8-o começo da fuga

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Quinta da Confusão – O nascimento de um império 47 Dia 3 Uma fuga arrojada Época inicial 3 de Janeiro de 2009 Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31

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Quinta da Confusão – O nascimento de um império

47

Dia 3

Uma fuga arrojada

Época inicial

3 de Janeiro de 2009

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom

1 2 3 4

5 6 7 8 9 10 11

12 13 14 15 16 17 18

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8:00 Habitantes: 8

Depois de uma noite de forte tempestade, o sol por fim nasceu em Trás-os-Montes, iluminando os seus extensos campos. Essa luz entrou pelo buraco do escoadouro da Quinta da Confusão, acordando os animais que dormiam ao lado, dentro do túnel. Estes levantaram-se e, quando entraram no escoadouro, viram que a neve que caíra pelo buraco se tinha acumulado num monte por debaixo dele, não chegando às caixas com ervas. Assim, como esta permanecia intacta, puderam levar duas caixas para a superfície, e lá tomaram o pequeno-almoço. A Quinta da Confusão, depois da tempestade, tinha agora cerca de meio metro de neve e a sua ribeira congelada, tal como os animais tinham previsto. Os donos nunca se preocupavam em limpar a neve da quinta, nem mesmo à volta da sua casa (não costumavam sair), esperando que o sol invernal fizesse esse trabalho, e por causa dessa atitude a quinta ficava sempre branca no Inverno, mesmo que nevasse pouco. Depois do pequeno-almoço, os animais foram regar as ervas da estufa. O seu tecto estava coberto de neve, mas a estufa conseguira manter o calor dentro da estrutura. Os animais notaram perfeitamente a diferença da temperatura do exterior em relação à do interior e, por isso mesmo, depois de terem regado a estufa e limpo a neve do tecto para a luz entrar, estes permaneceram dentro da estufa. Uns dormiam, outros conversavam, mas todos preferiam mil vezes estar dentro daquela construção quente e agradável do que no campo gelado, com quase meio metro de neve.

A 150 km de distância dali, no Porto, os animais do Mercado do Bolhão foram igualmente acordados, não pelo Sol mas sim pelos 3 empregados daquela sala do mercado. Anunciaram que iria haver uma simulação de incêndio naquela sala, pelo que quando as cancelas e as correntes se abrissem os animais deveriam agrupar-se numa fila, a dois e dois, e seguir os funcionários até ao rés-do-chão. Deveriam estar agrupados por quintas de origem, para não haver enganos na distribuição dos animais quando estes regressassem aos seus lugares. Eles pensavam que os empregados iriam abrir as cancelas e as correntes manualmente, mas enganavam-se. Um dos empregados dirigiu-se ao grande botão vermelho que se encontrava perto do elevador, cuja função os animais desconheciam, e premiu-o. De imediato, ouviu-se uma sirene e, simultaneamente, todas as cancelas e correntes se abriram. Os animais nem tiveram tempo de reagir, pois os empregados mandaram-nos agrupar-se em filas conforme a quinta de origem, com um espaço entre cada uma. Eles assim fizeram, e pouco depois desciam pelas escadas que iam dar ao rés-do-chão do mercado.

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Nunca nenhum animal tinha lá ido, pois aquela zona não se destinava aos animais, e portanto foi com surpresa que se viram rodeados de bancadas vendendo todo o tipo de alimentos. A esmagadora maioria era desconhecida para os animais, pelo que alguns deles tentaram provar esses alimentos. Apoiaram as patas nas bancadas e começaram a mordiscar os produtos.

Todavia, os 3 funcionários que os acompanhavam estavam atentos e, tirando o seu chicote da cintura, fizeram-no estalar por cima da cabeça dos animais até eles saírem de ao pé das bancadas. Depois, foram-se distraidamente aproximando-se da entrada do mercado, à frente de todos os animais, fingindo que estavam ali por acaso. Mas estes perceberam perfeitamente as suas intenções: os funcionários tinham espingardas tranquilizantes, e se eles estavam à entrada do mercado era para evitarem fugas. Por isso mesmo nenhum animal tentou fugir do mercado durante a simulação de incêndio. E, pouco depois da chegada dos animais ao rés-do-chão, apareceram os bombeiros. Os animais nunca tinham visto bombeiros, portanto foi também com surpresa que viram as suas fardas, os seus capacetes e as mangueiras que traziam. Estes subiram até ao primeiro andar, e mais tarde deram por extinto o incêndio simulado. Então, os funcionários levaram de novo os animais para os seus lugares, fechando uma a uma as cancelas e as correntes que os prendiam no Mercado do Bolhão. Quando os bombeiros abandonaram o mercado, a vida naquela sala voltou ao normal. Os funcionários dormiam ou trabalhavam no computador, enquanto que os animais comiam as suas rações industriais ou dormiam, sem nada mais para fazerem naquele espaço. A simulação de incêndio, algo diferente no meio de toda a rotina do mercado, seria vital para a Fuga do Mercado, que começaria 1 hora depois.

9:00

Em 2 semanas, nem um único cliente aparecera naquela sala do Mercado do Bolhão, nenhum comprador tinha surgido. Pelo contrário, nesse espaço de tempo quatro quintas tinham enviado os seus animais para o mercado. Não tinham vendido os animais ao mercado, mas sim alugado o espaço para os venderem. Deixavam estar os animais gratuitamente na sala, e quando fossem vendidos o mercado recebia uma parte dos lucros para pagar as despesas dos animais. Mas, para haver lucros, era preciso que alguém comprasse algum dos mais de 100 animais à venda, e nas últimas 2 semanas nenhum comprador tinha aparecido. Foi isso que o único empregado acordado da sala constatou, ao ver os ficheiros do Mercado do Bolhão no computador. O negócio da venda de animais estava em crise no mercado, pois ninguém os comprava, e os animais que este tinha estavam a

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ocupar espaço útil, que poderia ser usado para instalar bancadas com produtos rentáveis. O empregado foi então alertar o patrão acerca das suas conclusões, deixando os dois colegas de trabalho a dormir em frente às secretárias, no meio da extensa sala. Enquanto conversava com o patrão, um cavalo da Quinta da Confusão que ignorava as inteligentes conclusões do funcionário começou a falar com o seu vizinho do lado, um cão que trabalhara nas guaritas do antigo Celeiro-forte a atirar objectos aos funcionários, para defender a fortaleza.

Ilustração 4 - Mapa da sala do Mercado do Bolhão destinada aos animais. Laranja –

Espaços onde os animais eram presos; Roxo – Secretárias dos empregados; Castanho

– Entrada do elevador; Vermelho – Botão de alarme; Azul-escuro – Porta para outra

sala do primeiro andar; Verde-claro – Escadas para o rés-do-chão

Os dois animais, que estavam junto ao elevador, no extremo da cerca que encerrava os animais, acabaram por falar na simulação de incêndio e nos espantosos efeitos do botão de alarme. Se o pressionassem, poderiam soltar todos os seus companheiros e fugir para a Quinta da Confusão. Mas como iriam fazer isso, se estavam a 5 metros do botão de alarme? A resposta estava ao seu lado, junto ao elevador. Um extintor de aspecto sólido que, segundo o cavalo, se poderia atirar contra o botão de alarme para o activar. Este ofereceu-se logo para o tirar da parede, mas o projecto era arriscado: bastava que algum dos funcionários acordasse e olhasse naquela direcção para que todo o plano falhasse, pois eles não iriam ficar de braços cruzados à espera da fuga dos animais. Ainda assim, o cavalo decidiu arriscar. Apoiou-se na cerca e, esticando-se ao máximo, conseguiu alcançar o extintor, apesar de ter uma corrente a prender-lhe uma das patas. Tirou-o do suporte e, com a ajuda do cão, que o puxou para trás, voltou ao seu lugar. Foi mesmo a tempo, pois imediatamente a seguir apareceu o terceiro funcionário da sala, que fora falar com o patrão. O cavalo escondeu o extintor debaixo do comedouro e ficou a observar o funcionário. Este acordou os colegas, e anunciou-lhes que caso aquela sala não tivesse clientes até daí a 1 semana o patrão devolveria os animais às quintas, e iria substituí-los por bancadas com produtos rentáveis, à semelhança do rés-do-chão do mercado. Mas os animais não estavam dispostos a esperar 1

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semana pela sua libertação. Assim que o funcionário se sentou, o cavalo arriscou tudo numa única tentativa. Pôs-se de pé, fez pontaria e atirou o extintor com todas as suas forças contra o botão de alarme. O extintor fez um voo em arco, e acertou em cheio no alvo. Ouviu-se uma sirene, e todas as cancelas e correntes da sala se abriram. Assim que se aperceberam de que estavam soltos, o cavalo e o cão desataram a correr pela sala em direcção às escadas para o rés-do-chão, gritando aos outros animais para estes os seguirem rumo à saída do mercado. Escusado será dizer que numa questão de segundos todos os animais abandonaram as suas prisões, e seguiram o cavalo e o cão em direcção à saída do mercado.

Os funcionários tentaram deter os animais, mas rapidamente desistiram por serem apenas três a tentar deter 100 animais, e limitaram-se a ver a sua saída. A fuga até acabou por ser benéfica para o mercado, pois o seu director já tencionava substituir os animais por bancadas com produtos rentáveis, e agora que estes tinham fugido já se podiam fazer contratos com negociantes para virem vender os seus produtos para aquela sala do mercado, o que daria mais lucros3 ao mercado. Mas os animais nada sabiam desses projectos, apenas lhes interessava deixar aquele espaço. Liderados pelo cavalo e pelo cão, atravessaram a rua e seguiram a correr em direcção ao matadouro, para resgatarem os seus companheiros. Ignoravam onde ficava, mas graças às sinalizações rapidamente chegaram à sua entrada. Um muro alto, com um portão de ferro aberto a fazer de entrada, formava o limite dos terrenos do matadouro. Os animais cruzaram então o portão de ferro que dava acesso ao espaço, e viram-se na primeira zona do edifício4: um amplo espaço cimentado ao ar livre, com cerca de 50 por 50 metros, que servia para os camiões descarregarem os animais destinados ao abate. O edifício propriamente dito estava em frente, era uma construção baixa, com janelas equipadas com grades e uma porta em ferro, e que estava no centro do terreno do matadouro. Nos lados, entre o edifício e o muro, havia erva e algumas flores, com um caminho no meio para se passar (era isso que os animais presos no matadouro viam das janelas, pois estas estavam propositadamente apenas nos lados do edifício para verem algo parecido com o campo, e não se sentirem tão fora do seu ambiente). O que espantava os animais era a total ausência de gente, pois não se via nem funcionários do matadouro nem camiões naquele espaço cimentado.

O cavalo e o cão decidiram ir explorar o terreno, para verem se havia meio de tirarem os companheiros dali. Pediram aos outros para não saírem do estacionamento, e avançaram rente ao lado direito do edifício, 3 Recorde-se que todas as informações presentes nas páginas acima sobre o Mercado

do Bolhão são falsas, incluindo a venda de animais no espaço do mercado.

4 A divisão do edifício do matadouro encontra-se na página 40.

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agachados para não serem vistos pelas janelas. Iam espreitando frequentemente, e começaram por ver as vacas e os porcos presos no interior do espaço. Era a 2ª zona do matadouro. Mas rapidamente chegaram às janelas da 3ª zona, aquela que era conhecida como a sala onde qualquer animal que entrasse nunca mais seria visto. E ficaram impressionados com o que viram, com o que acontecia aos animais que entravam naquela sala. Havia animais a andar num caminho da largura de uma escada rolante rodeado de barreiras metálicas, no meio da sala, que ia dar a uma máquina onde o animal metia a cabeça. Depois, um funcionário passava um instrumento em forma de cilindro, preto e cheio de furos (os dois animais desconheciam o que era, mas na verdade tratava-se de um instrumento para dar choques eléctricos ao animal e fazê-lo desmaiar) pelo animal, e por fim a máquina onde este tinha a cabeça era activada, cortando-lhe a veia jugular. Depois este era suspenso de cabeça para baixo, com o sangue a jorrar da ferida, até que morresse. O cavalo e o cão, chocados com o tratamento dado aos seus companheiros, passaram então à 4ª zona do matadouro, onde ficaram ainda mais impressionados. Tratava-se da zona onde os animais mortos eram transformados em produtos para talhos e charcutarias, e portanto os dois animais viram o processo em que os companheiros eram transformados em carne. Entrava na sala um animal morto, e saíam de lá caixas com bifes no seu lugar. Sem palavras depois de tudo o que viram os dois animais continuaram a avançar, até chegarem aos vestiários do matadouro. Estavam inseridos na 4ª zona, e era o local onde os funcionários podiam vestir as suas fardas de trabalho, no início do dia, e tirá-las quando este acabasse. Estava lá um funcionário a vestir a sua farda por cima da roupa, quando entrou um motorista da empresa. Tiveram a seguinte conversa:

FUNCIONÁRIO: Então, foste aonde? MOTORISTA: Fui entregar carne ao Norte Shopping, o maior centro comercial do norte do país. Aquilo é uma coisa enorme: 71.738 m2 de área, 285 lojas e ainda 4.400 lugares de estacionamento5! Tem um consumo de carne tal que tive que ir lá levar três vezes o mesmo camião, e ia cheio em todas as vezes! E sabes o que havia meio de me acontecer? FUNCIONÁRIO: O quê? Passaste pelo quiosque e viste que tinhas ganho o Euromilhões? MOTORISTA: Ah, ah, isso queria eu e muita gente. Não, foi algo pior. Imagina lá tu que fui mandado parar por um polícia, e só porque ia a 55 km\h, levei logo uma multa em cima. Cinquenta euros inteirinhos, só porque passei em 5 km\h o limite.

5 Informações verídicas.

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FUNCIONÁRIO: O quê? Só porque ias 5 km\h acima do limite? Pois, faz-me lembrar aquela que me contaste, há uns dias, sobre o semáforo. Como é que era? Paraste 1 metro à frente do semáforo, não foi? MOTORISTA: Nem chegou, foi menos do que isso. A culpa foi toda daquele semáforo, fartei-me de dizer ao polícia. Eu estive sempre a ver o semáforo, estava verde. E não é que desvio o olhar por um segundo e, quando volto a ver, já a máquina está vermelha? Ainda tentei travar a fundo, mas enfim, aquilo era um camião. Consegui parar a viatura apenas meio metro à frente do semáforo, mas ainda assim o senhor polícia passou-me 50 euros de multa. Garanto-te, tiraram o amarelo ao semáforo, um dia hei-de fazer a experiência. FUNCIONÁRIO: E como vais fazer em relação à tua nova multa? Sabes como o patrão não gosta que os seus motoristas lhe tragam multas para pagar, qualquer dia obriga-nos a pagá-las do nosso próprio bolso. MOTORISTA: Pois, mas o que queres? A GNR tem estado muito vigilante, basta irmos a 51 km\h para nos caírem em cima. Ou cumpres a lei ou… nem sabes. E a sorte é que é a empresa a pagar a multa, eu não tinha nem um cêntimo no bolso quando me apanharam. FUNCIONÁRIO: Pois, tinhas que pagar com trabalho comunitário, ou com a prisão. Bem, eu vou trabalhar, que já estão a abater animais e o patrão não gosta que se chegue atrasado ao serviço. Além disso, como vamos à estreia do filme «Matadouro: a história de um industrial», ele quer que trabalhemos ainda mais para compensar o tempo que vamos perder no cinema. Sabes como é que se vão suceder as coisas? MOTORISTA: Sei. Os protagonistas vêm de Lisboa no comboio, e nós vamos buscá-los. Um colega meu vai guiar a carrinha, que os vai levar à estreia, e nós vamos atrás com os 5 camiões. Temos que chegar a horas, que aquele filme é uma grande produção cinematográfica portuguesa, e vai lá estar muita gente. Vens comigo, certo? FUNCIONÁRIO: Pois claro. Quando chegar a hora, eu vou ter contigo ao estacionamento. Então, até já.

Depois, os dois funcionários abandonaram os vestiários. O cavalo e cão esperaram um pouco para verem se eles não voltavam atrás, mas como eles não apareciam atreveram-se a entrar. Abriram a janela e saltaram para os vestiários. Lá, abriram os armários e tiraram duas fardas para eles: o cavalo envergou uma de funcionário, verde, e o cão pôs uma preta de motorista. As fardas eram compostas por um boné, uma camisa com botões e calças, tudo com a mesma cor, e ocultavam perfeitamente a identidade dos animais. Enquanto envergassem aquelas fardas, toda a gente pensaria que eram funcionários do Matadouro do Porto. Tiraram as chaves do chaveiro, as das correntes para o cavalo e as dos veículos para o cão, e dividiram-se. O cão foi para a última zona do matadouro, onde estavam os seus veículos,

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para os preparar para a fuga. O cavalo iria buscar os outros animais, e resgatar os que estavam presos.

O cavalo avançou sem receio pela 4ª zona do matadouro, pois pensava que ninguém poria em causa o seu disfarce, e chegou à zona dos abates. Com um «Alto!» sonoro, parou os funcionários dessa zona, e mesmo a tempo, pois um deles ia já anestesiar um animal para depois ser abatido. O funcionário pousou o instrumento e perguntou ao cavalo o que se estava a passar. Este, atrapalhado, acabou por responder que o Norte Shopping tinha cancelado as suas encomendas de carne ao matadouro, e que por isso o patrão queria falar com os empregados. Estes ficaram alarmados, pois o Norte Shopping era a maior compradora de carne daquele matadouro, e pensaram que por causa do cancelamento das encomendas os seus postos de trabalho estavam em risco. Então, largaram a correr em direcção ao escritório do patrão, chamando os colegas da zona seguinte pelo caminho. O escritório do director do mercado, assim como os dos contabilistas e o bar do matadouro, estavam num anexo fora do edifício inserido na 5ª zona, o estacionamento dos veículos do matadouro. O cavalo ignorava onde ficava o escritório do patrão, mas sabia que não poderia estar muito longe, e que portanto tinha poucos minutos até se descobrir a sua mentira, até os funcionários regressarem. Revelou aos animais que estavam naquela sala, que iriam ser abatidos se não fosse ele a deter os funcionários, quem era na realidade e o seu plano para escaparem, juntamente com todos os outros animais. Então, conduziu-os de novo à 2ª zona e começou a soltar os companheiros presos na sala, entregando molhos de chaves aos que já estavam livres para juntos soltarem mais animais em menos tempo.

O cão, pelo contrário, tinha outros problemas a resolver. Em primeiro lugar, não sabia o caminho para a Quinta da Confusão, e em segundo lugar não sabia conduzir um carro. Pediu ajuda ao primeiro funcionário que viu, um motorista septuagenário que era o empregado mais velho do matadouro, e que apesar de ter chegado à idade da reforma havia mais de uma década, insistia em continuar a trabalhar. Este ofereceu-se prontamente para mostrar o caminho até à Quinta da Confusão, e pôs a rota no GPS da carrinha para, supostamente, o motorista (que era o próprio cão) seguir depois de ir buscar os protagonistas do filme à estação de Porto-Campanhã. O cão não fazia ideia que instrumento era aquele, mas bastava-lhe que mostrasse o caminho até à quinta de origem. Mas, quando o cão perguntou ao funcionário como se conduzia um carro, ele estranhou bastante. O cão lá conseguiu convencê-lo de que tinha tirado a carta havia pouco tempo, e que ainda não tinha muita prática, mas que com treino iria conseguir conduzir bem. Em poucos minutos, aprendeu quais eram os controlos básicos de um carro, e o que fazer para o conduzir. O funcionário foi-se embora depois do curso acelerado, e o cão ficou à espera dos outros animais para poderem partir. Mas, quando olhou para o anexo, onde ficava o escritório do

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director, viu mais de 10 funcionários com ar zangado a saírem do edifício, e a encaminharem-se para o edifício principal do matadouro. O cão percebeu que deveria haver algum problema, e ligando o motor da carrinha, avançou até à 2ª zona do matadouro, onde o cavalo estava a soltar os companheiros presos. Avisou-lhe de que vinha aí um grupo de funcionários zangados, e o cavalo percebeu de imediato que o seu tempo acabara. Quando todos os animais ficaram soltos, chamou os cavalos e os cães que tinham ficado à espera lá fora e, todos juntos, desataram a correr pelo matadouro adentro.

Os funcionários, zangados por terem sido enganados, mais o patrão que queria averiguar quem era aquele funcionário e porque motivo inventara aquela mentira, estavam a entrar na 3ª zona do matadouro quando se depararam com a multidão de animais a correr em sentido contrário. O cavalo que atirara o extintor ao botão de alarme, no mercado, ia à frente da multidão, e quando passou pela máquina que feria os pescoços dos animais para sangrarem até à morte não resistiu. Pegou nela, ergueu-a e atirou-a com todas as suas forças contra a parede, despedaçando-a. Assim, enquanto não reparassem a máquina, o matadouro não poderia abater mais animais. Os funcionários viram perfeitamente o cavalo a destruir a sua máquina, mas não tiveram tempo de reagir pois a multidão de animais aproximava-se. Atiraram-se para o lado e esperaram que os 250 animais passassem. Estes dirigiram-se para a 5ª zona, onde o cão já os esperava, e acumularam-se numa multidão ao lado dos camiões. O cão, o único animal que sabia conduzir, escolheu dez animais ao acaso (dois para cada camião) e rapidamente ensinou-lhes a conduzir. Entregou-lhes as chaves dos veículos, e depois ajudou ao embarque dos restantes animais. Havia um camião para cada 50, pelo que eles teriam que se apertar dentro do atrelado para caberem todos lá dentro. Mas, de repente, ouviram-se passos e o cão percebeu que os funcionários vinham aí. Rápido, correu para a carrinha, ligou-a e, recuando, conseguiu bloquear a porta com o próprio veículo segundos antes de os funcionários lá chegarem. A porta abria para fora, pelo que apenas se conseguia abrir uma nesga até a madeira bater na traseira da carrinha. Os funcionários viram o que estava a bloquear a porta através do buraco da fechadura, mas apesar disso não desistiram de sair. Foram buscar um machado (que seria usado no caso de haver um incêndio e de a porta estar a impedir a saída dos ocupantes do edifício), e começaram a dar machadadas na porta para a partirem e poderem passar.

Todavia, os funcionários foram incapazes de se soltar antes da partida dos animais. Quando todos estavam a bordo dos camiões, o cavalo entrou dentro da carrinha, ao lado do cão, e juntos arrancaram e seguiram para fora do matadouro. A porta do edifício, gravemente danificada pelas machadadas, abriu-se quando a carrinha arrancou, e os funcionários correram para o exterior na tentativa de deterem os animais. Mas nada mais

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foram capazes de fazer do que chamar a polícia, e assistir à partida dos camiões que, em fila, seguiam a carrinha. Os condutores sabiam quais os limites de velocidade e que tinham a obrigação de parar nos semáforos vermelhos. A pena para as infracções era uma multa, e como os animais não tinham dinheiro para a pagar, sabiam que isso implicaria o seu regresso ao mercado e ao matadouro. Assim, respeitando as regras, circularam tranquilamente pela cidade do Porto, sempre abaixo dos 50 km\h. Havia algumas ruas em obras, pelo que os animais foram forçados a desviarem-se para este. E, enquanto estes prosseguiam com a sua fuga, o casal protagonista do filme «Matadouro: a História de um Industrial» chegava ao fim da Linha do Norte, na estação de Porto-Campanhã, a bordo de um Alfa Pendular. O comboio tivera um atraso de 20 minutos, pelo que o casal receava que o Matadouro do Porto tivesse entretanto desistido de os transportar até à estreia do filme. Portanto, foi com alegria que viram a carrinha azul da empresa parada em frente à estação, seguida por 5 camiões, tal como fora combinado. Na verdade, a carrinha estava parada apenas porque tinha à frente um semáforo vermelho, mas o casal não sabia disso, e muito menos que os condutores eram animais. Os dois aproximaram-se da carrinha, e apresentaram-se como sendo o casal protagonista do filme. O cavalo e o cão, pelas conversas que tinham ouvido, perceberam que estava previsto aquela carrinha ir levar o casal à estreia do filme, e como eles estavam a guiá-la tinham que ser eles a levar o casal. Os dois subiram para a caixa da carrinha, e quando o semáforo ficou verde, o cão arrancou, seguindo as instruções do casal para chegar ao local da estreia.

A rua onde ficava o cinema tinha a maior concentração de gente que os animais alguma vez tinham visto. Havia barreiras a separar os passeios da estrada, e todos os centímetros quadrados de passeio estavam ocupados por gente que queria ver a chegada dos actores do filme. Quando a carrinha chegou à rua do cinema, um altifalante anunciou «E agora: os protagonistas do filme», e todos os espectadores ficaram eufóricos. A carrinha parou em frente ao tapete vermelho que ia da estrada à entrada do cinema, para o casal descer, mas antes de isso acontecer os dois animais mudaram de ideias. Já que os protagonistas iam para o cinema, pois que fossem levados mesmo para o seu interior. Para espanto do casal, a carrinha guinou para o passeio e avançou pelo tapete vermelho em direcção ao cinema. Entrou dentro do edifício, subiu a rampa que dava acesso às salas e só parou em frente à sala onde se iria projectar o filme. Os protagonistas saíram da carrinha e, quando os animais se preparavam para ir embora, disseram-lhes que estava previsto ficarem para ver o filme (assim como todos os empregados do matadouro, que nunca chegariam a ir à estreia por falta de transporte), e perante a recusa dos animais em ficar insistiram em como eles tinham de ir ver a estreia. Enquanto os animais dialogavam com os