transformadora, fundamentalmente porque a luta de classes supõe também uma luta no campo das visões do mundo. Entretanto, em algumas experiências da Argentina contemporânea, a autonomia proclamada se sustenta numa certa “rejeição” das práticas da política institucional e dos “ritmos” do eleitoral. Embora não deixemos de reconhecer os “problemas” do espectro partidário argentino das últimas décadas e compreendamos que essa atitude possa ser produto de leituras críticas da conjuntura (e inclusive, acertadas), as potenciais limitações daquela consigna podem resultar perigosas para uma generalização indiscriminada da mesma. Porque certa “indiferença” em face dos processos eleitorais e dos movimentos da política institucional pode implicar práticas que, embora suponham interessantíssimos processos de construção, fiquem “isoladas” de outras experiências políticas relevantes .

Se atentarmos aos outros princípios organizativos veremos que a democracia direta e a horizontalidade seriam as formas participativas mais apropriadas para permitir um compromisso e envolvimento maior das pessoas na construção político-social a partir das suas necessidades concretas. Desta forma, se pretende que seja o coletivo o que marque a direção do movimento, as decisões, a sua construção cotidiana, onde se busca que um referente que cumpre funções esteja a serviço desse coletivo. Alguns traços de ressonância do “mandamos obedecendo” zapatista.

Por outro lado, apesar dos limites que atravessariam e que ainda hoje não estão resolvidos na prática de muitos desses movimentos, concordamos em que “para o movimento operário, o avanço na luta dos desempregados significou um claro aporte de vitalidade [...], impulsionar o desenvolvimento da organização territorial foi um bom reflexo de uma política que objetiva formular-se assumindo as profundas transformações sofridas pela classe” . Consideramos que em face das profundas transformações no mundo da produção, a organização territorial e as necessidades da vida

6

7

cotidiana, vão se convertendo em frentes de reivindicação política e social, com intentos por superar esse caráter econômico primeiro. Inclusive porque nestes âmbitos assume um caráter fundamental o trabalho ideológico-cultural em torno de determinados valores: produção de uma nova subjetividade que seja produto de um percurso coletivo que nutra e exercite uma capacidade de decisão sustentada na vida cotidiana do movimento.

Por sua vez, a questão da territorialidade resulta sumamente interessante do ponto de vista histórico, ou seja, para pensar tanto as mudanças históricas que se produzem na relação da classe operária com o território, quanto no lugar que isso tem hoje na configuração dos conflitos sociais. Se nos primórdios do capitalismo o capital fixa a classe operária em determinado espaço geográfico e físico (sejam os bairros e cidades operárias, seja a própria fábrica), em face das transformações históricas em curso encontramos com organizações na base territorial, cuja tática de luta privilegiada consta na interrupção da circulação. Então, embora reconheçamos que noutros momentos históricos, os bairros operários foram espaços de construção de sociabilidade e identidade de classe, e que, posteriormente, também existiram outras formas de organização territorial – como as dos anos 80 –, é preciso analisar que as experiências de organização territorial da qual os MTDs são expressão, evidenciam formas atuais e renovadas de habitar o território a partir de um processo de luta e resistência: enquanto o capital desterritorializa a produção e sua “sede” de circulação aparece quase que “hipertrofiada” (e desse modo, desestrutura muitas das formas organizativas precedentes), a luta piquetera não só “volta” ao território, como também, a partir de um ponto de vista simbólico, se constitui como um “antifluxo”, e de um ponto de vista mais concreto, interrompe a própria circulação .

Por outro lado, é necessário analisar que a situação particular desse setor de classe e a sua posição historicamente subordinada nas estratégias da política tradicional institucional têm influenciado iniciativas de ação direta para a consecução de seus objetivos. Tal como já foi mencionado, se destacam os cortes de estradas principais (com o fim de paralisar a circulação de bens e a produção destinada ao mercado doméstico e de ultramar) e se privilegiam formas de decisão através de assembléias, e do exercício da democracia direta (num claro repúdio às

8

9

6.Não estamos desconhecendo o caráter estruturalmente limitado da

democracia nos marcos capitalistas (eleições, vida político-institucional, sistema político), nem o acirramento de seu caráter abstrato em determinados momentos históricos (ou até o seu cancelamento, que conduz o campo popular para opções mais críticas e distantes) que torna inviável qualquer participação no seu seio.

7

8

9

MACEIRA, V. & SPALTENBERG, R. Una aproximación al movimiento de desocupados en el marco de las transformaciones sufridas por la clase obrera argentina. In Revista OSAL (CLACSO) n 5, septiembre de 2001. p. 27. FERRARA,. op. cit. p. 87.Cf. ZIBECHI, Raul. Genealogia de la revuelta. Argentina: la sociedad en

movimiento. Buenos Aires: Letra Libre/Nordam Comunidad, 2003, p. 162 y ss.

História & Luta de Classes - 85

práticas clientelistas e paternalistas dos partidos tradicionais). É importante lembrar que nos cortes de estradas (onde as famílias e militantes se instalam fazendo alimentação coletiva, colocando barracas e ateando fogo em pneus), quando o governo se decide a negociar, o movimento exige que isso seja feito com a presença de todos os militantes no piquete, numa clara resposta à cooptação própria da negociação de delegados individuais, nas dependências oficiais. Por isso, provavelmente a radicalidade das suas medidas nos primeiros momentos se derive não tanto de uma premissa ou definição política aleatória, mas da sua condição social: isso os leva a demandar respostas do Estado, embora com fortes tendências de rejeição dos “manejos” da esfera político-institucional.

As práticas de ação direta, o exercício da democracia e a reivindicação do principio de autonomia deixam em evidencia não só as limitações da vida político-democrática da Argentina contemporânea, mas também as reações em face da resposta repressiva do Estado para esses setores. Características organizativas e de luta que nos lembram às práticas de diversas experiências latino-americanas. Ação direta, democracia, território, organização de base, autonomia, horizontalidade, constituem traços que nos lembram o MST aqui no Brasil, o EZLN no México, dentro outros.

Experiências de construção de poder popularComo em várias experiências atuais latino-

americanas, em muitos destes movimentos, faz-se presente uma crítica contundente ao problema da tomada do poder entendido como algo “instrumental” (um “ponto de partida” que por si só permitiria a transformação da sociedade, subestimando processos de construção de hegemonia social) ou isolado de práticas de construção concretas. Nesta direção, muitas experiências fazem críticas severas aos “moldes” autoritários e burocráticos da experiência histórica de algumas esquerdas, à sua dificuldade para construir processos organizativos de massas, aos seus limites na consolidação de experiências democráticas capazes de potenciar o conjunto, às suas práticas de homogeneização e negação da diversidade.

Os “ensaios” e “buscas” de múltiplas organizações nesta direção são diversos e estão em processo de maturação, mas as críticas se orientam fundamentalmente: de um lado, a uma concepção “instrumental” da organização que haveria subsumido a diversidade de expressões de lutas a um suposto “objetivo final” e que teria encontrado sérias

dificuldades para questionar-se pelo seu próprio modelo de organização, estando pouco atento ao caráter processual das mudanças sociais; de outro, a uma concepção e prática de hegemonia que haveria implicado na dominação de algumas experiências por outras, negando as suas particularidades. A partir daqui, surgem discussões que contém desde outras concepções de hegemonia (unidade na diversidade) até posições que reivindicam a “idéia de rede”, onde não haveria um “centro”, mas “múltiplos centros” interdependentes entre si, ou a “imagem de um arco-íris” onde “cada cor tem seu lugar, mas nenhuma predomina”.

Para além de nomes e conceitos, parece-nos que o problema reside, não na tentativa de construir um projeto comum, mas em determinada forma histórica (autoritária, negadora das diferenças) que isto pode ter tomado, e, nesse sentido, tão longe de deixar de pensar na importância de construir tal momento político universal, resulta significativo reconhecer esses limites e superá-los em novas experiências organizativas mais democráticas. Nesta direção, consideramos que quando falamos de processos de transformação há elementos que não podem ser dicotomizados, porque estão intimamente relacionados: Pode o “quê” da organização (seus objetivos político-ideológicos) dissociar-se do “como”(suas formas de alcançá-lo)? Unidade é necessariamente incompatível com diversidade? A unidade é, necessariamente, uniformidade? Um projeto horizontal não tem “centro” ou, se se prefere, um lugar do “comum” que seja expressão do coletivo? Não é o “mandamos obedecendo” zapatista uma evidência disso?

Consideramos que o problema principal se situa no desafio de que, sem perder a autonomia nem subestimar a diversidade de cada experiência, elas possam construir um projeto societário de emancipação de forma coletiva, projeto que não só pressuponha projetos diversos, mas que os potencie na sua particularidade, a partir daquilo que os une. Isto é, o projeto comum como possibilidade de máxima expressão da diversidade e de universalização de lutas setoriais. Porque, se se considera que a construção de um projeto comum, de um momento político-universal, necessariamente implica a negação das diferenças, corre-se o risco de que o pluralismo das diversas experiências se imponha como corporativismo ou dispersão: tão longe de considerar que universalismo e diversidade se opõem, afirmamos que a diversidade nunca se realiza tão plenamente como num horizonte de

10

10 ZIBECHI, op. cit. p. 63.

86 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina

universalidade. O desafio está na possibilidade de que uma diversidadede organizações possa constituir um “centro” ou um espaço do “comum” dando direção sócio-política a um projeto coletivo de transformação, sem que isso suponha necessariamente a supressão daquilo que constitui sua riqueza.

No nosso ponto de vista, estes movimentos se constituem como experiências de construção de poder popular por terem como cenário prévio e decisivo o âmbito da sociedade civil e, desta forma, podem ter incidências progressivas na própria configuração estatal a partir das suas reivindicações e lutas universalizantes. O poder popular – recriado continuamente num processo de participação ativa, produto de uma prática ético-política tensa constituída por sujeitos e organizações que disputam projetos diversos na sociedade - expressa uma relação dialética que se estabelece entre sociedade civil e sociedade política, ambos momentos atravessados pelas lutas de classes.

O fato de que existam experiências político-organizativas de grande importância para o mundo contemporâneo que não se proponham à participação nas instituições do sistema político ou no próprio Estado, inclusive pelas próprias características particulares de cada realidade (pensemos em experiências riquíssimas como as do EZLN no México), tão longe de levar-nos à subestimação desse cenário, deve conduzir-nos à valorização das diversas dimensões e momentos que constituem um processo de conquista do poder político, das multiplicidades que integram um processo de transformação. Processo este entendido como produto de diversas experiências de poder popular que possam confluir a partir da sua diversidade – sua máxima expressão naquilo que as une –, num projeto comum de mudança social, num momento político-universal . Reconhecemos então, a relevância de diversas experiências e cenários de luta e organização, que não

11

12

diluem nem a importância de um momento político-universal nem sua expressão máxima na transformação do Estado, ou seja, na construção de formas de governo que superem sua configuração capitalista. Daí, a importância do trabalho desenvolvido por diversas experiências que se propõem uma tarefa de construção política e ideológica cotidiana e da incidência das suas lutas universalizantes na própria configuração estatal.

Tal como o destacamos antes, na América Latina contemporânea existem inúmeras experiências organizativas que resistem aos estragos causados pelas políticas neoliberais, que se alçam contra os avanços do imperialismo e seu projeto de dominação econômica e militar da região, que lutam pela democratização e conquista de direitos, todas elas responsáveis pela construção de poder popular: espaços organizativos cuja fortaleza principal reside num trabalho político-ideológico orientado à produção de um senso crítico em face da realidade histórico-social, à politização da sociedade, e à construção de sujeitos coletivos. Estas experiências de poder popular estão atravessadas pelo desafio de lutar pela consolidação de espaços de articulação e construção comuns a fim de incidir de forma mais contundente e reverter os regressivos rumos pelos quais transitam nossas sociedades; tarefa histórica que dependerá da sua multiplicação e do ressurgimento de movimentos de massas de sentido anticapitalista.

No caso particular das organizações de desempregados podemos ver como estas experiências ensaiaram formas alternativas de distribuição e uso dos subsídios assistenciais para o desemprego, evidenciando um primeiro intento de construção de critérios de justiça social mais autônomos, baseados em relações de solidariedade e na valorização da participação ativa na luta comum. Em que medida essas práticas significarão um ponto de inflexão na relação das classes subalternas com o âmbito político

reproduza a alienação política e garanta um radical espaço público. Resta esclarecer que este processo de conquista de poder se encontra absolutamente ligado às possibilidades e limites oferecidos por cada conjuntura histórica, na sua configuração societária e estatal; o que se evidencia nas distâncias existentes entre as experiências de construção de “poder paralelo”, como o EZLN, e as formas de luta do MST no Brasil, que sem estarem atreladas ao Estado, procuram incidir na sua própria transformação a partir da sua luta social. O fato de que a luta de classes tenha como terreno prévio e decisivo o cenário da sociedade civil supõe que a conquista do poder do Estado é expressão de um processo de transformação que o precede, não como centro que irradiará tal processo (como as interpretações “instrumentalistas” de certa esquerda tradicional, onde a “tomada do poder” entendida como controle do aparelho de Estado, seria o “ponto de partida” de um processo de mudanças revolucionárias), mas como expressão máxima desse processo. Assim, entendemos que os processos de transformação que se proponham a construção de uma sociedade sem exploração/dominação não podem deixar de pensar no Estado como objeto da política (o que não nega a diversidade de momentos e experiências que o constituem) a partir do momento em que a superação da propriedade privada se torna um elemento central.

11

12

..

..

Ambos entendidos como expressão e produto das decisões coletivas, direção e sentido político-ideológico dados pelo conjunto; concepção que se distancia tanto de uma perspectiva que apresenta esse “centro” como subordinador e negador do coletivo (despotismo que gera passividade), quanto de uma outra perspectiva que afirma uma multiplicidade em si, que não conflui em espaços comuns e dessa forma, nega as próprias diferenças (fragmentação que também conduz à passividade). Resulta claro que uma rede está integrada por diversos “centros”, mas, na nossa concepção, ela mesma é também um “centro” porque tem uma determinada direção definida pelo coletivo a partir da sua diversidade, ela é um “espaço do comum”. Não nos parece outra a idéia zapatista de “um mundo onde caibam muitos mundos”, e não “um múltiplo não dirigido” (COLECTIVO SITUACIONES, op. cit. p. 203) porque a busca daquele “mundo”, tão longe de não ter direção, recebe-a dos “muitos mundos” que o constituem; “mundos” que nunca se realizam tão plenamente como quando podem transcender seus próprios limites.

Consideramos aqui a conquista do poder político com um momento essencial na construção de processos de transformação, a qual encontra como terreno prévio e decisivo das lutas o cenário da sociedade civil, e sua materialização na própria transformação/superação do Estado (no seu sentido capitalista) com vistas a consolidação de uma forma de governo que não

História & Luta de Classes - 87

é um interrogante que permanece em aberto, sujeito à possibilidade de aprofundar o sentido progressivo da sua luta – situação que excede aos próprios movimentos. Entretanto, parte significativa da importância e dos traços universalizantes destas lutas sociais se encontra na sua potência de democratização da esfera pública, recriando o seu valor – não se esgotando neste elemento a sua significação histórica.

O problema do Estado e as lutas político-sociais contemporâneas

Nos dias atuais assistimos a um processo de transnacionalização da acumulação do capital e do poder sem precedentes. Esta realidade implica para nossos países um aprofundamento do imperialismo que vulnerabiliza ainda mais a já precária (pela sua dependência histórico-estrutural) soberania nacional, a partir da qual é possível situar um acirramento da tensão entre a idéia da política territorializada e os padrões de internacionalização do processo decisório e da mundialização das atividades políticas . É o processo de acumulação capitalista, sobre novas bases históricas, o que impõe um enfraquecimento dos instrumentos tradicionais da regulamentação capitalista nacional.

Neste quadro, surgem diversos debates que assinalam que a maior erosão da arquitetura do poder político associada ao Estado moderno soberano haveria recolocado a pergunta pelo sentido e alcance da atividade política centrada nessa figura.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que a “soberania estatal no território nacional” e os mecanismos políticos de regulamentação nacional, nos marcos da sociedade capitalista, foram historicamente uma expressão política e estiveram sujeitos às necessidades econômicas do próprio movimento do capital que já nas suas origens traspassa as “barreiras” nacionais. A posição subalterna das economias latino-americanas evidenciou historicamente uma vulnerabilidade estrutural da sua soberania nacional – exemplo extremo e “periférico” das suas determinações capitalistas.

Tendo em claro isso, e considerando a inédita velocidade da movimentação do capital e o fortalecimento esmagador de instâncias de poder supranacionais, traços estes distintivos de outras

13

etapas históricas, entendemos que nos dias atuais o que entra em crise são os mecanismos capitalistas de regulamentação nacional próprios do período precedente - as formas contemporâneas de dominação política atreladas ao Estado apresentam uma nova complexidade, onde se acirram as contradições entre mecanismos políticos territoriais/nacionais e a transnacionalização do capital, produto de uma hipertrofia do capital financeiro e do aumento do poder de organismos internacionais.

Neste quadro, as reformas neoliberais são expressão de uma nova etapa histórica onde o modelo de acumulação guarda um “minúsculo” lugar para as concessões sociais, o consumo de massas e as negociações políticas. Na Argentina, configura-se um cenário onde a degradação/redução que sofre a política se traduz no detrimento dos espaços consensuais no seio do Estado e se complementa com o uso recorrente dos mecanismos repressivos para a regulação dos conflitos sociais. O que nos importa destacar deste processo são os mecanismos ideológicos que, num intento de retiro das classes subalternas da esfera pública, apostaram no descrédito das instituições globalizadoras da política e no próprio Estado. Por isso, o desmonte neoliberal que “acusou” ao Estado de “paternalista”, “ineficiente”, “gerador de uma cidadania passiva” (e que transfere sua responsabilidade por direitos sociais ao indivíduo e à família) foi o complemento de um processo político de “descidadanização” historicamente regressivo, que se propôs levar a níveis inauditos a passividade e a despolitização . Seus resultados mais visíveis foram, e ainda são, as políticas sociais focais que quando não privatizam e despolitizam o conflito

social – excluindo o trabalhador da cena política e

tornando-o “objeto” dessas regressivas intervenções –, transformam-no em objeto de intervenções repressivas e criminalizantes.

Paradoxalmente é justamente o próprio Estado que se torna um dos elementos chaves no chamado processo de globalização, o que traz significativas transformações nas suas funções econômicas e políticas. A partir do que, coincidimos em que “[...] o Estado e o sistema de Estados permanecem no coração da política mundial [...]. Ademais, o nível nacional da política continua a ser o centro insubstituível da legitimidade coletiva e dos projetos de sociedade de cada país [...]” .

14

15

13

14

..Cf. GOMEZ, José Maria. Globalização da política. Mitos, realidades e dilemas. In Revista Praia Vermelha 1. Estudos de política e Teoria Social. Pós-graduação da ESS/UFRJ, 1997. p. 31.

Não há aqui a pretensão de desconhecer as limitações histórico-estruturais do espaço público em países como Argentina, derivadas não só das desigualdades de classes das nossas sociedades, mas também do seu caráter

subalterno e periférico. O que procuramos mostrar é o aparente paradoxo da retórica neoliberal que usou esses argumentos para produzir contra-reformas privatizantes que derivaram numa maior destituição do caráter público do Estado.

GOMEZ, op. cit. p. 41.15

88 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina

Não restam dúvidas que este cenário impõe profundos dilemas tanto para as lutas que reivindicam uma dimensão internacional quanto para aquelas que se limitam ao território nacional. A proliferação de movimentos de ação direta e a diminuição da valorização dos espaços de poder estatal em diversos países da região durante a década de 90 fazem parte de uma realidade social que deve ser rigorosamente historicizada. O potencial de muitas destas experiências latino-americanas de ação direta deriva da sua fertilidade na construção de processos organizativos que encontram na sociedade civil seu foco principal, o que não nega que suas conquistas sejam susceptíveis de serem materializadas no próprio seio institucional do Estado, arena fundamental de luta.

Se em determinadas condições históricas (por exemplo, a situação da Colômbia é claramente diferenciada da Argentina, ou das ditaduras militares comparadas com os dias atuais) o endurecimento e autoritarismo do Estado tornam quase impossível a materialização de lutas no seu seio, e só se faz possível, a organização resistente de setores da sociedade civil, isso não pode conduzir-nos, sobretudo em períodos democráticos (por mais restritos e formais que sejam), a uma “satanização” do Estado, a uma leitura unívoca e monolítica das suas tramas institucionais. Esta afirmação não negligencia nem a importância essencial de experiências populares que constroem no terreno “extraparlamentar”, nem a sua particularidade em processos mais abrangentes de transformação social.

Na Argentina, o discurso neoliberal da “cultura da dependência” e da “passividade” que geraria o Estado com sua intervenção, argumento usado nos anos 90 para legitimar seu desmonte regressivo, nunca foi tão real e contraditório como nos dias atuais, onde o perfil da sua intervenção na “questão social” ou a sua desresponsabilização que delega determinadas funções sociais em organizações privadas (sejam sociais ou empresariais), não gera um direito, gera um beneficio. Nesse sentido, e sem deixar de reconhecer o caráter tutelar e antidemocrático que tinham os direitos garantidos pelo Estado com precedência ao período neoliberal, consideramos que resulta potencialmente regressivo negligenciar a importância de tais conquistas históricas ou a necessidade de aprofundá-las no seio do Estado. Se de um lado o Estado, ao reconhecer demandas sociais procura sua fragmentação, despolitização, burocratização ao tempo que as reduz e desliga da totalidade social, de outro ele é também expressão de lutas sociais que lhe impõem conquistas históricas que ampliam seus limites (embora sempre

de forma “tolerável” pela ordem burguesa).A re-significação dos programas sociais,

ensaiada pelos MTDs é uma clara expressão de como determinados recursos estatais orientados a produzir desmobilização, contraditoriamente, quando foram mediados por lutas autônomas, puderam ser também utilizados para potenciar essas experiências; germens de poder popular susceptíveis de imprimir suas exigências universalizantes nessa materialidade institucional.

Poderíamos pensar então que um dos elementos que explica a significação histórica destas experiências se encontra na sua potencialidade para alimentar a construção de uma esfera pública democrática e o aprofundamento da socialização da vida política; movimento de questionamento da alienação que restringe a política nas “margens” estatais. Sua importância radica nessa forma de recriar e habitar o espaço público a partir das lutas sociais, do reencontro com as próprias capacidades políticas e sociais coletivas. Portanto, são práticas político-sociais que colocam na cena histórica o problema da socialização do poder de decisão, da apropriação do público e de um exercício radical de direitos a partir da construção de espaços coletivos – isto é, os direitos mediados pelas lutas sociais podem se constituir como expressões de afirmação da própria soberania popular.

História & Luta de Classes - 89

Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano

Carla Ferreira1

uito se tem escrito e discutido sobre o processo bolivariano que experimenta a Venezuela nos últimos anos, na tentativa de compreender o caráter da mobilização popular de massas que tem lugar no país e sua liderança principal, o Presidente Hugo Rafael Chávez Frías. Neste artigo, buscamos contribuir para esse debate resgatando a experiência histórica da ideologia bolivariana na Venezuela dos séculos XIX e XX. Buscamos, ainda, levantar ao longo da análise algumas questões que devem ser observadas para um acompanhamento crítico, a partir de uma perspectiva de classes, dos rumos ideológicos desse processo.

O fenômeno do chavismo pode ser parcialmente caracterizado como uma apropriação específica do bolivarianismo. Nesse sentido, o chavismo compartilha o bolivarianismo com outros sujeitos sociais, no presente e no passado, e, nesse processo, uns e outros fazem usos de diferentes aspectos da capacidade mobilizadora dessa ideologia. O chavismo se constitui, portanto, como uma forma de consciência social prática, uma ideologia cujo conceito não se define segundo critérios gnoseológicos de verdade ou falsidade ― e, portanto, afasta-se da noção de "falsa consciência". Mas, consiste, isso sim, em uma forma de consciência social através da qual os homens e as classes se engajam nas lutas sociais.

Avançando um pouco na compreensão do conceito de ideologia aqui operado, destacamos que o conteúdo do chavismo, como ideologia bolivariana

2

histórica, não se legitima mediante uma maior ou menor aproximação com o Bolívar histórico. Ou seja, o processo ideológico ao qual nos referimos se serve sobretudo da memória social como recurso legitimador para distintos projetos de futuro. A ideologia bolivariana se define, portanto, pelo uso da memória sobre Simón Bolívar na luta social do presente, articulando uma determinada visão de mundo.

O discurso de Hugo Chávez reivindica recorrentemente o legado do líder da independência sul-americana. Bolívar, apesar de haver sido o filho da principal família da oligarquia mantuana venezuelana, transcendeu os limites de sua classe social. Assim, além de impor-se sobre sua época como representante da luta pelo livre comércio tão ambicionado pela oligarquia crioula, Bolívar assume atributos mais universais, ao proclamar também a liberdade dos escravos, em 1816. A partir de então, a abolição da escravatura será objeto da ação e reivindicação constante de Bolívar. Porém, mesmo quando ainda não havia incorporado integralmente a luta antiescravista a seu ideário, alguns traços de sua biografia viriam a contribuir para compor o significado bolivariano que coagularia na memória social e viria a ser, ainda que não explicitamente, fartamente referenciado no discurso chavista.

3

4

5

M

1

2

3

.Mestre em História pela UFRGS.WEISSMAN, Esther. A ideologia e sua determinação ontológica. Revista

Ensaio. n. 17-18, 1980, p. 420. Sobre o conceito de ideologia aqui aplicado ver também MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

A memória é um processo social seletivo de recordação, esquecimento e mesmo invenção que estabelece relações estruturais com fatos mas não se restringe e eles. A memória é, nesse sentido, um processo essencialmente ideológico. Discutimos as relações entre memória, cultura e ideologia em suas conexões com o tempo histórico em nossa dissertação: FERREIRA, Carla. Ideologia Bolivariana. As apropriações do legado de Simón Bolívar em uma experiência de povo em armas: o caso da Guerra Federal (1858-1863). Porto Alegre, PPG-História/UFRGS, 2006.

4

5

O termo “mantuano” refere-se ao privilégio de uso de mantos ou véus sobre a cabeça, que utilizavam as mulheres das famílias de origem espanhola nascidas na América, como símbolo de distinção social.O historiador venezuelano Brito Figueroa descreve alguns dos embates de

Bolívar com outros chefes republicanos em torno do tema da abolição da escravatura. Sob as condições conflitivas de diversos anos sem solução positiva para suas petições abolicionistas, Bolívar, na condição de Presidente da República e Chefe Supremo do Exército, resolve continuar legislando de fato e promulga o Decreto de Confiscación de la hacienda Ceiba Grande y la libertad de sus esclavos, em 23 de outubro de 1820. Ver: FIGUEROA, Brito. El problema Tierra y Esclavos en la Historia de Venezuela. Caracas: Ediciones de la Universidad Central de Venezuela, 1996. pp. 349-352.

História & Luta de Classes - 91

Alguns dias antes de receber o título de “Salvador de la Patria, Libertador de Venezuela”, há um marco fundamental nesse processo. A figura histórica de Bolívar incorporará elementos que contribuirão para a construção do arquétipo do guerreiro, do revolucionário radical. Trata-se da Proclama Guerra a Muerte (Guerra até a Morte), datada de 15 de junho de 1813, a qual encerrava assim: “Españoles y Canarios, contad con la muerte, aun siendo indiferentes, si no obráis activamente en obsequio de la libertad de la América. Americanos, contad con la vida, aun cuando seáis culpables. Cuartel General de Trujillo, 15 de junio de 1813. 3º. Simón Bolívar” .

Nessa ocasião, às vésperas de comandar a retomada de Caracas, Bolívar emite a decisão que sintetiza sua determinação de levar a guerra até suas últimas conseqüências. Cabe mencionar que, de fato, essa guerra sangrenta já era uma realidade, porém a Proclama formaliza o entendimento dos meios através dos quais se deve lutar para garantir a República. Em outras palavras, legitima o uso da violência revolucionária como forma de luta. A partir de então, Bolívar encarna na memória social a imagem de um guerreiro que busca criar uma nacionalidade através do vínculo com o território e com um projeto anticolonial. Inaugura uma espécie de “jacobinismo americano”, estabelecendo uma linha de continuidade ideológica que tem seu princípio em Rousseau, passando pelo Terror da Revolução Francesa e que, não por acaso, tem em Simón Rodríguez (o tutor de Bolívar), a principal referência intelectual no Novo Mundo.

Essa construção de um "Bolívar guerreiro" ou “revolucionário” será reivindicada ativamente pelos escravos e ex-escravos no período imediatamente após a independência até início da década de 1860. Porém, paulatinamente, esse perfil vai dando lugar ao culto ao herói, como memória fossilizada e hierárquica de um Bolívar como "pai da Pátria" e cuja principal conseqüência política é a expropriação do protagonismo dos escravos convertidos em soldados no processo de independência latino-americano.

A tensão entre essas duas apropriações de Bolívar, portador de legitimidade inquestionável, é o que constitui ao longo da história venezuelana uma acirrada disputa em torno do legado bolivariano. O chavismo participa desse processo reivindicando um Bolívar distinto daquele construído historicamente como culto pelo Estado Nacional venezuelano a partir de 1863 e que se constitui como experiência ideológica hegemônica até finais do século XX.

6

Vejamos como se deu esse processo de transmutação ideológica do bolivarianismo no tempo.

Os dois BolívaresNo século XIX, podemos identificar dois

momentos distintos de articulação da memória bolivariana com a construção do Estado venezuelano. Uma fase inicial tem seu marco temporal delimitado entre 1830, ano da morte de Bolívar, e 1863, data que marca o fim da Guerra Federal e, também, o ano da publicação da primeira biografia sobre o “Libertador”. Nesse período, desenvolve-se uma memória essencialmente oral e cujas pistas nos ensinam muito de um protobolivarianismo popular em oposição a um forte investimento da elite oligárquica em promover ativamente o esquecimento em âmbito social do legado do líder da independência.

Em um segundo momento, a partir daquele ano de 1863, as instituições do Estado, sobretudo através da disciplina da História, formulada em instituições como a Academia Nacional de la Historia (fundada em 1888), ensinada nas escolas e propalada pelo discurso político oficial, convertem-se em protagonistas centrais na construção de um culto ao herói. Dois tipos de narrativa articulam os conteúdos a serem repetidos à exaustão: a biografia histórica e os pronunciamentos dos presidentes da república.

A ideologia bolivariana, construída ao longo desses processos e momentos ─ que são aqui separados um tanto quanto arbitrariamente para fins de análise ─ , desempenhará diferentes funções sociais. Assim, assistiremos no tempo a apropriação do “Bolívar guerreiro”, elaborado pelo protobolivarianismo popular, contribuindo, principalmente, para acirrar o conflito social entre as classes sociais. E, ao mesmo tempo, a construção de um Bolívar como "Pai da Pátria", evocado pelo discurso formulado com a finalidade de ocultar interesses antagônicos inconciliáveis. Ambas as construções ideológicas, no entanto, perseguem um mesmo eixo argumentativo que gira em torno do “exemplo bolivariano”.

Assim, o Bolívar construído pelos historiadores pró-bolivarianos a partir de meados de 1860 articulava-se intimamente com as necessidades ideológicas de unificação nacional em torno do Estado venezuelano, conforme os interesses da burguesia latifundiário-mercantil. Mas esse processo foi complexo, pois foi preciso encontrar uma solução política para o rompimento dessa classe com o Libertador, nos seus últimos anos de vida. Pois, um pouco antes de morrer e no contexto de dissolução do

6..BOLÍVAR, Simón. Escritos del Libertador. Caracas: Ediciones de la Sociedad Bolivariana de Venezuela. Tomo IV, documento 220. pp. 305-307.

92 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano

projeto bolivariano da [Gran] Colômbia, Bolívar havia confrontado os interesses particularistas das classes latifundiária e mercantil venezuelana, liderada por Antonio Páez, e colombiana, encabeçada por Francisco de Paula Santander.

Daí que, em 1830, em plena fase de retrocesso de algumas das conquistas da independência, um dos principais aliados de Páez e herdeiros da elite oligárquica, Ángel Quintero, apresentara ao Congresso de Valencia a proposta de proscrição de Bolívar do território venezuelano. Segue-se, em alguns meses, a agonizante morte do líder decaído, sem pátria, cujos restos ficam depositados até 1842 em uma fazenda particular na fronteira da Venezuela com a Colômbia. Neste intervalo de doze anos, seguiu em vigor a decisão do conjunto da oligarquia e burguesia latifundiário-mercantil venezuelana de proscrição de Bolívar, ainda que morto, mediante o seqüestro da memória a seu respeito nos frágeis meios institucionais do país.

É interessante verificar como alguns ideólogos da época tratavam de justificar ardilosamente o banimento do “Libertador”, afirmando: “[...] era Bolívar el Jefe de todos los grandes capitanes, el caudillo de todos los valientes, el Libertador de todos los pueblos, el Fundador, en fin, de la patria? ¿Cabría en ella como ciudadano? ¿ [...] Cabía este elemento en el régimen que queríamos y que tenemos?”. A resposta a essa indagação formulada pelo conjunto da oligarquia ao longo dos anos 1830 até início dos anos 1840 foi um sonoro "não".

Antes mesmo da morte de Bolívar, desde 1824, após a “pacificação” com a Espanha, vivia-se sob o acirramento dos conflitos internos, especialmente no que dizia respeito ao tema da escravidão. Frente às duas leis de manumissão aprovadas no Congresso, até 1830, os libertos desde 1816 pelos diversos decretos de abolição da escravatura assinados por Bolívar estavam sendo novamente convertidos à condição de escravos, na prática. Frente a essa situação, os soldados do Exército Libertador não somente promoviam levantes armados, como se defendiam legalmente lançando mão do Decreto bolivariano para argumentar em prol de sua liberdade.

Os conflitos no campo redundaram em duas revoluções camponesas de envergadura, nos anos de 1842 e 1846, em cujas conseqüências contabiliza-se a derrocada de alguns dos principais remanescentes da ordem colonial, na Venezuela. A Guerra Federal foi o desaguar de dois processos conflitivos. Por um lado, o

7

8

descontentamento dos escravos que, desde 1854, haviam conquistado formalmente a liberdade, mas permaneciam atados a seus antigos amos pelo mecanismo do endividamento. Por outro, divergências intra-oligárquicas, principalmente em torno da apropriação das rendas arrecadadas pelo Estado, envolvendo também pequenos e médios comerciantes.

A Guerra Federal, cuja palavra de ordem era sintetizada pela expressão "Tierra y hombres libres, horror a la oligarquía", será fundamental para compreendermos um aspecto decisivo do bolivarianismo apropriado pelo chavismo: a permanência na memória social do conteúdo revolucionário bolivariano. Particularmente importantes entre os documentos da época são as Hojas Sueltas, um conjunto de panfletos dirigidos ao público que eram afixados em postes, atualmente reunidos na Biblioteca Nacional de Venezuela; as crônicas de um oficial federalista conhecidas mais tarde pelo título Diario de Emilio Navarro; e o hino da Guerra Federal, Oligarcas Temblad. A relevância desses registros reside em decantar, ainda que diversas vezes por vias indiretas, o protobolivarianismo popular que residia na tradição oral, antes que a memória social fosse inundada pelo investimento institucional do Estado. Sua relevância é ressaltada também pelo caráter altamente conflitivo do momento em que foram produzidos, o que favorece uma interpretação sobre os limites ideológicos dados pela época.

O guerreiro justo e intransigenteA Guerra Federal, diferentemente da maior

parte das experiências de mobilização camponesa que marcaram a América espanhola ao longo do século XIX, caracterizadas pelo caudilhismo, havia se convertido, especialmente no ano de 1859, em uma verdadeira guerra de classes a opor, com armas nas mãos, os camponeses e pequenos comerciantes, por um lado, e a oligarquia e seus setores convertidos em burguesia agrário-mercantil, de outro. É nesse contexto particularmente radicalizado de luta que fica patente a capacidade mobilizadora da memória bolivariana (que ao longo dos anos 1830-1840 até 1854 aparecia em reivindicações abolicionistas nas petições oficiais dos escravos). Em outras palavras, a presença de uma ideologia bolivariana a intervir praticamente no conflito social.

O Bolívar referido nos documentos da Guerra

7..A [Gran] Colombia corresponde ao território libertado de Espanha que, entre

1819 até 1830, foi integrado por Venezuela e Nueva Granada (atuais estados da Colômbia, Panamá e norte do Equador). O termo Gran Colômbia, no entanto, nunca foi utilizado por Bolívar. Surge posteriormente à separação de

Venezuela e Nueva Granada para evitar confusão entre a [Gran] Colombia, de Bolívar, e o estado da Colômbia atual.

GUZMÁN, Blanco apud CARRERA DAMAS, O culto a Bolívar. Caracas: Instituto de Antropologia e Historia/UCV, 1969. p. 94.

8

História & Luta de Classes - 93

Federal associa-se com um patriotismo radical, como um sentimento ativo de pertencimento nacional e de obrigação para com a pátria. Está também fortemente vinculado com um método de ação revolucionária, uma forma de realizar a luta política e social até as últimas conseqüências, com uma postura patriótica voluntarista e intransigente. Exemplo paradigmático é a recuperação do juramento bolivariano de Monte Sacro, somente publicado por escrito na segunda década do século XX, mas que era conhecido pela tradição oral, como um recurso simbólico do qual lançavam mão os combatentes do período. Encontramos diversas versões desse juramento cujo conteúdo original era o seguinte: "¡Juro delante de usted, juro por el Dios de mis padres, juro por ellos; juro por mi honor y juro por la Patria, que no daré descanso a mi brazo ni reposo a mi alma hasta que no haya roto las cadenas que nos oprimen por voluntad del poder español!” . Bolívar aparece ao longo desses registros referido como modelo de defesa da liberdade, como escola de patriotismo e de moral e depositário de autoridade de censura, além do principal ideólogo da unidade [Gran] Colombiana.

A intransigência associada a Bolívar aparece nesses documentos em dois sentidos. Em primeiro lugar, como escola de civismo, contra as formas traiçoeiras de fazer política. A maneira de Bolívar servir à pátria, então, era através do exemplo de superioridade moral e de medidas "educativas" que fizeram da traição e da dissimulação objetos de indignação pública. Mas foi também, em segundo lugar, às custas de sangue, leia-se inclusive da Guerra até a Morte, do terror contra os inimigos. Eis o guerreiro justo e intransigente plasmando na memória social. Eis o "terrível e glorioso reino da justiça e da virtude, quando todos os bons cidadãos fossem iguais perante a nação, e o povo tivesse liquidado com seus traidores", comenta Hobsbawm sobre os jacobinos, e complementa: "Jean-Jacques Rousseau e a cristalina convicção de justiça deram-lhe sua força.” O comentário poderia ser transposto integralmente ao bolivarianismo.

A aproximação do ideário de Simón Bolívar com as demais correntes de conteúdo pequeno-burguês herdeiras de Jean-Jacques Rousseau explica

9

10

11

também a harmonia com que o bolivarianismo se associou, na Guerra Federal, ao socialismo utópico francês e às idéias de Graccus Babeuf . Bolívar, considerado por alguns como o Robespierre americano, ideologicamente tributário de Rousseau, seria o inspirador de uma ideologia que conseguiria aportar uma forma de luta extremada às antigas aspirações igualitárias dos camponeses, leia-se ex-escravos, venezuelanos. Ao mesmo tempo, na medida em que tomavam as armas para a guerra até a morte, convertiam-se simultaneamente em “legítimos filhos da Pátria do Libertador”.

Mas os resultados da Guerra Federal, apesar da forma extrema de luta, não realizaram aqueles ideais libertários. Ao contrário. Eliminado Ezequiel Zamora, que era seu líder político e militar, socialista utópico por excelência, as aspirações igualitárias dos camponeses venezuelanos degeneraram no fortalecimento da oligarquia agrário-exportadora e da burguesia mercantil e na consolidação do Estado oligárquico e seu aparato repressor centralizado.

A partir de então, a ideologia bolivariana será um instrumento na incorporação controlada das massas camponesas de negros e mestiços ao conjunto da nação. A figura de Bolívar será resgatada, tanto por liberais quanto por conservadores, como instrumento de legitimação de seus projetos políticos. Ideólogos de um e de outro lado usam fartamente referências ao “Libertador” para estabelecer uma interlocução com os camponeses, que representavam cerca de 70% da população venezuelana naquele período. O procedimento ideológico de que a burguesia e a oligarquia se serviram para produzir sua própria “absolvição” da culpa socialmente imputada de haver promovido o banimento do “Libertador” foi especialmente interessante.

O severo Pai da PátriaNo discurso político que se desenvolve mais

decididamente entre 1863 até finais da década de 1880, observamos um grande investimento institucional do Estado em criar e estimular um profundo sentimento de culpa da sociedade venezuelana em relação à figura histórica de Bolívar. O mais interessante é como esses sujeitos operam um

.12

9..RODRÍGUEZ, Simón. Obras Completas. Caracas: Ediciones de la

Presidencia, 2001, Tomo II. pp.376-378. Na primeira biografia de Bolívar, escrita por Felipe Lazzarrábal, em 1863, essa passagem da vida de Bolívar foi relatada assim: "Bolívar, inflamado del corazón, tomó las manos de Rodríguez, y con enérgica frase juró sobre aquella tierra santa, la libertad de la patria...!" (BOLÍVAR apud LAZZARRÁBAL, Felipe. Bolívar. Caracas: Ediciones de la Presidencia, 2001. p. 59). Sabemos que, em 1824, Bolívar e Rodríguez referiram-se, por meio de correspondência pessoal datada de 19 de janeiro, ao Juramento. Porém, somente na edição de 1918 dessa mesma biografia é que aparece pela primeira vez uma nota mencionando um escrito de Rodríguez no qual relata a cena de próprio punho.

10

11

12

..

..

..

A aproximação com o jacobinismo se estabelece também a partir da Proclama de Guerra a Morte (leia-se "guerra até a morte"), análoga à Lei de Suspeitos promulgada na França de 1793, segundo a qual poderiam ser condenados à morte "os que sem haver feito nada contra a liberdade, não houvessem feito algo em favor dela".

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p. 88.

Sobre o jacobinismo, ver: VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismos. Bauru-São Paulo: EDUSC, 2000; HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: Dois séculos revêem a Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

94 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano

processo de transferência da responsabilidade pelo desterro de Bolívar promovida pela elite política do país, em 1830, para as classes exploradas, no último quarto do século XIX. Um inversão típica das formas ideológicas de dominação a partir da exploração dos valores cristãos então dominantes.

Esse processo evidencia a necessidade de construção de uma ideologia como forma de justificação dos governos que se sucedem. Trata-se de legitimar novas apropriações da memória bolivariana, agora como fator unificador da nação e de subtração dos conflitos sociais. A descoberta do potencial mobilizador da memória bolivariana já havia sido feita por Páez, quem testemunhou a comoção social que representou o repatriamento dos restos de Bolívar para sua cidade natal, Caracas, em 1842. Depois dele, o general liberal Antonio Guzmán Blanco, na presidência do país, inauguraria a efetiva construção de uma ideologia bolivariana avalizadora do Estado oligárquico pós-Guerra Federal.

Blanco, na década de 1870, mandaria editar os 14 volumes dos Documentos relativos a la vida pública del Libertador e erigir a estátua eqüestre do Libertador que até hoje faz afluir à praça principal de Caracas os mais diversos visitantes para prestar homenagens à imagem de Bolívar. Ele também reformaria a antiga igreja da Trinidad para abrigar o Pantheón Nacional e promoveria as comemorações oficiais do centenário do nascimento do Libertador, ao longo do ano de 1883. Apelidado de “autócrata civilizador”, decretou a instrução pública em caráter obrigatório e gratuito, tentando conformar-se às idéias educativas de Bolívar. Instituiu, também, uma moeda nacional, vigente até os dias de hoje, o Bolívar. Ao longo de sua gestão, foi operada a transmutação fundamental de um Bolívar guerreiro e revolucionário em herói nacional inquestionável a quem se deve a criação da nação. A estátua do Libertador na praça central de Caracas ossificava e congelava o guerreiro, dando passagem ao "Pai da Pátria".

O esforço de Guzmán Blanco pela centralização e unificação do Estado seria mantido pelos presidentes que o sucederiam. A unificação da nação foi reforçada por conflitos de fronteira, que ajudavam a excitar o sentimento patriótico e produziam a necessidade de consolidação do Exército Nacional. O conflito com a Inglaterra em torno do território da Guyana fez nítidos os interesses estadunidenses sobre a Venezuela, sob o pretexto de atuar em defesa dos

venezuelanos. Frente às pressões do Departamento de Estado dos EUA, o presidente Cipriano Castro reagiu chamando à mobilização dos venezuelanos, denunciando que “a planta insolente do estrangeiro profanou o solo sagrado da pátria,” em uma clara referência ao pensamento bolivariano de temor ao projeto expansionista dos Estados Unidos da América para o sul do continente americano. Sua atitude converteu-o em um "herói popular". Recorrendo a Bolívar, os dirigentes do país encontravam uma fórmula infalível para partilhar o panteão nacional.

Em fins do século XIX, a figura de Bolívar aparece já como referencial consagrado, quase um ícone cuja menção dispensa maiores comentários. Os reflexos da articulação de uma narrativa histórica de exaltação do indivíduo se faz sentir por todos os lados. Bolívar repousa inquestionável, permanecendo nessa posição ao longo do novo século que era inaugurado. O próximo presidente, Juan Vicente Gómez, deu continuidade ao processo de alijamento dos caudilhos regionais e de promoção da centralização do poder do Estado em torno de si, assumindo a forma ditatorial a partir de 1913 até 1936. Com Gómez, foram 37 anos de ditadura violenta e repressora em uma aliança cada vez mais sólida com os EUA. E tudo o que fazia, a julgar por suas palavras, recebia o aval do falecido Bolívar.

Concluído o longo regime de Gómez, começa uma ditadura legalista dirigida por Eleazar López Contreras, entre 1936 e 1941. A ideologia bolivariana de Estado é aprofundada e elevada a fundamento político de sua gestão. A figura do Libertador é largamente utilizada e, neste período, aparecem os Agrupamentos Cívicos Bolivarianos, sob os auspícios governamentais, como mais um dos mecanismos de construção de uma memória nacional impulsionada pelo Estado. Tal qual Contreras atuou o seu sucessor, Medina Angarita (1941-1945), quem iria reafirmar a tradição bolivariana já em seu discurso de posse.

Em outubro de 1945, no entanto, observa-se um uso de Bolívar qualitativamente diferente. Uma rebelião cívico-militar desfere um golpe de Estado para empossar uma junta presidida por Rómulo Betancourt, secretário-geral do partido Acción Democrática (AD), de corte social-democrata. Com um discurso repleto de referências ao período da independência, Betancourt considerava que “el llamado 'régimen bolivariano' para escarnio de un nombre sagrado a los venezolanos, significó la supervivencia de lo fundamental del 'gomecismo'

13

14

13..MAZA ZAVALA, Domingos F. História de Meio Século na Venezuela:

1926- 1975. In: CASANOVA, Pablo González (org). América Latina: história de meio século. Brasilia: UNB, 1988.

14 D'ÁVILA, Luis Ricardo. Imaginario Politico Venezolano. Caracas: Alfa

Ediciones Publiandina, 1992. p. 53.

História & Luta de Classes - 95

hasta una década después de la muerte del dictador.” O inefável símbolo bolivariano novamente, só que desta vez para vincular Bolívar à fundação do partido Acción Democrática. Depois de três anos de governo dessa junta, houve dez anos de ditadura de Pérez Jimenez, somente derrotada por uma aliança entre setores liberais e democrata-cristãos liderados pela AD.

Esses partidos governariam o país em uma aliança com setores liberais de corte democrata-cristão até finais do século XX, quando entra em cena um novo processo bolivariano sob a liderança de Hugo Rafael Chávez Frías. Até então, a figura de Bolívar como "Pai da Pátria", travessara o século XX como fator de unificação do país e de legitimação do Estado Nacional.

A encruzilhada ideological do chavismoComo fica patente na análise do bolivarianismo

histórico, essa experiência ideológica se constitui no tempo como uma forma de romantismo revolucionário, em uma eterna contradição entre conciliação e ruptura. O bolivarianismo tenta conciliar os interesses divergentes e antagônicos que opõem o Estado nacional, como partícipe da estrutura de comando do capital, e as classes não proprietárias e expropriadas de poder. Ao mesmo tempo, oferece uma ideologia guerreira e revolucionária, consubstanciada em profundas convicções igualitárias, libertárias e anticolonialistas que se convertem em antiimperialistas, que é capaz de mover milhões.

Parece inequívoco que o chavismo, a forma mais visível e dinâmica do bolivarianismo nos tempos atuais, está encharcado das mesmas contradições da ideologia da qual é tributário. Porém, não é menos verdadeiro que, no contexto em que se desenvolve ― de crise estrutural do sistema mundial e radicalização popular venezuelana ― Chávez torna-se porta-voz de um movimento que busca sua força mobilizadora no protobolivarianismo da memória social. Ou seja, alimenta-se daquele conteúdo bolivariano anterior à fossilização memorialística patrocinada pelo Estado-nação. Evoca, portanto, o Bolívar guerreiro em uma interlocução direta com as massas pobres venezuelanas, resgatando o sentido continental estratégico da ação revolucionária. Em termos históricos, o projeto da Alternativa Bolivariana das Américas (ALBA) atualiza e amplia o ideal de Bolívar da unidade [Gran] Colombiana. A partir de

15

16

2005, anuncia o caminho para sua superação: perseguir a construção do Socialismo do Século XXI. Porém, é justamente na interseção desses dois eixos estruturantes do processo venezuelano que também se atualizam as contradições históricas do bolivarianismo.

A ALBA, projeto ainda em fase inicial de constituição, apresenta alguns princípios e ações que apontam no sentido de uma integração efetiva dos povos. O Acordo Energético Cuba-Venezuela, segundo o qual os cubanos trocam serviços de saúde e educação por petróleo, é um exemplo paradigmático do sentido estratégico da vontade política consubstanciada pelo chavismo. Porém, o conjunto da política externa de Chávez para a América do Sul denuncia uma tensão permanente com a ALBA, reeditando a ambigüidade ideológica do bolivarianismo para a atualidade. Vejamos de que maneira.

O princípio fundamental do Acordo Energético Cuba-Venezuela reside na idéia de comprar e vender não em função do lucro, mas de acordo com as necessidades de consumo e possibilidades de produção de cada país. Oferece, com isso, resistência ao intercâmbio desigual entre nações, propondo uma alteração nos termos da relação entre valor de troca e valor de uso das mercadorias, em benefício do último fator. Propõe que o intercâmbio entre os povos da região seja baseado nas "vantagens cooperativas" em vez das supostas "vantagens comparativas" da ideologia liberal de mercado. Esse não é, no entanto, o mesmo princípio a orientar outros movimentos internacionais venezuelanos no mesmo campo, como são os casos da proposta de integração energética que se desenvolve através das iniciativas da Petrosul (integração das empresas petrolíferas do Brasil, Argentina e Venezuela) e do Gasoduto Regional.

Teoricamente concebidos para garantir a autonomia energética da região e a reversão da dependência dos países latino-americanos dos mercados dos países do capitalismo central no que diz respeito ao consumo dos insumos do petróleo e gás natural aqui extraídos, a integração energética ignora as diferentes realidades nacionais no que afeta o destino da renda petroleira. A Argentina é um bom exemplo a analisar. Com a indústria petroleira privatizada na década de 90, os atuais acordos não criam obstáculo nem denunciam a desnacionalização dos recursos energéticos argentinos. Fazendo tábula rasa desse importante fator, legitima que cinco

15

16

BETANCOURT, Romulo. Trayectoria democratica de una Revolución. Discursos y Conferenciais pronunciados en Venezuela durante el ejercicio de la Presidencia de la J. R. G. de los E. U. de Venezuela. Caracas: Imprenta Nacional, 1948. p. 63.

Sobre o período de aliança dos partidos democrata cristão (COPEI) e

social-democrata (AD) e o chamado Pacto de Punto Fijo, ver: CANELÓN, Fidel; GONZÁLEZ, Franklin. El modelo Puntofijista. Caracas. Desarrollo, agotamiento y perspectiva. Revista Venezolana de Análisis de Conyuntura, Vol. IV, n° 1, ene-jun, pp. 11-42.

96 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano

grandes companhias se apropriem da renda petroleira, que triplicou entre 1999 e 2004 enquanto a apropriação pelo Estado desse excedente descendeu de 44,6% para 36% e se situou 30 pontos abaixo do que arrecadou Venezuela, por exemplo.

Problema similar, porém concentrado nos destinatários do produto, aparece com a proposta de construção de um gasoduto de 8 mil quilômetros, a ser construído por um acordo entre Venezuela, Argentina, Brasil e, talvez, a Bolívia. Afinal, a primeira questão que salta aos olhos é: trata-se de um projeto para garantir gás barato para quem? Para os domicílios familiares ou para as burguesias industriais de cada país? Respondendo a essa pergunta, poderíamos saber claramente quem deveria pagar por esse investimento. Mas antes disso, uma questão mais fundamental precisa ser esclarecida: qual o impacto ambiental sobre a floresta amazônica e populações indígenas que estão no caminho do mega projeto? Em suma, são propostas de integração que tendem a beneficiar prioritariamente os oligopólios do petróleo e as burguesias nacionais industriais consumidoras de gás, com investimentos públicos de grande envergadura.

Assim, se, em um primeiro momento, há um conflito entre o sentido geral da ALBA e o restante da política para América Latina no governo venezuelano liderado por Chávez, uma análise mais detida da ALBA, aponta outros elementos importantes a observar. Em momento algum a proposta bolivariana atual ataca as bases do intercâmbio desigual, que é a própria exploração do trabalho no âmbito da produção, ainda que fosse de forma prescritiva. É esse o contexto que torna extremamente complexa e provisória a análise da ideologia bolivariana articulada pelo chavismo.

A opção por construir o Socialismo do Século XXI como saída positiva para o povo venezuelano e latino-americano necessita apontar o caminho para a superação das contradições acima expostas. A política internacional do governo Chávez contém elementos de diversos processos simultâneos que implicam uma luta antiimperialista articulada com a realização de tarefas da revolução democrático-burguesa, resistência à reação conservadora neoliberal e construção de princípios socialistas. A interação desses fatores configura a dinâmica da luta de classes e seus rumos estratégicos dependem do conjunto da correlação de forças entre elas em âmbito continental.

É, portanto, fundamental o papel que a luta de classes em nível continental joga nos rumos ideológicos do chavismo e vice-versa e, portanto,

17

sobre a possibilidade de realização do Socialismo do Século XXI. Apegado à lógica do Estado-nação e à necessidade de preservação do processo venezuelano, Chávez muitas vezes estabelece e mantém alianças com forças contra-revolucionárias em detrimento das forças vivas da transformação social latino-americana. Especialmente no Brasil e na Argentina essa política representa um grave erro estratégico. Pois não é razoável desconsiderar a necessidade de construção de líderes populares autênticos como parte do processo de transformação em nosso continente. A ausência de um movimento claro em direção e afirmação das forças socialistas latino-americanas é um sério empecilho a realização de qualquer projeto de transformação estrutural do continente.

O bolivarianismo chavista tem sido um elemento central da luta de classes na América Latina atual. No século XIX, a proscrição de Bolívar em vida e sua morte no esquecimento alimentou uma viva ideologia romântico-revolucionária que perpetua a esperança de superação da tragédia histórica de sua vida, como um elemento vivo na memória popular. Ultrapassar a tragédia bolivariana implica, entretanto, superar os limites ideológicos do próprio bolivarianismo. Representa avançar resolutamente para a rejeição da conciliação nacional e promover uma aliança entre os povos latino-americanos em torno da construção de um novo processo sócio-metabólico não mais regido pela lógica destrutiva do capital. Só dessa maneira a memória bolivariana revolucionária poderá contribuir para a superação efetiva da atual crise em que estamos mergulhados, sem degenerar em mais uma experiência frustrada de luta a nos assombrar lançando mão dos espíritos do passado.

18

17

18

KATZ, Claudio. Las Disyuntivas del ALBA. www.netforsys.com/claudiokatz.Sobre a superação da ordem do capital ver MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

História & Luta de Classes - 97

El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia

Raúl Zibechi1

n caos en movimiento. Una Babel enmarañada. Vendedoras callejeras y comerciantes, mercaderes y feriantes, corredores y comisionistas machacando sones contumaces, tránsito agitado sobre el barro negro y pegajoso que rebalsa aceras y calles; zumban bocinas mezcladas con músicas andinas –tradicionales de roncos pututus y de electrizantes guitarras–, fusionadas con voces que ofrecen-venden-reclaman-mercadean; cientos de camionetas se preparan para sumergirse en la hoyada paceña, y otras tantas hacen la proeza de remontar la interminable cuesta: es la Ceja de El Alto, el centro o el nudo comercial y político de la urbe aymara. Una bacanal de colores y sonidos. A medida que se va permaneciendo, en el punto en que los sentidos se acostumbran a los 4.100 metros de altura y al aire gélido que sopla desde la nevada Cordillera Real, cuando se va aclimatando al ajetreo y al gentío, la batahola empieza a cobrar forma. Basta con dejarse llevar por el ambiente, para que los ruidos arremolinados se truequen en rumor, y la cacofonía en son. El Alto es un caos mirado desde fuera. O sea, si se cultiva la mirada occidental, ajena, colonial.

La insurrección de octubre de 2003, que derribó al presidente Gonzalo Sánchez de Lozada y trabó la continuidad del modelo neoliberal en Bolivia , iluminó la existencia de una sociedad alterna que tiene su mayor desarrollo entre los aymaras del entorno del Lago Titicaca, y en la ciudad de El Alto su mayor exponente. Esa sociedad cuenta con sus propias instituciones políticas y sociales, su propia economía y una cultura netamente diferenciada de la sociedad “oficial”, mestiza y blanca, que se asienta en las instituciones estatales y en la economía de mercado. Mostrar algunos aspectos de esa “otra” sociedad es el objetivo de este breve trabajo.

Crecimiento explosivoEl Alto ha jugado un papel destacado en las

luchas sociales bolivianas. En 1781 las milicias

2

aymaras de Tupac Katari y Bartolina Sisa establecieron en esa zona, pampas despobladas entonces, su cuartel general desde el que bajaban a La Paz, ciudad que cercaron durante meses. En 1899 los aymaras de El Alto establecieron una muralla humana durante la guerra federal para impedir el ingreso de tropas constitucionales. En 1952, fue el escenario político que confirmó el triunfo de la revolución nacional. Desde comienzos de este siglo, El Alto es el centro político de los aymaras, la ciudad que crece con mayor velocidad en el país, y es la ciudad rebelde más importante de América Latina.

El Alto tiene una ventaja geográfica y estratégica sobre La Paz, centro político y administrativo del país. Situado a 4.000 metros, domina las laderas y el acceso a la capital, ubicada a 3.600 metros en una inmensa hoyada, una profunda depresión del terreno en la que los españoles construyeron la principal ciudad boliviana. Desde un punto de vista social, puede decirse que en el Altiplano los pobres viven arriba (El Alto) y que los ricos viven abajo (La Paz). Esta ventaja geográfica de los aymaras ha jugado un papel destacado en la historia de Bolivia y lo sigue jugando aún hoy.

En 1952 vivían en El Alto apenas 11 mil personas, que constituían una población básicamente rural. En 1960 ya eran 30 mil; en 1976 ascienden a 95 mil. Entre 1976 y 1985 (cuando consigue la autonomía municipal) la población creció explosivamente (211 mil personas en 12 años) por la emigración desde los centros mineros y desde las áreas rurales aymaras y quechuas del Altiplano, alcanzando los 307 mil habitantes, para llegar a 405 mil en 1992. Según el censo del año 2001 la población asciende a 650 mil personas y actualmente se supone que se acerca a las 800 mil, de las cuales el 81% se autoindentifican como indígenas, en particular

U

1 Raúl Zibechi es miembro del Consejo de Redacción del semanario Brecha de Montevideo, docente e investigador sobre movimientos sociales en la Multiversidad Franciscana de América Latina, y asesor a varios grupos sociales. Es colaborador mensual con el IRC Programa de las Américas del International Relations Center (IRC). www.ircamericas.org.

2..Sitios sobre a Bolivia recomendados pelo autor do texto: Bolpress: www.bolpress.com; Econoticias: www.econoticiasbolivia.com; El Juguete Rabioso: www.redvoltaire.net/eljugueterabioso.html; Indymedia Bolivia: http//:indymedia.bolivia.org; Pulso: www.pulsobolivia.com

História & Luta de Classes - 99

aymaras. La ciudad está constituida por nueve distritos, ocho urbanos y uno rural, y puede dividirse en tres zonas: la Norte está poblada por migrantes del Altiplano en la que predomina la actividad artesanal, manufacturera y comercial, que se expresa en la gigantesca feria de la avenida 16 de julio, donde confluyen unos 40 mil puestos de venta; la zona Central denominada la Ceja, donde están ubicados los principales servicios públicos, agua y luz; y la zona Sur, donde existen algunas fábricas y migrantes de la región sur del departamento de La Paz. El aeropuerto internacional está incrustado en medio de la ciudad.

Un reciente estudio sociológico define a El Alto como “un conglomerado híbrido de distintas experiencias comunales, artesanales, comerciales y obreras que se mueven en el espacio urbano y se entrecruzan cotidianamente de forma fragmentada”. La inmensa mayoría son pobres o muy pobres, y no tienen acceso al agua potable, la luz, la salud, la educación y la vivienda. El Alto es una ciudad precaria, de calles irregulares y polvorientas, de viviendas de adobe a las que se les van adosando ladrillos, y su población vive bajo temperaturas extremas que en promedio oscilan entre los 10 grados bajo cero y los 20 grados mientras brilla el macizo sol del mediodía. Un dato adicional: el 60% de la población tiene menos de 25 años.

Una ciudad autoconstruidaEste crecimiento explosivo –a un promedio de

casi el 10% anual– ha llevado a que una buena parte de los alteños no tenga acceso a los servicios básicos. En 1997, UNICEF estimaba que sólo el 34% de los alteños tenían acceso a todos los servicios, incluyendo calles asfaltadas o empedradas, servicio de basura y teléfono público. En 1992 sólo el 20% de los habitantes tenían acceso al alcantarillado y el 18% al servicio de basura. Pero en algunos distritos esos porcentajes descienden, en el caso del alcantarillado, al 2%, y los trámites para conseguirlo pueden demorarse hasta diez años. El 20% no tiene agua potable ni electricidad; el 80% vive en calles de tierra.

Por otro lado, hasta un 75% de las familias no tiene ningún tipo de afiliación médica, en una zona donde abundan las enfermedades respiratorias agudas y las diarreas, y se registra una elevada mortalidad infantil. El analfabetismo alcanzaba a comienzos de los 90 al 40% de la población y sólo el 25% accedía al bachillerato. En general, los servicios han sido construidos por los propios vecinos, organizados en juntas vecinales que, a su vez, se agrupan en la Federación de Juntas Vecinales de El Alto (FEJUVE). Actualmente existen unas 500 juntas vecinales, que han sido las encargadas de la construcción urbana, ya sea directamente con trabajo colectivo solidario o

presionando a las autoridades municipales.En cuanto al trabajo, la principal característica

es el autoempleo. El 70% de la población ocupada trabaja en el sector familiar (50%) o semiempresarial (20%). Ese tipo de emprendimientos son mayoritarios en el comercio y restaurantes (95% de los ocupados), seguidos por la construcción (80%) y la manufactura (75%). En esos sectores predominan los jóvenes: más de la mitad de los empleados en la manufactura tienen entre 20 y 35 años, siendo la presencia femenina abrumadora en el comercio y los restaurantes de las categorías familiar y semiempresarial.

En El Alto la protagonista principal de los mercados laborales es la familia, tanto como unidad económica generadora de empleo o como contribuyente del mayor número de trabajadores en calidad de asalariados. En esos espacios surge una nueva cultura laboral y social, signada por el nomadismo, la inestabilidad y relaciones de trabajo diferentes: no hay separación entre la propiedad y la gestión de la unidad económica y el proceso productivo. En las unidades familiares predomina el trabajo familiar no remunerado; unos se enseñan a otros cómo hacer el trabajo y la administración del tiempo empleado en la realización del producto es de exclusiva responsabilidad de quien trabaja, siempre que cumpla a tiempo con los pedidos.

Tanto la construcción de la ciudad por los propios vecinos como el autoempleo, han generado una relación muy particular con el medio: los habitantes de El Alto son conscientes de que todo lo han hecho ellos, lo que se resume en un sentimiento de pertenencia y autoestima muy elevadas.

Organización para la sobrevivencia y la resistenciaLa autoconstrucción de la ciudad y la

autogeneración de empleo no hubieran sido posibles sin una sólida organización de base, barrio por barrio, calle por calle, mercado por mercado. Desde 1957 existen organizaciones vecinales aunque la FEJUVE fue creada recién en 1979. Sin embargo, no es la única organización de El Alto. Existen clubes de madres, asociaciones juveniles y culturales, centros de residentes de emigrantes de las diferentes provincias y regiones, asociaciones de obreros relocalizados, asociaciones de padres de familia que se encargan de gestionar la educación, y la Central Obrera Regional (COR) de El Alto.

En los años 70 se fueron creando federaciones laborales de comerciantes y artesanos, “que a diferencia de los obreros de empresa, tienen una identidad laboral de fuerte arraigo territorial”. Surgieron así las organizaciones de gremiales, artesanos y comerciantes minoristas, los panificadores y los trabajadores de carne, que en 1988

100 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia

crean la COR, a la que se incorporaron los bares y pensiones y los empleados municipales. Estas agrupaciones son, en su inmensa mayoría, de microempresarios y trabajadores por cuenta propia, un sector social que en otros países habitualmente no están organizados. Desde el comienzo, la COR coordinó sus acciones con la FEJUVE, siendo los actores más importantes de la ciudad, que jugaron un papel determinante en la lucha por la creación de la Universidad Pública de El Alto (UPEA) en 2001, y sobre todo en las grandes movilizaciones de setiembre-octubre de 2003 y mayo-junio de 2005 que se saldaron con la caída de los presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada y Carlos Mesa.

Una mirada más fina de las juntas vecinales permite comprender que estamos ante un tipo de organización comunitaria que, de alguna manera, reproduce la forma de organización tradicional de los aymaras y quechuas rurales. En El Alto, la población recreó –reprodujo modificándola– la ancestral comunidad andina. El sociólogo aymara Felix Patzi se pregunta: “¿Porqué la gente obedece a las organizaciones, cuando podría no hacerlo?” Patzi se refiere a que las juntas vecinales y las gremiales de los mercados establecen la participación obligatoria de sus miembros en las manifestaciones, asambleas y en todas las acciones que convocan. Para ello elaboran “fichas” como forma de control de la asistencia de cada familia. Lo que debe ser respondido es, en su opinión, las razones por las cuales la población acata. En efecto, la obligatoriedad forma parte de la cultura comunitaria, pero en el caso de las comunidades rurales se debe a que los campesinos no son propietarios de la tierra, que sólo pueden usufructuar, y en caso de no acatar pierden el acceso al único medio de sobrevivencia.

Según Patzi, hay tres elementos que son los que permiten hablar de comunidad en El Alto, vinculados al mercado, el territorio y la educación, que muestran la validez de la estructura comunitaria. En su opinión, una comunidad se caracteriza por la existencia de propiedad colectiva y posesión privada de los bienes. En la comunidad rural ese papel lo juega la tierra, pero en El Alto es más complejo. En el comercio, “los puestos de venta no son propiedad privada, son manejados por el sindicato, los llamados gremios, o sea que el propietario es la colectividad. La gente obedece al gremio porque sin poder comerciar no pueden sobrevivir”. En cuanto al territorio, “las decisiones en torno a conseguir agua, luz, gas y otros servicios no son individuales. Si no acatas las decisiones de la junta tu calle no tendrá aceras o agua o luz, porque las cooperativas que se han creado para los servicios son acciones colectivas que han salvado el déficit estatal”. Por último, los comités de padres

son los que controlan el acceso de los hijos a la educación, de modo que la participación en sus asambleas y acciones son decisivas para asegurar el futuro de sus hijos. Este conjunto de características es lo que se denomina como “obligatoriedad”, pero no se trata de obligaciones impuestas sino consensuadas, aceptadas por la población que siente que la comunidad urbana es una suerte de extensión natural de la comunidad rural y la forma de organización que asegura la sobrevivencia en un medio hostil.

Las juntas vecinales realizan asambleas mensuales o semanales en las que se discuten todos los problemas del barrio, a las cuales debe asistir un miembro por familia o núcleo habitacional. Las juntas son territoriales y para ser reconocidas por la FEJUVE deben tener un mínimo de 200 miembros. Son parte de “un proceso de autoorganización social de las zonas urbanas para debatir y buscar resolver las necesidades básicas urbanas (agua potable, electricidad, alcantarillado, atención de salud, educación, campos recreativos, etc.), de la población de sus barrios”.

Los que aspiran a ser dirigentes de la junta vecinal, deben cumplir algunos requisitos: vivir por lo menos dos años en la zona, no ser loteador (o sea especulador que vende terrenos), comerciante, transportista, panadero o dirigente de algún partido político; no ser “traidor” ni haber colaborado con las dictaduras.

Pablo Mamani, aymara y director de la carrera de Sociología de la UPEA, sostiene que las juntas vecinales “tienen una característica parecida a las comunidades rurales del mundo andino, por su estructura, su lógica, su territorialidad, su sistema de organización”. Aunque cada familia tiene su vivienda en propiedad, hay áreas de uso común como las plazas, las canchas de fútbol y la escuela, pero agrega que “para comprar o vender un lote o una vivienda, la familia se presenta a la junta vecinal que controla si no hay deudas pendientes o algún aspecto que impide la transacción”. Además, la junta vecinal “es el espacio para presentar al vecino nuevo que ofrece cerveza para ser recibido y aceptado”.

Aunque la participación en la junta vecinal es voluntaria, “el que no acude recibe una sanción social, a través de rumores que dicen que el vecino no respeta a la vecindad o a la junta”. Para evitar esa imagen negativa, prácticamente todos los vecinos participan en las asambleas mensuales. A quienes no acuden a las marchas, actos, cortes o a las propias asambleas, se les imponen multas que suelen ser castigos simbólicos. Más aún, la junta vecinal suele interceder en los conflictos y riñas entre vecinos, y en ocasiones muy graves administra justicia, con sanciones que suelen ser trabajos en beneficio del barrio, lo que les otorga

História & Luta de Classes - 101

un carácter que va mucho más allá de la asociación tradicional y los asemeja a las comunidades agrarias. Las juntas vecinales son la columna vertebral del movimiento social en El Alto, y permiten comprender la potencia de ese movimiento.

Las formas de acción de la comunidad urbanaLas juntas vecinales son una forma de

organización horizontal de la “comunidad vecinal” que conforman verdaderas redes extensas a escala barrial y distrital que actúan sin intermediarios, elementos que aparecen recién en la escala superior de la FEJUVE. En esta instancia, la cultura comunal se disuelve y da paso a la “otra” cultura, la mestizo-blancoide según señala la antropóloga Silvia Rivera Cusicanqui, signada por el clientelismo, el racionalismo y el colonialismo. Pero es la experiencia de base horizontal “la que precisamente se tensará exitosamente durante las jornadas de sublevación civil de octubre de 2003”.

La forma de movilización y acción de esas bases echa luz sobre lo que realmente es y significa este entramado social. Esto supone acercar la mirada a estas llamadas micro-estructuras de movilización barrial, ya que es durante esa movilización cuando se despliegan las potencias y se hacen visibles aspectos que aparecen ocultos o sumergidos en la cotidianeidad. En general, los testimonios y análisis coinciden en que durante la rebelión las bases desbordaron a sus dirigentes y a las propias organizaciones, a tal punto que varios dirigentes medios aseguran que “fuimos obligados por las bases”. Se trata de una presión sorda, que viene de muy abajo, y es por lo tanto incontenible cuando se despliega. Roxana Seijas, dirigente de la FEJUVE, señala algo sorprendente respecto a la relación entre bases y dirigentes: “Aquí a la cabeza con sus entornos (por los dirigentes) nos llaman rellenos”. O sea, que son superficiales, como adornos, pero son forzados por las bases a trabajar (“nosotros los rellenos somos los que hemos trabajado”). Su testimonio muestra dos aspectos claves de la cultural comunal: ser dirigente no es un privilegio sino un servicio que nunca se autonomiza de la base; y, como son “relleno”, pueden ser cambiados por otros sin que deje de funcionar la organización, sin que se produzcan traumas ni cambios de orientación.

Así, la rebelión “careció de organizador y líder, y fue ejecutada directamente por los vecinos de barrio y calle”; las juntas vecinales “no fueron estructuras organizativas de la movilización sino estructuras de identidad territorial en cuyo interior otro tipo de fidelidades, de redes organizativas, de solidaridades e iniciativas se desplegaron de manera autónoma por encima y, en algunos casos, al margen de la propia

autoridad de la junta vecinal”. En muchos casos, la junta vecinal era sólo invocada de manera simbólica para marchas y caminatas que eran en realidad iniciativas de flexibles redes sociales territoriales que se creaban durante los acontecimientos y se convertían en “estructuras de mando, deliberación y ejecución de decisiones”.

Algo así sólo puede suceder si ya existe, en la vida cotidiana, el hábito de la autoorganización. Esas redes se conformaban como comités de movilización, como Comités en Defensa del Gas o, en ocasiones, no toman forma a través de nombres sino que son simplemente la manera natural como los vecinos se agrupan para resolver sus problemas diarios, que en cierto momento se vuelcan en la autodefensa de la comunidad.

Las asambleas jugaron un papel decisivo. Sobre la base de la amplia experiencia asamblearia de las juntas vecinales, los pobladores de los barrios se agruparon en asambleas informales pero masivas, convertidas en espacios de deliberación y encuentro, de legitimación y legalización social de la movilización, y en escenario de intercambio de informaciones. Las radios locales, por su parte, amplificaron la comunicación entre las bases y le dieron un carácter de cohesión masiva, en particular la red Erbol (Educación Radiofónica de Bolivia), vinculada a la Iglesia Católica.

El ancestral sistema de turnos, surgido en las comunidades rurales, permitió garantizar las vigilias para los bloqueos de calles y rutas, la alimentación de los movilizados y el mantenimiento de la acción callejera en niveles muy elevados de masividad. El sistema de rotación o turnos se utiliza para todas las acciones colectivas, desde la representación hasta los bloqueos, y consiste en la rotación por distritos y zonas, comunidades y familias, de modo que mientras unos participan directamente otros descansan y mantienen activa la vida cotidiana. Un ejemplo: en una zona donde participan 100 vecinos en los cortes, la mitad salen en el turno de seis de la mañana a tres de la tarde y la otra mitad lo hace de tres a doce de la noche; durante la noche la vigilia es voluntaria. De ese modo, todos participan y mientras unos cortan o se manifiestan otros hacen la comida, producen y se preparan para participar en el turno. Además, la rotación permite que esas cien personas no participen todos los días, sino que son relevadas por otras comunidades o zonas o grupos de familias. Así, cada persona puede participar directamente en las calles cada varios días, o semanas incluso, permitiendo mantener la acción social de forma indefinida desgastando al aparato represivo y al Estado. En ciertas movilizaciones, como la que sucedió en setiembre de 2000, participaron rotativamente medio

102 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia

millón de aymaras (de un total de un millón y medio que viven en Bolivia), lo que revela que prácticamente toda la población estuvo de alguna manera involucrada a través de esta forma no jerárquica de división del trabajo.

El despliegue del abajo: las insurreccionesEn los años 90, en pleno auge del

neoliberalismo, se produjeron cambios importantes en El Alto. Al fortalecimiento de los movimientos sociales anotado arriba, debe sumarse un cambio notable en el escenario político. En las elecciones de 1989 un partido nuevo, CONDEPA (siglas de Conciencia de Patria), consigue el 65% de los votos desplazando sorpresivamente a los partidos tradicionales (MNR, MIR, ADN ) a posiciones marginales. Debe consignarse que esto sólo sucedió en El Alto y en La Paz, agudizando así un comportamiento diferenciado de los aymaras, que se mantuvo estable en el apoyo a CONDEPA durante casi una década.

CONDEPA fue formada por el popular locutor y cantante Carlos Palenque, a quien en 1988 el gobierno del MNR clausura sus medios de comunicación, Radio Metropolitana y Canal 4 que conformaban el Sistema Radio-Televisión Popular (RTP). Palenque y CONDEPA fueron rechazados por las elites y las clases medias mestizas y blancas, a quienes despreciaban por considerar los “populacheros” y sensacionalistas. Sin embargo, CONDEPA era la expresión de los aymaras pobres de ambas ciudades, aquellos sectores marginados y despreciados por las elites. “Fue un partido que no sólo expresó sino también reivindicó la reciprocidad y la cultura andina”, lo que le generó lealtades ciudadanas aceitadas por ayudas solidarias que Palenque conseguía a través de los medios en los que, además, denunciaba “el orden injusto imperante en nombre de los excluidos del juego económico, social, político y cultural”.

Aunque CONDEPA cayó en el mismo juego de corrupción y clientelismo que denunciaba, y no pudo recuperarse de la muerte de su líder en 1997, sufriendo una crisis de liderazgo que la llevó a su muerte política en las elecciones de 2002, tuvo un papel destacado en el crecimiento de la autoestima de los sectores populares aymaras. O, dicho de otro modo, CONDEPA surge cuando los aymaras pobres de las ciudades están en pleno proceso de autoafirmación que no podrían haber procesado a través de los partidos establecidos –de derecha o de izquierda–, sino utilizado un outsider al que

.3

visualizaban como parte de su mundo cultural. “La sólida constitución de la identidad cultural de los pobladores de El Alto se ha expresado en votaciones colectivas”, dice un estudio sobre el tema, lo que revela que en esa ciudad la votación “obedece a formas de comportamiento colectivo imbuidas de significado cultural”.

La crisis de CONDEPA es paralela al crecimiento del Movimiento al Socialismo (MAS) y el Movimiento indígena Pachakutik (MIP), que tuvieron muy buena votación en El Alto, y son los partidos más ligados a los nuevos actores sociales. Ya en 2003 el movimiento social alteño, que había iniciado un ascenso desde la “guerra del agua” en Cochabamba, en abril de 2000, y en las movilizaciones aymaras rurales de setiembre de ese año, se convierte en el principal actor del país. El 5 de marzo de 2001 la FEJUVE convocó un paro que se dejó sentir sobre todo en los barrios periféricos con tomas de calles y avenidas, en las que “se observa cómo las mujeres bloquean sentadas al medio de las avenidas picchando (masticando) coca y conversando en aymara o en castellano”, mientras las principales avenidas “se habían convertido en una especie de asambleas grupales donde incluso participan los niños y niñas”.

Crece la tendencia a organizarse por zonas y cuadras mientras en las grandes jornadas se produce una suerte de “reunificación interbarrial con características indígenas”, según Mamani. El año clave de 2003 comienza con acciones contundentes. Mientras el 12 y 13 de febrero se registra en La Paz el enfrentamiento armado entre policías sublevados y militares que los reprimen, en el que mueren 11 policías y 4 soldados, en la ciudad de El Alto una multitud asalta la alcaldía y las instalaciones de Coca Cola y las saquea e incendia. Es la segunda vez que la alcaldía de El Alto es incendiada por la multitud, en esta ocasión enfurecida por la mala gestión del alcalde del MIR. En esas jornadas, en las que son incendiadas las sedes de los principales partidos (MIR, MNR, ADN) y oficinas gubernamentales, mueren en La Paz y El Alto 33 personas.

El 1º de setiembre de ese año, mientras en las zonas rurales los campesinos se movilizan contra la venta del gas por Chile, en El Alto comienza la movilización contra los formularios Maya y Paya (uno y dos en aymara) que redundarían en el aumento de impuestos inmobiliarios. El 15 y 16 la ciudad está paralizada y la población se concentra ante la alcaldía, corta calles en cada barrio y las principales salidas de la ciudad. El mismo 16 la alcaldía retrocede anulando

3..As siglas correspondem, respectivamente, ao Movimiento Nacionalista Revolucionário, Movimiento de Izquierda Revolucionaria e Acción Democrática Nacionalista.

História & Luta de Classes - 103

los formularios, lo que significa un resonante triunfo de la movilización social. Pero el día 20 se produce la masacre de Warista (escuela-ayllu histórica para los aymaras, situada en Omasuyos, cerca del lago Titicaca), en el que mueren cuatro indígenas y un soldado.

En un clima de repudio y de indignación colectiva, el 2 de octubre se realiza un paro de 24 horas en El Alto mientras en la Radio San Gabriel se mantiene una huelga de hambre de la dirigencia aymara, encabezada por Felipe Quispe, dirigente de la central campesina CSUTCB . La ciudad se convierte en “factor estructurante de los indígenas en Bolivia”, tanto a nivel urbano como rural. A partir del 8 de octubre, se declara un paro indefinido en El Alto contra la venta del gas, convocado por FEJUVE, COR y la UPEA. El paro es masivo y se plasma en la ocupación de los territorios barriales por los vecinos, que cortan las calles y avenidas, cavan zanjas profundas para impedir el paso de camiones y tanques del ejército. El mismo 8 el ejército dispara hiriendo a dos jóvenes, pero la represión no cesa cobrándose 67 muertos y más de 400 heridos, siendo los días 12 y 13 los más violentos con 50 muertos.

Pese a la militarización de la ciudad y a la brutalidad de la represión, la población alteña consiguió la renuncia de Sánchez de Lozada. Y frenar la venta del gas. ¿Qué pasará en un país donde la población le ha perdido el miedo a los tanques, la represión violenta y la masacre? Todo indica que el futuro de Bolivia se ha desplazado desde las elites blancas y mestizas hacia los aymaras, quechuas, indígenas de todas las etnias y los pobres rurales y urbanos.

Un futuro lleno de sorpresasDespués de octubre de 2003, vino mayo-junio

de 2005. Es el quinto levantamiento aymara en lo que va del siglo XXI. El primer gran levantamiento se produjo el 9 de abril de 2000 con epicentro en Achacachi, provincia de Omasuyus. El segundo en septiembre y octubre del mismo año en toda la región del altiplano y valle norte del departamento de La Paz. Se han movilizado siete provincias de esta región aymara. El tercer levantamiento fue en junio-julio del año 2001 con epicentro también en la gran región del altiplano y duró cerca de dos meses. El cuarto tuvo su epicentro en la ciudad de El Alto, en octubre de 2003. Finalmente, el quinto levantamiento aymara se produjo en el mes de mayo-junio de 2005 y nuevamente el epicentro es la ciudad de El Alto. Las demandas centrales son la nacionalización de los hidrocarburos, una asamblea constituyente y una

4

férrea oposición a las autonomías departamentales (impulsadas por las elites de Santa Cruz). “Aquí nuevamente las juntas vecinales y organizaciones laborales se articulan como verdaderos gobiernos barriales.

Las decisiones se toman de forma colectiva y pública a través de las asambleas de barrio. Poco a poco este levantamiento se irradia, primero hacia al interior de los barrios, y después, nuevamente a otras provincias y departamentos del país”, sostiene Mamani. Esta vez el centro efectivo fue Senkata, planta de almacenamiento de combustible y gas licuado. Allí cientos de hombres y mujeres han hecho turnos durante noches y días a lo largo de 18 días para no dejar salir, como dice la gente: “ni una gota de gas” hacia la ciudad de La Paz y otros lugares.

Uno de los hechos más notables, y a la vez esperanzador, es que toda esta actividad social se ha realizado sin la existencia de estructuras centralizadas y unificadas. Tal vez el hecho de que entre los aymaras nunca haya existido un Estado, tenga alguna relación con ello. Sin embargo, la no existencia de ese tipo de aparatos centralizados no ha restado efectividad a los movimientos. Más aún, puede decirse que si hubieran existido estructuras organizativas unificadas, no se habría desplegado tanta energía social. La clave de esta abrumadora movilización social está, sin duda, en la autoorganización de base que abarca todos los poros de la sociedad, que ha hecho superflua cualquier tipo de representación. En segundo lugar, por primera vez el núcleo del movimiento indígena está situado en una gran ciudad, donde han surgido sólidas comunidades urbanas, lo que anticipa cambios profundos y de largo aliento en el movimiento social boliviana que, tal vez, puedan irradiarse hacia otros sujetos en otras partes del continente.

4..Sigla da Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia.

104 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia

Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?1

Gilson Dantas2

á um quase consenso no meio político sobre os males da dívida externa na sua condição de garrote ou de condicionante econômico sério que enfraquece o Estado nacional latino-americano e trava as políticas econômicas ligadas ao mercado interno. A renegociação da dívida externa de Kirchner, em março de 2005, vem sendo veiculada, desde então, como uma opção senão para a política social, pelo menos em termos de política externa ou de uma nova maneira de se lidar com as contas externas. No entanto, esse tipo de avaliação não apenas pode ser questionado como, por outro lado, já aparecem sinais de que o governo Kirchner travou uma renegociação que não favorece à economia argentina e ao seu povo.

Recente editorial da Gazeta Mercantil detecta um ´quadro preocupante´ na Argentina que vem captando grande volume de títulos de curto prazo bem mais do que sua capacidade econômica de gerar superávit para pagar juros da dívida. Ora, estamos diante do mesmo Kirchner, elogiado pelo FMI por ter, recentemente, adiantado pagamento de quase 10 bilhões de dólares da dívida . Onde está o novo caminho argentino de lidar com o FMI? Não estaremos reeditando o velho modelo?

Quando Kirchner renegociou a dívida, Bresser Pereira chegou a falar em “grande vitória da Argentina e grande derrota do FMI” e economistas mais críticos à economia capitalista do que Bresser, como Carlos Eduardo Carvalho, falam no “maior calote de que se tem registro” sem que qualquer desses economistas tenha se ocupado em submeter - no mesmo raciocínio - a qualquer crítica relevante a política social e financeira do Estado argentino.

É mais ou menos como se Kirchner tivesse apontado uma alternativa ou um caminho ao impasse do círculo vicioso da dívida externa e ainda por cima de uma forma pacífica, sem solavancos ou rupturas com a chamada comunidade financeira internacional.

Este artigo pretende problematizar esse ponto de vista e, especialmente, trazer argumentos em torno

3

4

de certas contradições que cercam a dívida externa argentina e, ao mesmo tempo, procurar mostrar o outro lado da questão Kirchner.

Em primeiro lugar, é preciso constatar que a renegociação da dívida praticada por Kirchner junto aos órgãos financeiros internacionais não se deu, aparentemente, nos termos leoninos em que vinha ocorrendo com seus antecessores como De la Rúa. No entanto, como apontam os fatos, o problema foi jogado para adiante ao mesmo tempo em que terminaram sendo preservadas as conveniências e os interesses fundamentais dos órgãos oficiais dos credores. É fato que se tratou de uma reestruturação da dívida através da qual certa parte do montante devido teve seu valor nominal reduzido em determinada percentagem, mas isso só se torna relevante se omitirmos que, no mercado, os papéis da dívida argentina não representavam, naquele momento, mais que 30% do seu valor nominal. Se este fato não for mencionado, fica parecendo que houve, pura e simplesmente, um deságio, que a dívida foi forçada a ficar menor.

E também é certo que os prazos de pagamento foram alongados e, quanto aos juros, estes foram em parte reduzidos, desde que não se considere que em relação a antes continuam altíssimos e são um disparate se comparados com o nível internacional. Por outro lado, há que considerar que tais procedimentos só se referem à parte da dívida, e a outra parte, importante, continua submetida à conhecida dinâmica da bola de neve (sobre os limites dessa renegociação voltaremos adiante).

De toda forma, é verdade que a moratória Argentina decretada em dezembro de 2001 e a renegociação subseqüente, lograda por Kirchner e aceita por Washington, representam uma novidade em termos latino-americanos recentes. Houve conflito de interesses, especialmente com os credores menores.

H

1

2

Artigo entregue para publicação em março de 2006.Gilson Dantas é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail:

[email protected] e [email protected]

3

4

Argentina sem Lavagna, editorial da Gazeta Mercantil de 29/11/2005.Folha de São Paulo de 14/3/2005.

História & Luta de Classes - 105

Para entender essa novidade, em primeiro lugar, é essencial ter claro que Kirchner jamais poderá ser entendido como um fenômeno econômico, de rebelião econômica, muito menos como um antiimperialista ou como um político de fortes bases sociais próprias. Pelo contrário, é um governo politicamente fraco, mesmo que ocupe um espaço eleitoral enorme. O dado que fez e ainda faz toda a diferença é o de que a Argentina - através do governo imediatamente anterior a Kirchner - decretou moratória de parte da dívida (em torno da metade dela) numa situação especialíssima: em meio a um processo que culminou com sublevação social radical, de movimentos piqueteros principalmente nas ruas de Buenos Aires. Movimentos – e aqui qualquer ênfase é pouca - que subverteram abertamente e por um bom tempo a ordem política argentina de tal forma que, naquele momento, não se podia prever onde aquele processo poderia parar. A elite tremeu de incerteza política .

Kirchner e sua política representam algo assim como uma espécie de filho bastardo daquele processo social de massa que explodiu em dezembro de 2001, e tanto moratória parcial quanto a renegociação subseqüente só são inteligíveis dentro daquela dinâmica. Ao mesmo tempo, a rebelião urbana daquele dezembro de mais de quatro anos atrás brotou no seio de um processo de pauperização sem precedentes da nação argentina. Nunca, como no começo do século XXI as condições sociais daquele país estiveram tão deterioradas, o país tão decaído, a vida social em tamanho descenso; a herança maldita do neoliberalismo menemista dos anos 90 estava estampada a céu aberto nos rostos, no perfil e composição social da massa rebelada.

Havia um contexto. Depois de Menem, o governo argentino vinha encontrando dificuldade para renegociar a mais elevada dívida externa da história argentina recente, dívida que alcançou o tamanho do próprio PIB da Argentina ao mesmo tempo em que o país mergulhava no desemprego, informalidade e decadência social. Quando o governo

5

6

Duhalde , ao final de 2001, partiu para a desvalorização do peso – fim da paridade peso-dólar - e, finalmente, para o corralito , a classe média viu seu sonho chegar ao fim. O resultado político todos conhecemos: o argentinazo explodiu nas ruas, o país ficou conjunturalmente ingovernável, a elite política absolutamente impopular e assembléias de bairros começaram a disputar poder com as instituições políticas oficiais.

Aquele levante social e a situação alcançada pela Argentina permitem decifrar o paradoxo de todos conhecido: um país mais fraco política e economicamente que o Brasil, com um governo mais frágil que o Lula, assumiu uma postura de enfrentamento verbal com o FMI e politicamente dura diante do violento endividamento externo para, ao final, conseguir uma renegociação que não foi conseguida pelo governo anterior, também neoliberal, de De la Rúa.

Desse ponto de vista, o que se pode afirmar é que o governo argentino apoiou-se em um processo de mobilizações sociais – e em determinada conjuntura internacional e do próprio governo estadunidense – condições, que, em todo caso, Kirchner aproveitou muito pouco, para forçar uma renegociação mais favorável da dívida. Aquelas mobilizações, em que pese sua radicalidade social, seu peso e seu alcance, deram ao governo o tempo necessário para aparecer com cacife político frente aos credores e ir forçando um determinado tipo de renegociação na mesma medida em que não se desenvolvia outra política alternativa a partir do movimento de massa . No saldo das vantagens para o sistema, pode ser contabilizada uma crescente revalorização do ´político´, a começar da figura do político-presidente como se viu nas recentes eleições (2005) onde Kirchner passou a controlar o Senado e venceu em 17 das 24 províncias argentinas.

Ou seja, a tendência do próprio movimento a autolimitar-se em termos de radicalização política, propiciou a um governo frágil a chance de parecer forte-e-moderado frente aos credores internacionais e

7

8

9

5

6

..

..

Ver Pablo Rieznik, Argentina: bancarrota econômica, dissolução social e rebelião popular. In América Latina: encruzilhadas da história contemporânea, Osvaldo Coggiola (org), São Paulo, Xamã, 2005, p. 111-119. Ver também Atílio Borón, 2005, Imperialismo, movimentos sociales y ciência crítica latino-americana – entrevista a Atílio Boron. Disponível no site da revista Herramienta n.28, março 2005: www.herramienta.com.ar/ . Para um pano de fundo histórico do processo na América Latina e Argentina ver Valério Arcary, As esquinas perigosas da história: situações revolucionárias em perspectiva marxista, São Paulo, Xamã, 2004.Eleito em 1989 (com 47,6% dos votos) e reeleito em 1995 (com 50%),

Menem foi substituído por De la Rúa em dezembro de 1999. Menem executou amplas privatizações na economia (óleo, mídia, telecom, etc.), desregulamentou o mercado de papéis favorecendo o capital financeiro internacional, cortou gastos sociais, ancorou o peso no dólar, ampliou a dívida externa e lançou o país no mais profundo desemprego. Essa política econômica era tida pelo FMI como um bom exemplo para todo o mundo. O que se sabe é que os frutos do crescimento econômico menemista se

concentraram no bloco dominante hegemonizado pelo capital financeiro internacional e seus sócios locais; a esse respeito ver Atílio Borón, Trás el búho de Minerva: mercado contra democracia en el capitalismo de fin de siglo, Buenos Aires, Argentina, Fondo de Cultura Económica, 2000. p.176. Duhalde, ex-governador da província de Buenos Aires de 1991 a 1999, foi

presidente interino em 2001, depois da queda de De la Rúa, e tomou a medida inédita de desvalorização do peso, rompendo com o sistema de convertibilidade que vigorava desde 1991.O embargo da poupança que atingiu em cheio a classe média argentina. Esse

verdadeiro confisco de pequenos depositantes do sistema bancário culminou um processo de evasão de 25 bilhões de dólares de divisas em apenas um ano por parte do grande capital financeiro internacional como nos mostra Pablo Rieznik, 2003, op. cit, p. 117.A respeito uma boa referência é o artigo de Roberto Ramírez, Os movimentos

piqueteros e o “argentinazo”, REVISTA História & Luta de Classes, Rio de Janeiro, ADIA ano 1, n.1, abril 2005, p. 101 a 110.

7

8

9

..

..

..

106 - Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?

ao imperialismo. Kirchner pôde crescer com sua fraseologia dura frente ao FMI (pelo menos publicamente) e pôde se credenciar diante dos dois lados do conflito sem deixar de ser um agente político que muda algumas coisas para que as coisas não mudem já que ele preservou a dinâmica essencialmente perversa do endividamento. Em outras palavras, permitiu a Kirchner poder postular-se como a única opção política ao caos e, especialmente, tornar aceitável uma reestruturação da dívida nos seus termos.

Já veremos que esses termos coincidiram, ao final, com os dos órgãos oficiais credores, já que Kirchner, basicamente, reciclou o garrote, manteve o país essencialmente hipotecado e apertado, comprometeu o futuro econômico argentino. Para certos autores como Gambina , o verdadeiro propósito dos credores não era cobrar o montante da dívida mas, sobretudo, condicionar a política econômica de países como Argentina e Brasil. Para o governo W. Bush não se trata propriamente de um problema se a dívida de países fortemente endividados for reduzida desde que se estabeleça uma situação financeira favorável para o capital rentista estadunidense . Neste caso são menos importantes os arroubos de Kirchner e de Lula quando adiantam o pagamento de parcela da dívida – e declaram que o país está se “independizando” do FMI – do que as felicitações de W. Bush e de Rodrigo de Rato (Diretor-Gerente do FMI) a esses governantes. Tudo isso fica mais grotesco quando se sabe que os quase 10 bilhões de dólares que Kirchner repassou para os credores são recursos desviados da economia interna, da educação e da saúde de um povo já combalido.

Kirchner vem sendo um governo confiável em termos da ditadura da dívida, e o saldo tem sido, como regra, positivo para a estratégia de absorção do impacto daquelas jornadas de dezembro por uma burguesia que continua executando o mesmo modelo, com pequenas variações, agora sem o absolutismo ou o conservadorismo político de Menem (Kirchner combate certos desmandos pontuais da magistratura, dos militares e da corrupção). Kirchner pertence a

10

11

12

uma corrente latino-americana de políticos que acredita que o capitalismo pode ser reformado e humanizado, mas tanto ele quanto Tabaré (Uruguai) e Lula multiplicam as concessões a Washington e se iludem com o projeto historicamente questionável de desenvolvimento do mercado interno baseado em grandes corporações estrangeiras .

E essa é que é a questão: para além de alguma ou outra concessão política, no caso da economia, esse governo está longe de representar um processo qualitativamente diferente dos seus antecessores: Kirchner é mais continuidade do que ruptura .

Nesse sentido, a chamada reestruturação da dívida mais esconde do que revela, em termos econômicos. Em primeiro lugar, para pactuar a reestruturação, o Estado argentino se comprometeu a um superávit primário altíssimo pelas décadas vindouras e considerando-se o perfil da economia da Argentina de Kirchner, o acordo reforça, consolida e aprofunda o modelo agro-exportador às custas do mercado interno e reforça os cortes de gastos públicos em serviços sociais essenciais como educação e saúde, o que conduz a um achatamento ainda maior do consumo do mercado local. Com o objetivo de reestruturar a dívida, Kirchner assumiu, para o Estado argentino, o compromisso de superávit primário de 4% por vinte anos e se comprometeu a aumentar as tarifas públicas e promover cortes em despesas sociais.

Através daquela reestruturação, a Argentina assume, decididamente, um papel de neo-colônia, de gerador de dólares para pagar dívida; consolida seu papel de grande exportador de grãos e de petróleo - o que não representa propriamente um progresso - depois de ter privatizado seus serviços essenciais e o principal de sua riqueza (toda a política privatista foi preservada por Kirchner). Ao mesmo tempo, a dívida passa a corresponder a uma parte maior ainda do PIB: de 57% passa a 85% do PIB, uma proporção bem mais avantajada que a brasileira, por exemplo .

E finalmente, mesmo com aqueles cortes orçamentários, mesmo com todo o engajamento agro-exportador, os dólares que aquele país consegue gerar

13

14

15

16

10

11

12

..

..

..

Julio C. Gambina, Argentina: o FMI está em festa! 16 dez 2005. Disponível no site: http://resistir.info/. Acessado: fevereiro 2006.

Ver Pablo Rieznik, Las formas del trabalho y la história: uma introducción al estudio de la economía política, 2ª ed, Buenos Aires, Argentina, Editorial Biblos, 2003, p.126, onde ele argumenta que uma quebra financeira da Argentina poderia arrastar o sistema para uma crise avassaladora. Por outro lado é preciso que se leve em conta que a Argentina deve pouco mais que 10 bilhões ao FMI, mas significa muito para este órgão que concentra 87% dos empréstimos em apenas cinco países (Turquia, Brasil, Argentina, Indonésia e Rússia, todos eles com dificuldades políticas de pagamento).

Existe também o outro lado do progressismo de Kirchner: as mudanças na Corte Suprema, uma conquista considerada democrática, virou apoio a certa política do governo Kirchner que inclui favores aos banqueiros, dificuldades para os pequenos poupadores e impunidade para crimes contra piqueteiros além de facilidades para o ´gatilho fácil´ da polícia contra o povo. Kirchner também envia tropas ao Haiti e faz manobras conjuntas com tropas dos Estados

Unidos. E como não falar em subordinação ao FMI se, nos dois primeiros anos do governo Kirchner, foram remetidos 7 bilhões de dólares para o exterior (para o FMI), a maior transferência maciça de dólares desde 1982?

Ver, sobre esta questão, Adriano Benayon, Globalização e desenvolvimento, São Paulo, Escrituras, 2005, p. 241 a 266, onde analisa o problema das empresas transnacionais e a transferência de recursos.

Segundo a Folha de São Paulo de 8/10/2005: os salários reais na Argentina estão menores que em 2001 e se for comparado 2005 com 2001, apenas ¼ dos 5,5 milhões de trabalhadores formais (registrados) da Argentina conseguiram recuperar a inflação no seu salário. Não por acaso recomeçaram as greves em várias categorias, informa também aquele jornal.

Superávit primário é a diferença entre a receita e os gastos de Estado antes do pagamento do serviço da dívida.

A respeito da evolução da dívida argentina, ver Gilson Dantas, Kirchner: opção em política econômica ou política econômica sem opção?, 14 março 2006, disponível no site: www.duplipensar.net.

13

14

15

16

..

..

..

..

História & Luta de Classes - 107

só pagam parte do serviço da dívida, fato que a imprensa conservadora brasileira já começou a vocalizar. É por conta desse mecanismo que se torna necessário urgente e continuamente, a busca de recursos lá fora, eufemismo para ampliação do endividamento, para reedição do modelo velho conhecido nosso do quanto-mais-se-paga-mais-se-deve. Ou, nas palavras de Esquivel, quanto mais se paga, mais se deve e menos se tem. Em algum momento o economista Joseph Stiglitz já argumentou que “a receita liberal é boa para quem dita as regras, mas é péssima quando se trata de criar empregos e gerar rendas”.

Lançar títulos do governo oferecendo taxas de juros que estão entre as mais altas do mundo – como fazem Kirchner e também Lula, às custas de recursos para investimentos público-sociais vangloriando-se de estarem reduzindo o risco-país ou se “independizando” de alguma coisa – é nada mais que aprofundar o endividamento externo e sua condição de país-refém do capital rentista internacional. E há um dado novo: a partir da reestruturação, a pesificação da dívida pública Argentina deu um pulo – 40% dela está hoje fixada em pesos , o que significa que qualquer aceleração inflacionária sufocará até o intolerável o orçamento público. O modelo Kirchner: ou se aumenta impostos, ou se reduz gastos (e se promove elevações tarifárias) ou se emite mais dívida pública, tudo amparado pelo superávit primário de exportações...

No final de contas, quando aquela reestruturação é examinada de perto, novas contradições aparecem, contradições que só reforçam um caráter de propaganda enganosa em quase todo o discurso da mídia amestrada que incensa Kirchner como um ´novo caminho´ para a América Latina. O alongamento do perfil da dívida se deu – como já foi mencionado - com a manutenção de juros altos até em termos internacionais (embora menores que os de 2001). Pior ainda, grande parte dessa dívida que estava em moratória e que teve seu valor nominal reduzido, se refere a pequenos poupadores, em sua maioria italianos aposentados ou pequenos investidores fora dos Estados Unidos e na própria Argentina, que compravam papéis da dívida externa argentina através dos seus bancos, esperando fazer crescer sua poupança; ao final, esses poupadores se deram mal e há varias matérias na imprensa onde essa parte da classe média põe a boca no trombone (eles representam quase metade da dívida que não será reembolsada integralmente por Kirchner embora seus operadores de risco irão continuar recebendo juros altos por essa dívida pós-deságio).

17

O fato econômico novo, no qual Kirchner se apoiou para pressionar aos credores, foi também esse, o de que ao contrário dos anos 80, parte importante dos papéis da dívida encontra-se pulverizada nas mãos de pequenos devedores, de vários bancos que se encontram fora dos grandes grupos financeiros internacionais (por estes, o FMI responde). Este dado permitiu ao governo Kirchner certa margem de manobra impensável nos anos 80: o poder político de pressão desses pequenos investidores é menor do que o do sistema financeiro oficial.

E quanto àquela questão dos juros da dívida que se manterão altos, ela é essencial, faz toda a diferença: para a economia argentina é muito mais penosa a marcha forçada sob juros elevadíssimos do que a desvalorização de parte dela ou alongamento do prazo de pagamento do estoque de uma dívida que muito credor já não espera receber (aliás, os credores vão continuar se nutrindo dos juros que estão entre os maiores do mundo). Colocando em outros termos: os juros sedutores interessam mais que o montante. Sem falar que, desde a moratória de 2001, mais de 27 bilhões de dólares já levantaram vôo do país. Ou seja, não se pode esquecer, em qualquer análise, que os grandes credores já se anteciparam a qualquer perda a qualquer transformação do seu ´crédito´ em papéis podres. O sistema financeiro, que vai continuar especulando com os papéis da dívida externa argentina, sabe muito bem, por outro lado, que país com calote no currículo tem que pagar juros altos se quer continuar no sistema. Isso é praxe no mercado de papéis.

Por tudo isso é que o fato já mencionado de Kirchner fazer propaganda governamental em torno do pagamento antecipado de parcela da dívida chega a ser acintoso: a pressão do FMI pode ser menor, mas com a reestruturação os recursos fiscais ficam comprometidos por longo período. E as políticas do FMI serão aplicadas igualmente para honrar os compromissos com os credores além de uma eterna política de ajuste, com gastos sociais controlados – salários dos funcionários públicos, pensões e aposentadorias, saúde e educação – ao mesmo tempo em que se manterá uma política de arrecadação regressiva aplicada com todo rigor sobre os setores mais preteridos da sociedade .

Kirchner quer continuar no sistema, já mostrou isso, e ao hipotecar a economia Argentina (comprometendo-se ao superávit, aos juros altos, etc), ele está, de fato, pactuando com um sistema que é capaz de suportar as “pressões de Kirchner”, ou suas bravatas políticas desde que obtenha, em troca, as vantagens concretas, decisivas que, no caso, o capital

18

17..Ver Cláudio Katz, O segredo dos papéis, Reportagem n.67, São Paulo, Editora Manifesto, abril 2005, p. 45-46. 18..

Gambina, 2005, op. cit.

108 - Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?

financeiro terminou obtendo. Principalmente quando os credores sabem que se trata de um país que ameaçou, com os movimentos piqueteiros de dezembro de 2001, fugir totalmente ao controle político e econômico dos Estados Unidos e, ainda por cima dentro de uma conjuntura política latino-americana particularmente caliente, onde uma Argentina em chamas serviria de mau exemplo para o resto do continente. Lula, na época (e apenas na época) era parte de um susto que ecoava naqueles protestos de massa na Argentina, e que levaram à derrubada de presidentes igualmente acuados por uma pressão duríssima dos credores da dívida.

É no seio desse processo que se insere tanto a margem de manobra de um governo politicamente fraco (e que soube tirar vantagem dessa fraqueza) e que, mesmo assim, renegociou a dívida sem mudar o essencial, sem romper com a jaula de ferro dos juros e do ciclo de crescimento incessante da dívida. Estamos em 2006: a dívida externa argentina retoma seu crescimento na medida em que o governo terá que buscar dólares lá fora para cobrir um serviço da dívida que nem todo o esforço gerador de divisas da economia argentina consegue dar conta.

História & Luta de Classes - 109

NESTA EDIÇÃO

Francisco DominguezEl ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea

Tiago Coelho FernandesMariátegui e as raízes da rebelião indígena

Gilberto CalilO Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina

Carlos Batista PradoCuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina

Enrique Serra PadrósAmérica Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado

José Pedro Cabrera Cabral

Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004

Renato BarbieriColombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia

André Francisco Berenger de Araújo“Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina

Roselena Leal ColomboCuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário

Katia I. Marro

Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina

Carla FerreiraBolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano

Raúl ZibechiEl Alto: un mundo nuevo desde la diferencia

Gilson DantasKirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?

América América

ContemporâneaLatina