61 abordagens em epistemologia: bachelard, morin e a epistemologia da complexidade

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FRANCELIN, Marivalde Moacir. Abordagens em epistemologia: Bachelard, Morin e a epistemologia da complexidade. Transformação, Campinas, v.17, n.2, p.101-109, 2005.

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  • ABORDAGENS EM EPISTEMOLOGIA

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    11111 Texto elaborado a partir de uma das sees da dissertao de mestrado defendida pelo autor em 2004.22222 Mestre em Biblioteconomia e Cincia da Informao, Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Docente, Curso Cincia

    da Infomrao com Habilitao emn Biblioteconomia, Faculdade de Biblioteconomia, Centro de Cincias Sociais Aplicadas,Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Rua Marechal Deodoro, 1099, Centro, 13020-904, Campinas, SP,Brasil. E-mail: .Recebido em 22/2/2005 e aceito para publicao em 19/5/2005.

    ARTIGO

    Abordagens em epistemologia: Bachelard, Morine a epistemologia da complexidade1

    Approaches to epistemology: Bachelard, Morin and the

    epistemology of complexity

    Marivalde Moacir FRANCELIN2

    R E S U M O

    Apresenta uma reviso das distintas concepes de epistemologia, partindoda epistemologia enquanto palavra. Em seguida, aborda sua estrutura enquantocampo de investigao e disciplina do conhecimento, chegando ao seudesdobramento em epistemologias. Argumenta que a epistemologia dacomplexidade comporta, e comportada, por essas epistemologias. Procurareconstituir um itinerrio mvel e flexvel da epistemologia at sua relao coma complexidade a partir de Gaston Bachelard e Edgar Morin.Palavras-chave: epistemologia, epistemologia da complexidade, GastonBachelard, Edgar Morin, perspectivismo.

    A B S T R A C T

    This article presents a review of the distinct conceptions of epistemology, departingfrom the concept of epistemology as a word. It approaches the structure ofepistemology, taken as both, a research field and the discipline of knowledge,and considers its developments into plural epistemologies. Furthermore, theauthor argues that the epistemology of complexity circumscribes, and is itself

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    circumscribed, by such epistemologies. In short, the article aims to establish amobile and flexible itinerary regarding epistemology, up to its relationship withthe complexity, as posed by the works of Gaston Bachelard and Edgar Morin.Key words: epistemology, epistemology of complexity, Gaston Bachelard, EdgarMorin, perspectivism.

    I N T R O D U O

    Discutir o que venha a ser ou se tornarepistemologia est longe de qualquer tipo defacilidade aparente. Suas ramificaes e con-ceitos, alm de uma etimologia que remonta aosgregos, parecem imprimir maior grau dedificuldade no trato com o tema. Porm, podeser essa mesma dificuldade um dos principaisincentivos para se tentar revigorar a discussoem torno da epistemologia. Diante de umavertente clssica e, aparentemente, ultrapassa-da, surgem distines em seus aspectosconceituais, tericos e metodolgicos, possibi-litando o desenvolvimento de epistemologias.

    Portanto, as reflexes a seguir noprocuram eleger a melhor epistemologia, masproporcionar subsdios para novas discussesem torno do carter complexo das epistemo-logias que, na contemporaneidade, revigoram-se sob a gide de um esprito cientficotransformado e em transformao. Inicialmente,procurou-se abordar a epistemologia comoepistemologia e no como episteme, ou seja, aepistemologia em seu sentido cientfico edisciplinar. Isto implica uma breve meno ssuas origens e etimologia e uma discussosobre sua emergncia, caractersticas e obje-tivos, sem a pretenso de se esgotar o assuntoe, muito menos, de se tomar como conclusouma epistemologia melhor. Objetiva-se sim,discutir uma epistemologia que possa darrespostas e que, mesmo no as dando, possacontemplar uma cincia em expanso interdisci-plinar e metodolgica. A discusso, j bemavanada, da interdisciplinaridade nas disciplinascientficas contemporneas, acaba por apontarpara uma outra discusso, a discusso episte-

    molgica. Pode-se dizer que a prpriaepistemologia, enquanto disciplina, comporta, aolongo de seu desenvolvimento um carterinterdisciplinar direcionando-se para a complexi-dade. Como termo, a epistemologia parece sermuito utilizada no cotidiano cientfico, mas, comodisciplina ou como uma metodologia de anlise,necessita de maiores estudos. Por isso e peloseu conceito inexato procura-se recorrer, comcerta constncia, aos estudiosos e pesquisa-dores deste campo. Talvez no seja possveltraar um itinerrio sobre a epistemologia semsobrecarreg-lo de citaes, procurando eviden-ciar que este itinerrio no seguiu uma rota pr-estabelecida e nica, mas conturbada, ruidosae, por vezes, sutil. Esse o panorama do segun-do item de discusso deste texto Abordagensem epistemologia.

    O item trs, Bachelard, Morin e aepistemologia da complexidade, procuraidentificar, a partir da prpria proposta de EdgarMorin, as estruturas constitutivas da epistemo-logia da complexidade, partindo de GastonBachelard. Neste caso, discute-se um novoconceito de epistemologia complexa, que noparece ser to novo assim, ou seja, o foco sobre a discusso de um campo de estudo e deuma atuao metodolgica j constitudos e,aparentemente, presente em boa parte dasdisciplinas cientficas contemporneas. Assim,entende-se que o item dois, Abordagens emepistemologia, alm de panormico e reflexivo(nos dois sentidos do termo), perspectivista(no no sentido filosfico, mas no sentido delanar bases) em relao ao item trs, Bachelard,Morin e a epistemologia da complexidade, porseu fundamento distintivo e variado. O processode criar nunca foi visto com tanta complexidade,

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    e por isso, o item quatro Consideraes finais,apenas considera a possibilidade da episte-mologia da complexidade fazer parte desseprocesso, o que parece ter sido um dos principaisobjetivos da epistemologia desde o seusurgimento.

    Abordagens em epistemologia

    Muitos questionamentos existem emtorno do termo epistemologia. Esses questiona-mentos vo desde seus domnios, enquantodisciplina cientfica (BLANCH, 1983; JAPIASSU,1986), at seu aparecimento e etimologia(CARRILHO; SGUA, 1991).

    Blanch diz que a epistemologia significateoria da cincia e no se trata de uma palavramuito antiga. Surge nos dicionrios francesespor volta de 1906 (BLANCH, 1983, p.9). Noentanto, o autor diz que no sculo XIX j haviaobras tratando do tema, inclusive com a palavraepistemologia presente no ttulo (BLANCH,1983, p.11). Para Japiassu, etimologicamente,epistemologia significa discurso (logos) sobrea cincia (episteme) e surge no sculo XIX(JAPIASSU, 1986, p.24). No obstante, Carrilhoe Sgua remetem o aparecimento da palavraepistemologia, em lngua francesa, ao ano de1901. Dizem que a [...] epistemologia, entendidacomo filosofia da cincia, surge no sculo XIX[...] e creditam o seu aparecimento ao desenvol-vimento cientfico, procurando [...] explicitar osegredo do seu progresso e legislar sobre o seuvalor e objetivos [...]. (CARRILHO; SGUA,1991, p.12).

    A palavra epistemologia comeou a figurarno vocabulrio filosfico3 a partir do sculo XIX.Para Santos, a reflexo epistemolgica moder-na origina-se, enquanto filosofia, no [...] sculoXVII e atinge um dos seus pontos altos em finsdo sculo XIX, ou seja, no perodo que acom-

    panha a emergncia e a consolidao da so-ciedade industrial e assiste ao desenvolvimentoespetacular da cincia e da tcnica. (SANTOS,2000, p.17). Para outros, como Bunge (1980), ocampo epistemolgico emergiu, para opensamento contemporneo, a partir de meadosdo sculo XX. Com o prprio desenvolvimentocientfico e tecnolgico surgem estudiosos que,preocupados com esse processo, comeam aformular uma teoria epistemolgica e a resgatarpensadores que j haviam tratado do tema emperodos anteriores.

    Para Bunge, a epistemologia, ou filosofiada cincia, [...] o ramo da Filosofia que estudaa investigao cientfica e seu produto, o conhe-cimento cientfico. Considera a epistemologiacomo importante componente (ramo) daFilosofia (rvore) que comea a se destacar nasprimeiras dcadas do sculo XX (BUNGE, 1980,p.5). Talvez, em funo dessa importncia, sejato difcil conceitu-la, pois, [...] da epistemologiasabemos muito sobre aquilo que ela no , epouco sobre aquilo que ou se torna [...],justamente por causa de sua recente emergnciaenquanto disciplina (JAPIASSU, 1986, p.23). Taldificuldade tambm expressa nas obras deBlanch (1983) e Carrilho e Sgua; estesltimos referem-se ao termo epistemologia comonebuloso (CARRILHO; SGUA, 1991, p.7).

    Assim, a epistemologia pode ser tomadacomo uma [...] disciplina, ou tema, ou pers-pectiva de reflexo cujo estatuto duvidoso, querem funo do seu objeto, quer em funo doseu lugar especfico nos saberes. (SANTOS,2000, p.20). Parece tambm seguir esta pre-missa, Japiassu, quando diz que definir episte-mologia no uma tarefa fcil, devido condioflutuante de seus domnios investigativos, noexistindo [...] sequer um acordo quanto natureza dos problemas que ela deve abordar[...], alm de seu campo de pesquisa ser [...]imenso, supondo grande intimidade com as

    33333 Para uma discusso sobre filosofia-enquanto-epistemologia ver Rorty (1994, p.144 et seq.).

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    cincias, cujo princpio e resultados ela deveriaestar em condies de criticar. Donde a variedadede conceitos em epistemologia. (JAPIASSU,1986, p.23).

    Dessa maneira, a epistemologiapreocupa-se com as histrias da cincia e dainteligncia, com a arqueologia e as [...]relaes da cincia com a sociedade que aproduz, interferindo tanto em sua organizaointerna quanto em suas aplicaes. (JAPIASSU,1986, p.11). Ainda, a epistemologia a reflexo,o estudo de propsito crtico sobre uma cinciaconstituda ou, segundo Japiassu (1981), emprocesso de constituio. Um estudo epistemo-lgico pode visar discusso de determinadosprincpios estruturais de uma respectiva discipli-na cientfica. Pode-se dizer que serve parareorganizar ou reencaminhar determinadadisciplina ao trajeto cientfico, ou seja, tentadelimitar o campo de estudo dessa disciplina.Por este motivo, a palavra epistemologia encontrada em dicionrios de filosofia comoanloga teoria do conhecimento e gnosiologia(ABBAGNANO, 1982). Pode-se tambm encon-tr-la como a teoria do conhecimento cientfico.Mora (1994) diz que, por algum tempo, na lnguaespanhola, usava-se gnosiologia (teoria doconhecimento) ao invs de epistemologia.A gnosiologia logo passou a significar teoria doconhecimento em seu sentido mais abrangente. epistemologia coube o estudo do conhecimentocientfico. Porm, com a influncia da filosofiaanglo-saxnica, a epistemologia cada vezmais usada em quase todos os casos e noapenas no campo cientfico.

    Para Japiassu (1986) a epistemologiadeve ser entendida como uma disciplina que nose interessa tanto pelos aspectos metodo-lgicos, os resultados ou a linguagem dacincia, ou da razo nas cincias. Isto nosignifica que a espistemologia ignore taisquestes, apenas no parecem ser prioritriasem suas investigaes. O estudo epsitemo-lgico est relacionado a uma reflexo crtica

    que permite a descoberta e a anlise de [...]problemas tais como eles se colocam ou seomitem, se resolvem ou desaparecem, na prticaefetiva dos cientistas. Portanto, o objeto a serestudado a prxis cientfica e no o seu produto,ou seja, a epistemologia qual se refere Japiassu(1981) tem como funo refletir no sobre acincia feita, acabada, verdadeira, mas, sobreo processo de desenvolvimento cientfico(JAPIASSU, 1981, p.96).

    Ainda, segundo Japiassu, h uma flexibi-lidade no emprego do conceito epistemologia.Esta flexibilidade depende de vrios fatores.Ideologias, filosofias, costumes, culturas, vodeterminar se o conceito de epistemologia serde natureza filosfica, estando assim, prximoa uma teoria geral do conhecimento, ou denatureza mais restrita, levantando questesacerca da gnese e estrutura das cincias.Tambm podem fazer parte do conceito deepistemologia a anlise lgica da linguagemcientfica e o exame das condies reais deproduo dos conhecimentos cientficos.Nenhum dos conceitos que possam ser utiliza-dos tero, como princpio, uma imposiodogmtica. A disperso do conceito de episte-mologia afasta de vista lingstico, sociolgico,ideolgico, etc. Japiassu considera a epistemo-logia uma cincia interdisciplinar. Portanto, [...]cabe epistemologia perguntar-se pelas relaesexistentes entre a cincia e a sociedade, entrea cincia e as instituies cientficas, entre asdiversas cincias, etc.. (JAPIASSU, 1986, p.38).

    A epistemologia fundamenta-se nosconhecimentos que so produzidos e estorelacionados cincia. responsvel peloprocesso de discernimento entre o conhecimentocientfico j superado e aquele que se consideraatual (JAPIASSU, 1986, p.32). Ou seja, partedos estudos epistemolgicos a iniciativa para adiscusso dos paradigmas cientficos. Entendidacomo teoria do fundamento da cincia, responsvel pela distino entre objeto cientficoe objeto da histria das cincias, alm da

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    manuteno da conscincia do real atravs dosdiscursos crticos e progressivos que setransformam em cincia. ainda a epistemologiaque [...] faz com que o objeto da histria dascincias seja um objeto no dado, mas um objetoconstrudo, um objeto cujo inacabamento essencial (JAPIASSU, 1986, p.33). A episte-mologia forma-se a partir da reflexo sobre osprocessos de construo cientfica de deter-minada disciplina; portanto, atravs do estudodo estatuto cientfico de tal disciplina que se dincio ao estudo epistemolgico.

    Para Japiassu existem classificaesentre as cincias. Essas classificaes sonecessrias epistemologicamente para tentaridentificar relaes e diferenas entre as disci-plinas cientficas. Tal classificao pode criardisparidades como forma de conferir superiori-dade a determinados grupos cientficos sobreoutros. [...] podemos perceber, por detrs detoda classificao, a idia de uma hierarquia ede uma valorizao de certas cincias emdetrimento das outras. (JAPIASSU, 1981,p.101).

    Nesse sentido, cita as disciplinas ligadas experimentao e, especificamente, a Fsica.As Cincias Humanas no seriam reconhecidasno meio cientfico, pois, neste momento, asCincias Naturais que teriam o estatutocientfico a seu favor, estando [...] apoiadasnuma valorizao por demais excessiva dosmtodos e dos resultados das chamadascincias naturais. (JAPIASSU, 1981, p.103).Entende-se que esta proposio no tira o cartercientfico da rea de Humanas, pois, a cincia[...] um processo histrico dependente, nodo ser, mas do devir. E exatamente por issoque no temos o direito de negar s CinciasHumanas sua existncia e sua legitimidade.(JAPIASSU, 1981, p.104). A epistemologia chegaa apresentar, realmente, em determinadoscontextos, um carter ambguo, podendo serconsiderada falsa e at como uma iluso, porm,torna-se [...] verdadeira na sua falsidade e se

    transfigura em uma iluso necessria(SANTOS, 2000, p.27).

    A epistemologia, por estar relacionada sdisciplinas cientficas, no pode ter uma definioou conceito que a enquadre em um campoespecfico do conhecimento ou que a vincule auma nica disciplina, pois uma de suas principaiscaractersticas enquanto disciplina cientfica,segundo Japiassu (1986), a interdisciplina-ridade. Para Blanch, a epistemologia nodepende do que verdadeiro ou falso, mas, deum estado de convenincia. Ao se chegar aeste estado, tem-se o domnio epistemolgicodelimitado, porm, [...] as fronteiras traadaspermanecero mveis, porque os problemas daepistemologia abrangem muitas vezes domniossituados para l dessas fronteiras. (BLANCH,1983, p.17).

    Japiassu (1986) no restringe o campode atuao epistemolgica filosofia ou sociologia da cincia, pelo contrrio, aborda essecampo de atuao da maneira mais abrangentepossvel, considerando, entre outras caracte-rsticas, leis, costumes, ideologias, filosofias,aspectos lingsticos e pragmticos, alm deinfluncias histricas e polticas. Cabe, pois,considerar a epistemologia como uma epistemo-logia complexa.

    O pensamento epistemolgico pol-mico. Existem tipos de epistemologias. Elas nose diferenciam apenas pelo objeto que estudam,mas por vrios fatores. O modo de abordagem,o contexto do objeto e do observador e asespecificidades do objeto acrescidas da inter-pretao do observador, so os principaisaspectos que podem condicionar as diferentesabordagens epistemolgicas. A no diferenciaodo objeto no significa que o desenvolvimentocientfico deve ser visto como estacionrio.

    A constante movimentao do universocientfico compreendida como um conjunto deeventos em mltiplas relaes. s epistemo-logias cabe a conscincia desse conjunto deeventos cientficos, ao mesmo tempo nico e

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    mltiplo.. Partindo-se dessa concepo, asabordagens so transformadas de acordo comos contextos relacionais e com a parcialidadeobservacional (ideologias, filosofias e culturas).Dessa maneira, surge o que se conhece comoa epistemologia gentica de Jean Piaget, aepistemologia histrica de Gaston Bachelard, aepistemologia racionalista crtica de Karl Poppere a epistemologia arqueolgica de MichelFoucault (JAPIASSU, 1986).

    Finalmente, necessrio interrogar-sesobre o conhecimento, sobre o saber, sobre acincia, sobre o pensamento, de forma geral eespecfica ao mesmo tempo. Essas interro-gaes podem ser interpretadas de vriasmaneiras, dependendo de onde, de como e porquem esto sendo observadas. Podem tantoestar sendo observadas desde a perspectiva doobservador, como desde o interior de umadisciplina, como at desde ambas ou nenhumadessas perspectivas, ou ainda, como se ver naepistemologia da complexidade, desde aperspectiva de todos e desde nenhuma aomesmo tempo.

    Bachelard, Morin e a epistemologia dacomplexidade

    A epistemologia da complexidade temsuas razes, segundo Edgar Morin, no pensa-mento epistemolgico de Gaston Bachelard. [...]houve um filsofo que falou da complexidade e,na minha opinio, muito profundamente: foiGaston Bachelard em O Novo Esprito Cientfico.(MORIN, 1996, p.13).

    A complexidade essencial da filosofiacientfica, o ttulo da introduo de O NovoEsprito Cientfico. Em alguns trechos dessaobra, o autor deixa claro a sua idia de filosofiada cincia: [...] no h nem realismo nemracionalismo absolutos [...], nem preceitosfilosficos universais e nicos (BACHELARD,1978, p.91). Dessa maneira, o que propeBachelard um estudo sobre o (esprito)

    pensamento cientfico contemporneo que,distanciando-se do agnosticismo positivista edo realismo filosfico tradicional, aproxime-se[...] dum realismo de segunda posio, dumrealismo em reao contra a realidade habitual,de razo experimentada. E prossegue: [...] oreal que lhe corresponde no relegado aodomnio da coisa em si incognoscvel.(BACHELARD, 1978, p.93). Essa realidadecognoscvel formada e desenvolve-se a partir eatravs das relaes de complexidade. Taisrelaes se estendem h sculos, como odilogo entre o Mundo e o Esprito e no sepode mais ignor-las ou caracteriz-las comoexperincias mudas. A abordagem das relaesentre a realidade e a racionalidade, entre oMundo e o Esprito conduz, inevitavelmente, apensar a complexidade que envolve essasrelaes.

    Isso se verifica atravs do prprio pensara ao cientfica, em que [...] percebe-se queo realismo e o racionalismo permutam sem fimseus pareceres. (BACHELARD, 1978, p.95).No se prev um fim. A idia de finitude associa-se imobilidade. A complexidade apenas existeporque os sistemas que a compem nuncaparam, esto em constante movimentao,interna e externa, em processos de relaes einter-relaes. Assim, parece-nos que se devemintroduzir na filosofia cientfica contemporneaprincpios epistemolgicos verdadeiramentenovos. (BACHELARD, 1978, p.98).

    H a necessidade de uma epistemologiaque se disponha a estudar a [...] sntese maisou menos mvel da razo e da experinciamesmo que esta sntese se apresente filosofica-mente como um problema desesperado.(BACHELARD, 1978, p.98). Assim como anoo de simplificao torna-se insuficiente einconsistente em sua reduo, a relao entreextremos quase obrigatria, pois, [...] opensamento cientfico contemporneo perma-nentemente opera entre o a priori e o a posteriori[...]. Esses eventos movimentam-se e alternam-

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    -se constantemente e [...] esto ligados, nopensamento cientfico, por um estranho lao, toforte como o que une o prazer dor.(BACHELARD, 1991, p.9). O que autor quer dizercom o a priori e o a posteriori so as maneirascomo os cientistas e os filsofos se utilizam do,ou concebem o, pensamento cientfico: osprimeiros, reduzindo a filosofia das cincias aosfatos; os segundos, descartando a possibilidadede a filosofia da cincia relacionar-se aos fatos.Portanto, a idia do a priori e do a posterioriaproxima-se das noes de determinismo eindeterminismo propostas por Bachelard (1978).

    Para Bachelard, [...] todas as revoluesfrutuosas do pensamento cientfico so crisesque obrigam a uma reclassificao profunda dorealismo. Porm, essas crises frutuosas noso produzidas (provocadas) pelo pensamentorealista; o [...] impulso revolucionrio vem deoutra parte; nasce no reino do abstrato.(BACHELARD, 1978, p.157).

    Independncia e relao, determinismo eindeterminismo, a priori e a posteriori em suasrelaes e inter-relaes, infinito e indefinio, eo princpio da incerteza, so alguns dos pontosobservados por Bachelard no pensamentocientfico, os quais fazem dele, segundo EdgarMorin, um dos filsofos da cincia que falou dacomplexidade com maior profundidade. Por outrolado, pode-se dizer que foi atravs de Edgar Morinque o pensamento complexo se desenvolveu.

    Morin (1996) chama a ateno para aseguinte questo: o complexo no o mesmoque o complicado. Portanto, a epistemologia dacomplexidade no pode ser entendida como umaepistemologia da complicao, uma epistemo-logia da dificuldade.

    A complexidade moriniana no traz emsi complicadores, pelo contrrio, traz a possibi-lidade de pensar o ser em si, sua relao com omundo, as relaes do mundo com o mundo edo ser com o ser. Nesse caso, a epistemologiaproposta por Morin uma epistemologia aberta,sem um princpio rgido norteador. Esta, parte

    dos eventos do conhecimento, para estudar oprprio conhecimento: o conhecimento doconhecimento. a partir do conhecimento doconhecimento que se constitui a epistemologiada complexidade, um conhecimento que pensae conhece os limites do prprio conhecimento.Para Morin (1997), o conhecimento no reflete omundo objetivo, mas o traduz e o constri, dadoque a produo, a reproduo e o desenvol-vimento do conhecimento fazem parte de umconstante construir-desconstruir-construir nouniverso do prprio conhecimento. No himparcialidade e, muito menos, neutralidadenesse processo. A construo, a desconstruo,a reproduo e o desenvolvimento do conheci-mento esto impregnados pelo conhecimentodo observador que os concebe. No hconhecimento sem autoconhecimento. (MORIN,1997, p.201).

    A previso de ruptura est implcita noconhecimento. Acontece que os movimentos deruptura se do no mesmo instante em queocorrem os movimentos de relao. A relaodesses eventos se d em funo dos movimentosque relacionam e esto relacionados ao conheci-mento. A liberdade de conhecer o limite doconhecimento. Assim, o conhecimento secondiciona, se determina e se limita pelo no--condicionamento, pelo indeterminismo e pelacondio ilimitada em sua gnese, que justamente o seu limite. O ilimitado, oindeterminismo, o incondicionvel e o infinito soo que Morin (1997) chama de as fontes deincerteza. So essas fontes de incerteza que,enquanto do origem a uma epistemologiacomplexa, a partir dela se originam. nasquestes relativas s incertezas que permeiamo conhecimento em sua formao, desenvolvi-mento ou gnese, que se desenvolve a epistemo-logia da complexidade. A epistemologia dacomplexidade no se restringe aos limites dodeterminismo e do reducionismo que seprocessam por vias certas, mutiladoras esimplificadas. A proposta de Edgar Morin para

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    uma epistemologia complexa que esta busqueno apenas atravs do possvel, mas do imposs-vel, as relaes mais profundas do conhecimentodo conhecimento, mesmo que essas relaesno possam ser conhecidas. O processo quepermite conhecer o que desconhecido em taisrelaes de conhecimento faz parte da epistemo-logia da complexidade.

    A epistemologia da complexidade vcomplementaridade nos antagonismos, ou seja,a relao e a complementao mtua de posi-es opostas ou contrrias, sendo ao mesmotempo a disciplina que engloba e englobadapelo objeto sem, necessariamente, isolar ou estarisolada. Nesse caso, a epistemologia complexa[...] ter uma competncia mais vasta que aepistemologia clssica, sem todavia dispor defundamento, de lugar privilegiado, nem de poderunilateral de controle. (MORIN, 1999, p.31).O autor rene em sua epistemologia complexaas epistemologias bachelardiana e piagetiana.A epistemologia histrica e filosfica deBachelard chamada por Morin de complexae a epistemologia gentica de Piaget tratadacomo [...] a biologia do conhecimento, aarticulao entre lgica e psicologia, o sujeitoepistmico. (MORIN, 1999, p.31). Uma episte-mologia desse tipo transcende a concepoapenas cientfica ou filosfica do conhecimento.Lana uma multiplicidade de abordagensepistemolgicas que, alm de contemplar osaspectos biolgicos, sociais, culturais e psico-lgicos, os relaciona. Essa abordagem propea anlise dos instrumentos de produo doconhecimento, ou seja, os instrumentosneurocerebrais.

    A complexidade e a epistemologia que arepresenta so fundamentais para se estudar epensar o pensamento, o conhecimento e oprprio desenvolvimento cientfico, seja atravsde uma filosofia, de uma sociologia ou de umateoria cientfica, desde que no redutora edeterminista. So caractersticas difceis - quaseimpossveis - de serem captadas ou incorpo-radas ao processo de desenvolvimento cientfico

    em si, mas viveis e necessrias ao pensamentoque pensa esse processo.

    Edgar Morin no traz idias prontas, nemmesmo possui, como ele mesmo diz, umparadigma em seu bolso. No se deve entendero pensamento complexo como uma via de monica, sistmica, totalizante e/ou suficiente emsi mesma. A idia de complexidade no umavia de mo nica, [...] ela contm em si aimpossibilidade de unificar, a impossibilidade deacabamento, uma parte de incerteza, umaparte de indecisibilidade e o reconhecimentodo tte--tte final com o indizvel. (MORIN,1996, p.98).

    O pensamento complexo uma grandecontribuio dada, por Edgar Morin, ao prpriopensamento. Mesmo no sendo ele o precursorda complexidade, foi quem mais a desenvolveu.A maior parte de sua obra est baseada nopensamento complexo. Morin considera comoum dos eventos fundamentais para a comple-xidade a prpria informao. A informao umdos eventos primeiros na constituio da vida edo cosmos (MORIN, 2002a), isto , a informaoest na origem da vida, em sua gnese, ondegera-se, regenera-se, auto-regenera-se e seauto-organiza. Passa, dessas relaes de infor-maes gensicas s relaes da vida (MORIN,2001), s relaes do conhecimento (MORIN,1999), s relaes das idias (MORIN, 1998) es relaes humanas (MORIN, 2002b). Todasessas relaes so relaes de complexidade.

    C O N S I D E R A E S F I N A I S

    Os percursos e as discusses descritosneste texto tiveram como uma de suas principaisfunes tentar evidenciar uma epistemologiarelacionada e distintiva (no separativa) comocondio a uma epistemologia complexa. Issopode parecer confuso e redundante diante de umolhar apressado. Por outro lado, a redundnciaaparente do discurso da complexidade traz, narealidade, um tom renovador. a repetio que

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    no exclui, porm, renova. A epistemologia dacomplexidade confia, de certa maneira, no olhardo outro. Parte desse para constituir-se comometodologia. Isso significa comportar, em seusprocessos e procedimentos, jogos de raciona-lidade promovidos pela presena e pela ausnciado ser enquanto ser consciente. Aspectos damente ou self ou, especificamente, da prpriacognio, parecem renovar as abordagens sobrea informao. Neste caso, os padres metodol-gicos se repetem a partir de perspectivas distin-tas. O novo apenas novo se partir do que antigo.

    A epistemologia da complexidade apare-ce em funo dessas distines de perspectivas,ou seja, o pensamento que pensa um objeto nosubestima a capacidade de re-criar o prprioobjeto. No h soberania nesse processo, pois,no se pode identificar como e quando issoocorre, visto a necessidade de uma conscinciapossvel.

    Portanto, uma proposta reiterada umaproposta nova. A necessidade de respeitar oslimites do conhecimento pressupe tambmconhecer o que h alm desses limites. Conhe-cer a partir do mesmo uma das formas maiselevadas de conhecimento.

    R E F E R N C I A S

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  • M.M. FRANCELIN

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