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O ETERNO AO MODERNO: arte sacra catlica no Brasil, anos 1940-50

Anna Paola P. Baptista

Lista de ilustraesIntroduo Il. 1 Chris Ofili, The Holy Virgin Mary, tcnica mista s/tela, 1996 Il.2 Julian Schnabel, Saint Sebastian, leo s/tela, 1979 Il.3 Barnett Newman, Twelfth station, acrlico s/tela, 1965, (National Gallery, Washington) Il.4 - Oscar Niemeyer, Catedral Metropolitana, Braslia, 1958-67 Captulo 3 Il.1 - Heinrich Hofmann, Cristo no Jardim de Getsemani, leo/tela, 2a metade XIX, (Riverside Church, Nova Iorque) Il.2 - August Perret, Igreja Notre-Dame, Raincy, Frana,1922-25 Il.3 - Maurice Novarina, Igreja Notre Dame-de-Toute-Grce, Assy, Frana, 1945-47 Il.4 - Jean Lurat, O Apocalipse, tapearia, 1945, (coro, Igreja Notre-Dame-de-TouteGrce, Assy) Il.5 - Germaine Richier, Crucifixo, escultura em bronze, 1948-49 Il.6 - Maurice Novarina, Igreja Sacre-Coeur, Audincourt, Frana, 1951 Il.7 - Fernand Lger, Vitrais e painel do altar, 1951, (Igreja Sacre -Coeur, Audincourt) Il.8 - Henri Matisse, Chapelle du Rosaire des Dominicaines, Vence, Frana, 1951 Il.9 - Henri Matisse, So Domingos, mural s/azulejo, 1951, (santurio, Chapelle du Rosaire des Dominicaines, Vence) Il.10 - Henri Matisse , Virgem e o Menino e Estaes da Cruz, murais s/azulejo, 1951, (nave, Chapelle du Rosaire des Dominicaines, Vence) Il.11 Le Corbusier, Notre-Dame-du-Haut, Romchamp, Frana, 1951-55 Il.12 Le Corbusier, Notre-Dame-du-Haut, Romchamp, Frana, 1951-55, interior

Captulo 4 Il.1 Mark Rothko, Rothko Chapel, Houston, E.U.A., 1964-1971, interior Il. 2 - Stanley Spencer, The Cookham Ressurection, leo s/tela, 1921-26, (National Gallery, Londres)

Il.3 Crucificao, relevo em marfim, c. 420-50, (Britsh Museum, Londres) Il.4- Crucificao, placa esmaltada, c. 976, (San Marco, Veneza) Il.5 - Crucificao, manuscrito, c. 1200-52, (Pierpont Morgan Library, Nova Iorque) Il.6 Miguelngelo, Crucificao, desenho grafite s/papel, c. 1539-41, (Britsh Museum, Londres) Il.7 Matthias Grnewald, retbulo Isenheim, 1515, (Muse dUnterlinden, Colmar) Il.8 Diego Velzquez, Crucificao, leo s/tela, c. 1651-2, (Museo Prado, Madri) Il.9 Paul Gauguin, Christ jaune, leo s/tela, 1889, (Albright-Knox Art Gallery, Buffalo) Il.10 Georges Rouault, Estampa 3 do Miserere, dcada de 1920, (The Museum of Modern Arte, Nova Iorque) Il.11 Lovis Corinth, Crucificao, leo s/tela, 1907, (Ostdeutsche Galerie, Regensburg) Il.12 Marc Chagall, Crucificao, leo s/tela, 1939, (Art Institute, Chicago) Il 13 Graham Sutherland, Crucificao, leo s/madeira, 1946, (Saint Matthews, Northampton) Il.14 Salvador Dal, Crucificao, leo s/tela, 1954, (Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque) Il.15 Jos Clemente Orozco, American Civilization Modern Migration of the Spirit, fresco, 1932, (Baker Library, Darthmouth College, New Hampshire)

Captulo 5 Il. 1 Monumento do Cristo Redentor, Fortaleza, CE. Il. 2 Desenho do projeto descartado para o Cristo Redentor do Rio de Janeiro. Il. 3 - Igreja Nossa Senhora da Glria, Rio de Janeiro, RJ. Il. 4-5 Rudolf Schwarz, Igreja St. Fronleichnams, Aachen, Alemanha, 1929-30. Il. 6 Igreja Nossa Senhora do Brasil, So Paulo, SP, dc. 1940.

Captulo 6 Il.1 - Fulvio Pennacchi e Leopoldo Pettini, Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP, 1943 Il.2 - Fulvio Pennacchi, Aldeia italiana com figuras, acrlico s/tela, 1974, (coleo particular), detalhe Il.3 Fulvio Pennacchi e Leopoldo Pettini, projeto de fachada da igreja N. Sra. da Paz

Il.4 - Fulvio Pennacchi e Leopoldo Pettini, Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP, 1943, interior (nave) Il.5 - Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo-SP, 1943, interior (altar) Il.6 - Fulvio Pennacchi, estudo de decorao para a Igreja N. Sra. da Paz, 1941 Il.7 Fulvio Pennacchi, Crucificao, afresco, 1943, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP) Il.8 - Fulvio Pennacchi, Casamento mstico de S. Catarina de Siena e Entrevista com o papa em Avignon, afresco, 1944, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP) Il.9 - Fulvio Pennacchi, S. Carlos Borromeu visitando os colricos, afresco, 1944, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP), detalhe Il.10 - Fulvio Pennacchi, S. Antonio distribuindo o po, afresco, 1944, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo-SP) Il.11 - Fulvio Pennacchi, Sagrada Famlia no trabalho e Morte de S. Jos, 1944, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo-SP) Il.12 - Fulvio Pennacchi, Juzo Final, afresco, 1944, (Igreja N. Sra. da Paz, So Paulo -SP) Il.13 Fulvio Pennacchi, Juzo Final/Paraso, afresco, 1944, (Ig. N. Sra. da Paz), detalhe Il.14 - Oscar Niemeyer, Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, 1942-45, Belo Horizonte-MG Il.15 - Oscar Niemeyer, Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, 1942-45, Belo Horizonte-MG Il.16 Candido Portinari, S. Francisco despojando-se das vestes, tmpera s/argamassa, 1945 (Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, altar) Il.17 - Candido Portinari, S. Francisco despojando-se das vestes, tmpera s/argamassa, 1945, (Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, altar), detalhe Il.18 - Giotto, S. Francisco renuncia aos bens terrenos, afresco, 1296-99, (Baslica de S. Francisco, Assis) Il.19 Sasseta, Franciscus alter Christus, 1437-44, tmpera s/madeira (Coleo Berenson, Settignano) Il.20 Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, [1944] (Projeto Portinari) Il.21 - Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, [1944] (Projeto Portinari)

Il.22 - Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, [1944] (Projeto Portinari) Il.23 - Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, [1944] (Projeto Portinari) Il.24 - Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, nov.1944 (Projeto Portinari) Il.25 - Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel, 1944 (Projeto Portinari) Il.26 - Candido Portinari esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, aquarela e lpis s/papel colado em madeira, [1944-45] (Projeto Portinari) Il.27 Candido Portinari, esboo para mural So Francisco despojando-se das vestes, grafite s/papel colado em madeira, [1944-45] (Projeto Portinari) Il.28 - Candido Portinari, S. Francisco despojando-se das vestes, tmpera s/argamassa, 1945, (Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, altar), detalhe Il.29 - Candido Portinari, S. Francisco despojando-se das vestes, tmpera s/argamassa, 1945, (Igreja S. Francisco de Assis da Pampulha, altar), detalhe Il.30 Igreja Cristo Operrio, So Paulo -SP, 1951 Il.31 Alfredo Volpi, Cristo Operrio, afresco, 1951, (Ig. Cristo Operrio, altar) Il.32 - Alfredo Volpi, Sagrada Famlia no trabalho, afresco, 1951 (Ig. Cristo Operrio, altar) Il.33 - Alfredo Volpi, Santo Antonio pregando aos peixes, afresco, 1951, (Ig. Cristo Operrio, altar) Il.34 Fra Angelico, Transfigurao, fresco, c. 1440, (Convento San Marco, Florena) Il.35 Alfredo Volpi, esboo para mural Cristo Operrio, grafite s/papel, [1951] Il.36 Alfredo Volpi, esboo para mural Sagrada Famlia no trabalho, tmpera s/papel, [1951] Il.37 Emeric Marcier, afrescos capela Cristo-Rei, Mau-SP, 1946-47 Il.38 Francisco Bolonha, capela Santa Maria, Petrpolis-RJ, 1951-53 Il.39 Emeric Marcier, afrescos capela Santa Maria, Petrpolis-RJ, 1953 Il.40 Emeric Marcier, Pentecostes, afresco, 1953, (capela Santa Maria, abside) Il.41 Emeric Marcier, Crucificao, afresco, 1953, (capela Santa Maria, abside)

Il.42 Emeric Marcier, Anunciao, afresco, 1953, (capela Santa Maria, abside) Il.43 Emeric Marcier, Coroao da Virgem Maria, afresco, 1953, (capela Santa Maria, altar) Il.44 - Giotto, Massacre dos Inocentes, afresco, 1296-99, (Baslica de S. Francisco, Assis) Il.45 Emeric Marcier, Massacre dos Inocentes, afresco, 1953, (capela Santa Maria, altar), detalhe Il.46 - Emeric Marcier, Massacre dos Inocentes, afresco, 1953, (capela Santa Maria, altar), detalhe Il.47 Emeric Marcier, Massacre dos Inocentes, afresco, 1953, (capela Santa Maria, altar), detalhe Il. 48 Emeric Marcier, Massacre dos Inocentes e Fuga para o Egito, afresco, 1953, (capela Santa Maria , altar), detalhe Il.49 - Emeric Marcier, Massacre dos Inocentes, Fuga para o Egito, Coroao da Virgem Maria, afrescos, 1953, (capela Santa Maria, altar) Il.50 Emeric Marcier, Bodas de Can, afresco, 1953, (capela Santa Maria, abside), detalhe

Todo esse polimorfismo da arte religiosa pode bem ser levado existncia de dois tipos supremos de arte religiosa: a que vem de Deus ao homem, do sobrenatural natureza; e a que vai do homem a Deus, do natural ao por sobrenatural. exemplo, Se dois

confrontarmos,

representantes geniais da pintura moderna ou contempornea, a de um Marc Chagall e a de um Cndido Portinari, encontraremos em ambos a representao palpvel e visvel desses dois caminhos diferentes, mas no opostos, de trazer o cu terra, o invisvel ao visvel, o eterno ao moderno (grifo meu), Deus ao homem, ou o homem ascendendo a Deus.Alceu Amoroso Lima. Arte sacra Portinari, p. 90.

Toda histria divino-humana pode ser assim resumida: descidas de Deus para subidas do homem.Gustavo Coro. Fronteiras da tcnica, p. 183.

LISTA DE ILUSTRAES.............................................................................................................................................. 1 APRESENTAO .......................................................................................................................................................... 10 INTRODUO................................................................................................................................................................ 12 PARTE I - O ETERNO E O MODERNO................................................................................................................. 27 CAPTULO 1 - EXIGNCIAS DA ARTE SAGRADA, A TRADIO, AS LEIS DA IGREJA............. 28 1.1 A 1.2 A 1.3 A 1.4 A 1.5 A IMAGEM CRIST.................................................................................................................................................29 IMAGEM NO TEMPO: A DEFESA DAS IMAGENS................................................................................................31 IMAGEM NO TEMPO: A PURIFICAO DAS IMAGENS......................................................................................39 IMAGEM NO TEMPO: A CRISE DAS IMAGENS...................................................................................................47 IMAGEM NO TEMPO: A ECONOMIA DE IMAGENS ............................................................................................64

CAPTULO 2 - EXIGNCIAS DA ARTE MODERNA....................................................................................... 70 2.1 CNONES MODERNOS............................................................................................................................................70 2.2 - FORMAS MODERNAS: A LINGUAGEM INSLIT A..................................................................................................74 2.3 O MODERNISMO EM CHEQUE ...............................................................................................................................78 PARTE II MODERNOS ETERNOS ...................................................................................................................... 86 CAPTULO 3 A AVENTURA DA ARTE SAGRADA NA MODERNIDA DE............................................ 87 3.1 DECLNIO E RESSURGIMENTO...............................................................................................................................88 3.2 - TEMPLOS PARA NOSSOS DIAS ................................................................................................................................99 3.3 O TIL , O VERDADEIRO E O BELO.....................................................................................................................113 3.4 - INTRPRETES DAS PERFEIES INFINITAS DE DEUS........................................................................................120 CAPTULO 4 - ICONOGRAFIA CRIST E A ARTE MODERNA..............................................................128 4.1 O ESPIRITUAL, O SAGRADO E A ARTE NO -FIGURATIVA ...............................................................................128 4.2 A CRISE DA CIVILIZAO E O CRISTO TERRESTRE .........................................................................................136 PARTE III TEMPO E ETERNIDADE. ARTE SACRA NO BRASIL NAS DCADAS DE 1940-50153 CAPTULO 5 NOSSOS CATLICOS E A ARTE SACRA..........................................................................154 5.1 ESPAOS DE DEBATE DA ARTE SACRA .............................................................................................................158 5.2 EM UMA DIOCESE ................................................................................................................................................165 5.3 TEMAS, DISCUSSES, REFLEXES.....................................................................................................................172 5.4 - NA TRILHA DE MARITAIN...................................................................................................................................181 CAPTULO 6 CAPELAS MODERNAS NO BRASIL......................................................................................190 6.1 M ODERNO OU MODERNISTA..............................................................................................................................191 6.2 PENNACCHI : A REPRODUO DO DIVINO.........................................................................................................208 6.2.1 - Pintor moderno e religioso .......................................................................................................................211 6.2.2 A Igreja da colnia italiana.....................................................................................................................214 6.2.3 A Arte crist revista...................................................................................................................................219 6.3 PORTINARI : O DISCURSO DO DIVINO.................................................................................................................232 6.3.1 - A Igreja sem Deus ......................................................................................................................................235 6.3.2 A Arte dos decadentes...............................................................................................................................246 6.3.3 - O Pincel do diabo .......................................................................................................................................253 6.3.4 - Deus vai morar na Pampulha...................................................................................................................264

6.4 VOLPI: A RECRIAO DO DIVINO ......................................................................................................................269 6.4.1 - Filho do povo, discpulo do muro, proletrio das artes......................................................................270 6.4.2 A Igreja dos operrios..............................................................................................................................273 6.4.3 A Negao do religioso .............................................................................................................................279 6.5 M ARCIER: A BUSCA DO DIVINO.........................................................................................................................284 6.5.1 A Dimenso herica..................................................................................................................................285 6.5.2 A Igreja do monge .....................................................................................................................................291 CONCLUSO.................................................................................................................................................................303 BIBLIOGRAFIA E FONTE .....................................................................................................................................309 S FONTES TEXTUAIS IMPRESSAS ...................................................................................................................................309 Livros e artigos........................................................................................................................................................309 Catlogos..................................................................................................................................................................319 Artigos de Jornal e Revista....................................................................................................................................319 FONTES TEXTUAIS MANUSCRITAS.............................................................................................................................321 FONTES VISUAIS ...........................................................................................................................................................322 Originais...................................................................................................................................................................322 Publicadas................................................................................................................................................................323 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................................................................324 Livros e artigos........................................................................................................................................................324 Catlogos..................................................................................................................................................................332 Artigos de Jornal e Revista....................................................................................................................................333 Obras de Referncia e Outras Medias................................................................................................................334 BIBLIOTECAS E A RQUIVOS CONSULTADOS...............................................................................................................335

ApresentaoEste trabalho uma verso modificada da tese de Doutorado defendida no mbito do Programa de Ps-Graduao em Histria Social do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ em 2002. A motivao para a pesquisa nasceu em parte da constatao de uma escassez de trabalhos na rea da histria da arte no Brasil em que a arte religiosa fosse tratada enquanto um gnero, no que se refere ao sculo XX. Mesmo tendo o Modernismo merecido importantes trabalhos de crtica de arte e de teoria esttica, principalmente nas ltimas duas dcadas, a insero possvel do gnero religioso no quadro da arte moderna brasileira no tem sido discutida. Alguns dos artistas brasileiros cujas obras so analisadas no ltimo captulo vm recebendo monografias especializadas onde, porm, o espao dedicado pintura religiosa no chega a cobrir esta lacuna. Por outro lado, estudos de cunho iconogrfico realizados acerca de motivos religiosos tendem a privilegiar de forma radical o barroco colonial. No campo da histria, trabalhos sobre o pensamento religioso catlico do perodo tm privilegiado a conexo da religio com as relaes de poder na sociedade. Neles, a utilizao de smbolos e imagens sagradas por parte da Igreja Catlica analisada prioritariamente em sua relao com as estratgias de consolidao da autoridade eclesistica. Por estas razes, ao propor uma abordagem que enfoca as relaes entre a obra de arte e as teorias estticas e entre aquelas e as diretrizes teolgicas contemporneas, esta pesquisa pode apresentar-se como uma contribuio original, dentro do quadro de conhecimento atual, tanto ao estudo da histria da arte em uma de suas vertentes mais significativas, quanto ao do pensamento religioso catlico no que concerne a uma filosofia das artes. Sou credora da FAPERJ que premiou a pesquisa com um ano da Bolsa Doutorado nota 10, dos integrantes da Banca de Defesa composta pelos professores doutores Francisco Carlos Teixeira da Silva, orientador, Helena Bomeny, Ana Maria Mauad, Maria Beatriz Mello e Souza e Jos Murilo de Carvalho, bem como de Matias Marcier e Maria Luiza Accioly.

A dedicao deste trabalho a Marcos Bretas um tributo mnimo face imensa dvida que lhe inerente.

IntroduoDurante muito tempo arte e Igreja Catlica formaram uma parceria de enorme sucesso e vantagens para ambas as partes. Como assinalou um comentarista na dcada de 1950, there was a time when the work of the artist could be defined as his work whithin the Christian church, growing out of a Christian consciousness. 1 Neste perodo, a histria da arte esteve, certamente, imbricada com as realidades do catolicismo. Estilos desenvo lveram-se em conformidade s necessidades da religio, artistas encontraram na Igreja um mecenas fundamental. No sculo XX, o afrouxamento de uma conexo tradicionalmente muito forte entre os termos arte/religioso gerou uma desconfiana geral sobre as possibilidades da arte religiosa moderna. Poderiam os novos impulsos da arte esposarem as verdades eternas da f? Do que parecia ser uma incompatibilidade em si mesma, a unio dos valores atemporais e transcendentais da f com a humanizao das formas modernas, resultou uma questo essencial sobre a sobrevivncia, a forma, o contedo e o sentido da arte sacra na modernidade. A suspeio sobre a capacidade da arte ser simultaneamente religiosa e moderna agrava-se a partir da segunda metade do sculo XX, alcanando a ciso quase completa entre os dois vetores. A prpria Igreja reconhecia o estranhamento:Raramente, qui alguma vez antes na histria da esttica humana se chegou a uma separao que tenha sido mais aguda ou to ampla. o resultado, sem dvida, da fenda que separou as artes da Igreja, a qual fora anteriormente sua mais compreensiva e entusiasta mecenas. Nosso problema a reconciliao, por mais difcil que ela seja de alcanar. E para conseguir este efeito deve existir uma voluntariedade por parte do artista e do eclesistico para entenderem-se mutuamente, no necessariamente por meio de princpios de compromisso, mas procurando chegar base da compreenso dos fins e dos mtodos.2

1

DIXON, Jr., John W. The Sensibility of the church and the sensibility of the artist. In: EVERSOLE, Finley (ed). Christian faith and the contemporary arts. New York: Abingdon Press, 1957, p. 80. 2 DWYER, Mons. Robert J. Arte e arquitetura para a igreja de nossos dias. Conferncia lida no Seminrio de Arte e Arquitetura, Universidade de Notre Dame, Indiana, 19 julh o 1958 In: PLAZAOLA, Juan, S.J. El Arte sacro actual. Estudio, panorama, documentos . Madri: Editorial Catolica, 1965, pp. 693-702.

Em 1999, cerca de quinze anos aps o curador e crtico de arte Diego Cortez afirmar (...) I hate religious art. I wish it would disappear once and for all ou o pintor Jules Olitsky declarar What is of importance in painting is paint3 , a temtica religiosa na pintura voltava cena, protagonizando uma grande controvrsia. Tratava-se da tela The Holy Virgin Mary [Il.1], do artista britnico filho de imigrantes nigerianos, Chris Ofili (1968), em exibio na mostra Sensation no Brooklyn Museum, em Nova Iorque. Pintada em 1996, a obra mostra uma Nossa Senhora negra, rodeada de recortes de revistas pornogrficas, tendo sobre o seio esquerdo uma bolota de excremento de elefante (elemento tido como sagrado na frica), em um fundo onde predomina o dourado, emulando claramente as imagens bizantinas e pr-renascentistas. Os intolerantes para com a obra, entre eles o prefeito da cidade, o cardeal John OConnor e a Liga Catlica para Direitos Civis e Religiosos, consideraram a obra blasfema. Seus defensores, como a direo do Museu e a curadora da exposio, salientaram seu sentid o de retorno aos temas noseculares e transcendentais aps tanto tempo de vigncia de uma arte predominantemente distanciada dos temas espirituais, apesar de sua esttica bem diferente da tradio clssica.4 Mas esse seria mesmo um caso de reencontro da modernidade com a tradio? Pois, mesmo Ofili sendo um artista catlico, teria ele realizado com esta tela alguma incurso no terreno da arte sacra?

3 4

Apud GABLIK, Suzi. Has modernism failed? New York: Thames and Hudson, 1992, pp.92 e 97. BRAGA, Joo Ximenes. Mistura pol mica de arte, religio e esterco. O Globo. Rio de Janeiro, 2/10/1999.

Il.1 Chris Ofili, The Holy Virgin Mary, tcnica mista s/tela, 1996.

No incio da dcada de 1980, Julian Schnabel (1951) era um dos mais famosos artistas no cenrio nova-iorquino. Inesperadamente, para confuso de parcelas da crtica e pblico, Schnabel apresentou telas com temtica religiosa, como o Cristo na Cruz ou So Sebastio [Il.2]. A despeito do assunto, as imagens de Schnabel no significavam necessariamente um real retorno do sentido mitolgico e religioso aos temas pictricos h dcadas dominados pela auto-referncia, pela abstrao e pelas experimentaes psmodernas. Segundo o prprio autor, as telas no pareciam ter sido informadas por qualquer impulso religioso, apontando mais na direo de suas emoes do que para qualquer comunho com o divino:(...) I dont know if theres a God up there or anywhere (...) Maybe I make paintings larger than I am so that I can step into them and they can massage me into a state of unspeakableness. 5

5

GABLIK, Suzi. Op.cit., p.91.

Il. 2 Julian Schnabel, Saint Sebastian, leo s/tela, 1979.

O artista foi capaz de pintar telas de contedo iconograficamente religioso sem que estes elementos tocassem de perto o domnio do sagrado. Quais seriam, portanto, as razes de um pintor sem qualquer sentimento definido com relao a Deus para pint-lo num cenrio contemporneo de arte ps- moderna, em uma sociedade marcada pelo secularismo, pelo eclipse do sagrado nos assuntos humanos e pela mentalidade dessacralizada? Por muito tempo na histria do ocidente a demarcao da obra de arte como arte crist foi automtica, incidindo sobre todas as instncias nas quais pintores e escultores representavam temas cristos e arquitetos construam edifcios com um propsito cristo. No sculo XX, parece que a ausncia de realidade transcendente deixava o artista livre para brincar com seus smbolos. Estes, agora descolados de suas referncias espao-temporais e recuperados por seu valor pictrico, passavam a figurar em uma ttica de meramente reciclar velhos signos que, desconectados de suas razes, representavam apenas a si mesmos. A Igreja Catlica, por sua vez, sentiu-se cada vez mais premida a forjar definies de diferenciao a fim de salvaguardar um campo especfico de categorias artsticas para as quais ela reservava a prerrogativa de legislar. A definio que ganhou terreno resguardava

para a arte religiosa o domnio de tudo o que leva a Deus partindo do humano, transfigurando-o. A arte crist compreenderia aquilo que parte da Bblia, da histria da piedade, da vida dos santos, etc. J a arte litrgica ou sacra regida pelas diretrizes da Igreja - seria aquela que se introduz nas igrejas, sobre os altares, com referncia ao culto. 6 Em 1966 o pintor Barnett Newman (1905-1970), expoente do Expressionismo Abstrato americano, havia inaugurado uma exposio com a srie de telas que pintara durante o perodo 1958-65, intitulada The Stations of the cross: lema stabachthani [Il. 3]. A despeito do ttulo, as obras mostradas no configuram uma narrativa em seqncia nem registram qualquer aluso representacional aos episdios da Paixo de Cristo. No entanto, apesar da total ausncia de qualquer propriedade sacral ou at crist, a obra abstrata de Newman ainda compartilhava um contedo espiritual difuso que poderia at al-la, com um certo esforo de boa vontade, categoria de arte religiosa, mesmo partindo da definio proposta pela Igreja. Carregadas de significado simblico, eram planejadas pelo artista para funcionarem como um veculo para a meditao sobre a condio humana universal. 7

6

Ver, por exemplo, MARELLA, dom Paolo. Discurso inaugural na IX Semana de Arte Sacra, [Roma, 1961]. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op. cit., pp. 653-57. 7 NODELMAN, Sheldon. The Rothko chapel paintings. Origins, structure, meaning . Austin: University of Texas Press, 1997, pp. 309-10.

Il. 3 Barnett Newman, Twelfth station, acrlico s/tela, 1965 (National Gallery, Washington).

Nessa mesma poca, o papa Paulo VI (1963-1978), na Missa dos Artistas, endereara aos artistas romanos esta saudao que significava um verdadeiro apelo no sentido de tentar formar um novo pacto de cooperao entre as artes e a Igreja:Na verdade, temos sido sempre amigos. Mas, como acontece entre parentes, amigos, tambm nos agastamos um pouco. No rompemos de todo mas deixamos que a nossa amizade fosse perturbada. Vs nos abandonastes um pouco, andastes longe, a beber de outras fontes (...). Algumas vezes esqueceis a lei fundamental da vossa consagrao expresso: no se sabe o que dizeis, no o sabeis vs mesmos tantas vezes (...). Ns tambm vos afligimos um pouco porque vos impusemos como primeira norma a imitao, a vs que sois criadores, sempre inquietos (...). E ento vossa linguagem tornou-se dcil (...), mas como que amarrada, convencional (...).Tratamos-vos pior ainda, recorrendo aos sucedneos, s reprodues, s obras de arte de m qualidade e pouco preo (...). Vamos fazer as pazes? Hoje mesmo? Aqui? Vamos de novo ser amigos?8

8

PAULO VI (1963-1978). Discurso a um numeroso grupo de artistas italianos, 7 maio 1964. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp. 538-40.

O papa reconhecia o grande abismo que se formara entre os dois campos. Ao mesmo tempo, ele atestava a falncia de todo um esforo empreendido no sculo XX na tentativa de fundar um renascimento da arte sacra. A iniciativa originara-se da percepo praticamente consensual de um estado de decadncia vivenciado pela arte religiosa no sculo XIX, dedicada a inmeras experincias de revivescimento de estilos artsticos grandiosos do passado. O divrcio operado entre a Igreja e os artistas ma is talentosos tivera como conseqncia a proliferao de templos construdos como imitaes sem vida de edifcios Gticos, decorados com uma parafernlia produzida em massa, nostlgica e estereotipada, caracterizada por um autor como o incio do progresso triunfal do lixo. 9 A Igreja esteve sempre pronta a encarar uma secularizao mais radical das artes como dependente das tendncias racionalistas do pensamento humano presentes desde o Renascimento e da Reforma e incrementadas com a Revoluo Francesa e com o Iluminismo. 10 Frente aos movimentos que levavam o homem a assumir a prpria existncia em suas mos, a Igreja Catlica contra-atacou aferrando-se aos valores do reordenamento da sociedade segundo o modelo da cristandade medieval. No sculo XIX e por boa parte do XX isto foi percebido, pelo menos por parcelas considerveis dos pensadores conservadores catlicos, como uma luta contra a mentalidade moderna em ameaa direta soberania eclesial no sentido em que aquela recusava qualquer tutela sobre a razo e o ordenamento social. 11 No , portanto, de se estranhar a persistncia dos pastiches, a revelar um processo de consolidao no tempo de um estilo religioso por excelncia, quase como a tentativa de afirmar ser a arte religiosa um gnero de arte, ao invs de uma modalidade que se expressa atravs de mltiplos estilos. Estes indcios de historicismo anacrnico e de nostalgia encontravam-se, porm, em contradio com uma tendncia histrica da Igreja de instrumentalizar-se fazendo bom uso dos estilos arts ticos contemporneos e empregando os maiores artistas de cada poca a fim

9

HENZE, Anton, FILTHAULT, Theodor. Contemporary church art. New York: Sheed&Ward, 1956, p. 15. Ver ainda RAMBUSH, E. Contemporary christian architecture and catholic faith. In: EVERSOLE, Finley (ed.). Op. cit., pp. 205-11. 10 HUBBARD, Celia. The Catholic imagination and the painting of our time. In: EVERSOLE, Finley (ed). Op. cit., p. 187. 11 DIAS, Romualdo. Imagens de ordem. A Doutrina catlica sobre autoridade no Brasil 1922-1933. So Paulo: Unesp, 1996, pp. 16 e 48.

de expressar uma f viva. O pintor Maurice Denis, autor de um livro sobre a arte religiosa j afirmava:Os costumes artsticos e a cultura de cada poca adaptaram-se s necessidades litrgicas e dogmticas da Igreja, e aos diversos aspectos do pensamento cristo. Os monumentos de arte sacra so a imagem de concepes teolgicas, sociais e artsticas dos sculos que os criaram. O gnio dos grandes artistas cristos como um espelho onde se refletem ao mesmo tempo, na prpria experincia religiosa, sua viso pessoal do universo e a f coletiva de sua poca.12

Poderia a Igreja, contudo, atualizar esta vocao? Permaneceria a arte crist fiel s formas antigas ou faria concesses s formas novas? Importantes segmentos do clero catlico, especialmente os Beneditinos ligados ao movimento litrgico e os Dominicanos franceses e belgas responsveis pela publicao do peridico LArt Sacr, bem como grupos de artistas plsticos cristos ansiavam pela reconciliao da arte sacra com a arte tout court. O impulso de revitalizao da arte sacra, iniciado aps a Primeira Guerra Mundial, primeiramente na Europa Central, espalhou-se, depois, para as Amricas, chegando mesmo at as regies missioneiras da frica e sia. Esse movimento teve as dcadas de 1940-50 como pice, quando a destruio causada pelo conflito blico colocou a enorme necessidade de restaurao e construo de igrejas na Europa. Nesta poca, experimentou-se um enorme boom de construo e reconstruo de templos catlicos com materiais e gramtica arquitetnica e pictrica modernos. A renovao da arte sacra deveria incluir o desprezo pelo modelo vigente no sculo XIX de igrejas que parodiavam estilos arquitetnicos do passado, decoradas com uma profuso de imagens banais produzidas em escala industrial. Grande nfase foi posta na questo da afirmao de uma arte viva, com qualidade esttica reconhecidamente relevante segundo os parmetros estabelecidos pela crtica de arte contempornea, em contraposio um estilo religioso fixo, geralmente baseado em experincias bem sucedidas do passado como o Gtico. Segundo o padre Jean-Marie Alan Couturier (1897-1954), diretor da LArt Sacr e responsvel pelo surgimento de vrias igrejas modernas na Europa, isto somente poderia se12

Apud LIMA JUNIOR, Augusto de. Arte religiosa. Belo Horizonte: Instituto de Histria, Letras e Arte, 1966, p. 12. Ver tambm DENIS, Maurice. Histoire de lart religieux. Paris: Flammarion, 1939.

dar quando se passasse a contar com o trabalho dos mais talentosos artistas da poca. Na dcada de 1940, ele lanava o que veio a ser conhecido como o apelo aos grandes:Nosso dever levar a Deus e nossa f o que h de melhor da arte de hoje (...) A Arte s vive de seus mestres e de seus mestres vivos. No dos mestres mortos, por mais preciosas que sejam suas heranas. A decadncia demasiado profunda e dura j h demasiado tempo para que, sem alguns sucessos extraordinrios, os talentos menores bastem para remedi -la. Urge uma espcie de ressurreio e somente os gnios mais criadores podem provoc-la.13

O apelo foi atendido. As grandes realizaes da arquitetura e arte sacras como as igrejas de Assy (iniciada em 1937) ou Vence (1947-51) [Ils.3-4 e 8-10, captulo 3] na Frana foram momentaneamente percebidas de maneira otimista como smbolos de que a alta criao se tornara novamente possvel nas igrejas, restabelecendo-se o pacto entre a Igreja e o gnio criador. O neotomismo de Jacques Maritain, que orientou as mentes dos Dominicanos da LArt Sacr, abria uma brecha para a desvinculao da obra de arte com sua inteno moral. A avaliao deveria concentrar-se to somente na obra e no no escrutnio das intenes e da retido moral do artista, deixando livre o caminho para aceitao do artista no-crente. Acreditava-se que a Graa podia abater-se sobre qualquer um e que uma obra sacra podia se realizar sem a f do artista. Como afirmou uma vez o arquiteto Le Corbusier (1887-1965): Certas coisas so sagradas, outras no, tivessem ou no inteno religiosa.14 Mais arriscado seria renunciar ao gnio, conjugao da tcnica apurada e a habilidade inata. Pois somente a moralidade impecvel na ordem do Agir no seria suficiente para garantir o xito da obra, j que o bem Fazer no pode prescindir da maestria. A idia, ento, era a retomada dos valores de funcionalidade da arte religiosa, perdidos com o crescente individualismo e formalismo da arte a partir do Renascimento, mas incorporando o gnio. Os setores catlicos identificavam na Idade Moderna o momento da perda de um sentido de organicidade entre a sociedade e a Igreja (quando os hbitos estavam em harmonia com a sensibilidade). A Idade Mdia passava a ser vista como uma poca de harmonia do cosmo, j que o homem no postulava seus prprios desgnios, entregando-se aos ditames divinos tais como outorgados pela Igreja Catlica. Assim, ela constitua-se13

Apud RGAMEY, P. -R., O.P. Arte sacra contempornea. So Paulo: Heder, 1961, p. 276. Este livro a edio brasileira do volume publicado originalmente em Paris, pelas ditions du Cerf, em 1952.

num ideal que a instaurao do antropocentrismo fizera desaparecer, s restando agora Igreja a esperana que a arte, para revelar o divino, fosse iluminada pela Graa, como a prpria Revelao. Na impossibilidade de voltar a contar com artistas orgnicos prpria cristandade, uma nova teoria era forjada, uma em que a prpria liberdade criadora possibilitaria o vnculo com a natureza divina. Deste modo, toda obra verdadeiramente artstica compartilharia um carter sagrado perceptvel. No que concerne arte religiosa, esse conceito de sagrado, abdicando da fixao de uma forma ou um estilo prprios, pretendia, ao contrrio, formular uma imagem da arte sacra como aquela que, independentemente de suas formas, rompesse com a viso banal das coisas e despertasse o sentido do Numen. Valorizava-se, fundamentalmente, a funo da arte de revelar a marca oculta de Deus:O objetivo da arte consiste precisamente em revelar a imagem da natureza divina impressa no criado mas oculta nele, realizando objetos visveis que sejam smbolos de Deus Invisvel 15

Foi a ambio por uma arte sacra verdadeira, definida como arte pois pertencente a seu prprio tempo e no mero historicismo anacrnico, e como sacra pois inspirada pela iluminao divina, que motivou os esforos de parcelas da elite eclesistica e de artistas. Mas teriam sido bem-sucedidas essas experincias de combinao entre o ideal de uma arte afinada com o prprio tempo e as exigncias de uma f dogmtica? O apelo do papa na dcada de 1960 parece indicar que a empreitada teve um flego apenas limitado e os grandes esforos e realizaes ficado mais como exemplos do que inaugurado um esperado novo tempo ou instaurado uma sonhada nova linguagem. Uma das provveis causas deste esgotamento foi a dificuldade encontrada por esta linha de pensamento/ao, proposta pelos articuladores do renascimento da arte sacra, para contagiar as autoridades eclesisticas superiores transformando-se numa diretiva oficial. Posteriormente, tais idias acabaram sendo eclipsadas pelas novas orientaes impostas pelo Conclio Vaticano II (1962-67) que, pelo menos para o campo da pintura, provaram-se desestimulantes. Conseqentemente, as dcadas de 1920 a 1950 parecem ter ficado como um hiato entre a decadncia do XIX e as mudanas estabelecidas pelo Vaticano II.

14 15

Apud BARBOSA, dom Marcos. A arte sacra. Rio de Janeiro: Presena, 1976, p. 16. PASTRO, Claudio. Arte sacra. O Espao sagrado hoje. So Paulo: Loyola, 1993, p. 45.

O programa de modernizao (aggiornamento) do Conclio Vaticano II formalizou a necessidade de modificao do layout dos templos existentes e condicionou o design dos novos. A redefinio nas orientaes, tanto da filosofia crist, como da prpria liturgia catlica, passam a clamar por um tipo difere nciado de arquitetura eclesistica que reserva um espao limitado para imagens dentro da igreja embora, de modo algum, tenha como inteno sua eliminao.16 O fato , porm, que o movimento litrgico, iniciado no sculo XIX, com sua nfase no mistrio da Eucaristia, e com o objetivo de transformar os fiis, nas palavras do papa Pio XI: de observadores silenciosos em participantes ativos da oferenda, veio a transformar de tal forma a liturgia da missa que tambm os edifcios deveriam sofrer reformulaes que atentassem para o fato de que o altar e a congregao haviam se aproximado mais e mais um do outro. Grande peso foi posto na simplicidade e na economia de formas; diretivas pontifcias seguiram-se, recomendando austeridade e lembrando que um crucifixo sobre o altar , na verdade, a nica imagem cuja presena nas igrejas requerida explicitamente nos regulamentos cannicos. Do ponto de vista da arquitetura, a tentativa de integrao com a pintura, calcada na pintura mural, foi passando a ser percebida como um equvoco na medida em que as tcnicas modernas capacitavam os edifcios a prescindir das paredes. Lucio Costa (19021998) alertou:a parede belo elemento construtivo a ser ainda sabiamente utilizado - , no passa de um acessrio da arquitetura moderna, e seria evidentemente ilgico basear a sntese desejada em um elemento arquitetnico suprfluo.17

A partir da dcada de 1960 a arquitetura religiosa multiplicou os planos ovais e circulares, com interior focado em um nico altar e igrejas do tipo caixas de vidro onde o papel das imagens significativamente reduzido [Il.4].

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A catedral de Braslia de Oscar Niemeyer um dos primeiros exemplos de explorao de materiais modernos, tais como o concreto, para a criao de uma igreja cuja forma sem precedente no passado. Ver NORMAN, Edward R. The house of God: Church architecture, style, and history. London: Thames & Hudson, 1990 e tambm SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f. Igrejas e capelas depois do Conclio Vaticano II. Petrpolis: Vozes, 1979. 17 COSTA, Lucio. Registros de uma vivncia. So Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 267.

Il. 4 - Oscar Niemeyer, Catedral Metropolitana, Braslia, 1958-67.

O Conclio Vaticano II coroou esta valorizao dos essenciais, insistiu na idia do altar nico e lanou no rmas hierrquicas (e, de certa forma, iconogrficas) para a representao de santos. Para alguns comentadores, na tentativa de coibir abusos, ele acabou por incentivar uma nova fria iconoclasta e a construo de templos frios e abstratos. 18 A nsia de depurar o espao sagrado da ornamentao excessiva e sem significado, aliada ao treinamento de muitos arquitetos numa tradio funcionalista acabaria transformando a simplicidade em esterilidade. 19 Para outros, porm, o tempo presente apenas atualizaria uma polaridade vivenciada pela Igreja desde a Idade Mdia entre(...) thouse like Suger who believe using every resource of art and imagery to glorify God and thouse like Saint Bernard, for whom the Church is essentially the community of the faith and that any building will do.20

De uma forma geral, os templos catlicos contemporneos passaram a evocar e atualizar muito mais claramente a tradio Cisterciense do que os modelos Gtico, Renascentista ou Barroco. A partir da dcada de 1960 elementos como a escala, a verticalidade, a cor, a luz e, principalmente, o vazio foram cada vez mais utilizados para caracterizar o efeito de sacralidade nas igrejas. Desde Notre Dame du Haut em Ronchamp (1951-55) de Le Corbusier [Ils. 11-12, captulo 3] o vazio veio sendo mais e mais utilizado como um artifcio para se alcanar a idia de sacralidade. O vazio, como categoria mstica, reclama a presena do infinito; como categoria plstica um espao delimitado que18 19

SCHUBERT, Mons. Guilherme. Op.cit. p. 75. LAVANOUX, Maurice. Catholic tradition. In: SHEAR, John Knox (ed). Religious building for today. s.l: F.W.Dodge Corp, 1957, p. 47.

expressa uma ausncia e a necessidade de uma presena - considerado mais expressivo do imenso e do infinito. Poder-se-ia enxergar nesta tendncia uma certa falncia da crena na capacidade da gramtica moderna conseguir o desejado efeito de transcendncia? A identificao do vazio com a categoria do sacro parece remeter para uma antiga polaridade iconoclasta que alia o smbolo transcendncia, contrapondo-o imagem, associada imanncia.

Do ponto de vista da arte, foi duramente questionado se as realizaes dos artistas modernos conseguiram preencher tambm os requisitos postulados pelas necessidades da religio. Quando Matisse, por exemplo, acusado de transformar a capela de Vence em um museu Matisse, destinado a seus admiradores, o argumento merece ateno. 21 Segundo o que se depreende das prprias declaraes do pintor, a encomenda significou para ele o jogo de uma busca formal. 22 Matisse no constri Vence para Deus, para transmitir uma mensagem e nem mesmo para dar prazer a seu amigo padre Couturier. Ele trabalha, obviamente, em prol de sua prpria obra, e de sua pesquisa plstica pessoal. Teria sido o caso de ter-se apostado demais na capacidade de renovao de uma parceria entre Igreja e artistas? Como conciliar a linguagem temporal e humana do artista que almeja falar na linguagem de seu tempo, aos homens de seu tempo - com o ideal Catlico de um Deus que sempre o mesmo, superior s mudanas do tempo e ao prprio tempo? Se na arte moderna identificava-se o gnero sacro e as imposies da Igreja com um dos fatores com que os artistas deveriam romper, prejud icando, conseqentemente, a freqncia e dedicao com que se lanaram ao tema, no contexto da arte contempornea o quadro agrava-se ainda mais e a encomenda sacra situa-se por demais alheia noo vigente de criao para interess- los . At a dcada de 1950, entretanto, ainda era grande a confiana no poder da imagem para evocar a dimenso do sagrado. Escrevendo na dcada de 1950, o padre Dominicano

20 21

NORMAN, Edward R. Op.cit., p. 285. DEBI, Franck, VROT, Pierre. Urbanisme et art sacr. Une aventure du XX e sicle. Paris: Critrion, 1991, pp. 107-08 22 MATISSE, Henri. Chapelle du Rosaire des Dominicaines de Vence. Vence: s.n, 1963.

P.-R. Rgamey, editor da revista LArt Sacr, sintetizou bem a problemtica da arte sacra quando comentou que estes dois termos unidos pareciam convidar a um estudo em dois tempos. De um lado, necessrio conhecer as exigncias do sagrado; de outro, as da arte. A respeito de cada um dos termos, apresenta-se, ainda, a necessidade de traduzir os dados especficos de cada tempo histrico. Para ele, a questo complicar-se-ia ainda mais na medida em que o sagrado traz em seu bojo a exigncia do social, pois a obra de arte sacra deveria no somente trazer a marca autntica do divino como tambm falar a linguagem da congregao nos seus atos de culto. 23 De uma certa maneira, este trabalho acata as sugestes de estudo, tal como definidas pelo padre Rgamey, propondo, igualmente, um exame conjunto dos vetores artstico e religioso em sua perspectiva histrica. A Parte I tem, portanto, a finalidade de discutir e historiar as relaes centenrias da Igreja com a arte, bem como a prpria necessidade catlica da arte e, mais especificamente, da imagem. A importncia de abordar essas concepes tradicionais deriva, em primeiro lugar, da evidncia de que a origem de cnones e leis ainda em vigor no perodo estudado repousa freqentemente em diretivas formuladas h muito tempo. Em segundo lugar, porque a crise da arte sacra moderna , tambm a da dificuldade, dadas as exigncias mesmas do sagrado, de abrir-se mo de concepes forjadas no passado e to longamente compartilhadas com a arte tout court. A se conservar as definies e funes tradicionalmente apostas arte sacra, a Igreja tinha, por exemplo, de manter-se apegada a uma filosofia da arte calcada na idia da mimesis - da arte como uma representao da realidade - que agora tornava-se obsoleta. Ainda na primeira parte do trabalho o perodo que vai do final da dcada de 1950 e culmina no Conclio Vaticano II no deixa de ser lembrado mesmo que, a rigor, esteja fora do escopo da pesquisa. Ele contribui para o melhor entendimento das razes por que se est tratando as realizaes da arte sacra moderna como circunscritas a uma experincia delimitada no tempo. Na Parte II o enfoque recai nas experincias-chave de renovao da arte sacra na Europa que servem de modelo e inspirao para as iniciativas em outras partes do mundo, incluindo o Brasil. Procura-se explorar tanto o pensamento que alicerou as iniciativas de equacionar os cnones da tradio com as novas exigncias, quanto sua traduo em23

RGAMEY, P.-R., O.P. Op.cit., p. 15

realizaes concretas materializadas por edifcios e obras de arte. A capacidade moderna de reinventar e atualizar a tradio produziu variaes significativas em padres da imagtica crist. Por isso aborda-se tambm o desenvolvimento de motivos de central importncia na doutrina catlica e com longa tradio na histria da arte sacra re-trabalhados em novos padres iconogrficos. 24 Ao trabalhar a experincia brasileira na Parte III, focaliza-se, em primeiro lugar, o pensamento nacional catlico sobre a questo da arte sacra, colocando-se especial nfase no neotomismo maritainiano que dominou as reflexes de importantes segmentos catlicos vindo, inclusive, a atingir setores da intelectualidade laica ligada ao movimento modernista. Considerou-se imperativo, tambm, destacar algumas das perspectivas que marcaram o Modernismo no Brasil. Um Modernismo com profundas especificidades e tendo como emblema, para as geraes que se seguiram primeira onda paulista, um caleidoscpio formal para o qual o ps-cubismo fornecia os principais princpios. A diversidade de tendncias, todas figurativas, na procura de uma expresso nacional, vm a se utilizar tanto da temtica social com carter de denncia, quanto de temas populares, ambos pontilhados por uma dose do trgico para cuja inspirao contribuiu a Segunda Guerra. A marca da procura de uma identidade nacional imbrica-se a com a presuno de crise da arte moderna, calcada nas teorias da desumanizao da arte. Num quadro de busca de uma arte social com destinao coletiva no difcil justificar a perspectiva altamente favorvel alcanada pela pintura mural, alicerada, ainda, na influncia mundial exercida pelo muralismo mexicano. A arte moderna e a arte sacra tm no mural seu ponto de inflexo. Nesse sentido, segue-se o estudo de quatro encomendas para a construo de templos catlicos, privilegiando-se o estudo das suas pinturas murais, realizadas entre 1943-1953. Apesar de suas particularidades, todas as pinturas selecionadas foram concebidas em integrao com a arquitetura e realizadas por quatro dos principais artistas sacros modernos brasileiros com extensa obra tanto mural como de cavalete neste repertrio: Fulvio Pennacchi, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Emeric Marcier. So, portanto, suas diversidades e pontos em comum que iluminam e proporcionam uma apreenso matizada das possibilidades da arte sacra no Brasil modernista.24

Toma-se por iconografia o estudo da tradio visual pela qual os motivos so tratados ao longo do tempo.

Parte I - O Eterno e o Moderno

Captulo 1 - Exigncias da arte sagrada, a tradio, as leis da Igreja.Pela humanidade de Cristo ns caminhamos ao Pai; pela humanidade de Cristo flui at ns a vida divina da graa. Este processo to humano do sensvel ao espiritual, do caduco ao eterno, da criatura ao Criador, encontrou sempre na arte crist uma interpretao espontnea na riqueza da simbologia (...) Cardeal Giacomo Lercaro, 1955 25

O grande problema da arte sacra na primeira metade do sculo XX o da conciliao dos valores atemporais e transcendent ais da f com a humanizao das formas modernas, tal como sintetizou o padre Jesuta Juan Plazaola:O verdadeiro criador de formas ser filho de seu sculo e elevar categoria de estilo e forma viva os sentimentos do tempo e as apetncias da poca. Mas todo esse testemunho de uma era da humanidade nada vale no templo cristo se, acima de tudo, o artista no houver compreendido e sentido a sublime realidade, perenemente invarivel, da manifestao de Deus sobre o altar.26

Conseqentemente, a investigao operada aqui deve levar em conta as especificidades de um gnero da arte que se quer pensar enquanto fundado em normas atemporais e em exigncias permanentes da f e da liturgia, ao mesmo tempo que aberto para a histria, em direta consonncia com os vetores artsticos formais praticados em cada poca. Neste sentido, so analisadas aqui as leis cannicas acerca da pintura no interior dos templos, bem como as interpretaes modernas (pr-Vaticano II) desses textos. Embora algumas passagens de textos oficiais dem margem para interpretaes que postulam a impossibilidade de incorporao das formas modernas no interior dos templos, a Igreja consciente do divrcio que se efetuou entre ela e os artistas e procura veicular, para religiosos e artistas, a import ncia das tentativas de renascimento do gnero da arte sacra. Os textos de diretivas surgidos entre as dcadas de 1920-50 tentam, ento, traar alguns parmetros de harmonia entre a liberdade esttica postulada para os verdadeiros artistas e as exigncias particulares da arte pautada pelas necessidades litrgicas.

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LERCARO, dom Giacomo. Discurso na sesso inaugural do I Congresso Nacional de Arquitetura Sagrada. Bolonha, 23-25 setembro1955. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. El arte sacro actual. Estdio, panorama, documentos . Madri: La Editorial Catlica, 1965, pp. 629-36. Esta citao e todas as seguintes referentes a este livro so tradues minhas do texto em espanhol. 26 PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit, p. 122.

1.1 A Imagem cristA anlise das leis e prescries da Igreja acerca da arte sacra demanda o exame de uma questo prvia. Se as imagens no so indispensveis ao culto 27 , se a liturgia28

no

pressupe absolutamente a arte, por que durante sculos de Cristianismo sua necessidade foi to sentida? Ademais, para uma religio como a catlica, herdeira direta do judasmo iconoclasta, quais seriam as possveis justificativas para a utilizao de imagens nos templos? O segundo mandamento da lei Mosaica, no revogado expressamente por Jesus Cristo, proibia as imagens cultuais:No fars para ti imagem de escultura representando o que quer que seja do que est em cima no cu, ou embaixo da terra. No te prostrars diante delas para render-lhes culto, porque eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo a iniqidade dos pais nos filhos, at terceira e quarta gerao daqueles que me odeiam mas uso de misericrdia at milsima gerao com aquele s que me amam e guardam os meus mandamentos.29

No declogo, este o preceito revelado em um tom mais ameaador. Clusulas como os interditos ao homicdio ou ao furto (sexto e oitavo mandamentos, respectivamente) receberam uma alocuo absolutamente enxuta. Todavia, no segundo mandamento que o carter poderoso do Deus judaico fica mais ressaltado, revelando, assim, a relevncia conferida por aquela religio a este tpico. Os primeiros seguidores de Jesus tinham, desse modo, legitimao suficiente para rep udiar a arte religiosa, indo mesmo a ponto de questionar a prpria noo de arquitetura religiosa. 30

27

A nica imagem cuja presena na igreja requerida pelas rubricas a cruz com a figura de Cristo sobre o altar. Mas mesmo o crucifixo somente tornou-se obrigatrio a partir da codificao efetuada a partir do Conclio de Trento (1545-63). Assim ele aparece na verso autorizada e revisada do Missal Romano publicada em 1570.Ver PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p.416. 28 A Sagrada Liturgia foi definida pelo papa Pio XII como a adorao pblica que nosso Redentor, como Cabea da Igreja, devota ao Pai, assim como a adorao que a comunidade dos fiis presta ao seu Fundador, e atravs Dele ao Pai eterno. , em suma, o culto prestado pelo Corpo Mstico de Cristo na integridade de sua cabea e membros. PIO XII (1939-1958). Mediator Dei. Encclica sobre a sagrada liturgia. Roma, 20 novembro 1947. Disponvel na INTERNET via New Advent. Catholic Encyclopedia. www.newadvent.org/docs/pi12md.htm. Arquivo consultado em 2000. 29 Ex 20, 4 e Deut 5, 8-10. BBLIA SAGRADA. So Paulo: Ave Maria, 1993, p. 120 e p. 221. 30 O ato dos Apstolos menciona que Deus no habita em te mplos feitos pela mo do homem (At 17, 24). Ver PELIKAN, Jaroslav. Jesus through the centuries. His place in the history of culture. New Haven & London: Yale Univ. Press, 1999, p. 83.

Mas desde logo, uma das primeiras questes a suscitar discusses e cismas no seio da Igreja primitiva foi justamente a da utilizao de imagens religiosas. Distanciando-se do judasmo, a religio catlica percebeu j muito cedo o poder da imagem para veicular sua mensagem, ainda que a utilizao delas nos primeiros tempos no alcanasse a dimenso cultual. 31 Entretanto, to logo a cruz se firmasse como objeto de culto com Constantino no sculo IV e introduzisse o elemento de venerao prpria figura de Cristo, o desenvolvimento da histria da arte sagrada passou a acompanhar de perto a evoluo e as transformaes no tempo e no espao da prpria liturgia. Pode-se identificar, portanto, que a relao da Igreja Catlica com as imagens expressou-se ao longo do tempo em quatro perodos distintos, preenchidos com preocupaes diferenciadas e que esto, obviamente referenciados prpria histria da Igreja. Num primeiro momento, a Igreja primitiva viveu a tenso dos primeiros sculos, a defesa e afirmao das imagens e a grande querela da iconoclastia. quando se d a gnese dos conceitos clssicos da filosofia da arte catlica no contexto de afirmao e estabelecimento de uma doutrina ortodoxa em combate contra diversas heresias. Estes conceitos tm sua melhor expresso nas posturas assumidas pelo papa S.Gregrio Magno (590-604) e nas resolues do Conclio Ecumnico de Nicia II (787). O segundo momento marcado pelo Conclio Ecumnico de Trento no sculo XVI, no mbito da luta contra o protestantismo e da crise da Reforma Catlica. A grande preocupao a com a purificao dos dogmas. Na batalha contra os excessos das devoes particulares e superstio, formula-se a primeira grande codificao das leis que regem a liturgia e a arte sacra. De finais do sculo XIX ao incio da dcada de 1960 tem-se o perodo em que o movimento litrgico procura questionar e renovar as formas do culto divino. Reconhecendo em grande parte a vitria de um longo processo de secularizao e em luta contra a perda de espao nos coraes e mentes humanos, a Igreja catlica tenta reposicionar-se. Na arte religiosa, a discusso maior gira em torno da aceitao ou no das formas modernas. A posio oficial da Igreja com relao arte expressa atravs dos diversos pronunciamentos do papa Pio XII (1939-58) sobre o assunto e, principalmente, pela31

BARBOSA, Marcos, O.S.B. O Culto das imagens. In: ARTE sacra brasileira. Rio de Janeiro: Colorama,

Instruo sobre Arte Sacra, elaborada pelo Santo Ofcio em 1952. Apesar de ancorados em prescries cannicas, observa-se no corpus legal deste perodo certa transformao nas funes atribudas arte sagrada. Por fim, a partir do incio da dcada de 1960 o Conclio Ecumnico Vaticano II consolida certas posies advogadas pelo movimento litrgico e procede a uma enorme reestruturao litrgica, codificada na Constituio sobre a Sagrada Liturgia de 1963, que traz um captulo dedicado arte sacra, recomendando extrema economia e simplicidade. Ainda assim, observa-se a tentativa de constituio de um novo pacto com os renomados artistas plsticos contemporneos, cada vez menos propensos a sentirem qualquer atrao pela possibilidade de trabalharem com uma encomenda religiosa institucional.

1.2 A Imagem no tempo: a defesa das imagensUma primeira justificativa tecida pela religio catlica para a utilizao das imagens alcana, em certo sentido, um nvel apenas trivial. Ela estrutura-se a partir do argumento de que o segundo mandamento referia -se apenas s imagens de falsos dolos estrangeiros, que tomavam a forma de pessoas, astros e animais e no a qualquer espcie de desenho, pintura ou escultura. 32 O prprio Deus teria, em duas ocasies, ordenado a Moiss a fabricao de imagens. Na primeira vez, mandou-o fazer uma serpente de bronze para seu cajado (Num 21, 4-9); na segunda, dois querubins para adornar a tampa da Arca da Aliana (Ex 25, 18ss). Tambm o templo de Salomo foi decorado com figuras de querubins, lees e bois, sem que disto resultasse qualquer punio divina (I Re 7, 29). Diferenciando dolo de imagem, a idia central do argumento a de que a proibio tinha um escopo bem definido de proteger um povo, cercado de vizinhos idlatras, da idolatria. A salvo desta, o uso das imagens no mais ofereceria perigo. 33 O argumento mais consistente, todavia, apia-se no dogma central do Cristianismo, o prprio elemento que faz a originalidade do Cristianismo e que distingue a Lei da Graa,

1988, p. XI. 32 O Conclio Ecumnico de Nicia II (787) resolveu pela excomunho daqueles que aplicam s venerandas imagens as expresses da Sagrada Escritura contra os dolos; (...) dizem que a Igreja catlica teria aceitado alguma vez os dolos. Apud PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 544. 33 Ver os comentrios a um texto do sculo III, as Homilias sobre o xodo, VIII, 3 de Orgenes (c.185-c.254) que distingue dolo de imagem, afirmando que dolo seria a representao de algo que no existe na natureza. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexes sobre a distncia. So Paulo: Companhia das Letra, 2001, pp. 122-38.

ou seja, a Encarnao do Cristo, sintoma do amor de Deus manifestado em suas intervenes na criao. Ela tornava a representao pictrica da obra da Redeno possvel e mesmo justificada, ressalvando-se que o construtor de imagens no presumisse ser capaz de compor uma real representao visual de Deus e que as imagens fossem encaradas como signos da f, veneradas no por si mesmas mas por causa da realidade a qual se referem. 34 no contexto da Encarnao que a criao do homem na imagem e semelhana de Deus recebe todo seu valor teolgico e que a atividade artstica encontra seu parentesco com a matriz divina. Jaroslav Pelikan define assim o argumento principal:Deste modo, o Deus que havia proibido a arte religiosa como um esforo idlatra de representar o divino na forma visvel, tomou agora a iniciativa de representar a si mesmo na forma visvel, e o fez no em metfora ou em memria, mas em pessoa e, quase literalmente, em carne`. A metafsica tornou-se histrica e o Logos csmico, que era a verdadeira imagem do Pai na eternidade, tornou-se agora uma parte do tempo e poderia ser representado em uma imagem de sua divina-humana pessoa (...).35

Na medida em que, no Cristianismo, os mistrios da salvao haviam se consolidado historicamente em episdios que falavam aos sentidos, isto podia ser interpretado como um convite a representaes sensveis. Estas, no entanto, no ficavam desobrigadas de remeter a um contedo invisvel. Tambm a arte deveria ser a encarnao de um verbo, ressaltando um humano que encerra algo do infinito. 36 Ainda assim, por vrios sculos a questo mereceu intenso debate. Por mais que a arte figurativa estivesse associada idia de pecado para as comunidades crists primitivas, uma pintura simblica floresceu desde logo nas catacumbas e nos sarcfagos decorados com cenas evanglicas e imagens do Bom Pastor. Os trs primeiros sculos so marcados por um certo enriquecimento do repertrio iconogrfico simblico, mas tambm pela postura de decidida oposio s imagens por parte de importantes dirigentes da Igreja como S. Irineu (morto c. 200) ou S. Clemente de Alexandria (150?-215?). A partir da era de Constantino, presencia-se uma forte tenso iconmaca. De um lado estavam as claras34

HENZE, Anton, FILTHAUT, Theodor. Contemporary church art. New York: Sheed &Ward, 1956, pp. 60-61. 35 PELIKAN, Jaroslav. Op.cit., p. 92. 36 RGAMEY, P.-R., O.P. Arte sacra contempornea. So Paulo: Herder, 1961, p. 70.

vantagens da linguagem visual para a disseminao da mensagem catlica, ainda mais em um contexto de afirmao da f na humanidade de Cristo que se traduziu, inclusive, no desenvolvimento de uma Mariologia no interior do corpus dogmtico. De outro, os ideais de uma Igreja recm ocupante de uma posio de hegemonia que implicava na aniquilao do paganismo e na luta contra os perigos da idolatria. Todavia, nos sculos V e VI as imagens se impem no interior dos templos, propagando-se inexoravelmente em igrejas de Roma, Ravena e Milo. Impulsionado pelo Conclio Ecumnico de feso (431) que proclamou a maternidade divina, o arco triunfal de Santa Maria Maggiore, em Roma, por exemplo, foi decorado com um ciclo monumental de imagens da infncia de Jesus em mosaico. A partir da, verifica-se, da parte dos dirigentes da Igreja, um silncio acerca da proibio de imagens que, na prtica, representou uma acolhida sua disseminao. Importava mais neste momento definir e esclarecer o bom uso das imagens, distinguindo sua funo catequtica, benfica, de um culto indevido. No oriente, o culto s imagens propriamente dito propagou-se mais aceleradamente, tomando emprestado frmulas de venerao devidas autoridade imperial como a reverncia, a aclamao, etc. L foi dado tambm, no sculo VII, um passo importante na direo da aceitao oficial da iconografia crist como legtima e til, efetuando-se a transio do smbolo para a i agem. 37 Pela m primeira vez, as autoridades crists declararam as imagens venerveis, no mais simples smbolos, e ordenaram que ao invs do tradicional Cordeiro, o Cristo passasse a ser representado na forma humana.38

No sculo VIII cresceu a tenso entre iconoclastas e iconfilos com a deciso do imperador bizantino Leo III (717-40) de impor pela fora a supresso das imagens, instaurando um longo perodo de perseguies sangrentas e de destruio de arte sacra, estaturia e pictrica. Aps promulgar dois editos iconoclastas, em 726 e 731, o imperador foi excomungado pelo papa S. Gregrio II (715-731). Revertendo o cnon estabelecido no Conclio Quinisexto, Leo III ordenou a troca de uma imagem de Cristo na porta de seu palcio pela do signo da cruz, alega ndo que as Escrituras proibiam a figurao de Cristo em sua forma humana.

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PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp 393-407. Resoluo de um Conclio local, realizado em Constantinopla em 692. CONCLIO QUINISEXTO ou TRULLANO II, cnon 82. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 543.

A idia de Jesus como Verdadeira Imagem do Pai` era central para ambas as correntes que debatiam a questo iconoclasta mas dela retiravam concluses mutuamente excludentes. Em um dos episdios mais famosos, ainda no sculo IV, Constncia, irm de Constantino (327-337), escreve a Eusbio da Cesrea (260?-340?) requisitando uma imagem de Cristo. Este responde no entender a que imagem ela poderia se referir, se a uma imagem verdadeira e imutvel, retratando fielmente Sua face, ou quela que Ele assumiu em nosso benefcio quando tomou a aparncia de um escravo? No primeiro caso tratar-se-ia de uma faanha impossvel para os desgnios humanos; no segundo, matria de nenhuma importncia. 39 Tributria de um certo docetismo, que privilegia as qualidades transcendentes de Jesus, nota-se nesta faco uma averso aos aspectos fsicos e materiais da Sua pessoa. Os iconoclastas dos sculos VIII e IX evocavam a prpria jurisprudncia firmada nos Conclios Ecumnicos dos sculos IV e V. O Conclio Ecumnico de Nicia (325) declarara ser o Filho de Deus consubstancial com o Pai. No Conclio de Calcednia (451), a relao entre a natureza humana e a natureza divina de Cristo foi definida ortodoxamente como duas naturezas numa nica pessoa. Do ponto de vista dos oponentes representao artstica de Cristo, a Verdadeira Imagem de Deus estava aqum de descrio, compreenso ou medida. Os artistas no poderiam possuir competncia suficiente para representar um corpo que era agora incorruptvel, ainda que tivesse assumido um outro status anteriormente Paixo e Ressurreio. Para o imperador bizantino Constantino V (741775), um dos mais ardentes iconoclastas do sculo VIII, uma imagem de Cristo somente poderia ser verdadeira na mesma medida em que Cristo era a Verdadeira Imagem do Pai. Conseqentemente, um cone de Cristo no poderia ser uma verdadeira imagem Dele a menos que compartisse de Sua natureza. Nenhum artefato feito pela mo do homem poderia preencher este requisito. A nica possibilidade para uma verdadeira imagem de Cristo residia na Eucaristia, contendo a presena real de Seu corpo e sangue. Quem pintasse um cone de Cristo estaria violando ou a natureza essencial de Cristo, aqum de descrio e circunscrio, ou estaria separando as duas naturezas e, portanto, dividindo Sua nica pessoa. 40

39 40

Apud PELIKAN, Jaroslav. Op.cit., p. 85. PELIKAN, Jaroslav. Op.cit., pp. 86-88.

J os defensores das imagens, especialmente S. Joo Damasceno (c.749), grande intrprete da posio iconfila, afirmavam compartilhar da crena de que o Filho a Imagem de Deus, porm destacavam que Ele havia sido tornado humano e, portanto, fsico e material, por Sua Encarnao e nascimento de uma mulher. Sendo assim, um cone de Cristo no era um dolo, mas uma imagem da Imagem. Todas as imagens do universo partilhariam da mesma origem comum, como numa grande cadeia. Todas as formas sensveis seriam manifestaes visveis do invisvel. E nessa longa linhagem de produo de imagens a primazia cabia justamente a Deus. Segundo S. Joo Damasceno, Deus fora o primeiro criador de imagens do universo. 41 A imagem podia, conseqentemente, responder a uma demanda prpria: tornar visvel o invisvel, servir de canal para a transcendncia. Neste sentido, como smbolo do sagrado, a arte chega perto de adquirir uma equivalncia ao sacramento, partilhando com este o fato de consistir em uma forma visvel de uma graa invisvel. Sendo a matria, obra de Deus, admitia-se uma concepo de arte compatvel com a de homem que se sabe composto de matria e esprito. Por meio da contemplao das obras artsticas sensveis podia-se ascender contemplao espiritual:Quando tenho vontade de estudar e disponho de tempo livre, vou de bom grado igreja e contemplo os quadros (...) Acariciam meus olhos como as flores do campo; e a glria de Deus descende sobre a minha alma (...) as imagens me falam com uma voz que no ouvem meus ouvidos (...).42

Essa acepo mais fundamental e metafsica da palavra imagem contm em si uma idia do Filho de Deus como imagem nica e viva do Pai invisvel, em nada diferindo Dele exceto por ser o Filho. Antes da Encarnao, portanto, o Filho de Deus era no apenas a imagem do Deus invisvel, mas a imagem invisvel do Deus invisvel. A Encarnao do Logos metafsico na pessoa histrica de Jesus de Nazar propiciara o elo que faltava na longa cadeia de imagens. A adorao de Cristo, por conseguinte, no seria idlatra de acordo com a frmula depois tornada clssica de Baslio da Cesrea (c.329-379) segundo a qual a homenagem prestada imagem (o Filho) passava ao prottipo (o Pai). 43

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Apud PELIKAN, Jaroslav, Op.cit., p. 89. S. JOO DAMASCENO. Segundo discurso sobre as imagens. Apud PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp. 401-02. 43 Apud PELIKAN, Jaroslav. Op.cit., p. 89.

No sculo VIII S. Gregrio I (715-731) admitia que a Encarnao de Cristo fornecera um salvo conduto para a exaltao de Seu aspecto imanente:(...) Erijamos por meio de cores a veneranda e santa figura conforme a humanidade dAquele que tira os pecados do mundo, refletindo atravs desse meio a grandeza da humanidade do Verbo de Deus e, levados pela mo memria de sua comunicao com a carne mortal, isto , de sua paixo e morte salvadora e da redeno do mundo que dela se seguiu.44

Todavia um outro aspecto da palavra imagem, para alm de seu uso com conotaes metafsicas, foi tambm considerado como base de argumentao a favor de seu uso religioso, qual seja, o de sua natureza histrica. Por ser a mente humana incapaz de perceber a realidade espiritual a no ser atravs do uso de imagens fsicas, estas passavam a desempenhar um papel inestimvel. A epstola de S. Paulo aos Romanos expressa este conceito ao esclarecer que: desde a criao do mundo, as perfeies invisveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visveis inteligncia, por suas obras. 45 Essa argumentao vai permitir uma justificativa das imagens a partir das funes didticas a ela atribudas. Um livro de histria escrito a fim de perpetuar a memria dos eventos passados e instruir futuras geraes acerca do bem e do mal era uma imagem deste tipo. Ora, imagens no- literrias erigidas em memria de eventos ou personagens histricos no diferiam intrinsecamente dos livros. O argumento clssico da funo didtica e catequtica da imagem como a Bblia dos iletrados foi desenvolvido e difundido pelo papa Gregrio Magno ainda no sculo VI. Em relao s palavras, imagens apresentariam vantagens, pois podiam ser entendidas pelos iletrados, inspirar emoes e serem mais vividamente lembradas:(...) Uma coisa adorar uma pintura e outra conhecer atravs da histria pintada, o que se deve adorar. Porque o que a Sagrada Escritura proporciona aos que sabem ler, o que a pintura proporciona aos analfabetos que sabem olhar. (...) Portanto, no se deve destruir o que se colocou nas igrejas, no para ser adorado, mas para instruo dos ignorantes.46

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S. GREGRIO I (715-731). Carta a Germano, patriarca de Constantinopla. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 505. 45 Rom 1, 20. BBLIA SAGRADA. Op.cit., p. 1450. 46 S. GREGRIO MAGNO (590-604). Carta a Sereno, bispo de Marselha. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 503.

Igualmente para S. Joo Damasceno, as imagens, como livros para os iletrados, diferiam da Bblia apenas na forma, ma s no em contedo. Em seu tratado sobre as imagens ele exortou os crentes a fabricarem imagens de Jesus que perpetuassem a memria de Sua estada entre os homens:Porque aquele que por excelncia de natureza transcende toda quantidade, tamanho e magnitude, que possui seu ser na forma de Deus, contraiu agora, ao ter tomado a si a forma de um escravo, uma quantidade e tamanho e adquiriu uma identidade fsica, no hesiteis mais a desenhar figuras e a tornar conhecido, para todos verem, ele, que escolheu deixar-se ver: sua descida inefvel do paraso a terra; seu nascimento da Virgem; (...); os milagres que simbolizaram sua natureza divina quando eram encenados atravs da atividade de sua carne humana; o sepultamento, ressurreio e ascenso, pelos quais o Salva dor realizou nossa salvao descreva todos estes eventos, tanto em palavras como em cores, tanto nos livros como nas figuras.47

O Conclio Ecumnico de Nicia II (787), convocado pela imperatriz bizantina Irene (782-803), alm de proceder condenao dos iconoclastas, consolidou a argumentao de justificativa para as imagens, bem como lanou bases slidas de uma verdadeira filosofia da arte crist. A partir dele foi decretada a restaurao do culto s imagens no oriente, pelo menos at que uma segunda onda de iconoclastia se abatesse no imprio bizantino na primeira metade do sculo IX.48

Retomando os pontos defendidos por S. Gregrio Magno e S. Joo Damasceno, Nicia II reafirmou as trs funes da arte na igreja: instruir os iletrados; servir de lembrana para os mistrios da Encarnao e dos santos exemplares; e estimular a devoo aos assuntos representados. Na sesso VII ficou definido o valor da imagem para a catequese, para estimular a piedade crist e para prestar uma justa homenagem a Deus:(...) Porque quanto mais freqentemente so representados com imagens, tanto mais vividamente os que as contemplam sentem-se movidos recordao, ao afeto, ao beijo e a tributar-lhes uma adorao de honra; adorao que no verdadeira ltria em sentido teolgico, somente devida natureza divina (...) A honra dada

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Apud PELIKAN, Jaroslav. Op.cit., p. 92. A perseguio s imagens s teve fim em 843 quando a imperatriz Teodora II, viva de Tefilo, restabeleceu definitivamente seu culto. PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 405.

imagem passa, efetivamente, ao prottipo, e quem adora a imagem adora nela a pessoa representada.49

A questo das imagens transformou-se em um ponto central no combate do Conclio Niceno Segundo contra as heresias monofisistas. Por isso, em uma carta enviada igreja de Alexandria esta era advertida que atravs das imagens nos dado a ver a paixo sofrida por Cristo e outros episdios dos mistrios sagrados; que por seu intermdio, um meio sensve l, a mente humana eleva -se ao conhecimento de Deus. Por conseguinte, deviam ser excomungados todos aqueles que no admitiam que Cristo pudesse ser definido com as palavras humanas e no pudesse ser representado sobre as imagens porque Ele no teria tido carne e sangue. 50 O papa Adriano I (772-795) consolidou as posturas Nicenas nas epstolas enviadas imperatriz Irene e seu filho Constantino VI onde ele introduzia, a par das tradicionais funes da arte sacra como ensinamento que prescinde das palavras ou como memria dos feitos exemplares dos santos, a idia, derivada de S. Joo Damasceno, da arte como um atalho entre o homem e Deus: (...) Atravs da figura visvel, nossas mentes so arrebatadas espiritualmente at a invisvel divindade de Sua grandeza (...).51 Note-se, entretanto, que, por um lado, o Conclio Niceno Segundo recomendava veementemente a representao em imagens (pintadas, em mosaicos ou em qualquer outra matria) de Jesus, da Me de Deus e dos anjos e santos mas, por outro, alertava que sua composio no deveria ser deixada inveno do artista, sendo lei e tradio da Igreja catlica. 52 Enquanto no imprio bizantino, o Conclio Niceno Segundo inaugurava uma trgua na iconoclastia, no imprio ocidental complicaes foram adicionadas. Opondo-se politicamente ao estreitamento de laos entre o papado e o imprio do oriente, Carlos Magno (768-814) tomou a questo do culto das imagens como um ponto de atrito nas suas relaes com o papa Adriano I. Ele recusou-se a aceitar todas as decises de Nicia II, que haviam chegado atravs de uma traduo latina errnea. Mandou ento compor uma refutao a este documento, conhecida pelo nome de Livros Carolinos. Inspirados em49 50

CONCLIO NICIA II (787), Sesso VII. Op.cit. Ver CONCLIO NICIA II (787). Carta igreja de Alexandria. Ibid. 51 ADRIANO I (772-95). Carta aos imperadores bizantinos Constantino e Irene. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp. 506-10.

escritos bizantinos de teor iconoclasta, se no chegavam a posicionar-se a favor da destruio das imagens, tambm no faziam sua apologia. Em 794, um Conclio convocado por Carlos Magno em Frankfurt levava a posio ainda mais longe ao abandonar vrias concluses de Nicia, condenando formalmente o culto s imagens.53

O imperador deu a

conhecer ao papa as decises tomadas, enviando-lhe captulos dos Livros Carolinos, aos quais Adriano I contestou ponto a ponto ponderando:(...) verdadeira e evidentemente, as imagens representam em forma visvel as coisas invisveis (...). Realmente seria impossvel chegar com nossa mente a expressar e a ver a celeste milcia, que no tem corpo (...). Se Vossa Real Excelncia quiser consentir na defesa das coisas de Deus, ns o exortamos a fazer isto com o mesmo zelo pelas sagradas imagens, ocupando-se em consider-las segundo a tradio primitiva .54

Os Livros Carolinos traduziam bem o esprito de reserva com que os cones eram admitidos por setores do imprio do ocidente. Reserva esta que se manifestou tambm nos sculos IX e X em uma iconografia preponderantemente ornamental, onde pouco destaque era conferido figura humana. Mas a despeito das restries do imprio carolngio e de uma certa ascesis iconogrfica no perodo, as formulaes de Nicia II abriram caminho para a instituio do cnon B no Conclio Ecumnico de Constantinopla IV (869) o qual oficializou, pela primeira vez, a venerao das imagens decretando que: a sagrada imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, Redentor e Salvador de todos seja venerada com a mesma honra que o livro dos Santos Evangelhos.55 Equivalente palavra escrita, inclusive no que tocava possibilidade de ser iluminada pela graa, a arte passava a acumular oficialmente a funo de homenagem Deus, de caminho entre o transcendente e o imanente.

1.3 A Imagem no tempo: a purificao das imagensAps defender e justificar as imagens sagradas lutando por sua consolidao no interior dos templos, a Igreja negligenciou por um longo tempo sua regulamentao. Ao

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MARIANI, Goffredo. La Legislazione ecclesiastica in matria darte sacra. Roma: Libreria Francesco Ferrari, 1945, p. 105. 53 PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp. 403-07. 54 ADRIANO I (772-95). Carta ao imperador Carlos Magno. In: PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., pp. 506-10. 55 CONCLIO CONSTANTINOPLA IV (869), Cnon B. In : PLAZAOLA, Juan, S.J. Op.cit., p. 545.Vale lembrar, no entanto, que o Conclio de Constantinopla IV somente foi reconhecido como ecumnico no sculo X.

longo da Idade Mdia ocidental a alternncia na arte de estilos marcados, ou pelo fausto, ou pela austeridade consolidou-se num padro representado por Cluny/Citeaux ainda que tambm houvesse convivido com propostas de heresias radicais (ctaros e albigenses) advogadas de uma ambientao asctica de exceo, com salas de culto totalmente desnudas onde at mesmo a cruz era repudiada. O sentimento religioso da Idade Mdia no ocidente disseminou-se atravs das ordens monsticas, caracterizando-se pelo misticismo e emocionalidade. Em 1098 a fundao na Borgonha da matriz da ordem Cisterciense e a ascenso de seu mais eminente telogo, S. Bernardo de Claraval (1090-1153), trouxe uma nova nfase na identificao pessoal com a vida de Cristo e seus sofrimentos. O Jesus humano e Sua me ocuparam, ento, o centro do sentimento religioso e a experincia pessoal do fiel acerca do divino tomou a forma de um dilogo com a Divindade. 56 Mais tarde, no sculo XIII, as ordens mendicantes, especialmente os Franciscanos, desenvolveram e transformaram a tradio mstica iniciada com os Cistercienses enfatizando seu carter pietista, concentrada na figura humana do Salvador. Entre 1270 e 1290 o arcebispo de Gnova, Jacobus de Voragine, publicou a verso original em latim da Lenda urea, elaborada como uma apresentao de material concernente s princ ipais figuras da Bblia, s mais importantes festas catlicas e vida dos santos. O manuscrito ilustrado, as Meditaes sobre a vida de Cristo, atribudo ao Franciscano Johannes de Caulibus, apareceu um pouco mais tarde, concebido como um conjunto de instrues para uma freira da ordem das Clarissas. O intenso desejo por detalhes que ajudava a tornar as narrativas bblicas mais acessveis e mais vvidas para os leitores levou o autor a um embelezamento considervel dos Evangelhos, agora enriquecidos por numerosas cenas provenientes da sua imaginao. As Meditaes e a Lenda urea foram traduzidas para a maioria das lnguas europias, disseminando-se rapidamente e tornando-se fontes literrias para as artes visuais. O processo de humanizao da divindade enriquecido na arte religiosa com a representao dos episdios evanglicos de um ponto de vista muito mais anedtico do que

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Ver BROOKE, C. The Monastic world 1000-1300. London, 1974, p. 116; HONE, E., Image and imagination in the medieval culture of prayer; a historical perspective. In: Van OS, Henk. The Art of devotion in the late middle ages in Europe, 1300-1500. London and Amsterdam: Merrell Holberton, 1994, p. 161.

teolgico. A iconografia de uma poca que comeava a substituir Deus pelo homem como centro do universo caa no naturalismo e no prazer da imagem por si mesma em detrimento de sua significao transcendente. A legislao eclesistica era omissa e no regulava, deixando iniciativa individual de alguns ministros a tentativa de coibir os excessos. Logo surgiram tais vozes na pele dos Do minicanos Santo Antonino de Florena (1389-1459) ou Jernimo Savonarola (1452-1498). Santo Antonino criticou as obras pictricas de seu tempo que retratavam lendas apcrifas, nus sensuais e qualquer coisa contrria natureza e ao desenvolvimento biolgico humano. Ele protestava, veementemente, contra as imagens que deformavam a representao de conceitos teolgicos precisos como a Santssima Trindade ou a dupla natureza de Cristo:57Eles [os pintores] cometem uma ofensa quando criam imagens provocadoras de desejo, no por sua beleza, mas atravs das poses, como de mulheres nuas e similares. Eles devem ser repreendidos quando pintam coisas contrrias f, quando fazem uma imagem da Trindade como uma pessoa de trs cabeas, o que monstruoso na natureza das coisas, ou, na Anunciao Virgem com o beb Jesus sendo enviado para o tero da Virgem, como se seu corpo no tivesse derivado da substncia da Virgem (...). Nem devem ser louvados aqueles que pintam lendas apcrifas como parteiras na Natividade (...). Pintar curiosidades em histrias de santos ou em igrejas, que no possuem nenhum valor para o estmulo da devoo, apenas riso e vaidade, tais como macacos, ou ces perseguindo coelhos, ou adornos e roupas fteis, parece suprfluo e vo.58

Savonarola condenava a excessiva gratificao sensual na arte florentina do Renascimento, na qual a realidade secular era mais enfatizada do que a dimenso espiritual. 59Estimulando uma reviso radical dos valores artsticos ele exortava os pintores a expurgar suas imagens de todo aquele enorme aparato que distraia a pintura de seu contedo genuinamente religioso:57

GILBERT, Creighton E. The Archbishop on the painters of Florence, 1450. Art Bulletin, XLI, 1959, pp. 75-87. 58 GILBERT, Creighton E. Italian art 1400-1500. Sources and documents. Evanston: Northwestern University Press, 1980, p. 148. 59 HALL, M.B. Savonarolas preaching and patronage of art. In: VERDON, T., HENDERSON, J. (ed). Christianity and the Renaissance. Image and religious imagination in the Quattrocento. Syracuse, 1990, pp. 493-522.

(...) As imagens de seus Deuses so as imagens e retratos das figuras que vocs pintaram nas igrejas, e ento os rapazes circulam dizendo para essa e aquela moa, esta moa a Madalena, aquela So Joo porque vocs pintaram as figuras nas igrejas como retratos desta ou daquela mulher, o que mal feito e grande desonra para Deus. (...) Vocs colocam todas as vaidades nas igrejas. Vocs acreditam que a Virgem Maria andou vestida desta maneira como a pintam? Eu digo, ela vestia-se como uma pobre mulher, simples, e to coberta que seu rosto mal podia ser visto, assim como Santa Isabel vestia -se de forma modesta. Fariam bem em apagar todas essas figuras que so pintadas to lascivamente. Vocs fazem a Virgem Maria parecer vestida como uma prostituta....60

Essas vozes foram como uma antecipao de alguns conceitos que informaram a reforma Tridentina. Finalmente, no sculo XVI, aps ter exercitado boa dose de tolerncia, a Igreja Catlica tomou sob sua responsabilidade o direcionamento da regulamentao. O Conclio Ecumnico de Trento (1545-63), convocado em resposta Reforma Protestante, deu incio ao movimento de Reforma Catlica. Ele definiu de maneira precisa os dogmas essenciais da religio e uniformizou a liturgia, firmando padres em termos de f e de prticas que se mantiveram at incios do sculo XX. Grande a preocupao com a religiosidade popular, facilmente seduzida para prticas no-cannicas, com o desenvolvimento de cultos e santurios locais, que passam a dominar a devoo e com dogmas no aprovados, que resultam em representaes iconogrficas esprias, em suma, com diferentes manifestaes da superstio. Sob a denominao de superstio aglomeram-se vrias espcies de deslizes que podem sofrer o culto a Deus, entre elas, a devoo imprpria, a idolatria, a adivinhao e a magia e ocultismo. 61 Segundo S. Toms de Aquino (1225-1274), as prticas adicionadas ao culto prescrito ou estabelecido representam um vcio que contamina a religio por meio do excesso, ou porque oferecem devoo a seres outros que o verdadeiro Deus, ou porque cultuam Deus de uma maneira imprpria. Nesta segunda forma, a introduo de elementos suprfluos ou falsos na prtica religiosa incluiria indulgncias esprias, inveno de falsos

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GILBERT, Creighton E. Italian art 1400-1500. Sources and documents. Op.cit., p. 158. A preocupao com a idolatria sempre dominou a querela das imagens. Foram freqentes, desde o sculo XII pelo menos, imagens do Cristo na cruz ou em magestade acompanhadas de dsticos latinos com inscries do tipo O que a imagem ensina Deus, mas ela no Deus. Medita sobre a imagem, mas adora em esprito o que vs nela. Apud GINZBURG, Carlo. Op.cit., p. 100.

milagres, revelaes ou aparies e o culto a santos ou relquias imaginrias, to caractersticos do padro de credulidade popular.62 Na liturgia, o ncleo essencial formado pelos sacramentos do batismo e eucaristia tambm passou por uma reformulao no Conclio de Trento, em reao contra uma situao em que a devoo centrara-se cada vez mais na humanidade de Cristo e sua Paixo, em detrimento das idias de ressurreio e ascenso. A antiga nfase na interioridade e no esprito de simplicidade dera lugar a valores ligados exterioridade, alegoria e monumentalidade. A ao litrgica convertera-se em espetculo. O individualismo religioso se acirrara e os fiis passaram, cada vez mais, a exercitar sua piedade atravs de devoes extra- litrgicas. O primeiro passo dado foi no sentido de expurgar dos livros litrgicos os elementos esprios e quase supersticiosos que haviam se infiltrado na vida cultual. A medida seguinte foi a fundao da Sagrada Congregao dos Ritos em 1588, encarregada da codificao e fiscalizao da vida cultual catlica ocidental. Ainda assim, a reao Tridentina no conseguiu aproximar devidamente as venerandas formas de culto da nova sensibilidade dos fiis, abrindo caminho para as condies que tornaram o movimento litrgico necessrio e possvel j a partir do final do sculo XVIII.63 Para a arte, o Conclio de Trento representaria uma tentativa de busca de equilbrio entre a tradicional oscilao dos dois plos opostos de perigo enfrentados pelo Cristianismo: a vertente iconoclasta que rena