7.1 o maior reservatório de energia no mundo · cifras como essas ajudam a estabelecer a ......

23
Capítulo 7 Oriente Médio e Norte da África, região central no tabuleiro energético 29.427 7.1 O maior reservatório de energia no mundo Em 2010, mais de um terço do petróleo consumido no mundo teve sua origem em países do contexto geopolítico do Oriente Médio e Norte da África (OMNA). Essas duas regiões, combinadas, produziram 29 milhões de barris diários, o equivalente a 35,3% do suprimento global de petróleo 1 . A quase totalidade dessa produção se concentra num restrito grupo de oito países: Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Líbia e Argélia. Ainda mais importante do que a participação dos países do OMNA no mercado energético atual é o patrimônio que esses países possuem na forma de reservas petrolíferas, armazenadas no subsolo. Quase seis em cada dez barris de petróleo existentes – ou seja, 59% das reservas mundiais – estão situados no Oriente Médio e no Norte da África. Com o tempo, a importância estratégica dessas duas regiões aumentará cada vez mais, pois responderão por uma parcela crescente da oferta petroleira global, 1 BP, 2011.

Upload: lythien

Post on 29-Jul-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Capítulo 7

Oriente Médio e Norte da África, região central no tabuleiro energético

29.427

7.1 O maior reservatório de energia no mundo

Em 2010, mais de um terço do petróleo consumido no mundo teve

sua origem em países do contexto geopolítico do Oriente Médio e

Norte da África (OMNA). Essas duas regiões, combinadas, produziram

29 milhões de barris diários, o equivalente a 35,3% do suprimento

global de petróleo1. A quase totalidade dessa produção se concentra

num restrito grupo de oito países: Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait,

Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Líbia e Argélia. Ainda mais

importante do que a participação dos países do OMNA no mercado

energético atual é o patrimônio que esses países possuem na forma de

reservas petrolíferas, armazenadas no subsolo. Quase seis em cada dez

barris de petróleo existentes – ou seja, 59% das reservas mundiais –

estão situados no Oriente Médio e no Norte da África. Com o tempo, a

importância estratégica dessas duas regiões aumentará cada vez mais,

pois responderão por uma parcela crescente da oferta petroleira global,

1 BP, 2011.

enquanto os atuais produtores no resto do mundo estarão em declínio

ou já terão esgotado as suas reservas.

Cifras como essas ajudam a estabelecer a dimensão estratégica

central do Oriente Médio no contexto mundial da energia. Ao longo da

maior parte do século 20, principalmente após o final da 2ª Guerra

Mundial, foi o petróleo barato extraído no Golfo Pérsico e no Norte da

África que alimentou o extraordinário crescimento da economia

capitalista, abastecendo, principalmente, a reconstrução e expansão das

economias da Europa Ocidental e do Japão. Sem esses insumos, a

atividade econômica entraria em colapso.

O acontecimento que lançou luz sobre o quanto a economia

capitalista global é dependente dos suprimentos da região foi o

Choque do Petróleo, em outubro de 1973. Nesse contexto, em que a

presença das maiores reservas do planeta se agrega a uma intrincada

rede de interesses geopolíticos e conflitos regionais, entende-se por que

o OMNA ingressou no século 21 como uma área de alta instabilidade

política, sujeita a frequentes invasões estrangeiras e à disseminação do

terrorismo. As potências ocidentais, especialmente os EUA, percebem a

região como vital para sua segurança energética, atribuindo a si

mesmas o direito de lá intervir quando julgam necessário. A estratégia

global estadunidense tem como elemento central o controle político e

militar do OMNA, o que leva os EUA a se envolverem naquela região

em constantes conflitos contra regimes e organizações políticas de

orientação anti-imperialista. O presente capítulo examinará, a seguir, a

posição de cada um dos principais atores no tabuleiro estratégico da

região: EUA, Arábia Saudita e Iraque.

7.2 EUA, potência hegemônica no Oriente Médio

O interesse estadunidense pelas riquezas do Golfo Pérsico evoluiu

de um âmbito puramente comercial, nas primeiras décadas do século

XX, para um terreno estratégico ligado à afirmação da hegemonia

mundial do país após a 2ª Guerra Mundial. Um marco da presença dos

EUA na região é o acordo firmado em 1945 entre o presidente Franklin

Roosevelt e o monarca saudita, Abdul Aziz Ibn Saud, pelo qual o

dispositivo militar dos EUA garantiria o poder da família Saud contra

rivais internos e externos e, em troca, a Arábia Saudita forneceria

petróleo em condições favoráveis ao funcionamento da economia

capitalista e apoiaria os interesses políticos de Washington no Oriente

Médio e no mundo2. Nos anos do pós-guerra, os EUA desafiaram o

antigo domínio colonial britânico e conquistaram o controle das

reservas de petróleo do Golfo Pérsico. Essa transição foi acompanhada

pelo surgimento de um novo desafio: o nacionalismo nos países

produtores. O primeiro episódio de nacionalização de concessões

petrolíferas ocidentais ocorreu no Irã, sob o governo de Mohammed

2 FUSER, 2008, p.104-106.

Mossadegh, em 1951, quando a empresa britânica Anglo-Iranian, atual

BP, foi expulsa do país. O desafio iraniano foi esmagado em 1953 com

um golpe de Estado, articulado pelos serviços secretos dos EUA e do

Reino Unido3. No lugar de Mossadegh, as potências ocidentais

instauraram uma ditadura sob o comando do xá Reza Pahlevi, um

estreito aliado de Washington. A ingerência dos EUA visava

claramente objetivos ligados ao petróleo, mas utilizava como

justificativa os motivos de segurança ligados ao confronto global

contra a União Soviética – que, por sua vez, tirava proveito do conflito

entre os países árabes e Israel para construir uma rede de aliados na

região. Até a derrubada do xá, na Revolução Iraniana de 1979, a maior

parte do petróleo permaneceu nas mãos da BP e de transnacionais

estadunidenses.

O golpe pró-ocidental de 1953 no Irã refreou temporariamente o

impulso nacionalista no OMNA, mas logo os países produtores de

petróleo da região voltaram a reivindicar maior participação nos lucros

do petróleo, em um movimento que culminou com a criação da Opep,

em 1960. Uma nova agenda marcou a presença dos EUA no Oriente

Médio dali em diante – uma agenda de menor cooperação e maior

conflito, em que sobressaíram a nacionalizações das concessões

petrolíferas, a elevação dos preços e a politização dos contratos. Esses

33

KINZER, Stephen. Todos os Homens do Xá – O golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror no Oriente Médio.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

embates culminaram com embargo das exportações de petróleo pelos

países árabes integrantes da Opep, em outubro de 1973, em represália

pelo apoio dos EUA e da Europa Ocidental a Israel durante guerra

contra a Síria e o Egito. O embargo – ocasião única em que o petróleo

foi utilizado como arma política contra as potências imperialistas –

deflagrou o choque do petróleo, quando o aumento de 800% nos

preços do combustível em apenas quatro meses provocou uma

recessão econômica mundial. Foi nesse contexto que os EUA

ameaçaram, pela primeira vez, o uso das armas para garantir seu

acesso às fontes de combustível no Oriente Médio.

Em janeiro de 1980, o presidente Jimmy Carter anunciou que os EUA

consideravam o Golfo Pérsico como uma região do seu interesse vital e

que estariam dispostos a defendê-la por “todos os meios necess{rios,

inclusive a força militar”. Trata-as da orientação de política externa

conhecida como Doutrina Carter, que o historiador Douglas Little

definiu como “uma Doutrina Monroe para o Oriente Médio”4. Na

ocasião, os dirigentes de Washington se esforçavam para retomar a

iniciativa política no Oriente Médio após o duplo desafio da Revolução

Iraniana da intervenção soviética no Afeganistão. A partir do anúncio

da Doutrina Carter, os EUA passaram a buscar o controle militar direto

do Oriente Médio, com o objetivo de garantir o acesso aos suprimentos

de petróleo e de proteger os regimes aliados e os interesses de Israel. 4 LITTLE, Douglas. American Orientalism: The United States and the Middle East since 1945. Chapel Hill and London:

The University of North Carolina Press, 2004, p.154.

.............................................................................................

SAIBA MAIS

A Doutrina Carter

A Doutrina Carter foi anunciada pelo presidente estadunidense,

Jimmy Carter, em 23 de janeiro de 1980, no discurso anual “O Estado

da União”, com o objetivo de assinalar a disposição dos EUA de

utilizar a força militar em apoio aos seus interesses no Oriente Médio

diante um duplo desafio: 1) assegurar o controle das reservas de

petróleo do Golfo Pérsico, e 2) reagir à intervenção da URSS no

Afeganistão, ocorrida em dezembro de 1979. No trecho mais

importante do discurso, Carter afirmou:

“Vamos deixar absolutamente clara a nossa posição:

qualquer tentativa de uma força externa de obter o controle

da região do Golfo Pérsico será considerada um ataque aos

interesses vitais dos Estados Unidos da América, e esse

ataque será repelido por todos os meios necessários,

inclusive a força militar5.”

A Doutrina Carter assinalou uma mudança na política de segurança

em relação ao Golfo Pérsico, que passou a ser encarado como uma

região prioritária, destinada a ficar sob o controle e a proteção direta

5 CARTER, Jimmy. State of the Union Address 1980, 23 de janeiro de 1980. Jimmy Carter Library.

dos EUA. As intenções dessa nova diretriz eram as seguintes: restaurar

plenamente a influência política norte-americana no Golfo; garantir a

cooperação dos governos da região com os EUA; conter a propagação

da Revolução Iraniana e aproximar os países árabes de Israel.

............................................................................

Após o fim da Guerra Fria, as intervenções dos EUA na região, em

vez de diminuir, tornaram-se ainda mais frequentes, aumentando

também em intensidade. Em 1991, os EUA travaram a sua primeira

guerra total contra um país árabe – o Iraque, cujo governante, Saddam

Hussein, havia invadido o Kuwait, apoderando-se de suas ricas

reservas petrolíferas e ameaçando a segurança da Arábia Saudita. Uma

operação militar liderada pelos EUA expulsou facilmente as tropas

iraquianas do Kuwait e restabeleceu o poder da sua família real.

Durante toda a década de 1990, os EUA mantiveram uma presença

militar ostensiva no Golfo Pérsico, onde enfrentavam dois regimes

inimigos: o de Saddam Hussein, que se manteve no poder no Iraque

após a derrota no Kuwait, e a república islâmica do Irã. Esses dois

países constituíam os principais obstáculos à hegemonia estadunidense

no OMNA. Nos governos de George Bush (pai) (republicano) e de Bill

Clinton (democrata), a estratégia de Washington teve como

instrumento principal as sanções econômicas contra o Iraque

(acompanhadas, em algumas ocasiões, de bombardeios aéreos) e a

pressão política sobre o Irã, que também sofria restrições econômicas.

Nada disso funcionou. Saddam permaneceu no poder, apesar da

penúria e do sofrimento causado ao povo iraquiano pelas sanções

ocidentais, e o regime iraniano ampliou sua influência regional na

medida em que o Iraque se debilitava.

Os republicanos voltaram à Casa Branca com a eleição de George W.

Bush (republicano), que nomeou para o comando da sua política

externa integrantes de um grupo (os neoconservadores) favorável a

uma conduta mais agressiva para impor os interesses dos EUA no

mundo inteiro, especialmente no Oriente Médio. Os atentados

terroristas de 11 de setembro de 2001 propiciaram o pretexto que os

neoconservadores desejavam para o uso da força militar contra os

inimigos dos EUA, iniciando pela invasão do Afeganistão, cujo

governo abrigava bases do grupo terrorista Al Qaeda. Mas o alvo

principal estava em Bagdá.

Com apoio da mídia empresarial e de governantes aliados

(sobretudo, o primeiro-ministro britânico Tony Blair), Bush e seus

assessores difundiram a um público apavorado a versão de que o

regime iraquiano possuiria armas químicas e biológicas, em uma

suposta ameaça à segurança internacional, ao mesmo tempo em que

acusavam Saddam Hussein de manter vínculos com o terrorismo. Até

hoje, nenhuma evidência foi encontrada capaz de dar fundamento às

alegações de que o regime iraquiano teria ligações com a Al Qaeda ou

qualquer outra organização terrorista ou, ainda, que mantivesse em

seu poder ou estivesse desenvolvendo armas proibidas. Ao contrário:

as revelações desde então mostram, isso sim, um esforço deliberado

dos governos de Washington e de Londres para manipular

informações, ocultando dados relevantes ou veiculando versões falsas,

a fim de obter apoio político e diplomático à guerra e de influenciar a

opinião pública nesse sentido.

Em março de 2003, os EUA – com o apoio da forças militares de

alguns países aliados, em especial o Reino Unido – invadiram o Iraque

e substituíram o regime de Saddam Hussein por governantes

iraquianos dispostos a colaborar com as forças de ocupação. No

prolongado confronto que se seguiu, os insurgentes iraquianos

mataram mais de 4 mil soldados estadunidenses e britânicos, enquanto

as vítimas no Iraque se contam às centenas de milhares, em sua grande

maioria civis. Somente em 2011, no governo de Barack Obama

(democrata), os EUA anunciaram a retirada oficial das suas tropas de

combate, deixando atrás de si uma sociedade destruída.

Restam poucas dúvidas quanto ao motivo decisivo para a operação

militar estadunidense no Iraque: o controle político das reservas

petrolíferas do Golfo Pérsico, num contexto de dependência crescente

dos EUA e da economia mundial perante esse recurso energético sob

risco de escassez.O Iraque é um país com uma importância estratégica

especial – dono da segunda maior reserva petrolífera mundial e, além

disso, situado no centro geográfico e político do Golfo Pérsico, em cujo

subsolo repousam quase 2/3 do petróleo ainda existente no planeta. O

interesse “vital” pelo controle desses recursos energéticos tem sido

parte importante da política externa estadunidense ao longo de

sucessivos governos, sobretudo a partir da adoção da Doutrina Carter,

que continua em plena vigência.

7.3. Arábia Saudita, líder mundial no mercado petroleiro

O Reino da Arábia Saudita é o ator mais importante no conjunto dos

países exportadores de petróleo. O país é, ao mesmo tempo, o maior

produtor mundial, com uma participação na oferta petroleira que varia

entre 8,5 milhões e 10,5 milhões de barris diários, e o dono das maiores

reservas, estimadas em 264,5 bilhões de barris, o equivalente a 19% do

total mundial6. Graças a essa posição – e à aliança que mantêm com os

demais regimes monárquicos do Golfo Pérsico, em particular o

Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Catar e Bahrain –, os governantes

sauditas controlam as decisões da Opep sobre os preços globais do

petróleo.

Único país do mundo cujo nome é associado a uma família, o clã dos

Saud, a Arábia Saudita surgiu como Estado moderno já no contexto da

sua inserção no sistema internacional como uma fonte de suprimentos

6 BP, 2011.

petrolíferos. Antes da descoberta do petróleo no seu interior, a

Península Arábica era demasiadamente pobre, inóspita e distante para

atrair a cobiça do colonialismo europeu. A presença ocidental se

limitava aos pequenos protetorados britânicos no litoral do Golfo

Pérsico, utilizados como entrepostos comerciais e pontos de apoio

logístico na rota entre o Reino Unido e seus domínios imperiais na

Ásia, principalmente a Índia.

Desde 1902, o chefe da tradicional dinastia Al Saud, Abdul Aziz Ibn

Saud, reinava sobre o centro e o leste do país, a região do Nejd, com

um governo instalado em Riad, enquanto a porção ocidental – o Hijaz,

onde se situam as cidades sagradas de Meca e Medina – estava sob o

domínio da família Hussein. Durante I Guerra Mundial, os dois clãs

receberam armas dos britânicos para combater os turcos. Terminada a

guerra, com a dissolução do Império Otomano, as duas famílias

continuaram lutando entre si, até que em 1926 as forças de Ibn Saud

derrotaram os rivais e conquistaram Meca, unificando a maior parte da

península. Nasceu assim o Reino de Hejaz e Nejd, que em 1932 passou

a se chamar Arábia Saudita7.

A descoberta de grandes jazidas no Bahrain e no Kuwait despertou o

interesse das grandes companhias ocidentais pelo deserto saudita. Em

1933, a estadunidense SoCal (atual Chevron) obteve, em troca de uma

grande quantidade de dinheiro, um acordo que lhe permitia explorar o

7 HIRO, Dilip. The Essential Middle East – A Comprehensive Guide. New York: Carroll & Graff, 2003, p.469-473.

petróleo da Arábia Saudita durante 60 anos. Três anos depois, a SoCal

admitiu como sócia a Texaco, formando o que viria se tornar a

Arabian-American Oil Company (Aramco). O petróleo começou a

jorrar na região em 1938 e, em poucos anos, as prospecções revelaram

em toda sua extensão o fabuloso tesouro que se abrigava sob as areias

sauditas. Assim, em apenas uma década, as companhias petrolíferas

dos EUA passaram de uma rarefeita presença no Oriente Médio à

condição de donas de uma parcela significativa das reservas da região.

Em 1945, conforme já relatado, o vínculo entre a monarquia saudita e

os EUA se tornou uma aliança estratégica, por meio do histórico

acordo Roosevelt-Saud, que teve como consequência imediata a

instalação de uma base aérea estadunidense em Dahran, próxima a um

das principais regiões petrolíferas sauditas.

A aliança com os EUA se manteve apesar do choque de interesses

motivado pelas sucessivas revisões dos contratos petroleiros, por meio

dos quais a monarquia saudita ampliou gradativamente sua

participação na renda petroleira. Do mesmo modo, o princípio do

“amigos, amigos; negócios | parte” valeu durante o período turbulento

da ascensão da Opep e do Choque do Petróleo (1973), seguido pela

nacionalização – gradual e negociada – da Aramco, que culminou com

a sua transformação, em 1978, na estatal Saudi Aramco, a maior

empresa petrolífera do mundo em valor patrimonial.

A partir da década de 1980, a Arábia Saudita passou a exercer um

papel estratégico no mercado petroleiro mundial como um único país

com capacidade para ampliar significativamente sua produção em

uma hora para outra. Essa condição de swing producer (termo usado no

jargão petroleiro para se referir a países capazes alterar os níveis de

oferta global pela simples gestão do seu potencial produtivo ocioso)

confere à monarquia saudita um poder incomparável sobre os preços,

ao mesmo tempo em que valoriza sua posição geopolítica como aliado

dos EUA. Essa capacidade foi utilizada pela Arábia Saudita nas duas

guerras promovidas pelos EUA contra o Iraque, em 1990-1991 e em

2003, para compensar o corte ou redução dos volumes exportados por

outros produtores de modo a manter estáveis os preços do petróleo.

Em 2011, os sauditas ampliaram novamente sua produção para manter

o equilíbrio do mercado quando o conflito na Líbia interrompeu as

exportações daquele país. E, mais recentemente, manifestaram apoio

concreto à campanha estadunidense e europeia em favor de sanções

econômicas contra o Irã com o anúncio de que estão dispostos a

ampliar as exportações se isso for necessário para manter os níveis da

oferta internacional de petróleo na falta da produção iraniana. A

hostilidade entre os dois países se explica não só pela disputa regional

de hegemonia no Golfo Pérsico, mas também por motivos religiosos,

ligados aos conflitos entre as vertentes muçulmanas sunita (Arábia

Saudita) e xiita (Irã).

Mas seria arriscado supor que a Arábia Saudita conseguirá manter

esse padrão por muito tempo. As tendências atuais indicam que uma

parcela cada vez maior da produção saudita será direcionada ao

mercado consumidor interno para elevar os níveis de bem-estar da

população e abastecer a indústria petroquímica nacional, principal

aposta das autoridades do país para gerar os empregos de qualidade

indispensável para manter o apoio da população à monarquia. Entre

2005 e 2008, os 22 milhões de sauditas consumiram uma média diária

de 2,3 milhões de barris de petróleo, o que permitiu a exportação dos

restantes 8,3 milhões de barris. Com o crescimento populacional e a

esperada elevação do padrão de vida dos sauditas, a parcela destinada

ao consumo dentro do próprio país deverá aumentar

exponencialmente. Em abril de 2010, o presidente da Saudi Aramco,

Khalil al-Falih, anunciou a previsão de que, até 2028, o consumo

doméstico saudita de petróleo alcançará o mesmo volume de 8,3

milhões de barris diários atualmente exportados8.

Para manter o mesmo nível de oferta no mercado global sem deixar

de atender à crescente demanda interna, a Arábia Saudita teria de

aumentar dramaticamente a sua produção. Mas a Saudi Aramco já

expressou claramente sua relutância em elevar a produção acima dos

11 milhões de barris diários, por receio de danificar os campos de

8“The Collapse of the Old Oil Order: How The Petroleum Age Will End”, Michael T. Klare,

Countercurrents, 3 de março de 2011, disponível em www.countercurrents.org.

petróleo remanescentes e, com isso, comprometer a renda das gerações

futuras.

7.4 Irã, a república rebelde dos aiatolás

A República Islâmica do Irã enfrenta pressões econômicas e políticas

dos EUA desde a revolução de 1979, quando os dois países romperam

relações. Uma lei adotada na gestão do presidente Clinton e renovada

pelo presidente Bush (filho) proíbe empresas estadunidenses de fazer

negócios no país9. A campanha contra o regime iraniano se intensificou

em 2005 a partir da primeira eleição de Mahmoud Ahmadinejad, tido

como um representante da “linha dura”, para a presidência do Irã. A

partir de então, intensificaram-se as denúncias dos EUA e seus aliados

de que o Irã estaria utilizando a tecnologia de enriquecimento do

urânio para fabricar a bomba atômica, embora o governo de Teerã

garanta que sua atividade no campo da energia nuclear tem fins

pacíficos.

A retórica anti-iraniana de Washington repete os mesmos temas da

campanha de acusações contra o governo do Iraque no período que

antecedeu a invasão e ocupação militar daquele país. Tal como nas

9 Trata-se da Executive Order 12.959, assinada pelo presidente Clinton em 1995 e renovada pelo

presidente Bush em março de 2004.

versões fraudulentas sobre as supostas “armas de destruição em

massa” do Iraque – que, conforme se comprovou, não existiam –, as

denúncias relativas ao programa nuclear iraniano carecem de provas

que as sustentem. Ainda assim, são utilizadas pelos EUA como

justificativa para a adoção de sanções econômicas internacionais contra

o Irã e podem, em qualquer momento, servir de pretexto para uma

agressão militar – estadunidense ou israelense – ao território iraniano.

O que a imprensa internacional raramente menciona é a dimensão

energética do conflito entre as autoridades de Washington e de Teerã.

Com 137 bilhões de barris de petróleo em seu subsolo, o Irã abriga a

segunda maior reserva mundial desse combustível, equivalente a 9,9%

do total. Só esses dados já seriam suficientes para tornar o Irã um ator

de primeira grandeza na geopolítica da energia, mas também é preciso

levar em conta o seu potencial produtivo futuro, conforme assinala o

especialista Michael T. Klare:

“Embora a Ar{bia Saudita possua reservas maiores, ela está

atualmente produzindo petróleo em um ritmo próximo da sua

capacidade (cerca de 10 milhões de barris diários. Assim, é pouco

provável que consiga aumentar sua produção significativamente

nos próximos vinte anos para acompanhar o aumento da

demanda global (...). Já o Irã apresenta um potencial considerável

de crescimento: produz atualmente 4 milhões de barris de

petróleo diários, mas acredita-se que seja capaz de ampliar sua

produção em algo em torno de mais 3 milhões. Poucos países no

mundo podem fazer isso10.”

Cerca da metade da produção iraniana é exportada para a Ásia,

principalmente para a China – país do qual o Irã é o segundo maior

fornecedor –, Japão, Coreia do Sul e Índia. Mas o Irã, devido ao seu

crescimento populacional, consome uma parcela cada vez maior da sua

produção petrolífera. Em 2005, essa parcela era calculada em 31%, ou

seja, cerca de 1,2 milhões de barris diários.

Além do petróleo abundante, o Irã se destaca como ator de primeira

linha no mercado do gás natural, com reservas estimadas em 940

trilhões de metros cúbicos (16% do total mundial), um volume inferior

apenas ao da Rússia. Dessas reservas, apenas uma pequena parte tem

sido explorada, o que contribui para estimular a cobiça das empresas

transnacionais que dominam o setor. Com uma produção anual em

torno de 2,7 trilhões de pés cúbicos, o Irã é um dos poucos países com

potencial para expandir em grande escala a oferta de gás. Essa

capacidade é especialmente valorizada no contexto atual do mercado

de energia, quando se presencia um boom na demanda global por gás

natural.

Atualmente, a grande aposta iraniana para ampliar sua produção é o

gigantesco campo gasífero off shore de South Pars. Como se costuma

10

Oil, Geopolitics, and the Coming War with Iran

fazer nesses casos, a reserva foi dividida em blocos, com a finalidade

de oferecê-los a parceiros externos interessados na sua exploração. O

acesso ao campo de South Pars interessa especialmente às empresas

dos países emergentes, uma vez que as sanções ocidentais ao Irã

impedem a participação das grandes companhias europeias e

estadunidenses. A primeira a entrar na parada foi a China National

Petroleum Corporation (CNPC), que iniciou em 2010 a exploração de

um dos blocos. A CNPC é a principal parceira do Irã em projetos de

energia, com investimentos também em refino e exploração de

petróleo, num valor que ultrapassa os US$ 10 bilhões.

Pela sua própria geografia, o Irã tem interesse estratégico na

instalação de uma rede internacional de gasodutos que atravesse a

Ásia Central para alcançar grandes consumidores de energia que

podem ser abastecidos por via terrestre, como Paquistão, Índia, China,

Coreia do Sul e países do Sudeste Asiático. Dessa maneira, uma

parcela importante da produção gasífera iraniana poderia ser

exportada em relativa segurança, sem os perigos inerentes ao

transporte de petróleo e gás natural liquefeito (GNL) por rotas

marítimas, sempre vulneráveis à ação de potências hostis11.

Durante a maior parte da década de 2000, o governo iraniano se

empenhou no projeto de um gasoduto para levar o gás natural de

11

“The Natural Gas Game – Iran Looks Toward an Energy Alliance with China, India and Pakistan”, Peter

Lee, Counterpunch, 19/21 de fevereiro de 2010.

South Pars para os mercados do Paquistão e da Índia. Mas a forte

oposição dos EUA acabou por levar a Índia a desistir do IPI, em 2008,

inviabilizando o empreendimento. Como alternativa, os EUA propõem

a construção do gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia

(TAPI), que, no entanto, só poderá ser levado adiante caso se obtenha

uma solução duradoura para o conflito afegão.

7.5 O retorno das transnacionais petroleiras ao Iraque após a invasão

anglo-estadunidense

Quando as tropas estadunidenses entraram em Bagdá, em 15 de

abril de 2003, o primeiro edifício público que ocuparam foi o Ministério

do Petróleo, coração da indústria petrolífera do Iraque. Enquanto isso,

saqueadores assolavam a capital iraquiana, roubando inclusive os

tesouros arqueológicos dos museus. A expectativa do Departamento

de Energia dos EUA, anunciada no mês seguinte, era de que a

produção de petróleo iraquiana, sob o controle das forças de ocupação,

cresceria rapidamente, atingindo 3,4 milhões de barris diários em 2005

e 4,1 milhões em 2010. Nada disso ocorreu. Os engenheiros e técnicos

iraquianos sabotaram os planos de privatização da indústria do

petróleo. Para complicar o cenário, as instalações petroleiras se

tornaram um alvo prioritário dos insurgentes que até hoje resistem à

ocupação estrangeira. Resultado: a produção, que no último ano do

regime de Saddam Hussein se situava em torno dos 2,1 milhões de

barris diários, caiu para uma média de 1,8 milhões entre 2003 e 200712.

Somente em 2010, quando o governo iraquiano já conseguia impor

certo grau de ordem, a produção petroleira voltou ao patamar prévio à

invasão, com 2,4 milhões de barris diários – ainda assim, uma cifra

bem menor que os esperados 4,1 milhões e inferior, inclusive, aos 3,5

milhões que o Iraque produzia antes da Primeira Guerra do Golfo, em

1990-1991.

Com os sinais de estabilização política do país, ressurgem as

expectativas otimistas quanto à contribuição iraquiana ao mercado

global de energia. O Iraque abriga em seu subsolo 115 bilhões de barris

em reservas provadas de petróleo, o que o torna o terceiro país do

mundo em reservas, mas especula-se que esse volume é

provavelmente muito maior, já que as prospecções petrolíferas no

território iraquiano estão paralisadas há mais de duas décadas, devido

às sanções econômicas e às guerras. Estima-se que as regiões não

exploradas do Iraque poderão agregar até 100 bilhões de barris às

reservas já conhecidas, e os custos de produção no Iraque estão entre

os mais baixos do mundo.

12

BP, 2011.

O governo iraquiano conta com o ingresso maciço de empresas

estrangeiras para ampliar rapidamente a produção. A meta é produzir

5 milhões de barris diárias em 2014, ultrapassando os 8 milhões em

2017. Especialistas consultados pela agência de notícias árabe Al Jazira,

com sede no Catar, calculam que, para alcançar tamanha expansão,

serão necessários investimentos em torno de US$ 200 bilhões. Para

tornar o Iraque mais atraente ao capital estrangeiro, os governos

ocidentais e as grandes empresas petroleiras da Europa e dos EUA

pressionavam os parlamentares iraquianos, em 2012, a aprovar uma

nova Lei do Petróleo, que privatiza a maior parte da indústria de

energia no país.

Antes mesmo da adoção do novo marco regulatório, as companhias

internacionais de petróleo já competiam entre si para abocanhar os

direitos de exploração das reservas mais promissoras do Iraque. Nessa

corrida, os contratos mais vantajosos foram obtidos pela ExxonMobil,

Shell e BP – empresas que, no período anterior à guerra de 2003 se

mostraram particularmente agressivas em pressionar os respectivos

governos para intervir militarmente no Iraque, país do qual estavam

afastadas desde a nacionalização do petróleo, em 1973.

Agora todas elas estão de volta ao Iraque, graças à invasão. Entre as

empresas que se lançaram na corrida pelo petróleo iraquiano, a Shell

foi a que obteve os melhores contratos. No mais valioso deles, passará

a explorar, em parceria com a Petronas (empresa estatal da Malásia), o

campo super-gigante de Majnun, um dos maiores do mundo, com

reservas estimadas em até 25 bilhões de barris de petróleo. Em outra

licitação, a Shell se associou à ExxonMobil para explorar um trecho da

reserva de Qurna, com 8,7 bilhões de barris. Já o campo petrolífero

super-gigante de Rumaila, com 17 bilhões de barris, foi entregue a um

consórcio entre a BP e companhia chinesa CNPC. A empresa italiana

Eni arrematou o campo de Zubair, com 4,4 bilhões de barris, em

sociedade com a estadunidense Occidental (Oxy) e a Korea Gas, da

Coreia do Sul.

Uma particularidade desses contratos é que eles entraram em

vigência sem a aprovação do Parlamento iraquiano e, portanto, sem

debate público. Em entrevista à agência de notícias Al Jazira em

fevereiro de 2012, a especialista estadunidense Antonia Juhasz criticou

nos seguintes termos a entrega dos recursos energéticos do Iraque à

exploração pelas transnacionais:

“A população iraquiana est{ contra a privatização e esse é

um dos motivos pelos quais a Lei do Petróleo ainda não foi

aprovada. Os contratos estão promovendo uma forma de

privatização sem debate público e na base da ponta do

fuzil, pois foram firmados durante uma ocupação militar e

os mais importantes entre esses contratos foram parar nas

mãos das empresas dos países estrangeiros ocupantes.

Pode-se dizer que a democracia e a equidade são os

grandes perdedores nessa batalha pelo petróleo13.”

O futuro da indústria petrolífera iraquiana dependerá da capacidade

do governo de Bagdá em estabilizar o país após a retirada das forças de

ocupação e enfrentar os complicadores – políticos, étnicos, religiosos e

tribais – que, até agora, impediram o Iraque de explorar seu petróleo

de um modo tão eficiente quanto a Arábia Saudita.

13

“Las empresas petroleras occidentales se quedan en Iraq aunque las fuerzas estadounidenses se vayan”,

Dahr Jamail, Al-Jazeera