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 HISTÓRIA DA  VIDA PRIV ADA Da Primeira Guerra a nossos dias Organização  Antoine Prost Gérard Vincent Tradução Denise Bottmann Dorothée de Bruchard (posfácio)  -  reimpressão 5

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HISTÓRIA DA 

 VIDA PRIVADA Da Primeira Guerra a nossos dias 

Organização Antoine ProstGérard Vincent

TraduçãoDenise BottmannDorothée de Bruchard (posfcio)

1ª - reimpressão

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Copyright © 1987 by Éditions du Seuil

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.

 Título original Histoire de la vie privée — Vol. 5 : De la Première Guerre mondiale à nos jours 

Na verso de bolso, foram suprimidas imagens que constam na primeira edioda série, que vem sendo publicada pela Companhia das Letras desde 1989.

Capa Jeff Fisher

PreparaçãoCludia Abeling

 Revisão

 Adriana MorettoRenato Potena Rodrigues

 Índice remissivo Juliane Kaori

2009

 Todos os direitos desta edio reservados àEDITORA SCHwARCz LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — So Paulo — SP

 Telefone: (11) 3707-3500Fa: (11) 3707-3501 .companhiadasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

História da vida privada, 5: Da Primeira Guerra a nossos dias / organiao Antoine Prost, Gérard Vincent; traduo Denise

Bottmann; Dorothée de Bruchard, posfcio. — So Paulo:Companhia das Letras, 2009.

 Título original: Histoire de la vie privée — vol. 5: De laPremière Guerre mondiale à nos jours.

 Vrios autores.Bibliografia.isbn 978-85-359-1437-5

1. Europa — Civiliao 2. Europa — História 3. Europa— Usos e costumes i. Prost, Antoine. ii. Vincent, Gérard. iii.Bruchard, Dorothée de.

09-02437 cdd- 940.1

Índice para catlogo sistemtico:1. Europa: Vida privada: Civiliao: História 940.1

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SUMáRIO

 A dificuldade de escolha — Gérard Vincent, 7 

FRONTEIRAS E ESPAçOS DO PRIVADO — Antoine Prost, 13O trabalho, 18

 A família e o indivíduo, 53 Transiões e interferências, 99

UMA HISTÓRIA DO SEGREDO? — Gérard Vincent, 137 Segredos da história e história do segredo, 138Guerras ditas, guerras silenciadas e o enigma

identitrio, 179Segredos de família, 223O corpo e o enigma seual, 282

 AS DIVERSIDADES CULTURAIS, 365 Os católicos: o imaginrio e o pecado — Gérard Vincent, 366 Ser comunista? Uma maneira de ser — Gérard Vincent, 398Ser judeu na Frana — Perrine Simon-Nahum, 428Ser imigrante na Frana — Rémi Leveau e Dominique

Schnapper, 455 

 MODELOS ESTRANGEIROS, 487 Uma vida privada francesa segundo o modelo americano — 

Sophie Body-Gendrot, 488Um modelo de transparência: a sociedade sueca — KristinaOrfali, 536 

1.

2.

3.

4.

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Posfcio — Gérard Vincent, 567 Bibliografia, 611Índice remissivo, 623

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1FRONTEIRAS EESPAçOS PRIVADOS Antoine Prost 

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 A vida privada no é uma realidade natural, dada desde aorigem dos tempos: é uma realidade histórica, construída dediversas maneiras por sociedades determinadas. No eiste uma

 vida privada de limites definidos para sempre, e sim um recorte

 varivel da atividade humana entre a esfera privada e a esferapública. A vida privada só tem sentido em relao à vida pública,e sua história é, em primeiro lugar, a história de sua definio:como evoluiu a distino entre vida privada e vida pública na so-ciedade francesa do século xx? Como o domínio da vida privada

 variou em seu conteúdo e abrangência? Assim, a história da vidaprivada comea pela história de suas fronteiras.

 A questo é tanto mais importante na medida em que no écerto que a distino vida privada/vida pública tenha o mesmosentido em todos os meios sociais. Para a burguesia da BelleÉpoque, no h nenhuma dúvida: o “muro da vida privada” se-para claramente dois domínios. Por trs desse muro protetor, a

 vida privada e a família coincidem com bastante eatido. Essedomínio abrange as fortunas, a saúde, os costumes, a religio:se os pais que querem casar os filhos consultam o notrio ou o

proco para “tomar informaões” sobre a família de um even-tual pretendente, é porque a família oculta cuidadosamente aopúblico o tio fracassado, a irm tísica, o irmo de costumes dis-solutos e o montante das rendas. E Jaurès, respondendo a umdeputado socialista que lhe censurava a comunho solene dafilha: “Meu caro colega, você sem dúvida fa o que quer de suamulher, eu no”, marcava com grande preciso a fronteira entre

sua eistência de homem público e sua vida privada.Essa separao era organiada por uma densa teia de pres-criões. A baronesa Staffe, por eemplo, enumera-as em deta-

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lhe: “Quanto menos relaões mantemos com a viinhana, maismerecemos a estima e a considerao dos que nos cercam...”,“no trem ou em qualquer outro local público, as pessoas bem--educadas jamais travam conversa com desconhecidos...”, “nodevemos falar de assuntos íntimos com os parentes ou amigosque viajam conosco na presena de desconhecidos”.1 O aparta-mento ou a casa burguesa, alis, se caracteriam por uma nítidadiferena entre as salas para as visitas e os demais aposentos. Deum lado, o que a família mostra de si, o que pode vir a público,o que ela julga “apresentvel”; de outro, o que ela conserva aoabrigo de olhares indiscretos. O lugar da família propriamente

dita no é no salo: as crianas no entram no aposento quandoh visitas e, como eplica a baronesa Staffe, as fotos de famíliaficariam deslocadas nesse recinto. Ademais, as salas de visitasno so abertas a todos. Se toda dama da boa sociedade tem seu“dia” de receber — em 1907, so 178 em Nevers2 —, a visita àesposa de um figuro supõe uma apresentao prévia. As salasde recepo estabelecem, portanto, um espao de transio en-

tre a vida privada propriamente dita e a eistência pública.Se a vida privada constitui, assim, um domínio claramentedelimitado para a burguesia da Belle Époque, no ocorre neces-sariamente o mesmo nos outros meios sociais. As condiões de

 vida dos camponeses, dos operrios ou das camadas mais baiasdas cidades no lhes permitiam abrigar de olhares estranhosuma parte de sua vida, que é justamente o que fa com que ela setorne “privada”. Sigamos, por eemplo, Jean-Paul Sartre num

passeio pelas ruas populares de Npoles:3 

O andar térreo de cada casa é dividido numa infinidade depequenos cômodos que do diretamente para a rua, e cadaum desses pequenos cômodos abriga uma família. [...] Oscômodos servem para tudo, e l eles dormem, comem etrabalham em seus ofícios. Apenas [...] a rua atrai as pessoas.

Elas saem, por economia, para no precisar acender as lâm-padas, para tomar a fresca e também, creio eu, por humanis-mo, para se sentir participando do bulício com os demais.

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Põem cadeiras e mesas na rua ou encavalitadas na soleira doquarto, meio para dentro, meio para fora, e é nesse mundointermedirio que realiam os principais atos de sua vida. A tal ponto que j no eiste mais o interior nem o eterior,

e a rua é o prolongamento do quarto; enchem-na com seusodores íntimos e seus móveis. E com sua história também.[...] E o eterior est ligado ao interior de uma maneira or-gânica. [...] Ontem, vi um pai e uma me que jantavam dolado de fora, mas, dentro, o bebê dormia num bero pertoda cama de casal dos pais e, numa outra mesa, a filha mais

 velha faia seus deveres, à lu de uma lâmpada a querosene.

[...] Quando uma mulher adoece e fica na cama durante odia, isso é às claras e todos podem olh-la [...].

É evidente que a vida privada no tem o mesmo sentido nemo mesmo conteúdo para o povo napolitano e para os burguesesfranceses da Belle Époque.

Pode-se, certamente, refutar tal comparao. As tradiões

culturais so diversas, e essa interpenetrao do interior e do e-terior, ilustrada pelas ruas de Npoles, pode ser vista como traode uma cultura mediterrânea que poderia se encontrar nas cida-des, pequenas ou grandes, do Sul da Frana. Nem por isso: asmoradias de Roubai, os bairros da regio mineira, os imóveisda Croi-Rousse ou as vilas de Berry ou da Lorena praticamenteno permitiam que seus habitantes erguessem uma parede entre

sua vida privada e os olhares dos viinhos; toda a eistência de-les transcorria de forma mais ou menos aberta para a coletivida-de. Num certo sentido, ter uma vida privada era um privilégiode classe: o de uma burguesia folgada que, em muitos casos, vi-

 via de rendas. Por fora das circunstâncias, as classes trabalha-doras conheciam formas variadas de interpenetrao de sua vi-da privada e de sua vida pública; as duas no se diferenciavam

de todo. Nesta perspectiva, o século  xx veria se generaliar len-tamente em toda a populao uma forma de organiao da vi-da com dois domínios opostos e claramente distintos: o público

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e o privado. A história da vida privada seria, ento, a história desua democratiao.

  Mas que no se entenda essa democratiao de maneiramecânica e simplista. A vida privada a que acedem os operrios

ou os agricultores do final do século  xx no é a mesma dos bur-gueses do início do século. O que, ao mesmo tempo, se constituifora dessa vida privada enfim conquistada, e que se pode dierpúblico, é regido por normas novas. A maior diferenciao entreo privado e o público no conjunto da sociedade modifica tanto a

 vida pública quanto a vida privada. Ambas j no se desenrolamda mesma maneira, nem segundo as mesmas regras. Enquanto

suas fronteiras se deslocam e se definem com maior preciso,simultaneamente sua substância se transforma.Isso significa uma história complea que deve captar como

a vida privada se constitui e se erige sobre uma eistência lar-gamente coletiva e, ao mesmo tempo, como ela se organia nointerior de suas fronteiras. Programa, na verdade, tanto menosfactível na medida em que, além disso, deve-se levar em contaas diferenas relativas aos meios sociais e às tradiões culturais.

 Aqui, portanto, no pretendemos realiar essa tarefa impossí- vel. J nos sentiríamos satisfeitos em destacar os grandes eiosdessa evoluo, em colocar os principais problemas, em esboaros maties mais importantes, esperando que trabalhos menosambiciosos, mas mais precisos, venham a verificar ou alterarnossas hipóteses.

NOTAS

1. Baronesa Staffe, Usages du monde. Règles du savoir-vivre dans la société moderne, Paris, Victor-Harvard, 1893, pp. 342, 317 e 320.

2. G. Thuillier, Pour une histoire du quotidien, Paris, Mouton, 1977, p. 178.3. J. -P. Sartre, Lettres au Castor et à quelques autres , Paris, Gallimard, 1983,

 vol. I, p. 79.

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O TRABALHO

  A primeira grande evoluo do século  xx di respeito aotrabalho. Ele emigra globalmente da esfera privada e ingressana esfera pública.

 Trata-se de um duplo movimento. Em primeiro lugar, um

movimento de separao e especialiao dos espaos: os locaisde trabalho j no so mais os da vida doméstica. Mas essa dife-renciao dos locais vem acompanhada por uma diferenciaodas normas: o universo doméstico se liberta de regras anterior-mente ligadas ao trabalho que ali se realiava, ao passo que omundo do trabalho passa a ser regido, no mais por normas deordem privada, e sim por contratos coletivos.

 A ESPECIALIzAçãO DOS ESPAçOS

No se tem dado ateno suficiente aos locais de trabalho.No comeo do século  xx, porém, havia uma grande diferenaentre trabalhar na própria casa ou na casa dos outros. O ideal,para uma jovem, é ficar na casa dos pais sem trabalhar. Se pre-cisar, o melhor é que trabalhe permanecendo na casa dos pais,por eemplo, costurando por encomenda. É somente nas ca-madas mais baias da escala social que uma jovem vai trabalharfora: na fbrica, na oficina ou na casa de um particular, comodoméstica.1

Ora, no comeo do século, quase dois teros e certamentemais da metade dos franceses trabalhavam em casa. No final doséculo, pelo contrrio, quase todos os franceses trabalham fora.

É uma transformao decisiva.

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 A RETRAçãO DO TRABALHO EM CASA 

No comeo do século  xx, trabalhar em casa corresponde aduas situaões distintas, ainda que eista uma gama de situaões

intermedirias e seja fcil a transio entre elas. Pode-se traba-lhar em casa, mas para outra pessoa: é a situao dos trabalha-dores em domicílio. Mas pode-se também trabalhar por contaprópria, no caso dos trabalhadores independentes. Ora, sob es-sas duas formas, o trabalho em casa sofre uma retrao ineor-

 vel ao longo do século.

Os operários em domicílio

É muito difícil calcular o número daqueles que trabalhamem casa. Mas, no comeo do século, totaliam vrios milhões. Osrecenseamentos da época registram os chamados “isolados”: em1906, somam 1, 502 milho. Entre eles, sem dúvida, incluem--se diaristas ou jornaleiros sem empregador fio, que deiamo domicílio para ir trabalhar ora na casa de um, ora na casa deoutro. A maioria, porém, trabalha em casa. No setor têtil, de

 vesturio, calados e luvas, mas também em outros setores, co-mo fabricao de óculos, joias etc., os comerciantes fornecem omaterial para numerosos operrios — e operrias —, que traba-lham em domicílio. Ora so eles que levam a matéria-prima ouo material para acabamento, e vo buscar o servio pronto; oraé o operrio que vai buscar o trabalho na casa do comerciante,e depois entrega o produto acabado. Nos dois casos, o operrio

recebe por tarefa. A situao dos operrios em domicílio é muito diversificada.De modo geral, so etremamente mal remunerados, e ganhammenos do que os operrios de fbrica. Precisam trabalhar des-de o amanhecer até altas horas da noite, para sobreviver demaneira miservel. A família de Mémé Santerre2 nos ofereceum eemplo etremo. Na verdade, esses tecelões de Santerre

constituem resquícios de um modelo econômico anterior, poisàs vésperas de 1914 a tecelagem fabril j é um fenômeno gene-raliado. Alis, eles só trabalham em seus teares nos seis meses

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de inverno; na primavera, vo se empregar numa faenda deSeine-Inférieure, de onde retornam no outono com ganhos quelhes permitem saldar as dívidas contraídas durante o inverno:trabalhar como empregado na casa dos outros d mais dinheirodo que ser tecelo na própria casa. De nada lhes vale possuir otear e a habilidade: a tecelagem j no lhes permite viver. Noentanto, eles se impõem condiões terríveis de vida e de traba-lho: levantando às quatro da manh, o pai e os filhos descemao poro, para seus teares; a me prepara as tramas, e os tearesumbem até as de da noite — quine horas de trabalho efeti-

 vo, na umidade e amiúde à lu de velas. Faem um intervalo de

manh para uma ícara de café de chicória com po, uma sopaao meio-dia e outra no final da tarde. Aos domingos, comocatólicos fervorosos, eles vo à missa, mas trabalham durante oresto do dia. Trabalham até no dia do casamento de CatherineSanterre, e podemos ter uma ideia da pobrea deles ao saber queesse dia to festivo foi comemorado com costeletas de carneiro,à guisa de banquete...

 Ao lado desses casos miserveis, é verdade que se encontramsituaões bastante favorveis. Por eemplo, os confeccionadoresde luvas que trabalham em domicílio, em Millau, constituemuma aristocracia operria nos anos 1920; mas a luva de Millau,nessa época, é um artigo de luo, frente à qual a produo in-dustrial de luvas de Grenoble j no constitui concorrência. Namaioria das vees, porém, os operrios que eecutam seus ofí-cios em casa vivem muito mal e trabalham duro: esta é uma das

raões de seu gradual desaparecimento.Do ponto de vista que aqui nos interessa, o da vida priva-

da, podemos faer vrias perguntas. Onde situar a vida privadade Catherine Santerre? No barranco da estrada, perto de casa,onde tem alguns encontros rpidos com seu namorado e futuromarido? Na cama onde dorme, esgotada de cansao? Na frentede seu tear? O trabalho, sem dúvida, est totalmente integrado à

esfera privada, mas ele a absorve inteiramente: a vida e o traba-lho se confundem. E, no caso dos tecelões, o próprio espao do-méstico se subdivide: o trabalho é realiado num local à parte,

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o poro, e a vida material num outro local, no térreo. Eles notrabalham no mesmo lugar onde comem e dormem. Na maioriadas vees, a mescla entre o trabalho e a vida doméstica se tradupela indiferenciao do espao. Léon Frapié, em  La maternelle[O jardim-de-infância], ironia os preceitos da escola maternal:“Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”, e eleapresenta uma costureira do xx arrondissement que trabalha emcasa e tem de limpar a mesa de refeiões para comear a costurarou para permitir que o garoto faa suas liões de casa.3 A ei-guidade da moradia popular é tal, tanto no século xIx quanto naprimeira metade do século  xx, que raramente permite reservar

uma mesa ou um local específico para o trabalho.O fato de o trabalho ser feito em casa gera uma relativaabertura do espao doméstico aos estranhos. A costureira às ve-es recebe seus fregueses; o tecelo e o confeccionador de luvasabrem a porta aos comerciantes ou seus empregados. Local detrabalho, a sala onde mora a família até pode se converter emlocal dos conflitos de trabalho. Assim, Jean Guéhenno guardou

uma dramtica lembrana de infância. Seus pais moravam emFougères e faiam sapatos em casa, com formas recortadas queiam buscar às dúias na casa dos fabricantes. Durante uma grevedo setor de calados, no comeo do século, seu pai, j no fim deseus recursos, acabou cedendo e foi buscar formas para coser. Osgrevistas ficaram sabendo e irromperam na casa dos Guéhenno,para repreender o fura-greve.4 Assim, os conflitos mais públicospodem ter como palco um local privado. De certo modo a pessoa,

quando trabalha em casa, j no tem sua própria casa.O trabalho domiciliar se retraiu no apenas por raões eco-

nômicas, embora estas tenham sido incontestavelmente deter-minantes. O desejo de ganhar mais e com maior regularidade é,de fato, acompanhado pelo desejo de reduir o tempo dedicadoao trabalho: quando a pessoa trabalha numa fbrica, ela sabe omomento em que o trabalho vai parar. O tempo que escapa ao

patro, e cuja importância aumenta ao longo do século, perten-ce à pessoa, que pode dispor inteiramente dele. Trabalhar forade casa é também estar plenamente em casa na hora em que se

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est em casa. Nesse sentido, a retrao do trabalho domiciliarresponde à reivindicao de uma vida privada.

Isso no significa, porém, que o trabalho em domicílio te-nha desaparecido de todo. No recenseamento de 1936, contam--se ainda 351 mil operrios que trabalham em casa. Com efeito,h outros fatores que contribuem para renovar esse grupo.Durante a crise dos anos 1930, por eemplo, devido a uma po-lítica que tendia a limitar o acesso dos estrangeiros ao mercadode trabalho, um imigrante tinha mais facilidade em encontrarservio por encomenda do que um emprego assalariado. Comoisso também coincidia com o interesse dos fabricantes em redu-

ir os custos e com as tradiões e o modo de vida de inúmerosimigrantes da Polônia ou da Europa Central, ocorreu ento umaumento no número de trabalhadores em domicílio na indústriaparisiense de couro e peles. O grupo Manouchian iria encontrarbons recrutas entre esses individualistas, amiúde judeus.

O trabalho domiciliar hoje [1985] aparece como um fenôme-no marginal e residual. De fato, ele é incompatível com a organi-

ao atual da vida privada, que reserva a ela o espao domésticoe o tempo “livre” conquistado sobre o trabalho. Como alguém,hoje em dia, aceitaria trabalhar em casa para terceiros, quando aspessoas j nem aceitam trabalhar por conta própria?

Os trabalhadores independentes 

Sendo, de fato, mais numerosos do que os operários em do-

micílio, os trabalhadores independentes também sofrem uma re-tração, porém mais tardia. No começo do século  xx, constituíam,sozinhos, mais da metade da população: 58% de agricultores,aos quais se somavam os artesãos e os comerciantes, sem contaros profissionais liberais. Em 1954, o recenseamento já registravaapenas um terço de não-assalariados. Em 1982, eles compõem so-mente 16,7% dos ativos: o trabalho independente também acabou

por sofrer uma retração maciça diante do trabalho assalariado.Esses números traduem grosseiramente uma mutao socialde primeira importância, que confere à família uma significao

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radicalmente nova. Entre os camponeses, os comerciantes e osartesos, a família é uma unidade de produo autônoma, umacélula econômica. A família inteira, portanto, é mobiliada pelalavoura ou pelo comércio. Todos os seus membros, em diversosgraus e sob diferentes formas, levando em conta a idade, a fora,as capacidades, participam da produo: no campo, os meninos eos velhos levam “as vacas para pastar”, o garoto de catore anosfa os serviços rurais avulsos, a mulher reina no estábulo, na horta eno galinheiro... e nunca sobram braos na hora de guardar o fenoou colher a safra, principalmente quando ameaa uma tempestade.Entre os comerciantes e artesos, a mulher geralmente cuida da

contabilidade, e os filhos, ao voltar da escola, ajudam na loja ou fa-em servios de rua. Toda a família ajuda a tocar o sítio ou a loja.Essa participao integral da família numa mesma ativi-

dade econômica acarreta um relativo emaranhamento entre a vida privada e o trabalho produtivo. Emaranhado evidente noplano financeiro: a caia é uma só, e o filho do merceeiro pegana gaveta do balco o dinheiro para passar o domingo. Os dois

oramentos se misturam: o dinheiro que a camponesa gasta paracomprar café, chocolate ou um leno é um dinheiro que pode  vir a faltar na hora de pagar o arrendamento ou de comprargado. A conteno das despesas privadas é, portanto, o principalmeio — e muitas vees o único — de equilibrar as contas dosítio ou de juntar o capital produtivo. O sucesso do empreendi-mento se constrói sobre o arrocho das despesas domésticas.

É verdade que, em contrapartida, o negócio é privado: o êito

do grupo familiar se inscreve claramente no espao coletivo, e olugar da família nas hierarquias locais se epressa pela etensode suas terras, pelo volume de gado em parceria, pelo número detrabalhadores contratados ou pela fachada recém-pintada da loja.Por ser de ordem econômica, o êito privado também é público.

 Mas, por isso mesmo, o capital produtivo (ponto comercial, terras,gado em parceria etc.) constitui um patrimônio transmissível que

é partilhado entre os herdeiros, por vees contrariando qualquerlógica econômica. Quando o empreendimento familiar cresce epassa a empregar assalariados, manifesta-se a contradio entre seu

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carter privado e sua funo econômica, pública por definio: osassalariados ficam sujeitos a perder o emprego na esteira de aconte-cimentos puramente privados, como a morte do empresrio.

Unido pela necessidade de sua funo econômica, esse tipode família desempenha um papel determinante tanto na educa-o dos jovens quanto no atendimento dos velhos. Seja na her-dade, na oficina ou na loja, o filho aprende o ofício com os paisou amigos dos pais, e a própria aprendiagem é concebida comouma relao familiar, de ordem privada. No outro etremo da

 vida, os velhos incapaes de se sustentar encontram abrigo nacasa de um dos filhos. No que a família seja aquela família

patriarcal descrita por uma mitologia complacente:5 na maioriadas regiões da Frana, à eceo do Sudoeste, o lar camponêsse redu ao casal e filhos, àquilo que os sociólogos chamam defamília nuclear; o casal de avós fica morando no muito longe,num arrendamento menor, mas mantendo sua própria casa pelotempo que for possível; quando j no d mais, principalmentequando a avó morre antes do marido, o velho vai morar com os

filhos. Assim, além da funo econômica, a família desempenhauma funo educativa e uma funo assistencial.

 A retração das empresas familiares 

Podemos ver como o desenvolvimento do trabalho assalaria-do retira a funo econômica da família e como a emigrao dotrabalho, saindo da esfera doméstica, vem acompanhada por uma

socialiao crescente da funo educativa e da funo assisten-cial. A escolariao dos aprendiados profissionais e a previdên-cia social substituem a família. Mas as causas dessa evoluo somenos simples do que suas consequências.

 As raões econômicas so, sem dúvida, determinantes tantopara o trabalho independente quanto para o trabalho domiciliar.Os pequenos sítios ou as pequenas lojas de comércio no conse-

guem garantir a oferta dos produtos agrícolas ou de mercadoriasde largo consumo a preos competitivos. O protecionismo e oatraso da economia francesa contiveram por muito tempo a retra-

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o dessas empresas familiares. Por outro lado, desde a SegundaGuerra Mundial, ela foi acelerada pelo esforo de moderniaoe, apesar dos sobressaltos dos camponeses ou lojistas lutando pelasobrevivência e reivindicando a preservao de diversas vanta-gens (preos mínimos, reduo de impostos), com manifestaõesespetaculares organiadas, por eemplo, pela FNSEA  (FédérationNationale des Syndicats d’Eploitants Agricoles), pelo movi-mento Poujade (1953-1956) ou pelo CIDUNATI (ConfédérationIntersyndicale de Défense et d‘Union Nationale d‘Action des

 Travailleurs Indépendants), de Gérard Nicoud, o mercado impõesua lei ineorvel, parcamente atenuada em um ou em outro as-

pecto por medidas sociais ou por leis como a de 1973, que reduiaas implantaões de grandes superfícies.

 A evoluo social também é importante. A retrao das em-presas familiares est ligada ao desenvolvimento dos benefíciossociais obtidos pelos assalariados. O fato j é visível na agricul-tura, onde o filho que, hoje, trabalha com seu pai é muitas veesregistrado como trabalhador rural. Esse aspecto é muito impor-

tante no comércio e no artesanato. A diminuio do número depatrões na indústria e no comércio, que em 1982 no represen-tam mais do que 7,8% dos ativos contra 12% em 1954, 10,6%em 1962 e 9,6% em 1968, é muito mais acentuada do que a daspróprias empresas comerciais ou artesanais. Aqui convergemdois fenômenos: de um lado, uma lenta eroso do pequeno co-mércio e do artesanato, que fa com que o número de empresas

que anualmente fecham suas portas seja maior do que as novasempresas que surgem. De outro lado, uma mudana no estatuto jurídico: o dono de uma pequena empresa a transforma em so-ciedade limitada, e até em sociedade anônima, tornando-se seugerente assalariado. Assim, ele consta dos recenseamentos comofuncionrio, e no mais como proprietrio.

Dissociação entre a empresa e a família

No se trata apenas de uma questo terminológica. A mu-dana no estatuto jurídico tradu de fato a dissociao entre a