56 escola moderna nº 6•5ª...

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56 ESCOLA MODERNA Nº 6•5ª série•1999 Transcrevemos esta comunicação proferida no VI encontro da CEFEPE «Aprender Aprendendo», na Fundação Calouste Gulbenkian, em Janeiro de 1998. A gradeço à CEFEPE o convite que nova- mente me fizeram para estar entre vós. Nada é mais precioso e fundamental para os educadores profissionais do que estes tempos e espaços de descrição da profissão, interro- gando-a e interrogando-nos e, neste trânsito, acrescentarmos a escola e o mundo. Na verdade, nunca nos foi tão vital reflectir a profissão como hoje. As injustiças e os con- flitos sociais, os desvarios financeiros, os ris- cos ambientais, a violência generalizada, o crescimento do número de pobres e do nú- mero de excluídos, a própria crise da cultura, entre muitos outros factores, levam as socie- dades a questionar a educação e a interpelar a escola, depositando nesse tempo de infantes e de adolescentes, e nessa experiência de cida- dão–aluno, muitas das esperanças e das visões de um novo homem e de uma nova humani- dade. No fim do século da escola, a escola volta a ocupar a centralidade dos projectos de socie- dade para uma nova cidadania. Essa centrali- dade transporta implicitamente no seu âmago uma nova visão e um novo sentido de escola. Não há esperança que floresça na velha escola, onde predominam as relações de hierarquia, onde o saber é vivido como poder e onde o poder é percebido e vivenciado como domínio sobre o outro. Não há projecto de mudança num espaço em que o défice de democracia é visível e em que o encontro educativo rara- mente acontece entre semelhantes. Não há fu- turo para um sistema escolar napoleónico, centralizado, caracterizado pelo gigantismo massificante, uniformizante, a determinar pro- cessos fortemente selectivos. A escola, como horizonte onde os olhares sobre a nova humanidade se podem e devem acrescentar em troca fecunda, edifica-se com outras fundações e constrói–se numa arquitec- tura inteligente: é «a escola como promotora de cultura, como fonte de activação social para mais bem estar, mais progresso, mais fraterni- dade, mais equidade nas relações humanas» (Niza, 1992), é a escola como experiência de avanço e rampa de projecção para melhor vida. A reinvenção da escola Daí a urgência da reinvenção da escola. Reinvenção da escola que é também a reinven- ção dos sentidos do educar. Que tem que ser sobretudo a reinvenção da economia e da eco- logia dos processos do aprender a descobrir a cultura. E para que não esqueçamos o essen- cial, digamo-lo já: neste trajecto não pode ha- ver excluídos. Reinventar a escola é pensá-la, sempre e cada vez mais, escola para todos. A escola, como a vida, conjuga-se sempre no plu- ral, acrescenta-se no diverso e desafia-se no complexo. Isto implica um novo objecto epis- Uma cultura para o trabalho de projecto Américo Peças ESCOLA N. 6 6/12/06 13:24 Página 56

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Transcrevemos esta comunicação proferida no VIencontro da CEFEPE «Aprender Aprendendo», naFundação Calouste Gulbenkian, em Janeiro de1998.

Agradeço à CEFEPE o convite que nova-mente me fizeram para estar entre vós.

Nada é mais precioso e fundamental para oseducadores profissionais do que estes tempose espaços de descrição da profissão, interro-gando-a e interrogando-nos e, neste trânsito,acrescentarmos a escola e o mundo.

Na verdade, nunca nos foi tão vital reflectira profissão como hoje. As injustiças e os con-flitos sociais, os desvarios financeiros, os ris-cos ambientais, a violência generalizada, ocrescimento do número de pobres e do nú-mero de excluídos, a própria crise da cultura,entre muitos outros factores, levam as socie-dades a questionar a educação e a interpelar aescola, depositando nesse tempo de infantes ede adolescentes, e nessa experiência de cida-dão–aluno, muitas das esperanças e das visõesde um novo homem e de uma nova humani-dade.

No fim do século da escola, a escola volta aocupar a centralidade dos projectos de socie-dade para uma nova cidadania. Essa centrali-dade transporta implicitamente no seu âmagouma nova visão e um novo sentido de escola.Não há esperança que floresça na velha escola,onde predominam as relações de hierarquia,onde o saber é vivido como poder e onde opoder é percebido e vivenciado como domínio

sobre o outro. Não há projecto de mudançanum espaço em que o défice de democracia évisível e em que o encontro educativo rara-mente acontece entre semelhantes. Não há fu-turo para um sistema escolar napoleónico,centralizado, caracterizado pelo gigantismomassificante, uniformizante, a determinar pro-cessos fortemente selectivos.

A escola, como horizonte onde os olharessobre a nova humanidade se podem e devemacrescentar em troca fecunda, edifica-se comoutras fundações e constrói–se numa arquitec-tura inteligente: é «a escola como promotorade cultura, como fonte de activação social paramais bem estar, mais progresso, mais fraterni-dade, mais equidade nas relações humanas»(Niza, 1992), é a escola como experiência deavanço e rampa de projecção para melhorvida.

A reinvenção da escola

Daí a urgência da reinvenção da escola.Reinvenção da escola que é também a reinven-ção dos sentidos do educar. Que tem que sersobretudo a reinvenção da economia e da eco-logia dos processos do aprender a descobrir acultura. E para que não esqueçamos o essen-cial, digamo-lo já: neste trajecto não pode ha-ver excluídos. Reinventar a escola é pensá-la,sempre e cada vez mais, escola para todos. Aescola, como a vida, conjuga-se sempre no plu-ral, acrescenta-se no diverso e desafia-se nocomplexo. Isto implica um novo objecto epis-

Uma cultura para o trabalho de projecto

Américo Peças

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témico e reivindica uma outra matriz organi-zacional e relacional. É o próprio relatório paraa UNESCO, da Comissão Internacional sobreEducação para o século XXI (UNESCO, 1996)que afirma:

«Devemos cultivar, como utopia orienta-dora, o propósito de encaminhar o mundopara uma maior compreensão mútua, maissentido de responsabilidade e mais solidarie-dade na aceitação das nossas diferenças espiri-tuais e culturais.

A educação, permitindo o acesso de todosao conhecimento, tem um papel bem concretoa desempenhar no cumprimento desta tarefauniversal: ajudar a compreender o mundo e ooutro, a fim de melhor se compreender.»

Temos hoje um novo cenário, transversal atodas as ciências, necessariamente indutor denovas praxis educativas. É um cenário que seconjuga no emergente, no complexo, no ime-tódico, no imprevisível, no plural, no transdis-ciplinar, na inclusão, na cooperação… este ce-nário interpela também o território e o papelda escola nas nossas sociedades. Relativizadoque está o valor de transmissão dos saberes es-colares, libertando a escola do jugo da selecçãoe da exclusão, acrescenta-se a escola «com osentido educativo do encontro entre pares, su-blinha-se-lhe a responsabilidade renovada deespaço fundador de cidadania e de experiênciavital de descoberta da cultura» (Niza, 1992).

Uma cultura para o projecto.

Se fiz convosco esta reflexão como quaseprefácio a propósito de projectos, é porque en-tendo que o projecto não é por si uma pana-ceia universal nem é um dispositivo inerte aintegrar na pedagogia. Explicitemo-nos. e tal-vez que o velho sutra hindu nos ajude a com-preender o dilema. Diz assim: «A palavra é deduas espécies: aquela em que a coisa falada épercebida e aquela em que a coisa não é per-cebida.» Que compreensão se faz em nósquando falamos de projecto? Como é perce-bido o desafio semântico, ou melhor, que se-

mântica lhe emprestamos? É que o projecto,como instrumento, serve para tudo: sem que-rer ser dicotómico, podemos identificar pelomenos dois campos claramente distintos sobrea ideia e a praxis de projecto: dum lado perce-bemos projectos retóricos, projectos de poder,projectos de manipulação sobre outros, atéprojectos inconfessáveis… Num outro campoidentificamos projecto como transparência,implicação social para o progresso, o bem es-tar e o desenvolvimento, projectos participa-dos, estimulantes para os que neles partici-pam, com sentido, democráticos, construtoresde mais e melhor cidadania.

Pensar projecto e dizer projecto não é poisnecessariamente assumir a democracia, a mu-dança e a inovação: muitos dos percursos queusurparam o nome de projecto, assentam nomaior e mais caduco formalismo vivencial erelacional, inscrevendo-se numa lógica de po-der e numa estratégia de visibilização e pro-moção só de alguns. Embora sem este grau deperversão, encontramos também o projectoenredado na burocracia didáctica, árido, direc-tivo, frustrante, perdulário de energias e de re-cursos, por isso anti–económico e anti–ecoló-gico, desinvestido de afecto e onde o aprenderestá ausente.

O projecto é um compromisso social

O entendimento de projecto sobre o qualqueremos assentar o diálogo situa-se numa ló-gica e numa praxis de projecto comprometidocom a vida e o mundo, para acrescentar sen-tido à vida e ao mundo e, nessa viagem a fazercom muitos, acrescentarmo-nos em humani-dade. «Educar o homem significa educá-lopara constituir o mundo», diz-nos JoaquimGonçalves (1989). Todo o conhecimento hu-mano emerge do mundo da vida. E o homemsó se conjuga em relação. A escola que se querexperiência de humanidade (oficina de humani-dade lhe chamou Coménio), há–de radicar navida, numa prática a que já se chamou «bio-cêntrica», por oposição ao concentracionismo

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que tem caracterizado a escola. Trata-se nofundo de identificar os sentidos mais fecundosque constroem a escola na sua relação com omundo.

Aqui o projecto surge como sentido, comocultura, e esse sentido é o de organizar o olhar,a escuta, as energias, os sujeitos e as acçõespara responder a desejos e aspirações que sãosempre necessidade de desenvolvimento intere intrapessoais. Projectos que comprometem,descobrem os obstáculos e procuram os meiosde os vencer. Esta cultura de projecto remete oacto de educar para um outro paradigma: jánão transmissão de informação sem ligaçãocomo o vivido, mas o aprender como meio decompreensão e acção sobre os quotidianos,orientado para a resolução dos problemas e dasdificuldades, provocando novas e mais inten-sas questões para nos fazermos todos (educa-dores e educandos, animadores e animados)mais cultos e melhores cidadãos. Poderíamosaqui invocar o desafio intenso e provocadorque nos faz Boaventura Sousa Santos (1998)num livrinho chamado «reinventar a democra-cia», identificando o «ponto de ignorância»com o colonialismo cultural e o «ponto de sa-ber» com a solidariedade, projectando a partirdaqui uma nova epistemologia que define o«conhecimento como prática de emancipação».

Emancipar: aqui radica a mais profunda evi-dência que há–de alimentar o sentido do pro-jecto. Já Rui Grácio (1995), numa síntese ma-gistral, o sublinhava, juntando–lhe o Promovere o Provocar. Aí temos uma trilogia inspiradorapara o sentido da profissionalidade de educa-dores: Emancipar, Promover, Provocar. São tam-bém evidências de que os projectos estão ávi-dos para se cumprirem.

A turma como centralidade do trabalho de aprendizagem na escola

Sendo a problemática do projecto tão vastae transversal a todo o sistema educativo, con-vém, para nosso norte, escolher uma plata-forma de observação e análise para continuar-mos a reflectir sobre projecto. Escolhemos a

turma, a classe, por a considerarmos a centra-lidade de todo o processo educacional. Desselocus iremos partir, nunca o perdendo como re-ferência do discurso, e optando claramentepor reflectir sobre os «projectos pedagógicos»,sobre os projectos que emergem no interior daturma ou são assumidos pela turma, deixandode lado (mas não de fora) os níveis mais sisté-micos da Escola e do Agrupamento de Escolase do «projecto educativo».

E uma das primeiras reflexões fá-la-íamosdecorrer do próprio desafio do título que nosfoi proposto pela CEFEPE: «a explosão dosprojectos». Deter-nos-íamos aqui para tomarconsciência de que a explosão de projectos,para milhares de aprendizes, foi antes o fenó-meno da «implosão»: sobre eles caiu o ónus,apesar de inocentes, da quase obrigatoriedadede desenvolver projectos. Foram executores,quando não vítimas, duma modernidade malconjugada. Sobre eles caíram milhares de pro-fessores cheios de boas intenções, voluntario-sos, mas pouco ou nada «armados» com amatriz organizacional e ética que o projectosolicita; sobre eles caíram mascarados interes-ses de protagonismo e visibilidade social; so-bre eles caíram ainda as estratégias de marke-ting de muitos serviços e instituições queacenavam às escolas com projectos para reali-zar serviço ou retirar mais valias.

Desta pandemia de projectos, desta «dita-dura» do projecto, havemos de retirar uma li-ção: um projecto pedagógico ou nos reconciliacom a escola, com a vida, com o estudo e comos outros ou não vale a pena. As escolas e asturmas têm que se defender de uma inflaçãode pseudo–projectos que reduzem os sujeitosa executores de actividades com uma lógicaexterior e oportunidade deslocada.

Por isso defendemos que a turma, esse cos-mos social de aprendizagem, há-de ser ogrande regulador do trabalho escolar. Aí se po-derá delinear um «modelo ascendente» (Niza,1995) na emergência e gestão dos projectos, aíse poderão perspectivar as extensões, as tem-poralidades, a divisão de tarefas, as parcerias,

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os resultados, os efeitos: com os aprendizes,sempre. Sem os aprendizes, que o mesmo édizer contra os aprendizes, nunca. Convoque-mos aqui as palavras de Dewey: lembrava eleque Platão definia o escravo por estas palavras«aquele que executa os projectos concebidospelos outros». São palavras de evidente opor-tunidade e poder formativo para nós, profis-sionais de educação.

Uma ecopedagogia

O desenvolvimento de projectos encontrao seu espaço natural na turma, enquanto es-trutura sociocêntrica de reinstituição de signi-ficados culturais e de aprendizagem democrá-tica. Aí, no trânsito permanente de construçãoda cidadania que representa a passagem dosegos ao hetero e ao alter, o projecto é efectiva-mente a marca, o sustento e o horizonte doque poderíamos chamar de ecopedagogia.Esta ecopedagogia reivindica uma organizaçãocurricular profundamente democrática e inclu-siva, o que pressupõe, antes de mais, uma ou-tra visão da criança, uma outra assunção da in-fância e da adolescência. É que do extremismoignorante que postulava uma criança comoadulto em miniatura, que justificou e exploroua força do trabalho infantil durante décadas (ea quem o nosso Soeiro Pereira Gomes chamou«os homens que nunca foram meninos»), de-senvolveu a escola como contraponto um ou-tro extremismo, pretensamente assente numqualquer psicologismo deslocado, que reduz acriança a objecto de protecção, objecto de edu-cação, objecto de planificação, objecto de es-tudo, a objecto do nosso projecto. Ora acriança é um estado e um tempo de humani-dade pleno de potencial e intenso de premis-sas. A criança não é um adulto adiado, não é ocidadão em devir. A criança é, aqui e agora, ci-dadã–sujeito–de–direitos, que participa por di-reito na construção da sua vida e da vida dasua comunidade. A menoridade etária não seconfunde com menoridade de participação:educação e cidadania são dois construtores in-

dissociáveis que se acrescentam mútua e infi-nitamente. A história da sociedade tem siste-maticamente negado à criança, implícita e ex-plicitamente, o mais fundamental direito, o dese expressar e o de se organizar. O direito àpalavra e à construção da realidade a partir dassuas representações e aspirações é sistematica-mente negado às nossas crianças e adolescen-tes nos percursos escolares… tanto maisquanto as suas falas e os seus pensamentos sedistanciam dos padrões culturais dominantes.

O projecto exige uma história, uma identidade

Por tudo isto, reforcêmo-lo, os projectos daturma podem instituir uma nova relação, pers-pectivada no quadro dos direitos humanos edos direitos da criança. O projecto invoca umarelação entre semelhantes, suportada numa ne-gociação permanente, exaustivamente explici-tada, para que todos se vão apropriando, fe-cundamente, dos seus amplexos e dos seusinfinitos. O projecto exige uma relação feita deintimidades. De implícito e de explícito. Dediscursos e de incursos. De não sei e de querosaber. De espantos e de interrogações. O pro-jecto exige uma história, um sentido de per-tença, uma identidade. Não pode surgir do va-zio afectivo, dessa impossibilidade de sermose de nos fazermos; não floresce no gigantismoe na impessoalidade que marca tantos dos per-cursos escolares. A turma é à medida dessesprojectos de vidas que se fazem de muitos pro-jectos sobre a vida. É também na turma quesão mais eficazes de instituir os processos deregulação, assentes no contrato. O contrato é ocentro vital do projecto: o que vamos fazer,quem faz, quando, para quê, com quem… sãoperguntas a exigirem explicitação, a reivindica-rem o diálogo negocial. O contrato não é umaburocracia desnecessária. O contrato con-funde-se com o sentido do próprio projecto.Boaventura Sousa Santos (1998), na obra que járeferimos, escreve que «o contrato social é agrande narrativa em que se funde a obrigação

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política moderna (…) estabelecida entre ho-mens livres para maximizar essa liberdade». Ocontrato, emergência da tensão entre regulaçãosocial e emancipação social, é exercício de li-berdade e condição de mais liberdade.

O projecto funda-se (e fecunda-se) numaorganização democrática.

Estas condições de exequibilidade e vivifi-cação dos projectos prenunciam um modelopedagógico com uma forte organização demo-crática. A intenção inicial, a emergência doprojecto, o seu desenvolvimento, não ocorremem salas de aula com uma ambiência vazia erelações frustres. O projecto é implicação,exige empenho e desempenho, é trabalho sé-rio. O projecto é a subversão da escola do té-dio através do trabalho que nos acrescenta emsaber e cidadania. E para que possamos traba-lhar há que ter condições propícias: o projectoreivindica um cenário em que a gestão dotempo, a gestão dos conteúdos, a gestão dosrecursos e dos mediadores do saber, a gestãodos impulsos, dos desejos, dos interesses, sãopertença da turma.

A planificação é pertença da turma. Aí se-rão explicitados e negociados os tempos do in-dividual, do grupo, do colectivo, os tempos doestudo e os tempos do ensino, os tempos dainvestigação e os tempos da intervenção.

A gestão dos conteúdos é pertença daturma. Desde o direito básico dos alunos co-nhecerem, nesse seu «ofício» (Perrenoud,1995), o que deles o estado e a sociedade es-pera (inscrito nas orientações curriculares eprogramas), à organização do estudo dessesconteúdos: quando, como, com quem, quefuncionalidade, que contextualização solici-tam?… Mas também os pontos de partidapara o estudo autónomo. E ainda as perguntasque temos, e também, e sobretudo, os ques-tionamentos que a vida, a comunidade e oscontextos nos provocam.

A gestão dos espaços e dos recursos é per-tença da turma. Uma sala tem que ser um es-paço rico, diverso, estimulante: zona da es-crita, zona das ciências e matemática, zona de

ficheiros, guiões e apoios ao estudo, zona dasexpressões plásticas, zona da música e do tea-tro, zona de referentes cooperativos para a or-ganização sócio–moral do grupo, mobiliáriopolivalente que suporte as várias formas de or-ganização do trabalho: individual, a pares, empequenos grupos, a turma toda. A pobrezaaviltante de muitos dos nossos cenários esco-lares, de muitas das nossas salas, já não sepode tolerar. Tudo é feio, redutor, centrípeto,caduco. O conhecimento, a emancipação, acultura, exigem condições adequadas; não so-fisticação, mas a dignidade que a tarefa do es-tudo solicita.

Ainda algumas evidências

Tudo isto são evidências sobre projecto.Mas a sabedoria está na capacidade de percep-cionar o evidente numa floresta de ilusões e defalácias. Uma outra evidência é a cooperaçãoque há-de sustentar todo o trabalho e toda aconvivência social dos aprendizes entre si ecom outros. A experiência do projecto há-decontrariar as práticas selectivas e de exclusõessempre crescentes – aí existem as melhorescondições para uma prática de diferenciaçãopedagógica que se constitua como experiênciade aprendizagem e de sucesso para todos osaprendizes.

Aprendemos mais quando ensinamos. Maspara além desta obviedade que Bruner refor-çou, precisamos de compreender que nosacrescentamos eticamente quando encontra-mos outro sentido fundamental do projecto: apartilha, a devolução social do que descobri-mos e reflectimos. Esta prática social constitui-se nuclear e incontornável em qualquer expe-riência de projecto.

E uma última palavra. O projecto é ainda oespaço, o tempo e a experiência educativamais potenciadora da construção de uma pro-fissionalidade plena. Aí nos reconheceremoscomo organizadores de ambiências de apren-dizagem estimulantes para todos; trabalhado-res, com outros, da promoção da cultura e de

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mais e melhor cidadania. Nessa viagem, quenunca pode ser solitária, acrescentar-nos-emosem ciência e humanidade e rescreveremosquotidianamente os horizontes e os infinitosde ser educador.

Bibliografia:

GONÇALVES, J.C. (1989). A escola em debate.Braga: Faculdade de Filosofia da UniversidadeCatólica Portuguesa.

GRÁCIO, R. (1995). Obra completa. Lisboa: Fun-dação Calouste Gulbenkian.

NIZA, S. (1992). Pilares de uma prática educativa eEm comum assumimos uma educação demo-

crática. In nos 25 anos do Movimento da EscolaModerna. Lisboa: Movimento da Escola Mo-derna.

NIZA, S. (1995). A área-escola: um debate necessá-rio. In Noesis, 33, 16-25. Lisboa: Instituto deInovação Educacional.

NIZA, S. (1998). A organização social do trabalhode aprendizagem no 1º ciclo do ensino básico.In Inovação, 11,77-98. Lisboa: Instituto de Ino-vação Educacional.

PERRENOUD, P. (1995). Ofício de aluno e sentidodo trabalho escolar. Porto: Porto Editora.

SANTOS, B.S. (1998). Reinventar a Democracia.Lisboa: Gradiva.

UNESCO (1996). Educação, um tesouro a desco-brir. Porto: Edições Asa.

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poder material. Portanto só se formos actoresde mudança social poderemos convictamentedesafiar os nossos jovens para um mundocheio de desequilíbrios, assimetrias, injustiçasmas no qual procuramos instituir práticas so-ciais alternativas que possibilitem uma maiorjustiça social.

Acontece que, por vezes, neste tipo de tra-balho esgotamos no seu exercício a necessi-dade de transformação social. Outros que pro-curem «novas comunidades interpretativas»como lhes chama Boaventura Sousa Santos,porque nós já temos um trabalho que contribuipara a reparação das injustiças sociais. Hácomo que uma perversidade inconsciente quenos leva a pensar que o facto de trabalharmoscom desqualificados sociais nos qualifica en-quanto cidadãos.

Este tipo de convicção parece-me tão gera-dor de perigosos equívocos como aquele quenos faz procurar no trabalho com os margina-lizados o convívio com a marginalidade queachámos mais seguro não nos consentir, masda qual temos nostalgia.

Como diz João dos Santos «os melhoreseducadores são aqueles que actuam esponta-neamente no plano daquilo que é aceitável navida social e não no plano imaginário». Traí-mos as crianças e os jovens se não os ajudar-mos a integrar saberes da ordem do social. Nãopodemos confundir a distância abissal que estáentre quem nasce marginalizado e quem optaconscientemente pela marginalidade.

Precisamos de assumir inequivocamente anossa condição de agentes cívicos e morais.

Mas gerar situações de civilidade potencia-doras de integração e normalização requer,para podermos actuar sem «não ditos» nemambivalências, a experiência de que se podemencontrar práticas sociais mais justas.

Para esta experiência existir precisamos detrabalhar quer enquanto cidadãos, quer en-quanto agentes educativos e portanto com ascrianças e jovens em formas de intervenção so-cial, atravessadas pela cultura quotidiana e que

resolvam problemas autênticos da comuni-dade.

De uma forma «radical, dolorosa e promis-sora» aprendemos com a história a necessidadede instruirmos um viver democrático. E o exer-cício da cidadania aprofundará o ideal demo-crático sempre que revalorizar o princípio dacomunidade, as condições culturais, sociais eregionais potenciadoras da igualdade de opor-tunidades e ainda o princípio da autonomia eda solidariedade. Quanto mais estes princípiosimpregnarem as instruções intermédias emque vivemos, convivemos e trabalhamos equanto maior for a sua visibilidade social maispossível será ajudar as nossas crianças e jovensa elaborar o seu desejo de futuro de uma formamais realista e socialmente adequada.

Cabia-me falar do medo dos jovens e crian-ças com que trabalhei. Se contornei o tema nãofoi porque entre eles o medo não existisse. Elestinham o pior dos medos. O medo de ter medo,o medo de se aperceberem da sua concreta rea-lidade. Por isso atordoavam-se a todo o mo-mento com exemplares «passagens ao acto» e«fugas em frente». Mas eu acabei por falar doefeito de espelho que eles tiveram em mim.Porque me mostraram os meus vários medos,entre os quais o de perceber a minha diversi-dade e o de me assumir como cidadã de ummundo em crise em que o desenvolvimentoocorre por vezes mais num sentido destrutivodo que construtivo. Elas mostraram-me quantoeu me queria «salvar» empurrando-os para ummundo difícil e injusto, de cuja complexa leiturae transformação eu me queria apartar.

Por tudo isto, optei por estas reflexões sobrea urgência de uma postura ética, científica e so-cialmente comprometida.

Porque aprendi que são requisitos funda-mentais para que os nossos jovens mais humi-lhados, mais marginalizados aprendam (com onosso apoio) o que Sartre diz e Sérgio Niza meensinou: «Mais importante do que aquilo quenos fizeram é o que fizermos do que os outrosfizeram de nós».

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