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6 Avaliação Funcional do Doente com Dor Crônica Lin Tchia Yeng Manoel Jacobsen Teixeira Adrianna Loduca Ribeiro Telma Regina Mariotto Zakka Maciel Murari Fernandes Introdução Tratamento multidisciplinar dos doentes com dor Avaliação e mensuração da dor Importância da entrevista e do exame físico Anamnese Exame físico Exames complementares Avaliação da dor Dimensão sensitiva Localização da dor Intensidade da dor Avaliação funcional Avaliação da qualidade de vida Avaliação psicológica Dimensão cognitiva da dor Dimensão afetiva da dor Dimensão comportamental da dor Considerações finais Referências bibliográficas SUMÁRIO ralmente rebelde e tratada como doença, é uma das ra- zões mais comuns de assistência à saúde 1 . Mais de um terço dos brasileiros afirma que a dor crônica compromete as atividades habituais, e mais de três quartos a consideram limitante para as atividades de lazer, relações sociais e familiares. A dor é a principal causa de incapacidade física e funcional dos doentes afastados, menos de 50% retornam ao trabalho após 6 meses de licença e um número próximo a zero retoma as atividades após 2 anos de afastamento 32 . O número de afastamentos do trabalho diminui quando a dor é tratada multi e interdisciplinar. Watson e Spanswick 33 observaram que a assistência em centros que adotaram modelos multi ou interdisciplinares de tratamento possibilitou resultados mais satisfatórios quanto à reinserção dos doentes com dor crônica nas atividades sociais, familiares e profissionais, mesmo nos afastamentos prolongados. A porcentagem de doentes que retornam ao trabalho após tratamento multidisci- plinar varia de 15 a 100%, com média de 50% 7,28 . Lin 13 observou que 88 doentes com lesão por esfor- ço repetido (LER), distúrbios osteomusculares relacio- nados ao trabalho (DORT), dor crônica e incapacidade significativas, previamente submetidos a tratamento multidisciplinar de dor, melhoraram significativamente após programa educativo cognitivo comportamental (PECC) de uma semana, mesmo dois anos após o tér- mino deste. Anterior ao PECC, a média de duração de queixa de dor era de 48,9 meses e apenas 28,4% dos in- divíduos estavam trabalhando, índice que aumentou para 72,2%. O suporte psicossocial adequado aumen- tou de 26,2 para 58,2% e o comportamento doloroso diminuiu de 41,6 para 11,7%. Tratamento multidisciplinar dos doentes com dor O tratamento dos doentes com dor crônica deve contemplar as interações biológicas e psicossociais das doenças. O modelo integrado de assistência multipro- Introdução Dor é uma experiência vivenciada pela quase tota- lidade dos seres humanos. É por meio dela que a maio- ria das afecções se manifesta. Ela representa a interação de um conjunto de anormalidades biológicas, psicosso- ciais e comportamentais que interagem entre si na ex- pressão da experiência dolorosa. Pode ser aguda ou crô- nica e é freqüentemente objetivo da procura por assistência de saúde. A dor aguda, com raríssimas exce- ções, é de ocorrência universal e tem funcionalidade de alerta biológico. Traumatismos naturais e acidentais, ia- trogenias e discinesias de órgãos são as causas mais co- muns de dor aguda. Nos serviços de emergência, os traumatismos, especialmente os de tecidos moles, o in- farto agudo do miocárdio e as afecções viscerais abdo- minais são as causas mais freqüentes. A dor crônica, ge-

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Page 1: 6 Avaliação Funcional do Doente com Dor Crônica

6Avaliação Funcional do Doente com Dor Crônica

Lin Tchia YengManoel Jacobsen TeixeiraAdrianna Loduca RibeiroTelma Regina Mariotto ZakkaMaciel Murari Fernandes

IntroduçãoTratamento multidisciplinar dos doentes com dorAvaliação e mensuração da dor

Importância da entrevista e do exame físicoAnamneseExame físicoExames complementares

Avaliação da dorDimensão sensitivaLocalização da dorIntensidade da dor

Avaliação funcionalAvaliação da qualidade de vidaAvaliação psicológica

Dimensão cognitiva da dorDimensão afetiva da dor Dimensão comportamental da dor

Considerações finaisReferências bibliográficas

SUMÁRIOralmente rebelde e tratada como doença, é uma das ra-zões mais comuns de assistência à saúde1.

Mais de um terço dos brasileiros afirma que a dorcrônica compromete as atividades habituais, e mais detrês quartos a consideram limitante para as atividadesde lazer, relações sociais e familiares. A dor é a principalcausa de incapacidade física e funcional dos doentesafastados, menos de 50% retornam ao trabalho após 6meses de licença e um número próximo a zero retomaas atividades após 2 anos de afastamento32.

O número de afastamentos do trabalho diminuiquando a dor é tratada multi e interdisciplinar. Watsone Spanswick33 observaram que a assistência em centrosque adotaram modelos multi ou interdisciplinares detratamento possibilitou resultados mais satisfatóriosquanto à reinserção dos doentes com dor crônica nasatividades sociais, familiares e profissionais, mesmo nosafastamentos prolongados. A porcentagem de doentesque retornam ao trabalho após tratamento multidisci-plinar varia de 15 a 100%, com média de 50%7,28.

Lin13 observou que 88 doentes com lesão por esfor-ço repetido (LER), distúrbios osteomusculares relacio-nados ao trabalho (DORT), dor crônica e incapacidadesignificativas, previamente submetidos a tratamentomultidisciplinar de dor, melhoraram significativamenteapós programa educativo cognitivo comportamental(PECC) de uma semana, mesmo dois anos após o tér-mino deste. Anterior ao PECC, a média de duração dequeixa de dor era de 48,9 meses e apenas 28,4% dos in-divíduos estavam trabalhando, índice que aumentoupara 72,2%. O suporte psicossocial adequado aumen-tou de 26,2 para 58,2% e o comportamento dolorosodiminuiu de 41,6 para 11,7%.

Tratamento multidisciplinardos doentes com dor

O tratamento dos doentes com dor crônica devecontemplar as interações biológicas e psicossociais dasdoenças. O modelo integrado de assistência multipro-

Introdução

Dor é uma experiência vivenciada pela quase tota-lidade dos seres humanos. É por meio dela que a maio-ria das afecções se manifesta. Ela representa a interaçãode um conjunto de anormalidades biológicas, psicosso-ciais e comportamentais que interagem entre si na ex-pressão da experiência dolorosa. Pode ser aguda ou crô-nica e é freqüentemente objetivo da procura porassistência de saúde. A dor aguda, com raríssimas exce-ções, é de ocorrência universal e tem funcionalidade dealerta biológico. Traumatismos naturais e acidentais, ia-trogenias e discinesias de órgãos são as causas mais co-muns de dor aguda. Nos serviços de emergência, ostraumatismos, especialmente os de tecidos moles, o in-farto agudo do miocárdio e as afecções viscerais abdo-minais são as causas mais freqüentes. A dor crônica, ge-

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fissional deve adaptar-se ao conceito da natureza com-plexa e multidimensional da dor e pressupõe a formu-lação individualizada de planos diagnósticos e terapêu-ticos que, freqüentemente, exigem a adoção de váriasmodalidades de intervenções concomitantes ou se-qüenciais.

O objetivo da assistência à dor crônica é melhorar aqualidade de vida e promover reintegração social, já quea completa eliminação da sensação dolorosa freqüente-mente não é viável nos doentes. Os objetivos funda-mentais do tratamento interdisciplinar são: promover arecuperação da autoconfiança do indivíduo, estimularatividades diárias no lar e no trabalho, eliminar o medode que novas lesões possam instalar-se, corrigir os desa-justes familiares, sociais e profissionais, incentivar o usocriterioso de medicamentos, outros tratamentos e con-tribuir para a independência dos doentes quanto ao sis-tema de saúde14.

O processo integrado de tratamento implica o pla-nejamento individualizado de avaliações, diagnósticos eestratégias terapêuticas. A avaliação clínica de doentes,por meio de vários instrumentos e métodos de investi-gação, e a aplicação de intervenções multipontuais emultimodais concomitantes ou seqüenciais são funda-mentais e contribuem para o sucesso dos programas dereabilitação dos doentes com dor crônica14,16.

Avaliação e mensuração da dor

A mensuração da dor possibilita examinar a natu-reza, as origens e os correlatos clínicos da dor, com basenas características individuais do doente16,20,33. Váriosmétodos são utilizados para mensurar a percepção esensação da dor. A dor é uma experiência multidimen-sional que envolve aspectos afetivo-cognitivo-emocio-nais. Essa experiência subjetiva, complexa e pessoal nãopode ser quantificada de maneira precisa por meio deinstrumentos físicos, por isso, além de relatos espontâ-neos e exames clínicos, diversos questionários, escalas einventários foram desenvolvidos para quantificar e qua-lificar a dor no âmbito biológico, social, econômico epsicocomportamental20,22,25. Os métodos de avaliaçãoapresentam sensibilidade e especificidade que se modi-ficam na dependência das condições de cada indivíduo,da natureza da doença álgica e da sua duração. A esco-lha do instrumento deve pautar-se na adequação aodoente e ao objetivo pretendido. A equipe responsávelpelo tratamento deve conhecer melhor as atitudes e osrecursos de enfrentamento da dor e avaliar a qualidadede vida dos pacientes. Esses recursos possibilitam in-centivar posturas mais ativas e também verificar a evo-lução das condutas terapêuticas empregadas. Váriosquestionários foram concebidos para populações deoutros países e culturas, havendo necessidade de validá-los e, se possível, adaptá-los para a cultura e a realidadebrasileira. É pré-requisito o conhecimento do índice devalidade, confiabilidade e sensibilidade dos instrumen-tos de mensuração.

Os instrumentos unidimensionais são designadospara quantificar apenas a intensidade da dor e usadosfreqüentemente em hospitais e ou clínicas para coletade informações de modo dinâmico sobre dor e analge-sia. Os instrumentos multidimensionais avaliam e men-suram as dimensões da dor (sensitiva, afetiva e com-portamental) com base em diferentes indicadores derespostas e suas interações. A quantificação de intensi-dade, qualidade, duração, localização, fatores de melho-ra e de piora da dor, o comportamento psíquico, as re-percussões sociais, profissionais e econômicas, asmodificações da fisiologia dos diferentes sistemas, as es-tratégias usadas para enfrentar a dor e as adaptaçõesfuncionais devem compor uma boa avaliação dos indi-víduos com dor.

Importância da entrevista e do exame físico

A história e o exame físico permitem diagnosticara doença física e coletar dados sobre educação, profis-são, vida familiar e social do doente e de suas respos-tas à doença. Entretanto, não há relação direta entre aqueixa de dor e as anormalidades físicas. O exame fí-sico geral e a avaliação do sistema nervoso periféricoe central (SNP e SNC), do aparelho locomotor, dasvísceras e dos exames laboratoriais e de imagem pos-sibilitam evidenciar a natureza topográfica, etiológicae/ou nosológica dos fatores que concorrem para a ins-talação e/ou perpetuação da dor. A identificação danatureza nociceptiva ou por desaferentação da dor éimportante para implementar as diretrizes do trata-mento da dor.

Anamnese

Histórico da dorO examinador deve coletar dados que sugiram na-

tureza orgânica ou funcional, nociceptiva ou neuropá-tica de dor. Dor em peso, tensão e dolorimento podemdecorrer de afecções de origem nociceptiva. Queimaçãoou queimor, pressão, peso e tensão podem sugerir dormuscular. Queixas de parestesia, queimor, ardor, late-jante, paroxismos de choque ou pontadas sugerem dorneuropática ou por desaferentação.

Devem-se investigar a história pregressa e atual so-bre estressores e traumatismos. Qualidade e duração dosono, freqüência de despertar, bruxismo, posturas ado-tadas durante a noite e materiais do colchão e do tra-vesseiro podem desencadear e/ou perpetuar o quadrode dor.

Os ambientes do trabalho e do lar, os fatores ergo-nômicos, o modo de execução das atividades, a pre-sença ou não de estressores psicossociais são impor-tantes para determinar possíveis desencadeantes e ouperpetuantes da dor e das disfunções. Tabagismo, al-coolismo, dependência de drogas e atividades sexuaisdevem ser averiguados. Ganhos secundários e litígios

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podem comprometer a adesão aos tratamentos e os re-sultados destes16,20,31.

Os resultados, as complicações e a natureza das in-tervenções farmacológicas, reabilitacionais, psicoterápi-cas, anestésicas e/ou cirúrgicas pregressas devem seravaliados.

Interrogatório sobre diversos aparelhos, sistemas eantecedentes pessoais

Condições gerais de saúde, doenças e comorbidadesatuais e passadas, incapacidades e déficits preexistentes etratamentos já realizados devem ser analisados. Antece-dentes de discrasias sangüíneas, reações alérgicas, glauco-ma de ângulo fechado, obstipação, sangramento digesti-vo, bexiga neurogênica, xerostomia e anormalidadescognitivas podem restringir o uso de alguns medicamen-tos como antidepressivos, neurolépticos, opióides e anti-inflamatórios não-esteroidais (AINE). As síndromes ca-renciais podem ocasionar neuropatias centrais eperiféricas, fadiga, desnutrição e até alterações cognitivas.Os procedimentos cirúrgicos podem resultar em disfun-ções miofasciais ou neuropatias traumáticas, ou mesmoagravá-las. Síndromes vertiginosas e instabilidades damarcha podem desencadear quedas ou desvios posturais.Próteses dentárias inadequadas ou antigas podem desen-cadear dor facial e cefaléia ou até desbalanço nutricional.A dispnéia crônica pode facilitar o desenvolvimento deposturas cifóticas e síndrome dolorosa miofascial (SDM)nas regiões cervical e escapular, e afecções cardiológicaspodem limitar a prática de atividades físicas e até sociais.

Hepatopatias podem limitar o uso de AINE, aceta-minofeno e psicotrópicos; comprometimento da funçãorenal pode limitar o uso de AINE e ser razão de ajusta-mento de dose de vários medicamentos (opióides, psi-cotrópicos, anticonvulsivantes); infecções urinárias e es-caras podem agravar dor neuropática (mielopatia). Asdores pelviperineais e na região glútea e ou lombossacralpodem sugerir afecções ginecológicas, urológicas, proc-tológicas, síndromes dolorosas miofasciais ou neuropa-tias regionais; retenção urinária pode limitar o uso deanticolinérgicos (antidepressivos tricíclicos e neurolépti-cos), opióides e moduladores adrenérgicos; comprome-timento do desempenho sexual pode decorrer do uso deanalgésicos, psicotrópicos e anti-hipertensivos; galactor-réia pode manifestar-se ou agravar-se com o uso de neu-rolépticos e antidepressivos.

Anormalidades prévias do aparelho locomotor, do-res do crescimento, artropatias, amiotrofias, déficit deforça, assimetria dos membros, afecções vasculares etraumatismos prévios podem relacionar-se com a ocor-rência de dor, especialmente musculoesquelética; o usode carbonato de lítio pode comprometer a função tireoi-diana e renal; anormalidades do equilíbrio, movimentosinvoluntários, déficits motores, alterações da sensibilida-de e anormalidades mentais podem provocar traumatis-mos e implicar a necessidade de reeducação postural e domovimento; alterações cognitivas e sono podem ser agra-vadas com uso de psicotrópicos e opióides21,33.

Os idosos podem apresentar alterações cognitivascausadas pela idade, mas também ser secundárias aouso de AINE, corticosteróides, psicotrópicos, opióides,moduladores adrenérgicos, miorrelaxantes e bloquea-dores de cálcio. A síndrome parkinsoniana pode serinduzida ou agravada por bloqueadores de canais decálcio e neurolépticos. Convulsões podem ser agrava-das com o uso de antidepressivos e neurolépticos; an-siedade excessiva, quadros depressivos, ideação ou ten-tativas suicidas podem exigir assistência especializada.

Hábitos alimentares devem ser avaliados, pois po-dem relacionar-se a fadiga e mialgias, dietas inapropria-das ou síndromes de má absorção, facilitando instalaçãode quadros infecciosos, metabólicos ou dor difusa. In-gestão inapropriada de fibras e de líquidos pode relacio-nar-se à constipação e até piora da dor. O sedentarismoe a inatividade podem comprometer o condicionamen-to físico e cardiovascular, e agravar a síndrome do imo-bilismo e da obstipação. Dietas exclusivamente vegeta-rianas podem estar relacionadas à baixa ingestão deproteínas, osteoporose, disfunções digestivas, enzimáti-cas e hormonais. Redução do peso corpóreo sugeredoenças consuptivas, metabólicas, infecciosas, inflama-tórias e psiquiátricas, diarréia crônica, má absorção ouuso de dietas e regimes alimentares inadequados. Obesi-dade sugere sedentarismo, anormalidades metabólicase/ou psicológicas, além de hábitos alimentares não-sau-dáveis. O uso abusivo ou excessivo de medicamentospara emagrecimento, como os controladores de apetite,laxantes e/ou hormônios, sugere atitudes ou crenças ina-propriadas e dependência de drogas e pode dificultar aabsorção adequada de nutrientes e de medicamentos. Ocontato com inseticidas e solventes químicos e o uso deálcool e de medicamentos especialmente utilizados notratamento de doenças oncológicas e da síndrome daimunodeficiência adquirida podem desencadear neuro-patias. Atividades esportivas ou profissionais de impac-to ou repetitivas podem desencadear ou agravar afecçõesmusculoesqueléticas.

Antecedentes familiaresDoenças infecciosas, inflamatórias como artrites, si-

novites e artralgias, neurofibromatose, doenças metabó-licas como hipotireoidismo, diabetes mellitus, osteopo-rose, cefaléias, neuropatias heredo-familiares, miopatias,fibromialgia, síndrome complexa de dor regional (oudistrofia simpático reflexa), distonias e outras disfun-ções de movimento, dores crônicas, disfunção do sono,frouxidão ligamentar, algias vertebrais, osteopenias e os-teoporoses e afecções ou disfunções psíquicas podem tercomponentes biológicos, genótipos, fenótipos e psicos-sociais como desencadeantes, precipitantes ou perpe-tuantes nas disfunções e dores crônicas.

Exame físico

O exame físico inicia-se com a observação dodoente, durante a entrada e saída do consultório, ao

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despir-se, ao caminhar, ao mudar o decúbito e duranteo exame físico, para aferir déficits ou comprometimen-to da movimentação ou da destreza. A avaliação dascondições gerais e os exames neurológico, do psiquis-mo e do aparelho locomotor devem ser realizados sis-tematicamente8,13.

Devem-se avaliar o aspecto geral do doente, a fácies,as posturas estática e dinâmica, o estado nutricional, opsiquismo e os sinais vitais. Quando a dor é aguda, po-dem ocorrer anormalidades neurovegetativas como al-terações da pressão arterial, freqüência do pulso, padrãorespiratório e diâmetro pupilar. O doente deve estardespido para que os seguintes aspectos possam ser ava-liados: cor e umidade das mucosas; alterações tegumen-tares, dos anexos e da pele, incluindo cor, temperatura,perfusão, lesões tróficas (atrofias, retrações, cicatrizes),edema, deformidades axiais ou apendiculares; adoçãode posturas anormais, em condições estáticas e dinâmi-cas, na posição ortostática, em decúbito horizontal esentada14.

Doentes com dor podem apresentar atitudes de de-fesa ou antálgicas que expressam sofrimento físico epsíquico, com posturas, gestos, expressões faciais (fran-zir a fronte, cerrar olhos, dentes e lábios) e vocalizações(gemidos e suspiros). Outros comportamentos doloro-sos são: movimentos de fricção ou massageamento dasáreas com dor, uso de órteses, tipóias, colar cervical,cinta lombar ou de tecido para proteger ou envolver oslocais de dor. O uso de meios auxiliares de marchacomo bengala e muletas deve ser registrado. As evidên-cias de comportamento doloroso não devem ser valori-zadas em casos de dor aguda ou intensa e em casos delesões neurológicas. Quando não há correspondênciaanatômica específica, pode haver hipocondria ou simu-lação. Doentes que solicitam freqüentemente auxíliopara realizar atividades diárias podem estar desenvol-vendo comportamento doloroso anormal. O imobilis-mo prolongado e o comportamento de medo e evitação(como permanecer sentado ou deitado) podem inicial-mente ser mecanismos de compensação e defesa ante ador, entretanto, cronicamente, geram amiotrofia mus-cular, contraturas e retrações articulares, síndrome doimobilismo (osteopenia, descondicionamento físico ecardiovascular) e até síndrome complexa de dor regio-nal, dificultando o processo de reabilitação13. O odorexalado pode ser característico de condições metabóli-cas (cetoacidose) ou de uso de drogas ou álcool.

As escaras ou outras alterações tróficas do tegu-mento e do tecido celular subcutâneo podem sugerirdermatopatia, neuropatias, artropatias, vasculopatias,traumatismos ou áreas de contato inadequado. Altera-ções da cor, temperatura, sudorese, trofismo do tegu-mento e anexos da pele, tecido celular subcutâneo ediscrásicas (edema) podem sugerir neuropatias ousíndrome complexa de dor regional (SCDR); nódulossubcutâneos podem sugerir neurofibromatose; linfo-nodos podem indicar infecções ou doenças neoplási-cas. As cicatrizes podem indicar infecção, traumatis-

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mos cirúrgicos ou acidentais prévios; fissuras e man-chas tegumentares podem sugerir infecção, uso dedrogas, fotossensibilidade ou condições inflamatóriasou infecciosas. Áreas de hiperemia e úlceras em pontosde apoio ou cicatrizes de queimaduras podem sugerircomprometimento da sensibilidade; as escoriações po-dem decorrer de prurido, disestesias ou doenças der-matológicas; alterações na espessura e na textura dapele podem sugerir esclerodermia; alterações na corou na pigmentação tegumentar podem representar in-suficiências arterial, venosa, linfática e/ou alteraçõesneurovegetativas; telangectasias e equimoses podemindicar comprometimento vascular ou hepático14.

A análise estática e dinâmica de estruturas axiais edos membros superiores e inferiores, das articulações edos movimentos articulares possibilita a identificaçãodas assimetrias segmentares da cintura pélvica, escapu-lar, membros superiores (MMSS) ou membros inferio-res (MMII), quanto às dimensões e deformidades30.

A região dolorosa deve ser inspecionada, palpada epercutida. A palpação deve ser realizada não apenas naárea em que a dor é referida, mas também nas contrala-terais correspondentes. A palpação pode evocar atitudesou expressões peculiares ou magnificação do descon-forto; quando desproporcionais à intensidade da sinto-matologia descrita durante entrevista e aos achados doexame físico, elas podem sugerir alterações psíquicascomo ansiedade, histeria, hipocondria, simulação ouganhos secundários16,20-22. O agravamento da dor du-rante a movimentação das articulações pode denotarartropatia; o agravamento durante a tosse, espirro, ma-nobra de Valsalva, ortostatismo ou adoção de posturasentada e melhora durante o decúbito, denotam afec-ções compressivas radiculares ou medulares22.

Os exames provocativos de dor devem ser executa-dos ao final da avaliação, para reduzir a freqüência deachados falso-positivos ou negativos. É necessária acorrelação entre queixas, fatores de melhora e de piorada dor, padrões da dor e achados clínicos. Dor com cau-sas mecânicas (afecções espinais osteoarticulares) e de-corrente de infiltração plexular por tumores retroperi-toniais agrava-se durante a adoção de determinadasposturas (sentada, ortostática, decúbito, marcha, certasatividades). Dor agravada durante a adoção da posturasentada ou realização da manobra de Valsava pode serdecorrente de hérnia discal ou radiculopatia compressi-va. Dor nos MMII que se acentua na marcha pode de-correr de insuficiência vascular nesses membros ou deestenose do canal raquidiano. Dor que se acentua à pal-pação superficial pode ser decorrente de neuropatiascentrais ou periféricas (alodínea). Dor que melhoraapós palpação ou massageamento profundos pode de-correr de comprometimento de estruturas miofasciaisou de neuropatias14.

O exame funcional das estruturas do aparelho loco-motor é fundamentado na avaliação dos indivíduos emvárias posturas, durante a marcha, no apoio e nas posi-ções que exacerbam ou aliviam a dor. Há manobras que

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ajudam a identificar o comprometimento e a anormali-dades musculoesqueléticas. A palpação dos músculosdeve ser realizada sistematicamente; nesse procedimen-to, é fundamental observar os sinais e os relatos de dorlocalizada ou referida, os espasmos musculares, as ban-das tensas, os pontos-gatilhos e os pontos dolorosos di-fusamente distribuídos pelo corpo que caracterizamsíndrome fibromiálgica, a presença de sinal do pulo e dereação contrátil da banda tênsil miofascial. A síndromedolorosa miofascial (SDM) pode ocasionar limitaçãodolorosa da amplitude articular27. A palpação dos ten-dões e dos ligamentos pode revelar pontos dolorosossugestivos de tendinopatias e entesinopatias. A palpaçãode processos espinais, facetas articulares, músculos, ten-dões, ligamentos, fáscias e enteses pode induzir dor esugerir comprometimento localizado orgânico ou fun-cional dessas estruturas anatômicas. A percussão comas extremidades dos dedos ou com martelo (para evo-car sons, sinal de Tinel, ou dor) pode revelar afecçõesespinais, musculares e neuropatias. Algumas manobraspodem denotar anormalidades específicas. O exame damarcha nas extremidades dos pés e no calcâneo podeavaliar ocorrência de déficits motores ou anormalida-des osteoarticulares. A palpação pode revelar dor emáreas em que há queixa espontânea de dor ou não e tu-mores. Contraturas ou encurtamentos musculares einstabilidade articular podem ser evidenciados pormeio de várias manobras8.

A amplitude dos movimentos (ADM), mensuradanos vários segmentos do corpo, avalia mobilidade arti-cular inferior à passiva a lesão deve ser estrutural, ou háfraqueza muscular, dor ou simulação. Em casos de tu-mores ou artrite, a avaliação da ADM deve ser realizadacom mais cautela. Demonstrou-se que a variabilidadede ADM não se relaciona ao prognóstico ou à gravida-de da dor. Frouxidão ligamentar pode ser testada du-rante a hiperextensão das articulações. Alguns doentescom dor crônica apresentam frouxidão ligamentar deorigem congênita, fenômeno que facilita a ocorrênciade subluxação articular e sobrecarga de estruturas arti-culares e musculoligamentares31.

O exame neurológico deve atribuir atenção especialpara a avaliação da sensibilidade, da motricidade, dafunção dos nervos cranianos e do psiquismo6,20,22. Noque se refere ao estado mental, devem-se considerar oalerta, a orientação, o raciocínio, a associação de idéias,a memória e a ideação. Anormalidades das funções sim-bólicas específicas, como agnosias e linguagem, praxiase outras funções corticais superiores, só devem ser vali-dadas quando os doentes estão conscientes e cooperati-vos31. O exame do equilíbrio (teste de Romberg) e damarcha afere as funções vestibular e cerebelar, a sensibi-lidade profunda, as funções extrapiramidal e piramidale outras anormalidades dos movimentos. Os movimen-tos involuntários (tremor, fasciculações, tiques e movi-mentos coréicos, atetóides e distônicos), os espasmose/ou a miotonia são evidenciados na inspeção estáticaou dinâmica. O tônus muscular avaliado pela palpação,

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a qual deve ser realizada durante a movimentação, poderevelar espasticidade, rigidez e hipotonia muscular. Osdéficits motores são avaliados na inspeção ou em ma-nobras contra-resistidas e antigravitárias e quantifica-dos de 0 a 511. O grau 5 é força normal e vence a resis-tência manual; o 4 vence parcialmente a resistênciamanual; o 3 é o mínimo para possibilitar a execução deamplitude de movimento avaliado, além de vencer agravidade; o grau 2 exerce movimentação sem gravida-de, o 1 esboça traços de construção muscular; e o zero,ausência de contração. A magnitude da força muscularpode sofrer interferências de fadiga, tônus e anormali-dades neurológicas, neuromusculares e musculares.

Os reflexos cutâneos superficiais e miotáticos sãotestados com o uso de instrumentos (martelos). A asso-ciação de déficit motor e natureza das anormalidadesdos reflexos pode indicar a natureza central ou periféri-ca das neuropatias. As provas índex-nariz, índex-índex,índex-orelha e calcanhar-joelho aferem a coordenaçãodos movimentos e a propriocepção8.

Os reflexos superficiais, como o corneano (V e VIInervos cranianos), do vômito (IX e X nervos cranianos),cutâneo-abdominais (T6-L1), cremastérico (L1-L2), cutâ-neo-anal e/ou bulbo-cavernoso (S3-S5), cutâneo-plantare palmo mentoniano, avaliam a magnitude das anorma-lidades neurológicas e a função nervosa central e perifé-rica. Os reflexos cutâneo-plantares em extensão, ou sinalde Babinski, e a abolição dos cutâneos abdominais indi-cam liberação piramidal ou comprometimento do tratocorticoespinal. Os reflexos profundos, como os axiais daface (V e VII nervos cranianos), masseterino (V nervocraniano), bicipital (C5-C6), tricipital (C6-C8), estilora-dial (C5-C6), costo-abdominais (T6-L1), patelar (L2-L4),poplíteos (L5-S1) e aquiliano (L5-S2), devem ser realiza-dos rotineiramente para aferir a ocorrência ou não deneuropatias centrais ou periféricas6,20,33. O exame dasensibilidade pode não acessar diretamente a dor, maspermite evidenciar lesões do sistema nervoso em casosde neuropatias. Para a avaliação da sensibilidade, osdoentes devem estar alertas e serenos e ter capacidadesintelectual e de concentração suficientes para fornecer asinformações de modo apropriado. O exame é mais difí-cil nos casos em que há grande sofrimento e pode sercomprometido quando se constatam litígio, simulaçãoou psicopatias. Os doentes devem responder imediata-mente e verbalizar a ocorrência de modificações da qua-lidade e intensidade das sensibilidades. O examinadordeve evitar interferir nas respostas ou relatar sensaçõescom conotações preconcebidas4,8.

A sensibilidade dolorosa superficial pode ser ava-liada com vários instrumentos, como agulhas, alfinetee algesiômetros. A sensibilidade dolorosa somáticaprofunda é avaliada pela compressão digital ou com al-gômetros aplicados em músculos e tendões. A sensibi-lidade térmica é avaliada com tubos que contêm águaquente ou fria ou por meio de dispositivos adaptadospara tal função. As sensibilidades táctil e pressórica sãopesquisadas com o uso de algodão, escovas ou outros

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instrumentos para aferir o contato e a identificação dadireção da aplicação dos estímulos (filetes de VonFrey). As sensibilidades vibratória e profunda são testa-das com o uso de um diapasão (128 Hz); e a cinético-postural, pela identificação da posição espacial dos de-dos e dos artelhos, sempre com os pacientes com osolhos fechados. Os exames da sensibilidade podem evi-denciar hiperestesia (redução do limiar sensitivo), hi-peralgesia (redução do limiar à estimulação dolorosa),hipoestesia (elevação do limiar sensitivo), alodínea(dor provocada por estímulos térmicos ou mecânicosnão-dolorosos), hiperpatia (dor exagerada ante a so-mação de estímulos dolorosos em áreas com limiar ele-vado de dor), hipalgesia (elevação do limiar para evo-car dor) ou anestesia (ausência da percepção sensitiva).Dor em queimor ou formigamento, choques paroxísti-cos, parestesias, disestesias, déficits motores, anormali-dades reflexas e anormalidades neurovegetativas deno-tam neuropatias8.

As lesões do SNC caracterizam-se por perda dedestreza, déficit de força muscular, hiper-reflexia, ocor-rência de clônus, espasticidade, instalação do reflexocutâneo-plantar em extensão e abolição dos reflexoscutâneo-abdominais (síndrome do neurônio motorsuperior). Em casos de lesões do sistema nervoso mo-tor periférico, ocorrem perda de destreza, déficit daforça muscular, amiotrofia, fasciculações, hipotoniamuscular, hipo ou arreflexia (síndrome do neurôniomotor inferior). As neuropatias periféricas que com-prometem as fibras finas resultam em anormalidadesdo exame da sensibilidade dolorosa ou térmica. Aque-las que comprometem as fibras grossas relacionam-se àalteração da sensibilidade proprioceptiva, vibratóriae/ou táctil8. Lesões extrínsecas da medula espinal po-dem produzir sua hemissecção da medula espinal ousíndrome de Brown-Sequard, com alterações motoras,proprioceptivas distais e sensitivas mistas segmentaresipsolaterais distais e comprometimento das sensibili-dades dolorosas e térmicas contralaterais.

A lesão medular completa pode causar sinais defi-citários e de liberação distais e anormalidades sensiti-vas mistas segmentares. A síndrome siringomiélica ca-racteriza-se por termoanalgesia suspensa bilateral. Alesão da cauda eqüina causa dor intensa com maiorcomprometimento radicular e maior extensão que aslesões na medula espinal. Doentes com síndromes do-lorosas encefálicas podem apresentar sinais focais(afasias, apraxias, anormalidades motoras e sensitivase da função dos nervos cranianos). Alterações na dis-criminação espacial, como agnosia, agrafoestesia e es-tereognosia, podem sugerir disfunção cortical. Em ca-sos de lesões do sistema nervoso periférico, asalterações motoras e sensitivas podem distribuir-secom padrão radicular, plexular, troncular ou multi oupolineuropático; nas lesões do sistema nervoso cen-tral, guardam padrão topográfico8. Sinal de Tinel podeser identificado como sensação de choque ou pareste-sia à percussão ao longo de estrutura nervosa lesada4.

Exames complementares

Os dados de anamnese e achados do exame físicopermitem formular hipóteses diagnósticas, em con-junto com os exames complementares pertinentespara o diagnóstico nosológico da dor, por meio deexames de imagem, resultados do sangue, do líquidocefalorraquidiano e estudos eletrofisiológicos.

Caso haja alterações neurológicas, exames de ima-gem, eletrofisiológicos (eletroneuromiografia e po-tencial evocado sômato-sensitivo) ou líquido-cefalor-raquidianos podem ser recomendados, o quedependerá do raciocínio clínico. A biópsia cutâneados nervos periféricos, das cápsulas articulares, do te-cido sinovial e dos músculos pode ser necessária emcasos especiais.

Exames de sangueOs exames de sangue devem ser otimizados para

que o médico possa avaliar as condições clínicas ge-rais do indivíduo. Esses exames contribuem para a de-tecção de possíveis disfunções, como as condições in-flamatórias, metabólicas e ou infecciosas. Os examessugeridos são: hemograma, velocidade de hemossedi-mentação (VHS), glicemia de jejum, uréia, creatinina,sódio, potássio, fator antinúcleo (FAN), fator reuma-tóide, proteína C reativa (PCR), eletroforese de pro-teínas, colesterol total e frações, triglicérides, T3, T4 li-vre, TSH, enzimas hepáticas, cálcio, magnésio,fósforo, CPK, hemoglobina glicosilada, ácido úrico ePSA (em homens com mais de 45 anos de idade oucom suspeita de prostatite). Se houver história de máabsorção, alcoolismo crônico ou desnutrição, examesséricos para dosagem de ferro, ferritina, transferrina evitaminas B12 e D são necessários. Com estes exames,é possível avaliar os possíveis componentes inflama-tórios, infecciosos e metabólicos das afecções. O he-mograma avalia o estado global do paciente, se háanemia, alguma afecção infecciosa, inflamatória oualérgica. Os exames de uréia e creatinina avaliam afunção renal e devem ser realizados especialmentequando há uso de AINE. A creatinina avalia tambémo balanço nitrogenado (estado nutricional e anorma-lidades metabólicas)12. O exame de eletroforese deproteínas é interessante para avaliar o estado nutri-cional e identificar algumas afecções inflamatórias eneoplásicas. O valor do ácido úrico acima do limitesuperior não implica a ocorrência de gota, há necessi-dade do quadro clínico compatível.

Exame de urina e fezesO exame de urina é importante para o diagnóstico

de infecção urinária e de anormalidades metabólicas,como o diabetes mellitus. O exame de fezes pode reve-lar presença de agentes parasitários ou infecciosos.Pesquisa de sangue oculto nas fezes pode ser útil emdoentes que estejam usando cronicamente AINE, cor-ticosteróides ou nos casos de afecções gastrintestinais.

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CLÍNICA MÉDICA � ATUAÇÃO DA CLÍNICA MÉDICA50

Exames de imagemExames de imagem da coluna vertebral, retroperi-

tônio e cavidade peritonial, membros, articulações, os-sos e vasos podem ser indicados de acordo com os ele-mentos da história e do exame clínico8. A radiografiaóssea auxilia no diagnóstico e no seguimento da recu-peração de fraturas, artrites, artroses, desvios e defor-midades ósseas, tumores, anormalidades metabólicas,osteopenia e osteoporose, entre outros. O exame ultra-sonográfico avalia tecidos moles e auxilia no diagnósti-co de afecções musculoligamentares, tenossinovites, se-qüelas de rupturas musculares, cistos sinoviais etc. Atomografia computadorizada avalia especialmente o te-cido ósseo, não apresentando função específica em al-gias vertebrais crônicas. A ressonância magnética (RM)permite melhor visualização de todas as estruturas dotronco e dos elementos que compõem a coluna verte-bral. Trata-se de um dos exames que mais bem avaliamestruturas ósseas e tecidos moles (encéfalo, medula es-pinal, articulações) e é atualmente o exame de referên-cia, em conjunto com avaliação clínica, para avaliar asalgias vertebrais.

Eletroneuromiografia (ENMG)e potencial evocado

A ENMG possibilita diagnosticar neuropatias peri-féricas sensitivas, especialmente as decorrentes de aco-metimento de fibras grossas e as miopatias. Com esserecurso, é possível diagnosticar a localização e a natu-reza axonal ou desmilinizante da lesão. O potencialevocado sensitivo analisa o comprometimento de es-truturas (tratos e núcleos) centrais que veiculam e pro-cessam as informações sensoriais, especialmente emcasos de mielopatia ou lesões do tronco encefálico(mielose folicular).

Densitometria óssea e cintilografia ósseaA densitometria óssea avalia a massa óssea e é em-

pregada no acompanhamento de casos de osteopeniaou osteoporose. A cintolografia óssea é indicada paraavaliar a condição geral do esqueleto e identificar tu-mores, doenças inflamatórias, infecciosas, metabólicasou traumáticas. Baseia-se na distribuição e fixação deisótopos radioativos que se ligam a sítios de atividade lí-tica ou reparadora óssea ou que se concentram onde aperfusão vascular é elevada.

Termografia por infravermelho e outros examesA termografia ou termometria cutânea por infra-

vermelho é um método diagnóstico para estudo da dorem que se registra a emissão de calor pelo corpo huma-no sem contato algum com o paciente, isto é, totalmen-te inócuo. Ela documenta, por meio de imagens colori-das, mínimas alterações térmicas cutâneas provocadaspor distúrbios relacionados ao sistema nervoso degene-rativo e microcirculatório.

É realizada uma filmagem da área afetada mapean-do-se mudanças termogênicas que possibilitam o diag-

nóstico das disfunções miofasciais (pontos-gatilho, es-pasmos musculares), vasculopatias e neuropatias perifé-ricas e centrais (desfiladeiro torácico, neuromas, síndro-me pós-herpética, pé diabético, ataque isquêmicotransitório, processos inflamatórios (artrites, sinovites,tendinopatias, costocondrites, fraturas de estresse, arte-rite temporal, reflexos víceros-cutâneos (disfunções gas-trocólicas, doença do refluxo esofágico) e padrões tér-micos atípicos (síndrome fibromiálgica).

A termometria é utilizada, sobretudo, no diagnósticoe acompanhamento de casos de dor complexa ou de di-fícil resposta terapêutica, nos quais geralmente estão en-volvidos multissitemas como síndrome fibromiálgica as-sociada a outras doenças (artrites soronegativas,neuropatias), síndrome de dor regional complexa, lom-bociatalgia e doença vascular periférica, síndrome pós-laminectomia, sacroileíte e espondiloatropatia anquilo-sante, dor abdominal crônica, enxaqueca persistente.

Outros examesO eletrocardiograma (ECG) e Holter-ECG podem

revelar arritmias ou depressão do segmento ST duranteas atividades habituais. O teste ergométrico é indicadopreviamente aos programas de reabilitação em doentesdescondicionados submetidos a sobrecarga musculoes-quelética e para seleção de doentes com risco de reagu-dização de afecções cardíacas durante a realização deexercícios. Durante sua realização, devem ser observa-das a pressão arterial e a ocorrência de dispnéia, fadiga,angina, arritmias, vertigens e anormalidades gráficas,como depressão do segmento ST no ECG. De acordocom os resultados do teste, deve-se promover adequa-ção medicamentosa, programar exercícios e orientar asatividades físicas e sociais.

A eletromiografia de superfície avalia a ação de gru-pos musculares durante diversas atividades. A planti-grafia avalia as impressões dos pés com tinta aplicada naregião plantar durante a marcha, possibilita a identifi-cação das áreas de apoio e avalia o comprimento e a lar-gura dos passos e a velocidade da marcha. Esses examespermitem a avaliação funcional dos doentes.

O exame da marcha avalia o padrão, a simetria e aharmonia dos movimentos, o comprimento da passadae a largura da base durante a marcha. Fundamenta-sena análise de imagens adquiridas com máquinas foto-gráficas ou de câmeras filmadoras associadas à eletro-miografia, eletrogoniometria e ou baropodometria9.

Importância dos exames complementaresAs informações obtidas por meio de exames com-

plementares podem guardar pouca relação com a ex-pressão da dor e do sofrimento. A relação entre os acha-dos do exame clínico e do complementar, a limitação dafunção musculoesquelética, as anormalidades neurove-getativas, o comportamento doloroso e o relato de dornão foi ainda precisamente estabelecida e parece serpouco consistente. A associação entre as anormalidadesfísicas e as queixas é, muitas vezes, ambígua. Lesões de

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grande monta podem ocorrer em doentes assintomáti-cos, e muitas anormalidades não identificadas, emdoentes com dor muito intensa. Lesões estruturais doaparelho locomotor, das vísceras ou do sistema nervosopodem comprometer a função e ser, ou não, causas decondições dolorosas.

Avaliação da dor

Dimensão sensitiva

A qualidade sensitiva da experiência dolorosa podecontribuir para a identificação da origem da dor, a qualpode ser visceral, somática, não-visceral, neuropáticaou mista. A dor neuropática geralmente é vaga, locali-zada em amplas regiões, descrita como queimor, formi-gamento, choques, pontadas, peso, ferroada, latejamen-to etc. A dor musculoesquelética é descrita como peso,queimor, latejamento ou cãibra. A dor por acometi-mento de vísceras é vaga e geralmente referida à distân-cia do órgão comprometido. A dor visceral é descritacomo cólica, peso ou queimor14,19,24.

Os instrumentos de auto-relato são os mais apro-priados para avaliar a dor e seu impacto nos vários as-pectos da vida dos indivíduos nos quais a capacidade decompreensão, abstração e verbalização é satisfatória. Es-calas padronizadas, incluindo as escalas analógicas vi-suais ou verbais de dor, as numéricas, as de descritoresverbais e as de representação gráfica não-numérica(como figuras e cores) foram desenvolvidas para tal fina-lidade. Quando o indivíduo encontra-se na fase pré-ver-bal da evolução ou não apresenta condições mentais parainformar com precisão (encefalopatia, rebaixamentoneuropsicomotor), procedimentos indiretos da observa-ção clínica ou instrumental devem ser utilizados.

Localização da dor

A localização da dor auxilia na compreensão da fi-siopatologia e na identificação das estruturas compro-metidas. A dor musculoesquelética e a dor neuropáticahabitualmente são amplamente distribuídas e freqüen-temente referidas. Para documentar o local e a magni-tude da dor, diagramas corporais podem ser utilizados(Figura 1).

Intensidade da dor

Diversas escalas foram desenvolvidas para mensu-rar a intensidade da dor, incluindo as numéricas, as ca-tegorias de expressões verbais e as analógicas visuais ouquantitativas não-numéricas (Figura 2).

Escala de categoria verbal e numérica de dorNas escalas de categoria verbal de dor, os doentes

selecionam a que melhor descreve a intensidade de suador, com base em um conjunto de descritores específi-cos, como “ausência de dor”, “dor fraca”, “dor modera-

da” e “dor intensa”. Usualmente, o doente lê a lista depalavras e escolhe a que melhor descreve a intensidadeda dor sentida. A escala numérica consiste de uma sériede números que variam de 0 a 10 ou de 0 a 100. Nessaescala, 0 significa “ausência de dor”, e 10 ou 100, “a piordor possível”. Por meio desse recurso, o doente poderáquantificar a intensidade subjetiva da dor.

Variações dessas escalas são bastante freqüentes,como a régua métrica com diferentes descritores ver-bais ou uma seqüência de cores, copos, faces etc., em

� Figura 1. Por favor, sinalize onde o(a) senhor(a) sente dor.

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Sem dorPior dorpossível

Escala visual numérica

Escala visual analógica

Escala de expressões faciais

Escala de descritores verbais

( ) sem dor ( ) dor leve ( ) moderada

( ) intensa ( ) insuportável

� Figura 2. Escalas de avaliação da dor ou de seu controle.

Escala de cores

Escala visual analógica (EVA)

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Semdor

Máximode dor

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CLÍNICA MÉDICA � ATUAÇÃO DA CLÍNICA MÉDICA52

que os doentes apontam a intensidade da dor. Os valo-res são indicados em milímetros ou centímetros ou naaparência das imagens ou cores. Tal como ocorre comoutras escalas de categorias, em razão da natureza uni-dimensional, a escala analógica visual também pode serpouco sensível para avaliar terapias que alteram o com-ponente afetivo da dor, o que é particularmente impor-tante nos casos de dor crônica1,2. As escalas verbais eanalógicas são mais indicadas para doentes com baixaescolaridade, idosos e crianças17,29 (Figura 2).

Questionário McGill de avaliação da dorEscalas multidimensionais, como o questionário de

dor McGill (QDM), também avaliam as intensidades dacondição geral do doente18. Nesse questionário ou inven-tário multidimensional de avaliação da dor, os aspectossensitivos, afetivos e avaliativos são usados para descrevera experiência dolorosa. É utilizado amplamente paramensurar diferentes tipos de dor e de terapia analgésica,sendo eficaz para discriminar tipos específicos de dor.

O QDM18 avalia as dimensões da experiência dolo-rosa segundo 78 palavras (descritores), organizadas emquatro grupos e 20 subgrupos, que descrevem com pa-lavras qualitativamente similares e expressam a sinto-matologia com magnitude crescente, os componentessensitivo-discriminativos e têmporo-espaciais (subgru-pos de 1 a 10), os afetivo-emocionais, neurovegetativos,cognitivos (subgrupos de 11 a 15) e os avaliativos da si-tuação geral da dor (subgrupo 16). O grupo miscelâneacontém quatro subgrupos de expressões não-aplicáveisaos subgrupos prévios, são palavras consideradas mis-tas por não se enquadrarem em nenhuma dimensão an-terior. Esses 16 subgrupos foram rotulados e classifica-dos segundo as dimensões: sensitiva (10 subgrupos),afetiva (5 subgrupos) e avaliativa (1 subgrupo) da dor.

O índice de dor, obtido pelo somatório dos valoresdos descritores escolhidos e número de descritores es-colhidos, possibilita quantificar a dor (Quadro I). OQDM é sensível para avaliar resultados de tratamento ediscriminar padrões específicos de dor, além de permi-

Algumas palavras que eu vou ler descrevem a sua dor atual. Escolha as palavras que melhor descrevem a sua dor. Não escolha aquelasque não se aplicam a seu caso. Escolha somente uma palavra de cada grupo (dimensão sensitiva, 1-10; dimensão afetiva, 11-15;dimensão avaliativa, 16; miscelânea, 17-20)

1 5 9 13 17

1- vibração 1- beliscão 1- mal localizada 1- castigante 1- espalha2- tremor 2- aperto 2- dolorida 2- atormenta 2- irradia3- pulsante 3- mordida 3- machucada 3- cruel 3- penetra4- latejante 4- cólica 4- doída 4- atravessa5- como batida 5- esmagamento 5- pesada6- como pancada

2 6 10 14 18

1- pontada 1- fisgada 1- sensível 1- amedrontadora 1- aperta2- choque 2- puxão 2- esticada 2- apavorante 2- adormece3- tiro 3- em torção 3- esfolante 3- aterrorizante 3- repuxa

4- rachando 4- maldita 4- espreme5- mortal 5- rasga

3 7 11 15 19

1- agulhada 1- calor 1- cansativa 1- miserável 1- fria2- perfurante 2- queimação 2- exaustiva 2- enlouquecedora 2- gelada3- facada 3- fervente 3- congelante4- punhalada 4- em brasa5- em lança

4 8 12 16 20

1- fina 1- formigamento 1- enjoada 1- chata 1- aborrecida2- cortante 2- coceira 2- sufocante 2- que incomoda 2- dá náusea3- estraçalha 3- ardor 3- desgastante 3- agonizante

4- ferroada 4- forte 4- pavorosa5- insuportável 5- torturante

Número de descritores escolhidos Índice de dor

Sensitivos .......... Sensitivo ..........Afetivos .......... Afetivo ..........Avaliativos .......... Avaliativo ..........Miscelânea .......... Miscelânea ..........

Total .......... Total ..........

� Quadro I. Questionário de dor McGill adaptado para a língua portuguesa

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tir a identificação de mais de 80% dos doentes comlombalgia com etiologia definida. Sua forma reduzidaestá sendo validada para nosso meio.

Na criança pré-verbal e verbal até os seis anos deidade e nos indivíduos com anormalidades cognitivas, asescalas de avaliação dos aspectos sensoriais não são apli-cáveis. As crianças apresentam comportamentos fisioló-gicos e psicomportametais e vocabulários próprios parador que variam de acordo com a fase do desenvolvimen-to. Na fase pré-verbal, a análise das alterações comporta-mentais (choro, expressões de sofrimento, gemidos,queixas, atitudes de proteção, movimentos gerais docorpo e comportamentos específicos)10,17, fisiológicas(freqüência cardíaca e respiratória, pressão arterial,transpiração palmar, pressão arterial transcutânea deoxigênio, níveis de cortisol circulante e de endorfinascirculantes) e psicológicas (atitudes e percepções em re-lação à dor inferidas pela seleção de cores e interpretaçãode figuras e histórias)17 são os instrumentos mais apro-priados para avaliar a dor. Na criança verbal, as escalasquantitativas verbais ou numéricas podem ser usadas17.

Avaliação funcional

Os questionários de avaliação de incapacidade po-dem identificar doentes que apresentam déficits e inca-pacidades relacionados a problemas físicos e emocio-nais, além de dificuldades para enfrentar a dor ou lidarcom ela. Os doentes podem apresentar insatisfação notrabalho, crenças de medo e evitação, que induzemimobilismo e facilitam a perpetuação de disfunçõesbiopsicossocias ou combinação de vários desses fatores.Vários instrumentos ou inventários foram desenvolvi-dos com essas finalidades.

A avaliação funcional pode ser realizada por meiode questionários específicos para determinadas afec-ções, como o questionário de Rolland-Morris, paralom balgia, ou DASH, para os com comprometimentode membros superiores, inventário breve de dor, avalia-ção de qualidade de sono, entre outros.

Avaliação da qualidade de vida

A Organização Mundial de Saúde (OMS) definequalidade de vida (QDV) como: “a percepção do indi-víduo de sua posição na vida, no contexto da cultura esistema de valores nos quais ele vive e em relação aosseus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”.Segundo a OMS, a QDV deve ser avaliada com base emoito grandes domínios: físico, psicológico, nível de in-dependência, relações sociais, meio ambiente, espiri-tualidade, religião e crenças pessoais. Todos esses do-mínios se referem à área do comportamento ou daexperiência.

Na área da saúde, a expressão “qualidade de vida”refere-se às experiências subjetivas do doente nos dife-rentes aspectos do estado de saúde, tais como sintomas,função física, estado emocional e interação social3,26.

O questionário genérico The Medical OutcomesStudy 36-item Short-Form Health Survey (SF-36) é omais amplamente usado em todo o mundo, com tradu-ção e adaptação cultural em vários países3. Este, entre-tanto, permite comparações entre populações diferentes,mas não avalia a QDV ao longo da evolução. Recomen-da-se o uso de questionário breve desenvolvido pelaWorld Health Organization Quality of Life (WHO-QOL)26 que é mais apropriado para tais finalidades.

Avaliação psicológica

A avaliação psicológica tem o papel de verificar oimpacto da dor na vida do doente. A construção do sig-nificado da dor depende da estrutura de personalidadee do estado emocional do doente, das crenças e dos pen-samentos que permeiam o seu ambiente sociocultural,bem como dos comportamentos, das atitudes e postu-ras reforçados pela rede social mais próxima.

No tratamento multi e interdisciplinar dos doentescom dor, o parecer do psicólogo é fundamental, princi-palmente nos casos de dor rebelde, estresse psicológicointenso, incapacidade funcional desproporcional aosachados clínicos, adoção de comportamentos doloro-sos, uso excessivo dos serviços de saúde, de medica-mentos ou álcool e presença de possíveis litígios e ga-nhos secundários10,24.

A avaliação psicológica requer análise detalhada dasdimensões cognitiva, afetiva e comportamental dos in-divíduos. O uso dos instrumentos de avaliação, aliadosà entrevista, auxilia na formulação dos diagnósticos psi-cológicos e no foco dos atendimentos16.

Dimensão cognitiva da dor

A percepção da dor pode ser reflexo das crenças,convicções íntimas advindas de aspectos culturais,crenças existenciais ou disfuncionais, como dano físicoincapacitante, persistência e agravamento das lesõesiniciais, ineficácia dos tratamentos, medo de dependên-cia dos medicamentos, dificuldade para lidar com si-tuações difíceis e expectativas de cura10,15,16. Além dosaspectos socioculturais, as crenças podem estar vincula-das à religião do doente e ou dos familiares. Os estudosque verificam a influência da religião reconhecem queela pode funcionar como mecanismo de enfrentamentofuncional ou disfuncional, o que dependerá do signifi-cado atribuído à dor10.

Enfrentamento (coping)Os recursos de enfrentamento (coping) podem ser

compreendidos como pensamentos e ações que têm aintenção de alterar a percepção da intensidade da dor,bem como a habilidade para manejá-la, tolerá-la e con-tinuar as atividades diárias28. A identificação das estra-tégias de enfrentamento pode facilitar a ressonância en-tre as condutas de intervenção e as necessidades dodoente, favorecendo a adesão ao tratamento. Várias es-

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calas de enfrentamento vêm sendo desenvolvidas e,dentre elas, destacam-se o Coping Strategies Question-naire (CSQ)22 e Brief Version of the Survey of Pain At-titudes23.

Dimensão afetiva da dor

Dependendo da fase da vida do indivíduo, o adoe-cimento pode provocar mudanças na reação emocio-nal, expressão de sofrimento e capacidade de ajusta-mento e de enfrentamento, além de modificar oimpacto psicossocial, a vulnerabilidade e a tolerância àdor e aos estressores. Os traços de personalidade e hu-mor, como tristeza, desapontamento, ansiedade e hosti-lidade, exercem importante papel na reação emocionaldo doente à dor, pela incapacidade de suportar o des-conforto ou por não dispor de estratégias de enfrenta-mento eficientes que lhe permitam adaptar-se às exi-gências da situação. Os transtornos de humor, comoansiedade e depressão, podem interferir na percepçãoda dor e na tolerância a ela.

É difícil distinguir a relação causal entre dor e de-pressão, pois a dor provoca quadros que se sobrepõemaos da depressão, como anedonia, diminuição do sono,perda de apetite, imobilismo, diminuição da energia,apatia e dificuldade de concentração.

A ansiedade é freqüente em doentes com dor crô-nica, e estes se mostram muito preocupados com o des-conforto físico. O medo de a dor piorar aumenta a ten-são muscular, que pode piorar a percepção da dor e dosofrimento, perpetuando o círculo vicioso dor-medo-tensão-dor. A raiva, a hostilidade e a culpa também sãocomuns, formam obstáculos no tratamento e dificul-tam a adesão aos tratamentos e o relacionamento coma equipe.

Bond1, ao associar os estados emocionais a traçosde personalidade, identificou os cinco traços mais co-muns que podem alterar a percepção da dor crônica:tendência à ansiedade, depressão, traços obsessivos, his-téricos e hipocondríacos.

Engel5 identificou traços comuns em doentes refra-tários aos tratamentos: prevalência de pessimismo, me-lancolia, depressão, culpa, história de vida marcada porsituações de agressão física e ou verbal, humilhações esofrimentos associados à má sorte. Esses indivíduos nãoconseguem vivenciar situações de conquista e, quantoisso ocorre, rapidamente sentem dor intensa que os des-foca do sucesso e da harmonia.

Dimensão comportamental da dor

Avaliar a dimensão comportamental da dor é im-portante, pois as expressões de sofrimento e as atitudesdo doente são indicadores do seu convívio com a dor.Durante o curso da doença, fatores psicológicos e com-portamentais exacerbam ou mantêm a condição dolo-rosa e a incapacidade. O comportamento de dor consis-te no modo como o indivíduo comunica a dor que

CLÍNICA MÉDICA � ATUAÇÃO DA CLÍNICA MÉDICA54

sente, se de forma verbal e ou não-verbal. Esse compor-tamento estará sempre sujeito a influências históricas,sociais e culturais1,10.

Dos diferentes métodos para avaliar os comporta-mentos de dor, o diário da dor se destaca. De fácilpreenchimento, esse recurso permite o acesso ao reper-tório de expressões de dor registradas pelo doente e ob-servações sobre intensidade da dor, consumo de medi-cação, atividades diárias, humor, enfrentamento dasdificuldades relacionadas à dor etc. Esse diário auxiliano desenvolvimento de recursos e estratégias de enfren-tamento funcionais, na prevenção de crises de dor e naobtenção de medidas mais eficazes de alívio da dor15,16.

Loduca15 e Loduca e Samuelin16 desenvolveramuma versão reduzida do diário da dor: solicita-se aodoente que descreva brevemente as atividades realiza-das durante os períodos matutino, vespertino e notur-no, e que indique a intensidade da dor e o humor emcada período.

Considerações finais

Dor é uma experiência subjetiva e individual queacarreta sofrimento físico e psicológico e comprometeseriamente a funcionalidade e a qualidade de vida dosdoentes. Seu impacto biopsicossocial é bastante signifi-cativo. A avaliação do fenômeno doloroso e dos impac-tos funcionais é importante para definir a etiologia dador, registrar e comparar os resultados ao longo da evo-lução e os resultados dos tratamentos realizados.

A avaliação funcional de doentes com dor é com-plexa: envolve a quantificação da magnitude e a nature-za da dor, as repercussões presentes e pregressas, os re-sultados dos tratamentos e suas implicações; auxilia naformulação das hipóteses diagnósticas e no melhor pla-nejamento das condutas; e permite comparações entreos resultados dos tratamentos. Apesar dos avanços nosconceitos sobre dor e nos conhecimentos nas áreas dasciências básicas e aplicadas envolvendo seus mecanis-mos, razões e tratamento, o diagnóstico das condiçõescausais e a quantificação da dor e de suas repercussõesainda constituem matéria controversa. A expressão dasqueixas varia de acordo com alguns aspectos: idade, lo-calização e natureza das condições causais, repercussõesfísicas, psíquicas e sociais da dor, fatores ambientais eculturais, estado mental e ritmo biológico dos indiví-duos. Muitos pacientes experimentam mais de umaqualidade de dor na mesma dor ou em diferentes re-giões do corpo.

O objetivo do tratamento do paciente com dor nãoé necessariamente a eliminação completa da sintomato-logia dolorosa, mas a melhora da funcionalidade e areabilitação física e psicossocial. Outros propósitos es-tão envolvidos no tratamento: redução do uso exagera-do de medicamentos e das estruturas dos sistemas desaúde, diminuição de comportamentos inadequados eincentivo à adoção de estratégias ativas de enfrenta-mento. O tratamento adequado depende do diagnósti-

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co acurado, e este depende dos resultados das avaliaçõesobtidos por meio de anamnese, exame físico, examescomplementares e avaliação psicológica.

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