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Maria Jos Mendes da Costa Ferreira dos Santos
A TERRA DE PENAFIEL NA IDADE MDIA
Estratgias de ocupao do territrio (875-1308)
VOLUME I
FLUP - 2004
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minha me. Ao Nini.
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INDICE GERAL
VOLUME I
I - Prembulo 6
II - Introduo 9
1 - O Tema 10
2 - 0 Espao 12
3 - 0 Tempo 16
4 - 0 Mtodo 18
Captulo I: A construo do territrio - da Reconquista
consolidao do Reino 21
1 - Conquista e Reconquista: contexto poltico-administrativo 22
2 - Portucale e Anegia: o terrtorum e a civitas 28
3 - Penafdelde Canas: da terra ao julgado 41
Captulo II: In terra de Penafidel- as estratgias de ocupao do territrio segundo a documentao do sculo IX ao sculo XII 50
1 - 0 Povoamento: primeiros ncleos populacionais 51
2 - A Organizao religiosa: parquias, mosteiros e igrejas 62
3 - A Economia: produes da terra 72
4 - A Propriedade privilegiada: quintas, honras e coutos 78
5 - A Administrao: tenentes e outros oficiais 84
6 - A Castelologia: sistemas defensivos da terra 90
7 - A Rede viria: vias, pontes e estalagens 106
Captulo III: De Judicato Pennefidelis - o julgado segundo a documentao dos sculos XIII e XIV 111
1 - As Inquiries Afonsinas: o julgado em 1258 112
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2 - As Inquiries Dionisinas: a propriedade honrada em 1308 129
3 - A imagem do territrio no final do sculo XIII 136
Captulo IV: A terra de Penafiel na Idade Mdia - as concluses 141
III - Bibliografia 146
VOLUME II
IV - Anexos 2
1 - Corpus Arqueolgico - os vestgios
arqueolgicos e toponmicos da Idade Mdia 5
I - Arquitectura religiosa 6
II - Testemunhos funerrios 12
III - Testemunhos virios 27
IV - Arquitectura militar 33
V - Arquitectura civil 38
VI - Outros 39
VII - Toponmia 42
2 - Cartografia 47
Mapa I - O Territrio Anegia
Mapa II - A Terra de Penafiel
Mapa III - O Julgado de Penafiel
Mapa IV - O Povoamento em Penafiel nos sculos IX a XII
Mapa V - O Julgado de Penafiel em 1258
Mapa VI - A Propriedade Honrada em 1308
Mapa VII - Os Vestgios Arqueolgicos e Toponmicos
3 - Estampas
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A TERRA DE PENAFIEL NA IDADE MDIA
Estratgias de ocupao do territrio (875-1308)
Dissertao de Mestrado em Arqueologia, apresentada Faculdade de Letras da
Universidade do Porto
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Prembulo
6
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No posso deixar de comear por prestar publicamente a minha estima e
agradecimento a um conjunto de pessoas sem as quais no teria sido possvel a
concretizao do presente estudo.
Em primeiro lugar, quero agradecer ao nosso orientador e coordenador desta
edio do Mestrado de Arqueologia, o Prof. Doutor Mrio Barroca, que desde
sempre manifestou total disponibilidade e apoio na orientao deste trabalho, e a
quem certamente esgotei toda a pacincia, sem que tivesse algum dia deixado de
demonstrar toda a sua boa vontade e compreenso. Pelo excelente trabalho de
incansvel orientao, pelas preciosas informaes e esclarecimentos prestados, a
ele, em especial, o meu maior agradecimento, com considerao e estima.
Prof. Doutora Teresa Soeiro, com a maior amizade, a quem devo a
sugesto do tema e a disponibilidade de todos os meios e recursos possveis na
concretizao do presente trabalho, tambm o meu muito obrigada por todas as
informaes amavelmente prestadas e incansvel incentivo.
De igual forma, quero agradecer a todos os elementos do Museu Municipal
de Penafiel pela boa vontade e a colaborao prestada em todos os domnios, muito
para alm das relaes de trabalho, e que s a amizade pode justificar. A Rosrio
Marques, Cu Basto, Lcia Pacheco e, em especial, Manuel Ribeiro, companheiro
dos priplos no concelho nos infindveis dias de prospeco e registo grfico e
fotogrfico, o meu imenso agradecimento.
Desde sempre pude contar tambm com o total apoio dos servios da
Cmara Municipal de Penafiel, na pessoa do Senhor Presidente, nomeadamente do
Departamento de Gesto Urbanstica a quem devo a implantao do levantamento
arqueolgico, o tratamento dos dados e o arranjo grfico da cartografia apresentada.
Gostaria de agradecer em particular a Jos Manuel Soares, Ricardo Ferreira, e, em
especial, Sandra Carvalho, a quem "roubei" tantas horas de trabalho extra. No
posso esquecer tambm o seu Director, Alfredo Teixeira, sem a colaborao do qual
nada disto teria sido possvel.
Uma palavra de agradecimento vai igualmente para os senhores presidentes
de Junta e procos das freguesias, que tantas vezes incomodei para recolha de
informao local.
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Para alm destas, destaco duas pessoas sem as quais nunca teria
conseguido levar este estudo a bom termo, e para quem todas as palavras que
dedicar sero sempre poucas para demonstrar o meu imenso agradecimento,
apreo e amizade pelas horas interminveis que dedicaram a este trabalho em todas
as suas fases, tornando-se tanto seu quanto meu. A Teresa Pires de Carvalho e a
Helena Parro Bernardo, um agradecimento muito especial, sem preo, por tudo.
s amigas de sempre, Cludia Garradas e Mariana Brando, pela
colaborao prestada e, sobretudo, pelo apoio e incentivo nas horas em que a
desistncia se me afigurava como o caminho mais fcil, sem esquecer Eunice Neri,
e ainda Cludia Guterres e Paulo Amaral.
Aos companheiros de prospeco, Ana Leal e Jorge Arajo, quem agradeo a
companhia e colaborao nos muitos fins-de-semana dedicados ao reconhecimento
no terreno, e Susana Leite, que me deu um auxlio precioso na elaborao dos
desenhos de material e de campo.
Uma palavra tambm para os meus colegas desta edio de Mestrado,
Carlos Delgado e Pedro Miguel Almeida, pelo companheirismo demonstrado e
auxlio mtuo que nos uniu, e ainda para o Prof. Doutor Brochado de Almeida, com
quem iniciei a entrada no mundo da Arqueologia.
Por fim, last but not least, o meu obrigada famlia, sem o apoio da qual
nunca teria conseguido chegar at aqui. Em especial minha me, sem palavras
possveis que exprimam toda a minha gratido e carinho, a quem dedico o presente
estudo.
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Introduo
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1 - 0 Tema
A temtica do povoamento e as estratgias de ocupao do territrio pelo
Homem ao longo do tempo , no nosso entender, e no mbito das diversas reas da
Histria e da Arqueologia, talvez aquela que constitui um maior e verdadeiro desafio
para quem se prope elaborar este tipo de estudo. Talvez por isso a opo por este
tema fascinante, que no fundo constitui uma forma de anlise do processo de
construo de um territrio e de uma identidade histrica.
Em concreto, o estudo do povoamento medieval permite-nos obter uma viso
de como se formou um espao e como ele se consolidou num territrio unificado. Os
alvores da nacionalidade e o processo da sua germinao permitem-nos perceber
muitas vezes as realidades quotidianas, numa perspectiva de entendimento do
passado para melhor compreenso do presente. Por isso, o estudo das estratgias
de ocupao de um determinado espao geogrfico e administrativo, sobretudo a
partir da Alta Idade Mdia, fundamental para o entendimento do processo que deu
origem a uma determinada a regio e a sua evoluo, na medida em que essas
mesmas estratgias foram marcantes na sua definio como unidade administrativa.
Na verdade, o estudo do povoamento de uma rea relativo a um qualquer
perodo cronolgico reveste-se de grandes dificuldades que todos reconhecero, e
representa por si s uma empresa de grande envergadura, na medida em que
quando se tratam as questes do povoamento torna-se necessria a anlise e o
estudo da pluralidade de aspectos e factores que fazem parte do quotidiano das
populaes, seja na sua vertente econmica, administrativa, religiosa, militar,
politica, etc...
Indissociveis entre si, todas estas temticas poderiam elas mesmas, a nvel
monogrfico, ser alvo de estudos concretos e minuciosos, o que, a concretizar-se,
viria certamente trazer importantes informaes para um conhecimento mais
profundo das realidades histricas locais, das formas de ocupao do espao e da
dialctica entre os elementos divergentes e os elementos comuns s diversas zonas
do pas.
Por outro lado, o papel das monografias, entendidas como estudo de um
conjunto de factores inerentes a uma determinada regio em particular, a partir da
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qual se podem extrapolar concluses que a aproximam ou diferenciam da macro-realidade, torna-se vital para que a anlise de conjunto possa ser cada vez mais completa. Assim se contribui para que o geral seja enriquecido a partir da soma das partes, e para que possam ser aprofundadas as questes relacionadas com as diferenas e as semelhanas entre as vrias reas do territrio nacional, integrando-as numa viso de conjunto composto tanto por elementos unificadores como por elementos antagnicos1.
A opo pelo estudo monogrfico do povoamento de uma determinada rea , assim, simultaneamente um estudo especfico e um estudo generalista. Se por um lado o mbito geogrfico o restringe ao domnio do particular, como estudo mais ou menos aprofundado de uma pequena parcela que se insere num espao territorial mais vasto, por outro, a anlise da multiplicidade de vectores a ter em linha de conta e da interaco entre cada um deles de tal forma complexa que forosamente tem que ser alvo de uma viso genrica que permita uma sntese de conjunto.
1 A propsito das assimetrias e elementos unificadores do territrio nacional veja-se MATTOSO (1995), vol. I, p. 29-77.
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2 - 0 Espao
A opo pelo estudo do concelho de Penafiel, ou mais precisamente do
espao geogrfico que constitui a terra de Penafiel de Canas ou de Sousa, deve-se
a razes de ordem profissional, por um lado, mas tambm ao facto deste territrio
constituir um dos melhores exemplos para o estudo do povoamento medieval2.
O concelho encontra-se muito bem estudado ao nvel da sua Histria e
Arqueologia, nomeadamente para as pocas Pr e Proto-Histricas, Romana,
Moderna e Contempornea3. A riqueza patrimonial deste espao notvel, e o
exaustivo levantamento arqueolgico do mesmo um ponto de referncia e
exemplo para outros municpios.
Considermos, porm, que para a Idade Mdia faltava ainda um estudo mais
aprofundado que pudesse assemelhar-se aos existentes para outras cronologias, e
que permitisse reunir num trabalho de mbito generalista a informao especializada
coligida por diversos historiadores4 e interessados, de modo a obter-se uma viso
diacrnica do povoamento e formao do concelho, contribuindo assim com mais
um "captulo" para a elaborao de uma monografia completa e cronologicamente
coerente. Essa tarefa, temos conscincia, no ficou de forma alguma cumprida, j
que existem ainda hiatos cronolgicos na Histria do concelho que merecem ser
alvo de investigao aprofundada e sistemtica.
O patrimnio arqueolgico e arquitectnico do concelho de Penafiel
demonstra bem como os sculos medievais foram marcantes na sua Histria e
identidade. A esta situao no alheio o facto de, por um lado, ter sido um eixo de
circulao e passagem obrigatria na ligao entre o litoral e o interior desde poca
remota, e por outro, ser um territrio de recursos naturais diversos, propcio
explorao agrcola e geomorfologicamente apto ocupao humana. Da algumas
das principais linhagens da poca deterem neste territrio boa parte dos seus
domnios fundirios e contriburem de forma decisiva para a afirmao deste espao
2 O espao geogrfico da medieva terra de Penafiel no corresponde exactamente ao territrio do actual concelho, j que as freguesias de Abrago, Casteles, S. Martinho de Recezinhos e S. Mamede de Recezinhos estavam includas em ferras vizinhas, tendo sido anexadas ao concelho de Penafiel apenas na poca do Liberalismo. Por essa razo, exclumos o estudo e o levantamento arqueolgico referente a essas freguesias do presente trabalho. Veja-se a propsito LEITO (1964), SOEIRO (1993) e (2001).
De destacar os trabalhos de Antnio Leal, Paulo Amaral, Ricardo Teixeira, Teresa Pires de Carvalho e Teresa Soeiro, que dedicaram ao concelho os trabalhos de inventariao de stios e estaes arqueolgicas que ainda hoje constituem as melhores referncias e os elementos mais completos da Carta Arqueolgica de Penafiel, em elaborao. 4 Nomeadamente Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Jos Mattoso, Antnio Lima, Rigaud de Sousa, Monteiro Aguiar, Ablio Miranda, Paulo Amaral, Ricardo Teixeira, entre outros.
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no mbito do Vale do Sousa, no sendo por isso de estranhar que aqui se tenha
fundado um dos principais mosteiros beneditinos do Norte de Portugal.
Actualmente constitudo por 38 freguesias, o concelho de Penafiel abrange
uma rea de cerca de 212,2 Km2. A sua altitude mxima de 556 metros, na Serra
da Lagoa, a Nascente, e a mnima de 4 metros, na ponte de Entre-os-Rios, sobre o
Douro. De uma maneira geral, e atravs da anlise das curvas hipsomtricas,
verifica-se que cerca de 87,5% do concelho se encontra entre os 0 e os 400 m de
altitude, correspondendo os restantes 12,5% a altitudes superiores.
Poucas povoaes esto estabelecidas acima da curva dos 350m, verificando-
se ainda que as sedes de freguesia do preferncia a locais de meia encosta e s
em dois casos ultrapassam os 400 m5.
O clima do concelho de Penafiel temperado, embora se faam sentir
frequentemente os frios vindos das terras altas, sendo habitual a formao de
geadas no final do Outono e Inverno. Ocasionalmente ocorre queda de neve,
principalmente nos pontos mais altos.
Situado na parte central do distrito do Porto, entre os cursos dos rios Tmega,
Sousa e Douro, Penafiel encontra-se circundado a Poente pelos concelhos de
Gondomar e Paredes, a Norte pelos de Lousada e Amarante, a Nascente por Marco
de Canaveses e, finalmente, a Sul pelo concelho de Castelo de Paiva. Deste
enquadramento derivam os grandes condicionalismos gerais em que o concelho se
encontra, dos quais os mais importantes so, sem dvida, do ponto de vista fsico, a
sua acidentada fisiografia e, do ponto de vista da geografia humana, o povoamento
e a prpria organizao administrativa local.
De uma forma geral, o relevo do concelho bastante acidentado, pleno de
vales encaixados de pequena extenso, de onde sobressaem, pela sua maior
expresso, os vales do rio Cavalum, afluente do Sousa, e do Rio Mau, afluente do
Douro, ambos orientados no sentido NE-SW, bem como o vale das ribeiras de
Matos, Camba e das Lajes, afluentes do Tmega no sentido NW-SE6.
A interpretao do que se passa dentro do territrio concelhio resulta
directamente do relevo envolvente, comandado pelas linhas de festo oriundas da
Serra da Cabreira, bastante a Nordeste, de onde descem para Poente os vales dos
5 Cfr. SOEIRO (1993), vol. I, p. 94. 6Cfr. PDM(1990), vol. 3, p. 24.
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rios Ave e Vizela, e para Sul, na regio de Basto, diversos dos afluentes da margem
direita do Tmega7.
dos centros de distribuio situados em Pinheiro e Lustosa, no festo das
Serras de Passos e de Sanfins de Ferreira, que descem para Sudoeste,
respectivamente, as elevaes de Croa, Perafita e Luzim, entre os rios Sousa e
Tmega, dominando a parte central do concelho, e as de Rebordosa, Santiago e
Vandoma (Baltar), que limitam por Norte e Nordeste o cenrio desfrutado da cidade
de Penafiel. Alm do Tmega, os concelhos de Amarante, Marco de Canavezes e
Baio so dominados j pelos contrafortes do Maro. Para sul do Douro, estendem-
se as serranias de Castelo de Paiva e Arouca8.
Estas reas so constitudas essencialmente por formaes granticas
hercnicas (granitos porfiroides de gro grosseiro, granodioritos e granitos
monzonticos porfiroides), excepto a Poente da linha Recarei-Lagares-Canelas-
Castelo de Paiva, onde existem formaes ordovcitas (xistos, grauvaques,
quartzitos, etc.) mais para Poente, acompanhadas pelas manchas silricas e
carbnicas que, vindas de Sudeste, passam pelo Pejo, S. Pedro da Cova e
Valongo, a caminho de Landos e Rates ( Pvoa de Varzim). Esta constituio
geolgica explica, por um lado, a abundncia dos granitos intensamente explorados
em Penafiel, e por outro lado, a diferenciao da extremidade Sudoeste do
concelho, nas Serras de Santo Antoninho e da Boneca, respectivamente a Poente
das freguesias de Lagares e de Canelas, originando, entre outros acidentes, as
espectaculares fragas da Abitureira, sobre o rio Douro9.
Efectivamente, em Sebolido, pouco depois de receber o Tmega, o Douro
atravessa os quartzitos skidavianos do flanco Este do anticlinal, quartzitos de dureza
considervel e com grande largura de afloramento. O facto que imediatamente
ressalta o da dissimetria das vertentes naquele ponto do vale. Na margem direita,
a abruptuosidade, a verticalidade da forma, a caracterstica tpica do canho
quartztico10.
Penafiel um concelho onde a noo de ruralidade est ainda bem vincada, e
onde a agricultura ainda constitui a nica forma de subsistncia para uma faixa
substancial da populao do concelho. Integrado no corao da regio demarcada
7Cfr. PDM(1990), vol. 2, p. 2. 8Cfr. PDM(1990), vol. 2, p. 2. 9 Cfr. PDM (1990), vol. 2, p. 1-4, e vol. 3, p. 24-25. 10 Cfr. REBELO (1975), p. 128.
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dos vinhos verdes, a produo vincola apresenta-se como uma das principais actividades da produo agrcola do concelho, a par da indstria extractiva, nomeadamente a do granito, que assume em Penafiel um lugar de destaque, no s pelo peso que tem na economia local como pelo impacte que gera na paisagem.
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3 - 0 Tempo
Na medida em que "os sculos medievais surgem como tempos fulcrais para
a ocupao e ordenamento do territrio portugus, uma vez que nessa cronologia
que teve lugar no apenas a estabilizao que permitiu a obteno dos limites que,
grosso modo, continuam ainda a ser os seus, como tambm ocorreu um complexo
processo de consolidao do espao ocupado"n, o mbito cronolgico deste
trabalho s poderia inserir-se na poca medieval.
Data do ano de 875 a primeira referncia documental ao territrio Anegian,
unidade territorial nascida do dinamismo da Reconquista, criada a partir da
reorganizao administrativa empreendida por Afonso III das Astrias, e que durante
o perodo alti-medieval desempenhou um papel fundamental na linha de defesa do
Douro. Esta unidade poltico-militar constitui o mais antigo territrio administrativo da
poca medieval, e a emergncia da terra de Penafiel de Canas est
indissociavelmente ligada desagregao desse mesmo territrio. Por outro lado, a
civitas Anegia era encabeada por um reduto militar que se situa precisamente no
concelho de Penafiel, num pequeno esporo da freguesia de Eja, onde actualmente
se ergue a Capela da Senhora da Cividade13.
O ano de 1308 no um marco concreto na Histria Medieval de Penafiel. A
opo por esta data , de facto, meramente simblica e foi escolhida por coincidir
com o ano de concluso das Inquiries dionisinas referentes ao concelho14. A
importncia de que se reveste a opo cronolgica do ponto de chegada deste
trabalho est mais ligada ao contexto diacrnico do reinado daquele monarca do que
a qualquer acontecimento particular. De facto, a poltica de D. Dinis reflecte o incio
de uma nova poca e de uma nova forma de administrao de um territrio que
agora bem definido e se encontra unificado sob uma coroa cada vez mais
centralizadora. Por essa razo, precisamente durante o reinado de D. Dinis que se
inicia o processo de decadncia das terras, decorrente de uma srie de factores que
culminaro no desaparecimento da terra de Penafiel e na emergncia do julgado do
mesmo nome.
Por estes motivos, estabelecemos como cronologia de referncia o perodo
balizado entre os anos de 875 e 1308. Estas duas datas representam duas pocas
11 ANDRADE (2001), p. 13. 12 PMH, DC 8. 13 ALMEIDA et LOPES (1981-1982), p. 131. 14CCLP, p. 167-173.
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diferentes e dois contextos histricos muito distintos entre si, mas o tempo que entre elas medeia a chave para a compreenso do processo de origem, evoluo e desaparecimento da terra de Penafiel de Canas.
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4 - 0 Mtodo
Uma vez definidos os mbitos temtico, espacial e cronolgico do presente
trabalho, a metodologia utilizada passou essencialmente por dois tipos de
investigao profunda: o levantamento exaustivo das referncias documentais
relativas ao concelho de Penafiel, e o levantamento arqueolgico dos vestgios
existentes cronologicamente atribuveis Idade Mdia.
Muitas foram as dificuldades com que nos deparmos ao longo da
investigao de gabinete. O alargado mbito cronolgico da nossa investigao e a
falta de formao no campo da Paleografia limitou-nos o recurso consulta de
fontes manuscritas inditas que poderiam ter trazido importantes informaes para
esta investigao. No entanto, cedo compreendemos que tal tarefa seria impossvel
de concretizar nesta fase, e que no teria mesmo lugar no mbito acadmico da
dissertao para o grau de Mestrado, sendo mais plausvel para uma investigao
de nvel superior.
Por esses motivos limitmo-nos apenas utilizao das fontes documentais
publicadas, o que mesmo assim no se revelou tarefa nada fcil, na medida em que
no tnhamos qualquer experincia anterior neste domnio, nem qualquer formao
lingustica de Latim, e, sobretudo, porque tivemos bastante dificuldade em lidar com
a quantidade de informao que os nossos documentos contm.
De facto, se por um lado existem amplos hiatos cronolgicos na produo de
documentao entre o sculo IX e a primeira metade do sculo XI15, j de si
escassa, por outro lado as informaes contidas na totalidade da documentao
consultada revelaram-se preciosas a todos os nveis. O tratamento dos dados
recolhidos teve por isso de implicar necessariamente uma triagem da informao a
utilizar, de forma a no incorrer numa disperso temtica impossvel de analisar
neste trabalho. Ficou, porm, a certeza de que muito existe ainda por explorar em
pormenor, e que a leitura atenta das fontes documentais revela potencialidades de
investigao temtica ilimitada.
Uma vez concluda a investigao de gabinete, e aps recolha e tratamento
da informao proveniente das fontes documentais, passmos fase de trabalho de
campo, que se desenvolveu segundo duas vertentes: por um lado, o levantamento e
15 Os factores que influenciaram os ritmos de produo documental entre os sculos IX e XII, e os dados estatsticos para a rea relativa ao curso terminal do Douro, encontram-se resumidos em LIMA (1993), Vol. I, p. 13-16.
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cartografia dos vestgios arqueolgicos conhecidos, e por outro, a prospeco
arqueolgica para deteco de novos vestgios.
Penafiel , sem dvida, o concelho melhor estudado do Vale do Sousa ao
nvel da Histria e Arqueologia locais, e por isso mesmo distingue-se dos restantes
municpios, pela riqueza histrica e arqueolgica que detm, e que conhecemos
graas a dcadas de estudo que investigadores de diversas reas lhe dedicaram16.
Refira-se que o patrimnio arqueolgico de Penafiel bastante extenso, cobrindo
praticamente todos os mbitos temticos e cronolgicos, e que o concelho est
muito bem prospectado a nvel arqueolgico. Por isso mesmo foi pequena a nossa
contribuio para o aumento do nmero de stios medievais detectados. Muitas
vezes aconteceu mesmo que a prospeco resultou na deteco de vestgios
arqueolgicos de outras pocas, como por exemplo mamoas e povoados castrejos!
Uma das maiores dificuldades que sentimos no trabalho de campo prendeu-
-se com a explorao de pedreiras, que constitui a principal actividade econmica do
concelho de Penafiel. A explorao dos principais montes resultou na alterao de
contextos geogrficos e da envolvente natural do territrio, na modificao do
traado dos velhos caminhos, e ainda na potencial (se no mesmo efectiva, nalguns
casos) destruio de vestgios arqueolgicos como castelos roqueiros, atalaias e
sepulturas, fundamentais para a compreenso do povoamento e ocupao do
territrio na Idade Mdia.
Mas h ainda a ter em conta outros factores que contribuem para o aumento
das dificuldades no terreno. A deteco de povoados medievais desconhecidos, por
exemplo, quase sempre mera obra do acaso, porventura na sequncia de obras e
novas construes que originam achados fortuitos. Por outro lado, extremamente
difcil, e praticamente impossvel nalguns casos, determinar a correspondncia de
topnimos que encontramos na documentao medieva para a actualidade,
sobretudo no que concerne aos pontos de referncia e nomes de montes.
Assim, desenvolvemos o trabalho de prospeco to completo quanto nos foi
possvel, partindo dos dados documentais de que dispnhamos, das informaes
orais que amos recolhendo entre as populaes locais e da anlise da cartografia,
que nos forneceu informaes preciosas ao nvel da toponmia e da situao
geogrfica de alguns stios que visitmos.
16 De referir, nomeadamente, os estudos incontornveis de Jos Monteiro de Aguiar, Ablio Miranda, Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Teresa Soeiro, entre muitos outros que, como j referimos, contriburam de forma decisiva para o conhecimento da Histria e da Arqueologia do concelho.
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Ficou-nos, no entanto, a certeza de que muito h ainda para fazer no plano da investigao, e que este trabalho poder apenas contribuir com algumas achegas para o conhecimento da Arqueologia Medieval do concelho de Penafiel, levantando o vu para futuras investigaes mais aprofundadas e sistemticas que possam vir a esclarecer algumas questes pertinentes ligadas ocupao do territrio e s estratgias de povoamento medieval.
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Captulo I A Construo do Territrio: da Reconquista consolidao do Reino
21
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1 - Conquista e Reconquista: contexto poltico-administrativo
A invaso muulmana iniciada em 711 veio dar origem a um longo e
complexo processo de recuperao territorial por parte das foras crists.
Tradicionalmente encetado por Pelgio, a partir de Covadonga, este processo ficou
caracterizado por uma srie de avanos e recuos militares dentro de diferentes
contextos poltico-administrativos. Como se sabe, levaria sculos at estabilizar uma
fronteira mais ou menos bem definida e relativamente estanque entre os domnios
da Cristandade e os do Islo, por um lado, e, sculos mais tarde, entre o territrio de
Portugal e o de Castela por outro17.
Os primeiros anos da Reconquista podem caracterizar-se genericamente por
uma atitude sobretudo defensiva de bolsas de resistncia crist que empreendiam
guerras de fossado18. Vrias foram as incurses e as razias encabeadas pelos
monarcas asturianos que antecederam a Afonso III, sem que nenhum deles
aparentemente tivesse tido como objectivo concreto uma estratgia de ocupao
efectiva dos territrios19. S com o movimento presuriador da segunda metade do
sculo IX e a organizao administrativa da decorrente se imprime um novo
dinamismo Reconquista e se comea a delinear uma estratgia de construo de
um espao poltico-administrativo coerente20.
Na realidade, e embora estas presrias no tenham um grande impacto em
reas extensas, as presrias do Porto e de Chaves vieram a revelar-se
fundamentais no processo de repovoamento21 e de construo do espao territorial
ocupado pelas foras crists. Estas revelam pela primeira vez uma estratgia
efectiva de conquista e ocupao do territrio do Entre-Douro-e-Minho, com o
estabelecimento definitivo da linha de fronteira no Douro. Reconquistado este
17 No cabe no mbito deste trabalho a anlise das questes historiogrficas relacionadas com o conceito de Reconquista ou a definio das suas fases. Assim, utilizaremos o termo como sinnimo do processo militar de conquista de territrio por parte das foras crists s foras islmicas, entendendo-se este como movimento cronologicamente muito longo (do sculo VIII ao sculo XIII), mas perfeitamente descontnuo e com diferentes objectivos conforme a poca em que se desenrola, com fases de diferentes graus de dinamismo e interesses. Para o enquadramento de que necessitamos neste captulo teremos sobretudo em linha de conta o perodo da coroa Astur-Leonesa, desde os fossados de Afonso I at s campanhas de Fernando Magno e conquista de Coimbra em 1064, e a fase de consolidao da fronteira do reino de Portugal, desde a conquista do Algarve, em 1249, ao reinado de D. Dinis e assinatura do Tratado de Alcanices. 18 Cfr. BEIRANTE (1993), p. 253-255. 19 Cfr. MATTOSO (1997), vol. I, p. 424-426. S neste contexto defensivo se podero igualmente compreender as descries das empresas de Afonso I, contidas nas Crnicas Albeldense e Sebastianense e que deram origem to debatida questo do ermamento. Por aqui se v a falta de uma estratgia coerente de conquista e ocupao efectiva dos territrios reconquistados, encarando-se as operaes militares apenas numa perspectiva de razias e pilhagens, e ainda sem quaisquer propsitos expansionistas de construo de um novo espao poltico-administrativo. 20 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 92. 21 Cfr. GIRO e MERA (1948), p. 10.
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espao, foi mesmo possvel avanar para Sul e colocar-se temporariamente a linha
de fronteira em Coimbra22.
Tornou-se ento necessrio organizar administrativamente o territrio, criando
as condies de segurana necessrias a partir de extenses do poder rgio
suficientemente fortes, que permitissem, por um lado, a fixao do povoamento nas
reas conquistadas23, e por outro, a defesa e manuteno das mesmas. A
reorganizao do territrio, decorrente da aco conquistadora de Afonso III das
Astrias, veio estabelecer dois tipos de diviso administrativa, patente na
documentao a partir da segunda metade do sculo IX: os territoria (Braga,
Portucale e Coimbra) e as civitates (Angia e Santa Maria)24.
Se, por um lado, as grandes divises diocesanas que se incorporam na
definio e limites dos territoria25, encabeados pela cidade episcopal que os
presidia, podem ser entendidas como um restabelecimento da ordem administrativa
a partir da renovao das divises eclesisticas de tradio Suevo-Visigtica, por
outro lado, a criao das civitates de Angia e Santa Maria tem unicamente por base
a sua posio geogrfica face ao novo enquadramento dado pelas campanhas de
Afonso III e o avano da fronteira para Sul do Douro, constituindo aquelas territrios
de cariz puramente administrativo.
O mbil da sua criao dever, pois, ser entendido a partir de motivaes
essencialmente estratgicas de carcter poltico-militar, como o estabelecimento de
duas unidades territoriais de fronteira, mais pequenas que os territoria e assim mais
fceis de controlar, encabeadas por um castelo principal e com vrias outras
estruturas militares inseridas no seu espao geogrfico, fundamentais para a cabal
defesa e manuteno da linha de fronteira agora estabelecida26. Por isso mesmo, as
civitates coexistem como unidades administrativas dentro dos limites dos territrios
diocesanos, sendo a sua administrao delegada pelo monarca num membro da
nobreza responsvel, no qual o rei deposita a gesto dessa rea, obedecendo a um
"modelo de governo territorial essencialmente conda!'27.
22 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 92. 23 Cfr. LIMA (1993), Vol. I, p. 32. 24 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 92. Para os casos aqui em anlise, concretamente o tenitorium Portugal e a civitas Angia, as primeiras referncias datam respectivamente de 907 (PMH, DC 14) e de 875 (PMH, DC 8), sendo que atribuda a esta ltima a designao de territrio, aparecendo pela primeira vez como civitatis angia em 922 (PMH, DC 25). 25 Cfr. GIRO e MERA (1948), p. 7-10; BARROS (1954), tomo 11, p. 13; BARROCA (1990-1991), p. 92. 26 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 92. 27 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 118.
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Os condes designados eram responsveis "pela implantao da autoridade
rgia, pela organizao administrativa leonesa e pela estruturao militar e civil do
territrio"28 recm-conquistado e que urgia ocupar definitivamente. A nobreza condal
agora implantada no noroeste peninsular exerce, assim, o poder em nome do
monarca, mantendo-se a sua preponderncia e influncia scio-poltica por vrias
dcadas. O melhor exemplo disso mesmo reside no facto de o primeiro Condado
Portucalense, directamente sado da presria de Vmara Peres, se ter mantido sob
administrao da mesma famlia ao cabo de cinco geraes, o que manifestamente
traduz a sua importncia scio-poltica.
Esta diviso administrativa do territrio manter-se- at segunda metade do
sculo XI, mas a sua tradio foi conservada por muito mais tempo pela diplomtica
medieval.
As disputas do poder pelas quais passou o reino asturiano aps a abdicao
de Afonso III, a diviso do territrio em diferentes reinos e a consequente
fragmentao do poder, as querelas internas entre as suas diversas foras, das
quais no ficaram isentos os Condes Portucalenses, bem como o estado de guerra
permanente, a par com as incurses normandas e o novo dinamismo da conquista
muulmana decorrente das campanhas de Almansor, vieram debilitar o espao
peninsular em poder das foras crists, fazendo recuar novamente a fronteira para a
linha do Douro29.
O espao ibrico a Sul do Douro torna-se num campo de batalha permanente,
e o recrudescer da guerra vai afectar profundamente a estrutura social, mais do que
qualquer outro domnio, uma vez que todo o esforo scio-poltico est orientado
para a manuteno da mquina de guerra, permitindo assim a ascenso de uma
nova classe militar, que encara a reconquista como meio de promoo social,
poltica e econmica, encorajada por Fernando Magno.
Na verdade, sob a aco de monarca a conjuntura ser bem mais favorvel a
todos os nveis, com o novo dinamismo impresso Reconquista e a unificao do
territrio peninsular cristo sob a mesma coroa, que se traduziu na campanha das
Beiras e, sobretudo, na tomada definitiva de Coimbra em 106430 Com a fronteira
definitivamente colocada no Mondego, a linha do Douro perde a importncia
estratgica e o carcter socialmente promocional que at a desempenhou,
28 MATTOSO (1985), p. 30. 29 Cfr. BEIRANTE (1993), p. 259-263; MATTOSO (1997), Vol. I, p. 446^48 e 473-478. 30 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 101; BEIRANTE (1993), p. 263-264; MATTOSO (1997), Vol. I, p. 492-494.
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transferindo-se esse papel para as reas do Sul. A pacificao do Vale do Douro e o
alargamento do territrio agora definitivamente reconquistado permite criar as
condies ideais ascenso dos infanes, em quem Fernando delega os poderes
outrora confiados nobreza condal31.
A estes factores no deve ser igualmente estranha a aco do monaquismo e
o aumento demogrfico registado a partir da segunda metade do sculo XI, que se
reflecte nas estratgias de povoamento com a fundao de novas villae, unidades
populacionais de carcter agrrio, sadas das presrias da centria anterior, que
resultam da reorganizao paroquial emergente32.
Com a estabilidade poltica imprimida pelo monarca no territrio agora
alargado, e com a linha de fronteira definitivamente deslocada para Sul, tornava-se
necessrio adaptar a administrao do territrio nova realidade. Se por um lado as
grandes circunscries territoriais, corporizadas nos territrios diocesanos e nas
civitates, se mantiveram como pontos de referncia identificadores, de todos
conhecidos e continuadamente utilizados nas frmulas diplomticas at ao sculo
XII, por outro lado comea a surgir na documentao, a partir dos meados do sculo
XI, uma expresso cada vez mais recorrente, que indicia uma reorganizao
administrativa do territrio: a terra.
A inoperacionalidade das civitates, agora apartadas das reas de conflito, e a
necessidade de dividir o territrio em unidades administrativas mais reduzidas para
uma gesto e defesa mais eficazes desses espaos, conduziu criao das terras.
Encabeadas por uma estrutura militar principal (o castelo cabea-de-terra), cuja
defesa entregue a um infano, as terras foram fruto de um processo longo e
descontnuo de fragmentao das primeiras grandes unidades territoriais em
circunscries mais pequenas e de governo personalizado33, cujos limites
geogrficos, inicialmente confusos luz da documentao, parecem ter-se mantido
grosso modo durante toda a Idade Mdia e, nalguns casos, at s reformas do
Liberalismo.
31 Cfr. MATTOSO (1985), p. 30-35. 32 Cfr. OLIVEIRA (1950), p. 80-87. 33 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 115-120. Na verdade, a tradio diplomtica mantm a referncia aos velhos territrios diocesanos e civitates quando se trata de localizar esta ou aquela propriedade, mesmo quando o sistema das terras est j perfeitamente implementado, por vezes utilizando ambas as frmulas em conjunto. Exemplos dessa permanncia so as referncias mais tardias de localizao de espaos: relativamente ao territrio Colimbriensi, de 1139 (DMP, DR I 170), ao territrio Bracale, de 1175 (MA 139), ao territrio Portugal, de 1199 (MA 169), e ao territrio Anegia, de 1185 (LTPS 141).
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Na realidade, o que vemos acontecer no caso de Penafiel, que os limites da
medieva terra se mantiveram praticamente inalterveis at ao sculo XIX,
beneficiando evidentemente, neste caso concreto, da sua delimitao estar
intimamente ligada aos condicionalismos geogrficos e hidrogrficos da rea em
questo.
A partilha do poder rgio com os membros da nobreza local atravs da
delegao de poderes e da multiplicao das terras no pode, porm, ser encarada
como uma descentralizao. Pelo contrrio, essa partilha de poder com a nova
classe de infanes emergente da Reconquista, que necessita de meios de
afirmao perante a velha nobreza condal, deve ser antes entendida como um
esforo centralizador de Fernando Magno e seus sucessores. O objectivo principal
parece ser a criao de laos de clientela com uma classe ainda pouco estruturada
como grupo social, que permite ao monarca construir um tipo de governo
centralizador e burocrtico para enfraquecimento do poder condal institudo,
baseando-se esta poltica no aparecimento de funcionrios rgios, nomeadamente
dos maiorinus, e numa aparente delegao de poder nos tenens, que apenas
respondem perante a autoridade do soberano34.
A sobrevivncia da diviso administrativa do territrio em terras manteve-se
durante todo o sculo XII at finais da centria seguinte. A progresso do movimento
de Reconquista, o advento da Nacionalidade, a tomada definitiva do Algarve em
1249 e a consequente estabilizao da fronteira com Castela em 1297, so factores
que no podem deixar de entrar em linha de conta na reorganizao administrativa
do espao agora portugus.
Senhorios e concelhos so as primeiras unidades de organizao do territrio
portugus. Na medida em que o principal esforo poltico e administrativo esteve at
ao final do sculo XII voltado para as necessidades militares35, dando a guerra
supremacia nobreza em termos administrativos, o territrio nacional dividia-se
entre os senhorios do Norte, corporizados nas terras, e os concelhos do Sul, fruto da
concesso de forais, que por esta altura dispara, como primeiros instrumentos de
efectiva manifestao do poder real36.
MClr . MERA(1967), p. 33-36; BEIRANTE(1993), p. 285-287. 35 Cfr. MATTOSO (1997), vol. Il, p. 72. 36 Como referimos anteriormente, j vm desde o sculo XI os primeiros funcionrios rgios com cargos administrativos, como mordomos e alferes, subordinados unicamente ao monarca, num esforo de centralizao de poder. Mas a expresso mxima do incio destas iniciativas de afirmao do poder rgio deve ver-se na formao das comunidades de homens livres, decorrentes da concesso de forais.
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A permanncia na tradio destas unidades administrativas de carcter senhorial s ser perdida no final sculo XIII, com os esforos empreendidos por D. Afonso III, e, sobretudo, D. Dinis. Se com Afonso III ainda se mencionam na documentao algumas tenncias e terras que os seus subscritores administravam37, no decurso da governao dionisina essas referncias desaparecem por completo para dar lugar quelas que revelam a transferncia das funes administrativas, judiciais e fiscais dos tenentes para os meirinhos-mor, "escolhidos pelo rei para imprimir no governo dos districtos uma aco mais identificada com a soberania do monarcha"38.
A extino das tenncias, e consequentemente das terras, o esforo de centralizao rgia e o esvaziamento de poder dos senhorios ser agora uma realidade que se traduz nas expresses de carcter administrativo que comeam a utilizar-se na centria de Duzentos. A terra d agora lugar ao julgado, circunscrio de carcter judicial que pressupe a presena de um magistrado rgio, mas que cedo alcanar um significado mais amplo, verificando-se a sinonmia entre os julgados e as velhas terras ou concelhos39.
Cfr. BARROS (1954), tomo 11, p. 46. Cfr. BARROS (1954), tomo 11, p. 51. Cfr. BARROS (1954), tomo 11, p. 61-66.
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2 - Portucale e Anegia: o terrtorum e a civitas
Angia o territrio mais antigo de que h referncia e o segundo mais citado
na documentao medieval concernente ao espao portugus40. A sua provvel
localizao na freguesia de Eja, em Penafiel, foi pela primeira vez apontada por Fr.
Joaquim de Santa Rosa Viterbo, ainda no sculo XVIII41, e por Pedro de Azevedo42,
sendo posteriormente confirmada a situao exacta da cabea-de-civitas, no
pequeno esporo onde se encontra a Capela de Nossa Sr.a da Cividade, por Carlos
Alberto Ferreira de Almeida43.
Com excelentes condies naturais de defesa, dominando o curso do Douro e
foz do Tmega, e com um alcance visual que atinge as faldas das serras de Arada,
Montemuro e Maro, o morro da Cividade permitia igualmente o controlo da
importante via romana que de Sul seguia at Braga, e que continuou a ser um dos
principais eixos de comunicao nos itinerrios medievos44.
Dissimulado na envolvente devido posio topogrfica que ocupa, este
castelo constituiria um reduto de vigilncia fundamental, mais do que uma estrutura
de defesa activa, como um ponto avanado na defesa de Portucale, entretanto
presuriado por Vmara Peres. Na realidade, os vestgios arqueolgicos visveis no
permitem uma apreenso concreta do funcionamento daquela estrutura militar, mas
a rea reduzida do reduto permite inferir como concluso lgica que a guarnio
militar ali estabelecida no seria grande, no podendo responder com prontido a
um eventual ataque de propores significativas sem ter algum apoio adicional. Da
que a defesa do territrio se baseasse necessariamente num conjunto de castelos
roqueiros e outras estruturas complementares que a civitas coordenava e presidia45.
De resto, ainda so visveis entrada do adro da capela alguns alicerces da
estrutura militar que presidiu ao territrio de Angia. Alm dos desaterros artificiais
tambm visveis no terreno, encontram-se igualmente na parte inferior da plataforma
vestgios do pano de muralha do reduto defensivo.
Como j foi dito, a criao da civitas ou territrio de Angia decorreu da aco
poltico-militar de Afonso III das Astrias, e mesmo aps a sua desagregao e a
40 Exceptuando o territrio Portucalense, cfr. BARROS (1954), tomo 11, p. 226. 41 VITERBO (1865), p. 190, mas j referenciada na 1a edio, de 1798 -1799. 42 AZEVEDO (1898), p. 193. 43 ALMEIDA (1978b), p. 36; ALMEIDA et LOPES (1981-1982), p. 132. 44 ALMEIDA ef LOPES (1981-1982), p. 133. 45 Cfr. BARROCA (1990-1991), p. 93.
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emergncia das terras a que deu origem, esta circunscrio continuou a ser utilizada
na diplomtica, at ao sculo XII, como ponto de referncia e enquadramento
geogrfico-administrativo para a localizao das propriedades46.
A delimitao deste espao, a sua cartografia e os limites entre os vrios
territrios, bem como o sistema administrativo dos mesmos no so aspectos
simples de determinar. Esta temtica foi j alvo de estudo por vrios historiadores ao
longo do tempo, mas a questo no muito clara, nem de fcil anlise devido
escassez de informao documental47. Constatmos, porm, que poucos autores
revelaram um esforo de abordagem que individualizasse cronologicamente as
diversas fases da gnese e desenvolvimento do territrio de Angia. Na verdade,
verifica-se a recorrncia de anlises que generalizam concluses simultaneamente
para os sculos IX, X e XI, tendncia que tentaremos contrariar, na medida do
possvel, no presente estudo.
Salientmos j as vicissitudes poltico-militares decorrentes da invaso
muulmana que apenas permitiram a primeira reorganizao do territrio a partir da
segunda metade do sculo IX. Naturalmente, a diviso administrativa implementada
por Afonso III teria de reflectir como forma de retorno ordem estabelecida em vigor
antes da ocupao islmica, por um lado, um revivalismo das tradicionais
designaes das divises jurdico-administrativas romanas, e por outro, a
manuteno das divises eclesisticas suvicas e visigticas. Este revivalismo
notrio no emprego de terminologias como civitas, terrtorium ou urbs para
designao das novas unidades territoriais. Se tivermos em linha de conta estes dois
aspectos, a par da escassez de referncias mais claras e precisas, facilmente se
conclui que aos terrtoria se podem dar diversos significados.
Considerando dois tipos de diviso administrativa, a eclesistica e a laica,
Paulo Mrea e Amorim Giro distinguiram dois tipos de territrio: os territrios
diocesanos e os territrios administrativos48. Gama Barros, por seu turno, concluiu
igualmente que ao territrio Portucalense se poderia atribuir um duplo significado (o
46 Tentaremos daqui em diante evitar o uso da terminologia civitas aplicada ao territrio de Angia, j que, em bom rigor, esta expresso aparece uma nica vez na documentao, em PMH, DC 25, de 922: "(...) et in ipso concilio dedit lucidius vimarani villas et ecclesias ad ipsum monasterium in ripa de ipso dono a porto civitatis angia (...) ubi tamica intrat in dorio (...)". De facto, o documento refere o ponto de travessia do Douro, em Entre-os-Rios. A expresso civitas, pensamos, deve ler-se aqui como referncia ao castelo, sede do territrio, situado no morro da Cividade e sobranceiro ao porto. 47 VITERBO (1865), p. 190; AZEVEDO (1898), p. 193-208; GIRO e MERA (1948), p. 5-17; BARROS (1954), tomo 11, p. 226-263; MATTOSO (1968), p. 56-57, p. 144-145 e p. 153-155; ALMEIDA ef LOPES (1981-1982), p. 133; BARROCA (1990-1991), p.93; LIMA (1993), Vol. I, p. 32-35. 48 Cfr. GIRO e MERA (1948), p. 7-17.
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de provncia, em sentido mais amplo, e o de circunscrio administrativa mais
reduzida, existente dentro da primeira)49, o que alis no anda muito distante do
sentido lato que Almeida Fernandes lhe atribui para poca anterior ao sculo IX50.
Assim, teramos de admitir que a documentao relativa ao territrio
Portucalense poderia referir-se tanto ao territrio diocesano, que grosso modo
compreendia toda a regio entre o Ave, o Corgo e o Vouga, como ao territrio
administrativo, cujos limites orientais so confrontantes com os de Angia.
Os limites deste ltimo foram recentemente estudados e cartografados por
Antnio Lima51. Estendendo-se por ambas as margens do Douro, o territrio de
Angia corresponderia ao corredor natural delimitado pelas faldas das Serras do
Maro e Montemuro a Nascente, e das Serras da Freita e Arada a Sul. Os seus
limites Poente confinavam-se margem direita do rio Arda, a Sul do Douro, e
margem esquerda do rio Ferreira, a Norte, constituindo esta linha hidrogrfica a
fronteira entre os territrios de Angia e Portucalense, como se pode ver pela
documentao citada e pelo Mapa I. O limite Norte talvez o mais difcil de situar
dada a escassez de referncias e de condicionantes geo-hidrogrficas coerentes
que ajudem a delimitar um mbito bem definido. Tudo indica, porm, que o territrio
angico no iria alm de uma linha grosso modo perpendicular entre o curso mdio
do rio Ferreira, a foz do Mezio e a foz do Odres.
No partilhamos, porm, da tese de Antnio Lima ao considerar que Angia
s seria includa nas dioceses de Porto e Lamego apenas a partir do sculo XI, e
fundamentalmente por duas razes52.
Em primeiro lugar, porque a escassez de referncias explcitas aos territrios
diocesanos no permite por si s concluir que esta zona estava anteriormente
excluda daqueles, mesmo antes da restaurao das dioceses. Mesmo sem bispos
residentes, sabemos que estas circunscries eclesisticas nunca foram extintas e
os seus limites pouco se alteraram no decorrer da Reconquista.
Em segundo lugar, porque nos primeiros documentos onde podemos
encontrar a referncia ao territrio Portugalense sobreposto s reas do territrio de
Angia, tal como a posio inequvoca deste face quele, so de meados do sculo
49 BARROS (1954), tomo 11, p. 372-373. 50 FERNANDES (1968), p. 116-119. 51 LIMA (1993). 52 LIMA (1993), Vol. I, p. 36.
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XI e devem ser interpretados tendo em conta um contexto que no o das dcadas da sua gnese, nos finais do sculo IX.
Na realidade, o enquadramento do territrio de Angia pode ter uma leitura e interpretao mais claras se o dissociarmos da diviso eclesistica em que se insere. A sua posio estratgica relativamente ao contexto poltico-militar da poca imprimiu a esta unidade administrativa um papel fundamental de "territrio-tampo" face ameaa muulmana. Por outro lado, a sua constituio foi uma verdadeira novidade relativamente s anteriores divises administrativas, cujos limites a tradio decerto ainda conservava. Bastante bem difundida e implementada no terreno, como se depreende pela documentao, esta medida foi fruto de deliberao rgia por parte de Afonso III, revestindo-se a sua criao de manifesto sucesso e eficcia53.
Mas o que nos parece mais provvel que a civitas de Angia, mesmo estando inserida em termos eclesisticos no territrio diocesano de Portucale, no estaria integrada, no sentido administrativo, no territrio governado pelos condes Portucalenses, nem os seus governadores se encontrariam subordinados a estes.
Jos Mattoso admitiu a hiptese de uma sub-delegao do poder administrativo directamente dos condes nos primeiros infanes do sculo X, que governariam os territrios da periferia do condado, na tradio das conmissa e mandationes galegas e asturianas54. J Almeida Fernandes chega mesmo a estabelecer um critrio de hierarquias bem diferenciado, que se traduz no emprego das diferentes expresses utilizadas, baseando-se numa distino entre ducis magni, os condes das provncias de Portucale e Coimbra, e os seus subalternos, os commtes terrae55. Logo, o territrio de Angia encontrar-se-ia assim numa situao de dependncia directa daqueles, na medida em que se trata de um territrio na periferia do condado Portucalense.
Parece-nos, porm, que os governadores do territrio de Angia, se no estavam hierarquicamente paralelos aos condes Portucalenses (cuja
53 Cfr. a passagem da Crnica Rotensis, redigida aps 884,e editada em FERNANDEZ et alii (1985), p. 130-132: "Quo mortuo ab universo populo Adefonso eligitur in regno, qui cum gratia divina regni suscepit sceptra. Inimicorum ab eo semper fuit audatia comprensa. Qui cum fratre Froilane sepius exercitu mobens multas civitates bellando cepit, id est, Lucum, Tudem, Portugalem, Anegiam, Bracaram metropolitanam, Viseo, Flavias, Letesma, Salamantica, Numantia qui tunc vocitatur Zamora, Abela, Astorica, Legionem, Septemmanca, Saldania, Amaia, Secobia, Oxoma, Septempuplica, Arganza, CLunia, Mabe, Auca, Miranda, Revendeca, Carbonarica, Abeica, Cinasaria et Alesanzo seu castris cum villis et viculis suis, omnes quoque Arabes gladio interficiens, Xpianos autem secum ad patriam ducens." 54 Cfr. MATTOSO (1997), vol. I, p. 417-419. 55 Cfr. FERNANDES (1968), p. 67-119.
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preponderncia scio-poltica indiscutivelmente destacada em relao s restantes famlias da nobreza condal), tambm no se encontrariam sob a sua directa dependncia governativa56. As razes que nos levam a considerar esta hiptese baseiam-se em aspectos de vria ordem que nos permitem partida colocar esta questo numa ptica diversa daqueles autores.
Por um lado, as expresses dux magnus e dux, tidas em conta por Almeida Fernandes como base para a distino hierrquica dos cargos, datam de documentos j do sculo XI e aparecem-nos a par da expresso comes em referncia aos mesmos personagens57. Assim, como se explicariam as referncias aos principais magnates dos sculos IX e X contidas no Liber Fidei e no Cronicon de Sampiro, como o caso de Hermenegildo Guterres, por exemplo, e que os designam simplesmente como comits58? No cremos, portanto, que se possam tirar ilaes to rgidas destas designaes fortuitas que tomam no mesmo sentido diversos vocbulos, a exemplo do que acontece com a frequente sinonmia entre as expresses territorium, urbs, terra, etc.
Acresce ainda que a importncia vital de Angia no contexto poltico-militar dos sculos IX e X justificaria que a sua administrao fosse entregue directamente pela coroa a um membro da nobreza condal. Parece-nos que o mbil da criao desta unidade territorial, de extenso considervel e com objectivos to concretos, perderia eficcia se a sua administrao fosse directamente dependente do territrio vizinho. A forma como a escassa documentao dos sculos IX e X consegue reflectir a efectiva implementao no terreno e difuso desta nova circunscrio faz-nos supor que a gnese do territrio de Angia no teria certamente este efeito se pudesse proporcionar-se a constantes equvocos administrativos com o territrio Portucalense. Na realidade, o que a documentao analisada traduz uma linha de fronteira bem definida entre os dois territrios, que apenas em dois casos contem localizaes onde o escrivo parece ter incorrido em erro59.
56 um facto que no existe qualquer documento que nos permita confirmar esta hiptese, mas verifica-se igualmente o inverso, na medida em que no existem quaisquer referncias a actos de delegao administrativa de cariz rgio ou condal. 57 Em 1085, como bem observou Paulo Mera, o conde Mendo Gonalves aparece designado como comitem (PMH, DC 258) e tambm como dux (PMH, DC 259). Cfr. MERA (1967), p. 24, nota 29.
Citados por Almeida Fernandes, alguns exemplos mostram claramente o que acabmos de explanar em relao aos mais poderosos personagens da poca, sintomaticamente referidos como comes e no como duces: LF 22: '(...) comits qui Mos conmissos teneurent (...)" e "(...) comits quiipsam terram tenebant (...)", ES 456: "(...) Ermenegildus Tudae et Portugale comes (...)". 59 o caso do documento de 951 (PMH, DC 63), que situa a '(...) villa arauca subtus mons fuste et serra sicca discurrente ribulum alarda et territrio portugale (...)", e o de 972 (MA II), que se refere aos "(...) fratres qui sunt habitantes in valle Arauca urbis Anegie monasterio de Sancto Petro (...)".
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Assim, consideramos que s esta abordagem permite justificar que o territrio de Angia fosse constantemente individualizado na diplomtica dos sculos IX e X, sem que seja feita qualquer referncia s macro-real idades provincial ou condal em que se encontraria inserido, sobretudo se tivermos em conta o facto de que outros territrios mais reduzidos poderiam eventualmente estar sob o seu domnio, como algumas referncias nos sugerem60. No temos, certo, nenhum documento que nos permita conhecer qualquer governador anterior a 1047 e a Garcia Moniz61.
A segunda metade do sculo XI, como j tivemos ocasio de referir, veio trazer alteraes profundas ao sistema administrativo vigente. A reorganizao do territrio levada a cabo por Fernando Magno conduziria ao desaparecimento das civitates e, consequentemente, desagregao do territrio de Angia traduzida na emergncia das diversas terras que surgiram no seu espao. O espao sob domnio cristo, agora alargado em definitivo at ao Mondego, carecia de uma nova organizao que permitisse estruturar o territrio de uma forma mais coerente, atravs de reas administrativas mais reduzidas e uniformes que os antigos territoria e civitates.
Na verdade, no espao geogrfico de Angia vemos surgir por esta altura as terras de Aguiar de Sousa, Paiva, Penafiel e Benviver, bem como o pequeno territrio Vargano (ou terra de Sanfins), e ainda, j no sculo XII, a terra de Portocarreiro, sendo que uma pequena parte da rea integrante das terras de Baio e Arouca saiu igualmente do mbito daquele territrio.
O territrio Vargano constitui uma realidade de anlise dbia que merece algum destaque na medida em que nos surge pela primeira vez em 952e2, integrado na urbis Anegie, e apenas em 1083 voltamos a encontrar-lhe referncia63. Parece-nos plausvel considerar que neste espao de fronteira de territrios tenha havido at ao final do sculo XI, alguma dificuldade em implementar a rede administrativa com a mesma eficcia que noutros locais. Na realidade, na rea situada entre o
60 o caso da referncia de 952 "(...) villa que vocitant Alvarenga territrio Varganense urbis Anegie (...)" (PMH, DC 64), que parece indicar que o pequeno territrio Vargano, situado a Sul do Douro, entre a margem direita do rio Paiva e a margem esquerda da Ribeira de Pies, era parte integrante do territrio Angia, pelo menos durante sculo X e possivelmente at meados da centria seguinte, uma vez que s voltamos a ter referncia a esta unidade a partir de 1083 (PMH, DC 620), relativamente '(...) villa quos vocitant Ortigosa (...) subtus mons Muro territrio Varfano discurrente rivulo Pa\ria(...)", que, curiosamente, ainda em 1087 a diplomtica recordava como situada no territrio de Angia. '(...) villa Ortigosa territrio Angia subtus mons Muro discurrente ribulo pavia (...)" (PMH, DC 682). 61 PMH, DC 357. Na realidade, como adiante se demonstrar, temos algumas dvidas relativamente ao facto de ser o governo do territrio de Angia que est sob a autoridade de Garcia Moniz, na medida em que consideramos que este documento reflecte j a emergncia da fera de Penafiel. 62 PMH, DC 64. 63 PMH, DC 620.
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Paiva, o Ardena e a Ribeira de Pies verifica-se que tambm existe referncia ao territrio Geronzo na localizao relativa villa de Moimenta64. Como bem notou Antnio Lima65, este lugar da freguesia de Ortigosa (Cinfes) faz-nos concluir que para o mesmo espao foram tidas em conta trs realidades administrativas diferentes mas contemporneas, inserindo-se nos territrios de Angia, Vargano e Geronzo em apenas onze anos. As discrepncias so ainda maiores se considerarmos entretanto a emergncia da terra de Sanfins naquele mesmo espao66. Por outro lado, considermos j a hiptese desta pequena unidade ter feito parte integrante do territrio de Angia, no s tendo em conta o documento em questo, mas tambm porque duas das w//ae do seu espao so localizadas com relao quele67. Parece-nos que esta leitura se afigura como mais provvel, dada a relevncia do territrio de Angia no contexto regional.
curioso notar que a documentao traduz dois fenmenos em simultneo. Se por um lado comeam nesta altura a aparecer as primeiras referncias s terras que originaram a fragmentao do territrio de Angia68, certo que, ao contrrio do que acontecia nos sculos IX e X, se verifica igualmente um maior nmero de referncias ao territrio diocesano de Portucale como forma de enquadramento daquelas numa realidade mais ampla. o que se constata a partir, por exemplo, da anlise do documento de 1066, em que as terras de Penafiel, Aguiar, Paiva, Benviver e Baio so agora localizadas no terrdorio Portugale69.
Da mesma forma, constata-se que o maior nmero de referncias a Angia data precisamente do sculo XI, como pode ver-se a partir da anlise do Quadro I. A primeira notcia em que se mencionam simultaneamente os territrio Portucalense e a urbis Angia bastante tardia, datando j de 106070, o que vem corroborar uma vez mais a importncia e "autonomia" deste territrio durante os sculos X e XI face quele.
64 PMH, DC 536. 65 LIMA (1993), vol. I, p. 40, e vol II, p. 16,(28) 66 A primeira referncia a esta nova unidade administrativa data de 1091 (PMH, DC 767), mas a permanncia das referncias alternativas ao territrio Vargano e terra de Sanfins para o mesmo espao geogrfico uma constante at final do primeiro quartel do sculo XII. 67 o caso de Vila Me e Ortigosa, cujas referncias datam respectivamente de 952 e 1087 (PMH, DC 66 e 682). 68 Cfr. BARROCA (1990/1991), p. 117. Na rea de Angia, as primeiras referncias s terras a que deu origem datam de 1062 (Aguiar de Sousa e Paiva - PMH, DC 433), de 1064 (Penafiel - PMH, DC 441) e de 1066 (Benviver e Baio - PMH, DC 451 ). Se considerarmos a sinonnia terra - territrio teremos igualmente referncia aos territoria de Arouca (1054 - PMH, DC 392) e Vargano (1083 - PMH, DC 620). 69 PMH, DC 451: "(...) in terra de Pennatidele (...) et in terra de Aquilar (...) et in terra de Pavia (...) et in terra de Benviver (...) et in terra de Baian (...) et iacent ipsas villas terridoro Portugale (...)". 70 PMH, DC 424: "(...) villa Rial territrio Portucalense urbis Angia subtus mons Serra Sicca (...)".
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QUADRO I - DESIGNAES UTILIZADAS NAS REFERNCIAS A ANGIA
^""""---^^ Sculo Designao ^ ^ - - ^ ^ ^ IX X XI XII
Villa - - 1 -
Valle - - 1 -
Castro - - - 1
Civitas - 1 - -
Territrio 2 6 26 7
Urbe - 2 - -
Territrio + Urbe - - 2 -
Territrio Varganense +
Urbe Anegia - 1 - -
Territrio Portugalense +
Urbe Anegia - - 10 1
Territrio Portugalense +
Territrio Anegia - - - 1
Total de referncias 62
Como explicar ento este aumento de referncias ao territrio Anegia, que o Quadro I traduz sem margem para dvidas, datadas precisamente da poca da sua desagregao? Cremos que esta situao pode relacionar-se directamente com o perodo de estabilidade vivido no sculo XI, e que se traduz numa maior produo documental, mas tambm noutros dois aspectos directamente ligados ao contexto poltico-administrativo.
Por um lado, no de estranhar o aumento do nmero de referncias ao territrio Portugalense, no sentido de territrio diocesano, na medida em que diversos documentos do sculo XI fazem j referncia explcita diocese, mesmo antes da sua restaurao71. Depreende-se assim, uma maior preponderncia da influncia eclesistica de Portucale nos territrios adjacentes, a que certamente no
71 o caso dos documentos de 1082 (PMH, DC 606), de 1094 (PMH, DC 812) e 1099 (PMH, DC 916), para citar apenas os do sculo XI, embora se registem mais nove referncias explcitas diocese anteriores a 1112-1114, data da sua restaurao e da sagrao do bispo D. Hugo.
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ser estranha a reconquista de Lamego, Viseu e Coimbra. Se admitirmos que possa ter havido uma tentativa de expanso ou afirmao da diocese portuense sobre as reas recm-incorporadas por Fernando Magno, justificar-se- que a documentao produzida pelos seus mosteiros procurasse pr em relevo a hegemonia da diocese, nomeadamente face ao territrio bracarense.
No cremos, por isso, que estas referncias concernem o territrio administrativo, sobretudo tendo em conta o incio da decadncia dos condes de Portucale. Na verdade, o seu poder material, poltico e militar comeou a diminuir drasticamente logo nos princpios do sculo XI, com Bermudo II e Afonso V, e deteriorou-se consideravelmente com Fernando Magno e Garcia at culminar, como se sabe, na morte do conde Nuno Mendes e na extino do Condado em 1071, na sequncia da Batalha de Pedroso72. Na prtica, a decadncia da nobreza condal portucalense bem visvel no terreno atravs da delegao de poder por parte do monarca nos terra-tenentes, os infanes da nobreza local, agora encarregues dos destinos militares das novas unidades administrativas73.
Poderia igualmente admitir-se o uso da designao de territrio Portucalense, como enquadramento geogrfico de cariz administrativo, tendo em conta o incio da governao de Garcia dos territrios da Galiza e Portugal, aps a morte de Fernando Magno. No entanto, mesmo esta hiptese parece-nos bastante improvvel dado o contexto poltico interno verificado entre os anos de 1065 e 1096. A brevidade do reinado daquele monarca, marcado pelas tentativas de hegemonia dos territrios governados por Sancho II e Afonso VI, e pela vitria deste ltimo sobre os irmos, conduzindo novamente unificao do reino logo em 1073, no nos permite admitir a individualizao de Portucale como unidade administrativa pelo menos at governao do conde D. Henrique, como adiante se ver74 Mesmo em poca posterior, vemos salientado o carcter diocesano do territrio atravs das expresses territrio Ecclesie Portugalensis75, ou ainda diocesi Portugal76.
72 Cfr. MATTOSO (1985), p. 30-35. 73Cfr. BARROCA (1990/1991), p. 115-116. 74 Na verdade, a poca do governo do Conde D.Henrique constitui uma excepo no que respeita ao sentido atribuvel expresso territrio Portucalense patente na diplomtica. Apesar de considerarmos que na maior parte das vezes a documentao se refere ao territrio diocesano, o facto que em cinco diplomas, cronologicamente balizados entre 1102 e 1109, o uso da expresso reflecte o cariz administrativo do territrio, j que as referncias ao Condado e a D. Henrique so explcitas. Mais adiante trataremos de novo esta questo, mas a ttulo de exemplo veja-se por agora as referncias em que se localiza o Mosteiro de Pao de Sousa no territrio Portucalense, referindo-se na frmula final "(...) et comit nostro Enrriquiz portucalense (...)", no LTPS 46, de 1102, ou ainda '(...) Enricho imperator Portucalense (...)", no de LTPS 145, de 1109. 75 Mem., Provas 30, com data crtica entre 1128-1130, j que subscreve a doao o bispo de Coimbra D. Bernardo, e Mem Moniz encontra-se ainda casado com a primeira mulher, Goina Mendes. 76 LTPS 20, de 1152.
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Por outro lado, como sublinhou Mrio Barroca, se podemos ver a desagregao do territrio de Angia a partir da emergncia das terras que surgiram no seu espao, este processo no ter sido "fruto de uma medida nica do poder real, que institusse num mesmo momento a totalidade dos territrios"77. Tendo em conta o sucesso da criao e implementao daquele territrio, no seria de esperar que o seu desaparecimento na documentao fosse repentino, mesmo com a reorganizao da rede administrativa. O facto do territrio de Angia continuar a ser referido nos documentos at ao final do sculo XII, datando a ltima notcia de 118578, demonstra a importncia que esta diviso manteve, embora a questo encerre fortes dvidas quanto continuidade do seu funcionamento como unidade administrativa em simultneo com as terras.
Parece-nos mais plausvel que a permanncia de Angia na documentao no derive to-somente de simples revivalismos da tradio diplomtica (pelo menos at ao terceiro quartel do sculo XI), mas seja uma consequncia lgica do longo e descontnuo processo de formao das terras, que tudo indica no ter tido o mesmo sucesso de implementao no terreno que teve a criao do territrio angico. O que se constata na documentao do sculo XI que no aparece uma nica referncia que simultaneamente mencione uma das terras emergentes no seu espao e o territrio Angia. O que na prtica se verifica o uso alternativo das referncias administrativas utilizadas para localizao geogrfica das propriedades, isto , localizando-as em relao ao antigo territrio, ou em relao nova terra, muitas vezes em ambos os casos, com enquadramento eclesistico da diocese Portucalense, mas sem nunca referirem ambas as unidades em conjunto.
A anlise do Quadro II permite-nos verificar que o nmero de referncias a Angia aumenta na dcada de oitenta do sculo XI, diminuindo substancialmente a partir desse perodo. No entanto, h um aspecto decisivo a ter em conta na abordagem interpretativa deste quadro, pois a anlise da documentao mostra-nos que estas referncias so na sua grande maioria, relativas localizao dos principais mosteiros do territrio, e no respeitam, portanto, situao das propriedades doadas. De destacar ainda que uma das referncias relativas ao perodo compreendido entre 1111-1120 no menciona o territrio Angia, mas sim a
77 Cfr. BARROCA (1990/1991), p. 115. 78 LTPS 141 - "(...) villa Auvol (...) territrio Ainega discurrente rivulo de Latrones territrio Portugal (...)".
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sede que o presidiu, localizando-se a igreja de S. Miguel de Entre-os-Rios ad
radicem castro Anegie79.
QUADRO II - REFERNCIAS A ANGIA ENTRE 1061-1190
Anos Nmero total de referncias
Localizao de mosteiros
Localizao de propriedades
1061-1070 4 - 4
1071-1080 7 5 2
1081-1090 14 8 6
1091 -1100 4 3 1
1101-1110 2 1 1
1111 -1120 4 - -
1121-1130 1 - -
1131-1140 - - -
1141-1150 - - -
1151-1160 - - -
1161 -1170 - - -
1171-1180 2 2 -
1181 -1190 1 - 1
Na realidade, como se pode observar, o nmero total de referncias a Angia neste perodo ganha um novo sentido, j que se torna evidente que a permanncia do territrio na documentao a partir dos anos setenta do sculo XI reflexo do mimetismo das frmulas notariais nos scriptoria dos mosteiros de Cte, de Pao de Sousa e, sobretudo, de Alpendurada80. Torna-se claro que as menes ao territrio deixam de ser sistemticas na localizao de propriedades a partir das dcadas de oitenta e noventa do sculo XI, apesar de permanecerem como ponto de referncia na localizao dos mosteiros que estiveram no seu mbito, havendo j para o sculo
78DMP, DP IV 132, de 1120. 80 As referncias do sculo XI que dizem respeito s localizaes dos mosteiros apresentadas no Quadro II repartem-se da seguinte forma: na dcada de setenta, duas referem-se aos mosteiros de Cte e de Pao de Sousa, sendo as restantes relativas ao mosteiro de Alpendurada; das referncias da dcada de oitenta, duas concernem a Pao de Sousa e seis a Alpendurada, respeitando tambm a este ltimo a totalidade das referncias relativas dcada de noventa. Das localizaes do sculo XII, uma diz respeito ao mosteiro de Alpendurada sendo ambas as referncias da dcada de setenta relativas localizao de Pao de Sousa.
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XII exemplos de menes conjuntas, num mesmo diploma, ao antigo territrio e s
terras.
QUADRO l - REFERNCIAS S TERRAS DO TERRITRIO ANGIA ENTRE 1061-1190
Anos Aguiar Penafiel Benviver Portocarreiro Paiva Sanfins
1061-1070 1 2 1 - 2 -
1071-1080 - - - - - -
1081-1090 1 1 - - 1 2
1091-1100 - 2 - - 2 2
1101-1110 - 2 1 2 4
1111-1120 - 1 - 1 5
1121-1130 1 1 - 4 3
1131-1140 1 1 1 - 1
1141-1150 - 2 - 1 -
1151-1160 - 1 - - - -
1161-1170 1 1 - - - -
1171-1180 1 2 - - 5 -
1181-1190 - 1 - - - -
Nesta perspectiva, consideramos que as referncias a Angia que surgem ainda nesta altura no devem ser entendidas como relativas a uma unidade administrativa vigente, mas encaradas como um enquadramento geogrfico necessrio, tradicionalmente reconhecido e utilizado pela diplomtica monstica, sendo decorrente de uma dbil difuso e implementao da nova organizao administrativa no terreno. No Quadro III pode observar-se como vai simultaneamente aumentando o nmero de referncias s terras que surgiram no
81 A ttulo de exemplo deste facto pode referir-se o testamento de Paio Soares "Mouro" ao Mosteiro de Pao de Sousa , de 1177, em que este localizado no territrio Anegie, ao passo que os bens doados so referidos em relao ferram Pena Fiel (LTPS 134).
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espao daquele territrio, precisamente a partir da dcada de noventa do sculo
XI82.
Assim, podemos concluir que o desaparecimento de Angia est intimamente ligado criao das terras emergentes no seu espao, e que este processo, iniciado pouco antes da dcada de sessenta do sculo XI, ter tido lugar numa poca de genrica transformao estrutural cuja fase de afirmao e implementao definitiva cronologicamente atribuvel ltima dcada da centria.
82 Na medida em que no presente estudo foi consultada apenas a documentao que se encontra publicada, e uma vez que a srie dos Documentos Medievais Portugueses no vai alm, no que toca diplomtica particular e monstica, do ano de 1123, temos conscincia de que este quadro no pode traduzir a realidade do sculo XII. Assim, esta abordagem pretende ser apenas uma amostra, espelhando o panorama possvel com base nos poucos dados disponveis. No Quadro III esto referidas unicamente as ferras que se formaram na sua totalidade dentro do espao geogrfico do territrio de Angia. Por essa razo no so aqui mencionadas as terras de Arouca e Baio, j que somente uma pequena parte das suas reas saiu do mbito daquele territrio. Considerou-se igualmente o conjunto das referncias relativas ao territrio Vargano e terra de Sanfins na coluna respectiva, dada a aparente sinonmia entre ambas as designaes para o mesmo espao geogrfico durante o perodo em anlise.
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3 - Penafidel de Canas: da terra ao julgado
Como j tivemos oportunidade de referir, no terceiro quartel do sculo XI
que vemos surgir as primeiras referncias s terras como novas divises territoriais
e administrativas, certamente criadas alguns anos antes da dcada de sessenta,
fruto da aco conquistadora e organizativa de Fernando Magno. Estas novas
unidades reflectem tanto a ascenso dos infanes, como a fragmentao das
grandes divises corporizadas nas civitates e territoria, encetando assim uma nova
fase de gesto e ocupao do espao, decorrente do novo flego da Reconquista e
do alargamento da fronteira.
A morte do monarca em finais de 1065, e a consequente diviso do reino
pelos seus trs filhos, veio trazer algumas alteraes administrao do territrio
peninsular. Nos parcos anos de coexistncia dos trs reinos (Leo, Castela e Galiza)
at reunificao do territrio em 1073, sob a coroa de Afonso VI, o ambiente vivido
dentro das fronteiras crists foi dominado por lutas internas pela tomada de poder83.
A guerra da Reconquista deixou nesta altura de ser a prioridade dos monarcas da
dinastia navarra, mais concentrados na posse do trono hispnico, voltando a
conquista de territrio ao Islo a centrar as suas atenes apenas no ltimo quartel
do sculo XI.
Este perodo de transio de governos , no entanto, extremamente
importante para o territrio de Portugal na medida em que corresponde, como se
sabe, ao perodo de colapso do primeiro condado e da nobreza condal portucalense.
A insurreio do conde Nuno Mendes contra o seu novo monarca, Garcia, veio
marcar uma mudana estrutural na poltica e na sociedade do Noroeste peninsular,
dando origem consolidao da hegemonia crescente dos infanes locais. A partir
de agora, e apesar das vicissitudes polticas decorrentes das lutas entre Garcia,
Sancho II e Afonso VI, as relaes de dependncia desta classe com a coroa
passam a ser cada vez mais directas, atravs do exerccio do poder delegado nas
tenncias, agora sem qualquer "filtragem" das linhagens condais, na sequncia da
poltica j iniciada por Fernando Magno.
No conhecemos, como j foi dito, qualquer governador do territrio de
Angia ou Penafiel anterior a Garcia Moniz, referido a partir 104784, mas a
Cfr. MATTOSO (1997), vol. I, p. 492-496. PMH, DC 357.
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importncia crescente dos infanes parece atestada pelo exemplo deste ltimo,
que vemos a marcar presena na corte de Fernando Magno, encontrando-o como
signatrio da carta de doao ao Mosteiro de Guimares feita pelo monarca em
104985
No , contudo, muito claro se Garcia Moniz tenente do territrio de Angia
ou da terra de Penafiel de Canas, j que aparece referido em diversos documentos
relativos tanto a Penafiel como a outras terras que se inserem administrativamente
no mbito de Angia. Apesar da primeira meno terra de Penafiel datar apenas
de 106486, parece-nos lgico admitir que o seu aparecimento como unidade
administrativa deva ser alguns anos anterior quela data de referncia, o que
atestado pelo facto de o documento de 1047 dizer explicitamente que os litigantes
em causa se deslocaram a Penafiel de Canas, certamente ao castelo cabea-de-
terra, que entretanto deve ter assumido uma posio de destaque relativamente ao
velho oppidum da Eja, para se apresentarem perante aquele tenente87. No entanto,
Garcia Moniz referido em mais cinco documentos relacionados com doaes de
propriedades no territrio de Angia, concretamente aos mosteiros de Soalhes,
Arouca e Alpendurada88, o que parece indicar que inicialmente governaria todo
aquele territrio.
Parece-nos, por isso, plausvel admitir que Garcia Moniz tenha sido
encarregue da administrao contnua do territrio angico entre 1047 e 1061,
assumindo a tenncia de vrias das terras entretanto emergentes no seu mbito,
fazendo talvez a transio para a nova diviso territorial e administrativa daquele
espao. Concorre para esta hiptese o facto de no termos encontrado para o
85 PMH, DC 372, de 1049: "(...) - Garsea moninoz manu mea conf. - (...)". ffiPMH, DC 441. 87 Este documento constitui a primeira referncia a Garcia Moniz, e concerne a contenda entre os herdeiros da Igreja de Santa Maria da Eja, por ele arbitrada no castelo de Penafiel, conforme refere o texto: "(...) fuimus in penafidel de kanas ad ante domno garda (...)" [PMH, DC 357]. Antnio Lima avanou j com a hiptese do territrio Angia se encontrar fragmentado em 1047, embora consideremos que este processo no ter sido assim to linear, e que o documento em questo traduz apenas, nesta fase, o abandono do castelo da Eja e a transferncia da sede adminstrativa para Oldres [LIMA (1993), vol. I, p. 53]. Mais significativo no contexto da estruturao da ferra de Penafiel parece-nos ser o documento de 1059 dos PMH, DC 420, em que provavelmente j se refere o castelo atravs da expresso *(...) adradice Penafidel villa Canas (...)".
Nomeadamente, nos seguintes documentos: PMH, DC 391, de 1054: "(...) in villa fandilanes subtus mons genestazolum discurrente rivulo dorii terridorio angia (...) Et fuit karta facta in temporibus garcia moniz et episcopus sisnandus (...)"; PMH, DC 421, de 1059: "(...) in iudicato a domino terre. Ego Garcia Muniz in hanc annicio manus mea roboro.(...)"; PMH, DC 423, de 1060: "(...) in presentia garsea meneonis (...)"; PMH, DC 428, de 1061: "(...) in villa rial teridorium angia subtus mons serra sikca discurremtem ribulo sardoria flumen durio (...) et in presentia garseas prolis moneonis (...)"; PMH, DC 449, de 1065: "(...) inter durium et tamize prope durium ad radix mons aradus iusta lozello villar que vocitant capanellas (...) baseilica vogavolo sancti iohani et sancta columbe et sancte eugenie sancti romani et sacti sabatoris. In ipsius tempus regnandi estis fredenandus rex et episcopus sisinandus episcopus in presentia garsea monioniz. (...)".
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mesmo perodo qualquer meno a eventuais tenentes das outras terras que
surgiram no territrio de Angia.
Como j referimos, a transio administrativa no se operou de forma
contnua e homognea em todos os locais, e certamente que a delimitao de
fronteiras entre as vrias terras no seria uma questo de simples trato, j que "a
prpria noo de fronteira entre os diferentes territrios deveria ser um conceito
muito difuso"89. Mas apesar de tudo, a delimitao das terras comea a ser patente
na documentao que lhes faz referncia logo partir do terceiro quartel do sculo XI.
As referncias disponveis em relao terra de Penafiel e s reas vizinhas,
onde se mencionam ncleos prximos dos limites extremos das mesmas
(concretamente as terras de Paiva, Aguiar, Lousada, Portocarreiro e Benviver),
permitem delimitar com alguma segurana as balizas geogrficas daquela nos
sculos XI e XII. Para o sculo XI existem j algumas informaes relativas a
ncleos de povoamento e propriedades perfeitamente localizados e enquadrados
nas respectivas terras. Porm, a leitura do seu mbito toma-se evidentemente mais
clara se analisarmos os seus limites tambm com base na documentao do sculo
XII, dada a pouca informao explcita sobre estas novas unidades durante as
ltimas dcadas da centria precedente.
Das referncias que tivemos em conta na cartografia dos limites da terra de
Penafiel, e da confrontao com as referncias s terras vizinhas, salienta-se o
carcter extraordinariamente estvel dos mesmos, patente no Mapa II. Na verdade,
verifica-se que as linhas de fronteira foram grosso modo mantidas at hoje, sendo a
configurao fisiogrfica genrica do territrio muito semelhante quela da poca da
sua gnese.
Pela documentao relativa ao sculo XI cartografada no Mapa II e que refere
explicitamente a terra de Penafiel, constata-se que integravam aquela os lugares de
Canas (S.Tom, Rans), Galegos, Fonte Arcada, Escariz (Lagares), Vrzea
(Pinheiro), Lordelo (Paredes), Ceidoneses (Pinheiro), Irivo, Figueira, Fafies
(Galegos), Vilar (Galegos), Vila Me (Capela) e o monasterium petn30. Sobre este
89 BARROCA (1990-1991), p. 115. 90 Apenas para o sculo XI, vejam-se os seguintes documentos: PMH, DC 457, de 1047: "(.-.) ' n penafidel de kanas (...)"; PMH, DC 441, de 1064: "(...) in terra de penafidel una quinta inter fonte archata et crestimir (...)"; PMH, DC 451, de 1066: "(.-.) in terra de pennafidele monasterio petri (...)"; PMH, DC 491, de 1070: "(...) in valle de pennafidel monasterium quos vocitant petri (...) villa varcena (...) villa laurdelo (...)", aqui referido o vale certamente com o sentido de terra; PMH DC 643 de 1085: "(...) villa de Eribio que est in terra de Penafiel inter Sausa et Kavalunum (...)";
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ltimo temos fortes dvidas que se situe na freguesia de Valpedre, como afirma Jos
Mattoso, e cremos que as referncias em questo podem respeitar ao mosteiro de
Lardosa (Rans), fundado por Muzara e Zamora em 882, e no a uma eventual
instituio monstica que possa ter existido em Valpedre, conforme demonstraremos
mais frente91.
As informaes relativas s terras vizinhas ajudam igualmente definio
mais segura do mbito da terra de Penafiel. Verifica-se assim que as referncias de
propriedades localizadas na margem direita do Sousa se integram na terra de
Aguiar, as da margem Sul do Douro na de Paiva, e as da margem esquerda do
Tmega pertencem ao territrio de Benviver92.
Beneficiando do facto de se localizar numa rea de interflvio, os limites
territoriais de Penafiel desde cedo se definiram a partir do curso dos rios Douro e
Tmega, que constituem at hoje as fronteiras naturais a Sul e parcialmente a
Nascente. Os afluentes mais prximos do primeiro, o Rio Mau e o Sousa, definem
igualmente limites do territrio penafidelense, delimitando-o em quase toda a sua
fronteira Poente, a par da cumeada da Serra de Santo Antoninho. Uma pequena
parcela da terra, correspondente freguesia de Novelas, ultrapassa porm a
margem esquerda do Sousa, provavelmente a partir da foz do Mezio, j desde o
sculo X93. O extremo Nordeste da terra de Penafiel no claramente definido por
um qualquer curso de gua estruturante, mas sim pelas cumeadas das elevaes de
Croa e Perafita, que a separam de Lousada e da futura terra de Santa Cruz,
aproveitando-se mesmo assim o Ribeiro dos Pedreiros para demarcao dos limites
entre Penafiel e a terra de Portocarreiro.
O aproveitamento do curso dos rios e de outras linhas de gua mais
pequenas para delimitao das fronteiras territoriais facilitou desta forma a rpida
definio dos limites administrativos de Penafiel e das terras envolventes, no tendo
sofrido grandes transformaes ao longo do tempo, como se pode ver no Mapa III. O
que de facto se verifica que a imagem que temos de toda esta zona para o final do
LTPS 05, anterior a 1095: "(...) in terra de Pena Fiel in villa Figuiera (...)"; LTPS 13, de 1096: "(...) in terra de Pena Fiel in villa de Vilar inter Galegos et Fafilanes, et in Villa Mediana inter Olivaria et Figueira (...)". Salientamos ainda que o PMH, DC 457 no refere directamente a terra de Penafiel, mas sim o castelo onde Garcia Moniz recebe os herdeiros da Igreja de Santa Maria, designado por penafdel de kanas porque situado perto do lugar de S. Tom de Canas, integrando provavelmente a rea desta freguesia. 51 Veja-se a propsito MATTOSO (1968), p. 51, 75 e 147-149. 92 Vejam-se as referncias enumeradas na legenda do Mapa II. 93 Cfr. PMH, DC 76, se aceitarmos a interpretao de Domingos Moreira na atribuio da Igreja de S. Salvador referida no documento como sendo a de Novelas. MOREIRA (1985-1986), p. 149-150, e (1989-1990), p. 14.
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sculo XI se confirma em 1258, constatando-se que a rea dos julgados entretanto
criados corresponde, na maioria dos casos, aos limites territoriais das terras. De
facto, a nica alterao que se verifica consiste na criao dos julgados de Santa
Cruz e Melres. A delimitao deste ltimo reveste-se de particular interesse, pois
define claramente a fronteira Sudoeste em relao ao julgado de Penafiel, embora
s tenhamos conseguido identificar alguns dos topnimos mencionados, que
cartografmos no Mapa III94.
A forma de administrao do territrio atravs da delegao de competncias
nos tenentes parece, porm, ter sofrido alguma alterao durante o governo do
conde D. Henrique no sentido de se vincar a autoridade e supremacia deste. Se
durante o perodo de pleno funcionamento do territrio Anegia aparentemente no
houve uma forte subordinao dos tenentes em relao aos primeiros condes de
Portucale, como atrs admitimos, o que se verifica agora uma centralizao de
poder por parte do conde francs. Na verdade, constata-se pela documentao
consultada que a partir do momento em que o conde de Borgonha toma posse do
Condado Portucalense parece chamar a si o poder e as rdeas da estrutura
administrativa local, pelo menos em relao rea aqui em anlise.
Esta centralizao por parte do conde reflecte-se fundamentalmente, no caso
concreto da rea de Penafiel, em trs aspectos. Por um lado, coincide com o facto
de no haver referncia a quaisquer governadores das terras sadas do mbito da
Angia no perodo compreendido entre 1096 e 1107, quando sabemos que Henrique
recebe o Condado j dividido naquelas unidades e que as mesmas esto por essa
altura j estruturadas e bastante implementadas95. A nica excepo a terra de
Arouca, governada por Egas Gosendes entre 1098 e 110096, que foi tambm tenente
PMH, Inq., p. 626: "(...) judicatus de Meteres (...) in Vilarinus; et in Sauti et in Lavercos (...) in Carvaleira (...) Interrogatus de terminis ipsius ville, dixit quod incipitur in Sovereira de Campelo; deinde ad xaxeum subtus Revordelo; deinde