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Xamanismo transversal: Lvi-Strauss e a cosmopoltica amaznicaEduardo Viveiros de Castro Museu Nacional, Rio de Janeiro

Convidado, em maro recm-passado, a redigir uma apresentao ou um posfcio aos estudos reunidos no presente volume, dei-me conta de que no teria tempo de ler, assimilar e fazer um comentrio altura de textos to densos. Antes que um escrito em posio de sobrevo metafrico srie, seria mais fcil contribuir com uma adio metonmica, lateral, a ela. A alternativa que propus aos organizadores foi este artigo. Ele se origina em uma palestra feita em outubro de 2007, no departamento de antropologia da Universidade de Cambridge. Eu ali retomava observaes j publicadas (Viveiros de Castro 2002a), embutindo-as em uma apreciao mais atual e sobretudo mais enftica da importncia do pensamento de Lvi-Strauss para o futuro imediato da disciplina. O texto a seguir foi reescrito em estilo indireto, dando livre curso aos micro-desenvolvimentos feitos no bater das teclas, aqueles cacos providenciais que fazem com que, de tanto escrever o mesmo artigo, acabemos por escrever um outro. I O palestra que eu inicialmente contava fazer intitulava-se O Anti-Narciso: a idia da antropologia como cincia menor. Seu propsito era caracterizar as tenses conceituais que atravessam e constituem a antropologia contempornea como tal. Mas como o projeto corria um certo risco de auto-imploso, j que o menor descuido poderia transform-lo em uma enada de bravatas bem pouco anti-narcsicas a respeito da exclencia das posies professadas, resolvi mudar-lhe o nome, e parte do contedo, para Xamanismo transversal: a forma e a fora na cosmopoltica amaznica.1 Alm de enganadoramente etnogrco, ele agora evocava menos alguma losoa continental extica que um exemplar da mais pura antropologia social britnica: o ttulo era uma aluso ao artigo Shamans, prophets, priests and pastors de Stephen Hugh-Jones (1996),

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O subttulo remudado do presente artigo visa apenas enquadr-lo no tom geral do livro; o contedo permanece substancialmente o mesmo da palestra.

2 publicado no livro Shamanism, History and the State, organizado por Caroline Humphrey e Nicholas Thomas. Estvamos, como j disse, em Cambridge. A noo de um xamanismo transversal era pois uma provocao amigvel a Hugh-Jones (presente palestra), especialista na etnologia do Noroeste amaznico2, que no artigo citado avana uma distino entre dois estilos de xamanismo na regio, um que chamou horizontal e outro vertical, distino de possvel validade no s para toda a Amaznia, como bem mais alm. Ela veio, com efeito, a ser utilizada com muito sucesso por Morten Pedersen em uma anlise das ontologias norte-asiticas, a qual constituiu tambm, diga-se de passagem, a primeira tentativa de extenso do conceito amazonista de perspectivismo a outras conguraes cosmopolticas.3 Foi a generalizao de Pedersen que me despertou para o potencial analtico da distino de Hugh-Jones, ainda que o problema da determinao das dimenses horizontais e verticais das estruturas cosmopolticas indgenas me preocupe h bastante mais tempo; meu trabalho sobre os sistemas de parentesco da Amaznia, por exemplo, interessa-se centralmente pelas relaes entre hierarquia e reciprocidade, para recordarmos os termos da questo tal como formulada em dois artigos seminais de Lvi-Strauss (1944, 1956a/1958).4 Com o adjetivo transversal, entretanto, eu estava reintroduzindo de maneira no muito sutil a mesma losoa extica que pretendia ter expurgado do ttulo. O conceito de transversalidade, como se sabe, pertence ao vocabulrio de Gilles Deleuze e Flix Guattari.5 Ele designa um modo de comunicao entre heterogneos caracterstico das multiplicidades intensivas ou rizomticas, aqueles sistemas acentrados e no-totalizveis que povoaram as ontologias de diversas cincias ao longo do sculo XX, vindo a consolidar-se, de maneira exemplar na losoa de Deleuze, como uma inovao metafsica importante em relao aos conceitos tradicionais de objeto ou entidade inovao que ainda est longe de ter sido perfeitamente absorvida pelas disciplinas humanas e sociais. Com a transversalidade eu estaria sugerindo uma linha de fuga (a linha de fuga de Deleuze e Guattari sempre uma transversal e uma tangente) em relao s coordenadas cartesianas da distino de Hugh-Jones. Mas tal linha de fuga no me afastava tanto assim, a bem2

E um maiores conhecedores de Lvi-Strauss na antropologia britnica. Seu livro sobre a cosmologia e ritual dos Barasana do Alto Vaups (Hugh-Jones 1979) uma aplicao pioneira da teoria das Mitolgicas a um estudo em profundidade de um povo amaznico.3

Ver Pedersen 2001, Viveiros de Castro 1996/1998. Uma discusso coletiva sobre o perspectivismo na sia Interior (Monglia, Sibria, Tibet) acaba de ser publicada em Pedersen, Empson & Humphrey (orgs.) 2007.4 5

Ver Viveiros de Castro 2002b, 2002c, 2007. Guattari 1972/2003; Deleuze 1979. Ver Bogue 2007 para uma apreciao recente.

3 dizer, de outras coordenadas, cantabrigianas essas: ao contrrio, havia vrias conexes parciais, como qualquer leitor de Marilyn Strathern estaria (parcialmente, bem entendido) disposto a admitir. Esse era um dos nveis conotativos da palestra, que possua, entre outros, um carter de homenagem subtextual grande antroploga de Cambridge, aquela dentre todos os seus contemporneos que se mostrou mais capaz de assumir e levar frente, de modo radicalmente inovador, o autntico esprito do estruturalismo.6 Os herdeiros de um pensamento nem sempre esto onde se imagina. Na introduo da fala, no pude deixar de fazer um resumo das intenes por trs do ttulo original, pois elas permaneciam atuantes, se bem que atenuadas, no texto apresentado. Elas buscavam, primeiramente, indicar as transformaes na antropologia correlatas emergncia, em nossa paisagem intelectual geral, de toda uma famlia de ontologias planas,7 que pr-concebem ou pressupem o real como multiplicidade dinmica imanente em estado de variao contnua, um meta-sistema longe do equilbrio antes que como manifestao combinatria ou implementao gramatical de princpios ou regras transcendentes , e como relao diferenciante, isto , como sntese disjuntiva de heterogneos antes que como conjuno dialtica (horizontal) ou totalizao hierrquica (vertical) de contrrios. Essa concepo da diferena transversal, que se constituiu progressivamente no interior de um movimento de relativo reuxo da Linguagem enquanto macroparadigma antropolgico, veio problematizar focalmente a dupla oposio entre, por um lado, os signos e o referentes (a ordem lgica das razes e a ordem material das causas), e, por outro lado, as pessoas e as coisas (a ordem social dos sujeitos e a ordem natural dos objetos), procurando ao mesmo tempo evitar qualquer facilidade reducionista. Do ponto de vista das periodizaes que s vezes tomamos emprestadas de outras disciplinas, pode-se dizer que a ontologia da diferena neo-barroca (Kwa 2002), escapando (transversalmente) alternncia pendular a que se costuma reduzir a histria da antropologia, a saber, aquela entre o atomismo mecanicista clssico (com a dicotomia indivduo-sociedade que lhe est associada) e o holismo organicista romntico (com sua poderosa dialtica da natureza e da cultura). Em outra escala temporal, essa ontologia ser classicada como ps-estruturalista.8

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Como observou com argcia Alfred Gell (1999: 31).

Para uma exposio desse conceito, ver DeLanda 2002. O leitor achar proveito em buscar na internet a expresso at ontology, que mostra uma interessante distribuio transdisciplinar.8

Ver um primeiro esboo dessa reconstruo em Viveiros de Castro 2007.

4 O segundo objetivo era desenvolver o argumento de que as teorias antropolgicas so verses das prticas de conhecimento ou modos de descrio nativos, dispondo-se em continuidade com as pragmticas conceituais dos coletivos que estudamos. (Um aspecto notvel da ontologia planar da diferena acima evocada a dissociao entre as noes de continuidade e de homogeneidade; por isso, h muitas coisas que no se est dizendo quando se diz que o pensamento antropolgico uma transformao contnua ou analgica do pensamento nativo.) Tratava-se de esboar uma descrio performativa das transformaes do discurso da antropologia na origem da interiorizao reexiva da condio transformacional da disciplina enquanto tal, isto , o fato (terico)de que ela uma anamorfose discursiva das etno-antropologias dos coletivos estudados. Tomando como exemplo as noes amazonistas de perspectivismo e multinaturalismo, a inteno era mostrar que os estilos de pensamento praticados pelos coletivos que estudamos so a fora motriz da disciplina. Uma considerao aprofundada desses estilos e de suas implicaes, em especial do ponto de vista da elaborao de um conceito antropolgico de conceito um dos objetivos que me parecem centrais para a consolidao de uma antropologia teoricamente descolonizante (e no apenas retrica, ideolgica ou institucionalmente descolonizada) , mostraria sua importncia na gnese, ora em curso, de toda uma nova concepo da prtica antropolgica. Um novo conceito de antropologia, em suma, para o qual a descrio das condies de auto-determinao ontolgica dos coletivos estudados aquilo que Martin Holbraad (2003) chamou com felicidade de ontograa comparativa prevalece absolutamente sobre a reduo epistemocntrica do pensamento humano (e no-humano) a um dispositivo de recognio: a assimilao de todo pensar a um classicar, predicar, julgar e representar. Aceitar a oportunidade e a relevncia desta tarefa de pensar outramente (autrement, Foucault) sobre o pensamento comprometer-se com o projeto de elaborao de uma teoria antropolgica da imaginao,sensvel criatividade e reexividade inerentes vida coletiva dos povos (humanos e no-humanos). Assim, o propsito do ttulo original era o de sugerir que a antropologia j est ou jamais deixou de estar escrevendo os primeiros captulos de um grande livro, que seria o seu Antidipo. Tal livro ctcio se chamaria naturamente Anti-Narciso porque, se dipo o protagonista do mito fundador da psicanlise, Narciso pode ser visto como o personagem de referncia para uma disciplina obcecada pela questo de determinar que atributo ou critrio fundamental distingue o sujeito do discurso antropolgico de tudo aquilo que no ele (ns), a saber, o noocidental, o no-moderno ou o no-humano. Qual seria esse atributo, a causa e o signo daquilo

5 que nos torna assim to especiais? o capitalismo e a racionalidade, o individualismo e o cristianismo? a criao especial e a alma imortal, a neotenia e a corticalizao, a cultura e a linguagem, o trabalho e o desejo, o Dasein e a clareira, a meta-intencionalidade? Pouco importa, visto que o problema o problema, isto , a pergunta, que contm a forma da resposta: a forma de um grande divisor. Mude-se o problema, mude-se a forma da resposta: contra os grandes divisores, uma antropologia menor far proliferar as pequenas multiplicidades no o narcisismo das pequenas diferenas, mas o anti-narcisismo das variaes innitesimais ; contra os humanismos terminados ou nalizados, um humanismo interminvel (Maniglier 2000), virtual-relacional, que registra o m da exceo humana (Schaeffer 2007) e recusa a constituio da humanidade em ordem parte. Proliferar a multiplicidade, sublinho; pois no se trata justamente de abolir a fronteira que une-separa signo e mundo, pessoas e coisas, ns e eles, humanos e no-humanos nenhuma facilidade reducionista, como eu disse; nenhum monismo porttil , mas de irreduzi-la (irrduction, Latour) e indeni-la, inetindo toda linha divisria em uma curva innitamente complexa; no se trata de apagar contornos, mas de dobrlos, adens-los, envies-los, iris-los e difract-los (Derrida 2006: 73).A entrada, em suma, em um regime de cromatismo generalizado (Deleuze & Guattari 1981: 123). Os captulos desse Anti-Narciso em progresso, argumentei, comearam a ser escritos por antroplogos como Roy Wagner (a noo de uma antropologia reversa, a vertiginosa fenomenologia semitica do literal e do gurativo, o esboo visionrio de um conceito etnolgico de conceito), Marilyn Strathern (a desconstruo-potenciao cruzada do feminismo e da antropologia, as idias-fora de uma esttica indgena e de uma anlise indgena que formam como que as duas partes de uma anticrtica melansia da razo ocidental, a inveno de uma prosa etnogrca efetivamente ps-malinowskiana) ou Bruno Latour (os conceitos transontolgicos de coletivo e de ator-rede, a noo paradoxal de um jamais-ter-sido moderno, a desmontagem da noo-estigma de fetichismo), a quem se vieram juntar, um pouco mais recentemente, muitosoutros colegas, que evitei, na palestra, e evito, aqui, nomear, uma vez que seria impossvel faz-lo sem cometer injustia, por omisso ou comisso. Masbem antes de todos os acima, nomeados ou no, j havia Lvi-Strauss, o pensador que avanou a denio anti-sociolgica anti-narcsica da antropologia como constituindo a cincia social do observado (L.-S. 1954/1958: 397), e que concebeu, simetricamente, suas Mitolgicas como sendo o mito da mitologia (1964: 20). Se Rousseau, no dizer do mesmo LviStrauss, deve ser visto como o fundador das cincias humanas, ento Lvi-Strauss ele mesmo no

6 s refunda a antropologia, com o estruturalismo, como a desfunda virtualmente, ao mostrar o caminho para um ps-estruturalismo, isto , para uma antropologia da imanncia. Lvi-Strauss, precursor do ps-estruturalismo. Essa era a tese extravagante da palestra.

II Aps seus dez minutos de grandiloquncia introdutria, a palestra comeava aqui a se aproximar de seu foco etnogrco, a atividade cosmoprtica dos povos amaznicos. O tema era quasetipicamente amaznico o xamanismo , mas seu apelo era mais geral, pois se existem fatos conceituais totais na antropologia, o xamanismo um bom candidato ao cargo. Ele me serviu como ponto de apoio para a proposio dessa leitura menor, subtrativa ou perversiva do estruturalismo, estilo de pensamento que entendo, recursivamente, como constituindo uma transformao estrutural do pensamento amaznico. Em duas passsagens das obras-chave de 1962, O totemismo hoje e O pensamento selvagem, que representam o momento estruturalista do estruturalismo (ver adiante), Lvi-Strauss estabelece um contraste paradigmtico entre totemismo e sacrifcio, que veio a assumir para mim um valor que se poderia chamar de propriamente mtico, permitindo-me formular com mais clareza o que eu percebia de modo confuso como sendo os limites da antropologia estrutural. Limites no sentido tanto geomtrico da palavra o permetro de jurisdio do mtodo lvi-straussiano como no sentido matemtico-dinmico o atrator para onde tendem certas virtualidades e contracorrentes desse modelo. Essas duas passagens foram fundamentais, em particular, para minha reinterpretao da etnograa amaznica luz de uma pesquisa junto aos Arawet do mdio Xingu (Viveiros de Castro 1986/1992).

III Se os Arawet dispem de um xamanismo vigoroso, pouco tm, primeira vista, que corresponda noo antropolgica corrente de sacrifcio. Eles no diferem, quanto a isso, da maioria dos povos das terras baixas sul-americanas, onde se encontram ocasionalmente prticas que poderiam

7 talvez ser ditas de tipo sacricial, mas que jamais atingem a elaborao manifesta, por exemplo, nos sistemas religiosos das culturas andinas ou mesoamericanas. Mas a questo no saber se os Arawet so um exemplo adequado para um exame da noo de sacrifcio na Amrica indgena, e sim se essa noo adequada a eles e aos povos congneres. Mais geralmente, a questo saber se a denio franco-sociolgica de sacrifcio (Hubert & Mauss 1899), que continua a nos servir de referncia, rica o bastante para incluir de modo pertinente (ou para excluir de modo signicativo) o complexo do xamanismo sul-americano. Pois a palavra sacrifcio, nos raros momentos em que surge no discurso dos etnlogos da Amaznia, vem quase sempre associada a esta outra, bem mais comum entre ns xamanismo. A conexo entre a etnograa arawet e a noo de sacrifcio, entretanto, no se impe diretamente a partir das prticas xamnicas desse povo, mas a partir de seu discurso escatolgico. A cosmologia dos Arawet reserva um lugar central ao canibalismo pstumo: as divindades celestes (os Ma) devoram as almas dos mortos chegadas ao cu, como preldio metamorfose destas em seres imortais semelhantes a seus devoradores. Como argumentei em minha monograa, esse canibalismo mstico-funerrio arawet uma transformao, histrica e lgica, do canibalismo blico-sociolgico dos Tupinamb que habitavam a costa brasileira no sculo XVI. Talvez seja necessrio recordar os traos gerais do complexo canibal dos Tupinamb. Em poucas palavras, tratava-se de um sistema de captura, execuo e devorao cerimonial de inimigos. Os cativos de guerra, frequentemente tomados de povos de mesma lngua e costumes que a dos captores, podiam viver bastante tempo junto a estes, antes da morte em terreiro. Eles eram em geral bem tratados, vivendo em liberdade vigiada enquanto se faziam os longos preparativos para o grande cerimonial de execuo; era costume dar-se-lhes mulheres do grupo como esposas eram portanto transformados em cunhados (inimigo e cunhado se diz em em tupi antigo com a mesma palavra: tovajar). O ciclo ritual culminava com a execuo solene do cativo, ato de valor iniciatrio e renomador para o ociante, e com a devorao de seu corpo por todos os presentes, antries e convidados das aldeias aliadas, com a nica exceo do ociante-executor, que no s no comia do cativo, como entrava em recluso funerria, isto , em um perodo de luto. A antropofagia ritual dos Tupinamb foi freqentemente interpretada como uma forma de sacrifcio humano, seja no sentido gurativo da expresso, utilizada por alguns dos primeiros cronistas e missionrios, seja em um sentido conceitualmente preciso, como fez Florestan

8 Fernandes (1949/1963; 1952/1970), que aplicou o esquema analtico de Hubert e Mauss aos materiais quinhentistas. Para faz-lo, entretanto, Florestan precisou postular algo que no se encontrava nas fontes documentais: um destinatrio do sacrifcio, uma, em suas palavras, entidade sobrenatural. Segundo ele, o sacrifcio canibal tupinamb se dirigia aos espritos dos mortos do grupo, vingados e celebrados pela execuo e devorao do cativo de guerra. Na reinterpretao do canibalismo tupi-guarani proposta em minha monograa sobre os Arawet, contestei a idia de que entidades sobrenaturais estivessem necessariamente envolvidas, e que sua presena e propiciao fossem a causa nal do rito. verdade que, precisamente no caso arawet, encontravam-se de fato entidades sobrenaturais no papel de plo ativo da relao canibal. Mas, em minha leitura do canibalismo escatolgico desse povo por via do canibalismo sociolgico tupinamb, tal condio sobrenatural dos devoradores no tinha maior importncia. Meu argumento era que as divindades arawet (ou melhor, dos Arawet, visto que os Ma no so Arawet, em mais de um sentido) ocupavam o lugar que, no rito tupinamb, era ocupado pelo grupo em funo de sujeito o grupo do matador, que devorava o cativo , ao passo que o lugar de objeto do sacrifcio, o cativo do rito tupinamb, era ocupado pelos mortos arawet. Os viventes arawet, por m, ocupariam o lugar de co-sujeito que, nos Tupinamb, era ocupado pelo grupo inimigo, aquele de onde a vtima era extrada. A transformao, em suma, que canibalismo divino arawet efetuava sobre o canibalismo humano tupinamb no dizia respeito ao contedo simblico dessa prtica, a seu estatuto ontolgico ou a sua funo social, mas a um deslocamento pragmtico, uma torso ou translao de perspectiva que afetava os valores e as funes de sujeito e de objeto, de meio e de m, de si e de outrem. Vim, em seguida, a concluir que essa idia de uma mudana coordenada de pontos de vistas fazia mais que descrever apenas a relao entre verses arawet e tupinamb do motivo canibal. Ela apontava para uma propriedade distintiva do canibalismo tupi ele prprio enquanto esquema actancial. Vim portanto a deni-lo como um processo de transmutao de perspectivas, onde o eu se determina como outro pelo ato mesmo de incorporar este outro, que por sua vez se torna um eu, mas sempre no outro, enquanto dentro do outro. Tal denio pretendia resolver uma questo simples porm insistente: o qu, do inimigo, era realmente devorado? No podia ser sua matria ou substncia, visto que se tratava de um canibalismo ritual, em que a ingesto da carne da vtima, em termos quantitativos, era insignicante; ademais, so raras e inconclusivas as evidncias de quaisquer virtudes fsicas ou metasicas atribudas ao corpo dos inimigos. S podia, portanto, ser sua posio, isto , sua relao ao devorador, por outras palavras, sua condio de

9 inimigo. O canibalismo, e o tipo de guerra indgena a ele associado, implicava, sustentei, um movimento fundamental de auto-determinao recproca pelo ponto de vista do inimigo. Com essa tese eu estava, evidentemente, avanando uma interpretao perversa, quero dizer, reversa em sentido anlogo mas no idntico da antropologia reversa de Roy Wagner do preceito malinowskiano clssico. Se o antroplogo malinowskiano descreve a vida como ela , the hold life has, do ponto de vista do nativo, o antropfago nativo assume como condio vital de auto-descrio a preenso do ponto de vista do inimigo. A antropofagia como antropologia.9 O apoio etnogrco imediato para essa idia foram as canes de guerra arawet, onde o matador, por meio de um jogo detico-anafrico complexo, fala de si mesmo do ponto de vista de seu inimigo morto: a vtima, que o sujeito do canto, fala dos Arawet que matou, e fala de seu matador que quem fala, isto , quem canta a fala do inimigo morto como se ele fora um inimigo. Atravs de seu inimigo, o matador arawet v-se ou pe-se como inimigo, enquanto inimigo. Tal interpretao do canibalismo levou-me a qualicar a imagem tupi da pessoa de perspectivista alguns anos antes que Tnia Stolze Lima e eu conspirssemos o conceito de perspectivismo cosmolgico e comessemos a vericar sua vasta disseminao na Amrica indgena.10 Foi, assim, menos pelo xamanismo que pela guerra e pelo canibalismo que vim a me defrontar inicialmente com o problema do sacrifcio. Ora, se a denio maussiana parecia-me inadequada, a noo proposta por Lvi-Strauss em sua discusso do totemismo, ao contrrio, parecia-me lanar uma nova luz sobre a antropofagia ritual tupi.

IV O contraste entre totemismo e sacrifcio apresenta-se inicialmente sob a forma de uma oposio ortogonal entre os sistemas totem e manido dos Ojibwa, traada no primeiro captulo de

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Ou, no humor feroz de Oswald de Andrade a odontologia como ontologia Ver Lima 1995/2005; 1996; Viveiros de Castro 1996/1998.

10 O totemismo hoje (L.-S. 1962a: 32).11 No cap. VIII de O pensamento selvagem a oposio generalizada, rediagramatizada (L.-S. 1962b: 298), e sistematizada nos termos seguintes: 1. O totemismo postula uma homologia entre duas sries paralelas (espcies naturais e grupos sociais), estabelecendo uma correlao formal e reversvel entre dois sistemas de diferenas globalmente isomrcas; 2. O sacrifcio postula uma s srie, contnua e orientada, ao longo da qual se efetua uma mediao real e irreversvel entre dois termos polares e no-homlogos (humanos e divindades), cuja contigidade deve ser estabelecida por identicaes ou aproximaes analgicas sucessivas; 3. O sacrifcio metonmico, o totemismo metafrico; o primeiro um sistema tcnico de operaes, o segundo um sistema interpretativo de referncias; o primeiro da ordem da parole; o segundo, da langue. Pode-se concluir, dessa caracterizao, que o sacrifcio atualiza processos de um tipo, primeira vista, distinto das equivalncias de proporcionalidade presentes no totemismo e nos demais sistemas de transformao analisados em O pensamento selvagem. As transformaes lgicas do totemismo estabelecem-se entre termos que tm suas posies recprocas modicadas por permutaes, inverses, quiasmas e outras redistribuies combinatrias e extensivas o totemismo uma tpica da descontinuidade. As transformaes sacriciais, ao contrrio, acionam relaes intensivas que modicam a natureza dos prprio termos, pois fazem passar algo entre eles: a transformao, aqui, menos uma permutao que uma transduo (para usarmos o vocabulrio de Gilbert Simondon) ela lana mo de uma energtica do contnuo. Se o objetivo do totemismo estabelecer uma semelhana entre duas sries de diferenas dadas cada qual por seu lado, o propsito do sacrifcio diferenciar internamente dois plos pressupostos como autosemelhantes, ao induzir/transduzir uma zona ou momento de indiscernibilidade entre eles. Recorrendo a uma alegoria matemtica, diramos que o modelo das transformaes estruturais do totemismo a anlise combinatria, ao passo que o instrumento necessrio para explorar o reino da continuidade (a expresso de Lvi-Strauss) estabelecido pelas metamorfoses intensivas do

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Oposio, alis, que inverte o contraste de Hugh-Jones entre xamanismo horizontal e vertical, do ponto de vista dos valores atribudos aos eixos das ordenadas e das abcissas nos respectivos diagramas (a distino de Hugh-Jones na verdade construda verbalmente, sem representao grca).

11 sacrifcio remeteria, antes, a algo como o clculo diferencial: imagine-se a morte da vtima como o traar de uma tangente, a melhor aproximao curva da divindade Assim, a caracterizao do totemismo o apreende como um sistema de formas, ao passo que a do sacrifcio recorre a formulaes que sugerem a presena de algo como um sistema de foras. LviStrauss usa toda uma imagstica de vasos comunicantes para falar do sacrifcio, referindo-se, por exemplo, a uma soluo de continuidade entre reservatrios, a um dcit de contigidade preenchido automaticamente enm, usa o cdigo (no sentido das Mitolgicas) da mecnica dos uidos de um modo que evoca irresistivelmente a idia-chave de uma diferena de potencial como princpio do sacrifcio.(A mesma linguagem hidrulico-energtica reaparece na anlise do riso e da emoo esttica como descarga de energia simblica acumulada, no Finale do Homem nu. E Lvi-Strauss lana mo dela sempre que se refere s sociedades com histria quente, que lutariam contra a entropia utilizando-se das diferenas de potencial contidas nas suas desigualdades de classe ou na explorao de outros povos para, desse modo, gerar devir e energia [L.-S. e Charbonnier 1961: 44-48].) Duas imagens, em suma, diferentes da diferena, uma imagem extensiva e uma imagem intensiva: a forma e a fora.Imagens to diferentes a ponto de serem incompatveis, sugere o autor (L.-S. 1962b: 295), juzo que tomo a liberdade de interpretar como signicando imagens complementares, no sentido de Niels Bohr.12 Nesse caso, antes que dois sistemas, totemismo e sacrifcio designariam duas descries simultaneamente necessrias mas mutuamente exclusivas de um mesmo fenmeno geral, o sentido ou semiose enquanto articulao de sries heterogneas. Tal complementaridade, porm, pelo menos no que concerne Lvi-Strauss, assimtrica. Em sua aula inaugural no Collge de France, o autor assinalava que, em contraste com a histria, a antropologia estrutural utiliza um modelo mais de transformaes que de uxes (L.-S. 1960/1973: 28), sugerindo com isso uma lgebra de grupos mais que uma dinmica diferencial. interessante lembrar que mtodo das uxes era o nome dado por Newton quilo que veio a se chamar de clculo diferencial. E com efeito, tudo se passa como se o mtodo estrutural em antropologia talvez fosse melhor dizer a interpretao usual do mtodo tivesse sido concebido para dar conta da forma antes que da fora, da combinatria melhor que do diferencial, do corpuscular mais facilmente que do ondulatrio, da langue em relativo detrimento da parole, da categorizao de preferncia ao. Conseqentemente, esses aspectos que12

Frequentemente citado por Lvi-Strauss (1952/1958, 1954/1958: 326, 398 ; 1961: 18, 25).

12 parecem resistir em maior ou menor medida ao mtodo estrutural costumam ser tratados por LviStrauss como modos semiticos (ou mesmo ontolgicos) menores, seja porque dariam testemunho dos limites do pensvel, seja porque relevariam do assignicante, seja, enm, porque exprimiriam as potncias da iluso. Assim, famosamente, o sacrifcio foi visto como imaginrio e falso, o totemismo como objetivo e verdadeiro (id.: 301-302), juzo que se repete na oposio entre mito e rito aprofundada em O homem nu (L.-S. 1971: 596-603) e juzo que, somos tentados a dizer, ensina-nos mais sobre certos aspectos da cosmologia de Lvi-Strauss que sobre a cosmologia dos povos que ele estudou. Mas esse um juzo que, como veremos, no esgota o que Lvi-Strauss tem a dizer sobre o assunto. Eis um autor para quem uma oposio binria tudo menos um objeto simples, ou simplesmente duplo, ou sequer simplesmente um objeto. Talvez nem mesmo mas aqui com certeza extravagamos uma oposio.

V O totemismo, hoje, encontra-se dissolvido na atividade classicatria geral do pensamento selvagem; o sacrifcio cou espera de uma dissoluo construtiva comparvel. Sabe-se como o totemismo foi dissolvido: ele deixou de ser uma instituio, passando a um mtodo de classicao e um sistema de signicao, cuja referncia srie das espcies naturais contingente. (Ou parcialmente contingente, uma vez que para Lvi-Strauss a espcie uma espcie de cone natural da descontinuidade.) Seria possvel repensar o sacrifcio segundo linhas semelhantes? Seria, em suma, possvel ver as divindades que funcionam como termos da relao sacricial como to contingentes quanto as espcies naturais do totemismo?13 O que seria um esquema genrico do sacrifcio, do qual as cristalizaes institucionais tpicas (o que chamamos comumente de sacrifcio) seriam apenas um caso particular? Ou, para formularmos o problema em uma linguagem mais sacricial que totmica, qual seria o campo de virtualidades dinmicas das quais o sacrifcio uma atualizao singular? Que foras o sacrifcio mobiliza? parte os juzos de valor de Lvi-Strauss, os contrastes entre descontinuidade metafrica e continuidade metonmica, quantidade posicional e qualidade vetorial, referncia paradigmtica e13

Ou mais contingentes ainda, uma vez que seu modo de inexistncia seria, para Lvi-Strauss pelo menos, muito mais cabal que o das espcies naturais.

13 operao sintagmtica pareceram-me muito iluminadores, levando-me a inscrever o canibalismo ritual tupi na coluna (no paradigma!) do sacrifcio. Verdadeiro operador anti-totmico, o canibalismo realiza uma transformao virtualmente recproca (o imperativo da vingana) mas atualmente irreversvel entre os termos que conecta, mediante atos de suprema contiguidade e descontiguidade (o contato fsico violento da execuo, o desmembramento e devorao do corpo da vitima) que implicam um movimento de indenio e a criao de uma zona de indiscernibilidade entre matadores e vtimas, devoradores e devorados. Nenhuma necessidade de postular entidades sobrenaturais para perceber que estamos no elemento do sacrifcio. Na interpretao tripolar do ritual tupinamb desenvolvida em minha monograa de 1986, os actantes so o grupo dos devoradores, a pessoa dual executor-vtima e o grupo inimigo; o morto uma posio vicria assumida alternativa ou sucessivamente por esses plos do rito, e ela que conduz as foras circulantes no processo. O esquema genrico do sacrifcio parecia-me convergir com aquilo que Philippe Descola comeava, mesma poca, a chamar de animismo. No cabia resumir, na palestra que aqui narro, a teoria de nosso caro colega, hoje consolidada em um livro muito importante, Par-del nature et culture (Descola 2005), onde o Pensamento selvagem retomado e por assim dizer completado.14 Basta lembrar que o animismo consiste na pressuposio de que outros seres alm dos humanos notadamente as espcies animais so dotados de intencionalidade e conscincia, e nessa medida so pessoas, isto , termos de relaes sociais: ao contrrio do totemismo, sistema de classicao que utiliza a diversidade natural para signicar as relaes intra-humanas, o animismo utilizaria as categorias da socialidade para signicar as relaes entre humanos e no-humanos. Assim, haveria uma s srie a srie social das pessoas , em lugar de duas; e as relaes entre natureza e cultura seriam de contiguidade metonmica, no de semelhana metafrica.

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Descola prope em seu livro uma reconceituao particularizante da noo lvi-straussiana de totemismo, dispondo-a ao lado de mais trs ontologias ou modos de identicao (a sinonmia eloquente), a saber, o animismo, o analogismo e o naturalismo; o sacrifcio , por sua vez, tomado como caracterstico da ontologia analogista, e afastado do animismo. O contexto da palestra no me pareceu o melhor momento para se avaliar essa ressubstancializao taxonmica do par totemismo/sacrifcio mas evidente que a trajetria de Descola, quanto a isso, seguiu em direo oposta minha, o que no exclui diversos momentos de aproximao , nem para se discutir a pertinncia descritiva da nova categoria que veio dividir com o totemismo a provncia tradicional do pensamento selvagem, a saber, o analogismo observo apenas, por ora, que se o analogismo existe em algum lugar, sem dvida em Par-del nature et culture, livro exemplarmente analogista, com seu renado gosto pelas classicaes totais, pelas identicaes, pelos sistemas de correspondncia, pelos esquemas de projeo microcosmos-macrocosmos.

14 No difcil perceber que se o animismo arma que os no-humanos entre os quais vrias espcies comidas pelos humanos so pessoas, ento guerra e caa, antropofagia e zoofagia, esto prximas: no porque a guerra seja uma forma de caa, mas porque a caa um modo da guerra. E, se a guerra e o canibalismo so essencialmente um processo de transmutao de perspectivas, ento no era difcil imaginar que algo do mesmo tipo ocorresse nas relaes entre humanos e no-humanos. Observei, dessa forma, que o modelo anmico de Descola ( poca, interessavam-me as ressonncias possveis entre nossas respectivas abordagens tericas) conhecia um desenvolvimento caracterstico nas cosmologias amerndias. Tratava-se daquilo que chamei de perspectivismo, uma teoria cosmopoltica segundo a qual os diferentes centros de agncia disseminados no universo so dotados de pontos de vista incompatveis: a viso que os humanos tm de si mesmos e de seu ambiente diferente daquela que os animais tm dos humanos, como a viso que os animais tm de si mesmos (e de seu ambiente) diferente da viso que os humanos tm dos animais, e assim por diante. Para dar o exemplo cannico: os humanos se vem como humanos e aos jaguares, como jaguares; mas os jaguares se vem a si mesmos como humanos, e aos humanos, como porcos selvagens os jaguares vem o sangue de suas presas como cerveja de milho, ou alguma outra bebida apreciada por todo humano que se preza; e assim por diante.15

VI Pareceu-me, a essa altura da palestra, importante sublinhar dois pontos breves sobre o perspectivismo, falando como estava para uma platia de antroplogos prossionais, gente naturalmente, quero dizer, culturalmente inclinada a tomar algo como o perspectivismo por um caso tpico de sistematizao articiosa (da parte do antroplogo) ou por um caso trivial de multiculturalismo selvagem (da parte do nativo) (1) Teoria. Usei e uso a palavra teoria com deliberao. O perspectivismo, antes de ser (sem prejuzo de s-lo) um objeto possvel para uma teoria extrnseca a ele uma que o dena, por exemplo, como reexo epistemolgico secundrio de uma ontologia animista primria (Descola 2005), como pragmtica fenomenolgica emergente, caracterstica de culturas mimticas de caadores (Willerslev 2004), ou como uma semio-esttica da imediatez (Kohn 2002; com o

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Para maiores detalhes sobre os contedos etnogrcos do perspectivismo, ver Lima 1996 e Viveiros de Castro 1996/1998, entre vrios outros trabalhos.

15 trabalho de Kohn estamos bem mais perto de uma teoria no meu sentido) convida-nos a imaginar um outro conceito de teoria.16 Ele sugere que a antropologia no pode se contentar em descrever o ponto de vista do nativo para, ato contnuo, apontar seus pontos cegos englobando criticamente o ponto de vista do nativo dentro do ponto de vista do observador. Pois a tarefa que o perspectivismo contraprope a esta aquela, simtrica, de descobrirmos qual o ponto de vista do nativo sobre o conceito antropolgico de ponto de vista. O perspectivismo amerndio inclui uma teoria de sua prpria descrio pela antropologia pois ele , justamente, uma outra antropologia, disposta transversalmente nossa. Nesse sentido, o perspectivismo no um subtipo de animismo no sentido de Descola, um esquema da prtica que possui razes que apenas a razo do antroplogo conhece. Ele no um tipo, e menos ainda um tipo de tipo; ele um conceito de conceito, cujo objetivo no classicar cosmologias mas contra-analisar antropologias. As teorias perspectivistas amerndias pressupe uma comparao implcita entre os modos pelos quais diferentes espcies de corpos experimentam naturalmente o mundo como multiplicidade afectual (as diferenas entre os corpos especcos so, como argumentei alhures, a fonte da diversidade perspectiva). Tais teorias aparecem para ns, por conseguinte, como uma espcie de antropologia s avessas, visto que a antropologia (nossa etno-antropologia) procede por meio de uma comparao explcita entre os modos pelos quais diferentes tipos de mentalidade representam culturalmente o mundo, posto este como a origem unitria de suas diferentes verses conceituais. Assim, uma descrio culturalista ou antropolgica do perspectivismo implica a negao ou deslegitimao de seu objeto, sua retroprojeo como uma forma primitiva ou fetichizada de raciocnio antropolgico. Com o conceito duplamente anti-narcsico de perspectivismo, o que se prope uma inverso dessa inverso: agora a vez do nativo the turn of the native. No The return of the native, como Adam Kuper (2003) ironizou, a propsito de um movimento etnopoltico conexo, o da reindigenizao das minorias planetrias; mas the turn, a hora, a vez, a toro, a virada inesperada. No Thomas Hardy ento, como props Kuper, mas Henry James o mestre consumado da arte da perspectiva: a volta do nativo como quem diz: a volta do parafuso, the turn of the screw. Da perspectiva reacionria de Kuper, a histria

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Estou ainda mais longe, portanto, de me juntar ao coro dos cognitivismos pretensamente no-nonsense de D. Sperber ou M. Bloch (por exemplo), que insistem em recusar ao pensamento selvagem as caractersticas de uma verdadeira imaginao terica, dando prova, eles prprios, de falta da prpria.

16 que pretendemos comear a contar uma histria de horror. Exato. Un frappant retour des choses, dir Lvi-Strauss (2000: 720), imperturbvel. (2) Multinaturalismo. Essa divergncia universal de perspectivas resulta no que chamei de multinaturalismo, termo calcado no multiculturalismo to em evidncia na antropologia norteamericana (e alm) das ltimas dcadas. Mas a noo de multinaturalismo no a simples repetio do multiculturalismo antropolgico com os sinais trocados. Trata-se de dois modos muito distintos de conjugar o mltiplo. Assim, pode-se tomar a multiplicidade como um tipo de pluralidade a multiplicidade das culturas, por exemplo; a bela diversidade cultural. Ou, ao contrrio, toma-se a multiplicidade na cultura, a cultura como multiplicidade. este segundo sentido que me interessa. A noo de multinaturalismo estratgica aqui por seu carter paradoxal: ao contrrio de cultura, nosso macro-conceito de natureza no admite um verdadeiro plural; isso nos leva espontaneamente a perceber o solecismo ontolgico contido na idia de (vrias) naturezas, e portanto a realizar o deslocamento corretivo que ela impe.Parafraseando a conhecida passagem de Deleuze sobre o relativismo, diria ento que o multinaturalismo amaznico no arma uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variao. A inverso da frmula ocidental do multiculturalismo uma inverso entre os valores de termo e de funo na frmula, e no apenas entre os termos natureza e cultura em sua determinao respectiva pelas funes unidade e diversidade. Penso aqui, claro, na relao cannica de Lvi-Strauss (1955/1958: 252-53): o multinaturalismo perspectivista uma transformao em dupla torso do multiculturalismo ocidental. Ele assinala o cruzamento de um umbral semitico-histrico que um limiar de tradutibilidade e de equivocidade; um limiar, justamente, de transformao perspectiva.17 O perspectivismo, em suma, no um multiculturalismo trans-especco que armaria que cada espcie possui um ponto de vista subjetivo (uma opinio) particular sobre um mundo real objetivo, uno e auto-subsistente. O que ele arma no a existncia de uma multiplicidade de pontos de vista, mas a existncia do ponto de vista como multiplicidade. Por outras palavras, o perspectivismo no supe uma Coisa-em-Si parcialmente apreendida pelas categorias do entendimento prprias de cada espcie; no se imagine que os ndios imaginam que existe um algo = x, algo que, por exemplo, os humanos vem como sangue e os jaguares como cerveja. O17

Cruzamento de um limiar [treshold] em Lvi-Strauss 2001: 29; ver, sobre isso, o comentrio fundamental no artigo de M.W.B. de Almeida, no presente volume. Sobre a equivocidade tradutiva, ver Viveiros de Castro 2004.

17 que existe na multinatureza no so substncias auto-idnticas diferentemente percebidas, mas multiplicidades imediatamente relacionais do tipo sangue-cerveja. No h um x que seja sangue para uma espcie e cerveja para outra; h, desde o incio, um sangue-cerveja que uma das singularidades ou afetos caractersticos da multiplicidade humanos-jaguares.

VII O perspectivismo uma conveno interpretativa bsica da praxis indgena, mas ele vem ao primeiro plano no contexto do xamanismo. Este ltimo depende essencialmente da capacidade manifestada por certos indivduos (humanos e no-humanos) de adotar a perspectiva de corporalidades alo-especcas. Sendo capazes de ver as outras espcies como estas se vem como humanas , os xams de cada espcie desempenham o papel de diplomatas cosmopolticos, operando em uma arena onde se defrontam os diferentes interesses socionaturais. Nesse sentido, a funo do xam amaznico no difere essencialmente da funo do guerreiro. Ambos so comutadores ou condutores de perspectivas; o segundo opera na zona inter-humana ou inter-societria, o primeiro na zona inter-especca. Essas zonas se superpem intensivamente, mais que se dispem extensivamente em relao de adjacncia (horizontal) ou de englobamento (vertical). O xamanismo amaznico, como j se disse, a continuao da guerra por outros meios. Isso porm nada tem a ver com a violncia em si mesma, mas com a comunicao uma comunicao transversal entre incomunicveis, um confronto de perspectiva onde a posio de humano est em perptua disputa. Quem o humano aqui? essa sempre a questo que se pe quando um indivduo confronta um foco algeno de agncia, seja ele um animal ou uma pessoa estranha na oresta, um parente h muito ausente que retorna aldeia, a imagem de algum morto que aparece em um sonho. Somos ambos humanos, somos congneres? Ou somos, eu presa, voc predador, ou vice-versa? A humanidade universal dos seres a humanidade csmica de fundo que faz de toda espcie de ser um gnero reexivamente humano est sujeita ao princpio da complementaridade, isto , ela se dene pela impossibilidade de que duas espcies diferentes, necessariamente humanas para si mesmas, no possam jamais s-lo simultaneamente, isto , uma para a outra.

18 Seria igualmente correto dizer que a guerra a continuao do xamanismo por outros meios; na Amaznia, o xamanismo violento tanto quanto a guerra sobrenatural. Ambos guardam uma referncia importante caa enquanto modelo prtico (modelo, no matriz causal) de agonismo perspectivo, congurando um etograma trans-humano imantado por uma atrao metafsica pelo perigo (Rodgers 2002) e pela convico profunda de que toda atividade vital uma forma de expanso predatria. Viver, como disse o caboclo Tatarana, muito perigoso. (A suposta nfase nos valores de convivialidade e de tranquilidade sobre os quais se tem derramado tanta tinta, e um pouquinho de lgrimas de emoo, na literatura amazonista recente parece-me uma interpretao completamente errnea, por parte dos etnlogos, dos poderes ambguos da alteridade predatria, armada sem rebuos pelo pensamento indgena como horizonte ontolgico universal.) Nos termos do contraste lvi-straussiano, o xamanismo est localizado do lado do sacrifcio. certo que a atividade xamnica consiste no estabelecimento de correlaes ou tradues entre os mundos respectivos de cada espcie natural, com a busca de homologias e equivalncias ativas entre os diferentes pontos de vista em confronto.18 Mas o xam ele prprio um relator real, no um correlator formal: preciso que ele passe de um ponto de vista a outro, que se transforme em animal para que possa transformar o animal em humano e reciprocamente. O xam utiliza substancia e encarna, relaciona e relata as diferenas de potencial inerentes s divergncias de perspectivas que constituem o cosmos: seu poder, e os limites de seu poder, derivam dessas diferenas. E aqui que podemos comear a extrair um rendimento signicativo da teoria maussiana. Imagine-se ento o esquema sacricial como constituindo uma estrutura mediativa saturada ou completa, conectando a polaridade entre o sacricante e o destinatrio pela dupla intermediao do sacricador e da vtima.19 Imagine-se ento as duas guras sacriciais amaznicas, o canibalismo ritual e o xamanismo, como redues ou degeneraes do esquema maussiano, no mesmo sentido em que Lvi-Strauss dizia que a troca restrita (entre dois) um caso matematicamente degenerado da troca generalizada (entre trs).

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O texto de referncia aqui Carneiro da Cunha 1998, a que no fao justia com essa mera meno.

Note-se, de passagem, que esta uma gura quadripartite, como o tomo de parentesco e como as analogias totmicas. Nos trs casos, possvel caracterizar as relaes entre os termos por uma dupla oposio binria, representada pelos famosos sinais de + e dos diagramas lvi-straussianos.

19 Uma caracterstica distintiva do xamanismo (amaznico, pelo menos) que o xam ao mesmo tempo o ociante e o veculo do sacrifcio. nele que se realiza o dcit de contiguidade o vcuo criado pela separao entre corpo e alma, por exemplo; a externalizao subtrativa de partes da pessoa capaz de fazer passar de modo no-destrutivo o uxo semitico entre humanos e no-humanos. o prprio xam quem atravessa para o outro lado do espelho; ele no manda delegados ou representantes sob a forma de vtimas. Ele a prpria vtima: um morto antecipado, tal o xam dos Arawet que, em suas viagens ao cu, interpelado pelas divindades canibais desse povo como nossa futura comida a mesma expresso com que, 500 anos atrs, os Tupinamb chamavam jocosamente seus cativos de guerra. E assim, do xamanismo chegamos de volta ao canibalismo, reduo ainda mais dramtica do esquema sacricial, onde no s o sacricador-executor se identica com a vtima (luto, morte simblica, interdito de manducao do inimigo), como o sacricante, isto , o grupo dos devoradores, coincide com o destinatrio do sacrifcio. Ao mesmo tempo, em uma torso caracterstica, o esquema se desdobra, e o grupo de onde provm o inimigo, obrigado vingana ritual, torna-se, por um lado, uma espcie de cosacricante, aquele que oferece a vtima, e, por outro lado, dene-se como um destinatrio futuro, o titular da vingana guerreira que fatalmente exercer contra o grupo dos devoradores atuais. Mas voltemos ao xamanismo. Parece-me que estamos crucialmente no umbral de um outro regime sociocsmico quando o xam comea a se tornar o sacricador de outrem: quando passa, por exemplo, a ser o executor de vtimas humanas, o administrador de sacrifcios alheios, o sancionador de movimentos que ele no executa, apenas supervisiona. Essa me parece ser uma diferena diacrtica entre as guras do xam e do sacerdote. No se trata, decerto, de uma oposio absoluta. O que se designa em geral como xamanismo, na Amaznia indgena, abriga uma diferena interna importante, aquela a que aludi no inicio da palestra, proposta por S. Hugh-Jones, entre um xamanismo horizontal e um vertical. Tal contraste especialmente saliente em povos como os Bororo do Brasil Central ou os Tukano e Aruaque do Rio Negro, onde h duas categorias bem distintas de mediadores msticos. Os xams que Hugh-Jones classica de horizontais so especialistas cujos poderes derivam da inspirao e do carisma, e cuja atuao, voltada para o exterior do socius, no est isenta de agressividade e de ambigidade moral; seus interlocutores por excelncia so os espritos animais causadores de doenas (as quais so frequentemente concebidas como casos de vingana canibal por parte dos animais consumidos). A categoria dos xams verticais, por sua vez, compreende o que se

20 costuma chamar de mestres cerimoniais, guardies paccos de um conhecimento esotrico precioso, especialistas na conduo a bom termo dos processos de reproduo das relaes internas ao grupo (iniciao, nominao, funerais). O xam que qualiquei de sacricador-vtima o xam horizontal. Esse especialista, observa Hugh-Jones, tpico das sociedades amaznicas de estilo mais igualitrio e belicoso; o xam vertical, presente em sociedades mais hierarquizadas e paccas, aproximar-se-ia da gura do sacerdote. O contraste de Hugh-Jones feito em termos de tipos ideais. No h sociedade amaznica onde existam apenas xams verticais; e ali onde s h um tipo reconhecido de xam, este tende a acumular as funes dos dois xams dos Bororo ou Tukano. Mas nada disso tira da distino entre os xamanismos horizontal e vertical sua pertinncia analtica, a meu ver completamente justicada pela etnograa. Essa diviso do trabalho de mediao cosmopoltica evoca as duplicaes ou desdobramentos mediativos listados por Lvi-Strauss em A estrutura dos mitos, com a srie: messias > discuros > trickster > ser bissexuado > germanos cruzados > casal > trade (1955/1958: 251).20 E com efeito, o messianismo um elemento central do problema que Hugh-Jones equaciona a partir da distino dos dois xams. Os numerosos movimentos profticos milenaristas ocorridos na regio do Noroeste amaznico a partir de meados do sculo XIX foram todos, sublinha o autor, comandados por xams de tipo horizontal. Isso me leva a sugerir que a distino a fazer no seria tanto entre dois tipos de xam, o xam propriamente dito (horizontal) e o xamsacerdote (vertical), mas entre duas trajetrias possveis da funo xamnica: a transformao sacerdotal e a transformao proftica. O profetismo seria, nesse caso, o resultado de um processo de aquecimento histrico do xamanismo, ao passo que a emergncia de uma funo sacerdotal bem denida seria o resultado de seu resfriamento poltico, isto , sua subsuno pelo poder social. Imagine-se, alternativamente, a emergncia da gura do profeta como um estado do modelo sacricial onde o xam, em lugar de encarnar o sacricador e a vtima, passa a encarnar o sacricador e a divindade, ao passo que o grupo passa a encarnar ao mesmo tempo a funo de sacricante e de vtima.21

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A tal ttulo, a dualidade assimtrica das guras xamnicas de Hugh-Jones apontaria para uma propriedade essencial das estruturas cosmolgicas amerndias, o dualismo em desequilbrio perptuo, de que falaremos adiante.21

Sabe-se o rendimento que semelhantes permutaes e condensaes dessa hipottica arqui-estrutura sacricial de tipo maussiano tiveram na teologia e soteriologia crists.

21 Outro modo de formular a hiptese seria dizer que a transformao sacerdotal, sua diferenciao a partir da funo xamnica de base, est associada a um processo de constituio de uma interioridade social, isto , ao surgimento de valores como a ancestralidade, que enfatizam a continuidade diacrnica entre vivos e mortos, e como a hierarquia, que enfatizam as descontinuidades sincrnicas entre os vivos. Com efeito, se o outro arquetpico com quem se confronta o xam horizontal teriomrco ou dendromrco, o outro do xamanismo vertical tende a assumir as feies antropomrcas do Ancestral. O xamanismo horizontal supe uma economia cosmolgica onde a diferena entre humanos vivos e humanos mortos pelo menos to grande quanto a semelhana entre humanos mortos e no-humanos vivos. No h animais no mundo dos mortos, observou Beth Conklin (2001) sobre a escatologia dos Wari da Amaznia ocidental. E no os h porque os mortos so eles mesmos animais so os animais mesmo, em sua verso-caa: so porcos selvagens, a eptome da carne e da comida; outros mortos, de outros povos, sero jaguares, o outro plo da animalidade, a verso-caador ou canibal.22 Assim como os animais eram humanos no comeo de tudo, os humanos sero animais no m de cada um: a escatologia da (des)individuao reencontra a mitologia da (pr-)especiao. Os espectros dos mortos esto, na ordem da ontognese, como os animais na ordem da lognese: no comeo, todos os animais eram gente No de surpreender portanto que, enquanto imagens denidas por sua disjuno relativamente a um corpo humano, os mortos sejam atrados pelos corpos animais; por isso que, na Amaznia, morrer transformar-se em um animal: se as almas dos animais so concebidas como tendo uma forma corporal humana prstina, lgico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal pstumo, ou como entrando em um corpo animal que ser eventualmente morto e comido pelos viventes. A emergncia do xamanismo vertical me parece crucialmente associada separao entre essas duas posies de alteridade, os mortos e os animais. A partir de algum momento cuja determinao confesso me escapar por completo; mas sempre se pode remet-lo a alguma mutao nas condies materiais de existncia , os mortos humanos passam a ser vistos mais como humanos que como mortos, o que tem por conseqncia a possibilidade simtrica de uma objetivao mais acabada dos no-humanos. Em suma, a separao entre humanos e no22

Recordemos o Rond do caititu dO cru e o cozido, onde os porcos e os jaguares so apresentados como os dois arqutipos animais polares dos ans, isto , do humano como alteridade inevitvel; e recordemos, com Carneiro da Cunha (1978), que mortos e ans so farinha do mesmo saco.

22 humanos, a projeo de uma gura genrica animal como Outro da humanidade, funo da prvia separao entre mortos e animais, com a projeo de uma gura genrica da humanidade na forma do ancestral. O fato escatolgico de base, a saber, que os mortos viravam animais, era algo que ao mesmo tempo humanizava os animais e alterava os mortos; com o divrcio entre mortos e animais, os primeiros permanecem humanos, ou mesmo passam a ser sobre-humanos, e os segundos comeam a deixar de s-lo, derivando para a sub- ou anti-humanidade. Para resumir os vrios aspectos do contraste examinados por Hugh-Jones, podemos dizer que o xamanismo horizontal exoprtico, o vertical, endoprtico. Minha tese que, na Amaznia indgena, a exopraxis anterior lgica, cronolgica e cosmologicamente endopraxis, e que ela permanece sempre operativa, mesmo naquelas formaes de tipo mais hierrquico como as do Noroeste amaznico, ao modo de um resduo que bloqueia a constituio de chefaturas ou Estados dotados de uma interioridade metafsica acabada. Os mortos nunca deixam de ser parcialmente animais, pois todo morto gera um espectro, na medida em que tem um corpo; e nessa medida, se algum pode nascer aristocrata, ningum morre imediatamente ancestral; no h puros ancestrais exceto no tempo pr-cosmolgico e pr-corporal do mito mas ali humanos e animais se comunicavam diretamente. De outro lado, os animais, plantas e outras categorias amaznicas de seres jamais deixam de ser inteiramente humanos; sua transformao ps-mtica em animais etc. contra-efetua uma humanidade originria, fundamento da dialogia xamanstica com os seus representantes atuais. Todo morto continua um pouco bicho; todo bicho continua um pouco gente. A humanidade permanece imanente, reabsorvendo uma boa maioria dos focos de transcendncia que emergem incessantemente por toda parte do vasto tecido do socius amaznico. Meu argumento, enm, que o xam horizontal amaznico marca, em sua onipresena na regio, a impossibilidade de coincidncia perfeita entre poder poltico e potncia csmica, dicultando assim a elaborao de um sistema sacricial de tipo clssico. A instituio do sacrifcio assinala a captura do xamanismo pelo Estado. O m da bricolagem cosmolgica do xam, o comeo da engenharia teolgica do sacerdote.23

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O dossi sobre xamanismo e profetismo, ao e centralizao polticas na Amaznia foi reaberto e renovado pela tese de Sztutman (2006), doravante referncia obrigatria sobre o tema. Mais uma vez, deixo apenas o registro, esperando um dia poder fazer melhor proveito.

23 A palestra deveria se encerrar aqui. Mas consegui espremer, nos poucos minutos que me restavam (a cultura do seminrio britnica possui regras estritas), alguns pontos rpidos para posterior elaborao. A dita elaborao apenas comea, nos pargrafos abaixo.

VIII A oposio entre xamanismos de tipo vertical e horizontal foi algumas vezes associada a um contraste entre transcendncia e imanncia (Pedersen 2001; Holbraad & Willerslev 2007). O xamanismo amaznico, como o perspectivismo que lhe serve de pano de fundo, efetivamente uma prtica da imanncia. Observo apenas que isso no implica nenhuma igualdade de poderes ou estatutos entre os humanos e os extra-humanos conectados pelo xamanismo; muito pelo contrrio. Mas tampouco h hierarquia de pontos de vista entre os seres. O perspectivismo amaznico no interpretvel nem como uma escala de perspectivas em relao de incluso progressiva, conforme uma cadeia de dignidade ontolgica,24 nem muito menos como projetando algum ponto de vista do todo. As diferenas de potencial transformativo entre os seres so a razo de ser do xamanismo, mas nenhum ponto de vista contm nenhum outro de modo unilateral. Todo ponto de vista total, e nenhum ponto de vista equivalente a nenhum outro: o xamanismo horizontal no , portanto, horizontal, mas transversal. A relao entre pontos de vista (a relao que o ponto de vista enquanto multiplicidade) de sntese disjuntiva ou excluso imanente, no de incluso transcendente. Em suma, o sistema perspectivista est em desequilbrio perptuo, para recordarmos a expresso que Lvi-Strauss (1991) aplicou s cosmologias amerndias. Mas se assim, ento minha interpretao do xamanismo amaznico (horizontal) como uma reduo estrutural do esquema maussiano mostra-se, no fnal das contas, inadequada. Todo sacrifcio vertical ou transcendente, e a ausncia daquela distino entre sacricante e vtima que dene a funo sacerdotal mortal para essa dessa transcendncia. Isto sugere que o xamanismo escapa partio que se imaginava exaustiva entre lgica totmica e prtica sacricial. O xam no um sacerdote larvar ou incoativo; o xamanismo antes um profetismo de baixa intensidade um profetismo por assim dizer subclnico que uma religio quase24

Sugiro, com isso, que as observaes discrepantes de Kohn (2002, 2005) para o caso dos vila Runa devem ser interpretadas como diagnsticas de uma tendncia, talvez antiga, verticalizao prpria da cosmologia destes Quechua da oresta.

24 sacerdotal. As operaes xamnicas, se no se deixam reduzir a um jogo simblico de

classicaes totmicas, tampouco so da mesma espcie que o contnuo fusional perseguido pelas interserialidade imaginria do sacricio. Elas exemplicam uma terceira forma de relao, a comunicao entre termos heterogneos que constitui multiplicidades pr-individuais, intensivas ou rizomticas: o sangue-cerveja implicado em todo devir-jaguar, para recordarmos nosso exemplo.

IX Estamos falando do conceito de devir. Esse conceito provm, como mais que sabido, da obra de Deleuze, onde aparece desde os primeiros estudos sobre Bergson e Nietzsche. Mas no livrinho assinado com Guattari sobre Kafka, e sobretudo no cap. 10 de Mil Plats (Deleuze & Guattari 1981), que o devir emergir como uma alternativa explcita, longamente argumentada, dicotomia estruturalista entre a identicao sacricial humano-animal-divindade e a correlao totmica de diferenas scio-naturais. Deleuze e Guattari dispem de travs a esta dicotomia o motivo bergsoniano do devir, um tipo de relao irredutvel tanto s semelhanas seriais como s correspondncias estruturais. Um devir no uma correspondncia entre relaes. Mas tampouco uma semelhana, uma imitao, ou, no limite, uma identicao (op.cit.: 291). O conceito de devir designa uma relao cuja apreenso algo dicultosa dentro do quadro analtico tradicional do estruturalismo, onde as relaes tendem a funcionar como objetos lgicos molares e extensivos. Um devir uma relao molecular e intensiva que opera em um registro outro que o da relacionalidade combinatria das estruturas formais; ela opera nas regies longe do equilbrio habitadas pelas multiplicidades reais (DeLanda 2002). Se as semelhanas seriais so imaginrias e as correlaes estruturais, simblicas, os devires so, ento, reais. Nem metfora, nem metamorfose, um devir um movimento que desterritorializa ambos os termos da relao que ele estabelece, extraindo-os das relaes que os deniam para associ-los atravs de uma nova conexo parcial. O verbo devir, neste sentido, no designa uma operao predicativa ou uma ao transitiva: estar implicado em um devir-jaguar no a mesma coisa que virar um jaguar. O jaguar totmico em que um homem se transforma sacricialmente imaginrio: mas a transformao real. o devir ele prprio que felino; o jaguar um aspecto do verbo devir, no seu objeto, pois devir um verbo intransitivo (e

25 innitivo). E to logo o homem se torna um jaguar, o jaguar no est mais l. Como dizem os autores, citando, signicativamente, os mitos amerndios,Lvi-Strauss no cessa de se deparar, em seus estudos sobre os mitos, com esses atos rpidos pelos quais o homem devm animal e, ao mesmo tempo, o animal devm (mas devm o que? homem, ou outra coisa?) (op.cit.: 290).

O que poderia ser lido como uma evocao do perspectivismo amaznico, onde um humano vira jaguar quando comea a ver os jaguares virando humanos, mas uma outra sorte de humanos, para quem ns os humanos somos porcos selvagens. digno de nota que Deleuze e Guattari associem o modelo do devir feitiaria, como tecnologia e como discurso (os contos mgicos), em oposio ao mundo obscuro e confuso do sacerdote e da teologia sacricial, de um lado, e ao mundo claro e distinto dos mitos e instituies totmicas, de outro. Vejo o xamanismo transversal amaznico como pertencente ao mundo obscuro e distinto da feitiaria e do devir.25 naturalmente a Teoria geral da magia, no o Ensaio sobre a natureza e funo do sacrifcio, que deve ser mobilizado a contrapelo, como cabe para pensar o xamanismo. Se essa uma linha de argumento que merece ser levada mais adiante, ento preciso concluir que a noo lvi-straussiana de sacrifcio confunde dois faux amis, amalgamando em uma s o que so na verdade duas relaes, a semelhana interserial e o devir extra-serial.26Mais ainda, seria preciso concluir que o totemismo, por sua vez, no o melhor modelo para a diferena: preciso passar adiante das analogias de proprocionalidade, dos grupos de Klein e das tabelas de permutao para alcanarmos um outro instrumento analtico. Tal como construdo nos livros de 1962, o totemismo um sistema de relaes classicatrias onde nada se passa, nada ui entre as sries correlativas: um modelo, aparentemente, de equilbrio perfeito. As diferenas totmicas de potencial so internas a cada srie, incapazes portanto de produzir qualquer efeito sobre a srie alterna.27 O devir, ao contrrio, arma a relao como pura exterioridade, como extrao dos25

Com isso, estou sugerindo tambm que a feitiaria um fenmeno dotado de uma consistncia antropolgica bem outra que imaginria ele perfeitamente real, no sentido em que o devir o , mas tambm no sentido de ser irredutvel a uma pura projeo das acusaes e consses favorecidas pelos funcionalistas.26

Ver aqui o trabalho de Goldman 2005, que insiste a justo ttulo na radicalidade da distino entre o devir e o sacrifcio.27

Ou capazes. Seria preciso tirar as consequncias do fato de que o esquema analgico do totemismo, com

26 termos das sries a que pertencem, sua entrada em rizoma: ele pede, no uma teoria das relaes fechadas dentro dos termos, mas uma teoria dos termos como abertos s relaes. Neste caso, o devir no um terceiro tipo de relao, como armei acima, mas um terceiro conceito de relao, atravs do qual se poderia ler tanto o totemismo quanto o sacricio como reterritorializaes secundrias de uma diferena relacionante primria, atualizaes alternativas de uma funo virtual que o devir, que est entretanto constantemente sendo contra-efetuado nas fmbrias dos aparelhos sacriciais e nos intervalos das taxonomias totmicas, na periferia da religio e nas fronteiras da cincia. Penso que o futuro da noo-mestra de relao, na antropologia, depende da ateno que a disciplina decidir prestar aos conceitos (principalmente) deleuzianos de diferena e de multiplicidade, de devir e de sntese disjuntiva. Uma teoria ps-estruturalista da relacionalidade, isto , uma teoria que mantenha o compromisso infundamental do estruturalismo com uma ontologia puramente relacional, no pode ignorar o paideuma construdo pela losoa de Gilles Deleuze, a paisagem de referncias onde avultam as guras de Leibniz, Spinoza, Hume, Nietzsche, Whitehead, Bergson, Tarde, Guattari, e as idias de perspectiva, fora, afeto, evento, processo, preenso, transversalidade, devir e diferena. Esta a linhagem de um estruturalismo menor, do qual se subtraiu uma articulao ou um mediador essencial, um personagem ainda mais estratgico que o sujeito transcendental eliminado por Lvi-Strauss. Um estruturalismo com algo mais ainda a menos; um estruturalismo, para irmos ao ponto, sem Kant. Ou, como Patrice

sua correspondncia simtrica entre diferenas naturais e diferenas sociais, est baseado em uma assimetria que sua razo de ser: precisamente o fato de que as espcies totmicas so endoprticas urso casa com urso, lince com lince que as torna aptas a signicar espcies sociais exoprticas cl do urso casa com cl do lince. Diferenas externas tornam-se diferenas internas, distines tornam-se relaes, termos viram funes. Do fundo do totemismo espreita uma frmula cannica aquela que transforma o dispositivo totmico no dispositivo das castas,como podemos acompanhar no captulo IV de O pensamento selvagem. Parece-me signicativo que seja justamente aqui, na demonstrao dos limites da simetria (L.-S. 1962b: 167) entre a especializao funcional das castas endogmicas e a homogeneidade funcional dos cls exogmicos, que Lvi-Strauss aplique ao totemismo termos como imaginrio, iluso, ngir e outros depreciadores semnticos. Se o totemismo ser mais adiante, no mesmo livro, declarado fundamentalmente verdadeiro em sua oposio ao sacricio, potncia pura do falso, quando confrontado com a casta ele d, ao contrrio, testemunho de que a iluso e a verdade no se distribuem de maneira to simples: as castas naturalizam falsamente uma cultura verdadeira, os grupos totmicos culturalizam verdadeiramente uma natureza falsa (op.cit.: 169). Ou seja: como se a natureza e a cultura estivessem em desequilbrio perptuo; como se entre as duas no pudesse haver paridade; como se verdade em/de uma srie correspondesse a iluso na/da outra srie. Esse motivo o princpio de complementaridade do sentido, poderamos cham-lo acompanha todo o pensamento de Lvi-Strauss, da Introduo obra de Marcel Mauss Histria de Lince.

27 Maniglier (2000: 6) tem o esplndido desplante de qualicar o projeto antropolgico de LviStrauss, um estruturalismo empirista e pluralista. Isto , ps-estruturalista. Quem sabe possamos assim escapar, pela tangente, ao estranho movimento de reao relao, a um certo anti-relacionalismo ambiente que favorece a reproliferao de identidades e substncias, essncias e transcendncias, e que parece estar a despontar no horizonte da disciplina? At a materialidade dos corpos e dos signos tem sido convocada para essa tarefa inglria.28 Alis, na Frana mesma, a propsito Os adversrios do estruturalismo nem sempre esto onde se imagina.

X digno de nota que boa parte da posteridade terica mais inovadora do estruturalismo distinguiuse por tentativas de reconsiderao do aspecto sacricial do pensamento selvagem. Um exemplo pontual o justamente clebre artigo de Roy Wagner (1977) sobre o parentesco analgico, que, recordemos, constri-se por contraste com um parentesco homolgico que o esquema totmico de Lvi-Strauss. Ou tomem-se as diversas pragmticas do ndice ou da metonmia avanadas como alternativa ao privilegiamento do smbolo ou da metfora pelo estruturalismo; o livro de tanta repercusso de Alfred Gell (1998), Art and agency, talvez o melhor ndice ele mesmo da fecundidade dessa episteme do ndice consolidada nos ltimos vinte anos. Em outro registro disciplinar, a losoa de Deleuze e Guattari, cuja inuncia sobre a antropologia s recentemente comea a se fazer realmente sentir (ou contra cuja inuncia s agora se comea realmente a reagir), tambm pode ser vista como uma travessia desse lado escuro da lua estruturalista, o lado da metonmia, do sintagma, do cromatismo, da diferena noconceitual ou algica, da variao contnua e do rizoma como anti-estrutura. A lua, note-se, a mesma, e redonda; mas quem passou por seu lado de l no volta exatamente ao mesmo. Nem v, portanto, o mesmo do lado de c. S aps vrias dessas expedies face oculta da lua estruturalista que a antropologia comea a ver claro que a obra de Lvi-Strauss j colaborava ativamente com muito do que pareceria ser sua subverso futura. A idia, por exemplo, de que a antropologia estrutural utiliza sempre um modelo mais de transformaes que de uxes (L.S. 1960/1973: 28; cf. supra) tornou-se uma verdade muito28

Sobre o anti-relacionalismo, ver o registro innitamente sutil de Strathern 2005: x.

28 aproximativa. A noo de transformao foi-se transformando ela prpria ao longo da obra de Lvi-Strauss.29 Primeiro, ela foi ganhando precedncia retrica sobre a noo de estrutura (que, bem entendido, denia-se por uma certa noo de transformao); Maniglier chega fala em uma redenio da anlise estrutural pelo conceito de transformao (2005: 2). Segundo, ela foi assumindo uma roupagem cada vez mais analgica, cada vez mais prxima das uxes que das permutaes. O ponto de catstrofe nessa evoluo situa-se, sem dvida, nas Mitolgicas. Uma curiosa nota em Do mel s cinzas possivelmente o primeiro registro explcito da mudana:Leach nos censurou por recorrermos exclusivamente a esquemas binrios, como se a prpria noo de transformao, que tomamos emprestada de dArcy Wentworth Thompson e utilizamos to constantemente, no pertencesse inteiramente ao domnio da analogia (L.-S. 1966: 74)

No livro-entrevista com D. Eribon, o ponto rearmado por Lvi-Strauss: a noo de transformao no lhe vem nem da lgica nem da lingustica (nem, ca a questo, da matemtica de Bourbaki?), mas do grande naturalista DArcy Thompson, e por ele, de Goethe e de Drer (L.-S & Eribon 1988: 158-59).30 A noo esttica e dinmica, no mais lgica e algbrica. Com isso, a prpria oposio entre certos paradigmas conceituais centrais, como totemismo, mito e descontinuidade, de um lado, e sacrifcio, rito e continuidade, do outro, torna-se algo uida e instvel. A linha de corte passa, em certo momento, entre a lgebra nitria do parentesco e a forma intensiva do mito:O problema colocado em As estruturas elementares do parentesco dizia respeito diretamente lgebra e teoria dos grupos de substituio. Os problemas colocados pela mitologia parecem indissociveis das formas estticas que os objetivam. Ora, estas ltimas pertecem ao mesmo tempo ao contnuo e ao descontnuo (L.-S. & Eribon 1988: 192)

Lvi-Strauss se refere ento teoria das catstrofes de R. Thom, que foi aplicadamente aplicada ao estruturalismo por Jean Petitot, um lsofo de formao matemtica, cujo papel nesta segunda fase da obra de Lvi-Strauss seria talvez comparvel, respeitadas as diferenas de estatura intelectual e o grau de envolvimento do interessado, ao do bourbakista Andr Weil na fase das Estruturas elementares. A teoria das catstrofes, continua Lvi-Strauss na passagem acima, permitiria superar a antinomia entre o contnuo e o descontnuo, oferecendo-se portanto como a29 30

Gabriel Tarde j dizia que a diferena vai diferindo, a mudana vai mudando.

Thompson citado desde cedo por Lvi-Strauss, mas raramente; por exemplo, no Posfcio de 1956 ao artigo sobre a noo de estrutura. Note-se que a noo de transformao de Thompson , aqui, explicitamente associada teoria dos grupos (L.-S. 1956b/1958: 358).

29 matemtica adequada ao mito. Essa uma longa histria, que nos traria a certas leituras atuais do estruturalismo, de corte mais formalista (no bom e no mau sentido), tais as praticadas por L. Scubla, J. Petitot, K. Hamberger, E. Dsveaux, S. Marcus e P. Maranda, entre outros. O artigo de Mauro Almeida no presente volume diagnostica com muita preciso alguns dos problemas envolvidos nessas leituras; o que me dispensa de fazer um comentrio para o qual no teria nem espao nem competncia Mas a concluso geral que creio se poder tirar que a noo estruturalista de transformao sofreu de fato uma transformao histrica (e estrutural) em parte devido inuncia, sobre o prprio autor, das interpretaes matemticas novas de sua obra; em parte, e mais importantemente, devido mudana do tipo de objeto que ela veio a privilegiar. A partir de uma gura inicial de natureza principamente algbrico-combinatria, a transformao veio se deformando at tornar-se uma gura com caractersticas muito mais topolgicas e dinmicas. As fronteiras entre transformao lgica e transformao real, salto lgico e emergncia morfogentica, tornaram-se mais tortuosas, contestadas, complicadas mais fractais. A oposio entre a forma e a fora perdeu seus contornos, e de certa forma se enfraqueceu. Isso no signica que Lvi-Strauss reconhea ou tematize tal mudana, para alm da reexo supracitada a respeito dos diferentes problemas tratados pelo mtodo estrutural. Ao contrrio, a tendncia do mestre francs sempre foi a de sublinhar a continuidade do programa que seguimos metodicamente desde As estruturas elementares do parentesco (1964: 17). Continuidade eis a uma palavra delicada, no vocabulrio estruturalista Lvi-Strauss tem obviamente razo; seria um pouco ridculo querer corrigi-lo a respeito de si mesmo.31 Mas a insistncia do mestre francs na unidade de inspirao de sua obra no nos dispensa de propor, como bons estruturalistas, uma leitura descontinusta dessa obra. As descontinuidades do projeto estruturalista podem ser situadas em dois planos: um diacrnico, com a idia de que a obra lvi-straussiana conhece grandes fases ou momentos; e um sincrnico, com a idia de que ela enuncia um discurso duplo, descreve um duplo movimento. Um modo de articular as duas descontinuidades seria observar que as fases da obra se distinguem pela importncia atribuda a cada um dos dois movimentos que se opem contrapontisticamente ao longo de toda ela.

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Como s vezes parece fazer um de seus mais minuciosos comentadores, Lucien Scubla (1998).

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XI Comecemos pela diacronia, dizendo que o estruturalismo, a rigor, como o totemismo: ele nunca existiu. Ou mais precisamente, como o totemismo, seu modo de existncia no o das substncias mas o das diferenas. No caso, uma diferena entre a primeira fase da obra de LviStrauss, marcada por As estruturas elementares do parentesco (1949/1967), e que se poderia dizer pr-estruturalista, e a segunda fase, ps-estruturalista, denida pelas Mitolgicas (19641971) e as trs monograas subsequentes, A via das mscaras (1979), A oleira ciumenta (1985) e Histria de Lince 1991). Entre as duas, o breve momento inequivocamente estruturalista, representado pelos dois livros totmicos de 1962, que o prprio autor v como assinalando uma pausa entre as Estruturas e as Mitolgicas. ali, com efeito, que Lvi-Strauss identica o pensamento selvagem, isto , as condies gerais da semiose humana, a uma gigantesca e sistemtica empresa de ordenamento do mundo, e promove o totemismo, de emblema da irracionalidade primitiva, a modelo mesmo de toda atividade racional. a este momento que o juzo maldoso de Deleuze e Guattari parece se aplicar melhor com o estruturalismo, o mundo inteiro se tornou mais razovel (D. & G. 1981: 289). A noo de que As estruturas elementares so um livro pr-estruturalista deve ser entendida, por suposto, em relao s obras posteriores de Lvi-Strauss (e no ao trabalho de algum outro antroplogo), e mesmo assim com uma boa pitada de sal. De qualquer modo, penso que autores como David Schneider e Louis Dumont tm razo em classicar a obra de 1949 de prestruturalista, organizada como ela est em torno das duas grandes dicotomias fundacionais das cincias humanas, Indivduo e Sociedade, de um lado o problema da integrao e totalizao sociais , e Natureza e Cultura, do outro o problema do instinto e da instituio humanos. Durkheim e Boas, digamos; ou tambm, as Luzes e o Romantismo; ou Hobbes e Herder, e no intermdio, o trickster Rousseau Conhece-se o enredo dessa mitologia histrica da disciplina. O problema lvi-straussiano, nas EEP, o problema antropolgico por excelncia, o problema da hominizao enquanto humanizao: a emergncia da sntese da cultura como transcendncia da natureza. E o grupo, isto , a Sociedade, mantm-se rmemente como sujeito transcendental e causa nal de todos os fenmenos analisados. Isso, claro, at os captulos nais do livro, quando, como sublinha Maniglier (2006), tudo parece subitamente se dissolver na contingncia:

31As mltiplas regras que interditam ou prescrevem certos tipos de cnjuges, e a proibio do incesto que as resume a todas, esclarecem-se a partir do momento em que se pe que preciso que a sociedade seja [exista, soit]. Mas a sociedade teria podido no ser. (L.-S. 1949/1967: 561)

E segue-se o grandioso desenvolvimento nal, onde se estabelece ao mesmo tempo que a sociedade coextensiva ao pensamento simblico e no sua causa ou razo de ser, que a sociologia do parentesco um ramo da semiologia, e que toda ordem humana traz dentro de si um permanente impulso de contra-ordem. Esses acordes conclusivos identicam o segundo nvel do discurso antropolgico de Lvi-Strauss, aquela descontinuidade interna ou discordncia sincrnica que me parece marcar o estruturalismo. Nas EEP, porm, esse segundo nvel ainda soa abafado. Nas Mitolgicas, tudo muda. A noo de sociedade se apaga, em favor de um foco nas transformaes narrativas inter-societrias; a oposio Natureza/Cultura deixa de ser uma condio antropolgica universal para se transformar denitivamente em um tema mtico, interno ao pensamento indgena; e os objetos algbrico-combinatrios chamados estruturas desaparecem praticamente de todo, em favor de uma noo topolgica de transformao. Ainda que Lvi-Strauss observe vrias vezes que os mitos que analisa formam um sistema fechado antes, uma quantidade de sistemas fechados; na verdade, um nmero indenido, isto , aberto, de sistemas fechados , as relaes que constituem as narrativas amerndias, antes que formando totalidades combinatrias em distribuio lgica discreta, em variao concomitante e tenso dialtica com os realia scio-etnogrcos, instanciam a um ponto que se poderia dizer de exemplaridade os princpios de conexo e heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignicante e cartograa que os tericos por excelncia do ps-estruturalismo, Deleuze e Guattari, iro contrapor aos modelos estruturais.A mitologia amerndia de Lvi-Strauss um gigantesco rizoma sem centro nem raiz: um mega-agenciamento coletivo, milenar de enunciao, uma hipermultiplicidade incessantemente atravessada por uxos semiticos, uxos materiais e uxos sociais (Deleuze & Guattari 1981: 33-4), uma rede percorrida ou sacudida, como que por ondas de choque, por diversas linhas de estruturao, mas que , enquanto tal, em sua totalidademultiplicidade irredutvel a qualquer estrutura. Uma multiplicidade a n-1, ou diramos, a M menos um, em homenagem ao famoso mito de referncia, M1, o mito bororo que era apenas uma verso invertida e enfraquecida dos mitos j que o seguem (M7-12). Pois o mito de referncia um mito qualquer, um M-1; todo mito uma verso de outro, toda verso abre para

32 um outro mito, e os mitos todos no exprimem uma origem nem apontam um destino: no tm referncia. O mito da referncia cede lugar ao sentido do mito, ao mito como mquina de sentido: ao conceito de mito como traduo pura, como uma narrativa que no apenas absolutamente traduzvel (L.-S. 1955/1958), mas que absolutamente traduo um dispositivo para converter um cdigo em outro, projetar um problema sobre um problema anlogo, fazer circular a referncia, anagramatizar o sentido. O mito como dispositivo para traduzir um mito em outro mito (os mitos se pensam entre si). Com o mundo no meio: o mito e o mundo se tornam innitamente contguos, pois os mitos no signicam o mundo, eles signicam com o mundo, por meio do mundo, e o que eles signicam a signicao ela prpria (o esprito humano). Voltemos um passo atrs, ou antes, combinemos esse passo diacrnico com a descontinuidade sincrnica. A obra de Lvi-Strauss, desde muito cedo, contm um subtexto ou contratexto psestruturalista. A suposta parcialidade do estruturalismo por oposies simtricas, equipolentes, duais, discretas e reversveis (como as do esquema totmico clssico), desmentida no s pela ainda hoje surpreendente crtica ao conceito de organizao dualista do artigo de 1956 que postula o ternarismo, a assimetria e a continuidade como anteriores ao binarismo, simetria e descontinuidade como, mais ainda, pela igualmente antiga e ainda mais surpreendente frmula cannica do mito, que pode ser tudo, menos simtrica e reversvel. Alm disso, digno de nota que Lvi-Strauss encerre as duas fases das Mitolgicas (o Finale do Homem nu e a Histria de Lince) com ponderaes sobre os limites do vocabulrio da lgica extensional para dar conta das transformaes que ocorrem em/entre os mitos (L.-S. 1971: 567-68; 1991: 249). Sobretudo, decerto no por acaso que os dois ltimos livros mitolgicos de Lvi-Strauss sejam construdos como desenvolvimentos precisamente dessas duas guras do dualismo anti-esttico: A oleira ciumenta (1985) uma ilustrao sistemtica da frmula cannica, ao passo que a Histria de Lince concentra-se na instabilidade dinmica o desequilibrio perptuo, expresso que fez sua primeira apario nas EEP, para descrever o casamento avuncular dos Tupi das dualidades cosmo-sociolgicas amerndias. Isso me faz supor que estamos diante de uma nica macro-estrutura virtual, da qual a frmula cannica, que pr-desconstri o analogismo totmico do tipo A/B=C/D, e o dualismo dinmico, que corri a paridade esttica das oposies binrias, seriam apenas duas atualizaes. Com a frmula cannica, em lugar de uma oposio simples entre metaforicidade totmica e metonimicidade sacricial, instalamo-nos imediatamente na equivalncia entre uma relao metafrica e uma metonmica, a torso que faz passar de uma metfora a uma metonmia ou vice-versa (L.-S. 1966: 211): a famosa dupla torso, a torso

33 supranumerria, o double twist (Maranda, org., 2001) que na verdade transformao estrutural por excelncia. A converso assimtrica entre o sentido literal e o o gurado, o termo e a funo, o continente e o contedo, o contnuo e o descontnuo, o sistema e seu exterior esses so os verdadeiros temas estruturalistas, que atravessam todas as anlises lvi-straussianas da mitologia, e mais alm (L.-S. 2001). O devir uma dupla toro. Vimos acima que Lvi-Strauss contrastava a lgebra do parentesco das EEP, que estaria inteiramente do lado do discreto, com a dialtica mtica entre contnuo e descontnuo. Essa diferena no puramente formal. Patrice Maniglier32 observava, a respeito da diferena entre as duas fases do projeto estruturalista, queSe o primeiro momento da obra de Lvi-Strauss parece se caracterizar por uma intensa interrogao sobre o problema da passagem da natureza cultura, e sobre a descontinuidade entre essas duas ordens, a qual parecia a Lvi-Strauss ser a nica garantia da especidade da antropologia social contra a antropologia fsica, o segundo momento no menos intensamente caracterizado por uma denncia obstinada, por parte de Lvi-Strauss, da [tentativa de] constituio da humanidade como uma ordem parte. (Maniglier 2000: 7)

E com efeito, considere-se o ltimo pargrafo das EEP, onde o autor observa que, em seus mitos sobre a Idade de Outro e o Alm, a humanidade sonha em capturar e xar aquele instante fugidio em que lhe foi permitido crer que podia trapacear com a lei da troca, ganhando sem perder, desfrutando sem partilhar, e que assim para ela a felicidade completa, eternamente negada ao homem social, aquela que consiste em viver entre si (L.-S.1949/1967: 569-70, grifo no original). Compare-se essa constatao, nalmente to freudiana, com um outro passo muito citado da obra de Lvi-Strauss, onde o antroplogo dene o mito como sendo uma histria do tempo em que os humanos e os animais no se distinguiam entre si (L.S. & Eribon 1988: 193), acrescentando que a humanidade jamais conseguiu se resignar diante da falta de acesso comunicativo s outras espcies do planeta. A nostalgia de uma comunicao originria entre todas as espcies (a continuidade interespecca) no exatamente a mesma coisa que aquela nostalgia da vida entre si responsvel pela fantasia do incesto pstumo (a descontinuidade intraespecca). Muito ao contrrio, eu diria: mudou a nfase, e o sentido, do contra-discurso humano. O segundo nvel do discurso antropolgico do estruturalismo sobe superfcie.

32

O leitor ter percebido que considero Maniglier um dos grandes comentadores de Lvi-Strauss. Ele um dos jovens pensadores franceses que vm inventivamente reconstruindo contra vento e mar, como se diz por l a problemtica estruturalista.

34 A discordncia ou tenso criativa entre o que poderamos chamar dos dois estruturalismos contidos na obra de Lvi-Strauss internalizada de modo especialmente complexo nas Mitolgicas. Pois no apenas a forma esttica da mitologia amerndia que se mostra, como observou o autor, um misto de contnuo e descontnuo, mas seu contedo losco igualmente e de resto, como poderia um estruturalista separar forma de contedo? E com este ponto, concluo. Creio que ele no foi sucientemente notado: as Mitolgicas no um pouco mais que uma empresa centrada no estudo das representaes mticas da passagem da natureza cultura, nas palavras modestas de seu autor. Esse estudo, longe de descrever uma passagem clara e unvoca, obrigou-o a cartografar um labirinto de caminhos tortuosos e equvocos, vias transversas, becos estreitos, impasses obscuros. A passagem de mo nica ente natureza e cultura no passa, em certo sentido, da primeira metade do primeiro livro da tetralogia. Dali para frente, os setes livros da srie completa (as grandes e as pequenas Mitolgicas) mostramse fascinados pelas mitologias da ambiguidade (Do mel s cinzas), pelas mitologias das uxes (A origem dos modos mesa), pelos percursos regressivos e as marchas retrgradas da Cultura Natureza, as zonas de compenetrao entre essas duas ordens, os pequenos intervalos, as periodicidades curtas, as repeties rapsdicas, os modelos analgicos, as deformaes contnuas, os desequilbrios perptuos, os dualismos que se desdobram em semi-triadismos e explodem inesperadamente em uma multiplicidade de eixos transversais de transformao O mel e a seduo sexual, o cromatismo e o veneno, a lua e a androginia, a algazarra e o fedor, os eclipses e a garrafa de Klein, as melancias demonacas... dir-se-ia que o contedo da mitologia amerndia consiste em uma negao do prprio impulso gerador do mito, na medida em que essa mitologia pensa ativamente, e contempla nostalgicamente, um contnuo cuja negao , no entender de Lvi-Strauss, a condio fundamental do pensamento. A polmica distino entre mito e ritual do Finale do Homem nu revela-se, no nal das contas, como tendo sido recursivamente interiorizada: o grande mito tupi de Histria de Lince descreve um movimento idntico ao que dene a essncia de todo rito, o cascatear de oposies de escopo decrescente, sua convergncia assinttica em um esforo desesperado para captar a assimetria ltima do real. Como se o nico mito que funcionasse realmente como um mito lvi-straussiano fosse o mito da mitologia, isto , as Mitolgicas elas mesmas. Ou no; ele tampouco. Esse certamente um problema a ser retomado. Seja como for, se a mitologia amerndia possui, como arma vrias vezes Lvi-Strauss, um direito e um avesso, um sentido progressivo (totmico) e outro regressivo (sacricial, portanto) os dois

35 sentidos ou direes do discurso estruturalista ele prprio , ento o xamanismo e o perspectivismo amaznicos pertencem inequivocamente ao avesso, o mundo do sentido regressivo. O complexo civilizatrio da origem do fogo de cozinha, recordemos, supe os esquemas: disjuno cu/terra; instaurao das periodicidades sazonais; diferenciao das espcies naturais. Mas o xamanismo perspectivista opera no elemento inverso e regressivo: o elemento do cromatismo crepuscular cu-terra (viagem xamnica), do fundo universalmente humano de todos os seres, e de uma tecnologia das drogas (tabaco) que embaralha radicalmente a distino entre natureza e cultura, ao denir uma provncia da sobrenatureza, isto , da natureza pensada enquanto cultura a Sobrenatureza, o conceito crucialmente escasso das Mitolgicas. Progresso e regresso: lembremos da denio irnica, anti-sartriana (L.S. 1962b: cap. IX) do mtodo estrutural como mtodo duplamente progressivo-regressivo; mtodo praticado, alis, com anco pelos mitos.33. Contra o mito do mtodo, o mtodo do mito.

Enm, entendo que o estruturalismo est muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analticas esgotadas, e que a fase das leituras brutalmente simplicadoras da obra lvi-straussiana, simplicao dialeticamente necessria, sem dvida, para o prodigioso orescimento de novos temas e problemas na antropologia dos ltimos trinta anos, aproxima-se de seu m. Aps a recauchutagem do evolucionismo pela psico-antropologia cognitiva, essa cincia perpetuamente promissora; aps a resurgncia do difusionismo com a economia poltica da globalizao e a crtica da cultura do colonialismo; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer