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Euclides e a Geometria

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  • Euclides e a geometria

    Csar Benjamin

    Folha de S. Paulo, 1 de agosto de 2010

    Caderno Ilustrssima

    Passou despercebida a primeira edio brasileira do livro mais editado no

    mundo, depois da Bblia: os Elementos, de Euclides, o tratado cientfico mais

    importante da histria.

    Quase nada sabemos do autor e das circunstncias que cercaram a

    criao da obra no sculo III a.C.. Por isso, e pela impressionante dimenso do

    trabalho, alguns j propuseram que Euclides pode ter sido um nome coletivo e

    os Elementos, a obra de uma escola. Mas isso no provvel. A maioria dos

    estudiosos situa por volta de 295 a. C. o ponto mdio da vida ativa do

    gemetra e aceita que ele estudou em Atenas at se transferir para Alexandria.

    Alm dos Elementos, autores antigos referem-se a onze livros seus, entre os

    quais um Livro das falcias, uma Astronomia e um sobre msica.

    Houve outras obras com o mesmo ttulo, que era usado para designar

    compilaes de conhecimentos bsicos. Mas elas se perderam, esmagadas

    pelo peso do tratado de Euclides. Em sua poca a matemtica helnica j

    estava avanada, com uma tradio que remontava a Tales e Pitgoras,

    passando por Plato, Aristteles e seus discpulos. Euclides, diz Proclo,

    juntou os elementos, ordenando muitos teoremas de Eudoxo, aperfeioando

    os de Teeteto e acrescentando demonstraes irrefutveis que s tinham sido

    vagamente comprovadas por seus antecessores.

  • difcil rastrear a trajetria da obra, sujeita por mais de 2 mil anos ao

    arbtrio de copistas, tradutores e comentadores, o que gerou diferentes

    tradues, tradues de tradues, verses resumidas, interpretaes e

    interpolaes. A primeira traduo rabe, feita por al-Hajjj no sculo VIII,

    registra no frontispcio que deixou de lado os suprfluos, preencheu as

    lacunas, corrigiu ou retirou os erros, at ter melhorado o livro e o tornado mais

    exato, e resumiu-o, conforme encontrado na verso atual. Poderamos

    multiplicar tais exemplos. Em Lisboa, encontrei em um sebo Los elementos

    geomtricos del famoso Euclides Megarense, amplificados de nuevas

    demonstraciones por el sargento general de batalla Don Sebastian Fernandez

    de Medrano (1646-1705); o bravo general j erra no ttulo, ao confundir o

    gemetra com um homnimo, Euclides de Megara.

    O livro foi traduzido diversas vezes para o latim e o rabe na Idade

    Mdia, e para as mais importantes lnguas vernculas a partir do

    Renascimento. At o sculo XIX, todas as edies em grego adotaram como

    referncia a de Teon de Alexandria, preparada cerca de setecentos anos depois

    da poca de Euclides. Em 1808, porm, Franois Peyrad constatou que um

    manuscrito trazido da Itlia por Napoleo era uma verso mais prxima do

    original, iniciando pesquisas que culminaram em 1888 com o estabelecimento

    da edio de J. L. Heiberg, hoje aceita como a mais fiel. Ela foi o ponto de

    partida da traduo que Irineu Bicudo realizou durante dez anos, recm-

    publicada pela Editora da Unesp. Um trabalho assim no se faz por dinheiro,

    mas por amor. No h como exagerar a sua importncia.

    A ausncia de um aparato crtico faz a edio brasileira (um volume,

    594 pginas) menor, em tamanho, que outras que a antecederam. A espanhola

    (Gredos), por exemplo, tem dois volumes e 772 pginas, enquanto a francesa

    (PUF) atinge quatro volumes e 2.024 pginas. Mas, no que essencial,

  • estamos diante de um trabalho cuidadoso e competente: comparado com as

    outras edies, o texto em portugus parece at mesmo mais fiel ao estilo seco

    de Euclides.

    ***

    A geometria nasceu no Egito antigo como cincia emprica, um conjunto de

    mtodos de mensurao necessrios para reconstituir os limites das

    propriedades em seguida s inundaes anuais do Nilo. O gnio grego a

    transformou em um sistema dedutivo, gigantesco salto.

    Os gregos viram que os conhecimentos geomtricos no poderiam

    depender da experincia ou da evidncia sensorial, pois uma e outra nunca nos

    permitiriam entrar em contato com pontos, retas e planos, meras abstraes.

    Esses conhecimentos dependeriam de demonstraes. Sabiam, porm, que era

    impossvel demonstrar tudo, pois isso provocaria uma regresso ao infinito,

    com cada afirmao sendo sempre remetida a afirmaes anteriores. Para

    evitar isso, era preciso buscar o que Aristteles chamou de primeiros

    princpios, que, sendo evidentes, dispensariam as provas. A partir dessa

    ncora, a lgica nos conduziria a conhecimentos vlidos, constituindo-se

    assim uma cincia demonstrativa. Coube a Euclides realizar esse ideal.

    Em um sistema desse tipo, hoje denominado axiomtico, a escolha das

    proposies primeiras, ou postulados, devia atender trs exigncias principais:

    consistncia (a partir deles no se podem deduzir logicamente proposies

    contraditrias), completude (entre quaisquer duas proposies contraditrias

    formuladas nos termos do sistema, uma pode ser corretamente demonstrada) e

    independncia (nenhum postulado pode ser demonstrado a partir dos demais).

    (Em 1931, Kurt Gdel provou que sistemas axiomticos usuais, como a

  • aritmtica e a teoria dos conjuntos, no podem preencher o requisito da

    completude, mas isso ultrapassa o tema deste artigo.)

    Euclides deduziu toda a sua geometria 372 teoremas e 93

    construes a partir de cinco postulados, que aparecem acompanhados de 23

    definies e cinco noes comuns.

    Quando Michelangelo foi perguntado como conseguira esculpir a

    Piet a partir de um bloco de mrmore, deu a famosa resposta: Ela j estava

    l; eu s tirei o excesso. Euclides poderia dizer o mesmo, lidando agora no

    com a matria, mas com o esprito. Os postulados aparecem no incio dos

    Elementos, mas isso no deve nos enganar: eles so o ponto de chegada de

    uma longa reflexo prvia que vai desbastando o pensamento, muitas vezes

    tendo teoremas como ponto de partida. A ordem expositiva do sistema, de

    natureza lgica, no segue o caminho percorrido na sua formulao.

    A escolha de apenas cinco postulados todos simples, por definio

    para deles derivar uma geometria completa um trabalho de gnio. o

    momento mais difcil da construo, pois as proposies que estamos

    acostumados a usar derivam de outras proposies, cujos pontos de partida

    desconhecemos.

    ***

    Euclides exaustivo no que Leibniz chamou de arte de demonstrar.

    Qualquer um de ns dispensaria diversas de suas demonstraes, por bvias,

    mas no devemos criticar essa obsesso: a cultura helnica estava repleta de

    sofistas habilssimos em contestar as verdades mais evidentes.

    O esforo para super-los resultou em uma construo intelectual de

    magnfica concepo: as proposies primeiras, indemonstrveis, so

  • enunciadas explicitamente; os termos usados so objeto de definio prvia; e

    os teoremas so demonstrados (s vezes, com reduo ao absurdo) sem o

    recurso aos sentidos ou experincia emprica. Novas provas se sucedem,

    sempre por lgica, com base naquilo que foi provado antes. O resultado uma

    rede na qual todas as proposies se comunicam, sustentando-se umas s

    outras. No lugar da compilao de receitas prticas ou de enunciados

    empricos, legados por egpcios e babilnios, surge assim uma cincia racional.

    O xito foi inigualvel. o nico caso, na histria, em que um s livro

    fundou uma disciplina cientfica, instituindo um padro que passou a servir de

    referncia ao pensamento rigoroso. Graas a Euclides, a unidade e a

    estabilidade da geometria foram excepcionais. Durante mais de 2 mil anos ela

    permaneceu fundamentalmente a mesma, com acrscimos, claro, mas sem

    crises, confundindo-se por isso com os fundamentos da razo. Os demais

    ramos do conhecimento deviam inspirar-se nela.

    A obra de Newton reforou a importncia da de Euclides. Na

    juventude, Newton foi trado pela aparente simplicidade dos Elementos, cuja

    leitura iniciou e largou, por consider-la banal. Redimiu-se adulto: depois de

    reestudar o livro, percebeu que nos seus postulados esto implcitas, como

    veremos, as propriedades do espao, tal como ele mesmo veio a conceber no

    seu sistema do mundo: um meio homogneo, imutvel, intemporal, infinito e

    infinitamente divisvel, que existe independentemente do contedo fsico que

    contm. Embora esse espao absoluto tenha se tornado desnecessrio na fsica

    contempornea, no se deve subestimar a profundidade de sua concepo:

    nenhuma de tais caractersticas acessvel aos sentidos. A ideia euclidiana de

    uma extenso pura e de um espao sem qualidades extremamente abstrata.

    No fim do sculo XVIII, os Elementos, de Euclides, e os Principia, de

    Newton, davam ao conhecimento cientfico uma base imponente, sobre a qual

  • Kant, maravilhado, filosofou. Ele viu uma geometria dotada de validade

    universal, construda de modo racional e, ao mesmo tempo, passvel de ser

    aplicada ao mundo fsico. Identificou nisso um problema profundo: como um

    conhecimento que se desenvolve sem recorrer realidade sensvel pode ser a

    chave para decifr-la? Como uma pura criao da razo humana pode

    representar, com tamanha perfeio, o mundo exterior? Que estranha conexo

    essa, entre a mente do homem e as coisas?

    Tendo Euclides e Newton como principais referncias, Kant concluiu

    que espao e tempo so intuies puras, estruturas do prprio sujeito. A

    intuio a priori do espao nos possibilita os juzos a priori da geometria,

    enquanto a intuio a priori do tempo funda as operaes do clculo, que se

    sucedem e duram.

    A construo kantiana sofreu duro golpe quando, primeiro, a

    geometria euclidiana e, depois, a fsica newtoniana perderam seu carter

    universal. Para entender isso, no caso da geometria, precisamos contemplar os

    cinco postulados.

    ***

    Uso a traduo de Irineu Bicudo, mas fao a ressalva de que o que Euclides

    chama de reta o que hoje chamamos de segmento de reta.

    1. Fique postulado traar uma reta a partir de todo ponto at todo ponto.

    2. Tambm prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.

    3. E, com todo centro e distncia, descrever um crculo.

    4. E serem iguais entre si todos os ngulos retos.

  • 5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faa ngulos interiores e do

    mesmo lado menores que dois retos, sendo prolongadas as duas retas,

    ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual esto os menores que dois

    retos.

    O primeiro postulado diz que somente uma reta pode ser desenhada

    entre dois pontos quaisquer, o que equivale a dizer que, se dois segmentos de

    reta tm as mesmas extremidades, todo o seu comprimento coincide; logo, o

    espao contnuo. O segundo postulado diz que quaisquer retas podem ser

    prolongadas indefinidamente; logo, o espao infinito em todas as direes. O

    terceiro postulado afirma a existncia do crculo e enfatiza que o espao, alm

    de infinito, infinitamente divisvel, pois diz que o raio de um crculo pode ter

    qualquer comprimento.

    O quarto postulado desconcertante por sua aparente trivialidade.

    Note-se, no entanto, que Euclides no diz que os ngulos retos so retos, o que

    seria uma redundncia; ele diz que so iguais entre si, uma ideia que no

    est contida na definio de ngulo reto. Ao estabelecer que as figuras podem

    ocupar quaisquer posies e conservar suas formas, permanecendo iguais

    entre si, o postulado implica um espao homogneo.

    Os postulados, como se v, definem as caractersticas do espao

    hoje seria mais rigoroso dizer de um tipo de espao e estabelecem a

    existncia de pontos, retas e crculos, os elementos bsicos da geometria de

    Euclides, com os quais ele demonstrar a existncia de todas as outras figuras

    que define.

    Mas Euclides sentiu a necessidade de tambm postular a existncia de

    paralelas, necessrias em muitas demonstraes. Era uma encrenca, pois

    exigia encontrar uma afirmao que fosse evidente e, ao mesmo tempo, se

  • referisse ao que acontece no espao remoto: paralelas so retas coplanares que

    nunca se encontram. A soluo do gemetra, mais uma vez, foi muito

    engenhosa: props um postulado que s fala de retas secantes, cuja existncia

    indiscutvel, mas mantm implcita a existncia de paralelas.

    Mesmo assim, ele logo foi reconhecido como problemtico. Ouamos

    Proclo: O fato de que as retas convergem quando os ngulos retos so

    diminudos certo e necessrio; mas a afirmao de que chegaro a se

    encontrar apenas verossmil, mas no necessria, na falta de um argumento

    que prove que isso verdade para duas linhas retas. Pois o fato de que existam

    algumas linhas que se aproximam indefinidamente mas permanecem sem se

    tocar [asmptotoi], por mais improvvel e paradoxal que parea, tambm

    certo e est comprovado em relao a linhas de outro tipo. Por que, no caso

    das retas, no possvel ocorrer o mesmo que ocorre com as linhas

    mencionadas? Proclo conclui que o quinto postulado deve ser riscado dos

    postulados, pois se trata de um teorema repleto de dificuldades.

    O debate sobre isso envolveu os grandes gemetras gregos, rabes e

    europeus durante mais de 2 mil anos, sem soluo. Cresceram as suspeitas de

    que no se tratava de um verdadeiro postulado, mas as tentativas de manej-lo

    como um teorema exigiam introduzir novos postulados igualmente

    problemticos, que eram meros equivalente lgicos do postulado de Euclides;

    configurava-se assim o erro que os filsofos chamam de petio de princpio,

    ou seja, adotar como ponto de partida de uma demonstrao o mesmo

    argumento que ser provado no fim dela. Tentou-se deduzir o quinto

    postulado dos demais, at que se provou que isso era impossvel. Buscaram-se

    formulaes alternativas, todas insuficientes. E, quando ele era simplesmente

    retirado, o sistema perdia o requisito da completude: muitos teoremas no

    podiam mais ser demonstrados.

  • Parecia impossvel inserir a afirmao de Euclides em seu prprio

    sistema, consistentemente. O postulado das paralelas, como ficou conhecido,

    permanecia como um corpo estranho, um expediente que preenchia uma

    lacuna no encadeamento lgico. DAlembert disse que ele era o escndalo da

    geometria, pois a credibilidade dos teoremas no pode ser maior do que o

    grau de credibilidade associado ao postulado que tenha menor credibilidade.

    Dois pensadores estiveram perto da soluo, o rabe al-Khayyami

    (1048-1131) e o jesuta italiano Girolamo Saccheri (1667-1733). Ambos

    adotaram o caminho da reduo ao absurdo. Aceitando o restante do sistema

    euclidiano e negando o quinto postulado, pretendiam chegar a contradies, o

    que demonstraria a validade e a necessidade dele. No sabemos bem at onde

    foi al-Khayyami, mas Saccheri abandonou a empreitada quando comeou a

    encontrar o que denominou teoremas estranhos.

    Teve nas mos o bilhete premiado, mas no percebeu. Comeara a

    descobrir uma outra geometria, mas viu nisso um erro. Estava preso ideia

    milenar de que s a geometria de Euclides podia existir.

    ***

    S no sculo XIX, um matemtico de valor excepcional, o alemo Carl

    Friedrich Gauss, e dois matemticos jovens, o hngaro Jnos Bolyai e o russo

    Nicolai Lobachevski, trabalhando de forma independente, ousaram prosseguir

    at o fim na deduo dos teoremas estranhos. Em vez de encontrar

    contradies, como esperavam, chegaram a geometrias consistentes e

    completas, diferentes da euclidiana, mas sem defeito lgico.

    Gauss no divulgou seu trabalho, pois acreditou que ningum o

    compreenderia. O inseguro Bolyai entregou o manuscrito ao pai, tambm

  • matemtico, que o enviou a Gauss sem saber que este ltimo j tinha

    percorrido o mesmo caminho. O texto pioneiro de Lobachevski, por sua vez,

    denominava-se Geometria imaginria. Os descobridores pisavam em ovos:

    viam que as descobertas eram deveras estranhas. No era para menos: Bolyai

    e Lobachevski, por exemplo, adotaram como postulado a afirmao de que

    por um ponto fora de uma reta possvel fazer passar mais de uma paralela

    reta dada...

    O trabalho dos trs foi completado depois, magistralmente, por um

    aluno de Gauss, Bernhard Riemann, cuja geometria nega a existncia de

    paralelas. Ao contrrio do espao infinito de Euclides, o espao de Riemann

    finito, mas ilimitado, pois ele aplicou a noo de curvatura ao espao

    tridimensional, em uma formulao muito abstrata, quase sempre mal

    compreendida. (Muito depois, essa geometria imaginria foi decisiva na

    formulao da relatividade geral, a teoria fsica mais importante do sculo

    XX.)

    Para dar s um exemplo dos resultados discrepantes, em cada uma das

    geometrias a soma dos ngulos de um tringulo diferente: sempre igual a

    180 graus em Euclides, sempre menor que esse valor em Lobachevski e

    Bolyai, sempre maior em Riemann.

    Eugnio Beltrami, Felix Klein, Henri Poincar e David Hilbert

    demonstraram em sequncia, por diversas vias, que as novas geometrias

    tinham a mesma validade que a geometria de Euclides. Mais ainda:

    demonstraram que a eventual inconsistncia de uma delas implicaria a

    inconsistncia do prprio sistema euclidiano. Nunca mais poderamos, como

    Saccheri, nos livrar dos teoremas estranhos. Desde ento, as geometrias se

    multiplicaram, mas, para nosso consolo, Sophus Lie demonstrou que elas no

    so infinitas.

  • Como possvel essa existncia mltipla da verdade? Qual, afinal, a

    geometria verdadeira? Ouamos Einstein: No podemos nos interrogar se

    verdade que por dois pontos passa uma nica reta. Podemos apenas dizer que

    a geometria de Euclides trata de figuras, que ela chama de retas, s quais

    atribui a propriedade de serem determinadas univocamente por dois de seus

    pontos. O conceito de verdadeiro no se aplica aos enunciados da geometria

    pura, pois com verdadeiro ns costumamos, em ltima anlise, designar a

    correspondncia com um objeto real. Porm, a geometria no se ocupa da

    relao entre seus conceitos e os objetos da experincia, mas apenas com os

    nexos lgicos desses conceitos entre si.

    Teoremas incompatveis entre si podem ser igualmente verdadeiros se

    estiverem perfeitamente integrados em diferentes sistemas lgicos.

    Compreender isso foi a culminncia do ideal da cincia grega, de um modo

    que nem os gregos ousaram pensar.

    ***

    Sempre que avana, a cincia cria problemas novos. Por isso, sua marcha no

    pode ter fim. Se a matemtica passou a admitir diferentes geometrias, qual

    delas se aplica ao mundo fsico? No sculo XIX, a questo era indita. Gauss

    concluiu que a resposta dependeria da observao emprica. Com medies

    geodsicas, lanou-se em busca de uma prova experimental, mas seus esforos

    no foram conclusivos: nas escalas humanas, as geometrias convergem para

    padres euclidianos. (Poincar props outra soluo: as geometrias so

    convenes, de modo que todas so aplicveis; a euclidiana apenas mais

    cmoda.)

  • Paradoxalmente, a culminao do ideal grego redimiu a geometria

    praticada por egpcios e babilnios, que ele mesmo havia superado. Seria mais

    correto dizer que houve uma bifurcao. Pois, ao lado de uma geometria fsica,

    novamente emprica, as pesquisas em geometria pura foram impulsionadas na

    direo de formulaes ainda mais abstratas, em busca de procedimentos

    lgicos mais rigorosos.

    Hilbert elaborou novos postulados de modo a apart-los de qualquer

    representao sensvel. Em vez de evocar objetos especificados, buscam

    estabelecer relaes entre objetos genricos, representados por letras, e so

    manejados sem que contenham nenhum sentido, segundo regras puramente

    formais. Esse carter hiperabstrato da matemtica contempornea foi

    sintetizado, no sem ironia, por Bertrand Russell: A matemtica uma

    cincia na qual nunca sabemos do que estamos falando, nem se aquilo que

    estamos falando verdadeiro.

    Pobre Kant. Se a matemtica trabalha com proposies destitudas de

    sentido, adaptveis a qualquer contedo, ento se desfaz o problema que o

    atormentou. A aplicabilidade das leis matemticas ao real no decorre de uma

    harmonia maravilhosa entre o esprito e as coisas. Tais leis valem em nosso

    mundo simplesmente porque valem em todos os mundos possveis.