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Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012 O PAPEL DA IMAGINAÇÃO NO MÉTODO FENOMENOLÓGICO DE IDEIAS I Fábio Toshiro Iijima Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP RESUMO A distinção entre fato e essência, tal como é elaborada no livro Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (1913) de Husserl, gera uma dificuldade importante para seu método: como fazer então a passagem do primeiro para a segunda? É nesse plano que pretendemos situar a ideia de imaginação: se e como ela torna possível algo como uma „apreensão‟ de essências. Palavras-chave: Husserl; imaginação; método fenomenológico; essência; fato. ABSTRACT The scission between fact and essence in Ideas for a pure phenomenology and for a phenomenological philosophy (1913) by Husserl, generates a important difficult for your method: how can be possible the passage of facts to the essences? It‟s in this conceptual plane that we want to situate the idea of imagination: answer if and how she makes possible something like a apprehension of essences. Keywords: Husserl; imagination; phenomenological method; essence; fact. Num livro em que a fenomenologia é apresentada como ciência, o Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica I, podemos encontrar uma passagem que é, no mínimo, digna de nota : “a „ficção‟ constitui o elemento vital da fenomenologia, [...] a ficção é a fonte da qual o conhecimento das „verdades eternas‟ tira seu alimento.” (HUSSERL, 2006, p. 154). Para o leitor que tome essa passagem isoladamente, uma pergunta natural seria: como pode a imaginação (no sentido geral de aquilo que produz ficção), que tomamos geralmente como algo que se opõe ao rigor necessário das ciências, ter o papel central num projeto que pretende fundar a própria ciência? Isto não seria um contra- senso? O objetivo desta dissertação será responder essa questão com um „não‟. Para tanto, pretendo mostrar qual o papel da imaginação no método fenomenológico no Ideias I e como ela realiza esse papel. Caso estes dois problemas sejam respondidos, talvez a centralidade da imaginação na fenomenologia apareça como menos „problemática‟ aos olhos daquele leitor. Com o intuito de realizar estas duas tarefas, dividi meu texto em duas partes, uma para cada problema. Na primeira parte, quero apresentar o que são fato e essência e qual é a relação entre estes dois elementos, por meio de uma análise de alguns parágrafos do primeiro capítulo do Ideias I. A partir dos resultados obtidos, pretendo poder indicar a necessidade de

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  • Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    O PAPEL DA IMAGINAO NO MTODO FENOMENOLGICO DE IDEIAS I

    Fbio Toshiro Iijima

    Graduando em Filosofia pela Universidade de So Paulo - USP

    RESUMO

    A distino entre fato e essncia, tal como elaborada no livro Ideias para uma fenomenologia pura e

    para uma filosofia fenomenolgica (1913) de Husserl, gera uma dificuldade importante para seu

    mtodo: como fazer ento a passagem do primeiro para a segunda? nesse plano que pretendemos

    situar a ideia de imaginao: se e como ela torna possvel algo como uma apreenso de essncias.

    Palavras-chave: Husserl; imaginao; mtodo fenomenolgico; essncia; fato.

    ABSTRACT

    The scission between fact and essence in Ideas for a pure phenomenology and for a phenomenological

    philosophy (1913) by Husserl, generates a important difficult for your method: how can be possible

    the passage of facts to the essences? Its in this conceptual plane that we want to situate the idea of

    imagination: answer if and how she makes possible something like a apprehension of essences.

    Keywords: Husserl; imagination; phenomenological method; essence; fact.

    Num livro em que a fenomenologia apresentada como cincia, o Ideias para uma

    fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenolgica I, podemos encontrar uma

    passagem que , no mnimo, digna de nota : a fico constitui o elemento vital da

    fenomenologia, [...] a fico a fonte da qual o conhecimento das verdades eternas tira seu

    alimento. (HUSSERL, 2006, p. 154). Para o leitor que tome essa passagem isoladamente,

    uma pergunta natural seria: como pode a imaginao (no sentido geral de aquilo que produz

    fico), que tomamos geralmente como algo que se ope ao rigor necessrio das cincias, ter

    o papel central num projeto que pretende fundar a prpria cincia? Isto no seria um contra-

    senso?

    O objetivo desta dissertao ser responder essa questo com um no. Para tanto,

    pretendo mostrar qual o papel da imaginao no mtodo fenomenolgico no Ideias I e como

    ela realiza esse papel. Caso estes dois problemas sejam respondidos, talvez a centralidade da

    imaginao na fenomenologia aparea como menos problemtica aos olhos daquele leitor.

    Com o intuito de realizar estas duas tarefas, dividi meu texto em duas partes, uma para

    cada problema. Na primeira parte, quero apresentar o que so fato e essncia e qual a

    relao entre estes dois elementos, por meio de uma anlise de alguns pargrafos do primeiro

    captulo do Ideias I. A partir dos resultados obtidos, pretendo poder indicar a necessidade de

  • Fbio Toshiro Iijima 77

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    um agente que torne possvel a apreenso das essncias. Estar aqui o papel da imaginao

    (assim, respondo ao primeiro problema). A segunda parte, por outro lado, est dividida em

    duas subpartes. Primeiramente, comeo afastando algumas possveis confuses sobre como

    procede a imaginao na realizao de seu papel. Por fim, analisarei um processo chamado

    variao eidtica, no qual ela, a imaginao, tem um papel central. Com isto, o modo como

    ela cumpre seu papel indicado na parte um desta dissertao ser, acredito, explicitado.

    Antes de passar para a prxima parte, gostaria de fazer uma observao de ordem

    tcnica. Grosso modo, o mtodo fenomenolgico no Ideias I se compe pela combinao

    entre o processo de intuio de essncia e a reduo fenomenolgica. Contudo, vou me focar

    especificamente nesse primeiro processo (a intuio de essncia), ou seja, no o meu

    objetivo apresentar a totalidade do mtodo fenomenolgico, mas apenas alguns de seus

    detalhes, mais precisamente aqueles que se refiram imaginao de modo mais direto.

    Primeira parte: Fato e essncia

    J no primeiro pargrafo de Ideias I, Husserl apresenta o que ele entende por fato,

    por meio de uma explicitao do modo de investigao das cincias empricas. Como

    exemplos desse tipo de cincia, o autor aponta para a fsica, a biologia, a psicologia, a

    fisiologia, etc. Alm destas cincias psicofsicas e da natureza, Husserl indica tambm as do

    esprito, como a histria, as disciplinas sociolgicas etc.

    Sobre esse tipo de cincia, dizamos, Husserl comea afirmando que elas esto numa

    orientao terica que chamamos natural (HUSSERL, 2006 p.33), onde para o cientista

    h uma coincidncia dos conceitos ser verdadeiro, ser efetivo, isto , ser real e como

    todo real se congrega na unidade do mundo ser no mundo (HUSSERL, 2006, p. 33). Em

    outras palavras, o cientista emprico acredita que tudo aquilo que deve ser teorizado por ele

    o mundo, ou seja, uma realidade tomada como existente (efetiva), como fato 1. Antes de

    prosseguir com a explicitao das cincias empricas por Husserl, acho importante delinear

    um pouco melhor o significado desse tomar como existente. Para isto, gostaria de citar e

    comentar um exemplo que Husserl d no pargrafo 6:

    A proposio todos os corpos so pesados no pe, certamente, nenhuma coisa determinada como existente no todo da natureza. [...] ela ainda

    1 Para Husserl, fato e aquilo que posto como existente real so sinnimos.

  • 78 O papel da imaginao no mtodo fenomenolgico de Idias I

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    continua implicando sempre uma posio de existncia da prpria natureza,

    da efetividade espao temporal: todos os corpos na natureza, todos os corpos efetivos so pesados(HUSSERL, 2006, p. 41).

    Sobre este pequeno trecho, gostaria de destacar apenas um ponto. Acho importante

    notar que pr algo como existente no significa exatamente, para Husserl, crer na existncia

    real de alguma coisa. Dito de outro modo, algum que acredita em Deus(no sentido que

    usualmente damos expresso, sentido puramente abstrato) no pe, em termos husserlianos,

    Deus como ente real. O sentido daquela expresso de Husserl , acredito, tomar em

    considerao uma determinada coisa espao-temporalmente. Nesse sentido, aquela proposio

    analisada por Husserl acima citada pe o sujeito todos os corpos como existente porque ela

    pressupe algumas condies sobre as quais esses corpos esto inseridos, como, por

    exemplo, a ao de foras sobre eles (gravidade etc.), o que quer dizer que esto localizados

    num tempo e num espao.

    Explicitada a orientao terica dos cientistas empricos como esse pr como

    existente, duas consequncias so tiradas por Husserl. A primeira a de que a fonte

    originria da fundao que atesta a legitimidade (HUSSERL, 2006, p. 33) de todos os seus

    conhecimentos sero os atos da percepo sensvel 2 (entendida, segundo Husserl, em seu

    sentido habitual), pois so os atos da percepo que pem o real individualmente, [...] o

    pem como espao-temporalmente existente (HUSSERL, 2006, p. 34). Em outras palavras:

    o conhecimento precisa corresponder aos dados da nossa experincia sensvel para ter

    validade terica. Alm desta primeira, temos uma outra: a contingncia do algo posto como

    existente, do fato. Dito de outro modo: ao colocar, por exemplo, esta cadeira como existente,

    eu no s afirmo que ela existe exatamente nesse tempo x e nesse espao y, mas tambm

    que ela poderia estar, da mesma maneira, em qualquer outro momento e em qualquer outro

    lugar. Numa palavra: os fatos tm a caracterstica necessria de serem contingentes3.

    Tomando em considerao estas duas consequncias e mais a caracterizao do conceito de

    pr em existncia, acredito que o que Husserl compreende por fato esteja mais claro (e, por

    conseguinte, a maneira como o autor entende as cincias empricas).

    2 Como veremos mais adiante (na parte dois deste trabalho), o que est por trs da obteno de qualquer conhe-

    cimento cientfico, para Husserl, sempre uma intuio. Nesse sentido, a percepo por si s no d conheci-

    mentos: ela, antes, torna possvel intuies sensveis. 3 Vale sempre lembrar: Husserl no afirma aqui um tipo de falta rigor nessas cincias sobre os fatos, mas somen-

    te a contingncia da prpria facticidade.

  • Fbio Toshiro Iijima 79

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    Em contraste com estes conhecimentos sobre fatos, aqueles que fazem juzos

    verdadeiros sobre o que Husserl chama de essncia (ou seja, proposies eidticas

    verdadeiras) no colocam nada como existente: este, pois, o ponto principal que distingue

    juzos eidticos dos fticos (sobre fatos). Acompanhemos mais de perto esses do primeiro

    tipo.

    A matemtica e a lgica pura, por exemplo, trabalham com um tipo de essncia, as

    chamadas essncias formais. De certo modo, o que essas cincias fazem, segundo Husserl,

    suprir tanto cincias fticas, quanto eidticas, de princpios ltimos, isto , de leis que no

    podem ser transgredidas pois so elas que garantem a prpria objetividade dos juzos. O

    conhecido princpio da no-contradio, um exemplo de juzo de essncia formal, ao no se

    referir a um objeto particular e a sua posio de efetividade num espao e num tempo,

    possuir sempre o carter de total universalidade e de total necessidade.

    No entanto, as essncias formais no esgotam a totalidade das essncias: h ainda um

    outro tipo, que aquele que trabalhado pela fenomenologia (e pela geometria). Numa

    passagem do pargrafo seis do captulo 1, Husserl nos d um exemplo de um conhecimento

    sobre esse outro tipo de essncia, o tipo essncia material:

    [...] a proposio todas as coisas materiais so extensas tem validez eidtica e pode ser entendida como proposio eidtica pura, desde que se

    pe fora de circuito a tese de existncia efetuada por parte do sujeito. Ela

    enuncia aquilo que se funda puramente na essncia de uma coisa material e

    na essncia da extenso, e que podemos trazer evidncia como validez

    geral incondicionada (HUSSERL, 2006, p. 41).

    Desta passagem e sobre as essncias materiais, gostaria de destacar dois pontos.

    Primeiro, importante notar que as essncias materiais, em geral, so aquilo que o em

    comum necessrio de um determinado gnero de objeto. Esse em comum deve ser

    acompanhado desse necessrio por dois motivos, que so interligados. Primeiro, porque,

    como vimos acima, essncias nunca pressupem posies de existncia. Em segundo lugar e

    por isto que as essncias materiais no pem existncia , porque elas so as prprias

    condio de possibilidade de apreenso dos seus objetos individuais correspondentes: as

    essncias materiais so, como afirma Barbaras, a condio necessria de possibilidade de

    certas determinaes (BARBARAS, 2008, p. 40)4 do prprio objeto emprico. No podemos,

    4 Notons tout de suite que lessence nest pas dfinie seulement comme quiddit, ce que la chose est (son quid),

    mais comme la condition ncessaire de possibilit de certaines dterminations: cest ce sans quoi tels contenus disparatraient (par exemple la couleur dune chose si on supprimait son tendue).

  • 80 O papel da imaginao no mtodo fenomenolgico de Idias I

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    por exemplo, apreender e pensar um fato sem pressupor a sua contingncia: os fatos

    dependem das essncias, na medida em que todas as caractersticas do em comum de um

    gnero de essncia devam aparecer nos objetos (fatos) correspondentes. A partir desta

    caracterizao geral das essncias materiais, o outro ponto que gostaria de destacar o

    seguinte: essa passagem pressupe um passo duvidoso, qual seja, a possibilidade de acesso a

    esse algo como um comum de todas as coisas materiais (serem extensas). Em outros termos,

    ela pressupe que seja possvel um acesso essncia coisa material em geral. Se a

    possibilidade de acesso das essncias do tipo formal so atestadas pela prpria atividade da

    matemtica, como Husserl nos prova a possibilidade de acesso das desse tipo material? Em

    outras palavras: a matemtica uma prova concreta da capacidade de produzir conhecimentos

    sobre as essncias formais, seus conhecimentos rigorosos sobre essncias formais so

    evidentes para os olhos de qualquer um. Mas, por outro lado, o que assegura a possibilidade

    de acesso a uma essncia do tipo material?5

    Sobre este ponto, Husserl nos d um argumento6, que eu gostaria de reproduzir, apesar

    de j implcito na exposio acima. Primeiro, como vimos, deve-se reconhecer que os fatos

    so contingentes. Por conseguinte, a afirmao desta contingncia no contingente, mas j

    pressupe uma espcie de apreenso de uma caracterstica geral dos fatos. Assim, deve-se

    reconhecer que se o domnio dos fatos contingente, ento o reconhecimento da necessidade

    desta contingncia no pode ser afirmada no domnio dos prprios fatos. Portanto, estamos

    aqui diante da necessidade das essncias materiais. Mas, talvez, uma crtica a este argumento

    merea ser levantada.

    A crtica diz respeito ao estatuto deste em geral dos fatos pressuposto pelas

    essncias. Se o que caracteriza as essncias a total universalidade originada pela total

    ausncia de posio de existncia, o que me garante que esse em geral das essncias

    materiais no seja ele mesmo contingente? certo que no argumento h apenas um exemplo

    bem especfico de uma essncia material, a dos fatos, que um conceito construdo

    cuidadosamente pelo filsofo. Mas, por exemplo, o que me garante que eu no apreenda a

    essncia, esta mais especfica, som em geral com caractersticas arbitrrias (ou seja, que no

    5 certo que, para Husserl, o escopo da geometria so as essncias materiais, e, nesse sentido, a efetividade da

    atividade dos gemetras j prova a possibilidade de um acesso a esse tipo de essncia. Contudo, acho importante

    colocar mesmo assim esta questo porque a essncia som, por exemplo, no est contida no mbito geomtrico, e, por isso, talvez merea um argumento mais forte. 6 Este argumento est presente no pargrafo 2 do captulo 1 do Ideias I

  • Fbio Toshiro Iijima 81

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    so condies de possibilidade do objeto emprico e, portanto, que pressupem posio de

    existncia)? Dito de outro modo: posso, no decorrer da minha vida, conhecer diversos sons e

    formar uma ideia do que seja som em geral, mas nada impede que, no futuro, uma

    experincia de uma nova sensao de som contradiga a minha antiga ideia de som em

    geral, mostrando que ela no era necessria. Dito ainda de outra maneira: como se pode

    passar das apreenses dos fatos para as apreenses dessas essncias? Qual o elemento que

    torna possvel essa passagem?

    este, acredito, o papel da imaginao no mtodo fenomenolgico do Husserl. Nos

    termos husserlianos, a imaginao que permite a passagem da intuio dos fatos para a de

    essncias. O que nos caber na prxima parte desta dissertao ser, agora, delimitar esse

    conceito de imaginao e mostrar de que modo ela consegue operar essa passagem entre estes

    dois tipos de intuio.

    Segunda parte: A imaginao e o processo da variao imaginativa

    Antes de mais nada, acho importante notar que a fundao desse universal, pela

    imaginao, no significa que basta imaginar para conhecer as essncias. Essa uma possvel

    confuso do papel da imaginao: ela, no mtodo do Husserl, no d por si s os

    conhecimentos, as explicaes. O centauro, o qual podemos imaginar, por exemplo, no nos

    d nenhum tipo de conhecimento universal. Ele somente um produto do esprito [...], no ,

    naturalmente, nada de psquico, no existe, nem na alma, nem na conscincia, nem onde quer

    que seja, ele no nada, nica e exclusivamente imaginao; dito com mais preciso: o

    vivido-de-imaginao vivido de um centauro (HUSSERL, 2006, p.68). Quer dizer, a

    imaginao pode at vir a ser um elemento vital para o conhecimento eidtico, mas ela no

    representa a totalidade daquilo que o suporta.

    Antes, aquilo que est por trs de toda validade e rigor cientficos so sempre, para

    Husserl, intuies. esse, segundo o autor, o princpio dos princpios, que ele mesmo

    atestado por uma intuio (isto , ele se auto-legitima). Como ele afirma, toda intuio

    doadora originria uma fonte de legitimao do conhecimento, tudo que nos oferecido

    originariamente na intuio (por assim dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser

    simplesmente tomado tal como ele se d, mas tambm apenas nos limites dentro dos quais ele

    se d (HUSSERL, 2006, p. 69)1. Nesse sentido, intuio de essncia um anlogo da

  • 82 O papel da imaginao no mtodo fenomenolgico de Idias I

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    intuio sensvel (no sentido que tentei dar a esta expresso na minha nota trs, de modo

    muito grosseiro, verdade), e no da imaginao, mesmo que esta, como afirmamos, seja

    aquilo que a torne possvel. Mas, se assim, qual ento o papel da imaginao na apreenso

    de essncias e, portanto, no mtodo fenomenolgico do Ideias I?

    Acredito que podemos encontrar esta resposta numa anlise do processo de variao

    eidtica, que reconhecido por Barbaras como aquilo que abarca a totalidade do ato de se

    apreender essncias (BARBARAS, 2008, p. 41)7. Se conseguirmos mostrar o modo como a

    imaginao atua nesse mtodo e a possibilidade desta atuao, creio que o segundo problema

    perseguido por esta dissertao seja respondido. Para tanto, esse processo, na minha

    apresentao, foi dividido em duas etapas.

    A primeira etapa a produo de uma multiplicidade de variantes, e aqui que

    podemos localizar a atividade da imaginao. Primeiramente, toma-se um objeto ftico como

    modelo. A partir desse modelo, imagina-se uma infinidade aberta de outros indivduos, ou

    seja, variamos o indivduo para formar inmeros outros indivduos. No entanto, necessrio

    distinguir esse variar de uma simples alterao. Segundo Barbaras, na alterao um

    mesmo indivduo dado se transforma dentro de uma durao (BARBARAS, 2008, p.41)8,

    portanto, dentro do plano do fato. Quer dizer, variar no alterar, mas criar novos

    indivduos que talvez nem tenham sido dados na nossa experincia sensvel. A imaginao

    importante aqui porque pode nos doar vividos mesmo que no tenhamos vivido esses objetos

    na experincia sensvel.

    Muito prxima (porque essa segunda capacidade pressupe aquela primeira) dessa

    capacidade de prescindir dos dados da experincia est a capacidade da imaginao de fazer

    doar objetos indefinidamente. No pargrafo setenta do Ideias I, Husserl nos mostra mais

    precisamente o que esta capacidade por meio de uma descrio da atividade dos gemetras:

    na imaginao ele [o gemetra] tem a liberdade inigualvel de reconfigurar como quiser as

    figuras fictcias, de percorrer as formas possveis em contnuas modificaes e, portanto, de

    gerar um sem-nmero de construes(HUSSERL, 2006, p. 153). Quer dizer, o gemetra no

    precisa perceber sensivelmente todas as possibilidades de uma figura geomtrica como, por

    exemplo, do tringulo: de alguma maneira, ele mesmo pode construir, pela imaginao, os

    7 Comment, ds lors, lessence est-elle prcisment obtenue partir de lindividu? Par la mthode dite de

    variation. 8 Un mme individu donn se transforme dans la dure.

  • Fbio Toshiro Iijima 83

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    tringulos possveis que o interessam. Esse exemplo da geometria importante no s porque

    mostra aquela ligao entre as duas capacidades da imaginao, mas tambm porque atesta

    concretamente a possibilidade desses poderes da imaginao, isto , estes no so postos

    arbitrariamente por Husserl.

    Na outra etapa do processo de variao, o que se d uma apreenso daquilo que

    comum nessa multiplicidade de inmeras variaes imaginadas na primeira parte. Em outras

    palavras, aqueles modelos imaginados so tomados numa unidade. Unidade que, de certo

    modo, j est preconstituda pelo modelo inicial, isto , o fato de todas as variaes serem

    variaes de um mesmo indivduo faz aparecer uma unidade nas variantes. sobre isto que

    Barbaras chama a ateno quando diz que o eidos [a essncia] aqui preconstitudo

    passivamente e a intuio do eidos repousar sobre a apreenso ativa disso que j est

    preconstitudo (BARBARAS, 2008, p. 42)9.

    Assim, o que resta, para se chegar s essncias necessrias, j que foram baseadas

    numa variao imaginativa, isto , inmeros casos possveis foram tomados em considerao

    para se chegar a essas essncias, e no somente alguns poucos indivduos isolados a

    prpria atividade da intuio de essncia sobre a unidade criada pelas inmeras diferentes

    imaginaes, o que nunca possvel sem a livre possibilidade de voltar o olhar para um algo

    individual correspondente e de formar uma conscincia exemplar (HUSSERL, 2006, p.

    37). Individual que originado em sua forma mais pura pela atividade processual da

    imaginao.

    Concluso

    Gostaria de, por fim, sintetizar aqui os resultados de nossa exposio. Como vimos na

    parte um, o conhecimento emprico pressupe uma posio de existncia, ao passo que o

    eidtico, no. A percepo, modo privilegiado de atestao das cincias empricas, faz

    aparecer indivduos num espao e num tempo. Nesse sentido, necessrio algum outro tipo

    de doao dos objetos para tornar possvel uma intuio de essncia, porque mesmo se

    tomarmos vrios objetos dados sensivelmente, teremos sempre a possibilidade de

    9 Leidos est ici preconstitu passivement et lintuition de l eidos reposera sur la saisie active de ce qui est ainsi prconstitu.

  • 84 O papel da imaginao no mtodo fenomenolgico de Idias I

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 2, dezembro 2012

    experimentarmos uma sensao nova que desminta esse suposto conhecimento sobre alguma

    essncia.

    Na parte dois, vimos a capacidade infinita da imaginao de gerar variantes de um

    modelo de indivduo, que pode ser independente de qualquer dado sensvel. Assim, essa

    infinidade de variantes, que transcende o estatuto de individualidade (marco do modo como a

    percepo nos d objetos), faz com que haja uma doao de uma infinidade de objetos,

    tornando possveis intuies de essncia e no uma abstrao arbitrria de objetos

    empricos.

    Em resumo, porque elemento central no suporte prpria intuio de essncias, a

    imaginao um elemento vital para a fenomenologia (assim como para todas as cincias

    eidticas). Tomando isto em considerao, acredito que esse papel central da imaginao no

    caia mais como uma luva para o escrnio naturalista do modo de conhecimento eidtico

    (HUSSERL, 2006, p. 154, nota 41).

    Referncias Bibliogrficas

    BARBARAS, R. Introduction la philosophie de Husserl. Chatou: La Transparence,

    2008.

    ELLIOT, B. Phenomenology and imagination in Husserl and Heidegger. New York:

    Routledge, 2005.

    HUSSERL, E. Idias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia

    fenomenolgica: Introduo geral fenomenologia pura. 3 ed. Aparecida: Idias & Letras,

    2006.

    SACRINI, M. O projeto fenomenolgico de fundao das cincias. Scientiae studia, So Paulo, vol.7, no. 4, out/dez,. 2009. Disponvel:

    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-31662009000400003&script=sci_arttext