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~ 1 ~
7 Cigarros
Lucas Esteves
~ 2 ~
~ 3 ~
Nota sobre a história................................ 5
Prólogo.................................................... 9
1º Cigarro.............................................. 12
2º Cigarro.............................................. 21
3º Cigarro.............................................. 28
4º Cigarro.............................................. 37
5º e 6º Cigarros.......................................54
7º Cigarro.............................................. 66
Pós Cigarros........................................... 75
~ 4 ~
Dedico este livro a meu grande amigo,
Cebaldo.
~ 5 ~
NOTA SOBRE A HISTÓRIA
Lembro-me de uma história sobre sete
suspeitos de cometerem um assassinato,
outra sobre setes psicopatas que
perturbavam a cabeça de um roteirista, que
por sua vez, não estava muito longe dessa
psicopatia, e ainda mais uma sobre sete
vidas que foram despedaçadas por um
sujeito que decidiu se redimir ajudando
outras sete. Todas deram ótimos filmes.
Embora ciente de que o mesmo não
aconteça com esta - tanto pela sua
qualidade, quanto pelo seu conteúdo, que
outrora fora símbolo de charme para hoje
ser considerado algo menos digno de ser
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narrado do que assassinos e psicopatas -
ouso contar para vocês a história de, não
mais, nem menos, que 7 Cigarros. Há os
que agora irão pensar: “Mas eles – os
cigarros – também são assassinos”. Sim.
Não nego. Mas são impessoais. É bem
verdade que também não explico.
Assim, insisto em trabalhar nos últimos
detalhes desta história em uma tarde fria
de domingo, gelando meus dedos em um
teclado vagabundo de trinta e cinco reais.
As dificuldades são óbvias. Se por um
lado, é perigoso cair em uma apologia, que
será com certeza apreciada por poucas
pessoas; por outro lado o risco de cair em
um moralismo - daquelas outras hipócritas
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que tendem a criticar o hábito de fumar
enquanto cultivam vários outros vícios que
são muito mais sutis, porem maléficos ao
corpo e a pouca inteligência que possuem –
bem, esse risco é bem grande.
Tentarei não fazer nem uma coisa nem a
outra, mas nesse caso corro o risco de fazer
as duas coisas ao mesmo tempo; pois ao
invés das forças se anularem, uma terceira
perspectiva do assunto poderia nascer. O
que seria confusa para o leitor, para mim e
para nosso rapaz que vocês terão o prazer
ou desprazer de conhecer em seguida, caso
algum tipo de preconceito, um telefone
tocando, ou ainda a ideia de algo melhor
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pra fazer não os impeçam de continuar a
leitura.
7 Cigarros, por Lucas Esteves
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PRÓLOGO
Qualquer um sabe que um cigarro dura em
média 15 tragadas e fazendo também uma
média, podemos estipular 6 minutos para
que um cigarro seja tragado por completo.
Ao que um sábio matemático poderia fazer
um cálculo entre o número de tragadas e o
tempo da queima, obtendo o valor de
alguma outra coisa. Mas isto seria - além
de inútil - demais para minha mente que é
mais apegada às palavras do que aos
números.
Claro que há tantas maneiras de fumar e
tantas variações de teores dos cigarros, de
modo que a média fica longe do que
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acontece em realidade. Há os que fumam
rapidamente e os que fumam mais devagar;
entre os que fumam rápido, poderíamos
dividi-los ainda entre os que preferem
tragadas pequenas e quase ininterruptas e
os que preferem tragadas longas e um
pouco mais pausadas, claro que não tão
pausadas quanto aqueles que fumam
devagar. Estes geralmente fumam
apreciando mais o sabor do produto, em
tragadas médias ou longas. Podemos ainda
identificar aqueles que não tragam, mas
destes não vale a pena comentar. E por
último, mas não menos importante, há um
tipo peculiar de fumante; aquele que fuma
sem segurar o cigarro; geralmente
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pedreiros ou outro tipo de trabalhadores
braçais no exercício de suas funções.
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1º CIGARRO
Eram sete horas de um sábado perdido
em um calendário de uma geladeira velha
quando ele acordou. Rapaz responsável
acordando às sete horas da manhã para
estudar ou trabalhar? Não. Eram sete da
noite. Esfregou seus olhos e deu uma
olhada para se situar onde estava.
Reconheceu seu quarto. “Nada mal”
pensou. Pois apesar da bagunça e pobreza
do aposento, poderia ser pior, de fato,
muitas vezes acordara em lugares piores.
Além do mais, o apartamento ficava no
centro da cidade, uma boa localização por
um bom preço, de que importaria a
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bagunça? De que importaria o cheiro de
mofo, as baratas surgindo dos cantos mais
inusitados e a porta da frente com indícios
de uma tentativa de arrombamento? De
que importaria ainda se no prédio rolasse
boatos de que o último inquilino se matara
com um tiro na cabeça na sala de estar e no
quarto. Não, não tinha se suicidado duas
vezes, apenas não havia um ou outro
cômodo para que ele pudesse escolher onde
cometer o suicídio. Bem, foi uma escolha a
menos que ele teve de fazer. De qualquer
forma, ainda se via no carpete uma escura
mancha de sangue. Talvez algumas pessoas
se importariam de – além disso - morar em
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um lugar sem sofá e sem televisão, mas não
ele.
Sua cabeça doía, sua garganta também e
junto com a dor sentia um forte gosto de
cigarros misturado com cerveja, que foi
misturada com vodca, tequila...enfim, esta
não é uma história de bebidas, se bem que
poderia ser. Alheio a estes pensamentos
que somente uma mente fora da história
poderia conceber, ele procurou seu celular,
não tanto para ver a hora - pela
luminosidade opaca que atravessava sua
cortina, percebia que a tarde estava caindo
- mas para ver o dia. Achou-o no bolso sua
velha calça jeans. “É sábado, ontem teve
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aquela festa... merda.” E foi exatamente
isso que ele pensou.
Mais desperto, deu uma olhada ao
redor, os livros estavam todos no lugar, em
uma estante velha de madeira, infestada de
cupins, localizada ao lado da janela; no
chão, além das roupas que provavelmente
usara na noite anterior, ele viu um maço de
cigarros. “Aí estão vocês, meus queridos.”
Juntou o maço de filtro vermelho e
contou-os como um judeu contaria suas
moedas. Sete. Sem perder tempo ele catou
o isqueiro no outro bolso da calça e ainda
de cueca e sem camiseta, acendeu-o, mas
antes do fogo tocar a ponta do cigarro, seu
braço se deteve e ele sentou na cama.
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Lembrou-se de um sonho estranho que
acabara de ter.
“Era criança e tinha roubado um
punhado de amoras de um pé que ficava no
pátio do vizinho. Tendo feito isso se
escondera de todos atrás da casinha do seu
cachorro. Se por um lado se escondera do
vizinho, que poderia ter ouvido algum
barulho no pátio e vindo atrás dele com sua
espingarda de caça, também se escondera
de seus pais, quem embora não tivessem
armas, adoravam sermões sobre a virtude
dos homens e os seus pecados, e estes
sermões eram tão temidos quanto àquela
espingarda. Se preparou para devorar
aquelas amoras, deveriam ser gostosas.
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Nada que tivesse aquela cor e aquele nome,
poderia ter um gosto ruim, mas quando ia
levar a primeira à boca, ouviu passos.
Quem seria? Acordou. ’’
Este episódio no sonho o lembrou de
algo da sua infância. O cenário era o
mesmo, mas na verdade nunca teve a
coragem de roubar aquelas amoras, apenas
ficara olhando para elas, imaginando qual
sabor que teriam.
Como se tivesse acordado novamente do
mesmo sonho, acendeu seu primeiro
cigarro, que ainda desceu rasgando em sua
garganta. Se levantou e caminhou em
direção à janela. Afastou as cortinas para o
lado e abriu-a para tomar um vento e
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espalhar a densa fumaça que um cigarro de
filtro vermelho produz. Neste instante,
uma velha do apartamento vizinho passava
algumas roupas em frente a uma janela que
ficava em posição oposta e um andar acima
ao dele. Ela olhou com cara de espanto e
desaprovação aquele sujeito magro, com
barba por fazer, somente de cueca. Então,
esta respeitável senhora, fez a única coisa
que cabia a no momento: Cobriu a janela
com as cortinas quase totalmente, deixando
apenas uma pequena fresta, por onde
continuou espiando maliciosamente o
rapaz. “Talvez tenha ido chamar a neta
gostosa dela” pensou ele com um sorriso
sarcástico nos lábios. “Será que ainda estou
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bêbado? Que seja! Melhor eu aproveitar e
sair para dar uma volta, talvez eu me dê
bem essa noite.”
Assim, com esse magnífico
pensamento que somente uma mente que
está dentro da história poderia ter, ele
decidiu sair. Não sem antes, é claro, para a
tristeza da vizinha - que neste momento já
tinha queimado com o ferro uma blusa de
sua neta - vestir uma roupa.
Ainda com o cigarro acesso, vestiu as
calças, colocou uma camiseta do avesso,
uma sandália de couro, deu a ultima
tragada naquele cigarro, colocando em
seguida dentro de uma lata de cerveja vazia
e saiu sem cerimônias do apartamento.
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No elevador, se olhou no espelho e não
gostou do que viu. “Talvez se eu colocar a
camiseta do lado certo ajude”. Não ajudou.
Na saída do prédio, o porteiro o olhou com
o bom humor que somente os porteiros
possuem:
- Está melhor hoje?
- Perfeitamente bem. – respondeu
devolvendo o sorriso. Pisou na calçada e
levou consigo seis cigarros.
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2º CIGARRO
Saber o momento exato de acender o
segundo cigarro do dia é uma sabedoria
para poucos. Penso eu, talvez ele também.
O apartamento situava-se perto de um
bairro onde os bares eram - e ainda são -
famosos por encherem as pessoas das mais
sinceras alegrias, aquelas que somente a
noite pode oferecer; e obviamente foi para
lá que ele seguiu.
O clima estava ameno. Em um lugar
onde se está acostumado com um inverno
gelado e com um verão sufocante, uma
noite dessas, sem personalidade alguma, é
algo que deve ser apreciado. Aliás, as coisas
médias da vida não devem ser
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menosprezadas como muitos andam
fazendo. Há algo mais tentador do que
provocar o destino em uma noite média,
sem possibilidades de chuva, ventania ou
temporal, uma noite em que apenas coisas
normais poderiam acontecer?
Ao atravessar distraidamente a avenida
que divide centro da cidade com aquele
bairro boêmio, não prestou atenção alguma
no sinal, e ao ouvir a buzina de algum
motorista apressado por estar voltando do
trabalho ou do motel onde tivera ido com
sua amante, pensou ''Porra''. Não, na
verdade isso foi o que ele falou quando o
carro passou a alguns palmos do seu corpo;
o que ele pensou não sei exatamente dizer.
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Chegando a salvo do outro lado, já no
“lado bom da vida” caminhou devagar, mas
já com um rumo definido, pois ia quase
sempre ao mesmo lugar e numa noite
normal dessas não poderia fugir do quase
sempre.
Mas em um dos primeiros bares, um
local tipicamente frequentado por pessoas
mais velhas e reservadas, ouviu o som de
um bandoneon e resolveu parar na calçada,
com as mãos nos bolsos, somente para
escutar o que aquele instrumento velho
tinha pra lhe contar. ''Isso merece um
cigarro''. Acende-o e voltou uma das mãos
ao bolso enquanto ouvia o solo que quase
reconhecia e pensou que também poderia
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aprender a tocar alguma coisa, mas em
seguida lembrou que já tentara isso uma
vez e não dera certo.
Algumas pessoas conversavam dentro do
bar, que não era totalmente separado da
rua, apenas com um toldo, para que os
fregueses pudessem fumar durante as
apresentações musicais que eram
frequentes ali; mas notava-se que as
conversas eram discretas, em um volume
que não atrapalhasse o músico. Talvez a
pior coisa para o músico não seja um
público pequeno, mas um público que
mostre desdém por aquilo que o músico
mais deve amar em sua vida.
Aparentemente aquelas pessoas
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compartilhavam esse pensamento, e o
nosso rapaz gostou desta polidez tão rara
nos dias de hoje. Também gostou da figura
do senhorzinho que estava em um pequeno
palco improvisado. De barba branca e uma
boina marrom aparentemente nova que
contrastava com seus trajes velhos, ele
embalava aquele instrumento como um avô
embala seu neto sobre os joelhos enquanto
conta histórias que somente os avós sabem
contar. Mas apesar da concentração, ele
não deixava se sorrir, parecia uma figura
muito querida por todos. Quando olhou
para a calçada, viu o nosso jovem e piscou
um olho para ele. O rapaz, satisfeito,
devolveu o cumprimento.
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Ouvia atentamente as notas que não
ecoavam muito longe, mas o suficiente
para que pudesse distingui-la dos ruídos
que vinham da rua. “Que figura, nunca vi
ele aqui.”. Sentiu que poderia ficar ali
durante horas, até que ouviu uma voz
interior. Era seu estômago. Voltaria em
outro momento, com mais tempo.
Infelizmente, nunca teria essa
oportunidade. Aquele seria o último show
do velho, que ao chegar a sua casa naquela
noite sofreria um infarto, silenciando o seu
bandoneon que estava na família desde o
seu avô, músico de admirável talento; e que
depois dessa noite em que a história se
passa, ficaria em posse do seu único filho -
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um advogado trabalhista que ganhava
dinheiro geralmente em processos contra
empresas de call center e que tinha
vergonha da vida que o pai levava - para
nunca mais ser tocado.
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3º CIGARRO
Havia naquela mesma rua uma famosa
carrocinha de cachorro quente. De fato,
não era tão famosa assim. Uns anos atrás, o
seu cachorro quente tinha sido eleito por
uma revista, como o melhor da cidade.
Pelo lado de dentro da carrocinha, acima
do molho e das salsichas, via-se colada a
matéria que fora recortada cuidadosamente
de um exemplar. Muitos anos se passaram,
a revista faliu; seus donos estavam metidos
em alguma coisa ilegal, foram presos,
acusados por inúmeras fraudes. Mas o
dono do estabelecimento não sabia disso e
exibia orgulhosamente aquilo que
representava uma boa época de sua vida,
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antes de ser abandonado pela esposa e se
entregar bebedeira, de modo que a noite
colocava alguns rapazes para trabalhar e se
sumia só Deus sabe para onde, voltando
pra casa somente quando o sol mostrava
sua cara. Diziam que não dormia. Acho
pouco provável.
Completo com duas salsichas. Era
muito fácil pedir. Até o preço era de fácil
assimilação. Cinco reais. Sempre um bom
investimento. Com exceção daquela vez
em que o lanche lhe dera uma tremenda
dor de barriga o fazendo correr para casa
deixando abandonada uma garota com
quem estava em um bar; coitada, ficara
pensando que não o tinha agradado ou que
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ele fosse casado; se soubesse a verdade,
talvez tivesse atendido sua ligação no dia
seguinte, se bem que ele discara o número
apenas sem querer, quando seu celular foi
colocado sem ser bloqueado no bolso da
calça. Com exceção desta vez, todos lhe
caíram muito bem no estômago.
Sentou então em um murinho de tijolos
que rodeava um pequeno canteiro para
comer. Pensou em pedir um refrigerante,
mas como a grana estava curta, decidiu
poupar para tomar logo mais um ou dois
litros de cerveja, acomodado em uma
espelunca que frequentava assiduamente.
- Hei, você não é o...?
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Mesmo sem reconhecer o rosto da
garota que lhe dirigia a voz, ele se
antecipou – pensando em ganhar vantagem
– e respondeu com um sorriso canalha:
- Possivelmente.
- Eu sabia. Você é o cara que vomitou na
minha amiga ontem.
Seu sorriso amarelou e em seguida
avermelhou. Sua roupa também, quando
derramou nela uma boa quantidade de
molho. Isso foi motivo suficiente – se não
bastasse o episódio da noite anterior – para
ela sair rindo da cara dele. “Garota maldita.
Deveria ter vomitado nela”. A imagem o
fez rir e seguiu comendo o melhor
cachorro quente da cidade, que
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inicialmente tão grande, aos poucos ia se
deformando e sumindo em suas mãos.
“Já me alimentei. Hora da sobremesa’’.
Pensava isso esfregando suas mãos.
Qualquer pessoa que tivesse o dom de ler
seus pensamentos de forma superficial
acharia que ele iria comprar um sorvete.
Mas quem conseguisse penetrar um
tantinho só mais afundo naquela mente
um tanto perturbada, saberia que era hora
fumar. Tirou aquele cigarro do maço
lentamente, com aquela preguiça de quem
acaba de fazer uma bela refeição. Todos
sabem que o cigarro após a refeição é um
ritual que deve ser seguido por todos os
fumantes. Pois é neste momento que
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podemos explorar as particularidades
encontradas no seu sabor, quando este é
misturado com aquele gostinho de pimenta
que fica na boca, ou com o doce gosto de
um molho madeira, ou ainda com aquele
hálito refrescante de uma salada de tomates
ou alface. Claro que nenhuma destas
combinações supera aquela que é feita na
mesa de um bar.
Há umas três quadrar da esquina onde
ainda mora a carrocinha de cachorro
quente, acho que também ainda há um bar
estranho, escuro e sujo; mas onde a cerveja
era - e provavelmente ainda seja - gelada e
barata. Obviamente este bar não fica na
mesma avenida do cachorro quente e
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daquele bar onde as pessoas mais velhas
conversavam educadamente. Mas ficava
bem próximo. Bastava seguir pela badalada
rua onde a garrafa de cerveja de 600 ml
custava R$8.00, dobrar em uma esquina,
andar meia quadra, passar por alguns
mendigos, e chegar a este local onde a
garrafa de 1 Litro de cerveja custava,
quando em promoção, R$5,00. Talvez
fosse pelo preço, talvez fosse ambiente do
lugar, ou pelos dois, o certo é que ele
preferia passar pelos mendigos a beber
antes deles.
Com o cigarro acesso e caminhando
devagar ele dobrou a esquina, ao que um
mendigo velho de barba longa e suja lhe
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pediu um cigarro. Não era de o seu feitio
negar cigarros, tanto isso é verdade que não
ousou uma desculpa qualquer, apenas
olhou para o mendigo para em seguida
desviar o olhar sem pronunciar palavra
alguma. Talvez tivesse tomado um susto ao
ser abordado logo na esquina e ficou sem
reação. Não sei. O problema é que
ninguém gosta de ser ignorado. Se o
cigarro fosse recusado com qualquer
desculpa medíocre, o barbudo não ficaria
de mau-humor, mas ser ignorado é a pior
coisa que pode acontecer para alguém que
sofre e quer demonstrar seu sofrimento,
sua dor, seus arrependimentos, suas
virtudes, suas tatuagens e sua barba.
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- Idiota!!!
A sua voz era grave e rouca e fez com
que o ouvinte fosse tomado de pavor. Não
tinha medo que o mendigo corresse atrás
dele, tampouco tinha medo que o sujeito
lançasse nele algum feitiço da morte,
retirado daquelas longas barbas; mas,
mesmo assim, algum outro tipo de medo,
um medo desconhecido – e estes são os
piores - fez com que ele caminhasse mais
depressa, chegando a salvo no bar.
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4º CIGARRO
Um ambiente escuro e úmido. Na
primeira vez que adentrara naquele bar, lhe
veio à cabeça uma das tabernas
frequentadas pelos protagonistas dos
romances russos. Mas depois de tantos
porres tomados ali, tantas conversas sobre
tantas coisas, desde as mais triviais
chegando até mesmo a constatações
metafísicas, quase sempre falaciosas; essa
associação já não era tão forte, nem
necessária, pois o local ganhara um ar
próprio; e sabemos que quando algo ganha
um ar próprio, ao falar dele não utilizamos
outras coisas para fazer referência a ele,
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mas ele é referência para outras coisas. Pelo
menos assim pensava ele, pensamento que
eu me abstenho de concordar ou discordar.
Sentou em uma mesa ao canto, do lado
da janela com grades. Ajeitou a cadeira
para o lado para desviar do extintor de
incêndio que ficava esplendidamente
colocado ali a uma altura em que uma
pessoa poderia - e realmente isso acontecia
- bater a cabeça nele ao levantar. Chamou
a garçonete e pediu um litro da cerveja que
estava em promoção bem gelada. Não era a
sua marca preferida, mas como vocês já
devem ter percebido, nosso rapaz não é um
cara muito exigente. Quando a garçonete
voltou com a cerveja, ele lembrou que se
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esquecera de pedir o cinzeiro, mas quando
o fez, seu mundo caiu. O dedo da
garçonete apontava para um aviso na
parede: “PROIBIDO FUMAR NESTE
LOCAL”.
Ele já tinha ouvido falar de uma nova
lei que proibia o fumante de exercer seu
ofício em local fechado. Não discordava de
tal lei, mas achava que ela serviria apenas
para lugares em que as leis devem ser
cumpridas. Não ali, onde cabeludos,
barbudos e tatuados bebiam suas cervejas e
fumavam seus cigarros alheios aos bons
costumes que vigoravam lá fora; não ali
que inclusive uma vez, um sujeito fora
esfaqueado por causa de uma discussão
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sobre qual era a melhor banda de todos os
tempos. Gritara “Hey ho! Let’s go!’’ e fora
esfaqueado quase instantaneamente, como
se fosse ao seu comando, por um sujeito
estranho com uma camiseta da Dream
Theater.
A vítima morreu a caminho do hospital e
nunca localizaram o assassino que fugira do
bar em meio à confusão. O
estabelecimento ficou, desde então,
fechado durante maios ou menos um mês,
reabrindo em seguida com as mesmas
pessoas, as mesmas bebidas, as mesmas
cadeiras, o mesmo extintor de incêndio e
talvez até com o mesmo assassino; a única
mudança que ocorrera foi um sujeito
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magro de uns quarenta anos e de olhos
caídos que, a partir de então, ficava
revistando todos que entravam no bar.
Matar podia, mas fumar não. A lógica
era simples, mas ao mesmo tempo confusa.
Em dois segundos todos estes
pensamentos lhe passaram pela cabeça,
enquanto isso ele continuou olhando para a
garçonete com uma expressão incrédula.
Ela não deu muita atenção para ele,
recolheu os cinco reais, passou um pano
sujo na mesa e saiu. Ele, ainda perplexo,
ainda não acreditando, olhou ao redor em
busca de algum sinal de fumaça. Nada. Ao
invés disso, viu algumas pessoas saindo
com seus maços de cigarros e seus copos de
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plástico transbordando de cerveja para
fumar na calçada. “Copo de plástico, era só
o que me faltava” Tá certo que os copos de
vidro em que eram servidas as bebidas não
eram guardados no congelador, como
alguns bares fazem, mas mesmo assim há
uma grande diferença entre um copo de
vidro e um copo de plástico. Todo mundo
sabe que beber cerveja em copo de plástico
ou em copo de vidro que não seja
transparente, nem liso, é tão condenável
quanto fumar um cigarro sem tragar. Ora,
onde estavam os bons costumes? Na
verdade ele sabia que estavam na outra rua,
onde se podia beber em copos lisos e
gelados, fumando seus cigarros em mesas
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rústicas de madeira ao ar livre; mas
também sabia que lá nunca fora o seu
lugar.
Bebeu um copo com gosto,
rapidamente para afastar as dores de cabeça
e de garganta que ainda insistiam em
incomodar. Encheu o segundo e bebeu
mais devagar, porém não com menos gosto
que o anterior. Seus dedos começaram a
agitar em cima da mesa. Isso não estava
certo e ele sabia. Seus dedos precisavam de
algo, sua boca também.
Terminado o segundo copo, pediu um
copo plástico de tamanho grande e
despejou o resto da cerveja nele, de modo
que o copo ficou completamente cheio.
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Levantou e foi para a rua com o cuidado de
quem atravessa em uma corda bamba um
desfiladeiro no Grand Canyon, sem
medida de segurança alguma, em busca de
um recorde mundial.
Lá fora algumas pessoas já fumavam na
calçada, carros passavam na rua, estrelas
estrelavam no céu limpo e tudo parecia,
agora, estar perfeitamente no seu lugar.
Acendeu o cigarro, encostou-se à parede
e ficou ali, com um cigarro em uma mão e
um copo de cerveja gelada na outra;
intercalando entre uma tragada em um
gole, num ritmo cadenciado e preguiçoso.
Um sujeito lhe pediu o fogo para acender
um cigarro diferente, no exato momento
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em que um carro da polícia dobrava a
esquina. Sem problemas, pois a atenção
deles estava voltada para a calçada oposta,
onde duas mulheres de vestidos curtos
caminhavam aos trancos, cada uma com
uma lata de cerveja na mão, indo ou
voltando de algum lugar.
Talvez um carro parasse para pedir
informação, talvez algum amigo passasse o
convidando para alguma festa, talvez
alguém fosse expulso do bar por se meter
em alguma confusão, talvez alguma linda
garota lhe pedisse fogo, olhando-o fundo
nos olhos, não desviando o olhar nem
mesmo quando o fogo do isqueiro estivesse
fazendo seu primeiro contato com o
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cigarro. Nenhum carro parou, nenhum
amigo passou, ninguém foi expulso e
apesar de uma garota muito bonita ter lhe
pedido o fogo, o resto não se seguiu. Tudo
isso poderia ter acontecido como tantas
outras vezes acontecera, mas nessa noite
não. “Devem ser sinais dos tempos’’
Pensou. Os motoristas agora usavam GPS,
seus amigos - em épocas de provas da
faculdade - ficavam em casa estudando nos
sábados, as pessoas se tornaram mais
civilizadas e as mulheres mais inteligentes a
ponto de não darem bola para um rapaz
como ele. Não com estas palavras, mas
nessa linha de raciocínio, ele chegou à
conclusão que estava presenciando um
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tempo de grandes mudanças, para depois
se indagar se as coisas poderiam ter
mudado tanto em apenas uma semana.
Estivera ele dormindo tanto tempo e não
sabia?
Enquanto o vicio queimava entre os
dedos, uma mudança séria ocorreu em seu
semblante. Sua face se tornou séria em
virtude de tais pensamentos, ou ainda de
outros que não consegui decifrar. Neste
momento, durante essa metamorfose,
passou em sua frente o mendigo que lhe
pedira um cigarro momentos antes. Passou
de cabeça baixa, olhou para o rapaz, e
assustado com a gravidade daquele rosto,
olhou para baixo novamente, pensando que
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ele teria ficado bravo com o episódio
anterior. Já este, somente percebeu a
presença do mendigo quando este já tinha
passado por ele. Mais uma vez o mendigo
fora ignorado, mas ignorava este fato.
Enquanto um fora visto, mas pensava que
não, o outro pensava ao contrário e ambos
se enganaram. O rapaz, com medo que o
outro se virasse e notando a sua presença
lhe pedisse um cigarro, voltou furtivamente
para dentro do bar de um modo tão
suspeito que o sujeito da porta fez questão
de revistar cada parte do seu corpo.
Antes de ir à mesa, passou no balcão para
comprar mais um litro de cerveja, e já
sabendo que lhe sobravam apenas 3
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cigarros, pois o fumante sempre sabe o seu
estoque, pediu um maço do mesmo cigarro
de filtro vermelho de sempre . O que ele
não sabia era que o preço do cigarro não
era o mesmo de sempre, na verdade nunca
fora, tinha subido mais uma vez.
- E o pior é que é tudo de impostos! - disse
o balconista ao entregar a sua cerveja e seus
cigarros.
- Acho que vou ficar só com a cerveja. -
falou isso e voltou para sua mesa com um
copo e uma garrafa. Sentou e durante
alguns instantes seu copo permaneceu
vazio e ele em silêncio, imóvel. É difícil
saber o que ele estava pensando. Havia
muita confusão na sua cabeça e ele por um
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~ 50 ~
momento achou que a dor de cabeça ia
voltar. Sua mãe sempre o aconselhara a
parar de fumar quando o via tossir, o que
era bem comum; inclusive nessa noite que
se passa a história, fato ocultado pelo
narrador, talvez pelo motivo de tentar
manter o charme de algo que em si mesmo
não possui charme algum. Também andava
sempre sem dinheiro, de modo que o maço
que fumava todo dia não era bem visto por
sua carteira. Mas, mesmo somando isso a
todos os outros óbvios motivos que levam
alguém a deixar o cigarro, isso não era o
suficiente pra ele. Era orgulhoso demais
para deixar de fazer algo pela opinião
comum. Mas agora era diferente. Ele não
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iria pagar mais impostos ao governo. Era
um absurdo. “O governo, com todas as
suas campanhas contra o tabagismo’’ –
pensava ele – “faz isso apenas para agradar
a sociedade não fumante, mas continua
enchendo os bolsos com o nosso dinheiro,
e ainda tem a cara de pau de falar que se
gasta mais com as doenças causadas pelo
cigarro do que fatura com os impostos
arrecadados com ele. Se o cigarro fosse
mesmo proibido, como algumas pessoas
querem, elas iriam se arrepender quando
vissem que esse dinheiro teria que ser
ganho pelo governo de outra maneira, ou
seja com o aumento de impostos sobre
outros produtos’’
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Verdade ou não, ele achou o pensamento
genial. Genial ou não, foi ele que o
motivou a tomar uma decisão importante,
apesar de óbvia: parar de fumar. Ou talvez
isso fosse apenas um pretexto, uma
artimanha daquele mente para poder
deixar de fumar sem que seu orgulho fosse
ferido, sem que ele percebesse, que
provavelmente estaria destinado a ser
apenas mais um ex-fumante que anda por
aí contando como fora forte em deixar
aquele vício maldito.
Claro que após essas voltas
argumentativas que dava para si mesmo,
começou a pensar que seria bom tossir
menos, e poder, quem sabe, guardar algum
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dinheiro. Pensou até mesmo em beber
menos - mesmo sem saber o quão grande
ou não era o imposto pago em bebidas -, se
alimentar melhor e fazer alguns exercícios
físicos.
Contudo, ainda tinha uma decisão a
tomar. O que fazer com os últimos três
cigarros? Dar para alguém? Fumar? Jogar
fora? A lata de lixo não seria condizente
com o seu raciocínio inicial, pois de
qualquer forma o dinheiro já tinha sido
gasto. Poderia, quem sabe, dar para o tal
mendigo. Pegou um copo plástico,
transferiu a cerveja de um recipiente ao
outro, deixando ainda uns três quartos de
litro na garrafa.
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5º e 6º CIGARROS
Saiu para rua e vendo novamente aquela
figura, lhe surgiu um estranho interesse
nela. Então, ao invés de dar seus últimos
cigarros ao mendigo, teve outra ideia.
- Hei, você! - não obteve resposta
- Ficou mudo agora - ainda nada.
- Que seja! O negócio é o seguinte. Tenho
aqui três cigarros. Te dou um, com uma
condição. Fume comigo.
- Hum – resmungou o mendigo, mais
aliviado, por perceber que o jovem não
estava mais bravo por causa do insulto, e
seguiu despretensiosamente enquanto
alisava a sua barba:
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- Também tenho uma condição.
- Não vou te pagar por fumar comigo!
- Oh, filho, não quero o seu dinheiro.
- Então o quê?
- Não pergunte o meu nome e eu não
pergunto o seu.
- Por mim tudo bem, vou te chamar de...
Cebaldo.
- E eu vou continuar te chamando de
filho.
- Justo, desde que pare por aí.
Cebaldo riu e o filho se surpreendeu a
ver ele tinha todos os dentes na boca e que
não era tão feio e assustador quanto parecia
de início; na verdade, quando jovem,
poderia até ter sido uma pessoa bem
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apresentável. O filho acendeu seu cigarro e
ofereceu o isqueiro a Cebaldo, mas este,
conhecendo as regras que dizem que os
mendigos jamais devem segurar o isqueiro
dos outros com suas mãos sujas, mas
apenas colocar o cigarro na boca,
inclinando em direção ao fogo, enquanto o
outro lhe presta o serviço; se sentiu
satisfeito por ser servido por um rapaz que
antes o tinha ignorado.
- Então, Cebaldo, qual a tua história?
- A minha história?
- Sim, você não deve ter vivido desde
sempre nas ruas.
- Hum, então por história, você quer dizer
de que maneira vim parar nas ruas?
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- Se é assim que você entende.
- Bem, filho, eu cometi erros.
- Ora, mas isso não é uma história.
- Eu não disse que era. Algumas coisas
não merecem ser contadas.
- Vamos lá, toda história merece ser
contada.
Cebaldo riu mais uma vez.
- Quem te contou essa mentira filho? É
bem verdade que tudo, se bem contado,
pode agradar as pessoas de vida comum,
que se maravilham ao ouvir uma boa
história; mas isso não quer dizer que a
história em si mereça ser contada.
- Touché! Mas me diga ao menos qual
foram estes erros?
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A figura de Cebaldo mostrava-se cada
vez mais atraente e misteriosa para o filho.
Antes, tinha medo do mendigo. Agora,
queria saber de toda sua vida. “Deve ser
uma história e tanto” Pensava consigo o
rapaz. Mas ele sabia pouco da vida, e
embora não tivesse maldade no coração,
era ingênuo a ponto de invejar a vida de
Cebaldo, ingênuo a ponto de não enxergar
que aquele velho mendigo carregava
tristezas que o jovem não poderia acumular
nem que vivesse sete vidas.
Cebaldo nascera longe dali, em uma terra
quente onde lecionava numa escola do
governo. Sempre fora inteligente, mas
tinha suas fraquezas, o que fez com que
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tardasse a se aplicar nos estudos. Aos
trezes já era inicado na vida, em todos os
sentidos que se possa imaginar. Com a
morte dos seus pais, herdou um chalé nas
montanhas onde fora viver. Nesse tempo já
somava seus dezoito anos. Foi lá que, ao
vascular o sotão à procura de alguns
cigarros mofados – sabia que seu pai se
refugiava nas montanhas para ficar longe
da familia e fumar seus cigarros sem ser
incomodado - achou uma pequena
biblioteca improvisada cheia de livros que
ele nunca ouvira falar, entre eles, vários
romances russos de capa dura. Foi quando
percebeu que o refúgio do seu pai era um
pouco diferente do que ele pensava. Passou
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alguns meses lendo tudo que encontrava
pela frente. Mas aos poucos foi deixando
de lado algumas coisas e dando preferência
a outras, como aqueles livros de capa dura
da literatura russa, além de seu romance
preferido, Lolita, do também russo,
Vladimir Nabokov, apesar deste romance
ter sido escrito originalmente em inglês.
Tendo desfrutado de todas as boas
histórias que aqueles livros poderiam
oferecer, e ainda tendo ruminado sob a
sombra das árvores no topo de uma
montanha sobre elas, decidiu que iria levar
a literatura mais a sério. Voltou para a
cidade e o resto se seguiu como a vida de
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tantos jovens que trabalham, estudam e
ainda arranjam tempo para se divertir.
Anos mais tarde; já formado, dando
aulas de literatura, casado com uma
professora de matemática da mesma escola,
pais de duas lindas filhas; quem o visse
diria: “Este é um bom homem.”.
- Erros de adultos, filho. - respondeu
Cebaldo, e continuo após uma hesitação. -
Erros do tipo que fazem os filhos se
envergonhar de seus pais, por isso não
posso te contar. - tentou forçar uma risada
e vendo que a piada não foi engraçada,
prosseguiu - Mas não se engane pensando
que são aqueles erros que nos fazem ter
vergonha de olhar no espelho. Não, não,
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não filho. Muito pior. São erros que nos
fazem virar as costas para cada espelho que
a vida nos apresenta. – falava isso com a
empolgação de um artista, gesticulando,
mas ao final deu um suspiro e continuou
mais calmo, em tom de lamentação:
- Cada homem tem seus próprios pecados.
Alguns segundos se passaram em que
ambos permaneceram em silêncio com seus
cigarros, concentrados em seus próprios
pensamentos, ao mesmo tempo em que
tentavam adivinhar o que o outro pensava,
e Cebaldo parece que ganhou o jogo ao
dizer:
- Não me inveje, filho. Sei que para um
jovem cheio de vontade de viver, pode
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parecer atraente uma vida sem
responsabilidades, uma vida livre nas ruas.
Mas nós somos pessoas tristes. Eu não
busco a liberdade, tampouco a felicidade.
Sei que não as mereço. Mas ora, de que
valem essas coisas realmente?
Os cigarros acabaram e um novo silêncio
se fez por alguns instantes.
- Bem, acho que não vou conseguir este
último cigarro, não é mesmo?'
Como que acordado de um sonho, o
jovem respondeu:
- Não. Desculpe. Tenho que me despedir
deste mais tarde, sozinho.
- Entendo.
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- Mas eu ainda tenho quase um litro de
cerveja lá dentro e mais alguns trocados
para comprar outra garrafa. Me
acompanha?
- O convite é tentador, mas não posso.
Tenho um compromisso.
O jovem olhou para Cebaldo com uma
cara desconfiada:
- Compromisso?
- Sim. Talvez eu tenha um encontro hoje,
talvez até mesmo faça a barba.
Ambos riram. Obviamente Cebaldo não
tinha nenhum encontro. Apenas não
queria entrar no bar com o rapaz. Pois
apesar do ambiente ser sujo e não se
importarem da presença de mendigos,
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desde que pagassem, mesmo assim, alguns
olhares preconceituosos poderiam cair
sobre a dupla, e isso não pegaria bem para
o rapaz.
- Bem. Então é isso, filho. Se cuide.
- Você também, Cebaldo. Foi bom te
conhecer. Nos vemos por aí.
Então Cebaldo quebrou uma das regras
dos mendigos e apertou a mão do rapaz.
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7º CIGARRO
Este, de volta ao bar, sentou-se à mesa
onde a garrafa de cerveja o esperava. Mas
sua sede já não era grande como em outros
tempos, ou como algumas horas antes.
Tanto é verdade que nem se deu conta de
pedir um copo de vidro.
Talvez pelo teor da conversa que tivera
ou pelas cervejas de sábado já fazendo
efeito e estabelecendo uma ligação com
outros fatos cuja memória insistia em
esquecer, como se lembrar fosse
vergonhoso demais; fosse pelo que fosse,
ele começava a lembrar da noite anterior,
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com um pouco de curiosidade e bastante
medo.
Fora àquela festa com um amigo e como
de costume, já chegaram altos na local.
Como a noite estava boa, gente de todo
tipo esperava na fila. Viu uma garota que o
olhava discretamente. Não tão
discretamente para que não fosse vista, mas
com um nível de discrição de quem quer
apenas aparentar que não quer seu olhar
seja visto. Do lado dela estava aquela outra
garota que falaria com ele na noite seguinte
em frente à carrocinha de cachorro quente.
Então ligou os fatos. Algumas outras
memórias iam e viam em sua mente. Nada
muito concreto. Lembrava-se de uma
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discussão, de algumas tequilas, do chão do
banheiro masculino, ou seria o feminino?
Como eu disse, dada muito concreto.
Lembrava ainda de um por do sol ao
contrário entre uns prédios em alguma rua
desconhecida por onde carros passavam
buzinando e tirando sarro de alguém. Seria
dele? Melhor não saber. Melhor não
lembrar mais nada.
Mais um gole de cerveja. Por pior que
tivesse sido a noite anterior, por pior que
tivesse sido tantas outras noites, nada
poderia comparar ao que quer que tenha
acontecido a Cebaldo; e se, mesmo assim,
ele – Cebaldo - conseguia ser uma pessoa
tão cativante, claro que a seu modo e talvez
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apenas aos olhos do rapaz, então ele - o
rapaz - também poderia se tornar uma
pessoa interessante, ao menos para si
mesmo, o que seria um avanço
considerável. Por que não? Nada o
impedia. Apesar de todos os seus esforços
para levar uma vida desregrada, ainda tinha
saúde; e apesar de todos os seus gastos com
farras, ainda tinha um trabalho. Poderia
escrever um livro sobre a vida de Cebaldo.
“Mas não sei nada sobre a vida dele”
Poderia inventar. “Isso, eu poderia
inventar. Cebaldo, o Sábio; ou então,
Cebaldo, o Mendigo? ’’ Está perguntando
para mim? Talvez, não me soa mal. Seria
interessante explorar esse tipo peculiar de
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sabedoria que somente as pessoas tristes
podem ter. Mas se o que diziam alguns
filósofos, ou ainda dizem, não sei; que a
felicidade está no conhecimento, então
faltaria ao homem feliz um tipo de
conhecimento, o do homem triste, logo,
faltaria uma parcela de felicidade ao
homem feliz. Em outras palavras, para um
homem feliz ser mais feliz, ele teria que ser
mais triste. Não haveria uma contradição
nisso?
Enfim, poderia até imaginar que estivesse
conversando com seu interlocutor, e que
ele mesmo fizesse parte de uma história.
Então ele, dentro da história, quereria
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escrever outra história. Não, isso soaria
muito com outro livro que já lera.
A cerveja acabou, anunciando a hora da
partida. Enquanto isso os relógios
anunciavam 00:00 horas. Para muitos era
somente o inicio de uma noite cheia de
surpresas, mas para ele, ele sabia que a
noite estava acabando. Bastava chegar em
casa e talvez ler aquele livro que começara
dois anos atrás, um tal de Zaratustra; ou
ainda aquele outro, cujo autor fizera um
elogio a loucura; mas talvez isso não fosse
uma ideia tão boa, talvez ele precisasse
mesmo é de uma leitura mais calma, uma
leitura que lhe trouxesse um pouco de paz,
mesmo sabendo que não existe nada mais
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triste do que a mais completa paz. De
qualquer forma, ali não poderia ficar. Saiu
do bar com seu último cigarro.
Caminhava confiante em uma rua que
poderia muito bem levar o seu nome no
futuro. Conjecturas que fazia. Passou por
uma sorveteria onde serviam sorvetes
gigantes e ficava aberta noite adentro,
pensou em parar, mas seu sorvete
preferido, o de menta, poderia lhe fazer
lembrar dos deliciosos cigarros de mesmo
sabor que costumava fumar de vez em
quando; de modo que passou reto. Já
estava a uma quadra e meia da avenida que
dividia o bairro onde estava com o centro
da cidade. Caminhava com pressa, como
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quem caminha atrasado para um
compromisso importante, mas ao mesmo
tempo estava tranquilo, como se esse
compromisso, essa reunião, não pudesse
começar sem a sua presença. Atravessou
uma rua. Faltava uma quadra. Continuava
com pressa. Tirou o último cigarro do
maço e ficou com ele entre os dedos,
sentindo sua textura, de vez em quando o
levava ao nariz para sentir o cheiro do
tabaco. Desacelerou o passo, não poderia
fumar correndo, não o último cigarro, não
seria justo. Não gostava de fumar com
pressa. Não gostava daqueles que fumam
com pressa. Chegou à avenida. O sinal
fechou. Algumas pessoas passaram
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correndo, mas ele não. Não tinha mais
pressa. Cigarro pela metade. O sinal abriu;
e ao mesmo tempo em que o senhorzinho
da boina marrom sofria um ataque cardíaco
fulminante na sua casa, um motorista
acendia seu cigarro, desviando a atenção do
sinal de trânsito que fechava a sua frente.
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PÓS CIGARROS
Estava deitado de costas no asfalto e
sentia a sua camiseta - a mesma que
outrora lhe causara desgosto por ser
manchada com molho - ensopada de
sangue. No céu as mesmas estrelas de antes
continuavam seu show. Ao seu redor os
primeiros curiosos chegaram para ver outro
espetáculo. Mas pela parte dele, prestava
tanta atenção nestes curiosos, quanto estes,
por sua vez, prestavam atenção em um
sujeito que via a cena de mais longe, e que
mais tarde na naquela noite, teria - depois
de muito tempo - algumas lágrimas
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escorrendo pela face enrugada. Também
não via que ao seu lado, um cigarro ainda
terminava sozinho bravamente seu ofício.
“Será que estou morrendo?” Mas onde
estava a sua vida passando como um filme?
E onde estava o frio? Onde estava a luz ou
as trevas? Onde estava o medo? Onde
estava o arrependimento? Mas
arrependimento de quê? Não importa, pois
ao que parece, todas as pessoas se
arrependem de algo quando vão morrer.
Passam a vida dizendo que não se
arrependem do que fazem, para então, no
leito de morte, ou no asfalto de uma
avenida qualquer, sentirem todo
arrependimento que acumularam durante
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esses breves anos que um homem pode
viver. Talvez fosse isso. Talvez por ele ter
passado a vida se arrependendo de quase
tudo que fizera, não tinha mais
arrependimentos guardados. Mas é claro
que ele não estava em condições de pensar
uma coisa dessas.
Então, quando não esperava mais nem
a morte, nem a vida; sentiu na boca um
gosto estranho. Estranho pela situação e
pelo próprio sabor. Era gosto de amoras
frescas, tinha tanta certeza disso quanto
tinha a certeza de que nunca comera
amoras na sua vida. E aí descobriu “Assim
que é morrer.” Nesse momento, ele não
era mais um fumante ou um ex-fumante,
7 Cigarros, por Lucas Esteves
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mas apenas um homem que viveu e estava
morrendo. Agora sim, a vida passava
diante de seus olhos. De momentos que já
foram, lhe voltaram lembranças.
Lembranças que ele sabia: Iriam morrer
junto com ele. A casa na árvore que ele
passava as tardes sozinho quando criança,
embora destruida há muito tempo, ainda
vivia nele; mas o que seria dela quando ele
se fosse?
O mundo iria seguir sua rotina. As
pessoas continuariam nascendo, outras
morrendo, de modo que não seria noticia
por muito tempo. No asfalto onde estava,
desenhariam uma borboleta branca, e dias
depois, uma garota por quem ele poderia se
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apaixonar, pensaria por um segundo ao
atravessar a rua: “Quem será que morreu
aqui”. Para logo após, no outro lado, se
voltar para uma vitrine e olhar um sapato
em promoção. No seu apartamento, o novo
inquilino trataria com indiferença a sua
vida e a sua morte, assim como ele mesmo
fizera com o inquilino anterior.
Até mesmo as pessoas que o amavam
iriam seguir as suas vidas, e seria egoísmo
da parte dele se entristecer por isso, pois
também as amava. Seus amigos quando se
reunissem para beber, falariam sobre ele,
contariam uma ou outra história engraçada
e beberiam uma dose pelas boas
7 Cigarros, por Lucas Esteves
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lembranças; mas eles também teriam que
seguir em frente.
Se todos seguiriam, não restava
alternativa para ele, mesmo que não
soubesse se haveria alguma coisa ou não a
sua frente. Mas como não haveria de
haver? Se não houvesse, como poderia ele
seguir. E se toda história é sobre seguir em
frente, o que faria os mortos fugirem dessa
regra? Assim, tomado por um impulso de
coragem e esperança, tomou a última
decisão da sua vida: Fechou os olhos. Não
sentia mais vontade de fumar.