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O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS DO NORDESTE PARAENSE COMO REMANESCENTES

DE QUILOMBO

Rosiete Marcos SantanaUniversidade de São Paulo

[email protected]

ResumoVisando expor algumas considerações sobre o processo de reconhecimento de

diversas comunidades rurais como comunidades de “remanescentes” de quilombo, este artigo busca articular 3 momentos: em um primeiro, busca expor o entendimento acerca do conceito de território que norteia nossa análise. Um segundo se inicia com uma breve história da presença negra na Amazônia. Em um terceiro, mostra a luta e as conquistas empreendidas atualmente pelos quilombolas e as estratégias utilizadas para a titulação de suas terras. Esta luta é produto da necessidade de garantir a permanência e o acesso à terra e de seus recursos, que possibilitam a reprodução e recriação sócio-econômica e cultural destes grupos. Palavras-chave: Comunidades Negras Rurais - Território - Conflito.

THE PROCESS OF RECOGNIZING BLACK RURAL COMMUNITIES IN THE NORTHEAST OF THE STATE OF PARÁ AS REMANESCENTS OF

QUILOMBO

Abstract

This article aims to expose some considerations about the process of recognition of various rural communities as “remaining” of quilombos. In the first part we expose our understanding of the concept of territory which will guide our analysis. The second part begins with a brief history of the black people presence in Amazon. In the third part, we expose the struggles and the achievements undertaken by the quilombolas and the strategies used for the titling of their lands. This struggle is a product of the necessity to guarantee the permanency and access to land and to its resources, which enables the social, economical and cultural reproduction and recreation of these groups.

Key-words: Black Rural Communities – Territory - Conflict

IntroduçãoO processo de reconhecimento de diversas comunidades rurais no nordeste do

Pará como comunidades de “remanescentes” de quilombo tem trazido uma série de questões a serem discutidas. Questões como a forma e o tempo de ocupação de seus territórios que legitimem esse reconhecimento, os diversos sistemas de uso comum que garantem a permanência destes grupos na terra, o significado da regularização de suas terras, etc. Para discutirmos um pouco mais sobre estas e outras questões, este artigo está dividido em três momentos: o primeiro, Território e Identidade, trata da relação entre esses dois conceitos na medida em que essa relação está muito presente nos discursos das lideranças que defendem o território quilombola. O segundo, cujo título é “De quilombos de ontem às comunidades negras rurais de hoje”, vai tratar sobre a questão da presença negra na Amazônia colonial e mostrar como foram se constituindo

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as que hoje são denominadas comunidades quilombolas. Em um terceiro, sob o título “A luta pelo território quilombola”, veremos algumas informações sobre a regularização das terras quilombolas no estado do Pará e como estas comunidades quilombolas, mais especificamente da microrregião de Tomé-Açu, estão se articulando em busca do reconhecimento de suas terras, além dos conflitos advindos disso.

1. Território e IdentidadePara pensar a questão dos territórios quilombolas vejo que seja pertinente aqui

esclarecer a que concepção de território estamos nos referindo. De acordo com Raffestin (1993), que vê o território1 como um trunfo particular do poder, é essencial que possamos compreender que o espaço é anterior ao território. Este é formado a partir daquele por meio de uma ação que é conduzida por um ator que ele denomina de sintagmático, ou seja, aquele que realiza um programa em qualquer nível. Ainda segundo este autor, a apropriação do espaço pode ser de forma concreta ou abstrata, e ao fazê-la o ator “territorializa”2 o espaço. Nessa perspectiva o território “é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 144) e o espaço “é a realidade material preexistente a qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir do momento em que um ator manifeste a intenção de dele se apoderar” (RAFFESTIN, 1993, p. 144). O território é, para o autor, uma produção a partir do espaço.

Segundo Raffestin (1993), todo projeto é sustentado tanto por um conhecimento quanto por uma prática que supõem a posse de códigos, de sistemas sêmicos pelos quais se realizam as objetivações do espaço e que são marcados pelos modos de produção. “Toda prática espacial, mesmo embrionária, induzida por um sistema de ações ou de comportamentos se traduz por uma ‘produção territorial’ que faz intervir tessitura, nó e rede” (RAFFESTIN, 1993, p. 150). Neste processo de produção territorial se realiza uma diferenciação funcional comandada pelo princípio hierárquico dos sistemas de tessituras, de nós e de redes

“que contribui para ordenar o território segundo a importância dada

pelos indivíduos e/ou grupos às suas diversas ações.(...) e permitem assegura o controle sobre aquilo que pode ser

distribuído, alocado e/ou possuído. Permitem ainda impor e manter uma ou várias ordens. Enfim, permitem realizar a integração e a coesão dos territórios. Esses sistemas constituem o invólucro no qual se originam as relações de poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 151).

Sobre esta interpretação de Raffestin, Souza (2003) tece algumas críticas: Raffestin “praticamente reduz espaço ao espaço natural, enquanto que território de fato torna-se, automaticamente, quase que sinônimo de espaço social” (2003, p. 97). Para ele, Reffestin não discerniu que o território não é o espaço social em si, mas um campo de forças, “as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial” (2003, p. 97)

Souza esclarece que o exercício do poder pode depender muito diretamente da organização espacial, das formas espaciais que são trunfos espaciais na defesa do território e não o território em si.

1 Haesbaert (2004) prefere adotar “materialidade do espaço” ao invés de “território”, se reportando à crítica feita por Souza (2003) ao conceito de território de Raffestin (1993).2 Aspas do autor.

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Haesbaert (2004) chama a atenção para o cuidado que devemos ter para não cairmos na “sociologização” ou na “historicização” de maneira que possa ocorrer uma desgeografização do território.

Para Haesbaert o território é relacional no sentido de ser definido sempre dentro de um conjunto de relações histórico-sociais e inclui uma relação complexa entre os processos sociais e o espaço material. O autor frisa que por ser relacional o território é movimento, fluidez, interconexão, num sentido mais amplo, temporalidade. Bem ao contrário da percepção que ele considera simplista do território como enraizamento, estabilidade, delimitação e/ou fronteira. Neste sentido é importante a historicidade do território para diferenciá-lo em cada período histórico.

Concebendo então, o território nesta perspectiva relacional, ou seja, valorizando as relações e os processos, Haesbaert (2007) também destaca que as relações de que devemos falar, são relações de poder. Um poder, numa interpretação foucaultiana, que se estende por toda a sociedade, desde microterritórios até as redes planetárias. Este poder pode ser centralizado e identificável, mas também é difuso, multifacetado e “rizomático”, como diz Haesbaert citando Deleuze e Guattari, visível e “material”, invisível e simbólico. É deste jogo que se constrói o território.

Estas relações de poder se imprimem no espaço e dão a configuração territorial necessária para a produção e reprodução das condições de vida para os diversos grupos sociais, e para o próprio exercício do poder. Poder este, que segundo Haesbaert (2007) precisa ser também considerado no seu sentido simbólico em nossas concepções de território.

(...) percebemos o território dentro de uma espécie de continuum desde os territórios mais funcionais e concretos, onde predominam processo que Lefebvre denomina de “dominação”, até os territórios mais simbólicos, onde predominam dinâmicas efetivas de apropriação (HAESBAERT, 2007, p. 41).

É por meio desta dimensão simbólica do poder e do território que podemos falar

de uma identidade territorial. Fazendo referência a Lévi-Strauss (1977), Haesbaert (2007) salienta que não é possível dissociar por completo a natureza simbólica da identidade de seus referentes mais “objetivos”. “As marcas da identidade não estão inscritas no real (...) os elementos sobre os quais as representações de identidade são construídas são dele selecionadas” (PENNA, 1992, p. 167 apud HAESBAERT, 2007, p. 42). Para o autor, essa seleção está sempre associada a determinadas estratégias sociopolíticas.

Para Woodward (2004, p. 10 apud HAESBAERT, 2007, p. 43) “a construção da identidade é tanto simbólica quanto social (...) está vinculada também a condições sociais e materiais”. Sendo assim, para Haesbaert espaços geográficos mais amplos podem se tornar referenciais simbólicos pelos quais os grupos se reconhecem e afirmam suas identidades e podem dar mais consistência e eficácia ao poder simbólico na construção de identidades. Bernard Poche (1982 apud HAESBAERT, 2007, p. 43) denominou estes referenciais de “espaços de referência identitária”.

Assim, no que estamos denominando aqui de identidades territoriais, escolhem-se (ou, concomitantemente, reconstroem-se) espaços e tempos, geografias e histórias para moldar uma identidade. De modo que os habitantes de um determinado território se reconhecem, de alguma forma, como participantes de um espaço e de uma sociedade comuns (HAESBAERT, 2007, p. 44).

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Na identidade territorial, que também é social, o referencial central é o território, ou num sentido mais amplo, uma fração do espaço geográfico, de acordo com Haesbaert. Somente com esse referencial é que ela se efetiva, pois ele é o elemento central para a identificação e para a ação política do grupo social.

Haesbaert destaca, por exemplo, que a paisagem pode ser um referencial, assim como, citando Santos (1996) o “tempo espacial”. Este pode oferecer referenciais identitários geo-históricos, pois a “densidade histórica” dos lugares pode exercer uma influência relevante.

A identidade territorial imbrica a diferenciação sócio-econômica e cultural dos espaços, as institucionalidades e divisões político-administrativas existentes e os níveis de mobilidade da população, que segundo Haesbaert, esta última vinculada ao incremento de mobilidade espacial é crucial para o entendimento do que ele denomina de “identidades territoriais no e pelo movimento”.

É nesta perspectiva que se torna necessário compreender a atual mobilização dos quilombolas na área estudada.

2. De quilombos de ontem às comunidades negras rurais de hoje Para tratarmos deste momento que vivenciam as diversas comunidades do

nordeste do Pará é preciso resgatarmos um pouco da história da escravidão na Amazônia. Nesta região também havia quilombos, ou mocambos como eram mais conhecidos. Locais isolados, no meio da mata, formados por escravos negros fugidos é a primeira idéia que vem à mente quando se pensa em quilombo. Consagrada pela “História oficial”, essa visão ainda permanece arraigada no senso comum remetendo-nos a um passado remoto de nossa história, ligado exclusivamente ao período no qual houve escravidão no país, o que nos impede de compreender a existência desses grupos hoje na região. Outra visão difundida é a de uma Amazônia bastante "despovoada" no período colonial, com poucos ocupantes brancos em meio às populações indígenas. É importante esclarecer que nem todos os quilombos foram formados a partir de fugas, e nem tão pouco a Amazônia era constituída somente de brancos e índios.

De acordo com Almeida (1987/1988) e Gusmão (1987/1988) (apud SCHMITT, TURATTI e CARVALHO, 2002) os grupos que hoje no Brasil são considerados “remanescentes de quilombo” se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem não só as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.

Segundo Vergolino-Henry & Figueiredo (1990), quanto à presença do negro, de fato, ela foi menos expressiva em termos quantitativos quando comparada a outras regiões do país. Contudo, o papel dos escravos na criação de formas originais de vida e de adaptação às condições de vida na Amazônia não foi menor. As marcas dessas formas de vida e das lutas contra a escravidão estão presentes até hoje na memória dos chamados “remanescentes” de quilombo.

Foi ao longo dos séculos XVIII e XIX que se formou a maior parte dos quilombos no atual Estado do Pará. Ao fugir para esses aldeamentos, o escravo conquistava a garantia de autonomia e de liberdade de ação. A desestabilização político-econômica ajudou nesse processo. A decadência dos engenhos de cana-de-açúcar, por exemplo, facilitou a fuga dos escravos. Além disso, após a independência do Brasil, as crises políticas em Belém, capital da província, possibilitaram a fuga em massa dos escravos que viviam na área urbana. Os quilombos passaram a ser tão numerosos que,

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não raro, a imprensa alegava que havia mais negros morando nestes espaços do que em cativeiros. A destruição dos quilombos, portanto, passou a ser uma prioridade do governo. (Vergolino-Henry & Figueiredo, 1990)

De acordo com estes autores, para o período de 1733 a 1815 foram encontrados vários registros de mocambos na região, como no Amapá: nos rios Uanará-Peru, Flechal, Araguari; no Pará: no rio Acará, na ilha do Marajó (rios Anajás e dos Macacos), nos municípios de Oeiras, Portel, Santarém (rio Amazonas – Tapajós), Cametá e Baião (no rio Tocantins); e no Amazonas (no rio Negro). De acordo com Acevedo Marin & Castro (2005) também às margens de alguns rios, como o Bujaru, na antiga região guajarina, encontramos alguns dados históricos que retratam aspectos econômicos e populacionais dos grupos que ali viviam, demonstrando a importância da população negra no conjunto da sociedade.

A ocupação das margens do rio Bujaru aconteceu no final do séc. XVIII por meio de sesmarias concedidas entre os anos de 1724 e 1824, de apossamentos e de heranças. Entre esses ocupantes estavam grandes e médios proprietários, pequenos sesmeiros, sitiantes sem-terra, quilombolas e índios destribalizados (CASTRO, 2003 apud MENDES, 2006). Os grupos de escravos fugitivos e ex-escravos ocuparam também áreas interiores a essas margens que são cortadas por furos e igarapés. Além dessas características da ocupação, temos a apropriação coletiva das terras por pequenos grupos como estratégia grupal de defesa do território e reprodução social, onde foi desenvolvida a agricultura e o extrativismo. Tivemos ainda diversos sistemas de uso comum, que segundo Almeida (1989, p. 170), tratando das áreas de colonização antiga, possuem “certos aspectos fundamentais comuns, tanto de natureza histórica, quanto relativos ao tipo de agricultura desenvolvida”. Estes grupos se consolidaram, construíram suas territorialidades e se configuram também hoje como grupos de resistência à expropriação.

Foi neste processo de territorialização que se constituíram as atuais comunidades da região nordeste do Pará denominadas de “remanescentes” de quilombo e é nele que ganha sentido a demarcação de suas terras de maneira coletiva.

3. A luta pelo território quilombolaComo vimos os quilombos não pertencem somente ao nosso passado escravista.

Tampouco se configuram como comunidades isoladas, no tempo e no espaço, sem qualquer participação em nossa estrutura social. Ao contrário, as mais de 240 comunidades quilombolas espalhadas pelo Pará mantém-se vivas e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras apoiadas no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.”

De acordo com Trindade (2004, p. 2), na década de 80 iniciou-se no Pará um mapeamento das comunidades negras rurais pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA). Este mapeamento foi feito a partir do que o movimento negro considerava "povoações constituídas eminentemente de pessoas negras". Em 1998, estes estudos passaram para a responsabilidade do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), que somente na primeira fase do projeto (1998-2000) identificou cerca de 129 comunidades negras rurais. A partir de 2000 foram realizadas novas pesquisas por meio de um convénio realizado entre o Programa Raízes, do Governo do Estado do Pará e a Universidade Federal do Pará (UFPA).

Algumas comunidades do Baixo Amazonas desde 1988 já se encontravam

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para debater sua realidade por meio dos Encontros de Raízes Negras. A iniciativa desses encontros surgiu dos integrantes da Associação Cultural de Óbidos (ACOB), criada em 1987. Em 1998 ocorreu o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Estado do Pará, em Belém, sendo organizado pelo CEDENPA e pela Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) com o apoio do NAEA, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto de Terras do Pará (ITERPA).

Fruto dessa luta pela terra, no Pará aconteceu a primeira titulação de uma terra de quilombo no Brasil. Em 20 de novembro de 1995, a comunidade quilombola de Boa Vista, situada no município de Oriximiná, recebeu do INCRA o título de propriedade de seu território com 1.125 hectares. Essa titulação foi um marco que consolidou o entendimento de que o artigo 68 é auto-aplicável e que a regularização desta categoria de terras deve ser coletiva, respeitando a forma como os quilombolas concebem e ocupam os seus territórios.

Desde 1998, o Pará conta com uma legislação que regulamenta o processo de titulação das terras quilombolas. Inovadora, essa legislação garante o direito à auto-identificação das comunidades sem a necessidade do laudo antropológico - algo que o governo federal só veio a reconhecer em 2003. Por conta disso, em 2005, o Estado do Pará concentrava mais da metade (58%) da dimensão total de terras quilombolas tituladas do país. São 27 territórios, ocupados por 79 comunidades (com cerca de 3.700 famílias), que somam 527.139 hectares.

Neste processo de lutas, os quilombolas paraenses contaram com o apoio de várias organizações, como o CEDENPA, a Comissão Pastoral da Terra - Pará (CPT), a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (FETAGRI) e do NAEA/UFPA. É um processo que também reúne as comunidades dos municípios de Bujaru e Concórdia do Pará, no nordeste paraense, dois municípios que têm em comum a história de ocupação de suas terras, laços de parentesco, além das fortes tradições culturais e religiosas.

Atualmente, estudos em comunidades negras rurais na Amazônia, como os de Acevedo Marin & Castro (1998; 2004; 2005) têm demonstrado que o passado de escravidão na região Amazônica foi marcado pela resistência e pela organização de um campesinato negro que possui uma forte identificação com o território. De acordo com Trindade (2004, p. 4) "as chamadas terras de preto ou comunidades 'remanescentes de quilombo' constituem uma especificidade dentro do campesinato brasileiro e conjugam três elementos: terra, etnia e território". Cada grupo possui a sua própria organização sócioterritorial e sua própria forma de apropriação e domínio dos seus diversos espaços. Espaços estes que se diferenciam histórica e geograficamente pelas suas diversas formas de uso e gestão.

Hoje vemos que novamente, como antes, estas comunidades buscam estratégias para continuarem em suas terras. Mas o que as diferenciam das estratégias utilizadas nos séculos XVIII e XIX? Quais as características das ocupações atuais? Como ocorre a apropriação das terras e o uso dos recursos? Ainda existem sistemas de uso comum? Quais as suas características? O que representam? Emergem novos sistemas? Em que contexto se consolidam ou não? E qual o significado do processo de regularização dos territórios quilombolas para a territorialidade dos diversos grupos envolvidos?

Estas são questões pertinentes para discutirmos a territorialidade das diversas comunidades hoje consideradas “remanescentes” de quilombo. No caso em estudo, dos municípios de Bujaru e Concórdia do Pará, vemos inclusive em um momento em que a questão que hoje levanta muitos debates é sobre a notícia de que várias comunidades como Ipanena, Dona (Foto 1), Cravo, Jutaí Grande, Jutaí Mirim, dentre outras, foram

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identificadas como “remanescentes” de quilombo em uma área com cerca de 10.838.8738 ha.

Foto1: Comunidade Dona, município de Concórdia do Pará/PA. Rosiete Santana, fev/2008.

A partir desta identificação, estas e outras comunidades iniciaram diversas reuniões entre os moradores e do debate surgiu a necessidade da criação de associações como a Associação Remanescente de Quilombo Nova Esperança de Concórdia do Pará (ARQUINEC) e a Associação Remanescente de Quilombo Oxalá de Bujaru (ARQUIOB) como uma forma de reivindicar junto ao Estado a regularização de suas terras. Outra necessidade que surgiu foi a busca pela construção, por parte de seus moradores, e pelo reconhecimento junto ao Estado, de uma identidade “quilombola”, forjada por uma necessidade da luta pela garantia de suas terras e pela melhoria das condições de vida. Vemos estas necessidades como estratégias que tentam dar unidade à luta em meio a sérias divisões de opinião sobre que programa de titulação aderir: coletiva ou individual.

Surgem, então, conflitos de interesses que vão além do interesse das próprias comunidades, envolvendo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Concórdia do Pará (STR), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o INCRA. São propostas de titulação que não só dividem os moradores das comunidades, como também os técnicos do INCRA. O STR é contra a titulação coletiva, enquanto que as associações (ARQUINEC e a ARQUIOB) e o MPA são favoráveis. Desta forma, outras questões se levantam: o que de fato gera o conflito? Como ele se processa? Quem aceita, quem não aceita, e por que a titulação coletiva? Qual a pertinência do reconhecimento e da titulação coletiva?

Esta é uma divisão que dificulta a regularização das terras na medida em que não se decide em que modalidade se fazer a titulação, possibilitando assim o aumento de um novo problema vivenciado pelas comunidades: a expansão da atividade pecuária e do cultivo do dendê realizado pela empresa Biopalma (Foto 2), o que já vem gerando a expropriação de diversas famílias quilombolas. Esta é uma questão que vem preocupando os moradores, principalmente os que moram no entorno da rodovia PA-140, onde estas atividades estão se expandindo.

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Foto2: Outdoor de divulgação da Empresa Biopalma, município de Concórdia do Pará/PA.

Rosiete Santana, out/2008.

Uma alternativa encontrada por alguns moradores da comunidade Nova Esperança, situada no km 40 da PA-140, foi a busca pelo reconhecimento da terra como território quilombola, já que ela está situada na área identificada como de remanescentes de quilombo. Isto impediu que algumas propriedades fossem vendidas para a empresa de dendê. Várias audiências com a Câmara de Vereadores, prefeitura, STR e a ARQUINEC foram marcadas na sede do município de Concórdia e a decisão foi que caberia cada comunidade decidir que programa de titulação das terras desejaria, ou o de Titulação e Apoio ao Etno-desenvolvimento de Áreas Remanescentes de Quilombos ou o Projeto de Assentamento.

No confronto entre quilombolas e grandes empresas percebemos o quanto os usos dados ao território se contrapõem e conflitam entre si. É o monopólio da terra pelo capital ou a territorialização do capital contra a territorialização quilombola. É a terra de negócio contra a terra de trabalho. São confrontos que engendram uma série de situações que colaboram para a expropriação ou/e para a luta contra a expropriação do homem do campo.

De acordo com que vimos em campo, a ameaça de expropriação algumas vezes gera novas práticas coletivas, que podem ser temporárias ou mais consolidadas, que possuem um diferencial das práticas do séc. XVIII e XIX, pois não emergem de um contexto de crise econômica e falência dos grandes empreendimentos no campo, e sim da expansão dos mesmos. Emergem num cenário em que o rio e o igarapé não são mais os únicos elementos que direcionam a ocupação do território, mas também as estradas. Muitas das comunidades da área em estudo como Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nova Esperança, Curuperezinho, etc. não são ribeirinhas e foram formadas na segunda metade do século XX, quando foi construída a PA-140. Emergem num cenário em que o sistema de uso comum, a propriedade coletiva tentam se restabelecer, apesar do acesso à terra ser cada vez mais pela compra e venda.

Segundo Almeida (1989), estas comunidades, que também são denominadas de terras de preto, caracterizam-se, muitas delas, por um sistema de uso comum dos recursos básicos, ou seja, o controle dos recursos não é exercido livre e individualmente por um grupo ou um membro do grupo. Para o autor, estes sistemas que persistem até hoje representam produtos de antagonismos e tensões que são peculiares ao próprio desenvolvimento do capitalismo, assim como se constituem em modalidades de apropriação da terra que se desdobram de forma paradoxal, marginal e concomitante ao sistema dominante. Segundo o autor (p. 170), “emergiram enquanto artifício de autodefesa e busca de alternativa de diferentes segmentos camponeses, para

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assegurarem suas condições materiais de existência, em conjuntura de crise econômica”. Consolidaram-se, notadamente em regiões periféricas, em meio a muitos conflitos, num momento em que fica enfraquecido e debilitado o poderio do latifúndio sobre populações historicamente submissas (indígenas, escravos e agregados).

Para Almeida,

(...) tornaram-se formas estáveis de acesso e manutenção da terra, que foram assimiladas, sobretudo, nas relações de circulação. Distribuídas desigual e descontinuamente por inúmeras regiões geográficas sem guardar entre si maiores vínculos, mas quase sempre cumprindo função de abastecimento de gêneros alimentícios (farinha, arroz, feijão) aos aglomerados urbanos regionais. (ALMEIDA, 1989, p. 170)

Sobre estes sistemas, existem duas interpretações possíveis: uma que delineia um quadro de desintegração dos sistemas de posse e de uso comum da terra frente à expansão do capitalismo no campo. De acordo com Almeida (1989), as análises econômicas consideram que se trata de formas atrasadas que desaparecerão, sendo vistas como vestígios de um passado medieval que impede que essas terras fiquem disponíveis no mercado livremente, um obstáculo à apropriação individual da terra, do seu fracionamento.

Outra interpretação compreende que as terras de uso comum como as denominadas terras de santo, terras de negro, terras de índio, fundos de pasto e pasto comum representam o resultado de uma multiplicidade de soluções encontradas por diversos grupos de camponeses para garantirem o seu acesso à terra, principalmente em momentos de conflito. São formas que coexistem com o modo capitalista de produção, dada a sua característica contraditória, desigual e combinada de desenvolvimento. São formas que estão em constante processo de criação e recriação.

Hoje, a posse destas terras quilombolas está sendo reconhecida pelo Estado, por meio de diversos processos de titulação. Mas uma questão a ser colocada é que é uma titulação que impõe um padrão de organização territorial, práticas e tipo de propriedade, no caso a coletiva, ainda não experimentadas por alguns destes grupos ou já perdidas no tempo. Isto, à primeira vista, é um fato que vem gerando conflito entre eles. Segundo Martins (1980), muitos lavradores3 já se encontram subjugados pelo regime da pequena propriedade privada, mas apesar disso, uma titulação coletiva altera o regime de propriedade para impedir que ocorra a concentração da terra em mãos de poucos. Este é, inclusive, um dos argumentos utilizados por alguns moradores das comunidades que defendem a titulação coletiva da terra.

Para esse autor, há uma necessidade de se efetivar uma mudança drástica no regime de propriedade fundiária também para que se reconheçam como legítimos os regimes de propriedade alternativos que têm se defrontado com a expansão da propriedade privada.

É importante ressaltar, segundo Martins (1980), que a luta do lavrador não é a luta pela propriedade. É a luta pelo trabalho de sua família. Ele luta por uma terra de trabalho, seja ela propriedade familiar, propriedade comunitária ou posse.

É importante termos clareza sobre a diferença entre estes tipos de propriedade e a propriedade capitalista para termos clareza do significado do conflito que está presente nestas comunidades estudadas.

Para Martins, o próprio capital impôs ao Brasil uma luta pela terra como uma luta contra a propriedade capitalista da terra, possibilitando cada grupo, colonos, índios, 3 Em seu livro “Expropriação e Violência: a questão política no campo” (1980), José de Souza Martins utiliza o termo “lavrador”, diferentemente de seus escritos após este período em que utiliza o termo camponês.

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posseiros a construírem a sua própria concepção de propriedade anticapitalista, seja ela camponesa, comunitária ou posse. Segundo ele,

Apesar da diversidade de caminhos que cada uma dessas situações nos indica, estamos diante de evidências de que o saber popular tem construído respostas (...) à expansão capitalista da propriedade fundiária, à expropriação, à sujeição do trabalho familiar ao capital e às contradições crescentes produzidas pela expansão do capital. (MARTINS, 1980, p. 62)

Para o autor isto nos leva a uma certeza e a uma incerteza. A certeza do caráter anticapitalista destas diversas modalidades de luta pela terra. A incerteza é o alcance da preservação desses regimes e práticas de propriedade e de trabalho para a solução de problemas que vão além das condições do lavrador e que atingem a sociedade inteira.

Uma pequena consideraçãoAs questões ora apresentadas precisam de respostas cada vez mais aprofundadas

e debatidas para que haja uma compreensão do que de fato muda ou não na territorialidade destes grupos fase ao processo de reconhecimento e regularização de seus territórios como territórios quilombolas e frente à expansão das grandes empresas capitalistas no campo.

ReferênciasACEVEDO MARIN, Rosa & CASTRO, Edna Ramos. Negros do Trombetas: Guardiães de matas e rios. 2a ed. Revista e Ampliada. Belém: CEJUP/NAEA/UFPA, 1998.______. No caminho de pedras de Abacatal: Experiência social de grupos negros no Pará. 2a ed. Belém: NAEA/UFPA, 2004._____. Quilombolas do Pará. Belém: NAEA/UFPA, 2005. 1 CD-ROM.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio. Uso comum e conflito. In: CASTRO, Edna & HÉBETTE, Jean (orgs). Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. Belém: NAEA/UFPA,1989. p. 163-196. (Cadernos NAEA, nº 10).

COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Comunidades Quilombolas. Disponível em: <http://www.cpisp.org.br> Acesso em: 27 mar. 2008.

HAESBAERT, Rogério. Definindo Território para entender a desterritorialização. In: O mito da desterritorialização: Do "Fim dos territórios" à Multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

HAESBAERT, Rogério; ARAUJO, Frederico Guilherme Bandeira de. (Orgs.). Identidades e Territórios: Questões e Olhares Contemporâneos. 1. ed. Rio de Janeiro: Access, 2007.

MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência. A questão política no campo. São Paulo: HUCITEC, 1980. (Coleção Ciências Sociais).

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