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50 ANOS DEPOIS Francisco Cândido Xavier EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO NO SÉCULO II Romance ditado pelo Espírito EMMANUEL Carta ao Leitor Meu amigo, Deus te conceda paz. Se leste as páginas singelas do "Há Dois Mil Anos...", é possível que procures aqui, a continua- ção das lutas intensas, vividas pelas suas persona- gens reais, na arena de lutas redentoras da Terra. É por esse motivo que me sinto obrigado a expli- car-te alguma coisa, com respeito ao desdobramento desta nova história. Cinqüenta anos depois das ruínas fumegantes de Pompeia, nas quais o Impiedoso senador Públio Lentulus se desprendia novamente do mundo, para aferir o valor de suas dolorosas experiências terres- tres, vamos encontrá-lo, nestas páginas, sob a veste humilde dos escravos, que o seu orgulhoso coração havia espezinhado outrora. A misericórdia do Senhor permitia-lhe reparar, na personalidade de Nestório, os desmandos e arbitrariedades cometidos no pre- térito, quando, como homem público, supunha guar- dar nas mãos vaidosas, por injustificável direito di- vino, todos os poderes. Observando um homem cativo, reconhecerás, em cada traço de seus sofri- mentos, o venturoso resgate de um passado de fal- tas clamorosas. Todavia, sinto-me no dever de esclarecer-te a 1

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50 ANOS DEPOIS

Francisco Cândido Xavier

EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DOCRISTIANISMO NO SÉCULO II

Romance ditado pelo EspíritoEMMANUEL

Carta ao Leitor

Meu amigo, Deus te conceda paz. Se leste as páginas singelas do "Há Dois MilAnos...", é possível que procures aqui, a continua-ção das lutas intensas, vividas pelas suas persona-gens reais, na arena de lutas redentoras da Terra. É por esse motivo que me sinto obrigado a expli-car-te alguma coisa, com respeito ao desdobramentodesta nova história. Cinqüenta anos depois das ruínas fumegantesde Pompeia, nas quais o Impiedoso senador PúblioLentulus se desprendia novamente do mundo, paraaferir o valor de suas dolorosas experiências terres-tres, vamos encontrá-lo, nestas páginas, sob a vestehumilde dos escravos, que o seu orgulhoso coraçãohavia espezinhado outrora. A misericórdia do Senhorpermitia-lhe reparar, na personalidade de Nestório,os desmandos e arbitrariedades cometidos no pre-térito, quando, como homem público, supunha guar-dar nas mãos vaidosas, por injustificável direito di-vino, todos os poderes. Observando um homemcativo, reconhecerás, em cada traço de seus sofri-mentos, o venturoso resgate de um passado de fal-tas clamorosas. Todavia, sinto-me no dever de esclarecer-te a

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curiosidade, com referência aos seus companheirosmais diretos, na nova romagem terrena, de que estelivro é um testemunho real. Não obstante estarem na Terra, pela mesmaépoca, os membros da família Severus, Flávia eMarcus Lentulus, Saul e André de Gioras, Aurélia,Suplicio, Fúlvia e demais comparsas do mesmo dra-ma, devo esclarecer-te que todos esses companheirosde luta mourejavam, na ocasião, em outros setoresde sofrimentos abençoados, não comparecendo aqui,onde o senador Públio Lentulus aparece, aos teusolhos, na indumenta de escravo, já na idade madura,como elemento integrante de um quadro novo. De todas as personagens do "Há Dois MilAnos. . . ", um contiulo aqui se encontra, junto deoutras figuras do mesmo tempo, como Policarpo,embora não relacionado nominalmente no livro an-terior, companheiro esse que, pelos laços afetivos, selhe tornara um irmão devotado e carinhoso, pelasmesmas lutas Políticas e sociais. A Roma de Nero ede Vespasiano. Quero referir-me a Pompilio Crasso,aquele mesmo irmão de destino na destruição deJerusalém, cujo coração palpitante lhe fôra retiradodo peito por Nicandro, às ordens severas de umchefe cruel e vingativo. Pompilio Crasso é o mesmo Helvídio Luciusdestas páginas, ressurgindo no mundo para o tra-balho renovador e, aludindo a um amigo dedicado egeneroso, quero dizer-te que este livro não foi es-crito de nós e por nós, no pressuposto de descreveras nossas lutas transitórias no mundo terrestre.Este livro é o repositório da verdade sobre um co-ração sublime de mulher, transformada em santa,cujo heroísmo divino foi uma luz acesa na estradade numerosos Espíritos amargurados e sofredores.

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No "Há Dois Mil Anos. . ." buscávamos encare-cer wma época de luzes e sombras, onde a materiali-dade romana e o Cristianismo disputavam a possedas almas, num cenprio de misérias e esplendores,entre as extremas exaltações de César e as maravi-lhosas edificações em Jesus - Cristo. Ali, Públio Len-tulus se movimenta num acervo de farraparias mo-rais e deslumbramentos transitórios; aqui, entretan-to, como o escravo Nestório, observa ele uma alma.Refiro-me a Célia, figura central das páginas destahistória, cujo coração, amoroso e sábio, entendeu eaplicou todas as lições do Divino Mestre, no trans-curso doloroso de sua vida. Na seqüência dos fatos,dentro da narrativa, seguirás os seus passos de me-nina e de moça, como se observasses um anjo pai-rando acima de todas as contingências da Terra.Santa pelas virtudes e pelos atos de sua existênciaedificante, seu Espírito era bem o lírio nascido dolodo das paixões do mundo, para perfumar a noiteda vida terrestre, com os olores suaves das maisdivinas esperanças do Céu. Podemos afirmar, portanto, leitor amigo, queeste volume não relaciona, de modo integral, a con-tinuação das experiências purificadoras do antigosenador Lentulus, nos círculos de resgate dos traba-lhos terrestres. É a história de um suóZime coraçãofeminino que se divinizou no sacrifício e na abne-gação, confiando em Jesus, nas lágrimas da suanoite de dor e de trabalho, de reparação e de espe-rança. A Igreja Romana lhe guarda, até hoje, asgenerosas tradições, nos seus arquivos envelhecidos,se bem que as datas e as denominações, as descri-ções e apontamentos se encontrem confusos e obscu-ros pelo dedo viclado dos narradores humanos. Mas, meu irmão e meu amigo, abre estas pági-

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nas refletindo no turbilhão de lágrimas que se re-presa no coração humano e pensa no quinhão deexperiências amargas que os dias transitórios davida te trouxerem. É possível que também tenhasamado e sofrido muito. Algumas vezes experimen-taste o sopro frio da adversidade enregelando o teucoração. De outras, feriram-te a alma bem inten-cionada e sensível a calúnia ou o desengano. Emcertas circunstâncias, olhaste também o céu e per-guntaste, em silêncio, onde se encontrariam a Ver-dade e a Justiça, invocando a misericórdia de Deus,em preces dolorosas. Conhecendo, porém, que todasas dores têm uma finalidade gloriosa na redençãodo teu Espírito, lê esta história real e medita. Osexemplos de uma alma santificada no sofrimentoe na humildade, ensinar-te-ão a amar o trabalho eas penas de cada dia; observamdo-lhe os martíriosmorais e sentindo, de perto, a sua profunda fé, expe-rimentarás um consolo brando, renovando as tuasesperanças em Jesus - Cristo. Busca entender a essência deste repositório deverdades confortadoras e, do plano espiritual, o Es-pírito purificado de nossa heroína derramará emteu coração o bálsamo consolador das esperançassublimes. Que aproveites do exemplo, como nós outros,nos tempos recuados das lutas e das experiênciasque passaram, é o que te deseja um irmão e servohumilde.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 19 de dezembro de 1989.

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PRIMEIRA PARTE

Uma Família Romana

Varando a multidão que estacionava na grandepraça de Esmirna, em clara manhã do ano 131 danossa era, marchava um troço de escravos jovense atléticos, conduzindo uma liteira ricamente ata-viada ao gosto da época. De espaço a espaço, ouviam-se as vozes doscarregadores, exclamando : - Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabri-cius ! Lugar para o nobre representante de Augusto !Lugar!... Lugar!... Desfaziam-se os pequenos grupos de populares,formados à pressa em torno do mercado de peixese legumes, situado no grande logradouro, enquan-to o rosto de um patrício romano surdia entre ascortinas da liteira, com ares de enfado, a observara turba rumorosa. Seguindo a liteira, caminhava um homem dosseus quarenta e cinco anos presumíveis, deixandover nas linhas fisionômicas o perfil israelita, tipi-camente características, e um orgulho silenciosoe inconformado. A atitude humilde, todavia, evi-denciava condição inferior e, conquanto não parti-cipasse do esforço dos carregadores, adivinhava-se--lhe no semblante contrafeito a situação dolorosade escravo. Respirava-se, à margem do golfo esplêndido,o ar embalsamado que os ventos do Egeu traziamdo grande Arquipélago. O movimento da cidade crescera de muito na-queles dias inolvidáveis, seqüentes à última guerra

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civil que devastara a Judéia para sempre . Milha-res de peregrinos invadiam-na por todos os flancos,fugindo aos quadros terrificantes da Palestina, as-solada pelos flagelos da última revolução aniqui-ladora dos derradeiros laços de coesão das triboslaboriosas de Israel, desterrando-as da pátria. Remanescentes de antigas autoridades e denumerosos plutocratas de Jerusalém, de Cesárea,de Betel e de Tiberíades, ali se acotovelam famé-licos, por subtraírem-se aos tormentos do cativeiro,após as vitórias de Júlio Sexto Severo sobre osfanáticos partidários do famoso Bar-Coziba. Vencendo os movimentos instintivos da turba,a liteira do tribuno parou à frente de soberbo edi-fício, no qual os estilos grego e romano se casavamharmoniosamente . Ali estacionando, foi logo anunciado no inte-rior, onde um patrício relativamente jovem, apa-rentando mais ou menos quarenta anos, o esperavacom evidente interesse. - Por Júpiter! - exclamou Fabricius, abra-çando o amigo Helvídio Lucius - não supunha en-contrar-te nessa plenitude de robustez e elegância,de fazer inveja aos próprios deuses! - Ora, ora! - replicou o interpelado, em cujosorriso se podia ler a satisfação que lhe causavamaquelas expansões carinhosas e amigas - são mi-lagres dos nossos tempos. Aliás, se há quem me-reça tais gabos, és tu, a quem Adônis sempre rendeuhomenagens. Neste ínterim, um escravo ainda moço traziaa bandeja de pra,ta, onde se alinhavam pequenosvasos de perfume e coroas da época, adornadasde rosas. Helvídio Lucius serviu-se cuidadosamente de

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uma delas, enquanto o visitante agradecia comleve sinal de cabeça. - Mas, ouve! - continuava o anfitrião semdissimular o contentamento que lhe causava a vi-sita - há bastante tempo aguardamos tua che-gada, de maneira a partirmos para Roma com a bre-vidade possível. Há dois dias que a galera estáà nossa disposição, dependendo a partida tão so-mente da tua vinda!... E batendo-lhe amistosamente no ombro, re-matava : - Que demora foi essa?. - Bem sabes - explicou Fabricius - quesumariar os estragos da última revolução era ta-refa assaz difícil para realizar em poucas semanas,razão pela qual, apesar da demora a que te refe-res, não levo ao Governo Imperial um relatóriominucioso e completo, mas apenas alguns dadosgerais. - E a propósito da revolução da Judéia, quala tua impressão pessoal dos acontecimentos? Caio Fabricius esboçou um leve sorriso, acres-centando com amabilidade: - Antes de dar a minha opinião, sei que atua é a de quem encarou os fatos com o maiorotimismo . - Ora, meu amigo - disse Helvídio, como ajustificar-se -, é verdade que a venda de toda aminha criação de cavalos da Idumeia, para as for-ças em operações, me consolidou as finanças, dis-pensando-me de maiores cuidados quanto ao futuroda família; mas isso não impede considere a pe-nosa situação desses milhares de criaturas que searruinaram para sempre. Aliás, se a sorte mefavoreceu no plano de minhas necessidades mate-

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riais, devo-o principalmente à intervenção de meusogro, junto do prefeito Lólio Tirbico. - O censor Fábio Cornélio agiu assim tão de-cisivamente, a teu favor? - perguntou Fabricius,algo admirado. - Sim. - Está, bem - disse Caio já despreocupado -,eu nunca entendi patavina da criação de cavalos daIdumeia ou de bestas da Ligúria. Aliás, o êxito dosteus negócios não altera a nossa velha e cordialamizade . Por Pólux ! . . . Não há necessidade detantas explicações nesse sentido. E depois de sorver um trago de Falerno soli-citamente servido, continuou, como que analisandoas próprias reminiscências mais íntimas : - O estado da Província é lastimável e, naminha opinião, os judeus nunca mais encontrarãona Palestina o benefício consolador de um lar ede uma pátria. Em diversos reecontros, morrerammais de cento e oitenta mil israelitas, segundo oconhecimento exato da situação. Foram destruídosquase todos os burgos. Na zona de Betel a misé-ria atingiu proporções inauditas. Famílias inteiras,desamparadas e indefesas, foram covardemente as-sassinadas. Enquanto a fome e a desolação ofe-ram a ruína geral, também a peste, oriundada exalação dos cadáveres insepultos. Nunca supusrever a Judéia em tais condições... - Mas, a quem deveremos inculpar do queocorre? O governo de Adriano não se tem caracte-rizado pela retidão e pela justiça? - perguntouHelvídio Lucius com grande interesse. - Não posso afirmá-lo com certeza - revidouFabricius, atencioso -; todavia, considero pessoal-mente que o grande culpado foi Tineio Rufus, le-

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gado pró-pretor da Província. Sua incapacidadepolítica foi manifesta em todo o desenvolvimentodos fatos. A reedificação de Jerusalém com o nomede Elia Capitolina, obedecendo aos caprichos doImperador, apavora os israelitas, desejosos todosde conservar as tradições da cidade santa. O mo-mento requeria um homem de qualidades excepcio-nais, à frente dos negócios da Judéia. Entretanto,Tineio Rufus não fez mais que exacerbar o ânimopopular com imposições religiosas de todos os ma-tizes, contrariando a clássica tradição de tolerân-cia do Império nos territórios conquistados. Helvídio Lucius ouvia o amigo, com singularinteresse, mas, como se desejasse afastar de simesmo alguma reminiscência amarga, murmurou : - Fabricius, meu caro, tua descrição da Ju-deia me apavora o espírito... Os anos que passá-mos na Ásia Menor me devolvem a Roma com ocoração apreensivo. Em toda a Palestina campeiamsuperstições totalmente contrárias às nossas tradí-ções mais respeitáveis, e essas crenças estranhasinvadem o próprio ambiente da família, dificultan-do-nos a tarefa de instituir a harmonia doméstica... - Já sei - replicou o amigo solicitamente -,queres aludir, com certeza, ao Cristianismo, com assuas inovações e os seus asseclas. Mas . . . - ajuntou Caio, evidenciando uma aten-ção mais íntima -, acaso Alba Lucínia teria dei-xado de ser a segurança vestalina de tua casa?Seria possível ? - Não - replicou Helvídio ansioso por sefazer compreendido -, não se trata de minha mu-lher, sentinela avançada de todos os feitos da mi-nha vida, há longos anos, mas de uma das filhasque, contrariamente a todas previsões, imbuiu-se

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de semelhantes princípios, causando-nos os maissérios desgostos. - Ah ! lembro-me de Helvídia e de Célia, que,em meninas, eram bem dois sorrisos dos deusesna tua casa. Mas tão jovens e dadas, assim, acogitações filosóficas? - Helvídia, a mais velha, não se impregnoude tais bruxarias; mas a nossa pobre Célia parecebastante prejudicada pelas superstições orientais,tanto que, regressando a Roma, tenciono deixá-laem companhia de meu pai, por algum tempo . Suaslições de virtude doméstica hão-de renovar-lhe ocoração, segundo cremos. - É verdade - concordou Fabricius -, ovenerando Cneio Lucius reformaria para as tra-dições romanas os sentimentos mais bárbaros denossas Províncias. Fizera-se ligeira pausa na conversação, enquan-to Caio tamborilava com os dedos, dando a entendera sua preocupação, como se evocasse alguma dolo-rosa lembrança. - Helvídio - murmurou o tribuno fraternal-mente -, teu regresso a Roma é de causar apreen-sões aos teus verdadeiros amigos. Recordando teupai, lembro-me instintivamente de Silano, o peque-no enjeitado que ele chegou quase a adotar ofi-cialmente como próprio filho, desejoso de libertar-teda calúnia a ti imputada no albor da mocidade.. - Sim - disse o anfitrião, como se houverarepentinamente despertado -, ainda bem que nãodesconheces ser caluniosa a acusação que pesousobre mim. Aliás, meu pai não ignora isso. - Apesar de tudo, teu venerável genitor nãohesitou em cumular a criança, a ele encaminhada,com o máximo de carinhos...

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Depois de passar nervosamente a mão pelafronte, Helvídio Lucius acentuou: - E Silano ? . . Sabes o que é feito dele ? - As últimas informações davam-no como in-corporado às nossas falanges que mantêm o do-mínio das Gálias, como simples soldado do exército. - As vezes - ajuntou Helvídio preocupado -tenho pensado na sorte desse rapaz, pupilo da ge-nerosidade de meu pai, desde os tempos de minhajuventude. Mas, que fazer? Desde que me casei,tudo fiz por trazê-lo à nossa companhia. Minhapropriedade da Idumeia poderia proporcionar-lheuma existência simples e liberta de maiores cuida-dos, sob as minhas vistas atentas; todavia, AlbaLucínia se opôs terminantemente aos meus proje-tos, não só recordando os comentários caluniososde que fui alvo no passado, como também alegandoseus direitos exclusivos à minha afeição, pelo que,fui compelido a conformar-me, levando em conta asnobres qualidades da sua alma generosa. Bem sabes que minha esposa deve receber asminhas atenções mais respeitosas. Não tenho remé-dio senão aceitar de bom grado as suas afetuosasimposições . - Helvídio, bom amigo - exclamou Fabricius,demonstrando prudência -, não devo nem possointerferir na tua vida íntima. Problemas há, navida, que somente os cônjuges podem solucionar,entre si, na sagrada intimidade do lar; mas, nãoé apenas pelo caso de Silano que me sinto apreen-sivo, relativamente ao teu regresso. E fixando o amigo bem nos olhos, rematou: - Lembras-te de Cláudia Sabina?. . - Sim . . . - respondeu vagamente . - Não sei se estás devidamente informado

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a seu respeito. Cláudia é hoje a esposa de Lólio, o prefeito dos pretorianos. Não deves igno-rar que esse homem é a personalidade do dia, comodepositário da máxima confiança do Imperador. Helvídio Lucius passou a mão pela fronte,como se desejasse afugentar uma penosa recorda-ção do passado, revidando, afinal, para tranquili-dade de si mesmo : - Não desejo exumar o passado, visto serhoje um outro homem; mas, se houver necessidadede ser prestigiado na Capital do Império, não po-demos esquecer, igualmente, que meu sogro é pes-soa de toda a confiança, não só do prefeito a quealudes, como de todas as autoridades administra-tivas. - Bem o sei, mas não ignoro também queo coração humano tem escaninhos misteriosos...Não acredito que Cláudia, hoje elevada às esferasda mais alta aristocracia, pelos caprichos do des-tino, haja olvidado a humilhação do seu amor vio-lento de plebéia, espezinhado em outros tempos. - Sim - confirmou Helvídio Lucius com osolhos parados no abismo de suas recordações maisíntimas -, muitas vezes tenho lamentado o haverautrido em seu coração uma afetividade tão inten-sa; mas, que fazer? A juventude está sujeita acaprichos numerosos e, a maior parte das vezes,não há advertência que possa romper o véu dacegueira. . . - E estarás hoje menos moço para que tesintas completamente livre dos caprichos multipli-cados da nossa época? O interpelado compreendeu todo o alcance da-quelas observações sábias e prudentes, e como senão lhe prouvesse o exame das circunstâncias e

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dos fatos, cuja lembrança penosa o atormentaria,replicou sem perder o aparente bom humor, embo-ra os olhos evidenciassem uma preocupação amar-gurosa: - Caio, meu bom amigo, pelas barbas de Jú-piter! não me faças voltar ao pélago escuro dopassado. Desde que chegaste, nada me dissestealém de assuntos penosos e sombrios. De início,é a miséria da Judéia, de arrepiar os cabelos, comos seus quadros de desolação e ruína e, depois,eis voltado para o passado escabroso, como senão nos bastassem as atuais amarguras.. . Fala-meantes de algo que me consolide o repouso íntimo .Embora não saiba explicar o motivo, tenho o co-ração apreensivo quanto ao futuro. A máquina deintrigas da sociedade romana aborrece-me o espí-rito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir aoambiente detestável. Meu regresso a Roma inqui-na-se de perspectivas dolorosas, embora não ouseconfessá-lo!... Fabricius ouviu-o, atento e compungido. Aspalavras do amigo denunciavam o profundo temorde retornar ao passado tão cheio de aventuras.Aquela atitude súplice atestava que a recordaçãodos tempos idos ainda lhe palpitava no peito, ape-sar de todos os esforços para esquecer. Reprimindo os próprios receios, falou, então,afetuosamente : - Pois bem, não falaremos mais nisso. E acentuando a alegria que lhe causava aqueleencontro, continuou comovidamente : - Então, poderia acaso esquecer-me de algoque me pedisses? Sem mais delonga, encaminhou-se para o átrioonde os serviçais de confiança lhe esperavam as

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ordens, regressando à sala acompanhado pelo des-conhecido que lhe seguira a liteira, na atitude hu-milde de escravo. Helvídio Lucius surpreendeu-se, ao ver a per-sonagem interessante que lhe era apresentada. Identificara, imediatamente, a sua condição deservo, mas o espanto lhe provinha da profundasimpatia que aquela figura lhe inspirava. Seus traços de israelita eram iniludíveis, porém,no olhar havia uma vibração de orgulho nobre,temperado de singular humildade. Na fronte larga,notavam-se cãs precoces, se bem que o físico de-nunciasse a pletora de energias orgânicas da idademadura. O aspecto geral, contudo, era o de umhomem profundamente desencantado da vida. Norosto, percebia-se o sinal de macerações e sofri-mentos indefiníveis, impressões dolorosas, aliás com-pensadas pelo fulgor enérgico do olhar, transpa-rente de serenidade. - Eis a surpresa - frisou Caio Fabriciusalegremente : - comprei, como lembrança, esta pre-ciosidade, na feira de Terebinto, quando alguns denossos companheiros liquidavam o espólio dos ven-eidos . Helvídio Lucius parecia não ouvir, como queprocurando mergulhar fundo naquela figura curio-sa, ao alcance de seus olhos, e cuja simpatia lheimpressionava as fibras mais sensíveis e mais ín-timas. - Admiras-te ? - insistiu Caio desejoso deouvir as suas apreciações diretas e francas. - Que-rerias porventura, que te trouxesse um Hérculesformidando? Preferi lisonjear-te com um raro exem-plar de sabedoria. Helvídio agradeceu com um sinal expressivo,

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acercando-se do escravo silencioso, com um levesorriso . - Como te chamas? - perguntou solícito. - Nestório. - Onde nasceste ? Na Grécia ? - Sim - respondeu o interpelado com umdoloroso sorriso. - Como pudeste alcançar Terebinto ? - Senhor, sou de origem judia, apesar de nas-cido em Efeso . Meus antepassados transportaram--se à Jônia, há alguns decênios, em virtude dasguerras civis da Palestina. Criei-me nas margensdo Egeu, onde mais tarde constituí família. Asorte, porém, não me foi favorável. Tendo perdi-do minha companheira, prematuramente, devido agrandes desgostos, em breve, sob o guante de per-seguições implacáveis, fui escravizado por ilustresromanos, que me conduziram ao antigo país demeus ascendentes. - E foi lá que a revolução te surpreendeu? - Sim . - Onde te encontravas? - Nas proximidades de Jerusalém. - Falaste de tua família. Tinhas apenasmulher ? - Não, senhor. Tinha também um filho. - Também morreu ? - Ignoro. Meu pobre filho, ainda criança, caiu, -como seu pai, na dolorosa noite do cativeiro. Apar-tado de mim, que o vi partir com o coração lace-rado de dor e de saudade. foi vendido a poderososmercadores do sul da Palestina. Helvídio Lucius olhou para Fabricius, como aexpressar a sua admiração pelas respostas desas-sombradas do desconhecido, continuando, porém, a

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interrogar: - A quem servias em Jerusalém ? - A Calius Flavius. - Conheci-o de nome. Qual o destino do teusenhor... - Foi dos primeiros a morrer nos choqueshavidos nos arredores da cidade, entre os legioná-rios de Tineio Rufus e os reforços judeus chegadosde Betel. - Também combateste? - Senhor, não me cumpria combater senãopelo desempenho das obrigações devidas àquele que,conservando-me cativo aos olhos do mundo, hámuito me havia restituído à liberdade, junto deseu magnânimo coração. Minhas armas deviam seras da assistência necessária ao seu espírito leal ejusto. Calius Flavius não era para mim o verdu-go, mas o amigo e protetor de todos os momentos.Para meu consolo íntimo, pude provar-lhe a minhadedicação, quando lhe fechei os olhos no alentoderradeiro. - Por Júpiter! - exclamou Helvídio, dirigin-do-se em alta voz ao amigo - é a primeira vezque ouço um escravo abençoar o senhor. - Não é só isso - respondeu Caio Fabriciusbem humorado, enquanto o servo os observavaereto e digno -, Nestório é a personificação dobom-senso. Apesar dos seus laços de sangue coma Ásia Menor, sua cultura acerca do Império é dasmais vastas e notáveis. - Será possível? - tornou Helvídio admirado. - Conhece a História Romana tão bem quan-to um de nós. - Mas chegou a viver na capital do mundo? - Não. Ao que ele diz, somente a conhece

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por tradição. Já convidado pelos dois patrícios, sentou-se oescravo para demonstrar os seus conhecimentos. Com desembaraço, falou das lendas encanta-doras que envolviam o nascimento da cidade famo-sa, entre os vales da Etrúria e as deliciosas pai-sagens da Campânia. Rômulo e Remo, a lembrançade Acca Larentia, o rapto das Sabinas, eram ima-gens que, na linguagem de um escravo, broslavam--se de novos e interessantes matizes. Em seguida,passou a explanar o extraordinário desenvolvimentoeconômico e político da cidade. A história de Romanão tinha segredos para o seu intelecto. Remon-tando à época de Tarquínio Prisco, falou de suasconstruções maravilhosas e gigantescas, detendo-se,em particular, na célebre rede de esgotos, a cami-nho das águas lodosas do Tibre. Lembrou a figurade Sérvio Túlio, dividindo a população romana emclasses e centúrias. Numa Pompílio, Menênio Agri-pa, os Gracos, Sérgio Catilina, Cipião Nasica etodos os vultos famosos da República foram re-cordados na sua exposição, onde os conceitos cro-nológicos se alinhavam com admirável exatidão.Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, ge-nerais intrépidos e valorosos, eram com detalhesindelevelmente gravados na sua memória. Seguin-do o curso dos seus conhecimentos, rememorou oImpério nos seus primórdios, salientando as suasrealizações portentosas, desde o faustoso brilho daCorte de Augusto. As magnificências dos Césares,trabalhadas pela sua dialética fluente, apresentavamnovos coloridos históricos, em vista das considera-ções psicológicas, acerca de todas as situações po-líticas e sociais. Por muito tempo falara Nestório dos seus co-

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nhecimentos do passado, quando Helvídio Lucius sinceramente surpreendido o interpelou : - Onde conseguiste essa cultura, radicada emnossas mais remotas tradições?. . - Senhor, tenho manuseado todos os livrosda educação romana, ao meu alcance, desde moço.Além disso, sem que me possa explicar a razão,a Capital do Império exerce sobre mim a mais sin-gular de todas as seduções. - Ora - ajuntou Caio Fabricius satisfeito -Nestório tanto conhece um livro de Salústio, comouma página de Petrônio. Os autores gregos, igual-mente, não têm segredos para ele. Considerada,porém, a sua predileção pelos motivos romanos,quero acreditar haja ele nascido ao pé de nossasportas . O escravo sorriu levemente, enquanto HelvídioLucius esclarecia: - Semelhantes conhecimentos evidenciam uminteresse injustificável da parte de um cativo. E depois de uma pausa, como se estivessearquitetando um projeto íntimo, continuou a falar,dirigindo-se ao amigo : - Meu caro, louvo-te a lembrança. Minhagrande preocupação, no momento, era obter umservo culto, que pudesse incumbir-se de enriquecera educação de minhas filhas, auxiliando-me, simul-tâneamente, no arranjo dos processos do Estado,a que agora serei compelido pela força do cargo. O anfitrião mal havia concluído o seu agra-decimento, quando surgiram na sala a esposa eas filhas, num gracioso cromo familiar. Alba Lucínia, que ainda não atingira os qua-renta anos, conservava no rosto os mais belos tra-ços da juventude, a iluminarem o seu perfil de

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madona. Junto das filhas, duas primaveras riso-nhas, seu aspecto de mocidade ganhava um todode nobres expressões vestalinas, confundindo-se comas duas, como se lhes fora irmã mais velha, aoinvés de mãe extremosa e afável. Helvídia e Célia, porém, embora a semelhançaprofunda dos traços fisionômicos, deixavam trans-parecer, espontâneamente, a diversidade de tempe-ramentos e pendores espirituais. A primeira entre-mostrava nos olhos uma inquietação própria daidade, indiciando os sonhos febricitantes que lhepovoavam a alma, ao passo que a segunda traziano olhar uma reflexão serena e profunda, comose o espírito de mocidade houvera envelhecido pre-maturamente . Todas as três exibiam, graciosamente, os deli-cados enfeites do "peplum" em sua feição domés-tica, presos os cabelos em preciosas redea de ouro,ao mesmo tempo que ofereciam a Caio Fabricius umsorriso de acolhimento. - Ainda bem - murmurou o hóspede comvivacidade própria do seu gênio expansivo, avan-çando para a dona da casa -, o meu grandeHelvídio encontrou o altar das Três Graças, en-tronizando-as egoisticamente no lar. Aliás, aquiestamos nas plagas do Egeu, berço de todas asdivindades!... Suas saudações foram recebidas com geralagrado. Não somente Alba Lucínia, mas também as fi-lhas se regozijavam com a presença do carinhosoamigo da família, de muitos anos. Em breve, todo o grupo se animava em pa-lestra amena e sadia. Era o burburinho das notíciasde Roma, de mistura com as impressões da Idu-

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meia e de outras regiões da Palestina, onde Hel-vídio Lucius estagiara junto da família, enfilei-rando-se as opiniões encantadoras e íntimas, acercados pequeninos nadas de cada dia. Em dado instante, o dono da casa chamoua atenção da esposa para a figura de Nestório,encolhido a um canto da sala, acrescentando entu-siasticamente : - Lucínia, eis o régio presente que Caio nostrouxe de Terebinto. - Um escravo ? ! . . - perguntou a senhoracom entonação de piedade . - Sim. Um escravo precioso. Sua capacidademnemônica é um dos fenômenos mais interessantesque tenho observado em toda a vida. Imagina quetem dentro do cérebro a longa história de Roma,sem omitir o mais ligeiro detalhe. Conhece nossas#tradições e costumes familiares como se houveranascido no Palatino. Desejo sinceramente tomá-loa meu serviço particular, utilizando-o ao mesmotempo no apuro da instrução de nossas filhas. Alba Lucínia fitou o desconhecido tomada desurpresa e simpatia. Por sua vez, as duas jovenso contemplavam admiradas . Saindo, contudo, da sua estupefação, a nobrematrona ponderou refletidamente: - Helvídio, sempre considerei a missão do-méstica como das mais delicadas de nossa vida.Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos,tê-las-ia dado também de suas virtudes para quevenhamos a utilizá-lo, confiadamente, na educaçãode nossas filhas ? O marido sentiu-se embaraçado para responderà pergunta tão sensata e oportuna, mas, em seuauxílio veio a palavra firme de Caio, que escla-

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receu: - Eu vo-la dou, minha senhora : se Helvídiopode abonar-lhe a sabedoria, posso eu testificar assuas nobres qualidades morais. Alba Lucínia pareceu meditar por momentos,acrescentando, afinal, com um sorriso satisfeito: - Está bem, aceitaremos a garantia da suapalavra. Em seguida, a graciosa dama fitou Nestóriocom caridade e brandura, compreendendo que, seo seu doloroso aspecto era, incontestàvelmente, ode um escravo, os olhos revelavam uma serenidadesuperior, saturada de estranha firmeza. Depois de um minuto de observação acuradae silenciosa, voltou-se para o marido dizendo-lhealgumas palavras em voz quase imperceptível, comose pleiteasse a sua aprovação, antes de dar cum-primento a algum de seus desejos. Helvídio, porsua vez, sorriu ligeiramente, dando um sinal deaquiescência com a cabeça. Voltando-se, então, para os demais, a nobresenhora falou comovidamente: - Caio Fabricius, eu e meu marido resolve-mos que nossas filhas venham a utilizar a coope-ração intelectual de um homem livre. E, tomando de minúscula varinha que des-cansava no bojo de um jarrão oriental, a um cantoda sala, tocou levemente a fronte do escravo, obe-decendo às cerimônias familiares, com as quais osenhor libertava os cativos na Roma Imperial, ex-clamando : - Nestório, nossa casa te declara livre parasempre ! . . Filhas - continuou a dizer sensibilizada, di-rigindo-se às duas jovens -, nunca humilheis a

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liberdade deste homem, que terá toda a indepen-dência para cumprir os seus deveres!... Caio e Helvício entreolharam-se satisfeitos .Enquanto Helvídia cumprimentava de longe o li-berto, com um leve aceno de cabeça, altiva, Céliaaproximou-se do alforriado, que tinha os olhos úmi-dos de lágrimas e estendeu-lhe a mão aristocrá-tica e delicada, numa saudação sincera e carinhosa.Seus olhos encontravam o olhar do ex-escravo, numaonda de afeto e atração indefiníveis. O liberto, visi-velmente emocionado, inclinou-se e beijou reveren-temente a mão generosa que a jovem patrícia lheoferecia. A cena comovedora perdurava por momentos,quando, com surpresa geral, Nestório se levantoudo recanto em que se achava e, caminhando até ocentro da sala, ajoelhou-se ante os seus benfeitores,osculando humildemente os pés de Alba Lucínia.

Um Anjo E Um Filósofo

O palácio residencial do prefeito Lólio Urbicodemorava numa das mais belas eminências da co-lina em que se erguia o Capitólio. A fortuna do seu dono era das mais opulentasda cidade, e a sua situação política era das maisinvejáveis, pelo prestígio e respectivos privilégios. Embora descendente de antigas famílias dopatriciado, não recebera vultosa herança dos avoen-gos mais ilustres e todavia, bem cedo o Imperadortomara-o a seu cuidado. Dele fizera, a princípio, um tribuno militarcheio de esperanças e perspectivas promissoras,para promovê-lo em seguida aos postos mais emi-nentes. Transformara-o, depois, no homem de sua

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inteira confiança. Fêz-lhe doações valiosas em pro-priedades e títulos de nobreza, espantando-se, po-rém, a aristocracia da cidade, quando Adriano lherecomendou o casamento com Cláudia Sabina, ple-beia de talento invulgar e de rara beleza física,que conseguira, com o seu favoritismo, as maiselevadas graças da Corte. Lólio Úrbico não vacilou em obedecer à von-tade do seu protetor e maior amigo. Casara-se, displicentemente, como se no ma-trimônio devesse encontrar uma salvaguarda totalde todos os seus interesses particulares, prosse-guindo, todavia, em sua vida de aventuras alegres,nas diversas campanhas de sua autoridade militar,fôsse na Capital do Império ou nas cidades de suasProvíncias numerosas. Por outro lado, a esposa, agora prestigiada peloseu nome, conseguia no seio da nobreza romanaum dos lugares de maior evidência. Pouco inclina-da às preocupações de matrona, não tolerava oambiente doméstico, entregando-se aos desvarios davida mundana, ora seguindo o plano delineado pelosamigos, ora organizando festivais célebres, afama-dos pela visão artística e pela discreta licenciosi-dade que os caracterizava. A sociedade romana, em marcha franca paraa decadência dos antigos costumes familiares, ado-rava-lhe as maneiras livres, enquanto o espíritomundano do Imperador e a volúpia dos áulicos seregozijavam com os seus empreendimentos, no tur-bilhão das iniciativas alegres, nos ambientes sociaismais elevados. Cláudia Sabina conseguira um dos postos maisavançados nas rodas elegantes e frívolas. Sabendotransformar a inteligência em arma perigosa, va-

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lia-se da sua posição para aumentar, cada vez mais,o próprio prestígio, elevando, às culminâncias domeio em que vivia, criaturas de nobreza improvi-sada, para satisfazer fàcilmente os seus caprichos.Assim que, em torno de seus preciosos dotes debeleza física, borboleteavam todas as atenções etodos os desvelos. Entardece. No elegante palácio, próximo do templo de Jú-piter Capitolino, paira um ambiente pesado de so-lidão e quietude . Recostada num divã do terraço, vamos encon-trar Cláudia Sabina em palestra reservada comuma mulher do povo, em atitudes de grande inti-midade. - Hatéria - dizia ela, interessada e discreta-mente -, mandei chamar-te a fim de aproveitar atua velha dedicação numa incumbência. - Ordenai - respondia a mulher de aspectohumilde, com o artificialismo de suas maneiras apa-rentemente singelas. - Estou sempre pronta a cum-prir as vossas ordens, sejam quais forem. - Estarias disposta a servir-me cegamente,em outra casa ? - Sem dúvida . - Pois bem, eu não tenho vivido senão paravingar-me de terríveis humilhações do passado. - Senhora, lembro-me das vossas amarguras,no seio da plebe . - Ainda bem que conheceste os meus sofri-mentos. Escuta - continuava Cláudia Sabina bai-xando a voz intencionalmente -, sabes quem sãoos Lucius, em Roma? - Quem não conhece o velho Cneio, senhora?Antes de me falardes de vossas mágoas, devo es-

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clarecer que sei também dos vossos desgostos, de-vidos à ingratidão do filho. - Então, nada mais preciso dizer-te a respeitodo que me compete fazer agora. Talvez ignoresque Helvídio Lucius e sua família chegarão a estacidade dentro de poucos dias, de regresso do Orien-te. Tenciono colocar-te no serviço de sua mulher,a fim de poderes auxiliar a execução integral dosmeus planos. - Ordenai e obedecerei cegamente . - Conheces Túlia Cevina? - A mulher do tribuno Máximo Cunctator? - Ela mesma. Ao que fui informada, TúliaCevina foi encarregada, por sua antiga companhei-ra de infância, de arranjar duas ou três servas deinteira confiança e habilitadas a satisfazer os im-perativos da atualidade romana. Assim, importaque te apresentes, quanto antes, como candidata aesse cargo. - Como ? Achais provável que a esposa dotribuno venha a aceitar o meu simples oferecimen-to, sem referência que me recomende ao seu cri-tério ? - Precisamos muita ponderação neste sentido.Túlia jamais deverá saber que és pessoa da minhaintimidade. Poderias apresentar referências espe-ciais de Grisótemis ou de Musônia, minhas amigasmais íntimas;. todavia, essa medida não ficaria bem,igualmente. Suscitaria, talvez, qualquer suspeita,quando eu tivesse mais necessidade de tua inter-venção ou de teus serviços. - Que fazermos, então? - Antes de tudo, é necessário te capacitesda utilidade dos teus próprios recursos, em bene-fício dos nossos projetos. A aquisição de uma ser-

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va humilde é coisa preciosa e rara. Apresenta-tea Túlia com a mais absoluta singeleza. Fala-lhedas tuas necessidades, explica-lhe os teus bons de-sejos. Tenho quase certeza de que bastará issopara vencermos nossos primeiros passos. Em se-guida, conforme espero, serás admitida ao ambientedoméstico de Alba Lucínia, a usurpadora da minhaventura. Servi-la-ás com humildade, submissão edevotamento. até conquistar-lhe confiança absoluta.Não precisarás procurar-me amiúde para não des-pertar suspeitas em torno de nossas combinações .Virás a esta casa um dia em cada mês, a fim deestabelecermos os acordos necessários. A princípio,estudarás o ambiente e me cientificarás de todasas novidades e descobertas da vida íntima do casal.Mais tarde, então, veremos a natureza dos serviçosa executar. Posso contar com a tua dedicação e com oteu silêncio? - Estou inteiramente às ordens e cumprireias vossas determinações com absoluta fidelidade. - Confio nos teus esforços. E, assim dizendo, Cláudia Sabina entregou àcomparsa algumas centenas de sestércios, em pe-nhor de mútuos compromissos. Hatéria guardou o preço da primeira combi-nação, àvidamente, lançando um olhar cúpido àbolsa e exclamando atenciosa: - Podeis estar certa de que serei vigilante,humilde e discreta. Caíam as sombras da noite sobre os MontesAlbanos, mas a emissária de Cláudia procurouTúlia Cevina, daí a algumas horas, para os finsconhecidos. A esposa do tribuno Máximo Cunctator, patrí-

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cia de coração bondoso e afável, recebeu aquelamulher do povo, com generosidade e doçura. Assolicitações insistentes de Hatéria confundiam-na.Havia comentado o pedido de sua amiga Alba Lu-cínia num círculo reduzidíssimo de amizades maisíntimas; entretanto, aquela serva desconhecida nãolhe trazia recomendação alguma dos amigos comquem se entendera a respeito . Atribuiu, porém, ofato à tagarelice de alguma escrava que houvesseconhecido o assunto, indiretamente, através de qual-quer palestra despreocupada. A humildade e singeleza de Hatéria parece-ram-lhe adoráveis. Suas maneiras revelavam ex-traordinária capacidade de submissão, desvelada ecarinhosa. Túlia Cevina aceitou-a e, apiedada da sua si-tuação, recolheu-a naquela mesma noite, acomodan-do-a entre as suas fâmulas. Daí a dias, a Porta de õstia apresentava sin-gular movimento. Luxuosas viaturas encaminha-vam-se para o porto, onde a galera dos nossosconhecidos já havia ancorado. Nas edificações da praia ensolarada, estalavamos ditos alegres e carinhosos. Uma chusma de ami-gos e de representações sociais e políticas vinhareceber Helvídio e Caio, num dilúvio de abraçoscarinhosos. Lólio Úrbico e a esposa chegavam, igualmente,ao lado de Fábio Cornélio e sua mulher Júlia Spin-ter, velha patrícia, conhecida por suas tradiçõesde orgulhosa sinceridade. Túlia Cevina e MáximoCunctator lá se encontravam, também, ansiosospelo amplexo fraternal dos amigos, que, por largosanos, se haviam ausentado. Numerosos parentese afeiçoados disputavam, entre si, o instante de

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estreitar nos braços amigos os queridos recém-che-gados, mas, dentre toda a multidão, destacava-seo vulto venerando de Cneio Lucius, aureolado peloscabelos brancos, que as penosas experiências davida haviam santificado. Uma atmosfera de amore veneração fazia-se em torno da sua personalidadevibrante de cultura e generosidade, que setenta ecinco anos de lutas não conseguiram empanar. Asociedade romana havia seguido o curso de todosos seus passos, conhecendo, de longe, as suas tra-dições de nobreza e lealdade e respeitando nelaum dos mais sagrados expoentes da educação an-tiga, cheia da beleza de Roma, em seus princípiosmais austeros e mais simples. Cneio Lucius soubera desprezar todas as po-sições de domínio, compreendendo que o espíritodo militarismo operava a decadência do Império,esquivando-se a todas as situações materiais deevidência, de modo a conservar o ascendente espi-ritual que lhe competia. No acervo dos seus ser-viços à coletividade, contavam-se as providênciasdesenvolvidas pelo Governo Imperial a favor dosescravos que ensinavam as primeiras letras aos fi-lhos de seus senhores, além de muitas outras obrasde benemerência social, a prol dos mais pobres edos mais humildes, a quem a sorte não favorecera.Seu nome era respeitado, não somente nos círculosaristocráticos do Palatino, mas também na Subur-ra, onde se acotovelavam as famílias anônimas edesventuradas. Naquela manhã, o rosto do velho patrício dei-xava entrever o júbilo sereno que lhe palpitava naalma . Estreitou os filhos longamente de encontro aocoração, chorando de alegria ao abraçá-los; osculou

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as netas com paternal contentamento, mas, enquan-to as mais festivas saudações eram trocadas entretodos no turbilhão de expressivas demonstraçõesde afeto e carinho, Cneio Lucius notou que LólioÚrbico contemplava, com insistência, o perfil de suanora, enquanto Cláudia Sabina, fingindo absolutoolvido do passado, concentrava a sua atenção emHelvídio, em furtivos olhares que lhe diziam tudoà experiência do coração, cansado de bater entreos caprichosos desenganos do mundo. Nestório, por sua vez, desembarcado em õstia,por satisfazer velho sonho, qual o de conhecer acidade célebre e poderosa, sentia estranhas como-ções a lhe vibrarem no íntimo, como se estivessea rever lugares amigos e queridos. Guardava aconvicção de que o panorama, agora desdobradoaos seus olhos ansiosos, lhe era familiar, dos maisremotos tempos. Não podia precisar a cronologiade suas recordações, mas conservava a certeza deque, por processo misterioso, Roma estava inteirana tela de suas mais entranhadas reminiscências . Naquele mesmo dia, enquanto Alba Lucínia eas filhas se retiravam para a cidade, ao lado deFábio Cornélio e de sua mulher, Helvídio Luciustomava lugar ao lado do velho genitor, encaminhan-do-se ao perímetro urbano, sem observarem as ho-ras ou as perspectivas suaves do caminho, plena-mente mergulhados, como se encontravam, em suasconfidências mais íntimas. Helvídio confiou ao pai todas as impressõesque trazia da Ásia Menor, rememorando cenas ouevocando carinhosas lembranças, salientando, porém,as suas intensas preocupações morais a respeitoda filha, cujos conhecimentos prematuros em ma-téria de religião e filosofia o assombravam, desde

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que, acidentalmente, se dera ao prazer de ouviros escravos da casa, sobre perigosas superstiçõesda crença nova que invadia os setores do Império,em todas as direções. Esclareceu, assim, ante odelicado e generoso mentor espiritual de sua exis-tência, toda a situação familiar, apresentando-lhe ospormenores e circunstâncias, em torno do assunto. O velho Cneio Lucius, depois de ouvi-lo aten-tamente, prometeu-lhe auxílio moral, no que sereferia à questão, a cuja solução o seu experimen-tado tirocínio educativo prestaria o mais proveitosoconcurso. Em poucos dias, instalavam-se os nossos ami-gos na sua magnífica residência do Palatino, ini-ciando um novo ciclo de vida citadina. Helvídio Lucius estava satisfeito com a suanova posição, salientando-se que, como substitutoimediato do sogro nas funções de Censor, estava--lhe reservado um papel relevante na vida da ci-dade, sob as vistas generosas do Imperador. Quantoa Alba Lucínia, graças aos seus inatos pendoresartísticos, auxiliada por Túlia, transformou as pers-pectivas da velha propriedade, imprimindo-lhes ogosto da época e edificando em cada recanto umfragmento de harmonia do lar, onde o marido eas filhas pudessem repousar das largas inquieta-ções da vida. Desnecessário dizer que, abonada por Túlia,Hatéria foi admitida no lar, impondo-se a todospor sua humildade habilidosa e conquistando dosamos confiança plena, em poucos dias. Na semana seguinte, a pretexto de repousaralgum tempo junto do avô, que a idolatrava, foiCélia conduzida pelos pais à residência do mesmo,na outra margem do Tibre, nas faldas do Aventino.

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Cneio Lucius habitava confortável palacete deapurado estilo romano, em companhia de duas fi-lhas já idosas, que lhe enchiam de afeto a estrele-jada noite da velhice. Recebeu a neta carinhosa, com as mais ine-quívocas provas de contentamento. No dia imediato, pela manhã, mandou preparara liteira particular para, em sua companhia, ofe-recer um sacrifício no templo de Júpiter Capitolino. Célia acompanhou-o calma e prazerosa, emborareparasse os olhares expressivos com que o anciãoa observava, ansioso, talvez, por lhe identificar ossentimentos mais íntimos. Cneio Lucius não estacionou tão somente nosantuário de Júpiter, dirigindo-se, igualmente, aotemplo de Serápis, onde procurou palestrar com aneta a respeito das mais antigas tradições da fa-mília romana. A jovem não lhe contradisse aspalavras nem interrompeu a carinhosa preleção,submetendo-se à maior obediência no que se refe-ria à ritualística dos templos, conforme os regu-lamentos instituídos em Roma pelos padres fla-míneos . A tarde já caía, quando o generoso velhinhodeu por terminada a peregrinação através dos edi-fícios religiosos da cidade. O Sol escondia-se nopoente, mas Cneio Lucius desejava conhecer todaa intensidade dos novos pensamentos da neta, con-duzindo-a, para esse fim, ao altar doméstico, ondese alinhavam as soberbas imagens de marfim dosdeuses familiares. - Célia, minha querida - disse ele por fim,descansando num largo divã à frente dos ídolos -,levei-te hoje aos templos de Júpiter e de Serápis,onde ofereci sacrifícios em favor da nossa felici-

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dade; mais que a nossa ventura, porém, cara filha,eu desejo a tua própria . Notei que acompanhavasos meus gestos e, todavia, não demonstravas devo-ção sincera e ardente. Acaso, trouxeste da Pro-víncia alguma idéia nova, contrária às nossascrenças?!... Ouviu a palavra do venerando avô, com a almaperdida em profundas cismas . Compreendeu, de re-lance, a situação, e, afeita às rigorosas tradiçõesda família, adivinhou que seu pai solicitara talprovidência, no intuito de reformar-lhe os pensa-mentos, bem como as convicções mais íntimas. - Querido avô - respondeu de olhos úmidos.nos quais transparecia sublimada inocência -, eusempre vos amei de toda a minhalma e vós meensinastes a dizer toda a verdade, em quaisquercircunstâncias. - Sim - exclamou Cneio Lucius admirado,adivinhando as emoções da adorada criança -, estásno meu coração a todos os instantes. Fala, filhinha,com a maior franqueza! Eu não aprendi outro ca-minho que o da verdade, junto às nossas tradiçõese aos nossos deuses.. - De antemão devo esclarecer-vos que foi cer-tamente meu pai quem vos solicitou a reforma demeus atuais sentimentos religiosos . O venerável ancião fêz um gesto de espantoem face daquela observação inesperada. - Sim - continuou a jovem -, talvez meupai não me pudesse compreender inteiramente...Ele jamais poderia ouvir-me satisfatoriamente, semum protesto enérgico de sua alma; entretanto, eucontinuaria a amá-lo sempre, ainda que o seu co-ração não me entendesse. - Então, filhinha, porque negaste a Helvídio

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as tuas mais íntimas confidências?. .. - Tentei fazer-lhas um dia, quando ainda nosencontrávamos na Judéia, mas compreendi, imedia-tamente, que meu pai julgaria mal as minhas pa-lavras mais sinceras, percebendo, então, que a ver-dade para ser totalmente compreendida precisa sertratada entre corações da mesma idade espiritual. - Mas, filha, onde colocas, agora, os laçossagrados da família? - No amor e no respeito com que sempre oscultivei ; entretanto, avozinho, no campo das idéiasos elos do sangue nem sempre significam harmo-nia de opinião entre aqueles que o Céu uniu noinstituto familiar. Venerando e estimando a meupai, no meu afeto filial e no respeito às tradiçõesdo seu nome, esposei idéias que ao seu espírito nãoé possível aderir, por enquanto... - Mas, que queres traduzir por idade espi-ritual ? . . - Que a mocidade e a velhice, quais as vemosno mundo, não podem significar senão expressõesde uma vida física que finda com a morte. Nãohá moços nem velhos e sim almas jovens no ra-ciocínio ou profundamente enriquecidas no campodas experiências humanas. - Que queres dizer com isso? - perguntouo ancião altamente admirado. - Tens tão vastaleitura dos autores gregos?! Isso é de estranhar,quando teu pai só há pouco obteve um escravoculto, especialmente destinado a enriquecer a tuae a educação de tua irmã. - Vovô bem sabe da ânsia de aprender, quesempre me impeliu, desde pequenina. Embora jo-vem, sinto em meu espírito o peso de uma idademilenária. Em todos estes anos de ausência, na

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Província, gastei todo o tempo disponível em de-vorar a biblioteca que meu pai não podia levarconsigo para as suas atividades na Idumeia. - Filhinha - exclamou o respeitável anciãosinceramente consternado -, não terias agido àmoda dos enfermos que, à força de buscarem avirtude de todos os medicamentos ao alcance damão, acabam lamentàvelmente intoxicados ? ! . . . - Não, querido avô, eu não me envenenei.E se tal coisa houvera acontecido, há mais de doisanos tenho no coração o melhor dos antídotos à in-fluência corrosiva de todos os tóxicos deste mundo . - Qual ? - interrogou Cneio Lucius suma-mente surpreendido. - Uma crença fervorosa e sincera. - Colocaste teus pensamentos, neste sentido,sob a invocação dos nossos deuses?. . - Não, querido avô, pesa-me confessar-vos,�mas, sinto em vosso íntimo a mesma capacidade decompreensão que vibra em minhalma e devo sersincera. Os deuses de nossas antigas tradições jáme não satisfazem... - Como assim, querida filha? A que entidadedos céus confias hoje a tua fé sublimada e fer-vorosa?. . Como se nos seus grandes olhos vibrasse es-tranha luz, Célia respondeu calmamente: - Guardo agora a minha fé em Jesus - Cristo,o Filho de Deus Vivo. - Declaras-te cristã? - perguntou o velhoavô empalidecendo. - Só me falta o batismo. - Mas, filha - disse Cneio Lucius empres-tando à voz uma doce inflexão de carinho -, oCristianismo está em contradição com todos os nos-

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sos princípios, pois elimina todas as noções religiosase sociais, basilares da nossa concepção de Estado ede Família. Além disso, não sabes que adotar essadoutrina é caminhar para o sacrifício e para a morte ? . . . - Vovô, apesar dos vossos longos e criteriososestudos, acredito que não chegastes a conhecer astradições de Jesus e a claridade suave dos seusensinamentos. Se tivésseis o conhecimento integralda sua doutrina, se ouvísseis diretamente aquelesque se saturaram da sua fé, teríeis enriquecido ain-da mais o tesouro de bondade e compreensão dovosso espírito. - Mas não se compreende uma idéia tão pura,a encaminhar seus adeptos para a condenação epara o martírio, há quase um século . - Entretanto, avozinho, ainda não atentastes,talvez, para a circunstância de partir do mundo essacondenação, ao passo que Jesus prometeu as ale-grias do seu reino a todos os que sofressem naTerra, por amor ao seu nome . - Desvairas, minha querida, não pode haverdivindade maior que o nosso Júpiter, nem podeexistir outro reino que ultrapasse o nosso Impé-rio. Além disso, o profeta nazareno, ao que souinformado, pregou uma fraternidade impossível euma humildade que nós outros não poderemos com-preender. Pousou sobre a neta os olhos plácidos, cheiosde caridade misteriosa, sentindo, porém, uma co-moção mais intensa ao encontrar os dela serenos,piedosos, transparentes de candura indefinível. - Avôzinho - continuou a dizer com o olharabstrato, como se o espírito voejasse em recorda-ções queridas e longínquas -, Jesus - Cristo é o Cor-deiro de Deus, que veio arrancar o mundo do erro

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e do pecado. Porque não lhe compreendermos osdivinos ensinamentos, se temos fome de amor emnossa alma? Aparentemente sou uma jovem e vósum homem velho, para o mundo ; no entanto, sintoque nossos pensamentos são gêmeos na sede deconhecimento espiritual... Da Terra inteira nos chegam clamores de re-volta e gritos de batalha... Misturam-se o fel dosoprimidos e as lágrimas de todos os que padecemna humilhação e no cativeiro ! . . . Tendes conhecimento de todos esses tormen-tos insondáveis que campeiam em todo o mundo!Vossos livros falam das angústias indefiníveis dovosso espírito sensível e carinhoso. Esses bradosde sofrimento chegam até aos vossos ouvidos, atodos os momentos! Onde estão os nossos deuses de marfim, quenão nos salvam da decadência e da ruína?! OndeJúpiter que não vem ao cenário do mundo pararestabelecer o equilíbrio da maravilhosa balança dajustiça divina?! Poderemos aceitar um deus frío,impassível, que se compraz em endossar todas astorpezas dos poderosos contra os mais pobres e osmais desgraçados? Será a Providência do Céu igualà de César, para cujo poder o mais dileto é aqueleque lhe traz as mais ricas oferendas? Entretanto,Jesus de Nazaré trouxe ao mundo uma nova espe-rança. Aos orgulhosos advertiu que todas as vai-dades da Terra ficam abandonadas no pórtico desombras do sepulcro; aos poderosos deu as liçõesde renúncia aos bens transitórios do mundo, ensi-nando que as mais belas aquisições são as que seconstituem das virtudes morais, imperecíveis valo-res do Céu; exemplificou, em todos os seus atosde luz indispensáveis à nossa edificação espiritual

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para Deus Todo-Poderoso, Pai de misericórdia in-finita, em nome de quem nos trouxe a sua doutrinade amor, com a palavra de vida e redenção . Além de tudo, Jesus é a única esperança dosseres desamparados e tristes, da Terra, porquanto,de acordo com as suas doces promessas, hão-dereceber as bem-aventuranças do Céu todos os des-venturados do mundo, entre as bênçãos da simpli-cidade e da paz, na piedade e na prática do bem . Cneio Lucius ouvia a neta, em comovido silên-cio, sentindo-se tocado de uma inquietação mes-clada de encanto, qual a que devesse sentir umfilósofo do mundo, que ouvisse as mais ternas reve-lações da Verdade pela boca de um anjo. A jovem, por sua vez, dando curso às sagradasinspirações que lhe rociavam a alma, continuou afalar, revolvendo o tesouro de suas lembranças maisgratas ao coração: - Por muito tempo estivemos em Antipátris,em plena Samaria, junto à Galileia... Ali, a tra-dição de Jesus ainda está viva em todos os espíri-tos. Conheci de perto a geração de quantos forambeneficiados pelas suas mãos misericordiosas.fiquei conhecendo a história dos leprosos, limposao toque do seu amor; dos cegos em cujos olhosmortos fluiu uma vibração nova de vida, em vir-tude da sua palavra carinhosa e soberana; dos po-bres de todos os matizes, que se enriqueceram dasua fé e da sua paz espiritual. Nas margens do lago de suas pregações ines-quecíveis, pareceu-me ver ainda o sinal luminosodos seus passos, quando, alma em prece, rogava aoMestre de Nazaré as suas bênçãos dulcificantes ! . .. - Mas Jesus Nazareno não era um perigosovisionário ? - perguntou Cneio Lucius, profunda-

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mente surpreendido. - Não prometia um outro rei-no, menosprezando as tradições do nosso Império ? - Vovô - respondeu a donzela sem se per-turbar -, o Filho de Deus não desejou jamais fun-dar um reino belicoso e perecível, qual o possuemos povos da Terra. Nem se cansou jamais de es-clarecer que o seu reino ainda não é deste mundo ,antes ensinou que a sua fundação se destina àsalmas que desejem viver longe do torvelinho daspaixões terrestres. Revolucionária a palavra que abençoa a todosos aflitos e deserdados da sorte? Que manda per-doar o inimigo setenta vezes sete vezes? Que ensinao culto a Deus com o coração, sem a pompa dasvaidades humanas? Que recomenda a humildadecomo penhor de todas as realizações para o Céu ? . O Evangelho do Cristo, que tive ocasião deler em fragmentos de pergaminho, nas mãos dosnossos escravos, é um cântico de sublimadas espe-ranças no caminho das lágrimas da Terra, em mar-cha, porém, para as glórias sublimes do Infinito. O respeitável ancião esboçou um sorriso com-placente, exclamando, bondoso: - Filha, para nós a humildade e o despren-dimento são dois postulados desconhecidos. Nossaságuias simbólicas jamais poderão descer dos seuspostos de domínio e nem os nossos costumes sãopassíveis de se acomodarem ao perdão, como normade evolução ou de conquista... Tuas considerações, porém, interessam-me so-bremaneira. Mas dize-me: onde hauriste semelhan-tes conhecimentos ? Como pudeste banhar o espí-rito nessa nova fé, a ponto de argumentares fer-vorosamente em desfavor das nossas tradições maisantigas?... Conta-me tudo com a mesma sinceri-

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dade que sempre reconheci no teu caráter!. . - Primeiramente, vim a conhecer os ensinà-mentos do Evangelho, ouvindo, curiosamente, asconversas dos escravos de nossa casa... Após haver pronunciado essas palavras reti-cenciosas, Célia pareceu meditar gravemente, comose experimentasse uma dificuldade indefinível paraatender aos bons desejos do querido avô, naquelascircunstâncias . Em seguida, como se travasse consigo mesmaum diálogo silencioso, entre a razão e o sentimen-to, ruborizou-se, como receosa de expor toda averdade. Cneio Lucius, todavia, identificou-lhe imediata-mente a atitude mental, exclamando : - Fala, filha! Teu velho avô saberá entendero teu coração. - Direi - respondeu ela ruborizada, dirigin-do-lhe os olhos súplices, na sua timidez de meninae moça. - Vovô, será pecado amar?! - Certo que não - respondeu o velhinho,adivinhando um mundo de revelações no inopinadoda pergunta. - E quando se ama a um escravo ? O venerável patrício sentiu constritiva emoção,ao ouvir a penosa revelação da neta adorada; res-pondeu, contudo, sem hesitar: - Filhinha, estamos muito distantes da socie-dade em que a filha de um patrício possa unir seudestino ao de algum dos seus servos. Todavia - acrescentou depois de ligeira pau-sa - chegaste a querer tanto a um homem sujeitoa tão dolorosas circunstâncias? Mas, vendo que os olhos da jovem se umede-ciam e adivinhando-lhe as comoções penosas e cons-

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trangedoras em face daquelas confidências, atraiu-anum beijo, de encontro ao coração, murmurando-lheao ouvido em tom carinhoso : - Não temas os julgamentos do avôzinho, in-teiramente devotado ao teu bem-estar. Revela-metudo sem omitir detalhe algum da verdade, pormais dolorosa que ela seja. Saberei compreendera tua alma, acima de tudo. Ainda que as tuasaspirações amorosas e os teus sonhos áureos demenina hajam pousado no ser mais abjeto e des-prezível, não te amarei menos por isso, e, confiandoem ti mesma, saberei respeitar a tua dor e a tuadedicação! Confortada com aquelas palavras, que deixa-vam transparecer generosidade e sinceridade abso-lutas, Célia prosseguiu : - Faz dois anos que papai nos levou em umade suas excursões encantadoras, pelo lago extenso,na região onde possuímos a nossa casa. Além demim, da mamãe e da Helvídia, ia conosco um jovemescravo adquirido na véspera e o qual, em vistada sua perícia nos remos, auxiliava a tarefa deabrir caminho ao longo das águas. Ciro, chama-se esse escravo de vinte anos, quea vontade do Céu deliberou fosse parar em nossacasa. Íamos todos alegres, observando a linha dohorizonte e o recorte das nuvens no claro espelhodas águas marulhantes. De vez em quando, Ciro me dirigia o olharlúcido e calmo, que me produzia uma emoção cadavez mais intensa e indefinível. Quem poderá explicar esse mistério santo davida ? Dentro desse divino segredo do coração, bas-ta, às vezes, um gesto, uma palavra, um olhar, para

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que o espírito se algeme a outro para sempre... Fez uma pausa na exposição de suas reminis-cências, e, observando-lhe a emotividade a desbordardos olhos úmidos, Cneio Lucius animou-a : - Continua, filhinha. Faço questão de ouvire sentir a tua história toda. - Nosso passeio - prosseguiu ela com osolhos da alma mergulhados no painel de suas maisíntimas recordações - corria sereno e sem trope-ços, quando, em dado instante, se levantou umaonda larga, impelida pelo vento forte . Um abalomais violento, justamente no ponto onde me insta-lara, fêz-me cair, absorta nos meus pensamentos,de borco no seio espesso das águas.. Ainda ouvi os primeiros gritos de mamãe eda irmãzinha, supondo-me perdida para sempre ;mas, quando me debatia, inutilmente, para vencero peso enorme que me oprimia o peito, sob a massalíquida, senti que dois braços vigorosos me arran-cavam do fundo lodoso do lago, trazendo-me à tona,mercê de um desesperado e imenso esforço. Era Ciro que me salvara da morte, com oseu espírito de sacrifício e lealdade, conquistandocom esse ato espontâneo a gratidão sem limites demeu pai, e de todos nós um reconhecimento cari-nhoso e sincero . No dia imediato, meu pai concedeu-lhe a liber-dade, muito comovido pelos sucessos da véspera. No instante da sua emancipação, o jovem li-berto beijou-me as mãos com os olhos úmidos, nasua gratidão profunda e sincera, conservando-o meupai em nossa casa, como serviçal prestimoso e livre,quase um amigo, se outras fôssem as condições doseu nascimento . Ciro, porém, não me conquistou somente gra-

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tidão e estima a toda prova, como também o meuafeto da alma, espontâneo e profundo . Em tardes serenas e claras, sob as árvoresdo pomar, contou-me a sua história singular, cheiade episódios interessantes e comovedores. Em tenra idade, vendido a um rico senhor queo conduziu desde logo ao país do Ganges - terramisteriosa e incompreensível para os romanos -,ali teve ocasião de conhecer os princípios popularesde consoladoras filosofias religiosas. Nessa região do Oriente, cheia de segredosconfortadores, ele aprendeu que a alma não temapenas uma existência, mas vidas numerosas, me-diante as quais adquire novas faculdades, purifi-cando-se ao mesmo tempo dos erros passados, emoutros corpos, ou redimindo-se das aflições, no do-loroso resgate dos crimes ou desvios do seu passado. Todavia, após a aquisição desses conhecimen-tos, foi levado à Palestina, onde se saturou dosensinos cristãos, tornando-se adepto fervoroso doMessias de Nazaré ! . . Então, era de ver-se como a sua palavra seimpregnava de inspiração divina e luminosa!. .Apaixonado pelas idéias generosas que trouxera doambiente religioso da Índia, acerca dos formososprincípios da reencarnação, sabia interpretar comsimplicidade e clareza de raciocínio, para mim, mui-tas passagens evangélicas, algo obscuras para omeu entendimento, qual aquela em que Jesus afir-ma que "ninguém poderá atingir o reino do Céusem nascer de novo"!. . Fosse ao crepúsculo langoroso da Palestina,fosse ao luar caricioso das suas noites estreladas,quando descansava das fadigas do trabalho diutur-no, falava-me ele das ciências da vida e da morte,

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das coisas da Terra e do Céu, com os dons divinosda sua inteligência, mantendo o meu espírito sus-penso entre as emoções da vida física e as gloriosasesperanças na vida espiritual. Enlevada pela doce carícia de suas expressõese gestos de ternura, afigurava-se-me ele a almagêmea do meu destino, reservada por Deus a meestimar e compreender, desde as vidas mais remotas. Durante um ano a vida nos correu em marde rosas, porque nos amávamos intensamente. Emnossos idílios calmos, falávamos de Jesus e de suasglórias divinas, e, quando eu lhe suscitava a possibi-lidade da nossa união à face deste munho, Ciroensinava-me que deveríamos esperar a felicidade noReino do Senhor, alegando que, na Terra, não eraainda possível um matrimônio feliz, entre um es-cravo miserável e uma jovem patrícia. Por vezes, entristecia-me com as suas pala-vras despidas de esperanças terrenas, mas as suasinspirações eram tão elevadas e tão puras que, numrelance, sabia o seu coração levantar o meu paraas jornadas da fé, que levam a tudo esperar, nãoda Terra ou dos homens, mas do Céu e do amorinfinito de Deus . O valoroso ancião tudo ouvia, sem um reproche,embora sua atitude mental se caracterizasse pelamais funda consternação. Observando que a neta fizera uma pausa naencantadora e triste narrativa, Cneio Lucius inter-rogou-a com benevolência: - Qual a atitude desse rapaz para com teupai ? - Ciro admirava-lhe a generosidade franca eespontânea, revelando no íntimo a mais santa gra-tidão pelo seu ato de fraternidade, quando o alfor-

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riou para sempre . A todo propósito, ensinava-mea respeitá-lo cada vez mais e a lhe realçar as qua-lidades mais elevadas; falava-me, constantemente,de suas atitudes generosas, com entusiasmo, admi-rando-lhe a dedicação ao trabalho e a singularenergia. - E Helvídio nunca soube do teu amor? -perguntou o avô admirado. - Soube, sim - respondeu Célia humildemen-te. - Contar-vos-ei tudo, sem omitir um só detalhe. Em nossa casa havia um chefe de serviço, quedirigia as atividades de todos os servos da famí-lia. Pausanias era um coração amigo do escândaloe nada sincero . Meu pai, atendendo à necessidadede viajar constantemente, conservava-o quase comomandatário de sua vontade, em função dos seusnumerosos interesses, e Pausanias, muita vez, abu-sou dessa confiança generosa para estabelecer adiscórdia em nosso lar. Observando a minha intimidade com o jovemliberto, cujos dotes morais tão fortemente me ha-viam impressionado o coração, esperou, certa feita,o regresso de meu pai, de uma viagem à Idumeia,envenenando-lhe então o espírito com insinuaçõescaluniosas da minha conduta. - E que fêz Helvídio ? - interrogou o velhi-nho bruscamente, cortando-lhe a palavra, como seadivinhasse o desenrolar de todas as cenas ocorri-das a distância. - Repreendeu minha mãe, àsperamente, incul-pando-a, e chamou-me à sua presença, de maneiraque lhe recebesse as admoestações e conselhos ne-cessários, sem jamais permitir que eu lhe expusessetudo, com a sinceridade e franqueza com que o façoagora.

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- E quanto ao liberto?. . - perguntou CneioLucius ansioso por conhecer o desfecho do caso. - Mandou pô-lo a ferros, ordenando a Pau-sanias lhe aplicasse a punição que julgasse neces-sária e conveniente. Atado ao tronco, Ciro foi açoitado várias ve-zes, pelo crime de me haver ensinado a amar pelocoração e pelo espírito com o mais carinhoso res-peito a todas as tradições do mundo e da família ,no altar do devotamento silencioso e do sacrifícioespiritual . No segundo dia de seus indizíveis padecimen-tos, consegui avistá-lo, apesar da vigilância extremaque todos resolveram exercer sobre os meus passos . Como nos dias de nossa tranqüilidade feliz,Ciro recebeu-me com um sorriso de ventura, acres-centando que eu não deveria alimentar nenhumsentimento de amargor pela decisão de meu pai,considerando que o seu espírito era bom e generosoe que, se não podíamos quebrar preconceitos mile-nários da Terra, também não deveríamos dar gua-rida a pensamentos de ingratidão . O sofrimento, porém - prosseguia a jovem,enxugando as lágrimas de suas reminiscências -,era dilacerante para minha alma. Reconhecendo a situação penosa daquele quepolarizava todas as minhas esperanças, cheguei amaldizer sinceramente da minha posição de afor-tunada. Que me valiam os mimos da família e asprerrogativas do nome que me felicitava, se a almagêmea do meu destino estava encarcerada em pa-vorosa noite de sofrimentos?. . Expus-lhe, então, minha tortura íntima e osmeus amargurados pensamentos. Ciro ouviu-me comresignação e brandura, respondendo-me, depois, que

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ambos tínhamos um modelo, um mestre, que nãoera deste mundo, e que o Salvador nos guardariano Céu um ninho de ventura, se soubéssemos so-frer com resignação e simplicidade, à maneira dosbem-aventurados de sua palavra sábia e doce. Acres-centou que o Cristo também amara muito e, entre-tanto, perlustrou os caminhos da incompreensãoterrestre, sozinho e abandonado; se éramos vítimasde um preconceito ou de perseguições, tais sofri-mentos deviam ser justos, por certo, dados os des-vios do nosso passado espiritual, de eras prístinas,acrescentando que Jesus se sacrificara pela Hu-manidade inteira, embora de coração imaculadocomo o lírio e manso como cordeiro. - Que valem nossos sofrimentos comparadosaos dele, no alto da cruz da impiedade e da ceguei-ra humanas? - dizia-me valorosamente. - Célia,minha querida, levanta os olhos para Jesus e ca-minha ! . . Quem melhor que nós poderá compreen-der esse doce mistério do amor pelo sacrifício ? . .Sabemos que os mais felizes não são os que do-minam e gozam neste mundo, mas os que compre-endem os desígnios divinos, praticando-os na vida.ainda que nos pareçam as criaturas mais despre-zíveis e mais desventuradas. . . Além disso, querida,para os que se amam pelos laços sacrossantos daalma, não existem preconceitos nem obstáculos, noespaço e no tempo. Amar-nos-emos, assim, cons-tantemente, esperando a luz do Reino do Senhor.Soa, agora, o penoso instante da separação, mas,aqui ou além, estarás sempre viva em meu peito,porque hei-de amar-te toda a vida, como o vermedesprezado que recebeu o suave sorriso de umaestrela... Poderão, acaso, separar-se os que cami-nham com Jesus através das névoas da existência

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material? Não prometeu o Mestre o seu reino di-toso a quantos sofressem de olhos voltados parao amor infinito do seu coração? Sejamos confor-mados e tenhamos coragem!... Além destes espi-nhais, desdobram-se estradas floridas, onde repou-saremos um dia sob a luz do Ilimitado . Se sofremosagora, deve haver uma causa justa, oriunda detenebroso passado, em sucessivas existências terre-nas. Mas a vida real não é esta, e sim a que vive-remos amanhã, no ilimitado plano da espirituali-dade radiosa!... - Enquanto as suas expressões consoladorasme retemperavam o ânimo combalido, via-lhe o ros-to macerado e os cabelos empastados de copiososuor, que me deixavam entrever um sofrimentofísico martirizante e infinito. Embora a sua palidez extrema, Ciro me sor-ria e confortava. Sua lição de paciência e fé embal-samou-me o coração e aquela corajosa serenidadedeveria constituir, para mim, precioso incitamentoà fortaleza moral, em face das provas. Consolei-o, então, do melhor modo, testemu-nhando-lhe minha compreensão funda e sincera,quanto ao sentido daquelas palavras de bondade eensinamento, compreensão que eu guardaria no imo,para sempre. Prometemo-nos, reciprocamente, a mais abso-luta calma e confiança em Jesus, bem como eternafidelidade neste mundo, para nos unirmos, um dia,nos céus. Terminados os rápidos minutos que conseguipara falar ao encarcerado, reconstituí as energiasinteriores da minha fé, enxugando corajosamenteas próprias lágrimas. Procurei minha mãe, implorei sua interces-

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são afetuosa, de modo a cessarem as cruéis puniçõesque Pausanias impusera ao bem-amado de minhal-ma, dando-lhe ciência dos quadros penosos que pre-senciara. Ela comoveu-se profundamente com a minhanarrativa e obteve de meu pai a ordem para queCiro fosse libertado, sob certas condições, que, ape-sar de penosas, constituíram para mim um brandoalívio ! - Que condições ? - perguntou Cneio Lucius,admirado, ante o romance comovedor da neta, cujosdezoito anos atestavam a mais profunda intensi-dade de sofrimento. - Meu pai acedeu, sob a condição de que nãomais avistasse o jovem liberto para qualquer des-pedida, providenciando, na mesma noite, para queele fosse, escoltado por dois escravos de confiança,até Cesárea, em cujo porto deveria ser internadonuma galera romana, desterrado a critério dos quea comandavam ! . . - E chegaste, filha, a alimentar algum rancorcontra Helvídio, em face da sua atitude? - Não - respondeu com espontânea sinceri-dade. - Se tivesse de alimentar qualquer rancor,seria contra o meu próprio destino . Aliás, Ciro ensinava-me sempre que não podemcaminhar para Jesus aqueles que não honrarem paie mãe, de acordo com os preceitos divinos. Cneio Lucius encontrava-se eminentemente sur-preendido . Quando Helvídio lhe solicitara a inter-venção moral junto da neta, longe estava de pre-sumir tão doloroso romance de amor num coraçãode dezoito anos, cheio de juventude e de piedade.Seu espírito, que conhecia o vírus destruidor queoperava a decadência da sociedade mergulhada num

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abismo de sombras, extasiava-se com aquela nar-rativa simples de um amor doce e cristão, queaguardava, pacientemente, o céu para todas as suasrealidades divinas. Nenhuma voz da mocidade ain-da lhe falara, assim, com tanta pureza à flor doslábios. Admirado e enternecido, descansou a face en-rugada na mão direita meio trêmula, entregando-sea uma longa pausa para coordenar idéias. Ao cabo de alguns minutos, notando que aneta aguardava ansiosa a sua palavra, perguntoucom a mesma benevolência: - Minha filha, esse jovem escravo jamais abu-sou da tua confiança ou da tua inocência? Ela fixou nele os olhos serenos, em cujo fulgorcristalino podiam ler-se uma candidez e sinceridadea toda prova, exclamando sem hesitar: - Nunca! Jamais Ciro permitiu que os meuspróprios sentimentos pudessem tisnar-se de qual-quer tendência menos digna. Para demonstrar-vosa elevação de seus pensamentos, quero contar-vosque, um dia, quando conversávamos à sombra develha oliveira, notei que sua mão pousara leve-mente em meus cabelos, mas, no mesmo instante,como se nossos corações se deixassem levar poroutros impulsos, retirou-a, dizendo-me comovido :- Célia, minha querida, perdoa-me. Não guarde-mos qualquer emoção que nos faça participar dasinquietações do mundo, porque, um dia, nos bei-jaremos no céu, onde os clamores da malícia hu-mana não poderão atingir-nos. Cneio Lucius contemplou de frente a neta, cujasinceridade diamantina lhe irradiava dos olhos cân-didos e valorosos, exclamando : - Sim, filha, o homem a quem te consagras

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possui um coração generoso e diferente do que sepoderia presumir no peito de um escravo, ao ins-pirar-te um amor tão distante das concepções damocidade atual. E acentuando as palavras, como se quisesseimprimir-lhes nova força, com vistas a si mesmo,continuou após ligeira pausa: - Além disso, essa nova doutrina, qual a acei-taste, deve conter uma essência profunda, dado omaravilhoso elixir de esperança que destila nas al-mas sofredoras. Acredito, agora, que Helvídio nãosondou bastante o assunto para conhecer a questãonas suas facetas numerosas. - É verdade, avô - respondeu confortada,como se houvesse encontrado um bálsamo para assuas feridas mais íntimas -, meu pai, a princípio,não receava que analisássemos os estudos evangé-licos, considerando-os perigosos; somente depois dasintrigas de Pausanias, supôs que as doutrinas doCristo me houvessem acarretado qualquer deficiên-cia mental, em virtude da minha inclinação pelojovem liberto . - Sim, teu pai não poderia entender um sen-timento dessa natureza, no teu espírito de moçaafortunada. Mas, ouve: já que me falaste com uma pon-deração que não admite reprovações ou corretivos,quais são as tuas perspectivas de futuro? Sobretua irmã teus pais já me falaram dos planos assen-tados. Daqui a alguns meses, depois de completarsua educação, na atualidade romana, Helvídia es-posará Caio Fabricius, cuja afeição a conduzirá aum dos postos de maior relevo social, de acordo comos nossos méritos familiares. Mas, a teu respeito?Perseverarás, porventura, nesses sentimentos ? ! . .

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- Meu avô - respondeu com humildade - ,Caio Fabricius com os seus trinta e cinco anos ma-turados, cheio de delicadeza e generosidade, há-defazer a ventura de minha irmã, que bem o me-rece . . Perante Deus, Helvídia fêz jus às sagradasalegrias da constituição de um lar e de uma família.Junto do seu coração pulsará um outro, que lheenfeitará a existência de mimos e ternuras... Quanto a mim, pressinto que não obterei afelicidade como a sonhamos nesta vida! Desde a infância, tenho sido triste e amigada meditação, como se a misericórdia de Jesus es-tivesse a preparar-me, em todos os ensejos, paranão faltar aos meus deveres espirituais no instanteoportuno . E, fixando no ancião o olhar percuciente ecalmo, prosseguiu: - Sinto pesar-me no coração muitos séculosde angústia... Devo ser um Espírito muito cul-pado, que vem a este mundo de maneira a remir-sede passados tenebrosos!. . Desde a Palestina, minhas noites estão povoa-das de sonhos estranhos e comovedores, nos quaisouço vozes carinhosas que me exortam à submissãoe ao sacrifício. Acusada de cristã no seio da família, sinto quetodos os meus carinhos ficam sem retribuição etodas as minhas palavras afetuosas morrem semeco! Dou-me, porém, por imensamente venturosaem acreditar que o vosso coração vibra com o meu,compreendendo-me as intenções e os pensamentos. Como se lobrigasse melancolicamente o cami-nho de sombras do porvir, desdobrado ante seusolhos espirituais, Célia continuou a falar para ocoração enternecido do velho avô, que a idolatrava :

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- Sim!. . nos meus sonhos proféticos, tenhovisto uma cruz a que me devo abraçar, com re-signação e humildade ! . . Experimento no coraçãoum peso enorme, avozinho ! . . . Por vezes inúmerasvislumbro à minha frente quadros penosos, quedevem radicar nas minhas existências pregressas.Pressinto que nasci neste mundo para resgatar eredimir-me. Quando oro e medito, chegam-me aoraciocínio as ponderações da alma ansiosa!. . Nãodevo aguardar primaveras risonhas nem flores deilusão, que me fariam esquecer a via dolorosa doEspírito, destinado à redenção; mas, sim, inverniasde dor e provas ríspidas, em dias de lutas ásperas,que me hão-de reconduzir a Jesus, com a divinaclaridade da experiência!. . Cneio Lucius tinha os olhos molhados de lá-grimas, ante as palavras comovedoras da neta, que,desde criança, lhe conquistara adoração. - Filha - exclamou com bondade -, não possocompreender tamanho desalento num coração da tuaidade. O nome de nossa família não permitirá talabandono de ti mesma... - Entretanto, caro avô, não desdenharei a rea-lidade dolorosa do sacrifício, sabendo, de antemão,que a sua taça me está reservada... - E nada esperas da Terra no que se referea possível felicidade neste mundo ? ! . . - A felicidade não pode estar onde a colo-camos, com a nossa cegueira terrestre, mas nocompreendermos a Vontade Divina, que saberá lo-calizar a ventura para nós, como e quando opor-tuna. Não temos uma só vida. Teremos muitas.O segredo da alegria reside em nossa realizaçãopara Deus, através do Infinito. De etapa em etapa,de experiência em experiência, nossa alma cami-

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nhará para as glórias suprsmas da espiritualidade,como se fizéssemos a laboriosa ascensão de umaescada rude e longa. . . Amar-nos-emos sempre, meuavô, através dessas numerosas existências. Elas se-rão como anéis na cadeia de nossa união ditosae indestrutível. Então, mais tarde, vereis que avossa neta, dentro da sua realidade espiritual, seencontrará convosco, com a mesma compreensão ecom o mesmo amor imperecível, na região da feli-cidade real que a morte nos descerrará, com osseus sepulcros de cinzas dolorosas ! . Atualmente, aos vossos olhos serei, talvez, sem-pre triste e desventurada; mas, no íntimo, guardoa certeza de que as minhas dores constituem o preçoda minha redenção para a luz da Eternidade. Segundo me falam os augúrios do coração emsuas vozes silenciosas e secretas, não terei um larconstituído, especialmente, para a minha venturanesta vida!. . Viverei incompreendida, de coraçãodilacerado no caminho acerbo das lágrimas remis-soras! O sacrifício, porém, será suave, porque, nasua exaltação, sinto que encontrarei a estrada lu-minosa para o reino da Verdade e do Amor, queJesus prometeu a todos os corações que confiassemno seu nome e na sua misericórdia bendita! Os olhos de Célia elevaram-se para o Alto, comose o espírito aguardasse, ali mesmo, junto do velhoavô, as graças divinas vislumbradas pela sua cren-ça cheia de luminosidade e de esperança. Cneio Lucius, todavia, aconchegou-a de man-sinho ao coração, como se o fizesse a uma criança,falando-lhe com acentuada ternura: - Filhinha, estás cansada! Não te justifiquespor mais tempo. Conversarei com Helvídio a res-peito dos teus mais íntimos pensamentos, elucidarei

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a tua situação perante o seu conceito. E chamando Márcia, a filha mais velha, querepresentava junto da sua velhice confortada opapel de anjo-tutelar e carinhoso, o respeitável pa-trício acentuou: - Márcia, nossa pequena Célia precisa de tran-quilidade e repouso físico. Conduze-a ao teu quartoe fez-la descansar. A neta beijou-lhe ternamente a fronte, reate-rancho com a tia, amável e generosa, que quasea tomou nos braços, conduzindo-a para o interior. A noite ia já adiantada, enchendo o céu Roma-no de caprichosas fulgurações. Cneio Lucius, absorto em profundos cismares,abismou-se num mar de conjeturas. Seu velho coração estava exausto de palpitar,na incompreensão dos arcanos do mundo. Tambémfora jovem e também nutrira sonhos. Na juventudelongínqua, muita vez aniquilara as aspirações maisnobres e os propósitos mais generosos, ao timol-toou embate das paixões materializadas e violentas. Somente as brisas cariclosas da reflexão, naidade madura, lhe haviam sazonado as concepçõesespirituais, a caminho de uma compreensão cadavez maior da vida e de suas leis profundas. Desde que se habituara a meditar sinceramente,assombravam-lhe o espírito os fantasmas da dore os espantosos contrastes dos destinos humanos.Apesar de arraigado às tradições mais puras dosantepassados e não obstante havê-las transmitido ,com fidelidade e amor, aos descendentes, seu co-ração não podia aceitar toda a verdade divina en-carnada em Júpiter, símbolo antigo que consubs-tanciava todas as velhas crenças. Desejoso de propiciar uma lição àquela criança,

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na sua freima educativa, fora o seu espírito quese abalara e comovera ante as novas concepçõesque lhe provinham dos lábios puros de um anjo.Ele que se habituara a investigar as causas pro-fundas da dor e a sentir os padecimentos de quan-tos soluçavam no cativeiro, acabava de receber umachave maravilhosa para solucionar os caprichososenigmas do destino. A visão das existências suces-sivas, a lei das compensações, as estradas do res-gate espiritual pela expiação e pelo sofrimento ,eram agora patentes ao seu raciocínio, como solu-ções providenciais. Sua cultura dos autores gregos fazia-lhe sentirque o assunto não lhe era totalmente estranho ,mas a palavra carinhosa e convincente da neta,testemunhando-lhe a verdade com os seus própriospadecimentos prematuros, abria-lhe à mente novasenda para todas as cogitações em tal sentido. Reclinado no divã da ara doméstica, seus olhoscontemplavam a imagem soberba de Júpiter Sta-tor, talhada em marfim, no centro dos outros deu-ses de sua família e de sua casa, com o coraçãotomado de angústia. Levantou-se e andou pausadamente, em tornodos nichos adornados de luzes e flores. A imagem de Júpiter já lhe não despertavaos mesmos sentimentos de piedosa veneração, comonas noites anteriores. Ante as revelações suaves e profundas de Célia,experimentava no íntimo a amargurosa suspeita deque todos os deuses dos seus ascendentes respei-táveis estavam rolando dos altares, confundindo-seno torvelinho de desilusões das velhas crenças. Dealma opressa, o patrício venerando observava quenovas equações filosóficas e religiosas apossavam-

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-se, precipitadamente, do seu coração . . . Em segui-da, receoso e aturdido, Cneio Lucius escutava noíntimo o doce rumor de uns passos divinos... Pa-recia-lhe que a figura suave e enérgica do profetade Nazaré, cuja filosofia de perdão e de amor co-nhecia através das pregações então correntes, sur-gia no mundo para estilhaçar todos os ídolos depedra, a assenhorear-se do coração humano parasempre ! . . . O respeitável ancião, se era amigo da verdade,não o era menos do sagrado depósito das tradiçõesausteras. No compartimento consagrado às divindadesdo lar, sentiu que o ambiente lhe asfixiava o co-ração e o raciocínio. Instintivamente, abriu umadas amplas janelas mais próximas, por onde o arda noite penetrou em rajadas, refrescando-lhe afronte atormentada. Debruçou-se para contemplar a cidade quaseadormecida. Sua conversa com a neta pareceu-lhehaver durado um tempo indefinido, tão grande forao efeito das suas asserções profundas e empol-gantes. . De olhos úmidos, contemplou o curso do Tibreem toda a paisagem que o olhar abrangia, descan-sando o pensamento abatido nos efeitos de luz quea claridade lunar operava caprichosamente sobreas águas. Por quantas horas contemplou as constelaçõesfulgurantes, sondando os mistérios divinos do fir-mamento ? Somente muito depois, aos albores da madru-gada, a voz cariciosa de Márcia veio despertá-lo desuas cogitações graves e intensas, convidando-o arecolher-se.

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Cneio Lucius dirigiu-se, então, para o quarto,a passos vagarosos, a fronte vincada de angústia,olhos fundos e tristes, como alguém que houvessechorado amargamente.

Sombras Domésticas

A vida das nossas personagens, em Roma, rei-niciou-se sem grandes acontecimentos nem sur-presas. Helvídio Lucius, apesar do amor à Província,experimentava a agradável sensação de haver vol-tado ao antigo ambiente, a ocupar um cargo maiselevado, no qual haveria de enriquecer, sobrema-neira, os valores de sua vocação política ao serviçodo Estado. Concedendo liberdade a Nestório, fizera ques-tão de admiti-lo nos trabalhos do seu cargo eda sua casa, como cidadão culto e independente,que era. Foi assim que o antigo escravo, alugando umcômodo de habitação coletiva nas imediações daPorta Salária, tornou-se professor de suas filhas eauxiliar de trabalho, durante oito horas diárias,com vencimentos regulares. Fora disso, o liberto ficava inteiramente livrepara cuidar dos seus interesses particulares. E soube aproveitar essas folgas, valendo-se daoportunidade para consolidar a melhoria de situa-ção. Assim é que, à noite, ensinava primeiras le-tras a discípulos humildes, que lhe contratavam osserviços, facultando-se um vasto campo de relaçõese dando expansão aos seus pendores afetivos, emreuniões carinhosas que lhe propiciavam novas ener-gias ao coração.

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Bastou um mês para que ficasse conhecendoos centros mais importantes da cidade, seus homensilustres, monumentos, classes sociais, fazendo ami-zades sólidas na esfera humilde em que vivia. Apaixonado pelo Cristianismo, circunstância queHelvídio Lucius desconhecia, não se furtou à sa-tisfação de conhecer os companheiros de ideal, demodo a cooperar com o seu contingente na tarefaabençoada de edificar as almas para Jesus, naquelessombrios tempos que o pensamento cristão atra-vessava, entre ondas largas de incompreensão e desangue. A palavra fácil de Nestório, aliada à circuns-tância de suas relações pessoais com o PresbíteroJohanes, discípulo dileto de João Evangelista naigreja de Éfeso, circunstância que lhe facultava omais amplo conhecimento das tradições de Jesus,proporcionou-lhe, imediatamente, um lugar desta-cado entre os companheiros de fé, que, duas vezesna semana, se reuniam à noite, no interior das ca-tacumbas da Via Nomentana, para estudar as pas-sagens do Evangelho e implorar a assistência doDivino Mestre . O reinado de Adriano, embora liberal e justo,de início, caracterizou-se pela perseguição e pelacrueldade, depois dos terríveis acontecimentos daguerra civil da Judéia. Posteriormente a 131, todos os cristãos se vi-ram compelidos a buscar novamente o refúgio dascatacumbas, para as suas preces . Perseguição te-naz e implacável era movida pela autoridade impe-rial a todos os núcleos de idéias ou de persona-lidades israelitas. Os adeptos de Jesus apenas sereconheciam, entre si, na cidade, por um vago sinal#da cruz, que os identificava fraternalmente onde

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quer que se encontrassem. Nestório não desconhecia o perigoso ambiente,buscando adaptar-se à situação, quanto possível, demaneira a continuar servindo o Cristo na sua féíntima, sem trair o cumprimento dos seus deveres,em consciência. Votava a Helvídio Lucius e à sua família ex-tremado respeito e sincera estima. Jamais poderiaesquecer que recebera de suas mãos generosas aliberdade plena. Era assim que se desobrigava desuas responsabilidades, com satisfação e devota-mento. Em pouco tempo, chegava à conclusão de queambas as jovens estavam devidamente preparadaspara a vida, dado o seu grande cabedal de conhe-cimentos, através da leitura; mas, Helvídio Lucius,cultivando a sua simpatia da primeira hora, con-servara-o no seu gabinete de trabalho, onde o li-berto teve ocasião de lhe testemunhar o seu reco-nhecimento e admiração, fortalecendo-se, cada vezmais, os laços de amizade recíproca. Fazia já um mês que os nossos amigos tinhamregressado a Roma, quando o censor Fábio Corné-lio fêz questão de abrir o seu palácio para apre-sentação dos filhos a todas as figuras destacadasdo patriciado . A essa festa de larga projeção social, compa-receu o próprio Adriano, com o prefeito e CláudiaSabina, enaltecendo o esplendor do acontecimento . Nessa noite memorável para os destinos dasnossas personagens, tudo era um deslumbramentode luz e flores, na suntuosa residência do antigobairro das Carinas. Nos jardins luxuosos brilhavam tochas artisti-camente dispostas, enquanto no lago improvisado

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graciosas embarcações se pejavam de músicos ecantores. As melodias das harpas misturavam-seos sons das flautas, dos alaúdes e atabales, juntodos quais, escravos esbeltos e jovens erguiam vozescariciosas e cristalinas. Mas não era só. Fábio Cornélio e Júlia Spinter, movimentandotodos os recursos materiais, apresentaram uma fes-tividade a rigor, de cujas características a aris-tocracia romana haveria de guardar indelével lem-brança. Luzes em profusão, mesas lautas, flores pre-ciosas, extravagantes adornos do Oriente, cantorese bailarinos famosos, apresentação de antílopes gi-gantescos que lutariam com escravos atléticos, naarena preparada a capricho, para os fins a que sedestinava. Gladiadores e artistas mesclavam-se coma legião de convivas, em soberbo painel de mara-vilhosa alacridade. Cláudia Sabina, depois de algum esforço, con-seguiu atrair a atenção de Helvídio Lucius, que selhe mostrava arredio, interessando a palavra diretado Imperador por sua figura e feitos. De vez emquando, uma referência carinhosa e vaga, que opatrício recebia alarmado, receoso de voltar à re-cordação dos tempos inquietos da juventude. Enquanto isso, Lólio Úrbico, oferecendo o bra-ço a Alba Lucínia, conduzia-a, de leve, às alamedasextensas e floridas em derredor do lago artificial,que brilhava à luz da noite, num como deslumbra-mento . Retido propositadamente por Cláudia, junto doImperador, Helvídio ouvia a palavra generosa deCésar, a demonstrar evidente interesse pela suapessoa:

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- Helvídio Lucius - exclamava Adriano comsorriso afável e atencioso -, folgo muito de revê-loem nosso ambiente. E designando Cláudia Sabina, de pé, a seu lado,acrescentava: - Nossa amiga falou-me de sua preciosacapacidade de trabalho e eu o felicito. Tenho, ago-ra, numerosas obras de importância, em Tibur, ondenecessito do concurso de um homem operoso e in-teligente, que traga consigo a volúpia da atividade.É certo que essas construções chegam, no momen-to, a seu termo, mas, determinadas instalações re-querem a contribuição de alguém com altos conhe-cimentos de nossas realidades práticas. Confiei aCláudia a solução de numerosos problemas de arte,em que prima a sua sensibilidade feminina, maspreciso de cooperação como a sua, dedicada e per-severante, no concernente à parte administrativa.Ser-lhe-ia agradável colaborar com a nossa amiga,por algum tempo, em Tibur? Helvídio compreendeu a situação difícil que lhefôra preparada. Em consciência, não poderia aceitar com satis-fação semelhante encargo, mas César não precisavaexpressar uma ordem, além da manifestação de seusdesejos. - Augusto - replicou o interpelado com re-verência -, vossa gentileza honra os meus esfor-ços. A deferência de tais responsabilidades constituipara mim um grato dever do coração. Cláudia Sabina esboçou um sorriso bem humo-rado, dirigindo-se, satisfeita, ao Imperador: - Obrigada, César, pela escolha de colabora-dor tão precioso. Sinto que as obras de Tibur serãoa maravilha inultrapassável do Império.

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Adriano sorriu, lisonjeado, exclamando, carinho-so, como quem estivesse dispensando um favor raro : - Está bem ! cuidaremos do assunto no mo-mento oportuno. E alongando o olhar enigmático pelas avenidasharmoniosas e floridas, onde pares numerosos seenfileiravam em alegrias francas, acrescentou: - Mas, que fazeis aqui, tão jovens, presos àminha palavra cheia de rotina e de austeridade?. .Diverti-vos! A vida romana deve ser um formosojardim de prazeres!. . Helvídio Lucius, compelido pelas circunstâncias,deu o braço à sedutora favorita, retirando-se vaga-rosamente em sua companhia, sob as vistas gene-rosas e complacentes de Augusto. Cláudia Sabina não conseguiu dissimular a in-coercível emoção que intimamente a afligia, emface da situação que a conduzira ao braço do ho-mem que polarizava as suas aspirações de mulher,e, dados alguns passos, foi a primeira a rompero constrangido silêncio : - Helvídio - disse em voz quase súplice -,reconheço, agora, a linha de responsabilidades so-ciais que nos separam, mas será possível que mehouvesses esquecido? - Senhora - respondeu o patrício, emociona-do e respeitoso -, dentro do nosso foro íntimo, todoo passado deve estar morto. Se vos ofendi no pas-sado, confesso-me agradecido pelo vosso esqueci-mento. De outro modo, qualquer aproximação entrenós representaria uma fórmula de existência odiosae impossível. A favorita de Adriano sentiu fundo a firmezadaquelas palavras, que lhe gelavam o coração in-quieto e sôfrego, retorquindo, todavia, sem vacilar:

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- A mulher conquistada jamais poderá consi-derar-se mulher ofendida. As mãos que amamosnunca nos chegam a ferir, e eu, em tempo algum,consegui olvidar tua afeição. Imprimindo à voz uma inflexão de humildade,acrescentava: - Helvídio, tenho sofrido muito, mas, tenho-teesperado em toda a vida. Vencida e humilhada najueentude, não sucumbi ao desespero para aguar-dar, confiante, o teu regresso ao meu amor. Que-rerias, porventura, aniquilar-me agora que te venhooferecer, humildemente, todos os tesouros da vidaamontoados com zelo para te ofertar? As últimas palavras foram sublinhadas de pro-fundo desencanto, à face de si mesma, e HelvídioLucius, compreendendo o seu desapontamento, pros-seguiu sem hesitar: - Precisais considerar que jurei fidelidade ededicação a uma criatura generosa e leal, além deestardes, também vós, comprometida com um ho-mem nobre e digno . Acaso desejaríeis quebrar umvoto contraído perante os nossos deuses?... - Nossos deuses? - repetiu a interpelada comuma ponta de ironia. - E chegam eles a impediros divórcios numerosos de tantas personalidadesda Corte? E esses exemplos, porventura, não noschegam de cima, dos altos postos onde domina aautoridade direta do Imperador? Não cogito de si-tuações, para, antes de tudo, satisfazer minha sen-sibilidade feminina. - Bem se vê - replicou Helvídio irônico -que desconheceis a tradição de um nome de família.Os que desejam continuar os valores dos séculosque passaram, não podem aventurar-se com as no-vidades da época, de maneira a permanecerem fiéis

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ao patrimônio recebido de seus ascendentes. Cláudia Sabina mordeu os lábios, nervosamen-te, recebendo aquela alusão direta à sua antigasituação de plebéia, murmurando com altivez: - Não concordo contigo, neste particular. Ostriunfadores não podem ser os tradicionalistas, querecebem um nome feito para brilhar no mundo e,sim, os que, triunfando da própria condição e domeio ambiente, sabem elevar-se às culminâncias so-ciais, como águias da inteligência e do sentimento,obrigando o mundo a lhes reverenciar as conquis-tas e os méritos. O orgulhoso romano sentiu a azedia da res-posta, sem encontrar recursos imediatos para revi-dar com as mesmas armas, porém, a antiga plebéiaacrescentou com sorriso enigmático : - Apesar da tua impassibilidade, continuareiguardando as minhas esperanças. Acredito que nãodeixarás de aceitar a honrosa incumbência de Au-gusto para conclusão das obras de Tibur, que, atual-mente, constituem a sua preocupação de todos osinstantes. - Sim - murmurou o patrício algo contris-tado -, terei de cumprir as determinações de César. Preparava-se a favorita para retorquir, quan-do Publício Marcelo, companheiro de Lólio Úrbicoem seus notáveis feitos de armas, se aproximouruidosamente, roubando-lhes a possibilidade de pros-seguir na confidência e atirando-lhes um conviteamável : - Amigos - exclamou esfuziante de alegria -,acerquemo-nos do lago ! Vergílio Prisco vai cantaruma das suas mais belas composições em homena-gem a César! Helvídio e Cláudia, colhidos numa onda de cha-

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mamentos alegres, separaram-se involuntàriamente,para atender aos convites afetuosos. Com efeito, nas bordas da grande piscina ro-deada de árvores frondosas, toda a massa de con-vidados se comprimia sôfrega. Mais alguns instan-tes e a voz aveludada de Vergílio enchia o ambientede sonoridades, entre as quais se destacavam asnotas melodiosas das cítaras e dos alaúdes que oacompanhavam . Do alto do trono improvisado, Adriano ouvia-oembevecido, recebendo a homenagem dos súditosfiéis às suas vaidades imperiais. Em ligeiro retrospecto acompanhemos, contu-do, Alba Lucínia e Lólio Úrbico através de pequenogiro pelas alamedas claras e floridas. A nobre senhora guardava a severidade gra-ciosa dos seus traços de madona, enquanto o com-panheiro se mostrava eminentemente emocionado. Em palestra aparentemente despreocupada, oprefeito dos pretorianos parecia distanciar-se, in-tencionalmente, dos grupos numerosos, desejoso demanifestar os pensamentos secretos que lhe ator-mentavam o íntimo desolado . Em dado instante, muito pálido, exclamou ematitude quase súplice : - Senhora, eu vos vi pela primeira vez há maisde vinte anos... Celebravam-se os vossos esponsaiscom um homem digno e eu lamentei, sinceramente,não haver chegado mais cedo para disputar-vos ! . . .Acredito que vosso coração se alarme com estasminhas revelações inoportunas, mas, que fazer, seo homem apaixonado é sempre a mesma criança detodos os tempos, que não mede situações nem cir-cunstâncias para ser sincero ? . . Perdoai-me se vosofendo a suscetibilidade superior e generosa, mas,

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tenho necessidade inelutável de vos afirmar de vivavoz o meu amor... Alba Lucínia escutava-o, penosamente impres-sionada com aquelas declarações sinceras e peremp-tórias. Desejou responder-lhe com a austeridadedos seus elevados princípios, como esposa e mãe,mas, amarga comoção parecia paralisar-lhe as cor-das vocais, naquelas difíceis circunstâncias. Retomando a palavra e tornando-se mais ve-emente, Lólio Úrbico prosseguia: - Desperdicei a mocidade com os mais dolo-rosos pesares íntimos... Minha alma procurou, emvão, por toda parte, alguém que se parecesseconvosco. Resvalei por aventuras escabrosas, nasminhas tristes empresas militares, ansioso de en-contrar o coração que adivinho em vosso peito!Minha existência, posto que fortunosa, está satu-rada de amarguras infinitas... Será que me nãoconcedereis o lenitivo de uma esperança? Terei demorrer, assim, estranho e incompreendido?. . Dis-plicentemente, dei meu nome e posição social a umamulher que me não pode satisfazer as expressõeselevadas do espírito . Dentro do lar, somos doisdesconhecidos... entretanto, senhora, nunca pudeesquecer o vosso perfil de madona, esse olhar di-vino e calmo, onde leio agora as páginas de luzda vossa virtude soberana!... No meu ambiente social tenho tudo que aum homem é lícito desejar: fortuna, privilégiospolíticos, fama e nome, degraus que escalei fàcil-mente entre as classes mais nobres; o coração,porém, vive em desalento irremediável, aspirandoa uma felicidade inatingível. . . Enquanto vos con-serváveis na Província, possível me foi contempo-rizar com os próprios amargores ; mas, depois que ,

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vos revi, experimento na alma um desencadeado Ve-súvio de chamas!... Tenho as noites povoadas deinquietações e amarguras, quais as de um náufra-go, vendo além a ilha da sua ventura, distante einatingível . Dizei que vosso coração há-de acolher-me assúplicas; que me vereis com simpatia ao vosso lado.Se não puderdes retribuir esta paixão, enganai-meao menos com a vossa amizade honrosa e eno-brecedora, reconhecendo em mim algum de vossosservos... A nobre senhora tornara-se lívida, o coração lhe pulsava alarmado, em ritmo violento : - Senhor Prefeito - conseguiu balbuciar, qua-se desfalecente -, lamento bastante haver inspi-rado sentimentos dessa natureza e não posso hon-rar-me com a vossa homenagem afetiva, porquantovossas palavras evidenciam a violência de paixãoinsensata e desastrosa. Meus deveres sagrados, de esposa e mãe, impedem-me de considerar quantoacabais de dizer. Mantenho sincero propósito devos considerar o cavalheiro ilustre e digno, o ami-go dedicado e honesto de meu pai e de meu marido,a cujo destino, por afeição natural, estou ligadapara sempre. Lólio Úrbico, habituado às transigências femi-ninas da Corte, em face da sua posição e predi-cados, empalideceu de súbito, ao ouvir a recusanobre e digna. Avaliou num relance o quilate es-piritual da criatura ardentemente cobiçada há tan-tos anos. No seu íntimo, de mistura com o amor próprio humilhado, havia igualmente um ressaibode vergonha para consigo mesmo. Baixando, todavia, o olhar despeitado, falouquase súplice :

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- Não desejo passar a vossos olhos como umespírito grosseiro e incompreensivo! A verdade,porém, é que continuarei a vos amar da mesmaforma. Vossa formal e delicada recusa agrava aminha ambição de possuir-vos. Por quanto tempo,ó deuses do Olimpo, prosseguirei assim, incompre-endido e torturado? Erguendo os olhos, notou que Alba Lucíniachorava, contristada. Aquela dor serena e justapenetrou-lhe o coração qual o gume de uma espada. Lólio F. sentiu, pela primeira vez, que amaterialidade de sua paixão produzia sentimentosde angústia e piedade. - Senhora - exclamou aflito -, perdoai sevos fiz chorar com as expressões mal-avisadas dosmeus tristes padecimentos. Quero-vos muito, mui-to . . . Desposastes um homem honesto e digno eacabo de cometer a loucura de vos propor a suadesonra e desventura... Perdoai-me! Fui vítimade um instante penoso de criminosa insânia...Apiedai-vos de mim, que tenho vivido até agoraabatido e desolado. Um mendigo do Esquilino é mais feliz do queeu, embora estenda as mãos à caridade pública!Sou um desgraçado . . . tende compaixão do meupadecer angustioso. Por muitos anos guardei noíntimo estas emoções rudes e penosas e vós sabeisque a alma do soldado tem de ser cruel e impas-sível, recalcando os pensamentos mais generosos!..Jamais encontrei um coração que compreendesse omeu, razão por que não hesitei em vos ofendera dignidade irrepreensível ! . . Alba Lucínia escutava-lhe as súplicas sem com-preender os contrastes daquela alma violenta e sen-sível. Houve um silêncio penoso para ambos, quan-

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do alguém, atravessando as filas de arvoredos,exclamava em voz cheia, rente de seus ouvidos: - Vinde ouvir Vergílio Prisco ! Associemo-nosàs homenagens a César!. . Lólio Úrbico verificou a impossibilidade de pros-seguir em suas confidências e oferecendo o braçoà nobre senhora, que o acompanhou com um sor-riso triste, seguiram em direção ao lago, onde, mo-mentos antes, víramos chegar Helvídio e CláudiaSabina. Em torno do cantor reuniam-se todos os con-vivas, numa assembléia compacta e distinta, aten-tos à homenagem que o Imperador recebia, serenoe envaidecido. A canção encomendada pelos anfitriões era umlongo poema no estilo da época, onde os feitos deAdriano excederam, glorificados, a todas as reali-zações precedentes do Império . Nas expressões ba-juladoras do artista, herói algum o havia excedidonos feitos brilhantes de Roma. Generais e poetas,cônsules e senadores célebres ficavam aquém doque tivera a ventura de ser filho adotivo de Trajano. No alto do trono ali erguido a caráter, o Im-perador dava largas à sua vaidade pessoal, comfrancos sorrisos. Todos o rodeavam. Numerosas autoridades láestavam, associando-se ao honroso preito de FábioCornélio e família. Não podemos esquecer que Helvídia e CaioFabricius lá se viam juntos e embevecidos na suarisonha primavera de amor, enquanto Cneio Lucius,obrigado pelas circunstâncias a comparecer, ampa-rava-se ao braço de Célia, meio trêmulo na suaavançada velhice e desejoso de patentear aos filhosque o seu coração também participava do júbilo

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geral. Emudecidos os alaúdes, uma legião de jovensdespetalou centenas de róseas coroas trazidas porescravos em grandes bandejas prateadas; envolven-do o trono em nuvem de pétalas odorantes. Vibraram novas harmonias e o coro dos dan-çarinos exibiu novos bailados, cheios de figuraçõesinteressantes e estranhas. O vinho transbordou, enchendo quase todasas frontes de fantasia e, com a caçada dos antí-lopes fabulosos, terminou a festa que ficou gra-vada, para sempre, na mente de todo o patriciado . Helvídio Lucius e Alba Lucínia volveram aolar, sob o peso de indefinível angústia. Surpreendidos pelos acontecimentos inespera-dos, quanto às penosas emoções de que haviam sidovítimas, observava-se em ambos o recíproco efeitode uma confidência desagradável e dolorosa. Voltando, todavia, à intimidade doméstica, anobre senhora disse ao esposo em tom de amar-gura: - Helvídio, muitas vezes desejei ardentementeretornar a Roma, saudosa das nossas amizades edo incomparável ambiente citadino ; mas hoje com-preendo melhor a calma do campo, onde vivíamossem cuidados penosos. Os anos da Província medesacostumaram das intrigas da Corte e essas fes-tividades, de agora, como que me cansam profun-damente o coração. Helvídio ouviu-a, sentindo que o seu estadodalma era bem aquele, tal o tédio que se apossaradele, depois dos espetáculos que lhe fora dado ob-servar, considerando também as penosas emoçõesque aquela noite lhe proporcionara. - Sim, querida - replicou algo confortado -,

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tuas palavras fazem-me grande bem ao coração.Regressando a Roma, reconheço que estou tambémfarto dos ambientes de convenção e hipocrisia.Temo a cidade com os seus perigos numerosos paraesta nossa ventura, que desejamos imperecível! E, recordando mais detidamente as dolorosascomoções experimentadas horas antes, com as con-fidências de Sabina, atraiu a esposa ao coração,acrescentando com o olhar incendiado de súbitoclarão : - Lucínia, uma idéia nova aflora-me ao espí-rito ! Que me dirias da nossa volta ao campo aco-lhedor e tranqüilo ? Lembremo-nos, querida, de quea revolução terminou e não será difícil readquirir-mos as antigas propriedades da Palestina. Reataríamos assim a nossa tranqüila existên-cia na Província, sem as preocupações exaustivase dolorosas que aqui nos assaltam . Cuidarias dastuas flores e eu continuaria zelando pelos interes-ses de nossa casa. Prometo-te que farei tudo por te fazer a vidamenos triste, longe de teus pais! Conservaria co-nosco somente os escravos da tua predileção e bus-caria aconselhar-me constantemente contigo, no des-dobramento de todos os trabalhos!. . Levar-te-ia comigo, em todas as viagens...nunca mais te deixaria isolada em casa, preocupadae saudosa... Helvídio Lucius imprimia à voz um tom sin-gular e fundamente expressivo, como se estivessedesdobrando, ante o olhar lacrimoso da esposa, asperspectivas cariciosas de um quadro primaveril. - Quem sabe - continuava de olhos brilhan-tes - poderíamos voltar à Judéia, para sermosainda mais alegres e mais felizes?! Nossa Helvídia

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tem o futuro assegurado com o enlace próximo eficaria Célia para enriquecer a felicidade domés-tica ! . . De volta, percorreríamos toda a Grécia,a fim de visitar o mais antigo jardim dos deuses,e, quando em Samaria e na Idumeia, haverias dever os milagres do meu coração no afã de fazer-terisonha e venturosa! Passearemos, então, juntoscomo outrora, pelas estradas enluaradas, no silên-cio das noites calmosas, para melhor sentirmos aextensão do nosso amor venturoso. Aqui, sinto a nossa paz doméstica ameaçadaa cada passo . . . As intrigas da Corte me atormen-tam o coração ! . . Entretanto, somos ainda moçose temos diante de nós um futuro promissor. Acredita, querida, que alimento o maior desejode voltar ao nosso remanso de paz, no seio daNatureza calma e generosa!. . Alba Lucínia ouvia-o, aliviada das próprias an-gústias. Uma lágrima lhe brilhava à flor dos olhos,tinha o coração alvoroçado com a risonha expecta-tiva de regressar à tranqüilidade da vida provin-ciana. Não obstante o júbilo dessas esperanças, suaatitude mental se caracterizava pela mais fundareflexão . - Helvídio - exclamou confortada -, essaperspectiva de voltarmos ao ambiente campestre,com a nossa ventura e o nosso amor, consola-meo espírito abatido. Mas, ouve-me: e os nossos de-veres? Que dirá meu pai da nossa atitude, depoisde haver lutado tanto para reajustar tua situaçãoà política administrativa do Império? Enfim, desejosaber se não chegaste a assumir qualquer compro-misso mais sério . Em lhe ouvindo as serenas ponderações, o pa-

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trício recordou, subitamente, o compromisso como Imperador, concernente às construções de Tibur, esentiu-se gelado, depois da eclosão de suas entu-siásticas esperanças. Informou, então, à companheira, da solicitaçãodo César, respondendo-lhe ela com um suspiro depesar. - Neste caso - exclamou Alba Lucínia comuma ponta de contrariedade nas expressões fami-liares -, é tarde para cogitarmos do nosso imediatoregresso à Província. O marido reconheceu, com mágoa, a justeza daponderação, mas, acrescentou: - Em última análise, falarei amanhã a FábioCornélio, expondo-lhe as minhas apreensões a res-peito e, mesmo que ele não aprove nosso regresso,mantenhamos esperanças, pois os deuses hão-depermitir nossa volta mais tarde!. Embora a profunda intimidade daquele desa-bafo, nem um nem outro se sentiu com a coragemprecisa para revelar as penosas emoções daquelanoite . E, no dia seguinte, ambos ainda se ressentiamdo primeiro embate das lutas sentimentais que osaguardavam no ambiente da grande metrópole. Procurando o sogro, Helvídio Lucius expôs-lhe,sem reservas, seus planos e desejos. Além de ma-nifestar o propósito de voltar à Palestina, falouigualmente da pretensão imperial de lhe utilizar ospréstimos pessoais nas obras de Tibur. Fábio Cornélio recebeu aquelas alegações to-mado de surpresa, reprovando os projetos do genroe encarecendo-lhe que semelhante alvitre demons-trava muita infantilidade da sua parte, em taiscircunstâncias. Não estava com a posição finan-

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ceira consolidada? Não representava um fator depaz a sua permanência em Roma, ao lado de todaa família? Não conseguira as graças de Adriano, aponto de se integrar no mecanismo político-admi-nistrativo com todas as honras de um tribuno mi-litar ? Em face da recusa obstinada, em voz baixae em tom discreto, Helvídio relatou ao sogro assuas aventuras da mocidade, dizendo-lhe das novaspretensões de Cláudia Sabina e da sua difícil situa-ção doméstica, no sagrado aconchego da família. O velho censor ouviu-lhe a confidência um tan-to surpreso, mas obtemperou : - Meu filho, compreendo os teus escrúpulos;entretanto, devo falar-te com a mesma franquezacom que te confessas, esclarecendo que, na minhaatual situação, dependo inteiramente do apoio deLólio Úrbico e de sua mulher, no mundo da polí-tica e dos negócios. Minha posição financeira, infe-lizmente, é agora assaz precária, em vista dos nu-merosos gastos impostos pelas circunstâncias. Sete for possível, auxilia-me nestas contingências.Não recuses a oportunidade que Adriano te ofere-ce em Tibur, e faze o possível por não desgostareso espírito vingativo de Cláudia, principalmente nasatuais circunstâncias de nossa vida. Helvídio compreendeu a impossibilidade de aban-donar o velho sogro e sincero amigo, em tais con-junturas, e buscou prover-se de energias íntimas,de modo a não deixar transparecer qualquer cons-trangimento . - Ao demais - exclamou o censor tentandofazer humorismo para dissipar as sombras do am-biente sentimental criado entre ambos -, esperonão te percas em receios pueris nas situações mais

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difíceis... Não tenhas medo, filho, dessa ou da-quela circunstância!. E esboçando um sorriso benévolo, acrescentava: - Sabes o que dizia Lucrécio há mais de cemanos? - "que a mulher é o animalzinho santo dosdeuses!" Entre ambos esboçou-se, então, um riso francoe otimista, embora no íntimo continuasse HelvídioLucius a guardar as suas apreensões. Por sua vez, Alba Lucínia, na manhã daquelemesmo dia, procurou aconselhar-se com sua mãeacerca de suas amarguradas reflexões; mas JúliaSpinter, após ouvir-lhe a exposição dos episódiosda véspera, com o coração tocado de pressentimen-tos angustiosos pela situação da filha, replicou comos olhos úmidos, sem perder, todavia, a sua forta-leza moral: - Filhinha - disse, beijando-a -, atravessa-mos uma fase de lutas amargas, em que somosobrigados a demonstrar toda a nossa capacidadede resistência. Sei avaliar tua angústia íntima, por-que, na mocidade, também experimentei essas emo-ções penosas, no torvelinho das atividades sociais.Se me fosse possível, romperia com a situação e comtodos, em benefício da tua tranqüilidade, mas. . Aquelas reticências significavam tal desalentoque Alba Lucínia se comoveu, interpelando-a. - Que dizes, mamãe? Esse "mas" tem tantaamargura que chega a surpreender-me, como queadivinho em teu espírito preocupações porventuramais graves que as minhas. - Ora, filha, como mãe, sou levada a interes-sar-me pela tua como pela minha própria felicida-de. .. Entretanto, inteirada dos negócios de teu paie dos laços que o prendem à política do prefeito

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dos pretorianos, colijo que Fábio não poderia des-ligar-se, no momento, de Lólio Úrbico, sem gravesprejuízos financeiros. Ambos se encontram profun-damente vinculados na situação atual, de modo que,apesar da franqueza com que sempre assinalei mi-nhas palavras e atos, sou levada a aconselhar-tea máxima prudência a prol da tranquilidade de teupai, que deve merecer os nossos sacrifícios. As palavras da nobre matrona eram ditas emtom de amargurada tristeza. Quanto a Alba Lucínia, muito pálida, após re-ceber-lhe as penosas confidências, perguntou: - Mas a situação financeira de meu pai é as-sim tão precária? A festividade de ontem dava-mea entender o contrário... - Sim - esclareceu Júlia Spinter resignada -infelizmente os fatos vêm justificar os meus íntimosdesgostos. Conheces o temperamento de teu pai esabes da minha necessidade em lhe acompanhar oscaprichos. Não consideraria necessária uma festacomo a de ontem, para dar a entender que te estimo.Julgo que essas comemorações devem ser feitasna intimidade do coração e da família; mas teupai pensa de modo contrário e devo acompanhá-lo.Só as despesas dessa noite elevaram-se a muitosmilhares de sestércios. E não é só. Teus irmãostêm dissipado quase todo o patrimônio da família,assumindo compromissos de toda espécie, que teupai é compelido a resgatar com os mais sérios pre-juízos para a nossa casa. Como já sabes, os es-cândalos de Lucília Veinto obrigaram Asínio aausentar-se para a África, onde prossegue, ao quesabemos, na mesma rota dos prazeres fáceis. Quantoa Rútrio, foi preciso que teu pai lhe conseguisseuma comissão na Campânia, a fim de tentar a res-

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tauração do nosso equilíbrio financeiro. No entanto,filha, não ignoras como a sociedade nos exige amáscara da ventura... Em princípio, não aprovoa atitude de Fábio, realizando festas como a deontem, mas, ao mesmo tempo, sou forçada a lhedar razão, porquanto, um censor tem de andar emdia com as convenções sociais. Alba Lucínia, ouvindo aquelas confidências, en-cheu-se de compaixão pela genitora, exclamando : - Basta, mamãe ! Eu sei compreender-te. Esteassunto deve ficar entre nós e eu saberei condu-zir-me através de todas as dificuldades. Ainda on-tem, eu e Helvídio cogitávamos de regressar à Pro-víncia, mas vejo que o papai requer agora o nossoconcurso e reconheço que teu coração necessita domeu para enfrentar as circunstâncias da vida!. . Júlia Spinter, comovida, abraçou a filha, re-parando-lhe o olhar brilhante, como se pressentissealgo perigoso para a sua felicidade. - Que os deuses te abençoem, filhinha! -exclamou quase radiante - ficarás comigo, sim,pois aqui tenho vivido muito incompreendida e mui-to só ! . . Apenas a nossa querida Túlia se con-serva fiel à minha antiga afeição, vendo em mima mãe adotiva que a Providência lhe concedeu!...Os filhos, desde cedo, afastaram-se do lar paraenveredar por maus caminhos e teu pai está sem-pre ocupado em conferências e negócios do Estado... Por algum tempo, ainda mãe e filha se entre-tiveram em palestra confidencial e carinhosa. A situação geral continuou inalterável. AlbaLucínia e o esposo, abandonando os propósitos devoltar ao ambiente provinciano, tudo fizeram poratender às necessidades domésticas, permanecendona Capital do Império.

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Daí a pouco tempo, deixando Nestório comoauxiliar do sogro, Helvídio Lucius retirava-se paraTibur, de modo a cumprir as determinações impe-riais, ali encontrando Cláudia Sabina instalada emposição de destaque. Fôsse pelo desejo de salien-tar-se aos olhos do patrício, graduando-se no seuconceito, ou fosse anuindo à expansão de suas vo-cações inatas, a esposa do prefeito fazia-se notávelpor suas providências na administração das obrasartísticas confiadas à sua sensibilidade feminina. Helvídio Lucius foi compelido pelas circunstân-cias a aproximar-se dela, conhecendo-lhe de pertoa surpreendente aptidão e admirando-lhe os feitoscom sinceridade, embora conservasse o espírito pre-cavido contra qualquer tentativa de retorno aopassado. Cláudia Sabina, entretanto, apesar damodificação tática das suas operações sentimen-tais, guardava no íntimo as mesmas pretensões desempre. Enquanto isso, Alba Lucínia começava a ex-perimentar, em Roma, uma longa série de padeci-mentos morais. Lólio Úrbico não cedeu em seuspropósitos, não obstante estar cônscio das suas ele-vadas virtudes conjugais, tendo, porém, moderadoos impulsos. A sociedade romana, de então, ama-va os desportos e fazia questão de conservar astradições de liberdade no mecanismo das relaçõesfamiliares, circunstância que lhe facultava visitara casa do patrício ausente, sob as vistas benévolasde Fábio Cornélio, que via no seu carinhoso inte-resse um motivo de honrosa distinção para a fa-mília. Contudo, a nobre senhora, que conhecia asnecessidades paternais, não se sentia com a precisacoragem para confiar ao velho censor os seus jus-tos receios, sujeitando-se, desse modo, a tolerar a

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amizade que o prefeito lhe oferecia, aceitando-a coma intangibilidade do seu caráter. Helvídio Lucius vinha ao lar quinzenalmente.Todavia, essas surtidas a Roma eram excessiva-mente rápidas para poder combinar devidamente,com a esposa, a solução de todos os assuntos queos preocupavam. E o tempo corria, carregando sempre as suasreservas preciosas. Alguém havia que se interessava a fundo pelasituação do prefeito, espionando-lhe fàcilmente osmenores passos. Esse alguém era Hatéria, que, naprópria casa dos amos, podia observar-lhe o inte-resse. ouvir-lhe as impressões e as palestras, acom-panhando as suas atitudes sentimentais. Dois longos meses haviam transcorrido nessasituação, quando, um dia, vamos encontrar Lucíniae Túlia na maior intimidade, em palestra amena econfortadora. Após as pequeninas bagatelas sociais, a esposade Helvídio falou confidencialmente das suas amar-guradas impressões íntimas, expondo à amiga dainfância os seus receios em face da prolongadaseparação do esposo, que, obedecendo a caprichosasdeterminações do destino, parecia continuar inde-finidamente na cidade da predileção imperial . Túlia Cevina olhou-a fixamente, murmurandoem tom discreto : - Sei justificar as tuas apreensões, ainda maiscontinuando Helvídio junto de Cláudia!. . - Porque ligas tanta importância a essa cir-cunstância? - interrogou Alba Lucínia admirada. - Nunca soubeste, então ? - Quê? - disse a outra duplamente curiosa. Túlia compreendeu que a amiga, longe dos

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ruídos da Corte, por muitos anos, não chegara aconhecer o passado em suas minudências. - Há muito ouvi dizer que Cláudia Sabina eHelvídio Lucius tiveram o seu romance de amorna mocidade. Creio que não ignoras ter sido essacriatura portadora de beleza singular, em outrostempos, muito antes que o destino a arrancasse dapobreza de sua condição social.. - Nunca cheguei a sabê-lo - murmurou AlbaLucínia visivelmente sobressaltada -, mas, conta--me tudo que sabes a respeito. - Nunca ouviste, também, a história de Si-lano? - perguntou ainda Túlia Cevina, aumentandoo interesse provocado por suas palavras. - Sim, sei que Silano é um rapaz que meusogro adotou como seu próprio filho, sabendo, igual-mente, que, quando ele nasceu, muita gente acre-ditou fosse filho de Helvídio com uma criatura dopovo, nas suas aventuras da mocidade. - Mas, conheces toda a história nos seus por-menores mais íntimos? - Sei apenas que o pequenino foi enjeitadoà porta de Cneio Lucius, que o acolheu com a suahabitual generosidade. - Muito bem, minha amiga, mas não faltouquem visse Cláudia Sabina, ainda jovem e plebéia,abandonar a criança, alta madrugada, no local aque te referiste, endereçando a Cneio Lucius umbilhete expressivo . - Em qualquer hipótese - esclareceu AlbaLucínia, apesar de impressionada com aquela re-velação -, eu acredito que Helvídio foi vítima deuma calúnia infame. - Não digo o contrário - volveu a amiga -,mesmo porque Sabina, ao que se diz, era dessas

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criaturas que vivem cercadas por ansiedades dife-rentes... A esposa de Helvídio experimentava uma dorimensa no íntimo. Desejou chorar, desabafando asmágoas que lhe azorragavam o peito, mas, sua for-taleza moral superava, em seu espírito, todos ossentimentos. Não lhe foi possível, contudo, dissi-mular o sofrimento, diante da carinhosa irmã es-piritual dos primeiros anos, deixando transparecer,de olhos úmidos, suas amarguras e receios. Túlia Cevina beijou-a longamente, dizendo-lheà meia voz : - Querida Lucínia, também eu já sofri essasangústias que vens experimentando, mas encontreium remédio eficaz. Queres experimentá-lo? - Sem dúvida. Onde encontrar esse recurso? - Ouve-me - exclamou a amiga com as ca-racterísticas da sua bondade confiante e quase in-fantil -, certamente já ouviste falar de LucíliaVeinto e de seus escândalos na Corte. Certa feita,Máximo deu mostras de sua inclinação por essamulher, chegando a abalar profundamente a nossafelicidade doméstica; mas Sálvia Súbria ensinou-mea procurar uma reunião cristã, onde pedi as precesde um venerando ancião que ali pontifica como umsacerdote. Desde que me vali desse recurso, meumarido voltou ao remanso do lar, aumentando oquinhão da nossa ventura conjugal. - Mas, foste obrigada a qualquer compro-misso? - interrogou Alba Lucínia eminentementeinteressada no assunto . - Nenhum. - Mas os cristãos praticaram algum sortilé-gio em teu benefício? - Também não . Informaram-me de que a vir-

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tude da prece está na circunstância de ser dirigidaa um novo deus, a quem os crentes denominamJesus de Nazaré. - Ah ! - disse Alba Lucínia lembrando-se daJudéia e das convicções da filha - a doutrina cristãnão me é estranha, mas meu marido não lhe toleraas expressões contrárias aos nossos deuses. Julgo,pois, que antes de tomar uma resolução dessa na-tureza, será conveniente ouvir minha mãe, a fimde lhe seguir os conselhos. - Isso não. - Por quê? - Porque, ao receber o conselho de Sálvia,também procurei tua mãe para falar-lhe do assun-to, mas, dentro do seu espírito formalista e da suafranqueza intransigente, mostrou-se hostil aos meusdesejos, alegando que a mulher romana dispensanovos deuses para ser a matrona incorruptível pe-rante a sociedade e a família. Apesar de tudo, re-solvi tentar o recurso e obtive os melhores resul-tados. - Minha mãe deve estar com a razão - falouAlba Lucínia convicta. - Além disso, não possoconformar-me com a promiscuidade desses ajunta-mentos plebeus. Túlia ouvia-lhe as ponderações, sinceramentedesejosa de colaborar na reedificação de sua ven-tura doméstica, objetando delicadamente: - Ouve Lucínia: sei que o teu temperamentonão se compadece com as reuniões dessa natureza,mas, se quiseres, irei por ti, como fui por mim...A essas assembléias, preside um homem santo,chamado Policarpo . Sua palavra nos fala do novodeus com uma fé tão pura e uma sinceridade tãogrande, que não há coração que se não renda à

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beleza espiritual das suas afirmativas... Suas ex-pressões arrebatam nossa alma para um reino defelicidade eterna, onde Jesus Nazareno deve estarà frente de todos os nossos deuses, aguardando-nos,além desta vida, com as bênçãos de uma bem-aven-turança eterna... Não sou cristã, como sabes, mas fui benefi-ciada pelas suas orações e, ao contrário do queafirmam, posso testificar que os adeptos de Jesussão pacíficos e bons!. . A esposa de Helvídio recebia-lhe as carinho-sas sugestões com o coração imensamente sensibi-lizado . - E irás sozinha, sem a proteção de uma guar-da? - perguntou com admiração. - Porque mo perguntas? Os cristãos são ví-timas de medidas vexatórias por parte das auto-ridades governamentais; porém, irei ter com elesconfiadamente, uma vez que se trata da tua feli-cidade pessoal. - Tens uma fé assim tão grande nessa pro-vidência?! . - interrogou Lucínia com interessee reconhecimento. - Confiança total. E, fazendo um gesto expressivo, como se hou-vera recordado um recurso novo, acrescentou: - Ouve, querida: já que me falaste das pre-dileções de Célia por essa doutrina, apesar do nossosegredo familiar sobre o assunto, porque não mepermites o prazer da sua companhia? Essas reu-niões se verificam nas velhas catacumbas da ViaNomentana e o local é muito distante. Tenho ple-na confiança no êxito dessas orações e bastará umasó vez para que a paz volte a felicitar tua casae teu coração.

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Alba Lucínia sentia-se confortada com as pro-messas da amiga, considerando-lhe a fé profundae contagiosa, na grata perspectiva da felicidadedoméstica, e acrescentou: - Vou pensar e depois combinaremos. Mas,se necessitares de uma companhia, é a mim quecompete acompanhar-te . Separaram-se, então, com um beijo afetuoso,enquanto o vulto esguio de Hatéria se afastava les-to de uma ampla cortina oriental, depois de ouvira singular entrevista. Dentro de uma sociedade como aquela, ondetodas as classes, desde os primórdios, em virtudedas influências etruscas, recorriam ao invisível eao sobrenatural, nas mais diversas contingênciasda vida, Alba Lucínia passou a meditar na precio-sa oportunidade sugerida pela amiga de infância.Embora encontrasse conforto na expectativa do em-preendimento, passou o resto do dia entre a inde-cisão e o sofrimento moral. Teve ímpetos de ir a Tibur para arrancar oesposo de todas as perigosas situações em que seencontrava, mas o raciocínio preponderou em todasas suas inquietações angustiosas. A noite, enquanto todos dormiam, dirigiu-se aosantuário doméstico e, prosternando-se junto aoaltar de Juno, suplicou à deusa, entre lágrimas,que lhe amparasse o espírito nos caminhos ásperosdo dever e da virtude.

Na Via Nomentana

Uma semana depois do que vimos de narrar,vamos encontrar Cláudia Sabina, à noite, no ter-raço de sua casa, em Roma, palestrando com Ha-

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téria na mais franca intimidade. - Então, Hatéria - dizia à surdina, depois delonga exposição da cúmplice -, meu esposo, assim,parece querer facilitar a realização de meus pro-jetos. Nunca o supus capaz de apaixonar-se poralguém, fora do ambiente de suas armas. - Entretanto, senhora, em cada gesto seu, emcada palavra, inferem-se perfeitamente os sentimen-tos que lhe vão na alma. - Está bem - exclamou a antiga plebéia comose o assunto a enfadasse -, meu marido não é ohomem que me interessa. Tuas notícias de hojesignificam que o acaso também coopera a meufavor. - Além de tudo - lembrou Hatéria, acen-tuando o caráter secreto daquelas revelações -,Lucínia e Túlia combinaram solicitar uma bênçãona reunião cristã, a fim de que Helvídio Lucius vol-te imediatamente de Tibur, a reintegrar-se na har-monia doméstica. Cláudia deixou escapar um riso nervoso, masinterrogou com avidez: - Sim? E como o soubeste?. . - Há uma semana elas trocaram confidênciase ontem, à noite, assentaram o plano, embora apatroa se encontre bastante abatida, acreditando euque venham a realizá-lo nestes quatro dias. - Convém estares vigilante para acompanhá--las, sem que o percebam, de modo a prosseguiresciente dos acontecimentos. E, esboçando um gesto de malícia, sentenciou: - Essas senhoras desconhecerão, porventura,os editos imperiais que visam à eliminação do Cris-tianismo? Que descaso das leis?. . Enfim, contri-buiremos também, de algum modo, para que as

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autoridades fixem esse novo foco doutrinário. De-pois dos teus informes, falarei com Quinto Bíbuloa respeito. Hatéria e Cláudia palestraram ainda algumtempo, examinando os detalhes de suas intençõescriminosas e assentando os projetos nefandos eadequados ao caso. Pela manhã do dia imediato, uma liteira mo-desta saía do palácio do prefeito, conduzindo alguémque se ausentava de casa com a máxima discrição. Era Cláudia Sabina, que, em trajes muito sim-ples, mandava seguir para a Suburra. Após exaustivo trajeto, mandou que os escra-vos de confiança a esperassem em local convencio-nado e internou-se, sozinha, por vielas ermas epobres. Atingindo um quarteirão de casas humildes epequeninas, parou subitamente como se desejassecertificar-se do local, fixou à pequena distânciauma casa esverdeada, de feição característica, quea diferenciava de todas. A esposa de Lólio Úrbico esboçou um sorrisode satisfação e, estugando o passo, bateu à portacom visível interesse. Daí a momentos, uma mulher velhíssima e demá eatadura, cabelos desgrenhados e largos vincosa lhe enrugarem o rosto, veio atendê-la com expres-são de curiosidade nos olhos empapuçados e pe-queninos. Observando a visitante, que ostentava uma togasimples, mas rica, além da rede dourada a pren-der-lhe a cabeleira graciosa e abundante, a velhasorriu satisfeita, farejando a boa situação finan-ceira da cliente que lhe buscava os serviços. - É aqui - perguntou Cláudia com mal dis-

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farçada modéstia - que reside Plotina, antigapitonisa de Cumas? - Sim, senhora, sou eu mesma, para vos ser-vir. Entrai. Minha choupana honra-se com a vossavisita. A esposa do prefeito sentiu-se bem com a re-cepção bajuladora e fingida. - Necessitando de sua cooperação - disse avisitante, penetrando o interior com desembara-ço -, vim procurá-la, em vista da recomendaçãode uma das minhas amigas de Tibur. - Muito grata, minha senhora, espero corres-ponder à vossa confiança. - Disseram-me que não precisaria expor oobjeto de minha consulta. Será, de fato, assim?. . - Perfeitamente - esclareceu Plotina com asua voz enigmática -, meus poderes ocultos dis-pensam qualquer explicação da vossa parte. Sentando-se num velho divã, Sabina reparouque a feiticeira buscara uma trípode e colocara jun-to da mesma numerosos amuletos, nos quais se es-batia a mortiça claridade de pequena tocha, acesapara atender às necessidades do momento. Em se-guida, depois de atitude contemplativa e descansa-da, Plotina deixou pender a cabeça entre as mãos,ostentando uma palidez cadavérica, como se a suavidência misteriosa estivesse a devassar as maissinistras miragens nos planos invisíveis. Cláudia Sabina seguia-lhe os mínimos movimen-tos com singular interesse, entre o temor e a sur-presa do desconhecido, mas, dentro em pouco, afisionomia da intermediária entre o mundo e asforças do plano invisível normalizava-se, atenuan-do-se-lhe as contrações nervosas do rosto e extin-guindo-se as expressões de profundo cansaço, que

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lhe escapavam dos lábios intumescidos. De semblante sereno e curioso, como se a almahouvera regressado de misteriosas paragens com asmais vastas revelações, tomou as mãos aristocrá-ticas de Cláudia, exclamando em tom discreto: - Disseram-me as vozes que amais a um ho-mem, preso a outra mulher pelos laços mais santosdesta vida. Porque não evitar a tempo uma tem-pestade de amarguras que recairá, mais tarde, sobreo vosso próprio destino? Viestes até aqui em buscade um conselho que vos oriente as pretensões, masseria melhor abandonardes todos os projetos quetendes em mente . . Cláudia Sabina ouvia-a, assustada, mas obtem-perou com veemência : - Plotina, conheço a elevação da tua ciênciae venho recorrer aos teus conhecimentos com umaconfiança absoluta! Se a tua visão pode devassaro passado, procura fixar no presente a única preo-cupação da minha vida... Ajuda-me! Recompensa-rei regiamente os teus serviços! A consulente abriu a bolsa referta, deixandocair grande porção de moedas na trípode, como sedespejasse ali uma catadupa de sestércios, enquan-to a velha bruxa arregalava os olhos, na cupideze na ambição dos seus baixos sentimentos. - Senhora - disse ela desejosa de alcan-çar os proventos de tão grandes recursos financei-ros -, já vos dei o primeiro conselho, que é o dasabedoria que me assiste; mas também sou huma-na e quero corresponder à vossa generosidade. Co-nheço os projetos que vos animam e procurareiauxiliar-vos, a fim de que possais levá-los a bomtermo !... Cumpre-me, porém, esclarecer que a vossarival está assistida por uma figura angélica, embora

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eu não possa saber se essa criatura vive na Terraou no Céu. No meu poder oculto, vi a mulherque odiais nimbada pela aura intensa de um anjo,junto dela. E, como se estivesse travando um duelo deconsciência, em face da invejável situação finan-ceira da consulente, acrescentou: - Precisamos muito cuidado, senhora. . . Essacriatura celeste pode defender a vossa rival de todosos sofrimentos estranhos ao seu destino... - Mas, como pode ser isso ? ! - perguntouCláudia Sabina profundamente impressionada. - Não terá filhos a vossa rival e, entre eles,não existirá algum de coração puro e piedoso? - Sim - exclamou a interpelada algo contra-feita -, embora não saiba se alguma de suas filhasse encontra em tais condições. Entretanto, não ve-nho aqui para cuidar desse assunto e sim do meupróprio interesse passional. Porque me falas, pois,dessa defesa angélica incompreensível para mim? - Senhora, hei-de ajudar-vos com todas asminhas forças, pois tenho necessidade de dinheiropara atender a necessidades numerosas e premen-tes, mas devo afiançar-vos que correremos o riscode perder nosso esforço, porque um anjo de Deuspode aparar os golpes do mal, visto não existir osofrimento qual o entendemos, para os seus cora-ções purificados. Enquanto a inquietação e a dorpodem arrastar as almas vulgares ao torvelinhodas paixões e padecimentos do mundo, o Espíritoque se redimiu realizou em si a edificação da fé,que o liga a Deus Todo-Poderoso. Para esses co-rações imaculados, senhora, a Terra não pode en-gendrar o tormento ou o desespero ! Cláudia escutava-lhe as ponderações, eminen-

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temente impressionada, mas, observou com o seuespírito expedito : - Plotina, eu prefiro não acreditar nessa de-fesa, aceitando a cooperação dos teus poderes ocul-tos, plenamente confiada no êxito de minhas pre-tensões. Não me faças andar contigo em digressôesfilosóficas, pois quero viver a minha própria rea-lidade. Dize-me! Que sugeres a favor da minhafelicidade ? - Em face da vossa decisão, temos de recor-rer aos fatos mais concretos. - Acreditas que deva cogitar da eliminaçãoda mulher que odeio ? - Na vossa situação e em vosso caso, nãodevereis pensar no aniquilamento do seu corpo, masna flagelação da alma, considerando que a únicamorte que se deve aplicar a um inimigo é a quese impõe a uma criatura fora do sepulcro e emplena vida. - Tens razão - murmurou Sabina interessa-da. - Teus argumentos são mais inteligentes emais práticos. Quais os teus conselhos a meu favor? Plotina fez longa pausa, como se fora formu-lar nova consulta íntima, ante a luz da tocha pe-quenina e bruxuleante, acrescentando em seguida: - Senhora, já tivestes o poder de transpor-tar provisoriamente para Tibur o homem amado..Devo informar-vos de que o Imperador Élio Adria-no, antes de retirar-se para os seus palácios emconstrução, na cidade aludida, onde deverá aguar-dar o fim da existência, há-de fazer uma últimaviagem pelas Províncias, obedecendo à sua conhe-cida vocação... Sereis compelida a acompanhar--lhe o séquito, entrevendo-se aí a oportunidade deseguir, igualmente, o homem da vossa dileção.

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- Sim? - perguntou Cláudia visivelmente sa-tisfeita. - E que me aconselhas? Plotina inclinou-se, então, colando os lábiosrente aos seus ouvidos, sugerindo-lhe um plano ter-rível e criminoso, que a consulente acolheu comum sorriso significativo. Palestraram ainda, largo tempo, como se assuas mentes se casassem com absoluta sintonia deprincípios, dentro das mesmas intenções e fins, no-tando-se que, ao despedir-se, Cláudia averbou asnecessidades da sua nova cúmplice, prometendo-lheprovidências confortadoras, depois de lhe entregartodo o dinheiro que trazia. Daí a algumas horas, a mesma liteira modestaregressava ao palácio de Lólio Úrbico, pela portados fundos. Dois dias depois, vamos encontrar, em casa deHelvídio Lucius, Alba Lucínia e sua amiga fiel, emconversação discreta no apartamento mais recôn-dito da casa. Túlia Cevina apresentava as melhores disposi-ções físicas, apesar da preocupação que lhe vagavanos olhos, não acontecendo o mesmo à esposa deHelvídio que, reclinada no leito, dava mostras domais fundo abatimento. - Lucínia, minha querida - exclamou Túliaafetuosa -, já estou avisada de que a reunião seefetuará esta noite. Estou à tua disposição parairmos sem receio. Poderemos sair às primeiras horasda tarde. - Impossível - replicou a pobre senhora, vi-sivelmente enferma e acentuando as palavras comdolorosa melancolia -, sinto-me profundamente can-sada e abatida! . . Entretanto, decidi no coraçãoque recorrerei a essas preces!... Necessito de algo

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sobrenatural que me devolva a paz do espírito. Éimpossível prosseguir nesta angústia moral que meinutiliza todas as forças. Lágrimas amargas lhe cortaram a palavra entristecida. - Irei de qualquer modo - disse Túlia abra-çando-a -, tenho fé em que o novo deus nos va-lerá na situação de penosa incerteza em que teencontras!. . Observando-lhe a dedicação meiga e constante,Alba Lucínia advertiu: - Querida, não me conformaria em saber quefôste só. Pedirei a Célia que te acompanhe. Túlia esboçou um sorriso de satisfação, enquan-to a amiga ordenou a uma jovem escrava fossechamar a filha. Daí a instante, surgia a donzela com o seuperfil gracioso. - Célia - disse-lhe a genitora, sensibilizadae melancólica -, poderás ir hoje à noite, em com-panhia de Túlia, a uma reunião cristã, a fim de fa-zeres uma prece pela tranqüilidade de tua mãe?. . A moça teve um gesto de surpresa, mas amplosorriso de satisfação lhe aflorou aos lábios. - Que não faria por ti, mãezinha? E beijou-a. Alba Lucínia sentiu o conforto imenso daquelaternura, acrescentando: - Filhinha, sinto-me cansada, doente e de-liberei recorrer a Jesus de Nazaré, com as tuasorações. Sabes, porém, da necessidade de não nosexternarmos com pessoa alguma a esse respeito,compreendes ? A jovem fez um gesto expressivo, como quemse recordava das próprias mágoas, exclamando : - Sim, minha mãe. Fica tranqüila. Irei comTúlia, seja aonde for, de modo a fazer as preces

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necessárias! Rogarei a Jesus que te faça ditosae espero que a sua infinita bondade derramará emteu coração o bálsamo suave do seu amor, que nosenche de vida e de alegria. Então, verás como ener-gias novas hão-de felicitar o teu íntimo.. Túlia Cevina ouvia, muito interessada, aquelesconceitos, admirando os conhecimentos da jovem,o que Lucínia logo esclareceu, abraçando a filhaternamente : - Célia conheceu intimamente, na Judéia, osassuntos atinentes ao Cristianismo. Minha filhinha,apesar de muito nova, tem sofrido bastante.. Célia, no entanto, percebendo que a palavramaterna entraria em pormenores do seu dolorosoromance de amor, exclamou com ternura: - Ora, mãezinha, que poderia eu sofrer se te-nho sempre o teu afeto comigo? E cortando o assunto relativo ao seu caso pes-soal, obtemperou : - A que horas deveremos sair? - A tarde - informou Túlia -, porquanto acaminhada não será pequena; a reunião é além daPorta Nomentana. - Estarei preparada a tempo . As três combinaram, então, todas as providên-cias que lhes pareceram indispensáveis e, ao cairda noite, envoltas em togas muito simples, Túliae Célia tomaram uma liteira, que lhes evitou o can-saço em grande parte do caminho, através dos pon-tos mais freqüentados da cidade. Descendo junto à Porta Vicinal e dispensandoos carregadores, empreenderam a caminhada cora-josamente . A noite desdobrava o seu leque de sombras aolongo da planície. Fazia frio, mas as duas amigas

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agasalharam-se nas capas de lã que levavam, ocul-tando a cabeça na peça grossa e escura. Era noite fechada quando atingiram as ruínasda antiga muralha, que fortificara a região em ou-tros tempos, mas avançavam sem desânimo, atravésdas estradas extensas. . Franqueada a Porta Nomentana, viram-se àfrente das colinas próximas, ao longo das quaisse alinhavam cemitérios desertos e tristes, onde oluar se derramava em tons pálidos . A medida que se aproximavam do local daspregações, observavam um número cada vez maiorde viandantes, que se aventuravam pelas mesmastrilhas com idênticos fins. Eram vultos embuçadosem longas túnicas escuras, que passavam de flan-co, a passo apressado ou vagaroso, uns silencio-sos, outros mantendo diálogos quase imperceptíveis.Muitos empunhavam lanternas pequeninas, auxilian-do a visão dos companheiros, onde a claridade fracado astro noturno não conseguia espancar as som-bras espessas. As duas patrícias, vestidas com simplicidadeextrema e envergando os pesados mantos, não po-diam ser identificadas na sua posição social, peloscompanheiros que se dirigiam ao mesmo destino,os quais as consideravam cristãs como eles próprios,agermanados na fé e no mesmo idealismo . Defrontando os muros lodosos que circundavamgrandes monumentos em ruínas, Túlia certificou-sedo local que dava acesso ao recinto, fazendo umsinal da cruz característico a dois cristãos que, nospórticos, recebiam a senha de todos os prosélitos,senha que se constituía desse mesmo sinal traça-do com a mão aberta, de modo especialíssimo, masde imitação muito fácil. Ambas passaram, então,

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ao interior da necrópole, sem pormenores dignos demenção . No interior, toda uma multidão se acomodavaem bancos improvisados, salientando-se que, de ummodo geral, todos traziam os capuzes levantados,ocultando o rosto, alguns receando o frio intensoda noite, outros temendo os lobos da traição, queali poderiam comparecer com a máscara de ovelhas. A claridade lunar que banhava o recinto eraauxiliada pela luz de tocheiros e lanternas, mor-mente em torno de um monte de ruínas fúnebres,de onde deveria falar o apóstolo daquele grupo deseguidores do Cristo. Aqui e ali, alguém balbuciava uma prece, bai-xinho, como se estivesse falando ao Cordeiro doCéu, no altar do coração ; mas, do centro da massa,elevavam-se hinos cheios de sublimada exaltaçãoreligiosa. Eram cânticos de esperança, tocados desingular desalento do mundo, exteriorizando o so-nho cristão de um reino maravilhoso além das nu-vens . Em cada verso e em cada tonalidade dasvozes em conjunto, predominavam as notas de umatristeza dolorosa, de quem havia abandonado todasas ilusões e fantasias terrestres, entregando-se àrenúncia de todos os prazeres, de todos os bens davida, para esperar as recompensas luminosas deJesus, nas bem-aventuranças celestes. .. Nos bancos improvisados, de madeira tosca oude pedras esquecidas, acomodavam-se centenas depessoas, concentradas em absoluto recolhimento. Silêncio profundo reinava entre todos, quandoum estrado carcomido foi transportado para o localonde se centralizavam quase todas as luzes. Célia e Túlia tomaram o lugar que lhes pare-ceu mais conveniente, mas, daí a minutos, novo

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cântico se elevava ao Infinito, em vibrações de be-leza indefinível... Era o hino de agradecimentoao Senhor pela sua misericórdia inesgotável; cadaestrofe falava dos exemplos e martírios de Jesus,com sentimento repassado da mais alta inspiração. Qual não foi a admiração de Túlia Cevina,quando viu a companheira erguer também a voz,acompanhando o canto dos cristãos como se o sou-bera de cor com sua garganta cristalina. A mulherde Máximo Cunctator não sabia dissimular a emo-ção, contemplando Célia a cantar, qual se fosseuma ave exilada do Paraíso ! . . . Seus olhos calmosestavam fixos no firmamento, onde parecia divisaro país da sua bem-aventurança, entre as estrelasque lucilavam no alto, como sorrisos carinhosos danoite, e aqueles versos, inspirados na música quelhes era peculiar, escapavam-se dos seus lábios comtal riqueza melódica, que a amiga se comoveu atéàs lágrimas, sentindo-se transportada a uma regiãodivina. . . Sim, Célia conhecia aquele cântico que lhe en-chia o coração de brandas reminiscências. Ciro lhohavia ensinado sob as árvores frondosas da Pa-lestina, para que a sua alma soubesse interpretaro reconhecimento a Deus, nas horas de alegria.Naquele instante, em comunhão com todos aquelesespíritos que vibravam também a sua fé, ela sen-tia-se distante da Terra, como se a alma fosse to-cada de um júbilo divino . . . Fazendo-se silêncio novamente, um homem dopovo, de nome Sérgio Hostílio, assomou à tribunaimprovisada, exclamando, comovido, após abrir umrolo de pergaminhos: - Meus irmãos, estudaremos ainda hoje os en-sinamentos do Mestre, nos capítulos de Mateus,

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versando a lição desta noite : "aqueles que são osverdadeiros irmãos do Messias!..." E, desenrolando a folha que o tempo desbo-tara, Sérgio Hostílio leu pausadamente : "Estando Jesus a pregar ainda para a multi- dão, sua mãe e seus irmãos de fé, do lado de fora, procuravam falar-lhe. Então alguém lhe obser- vou: - "tua mãe e teus irmãos encontram-se aí fora, procurando-te". Respondendo a quem o ad- vertira, disse o Mestre : "Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?" E, estendendo a mão para todos os seus discípulos e seguidores, excla- mou : - "Eis aqui minha mãe e meus irmãos, por- quanto, quem quer que faça a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe." Terminada a leitura evangélica, o mesmo com-panheiro de crença, que ocupava a tribuna, falousensibilizado : - Meus amigos, falta-me o dom da eloquên-cia para ministrar o ensinamento ; convido, pois, aalgum dos nossos irmãos presentes para que desen-volva os precisos comentários desta noite... Todos os olhares, inclusive o de Túlia Cevina,se alongaram, ansiosos, buscando a venerável figu-ra de Policarpo, o abnegado apóstolo de todas asreuniões. Túlia Cevina verificava a sua ausênciacom grande desapontamento, em vista da fé nassuas orações e nas suas palavras sábias e benevo-lentes; mas Sérgio Hostílio explicou com a voz to-cada de amargura : - Irmãos, vossos olhos procuram Policarpo,ansiosamente, mas, antes de vos fornecer notíciasdele, elevemos o coração até Aquele que não des-denhou o ultraje e o sacrifício...

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O apóstolo da nossa fé, apesar da sua velhicesantificada, por ordem do Subprefeito Quinto Bí-bulo, foi recolhido na manhã de ontem aos cárceresdo Esquilino ! Imploremos a misericórdia de Jesus para quepossamos aceitar o cálice de nossas dores, com re-signação e humildade. Muitas mulheres começaram a chorar a au-sência daquele grande varão, a quem amavam comopai, e, depois de alguns minutos, em que ninguémse abalançou a substituir-lhe o ensinamento sábioe amoroso, um homem da plebe caminhou até àtribuna e descobriu-se, fazendo o sinal da cruz, to-mado de fervorosa religiosidade. A claridade das tochas iluminou-lhe os traçosfisionômicos, ao mesmo tempo que Célia e a com-panheira lhe identificaram o semblante humilde edecidido. Aquele homem era Nestório, o liberto de Hel-vídio, que, embora auxiliando o censor Fábio Cor-nélio no próprio gabinete da Prefeitura dos preto-torianos, não se envergonhava de dar o público tes-temunho da sua fé.

A Pregação Do Evangelho

Saudado pelo olhar ansioso e confiante de to-dos, Nestório começou a falar, com a sua sinceri-dade comovida: - Irmãos, sinto que a minha indigência espi-ritual não pode substituir o coração de Policarponesta tribuna, mas o fogo sagrado da fé precisamanter-se nas almas! Assumindo a responsabilidade da palavra, estanoite, recordo a minha infância para vos dizer que

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vi João, o apóstolo do Senhor, que, por longos anos,iluminou a igreja de Éfeso! O grande evangelista, nos seus arroubos de fé,falava-nos do céu e de suas visões consoladoras..Seu coração estava em permanente contacto com odo Mestre, de quem recebia a inspiração divina,como derradeiro discípulo na Terra, santificando-seas suas lições e as suas palavras com o soprosublimado das verdades celestes!. . Invoco estas reminiscências longínquas, pararecordar que o Senhor é a misericórdia infinita.Na minha pobreza material e moral, não tenho vi-vido senão pela sua bondade inesgotável e queroinvocar a sua assistência caridosa para o meu co-ração, neste momento. Desde criança, tenho os olhos voltados paraos sublimes ensinamentos do seu amor e parece-me,também, havê-lo visto no seu apostolado de luz,pela nossa redenção, na face escura da Terra. Asvezes, como que impulsionado por um mecanismode emoções maravilhosas, tenho a doce impressãode ainda o estar vendo junto ao Tiberíades, a en-sinar a verdade e o amor, a humildade e a sal-vação!. . Figura-se-me, frequentemente, que aque-las águas claras e sagradas cantam-me no coraçãoum hino de eterna esperança e, apesar dos véusespessos da minha cegueira, sinto que o contemploem Nazaré ou em Cafarnaum, em Cesárea ou emBetsaida, arrebanhando as ovelhas desgarradas doseu aprisco. Sim, irmãos, o Mestre nunca nos abandonou,no seu apostolado divino. Seu olhar percuciente vaibuscar o pecador no mais recôndito socavão da ini-quidade, e é pela sua ternura infinita que conse-guimos caminhar indenes nos desfiladeiros do crime

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e do infortúnio ! . . . Por muito tempo, falou Nestório das suas lem-branças mais gratas ao coração. Sua infância na Grécia, as descrições suaves deJoão Evangelista aos discípulos queridos; as prega-ções e exemplos do Senhor, suas visões nos planoscelestiais, as reminiscências do Presbítero Johanes,a quem o inesquecível apóstolo havia confiado ostextos manuscritos do seu evangelho, era tudo ex-posto à assembléia pelo liberto, com as cores maisvivas e impressionantes. Ouvia-lhe o auditório a palavra, comovido, comose os Espíritos, transportados ao pretérito nas asasda imaginação, estivessem contemplando todos osacontecimentos relacionados com a narrativa . A própria Túlia Cevina, que não conhecia oCristianismo senão pela rama, mostrava-se pro-fundamente sensibilizada. Quanto a Célia, acolhia-oalegremente, admirando-lhe a coragem e a fé, emface da sua futurosa posição material junto deseu pai, e meditando, ao mesmo tempo, na circuns-tância de ele nunca haver revelado suas crenças,nem mesmo nas aulas que lhe ministrara, eviden-ciando assim o respeito que lhe mereciam as cren-ças alheias. Depois de relatadas as reminiscências de Efesocom os seus vultos mais eminentes, falou paracomentar a leitura da noite: - Para tanger o ponto evangélico desta noi-te, lembremos que Jesus não podia condenar oslaços humanos e sacrossantos da família, mas suaspalavras, proferidas para a Eternidade, abrangeme abrangerão todas as situações e todos os séculosvindouros, de modo a demonstrar que a fraterni-dade é o seu alvo e que todos nós, homens e gru-

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pos, coletividades e povos, somos membros de umacomunidade universal, fraternidade, essa, que umdia nos integrará a todos como irmãos bem-amados,e para sempre. Seus ensinamentos referiam-se àqueles que,cumprindo a vontade soberana e justa do Pai queestá nos céus, marcham na vanguarda dos caminhoshumanos, em demanda do seu reino de amor, cheiode belezas imperecíveis! Os que sabem acatar, neste mundo, os desíg-nios de Deus, com humildade e tolerância, com re-signação e com amor, chegarão mais depressa juntodaquele que se nos revelou há cem anos como Ca-minho, Verdade e Vida! Esses Espíritos amorosose justos, que se iluminaram interiormente pela com-preensão e aplicação dos ensinos em toda a vida,estarão mais perto do seu coração misericordioso,cujas pulsações sagradas repercutem em nosso pró-prio ser, pela magnanimidade infinita que sentimosem torno de nossa alma, em todos os passos destavida ! . . Tais criaturas são desde já seus irmãosmais próximos, pela iluminação evangélica no cum-primento das leis do amor e do perdão. Dentro, pois, dessas luzes prodigiosas da Ver-dade, sentimo-nos compelidos a dilatar o conceitode família no plano universalista, alijando o crimi-noso egoísmo que, por vezes, nos toma de assaltoo coração, criando os germes da discórdia e dosofrimento no próprio lar. Se um homem é a partícula divina da cole-tividade, o lar é a célula sagrada de todo o edifícioda civilização. Um homem divorciado do bem eum lar envenenado pelos desvios do sentimento,operam os desequilíbrios singulares que atormen-tam os povos!. .

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Jesus conhecia todas as nossas necessidadese ajuizou de nossa situação, não apenas em vistada época que passa, mas de todos os séculos dofuturo. Acredito que o Evangelho não poderá ser in-tegralmente compreendido em nossos tempos amar-gos de devassidão e decadência; todavia, enquantoas forças mais poderosas do mundo se concentramneste Império cheio de orgulho e impiedade, outrasenergias profundas trabalham o seu organismo ator-mentado, preparando o advento das civilizações doporvir. Até agora, as águias romanas dominam todasas regiões e todos os mares; mas dia virá em queesses símbolos de ambição e tirania hão-de rolardos seus pedestais, numa tempestade de cinzas ede sombras!. . Outros povos serão chamados adirigir os movimentos do mundo . Mas, enquantoo espírito agressivo da guerra permanecer entreos homens, qual monstro de ruína e de sangue, ésinal de que as criaturas não se realizaram inte-riormente para serem os irmãos do Mestre, purose pacíficos. A Terra viverá as suas fases evolutivas dedor e de experiências dolorosas, até que a com-preensão perfeita do Messias floresça em todo omundo, para as almas. Até agora, o Cristianismo tem medrado comas lágrimas e o sangue de seus mártires; mas osEspíritos do Senhor, cujas vozes ouvi na mocidadenas sagradas reuniões da igreja de Efeso, asseve-ravam aos discípulos de João que, não levará mui-to tempo, o proselitismo do Cristo será chamadoa colaborar nas esferas políticas do mundo, paradissipar a treva e a confusão da sua rede de en-

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ganos.. Nessa época, meus irmãos, talvez que a doutrinado Mestre venha a sofrer o insulto daqueles quenavegam no vasto oceano dos poderes terrestrescheios de vaidade e despotismo. É possível queespíritos turbulentos e endurecidos tentem subver-ter os valores da nossa fé, desvirtuando-a com asexterioridades do politeísmo, mas, ai dos que ope-rarem semelhante atentado, em face das verdadesque nos orientam e consolam ! . . Nos esforços da fé, jamais esqueçamos a exor-tação do Senhor às mulheres de Jerusalém, quepranteavam ao vê-Lo avergado sob o madeiro in-famante: - "Filhas de Jerusalém, não choreis pormim ! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos,porque dias virão em que se dirá: - Ditosas asestéreis, ditosos os ventres que nunca geraram eos seios que nunca amamentaram! Pôr-se-ão todosos homens a dizer aos montes: Caí sobre nós! eàs colinas: Cobri-nos! Porque, se assim procedemcom o lenho verde, que se fará, então, com o lenhoseco ? !" Ai de quantos abusarem em nome da aqueleque nos assiste do Céu e conhece nossos mais re-cônditos pensamentos, pois, mais tarde, conforme oprometeu, a luz do Alto se derramará sobre todaa carne e a voz dos céus será ouvida na Terra,através dos mais doces ensinamentos e das maiselevadas profecias! Se falharem os homens, hão-devir até nós os exércitos de seus anjos, atestando asua misericórdia... E que, meus irmãos, o reino de Jesus deveser fundado sobre os corações, sobre as almas, enão poderá conciliar-se nunca, neste mundo, comqualquer expressão política de egoísmo humano ou

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de doutrinas de violência, que estruturam os Esta-dos da Terra! O reino do Senhor sofrerá, por muito tempo,"a abominação do lugar santo", pela falsa inter-pretação dos homens, mas chegará a época em quea Humanidade, hoje decadente e corrompida, sesentirá a caminho de uma Jerusalém gloriosa elibertada!... Guardemos na mente a convicção de que oreino de Jesus não está nos templos ou nos ma-nuscritos materiais que o Tempo se incumbirá deaniquilar em sua passagem incessante e, sim, queos alicerces divinos têm de ser construídos no ín-timo do homem, de modo que cada alma possa edi-ficá-lo por si mesma, à custa de esforços e lágri-mas, a caminho das moradas gloriosas do Infinito,onde nos aguardarão, depois da jornada, as bên-çãos do Cordeiro de Deus, que se imolou na cruz,para nos redimir do infortúnio e do pecado!... Depois de uma prece, Nestório terminava sobo olhar carinhoso e comovido de quantos lhe acom-panharam a palavra fluente, através das conside-rações de ordem evangélica. Alguns assistentes choravam, sensibilizados, ca-sando as impressões do orador com as suas próprias. Nessas assembléias primitivas, quando o mes-sianismo doutrinário estava saturado de ensinamen-tos puros e simples, o expositor da Boa Nova eraobrigado a elucidar os pontos evangélicos em rela-ção com a vida prática de alguém que estivesseem dúvida. Assim foi que, após a elocução, numerososconfrades se acercaram do prolator, solicitando-lhea opinião fraterna e simples. - Meu amigo - perguntava um dos estudio-

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sos presentes -, como explicar a diferença sensívelentre os evangelhos de Mateus e de João, ou entreas narrações de Lucas e as epístolas de Paulo?Não foram todos apóstolos do ensinamento cristãoe inspirados do Espírito Santo? - Sim - esclareceu o interpelado -, mas con-venhamos que a cada trabalhador concedeu Jesusuma tarefa. Se Lucas e Mateus nos mostraramo pastor de Israel encaminhando as ovelhas tres-malhadas ao aprisco da verdade e da vida, Pauloe João nos revelaram o Cristo Divino, Filho doDeus Vivo, na sua sublimada missão universalista,a redimir o mundo . - Nestório - obtemperava outro, pouco ze-loso da paz interior pela meditação e pelo estu-do -, que será de mim, vitimado pelas intrigas ecalúnias dos vizinhos?. . Quero aprender e progre-dir na fé, mas a provocação da maledicência nãomo permite . - E, acaso poderás ir a Jesus, deixando-teencarcerar pelas opiniões do mundo?! - explicavasolícito o liberto de Helvídio. - A ciência do bem--viver não está somente em nos não incomodarmoscom os pensamentos e atos de quem quer que seja,mas em deixar, também, que os outros se impor-tem constantemente com a nossa própria vida. - Mestre - exclamava ainda uma senhora desemblante idoso e triste, dirigindo-se ao ex-escra-vo -, meus sofrimentos extravasam do cálice ! . . .Rogai por mim para que Jesus me atenda às ro-gativas! . - Irmã - respondia Nestório algo veemen-te -, esquecestes que Jesus recomendou jamais noschamássemos "mestres" uns aos outros? Não sousenão servo humilde dos seus servos, indigno de

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sacudir o pó das sandálias do único e divino Mes-tre . Não vos entregueis a tristezas e lamentações,porque, no problema da fé, somente vós mesmapodereis dar a Jesus o testemunho do vosso amore da vossa confiança. Ao demais, importa lembrarque a Terra não é o Paraíso, atentos à recomen-dação do Messias de que, para atingir a venturacelestial, é preciso tomar com humildade a nossacruz, e segui-Lo . Nesse instante, rompendo a multidão de cren-tes em redor, Nestório reconheceu Célia e Túlia,que se acercavam atenciosamente . O liberto sau-dou-as tomado de surpresa, enquanto a jovem lhedirigia palavras de júbilo e simpatia . - Nestório - exclamou Célia, radiante -, por-que nunca me falaste das tuas convicções, datua fé? - Filha, nada obstante o meu fervor cristão,não podia menosprezar os princípios da famíliaque me concedeu a liberdade. Ambos estavam alegres e felizes, experimen-tando o contentamento da mútua comunhão na mes-ma fé, quando uma surpresa maior lhes abalou oespírito. Enquanto a maioria dos companheiros se pu-nha a caminho, de regresso à cidade, pois que amadrugada se avizinhava, destacou-se de todos osgrupos um jovem forte e simpático, que se apro-ximou da tribuna com os olhos fulgurantes de ansie-dade e alegria. Acercou-se de Nestório e de Célia,com os braços estendidos, ao mesmo tempo que oliberto e a jovem patrícia exclamavam, com a mes-ma voz, tocada de emoção e profundo júbilo : - Ciro ! . . Ciro ! . . - Meu pai ! Célia !

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E o mancebo quase os reuniu no mesmo am-plexo de amor e felicidade. Túlia Cevina contemplava a cena comovedora,com o coração em sobressalto. Alba Lucínia já lhefalara do drama íntimo da filha e a mulher deMáximo custava a conformar-se com a circunstân-cia de haver conduzido a jovem àquele encontro deconseqüências imprevisíveis. A ausência de Policarpo, que a inibia de so-licitar a prece pela ventura doméstica da amiga,segundo a sua fé; o fato de se haverem avistadocom Nestório, quando preferia o segredo de suapresença ali e o encontro inesperado de Ciro, eramacontecimentos que a contrariavam profundamente,mas Célia, radiante, sem poder traduzir o seu jú-bilo com o saber que Nestório era pai do seu noivoespiritual, apresentou-lhe o jovem que a patríciafoi obrigada a saudar atenciosamente, em virtudedas circunstâncias. O ex-cativo abraçava o filho com os olhos úmi-dos de pranto, enviando a Jesus o seu íntimo re-conhecimento e manifestando a sua real surpresaao saber que o filho era também um liberto deHelvídio Lucius, aumentando, assim, o seu reco-nhecimento pelos seus libertadores. E, enquanto todos se retiravam, o grupo pa-lestrava com crescente interesse. A uma pergunta de Célia, o jovem explicouque no porto de Cesárea fora entregue ao coman-dante Quinto Vetus, que, amigo pessoal de Hel-vídio, fizera absoluta questão de lhe conservar aliberdade, conduzindo-o às costas da Campânia, comexcepcional gentileza. Dali, uma embarcação o trou-xera até Õstia, entre o pessoal da equipagem, deli-berando ele então permanecer em Roma, na vaga

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esperança de obter notícias do pai ou daquela quelhe enchia o coração de lembranças carinhosas eperenes. Célia sorria, satisfeita, sentindo-se, naquele ce-mitério ermo e triste, a mais ditosa das criaturas. O luar, porém, já havia desaparecido. Apenasas estrelas, no manto escuro do firmamento, bri-lhavam com cintilações mais intensas, preludiandoo dealbar da aurora. Túlia Cevina lembrou, então, a conveniênciade regressarem quanto antes. Nestório sentia-se possuído do imenso desejode ouvir o filho a respeito de todos os fatos dopassado, de modo a conhecer os mais íntimos por-menores da sua separação dolorosa e longa, mas,observando a sua intimidade com a jovem patrícia,abstinha-se de muitas palavras, guardando atitudeexpectante e calma, embora adivinhasse o romancede amor daquelas duas criaturas mal saídas daadolescência. O ex-escravo mantinha a sua atitudereservada e, enquanto Túlia Cevina se mostravaapreensiva, os dois jovens falavam, em todo o tra-jeto, de suas reminiscências ou de suas esperançasem Jesus, à claridade amiga das estrelas que em-palideciam no firmamento. De mistura com os regressantes, vinham, agora,campônios descuidados e felizes, que se dirigiamao pequeno perímetro urbano nas primeiras horasda madrugada, levando os produtos do seu campopara as feiras. Todavia, no grupo das nossas per-sonagens, ninguém observou que dois vultos asseguiam de perto com insistente atenção, emborairreconhecíveis, em razão dos capuzes que lhes co-briam o rosto. Nestório e Ciro acompanharam as duas patrí-

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cias até às proximidades da residência de HelvídioLucius onde Túlia Cevina se recolheu, em identi-dade de circunstâncias, obedecendo ao plano pré--estabelecido voltando pai e filho pelos mesmoscaminhos, até próximo da Porta Salária, onde seacomodaram no apartamento do primeiro. Foi aí que Nestório, absolutamente insone, emvirtude das emoções daquela noite, ouviu a nar-rativa do filho até ao amanhecer, canacitando-se deque uma nova fase de sacrifícios lhe seria impostapelas circunstâncias em jogo. O Sol já havia espalhado seus raios de ouropor toda parte, quando o liberto de Helvídio, algoacabrunhado, apesar do júbilo de rever o filho es-tremecido, falou-lhe, abraçando-o com ternura: - Meu filho, regozijo-me no Senhor pela ale-gria de te encontrar livre e salvo, com o pensa-mento iluminado pelas nossas profundas esperançasem Jesus - Cristo, mas temo por ti, doravante, comopai extremoso e desvelado. Acredito que, apesar da fé que me testemu-nhas, não soubeste dominar o coração moço e idea-lista, no momento oportuno, pois, já que entendiasa vida qual a compreendes agora, estavas apto areconhecer a inutilidade de qualquer fantasia noque se refere às venturas transitórias do mundo !..Mas, por outro lado, louvo-te a conduta honestae me rejubilo com o teu esforço na santificação doteu afeto. Sou de opinião que seremos agora chamadosaos mais penosos testemunhos de coragem moral,porquanto a família de Célia não toleraria, jamais,uma pretensão tua... Mas, descansa, filho ! Precisas de energia e derepouso ! Quanto a mim, o sono agora ser-me-ia

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impossível. . . Aproveitarei o tempo para ir ao Ve-labro, onde me guiarei por tuas informações, a fimde transportar para aqui os objetos que te perten-cem e, ao mesmo tempo, avisarei o censor FábioCornélio da impossibilidade de trabalhar hoje. E, acentuando as palavras com um sorriso desatisfação, rematava: - Doravante, estaremos sempre juntos paraa mesma tarefa e aqui permaneceremos até quandoJesus no-lo permita. Ciro, em resposta, beijou-lhe as mãos comovi-damente . Antes de se dirigir ao Velabro, que era umdos bairros mais pobres e mais populares de Roma,o liberto procurou a Prefeitura dos pretorianos, alise avistando com o lictor Domítio Fulvius, pessoade confiança dos seus chefes, solicitando-lhe cien-tificasse o censor do seu impedimento naquele diae providenciando, em seguida, para que a mudançado filho para sua casa se efetuasse com a possívelpresteza. Sentia o coração apreensivo e amargurado emface dos acontecimentos e, todavia, colocava a féacima de tudo, rogando a Jesus lhe concedesse ainspiração devida, para o aclaramento de todos osproblemas. Quanto a Túlia Cevina, algo desapontada, in-formou a amiga, pela manhã, dos fatos singularesque haviam ocorrido. Alba Lucínia ouvia-a, assazsurpreendida, experimentando o coração pejado deamargas expectativas. Chamou a filha ao seu ga-binete de repouso, mas, notando-lhe a serenidadee recebendo-lhe a promessa de guardar inteira ob-servância às recomendações paternas, buscou tran-quilizar-se a si mesma, de modo a minorar as pró-

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prias mágoas. Chegando ao seu gabinete, manhã alta, FábioCornélio foi procurado com insistência por Pausa-nias, que, ainda em Roma, guardava a chefia dosservos da casa de seu genro, e que lhe falou, de-pois de respeitosa reverência: - Ilustre Censor, aqui venho obedecendo a umdesígnio sagrado dos deuses, a fim de vos informarde graves acontecimentos ocorridos esta noite. - Mas, como? graves acontecimentos? - per-guntou o sogro de Helvídio, visivelmente impres-sionado . E Pausanias relatou-lhe, então, todo o ocorri-do asseverando haver seguido as duas senhoras,dado o seu zelo carinhoso por todos os assuntosatinentes ao nome e à posição de seu amo, satu-rando as suas afirmativas de expressões bajula-doras ou exageradas, para melhor impressionar asua autoridade e o seu prestígio. - Mas Nestório é cristão? - interrogou ocensor, admirado. - Custa-me a acreditá-lo . - Senhor, pelas graças de Júpiter, estou afir-mando a verdade! - respondeu Pausanias com asua atitude humilde à frente do mais poderoso . - Helvídio agiu muito precipitadamente - fa-lou o orgulhoso patrício como se estivesse falandopara si mesmo - conferindo a tal homem tama-nha responsabilidade em nossa esfera de trabalho;todavia, tomarei ainda hoje todas as providênciasque o caso requer e agradeço os teus bons serviços. Pausanias retirou-se, enquanto Fábio Cornélioque também não ignorava o romance de Ciro eda neta, tomava-se de cólera contra os dois ex--escravos, que lhe vinham perturbar a tranquili-dade doméstica.

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Considerando a ausência do genro que aindase conservava em Tibur, deu todas as providênciasjulgadas indispensáveis, sem vacilar no cumprimen-to de suas íntimas decisões, em relação ao assunto. Nas primeiras horas da tarde, um destaca-mento de pretorianos chegava à habitação coletiva,onde se alojavam pai e filho, em cumprimento dasordens emanadas da justiça imperial. Chamados, os dois libertos compreenderam agravidade da situação, concluindo que alguém oshouvera denunciado e traído. Abraçaram-se emprece mútua, como se desejassem renovar os pro-testos de confiança e de fé na Providência Divina,prometendo-se um ao outro o máximo de corageme resignação nos transes angustiosos que entre-viam à frente. Junto dos soldados, perguntou Nestório, comserenidade, ao lictor que os chefiava: - Que me queres, Pompônio? - Nestório - retrucou o chefe do destaca-mento, seu conhecido pessoal e seu amigo -, venhoda parte do censor Fábio Cornélio, que ordenoutua prisão, bem como a de teu filho, recomendan-do-nos o máximo cuidado para que não fugissem. Em seguida, mostrou-lhes a ordem manuscri-ta, desenrolando o pergaminho, ao que o libertoretrucou: - Porventura chegaste a supor que te resis-tiríamos? Guarda a ordem e não te preocupes coma espada, pois a melhor arma não é a de quemordena, mas de quem sabe obedecer. Isso posto, os prisioneiros se colocaram à fren-te dos soldados, em direção à Prefeitura, onde ocensor fazia questão de interrogar, a sós, o ex--auxiliar do seu cargo.

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Separado de Ciro, recolhido a uma ante-salasob a vigilância dos pretorianos, foi Nestório con-duzido a um compartimento amplo, onde, minutosapós, chegava o velho romano, evidenciando noolhar a cólera dos seus brios ofendidos. - Nestório - exclamou rudemente -, fui in-formado de graves ocorrências verificadas esta noi-te. Não posso compreender a situação sem te ouvirde perto, de maneira a inutilizares, negativamente,as denúncias trazidas à minha autoridade. - Interrogai, senhor - disse o ex-cativo comrespeitosa tranqüilidade -, e vos responderei com asinceridade do meu caráter. - És Cristão ? - perguntou o censor com pro-fundo interesse. - Sim, pela graça de Deus. - Que absurdo ! - revidou Fábio Cornélioescandalizado. - E porque nos enganaste dessaforma? Consideras razoável zombar da considera-ção que nos é dispensada? É assim que retribuisa estima e confiança a ti dispensadas? - Senhor - retrucou o ex-cativo, penaliza-do -, sempre pautei minhas atitudes no maior res-peito às posições e crenças alheias; quanto a voshaver iludido, peço vênia para esclarecer melhoras vossas afirmativas, pois ninguém, até hoje, meexigiu, aqui, qualquer declaração concernente àsminhas convicções religiosas. Fábio Cornélio compreendeu a serenidade dohomem que tinha à sua frente, considerando inútilapelar para essa ou aquela circunstância, a fim delhe arranjar uma negativa, como remédio à situa-ção delicada entre ambos, e, mirando-o de alto abaixo com profunda altivez, acentuou com energia: - Considero as tuas afirmações afrontosas à

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minha autoridade, além de estar recebendo, simul-tâneamente, da tua parte o máximo de ingratidãopara com quem te ofereceu a mão de benfeitor eamigo . - Mas, senhor, será insulto, porventura, o di-zer-se a verdade ? - perguntou Nestório ansiosopor se fazer compreendido. - E sabes a punição que te espera? - revi-dou o velho censor mal-humorado. - Não posso temer os castigos do corpo, ten-do a consciência tranqüila e edificada. - Isso é demais! Tua palavra será semprea de um escravo intratável e odioso ! . . Basta !Cientificarei Helvídio do teu detestável procedi-mento . E chamando Pompônio Gratus para ouvir-lheas declarações, o orgulhoso patrício retirou-se dorecinto, pisando forte, enquanto Nestório era obri-gado a relatar a sua condição de adepto e propa-gandista do Cristianismo, reafirmando ser pai deCiro e fornecendo outros informes, de maneira asatisfazer a autoridade com a exposição dos seusantecedentes. - Nestório - exclamou Pompônio Gratus,assumindo ares de importância, na qualidade deinquiridor para o caso no momento -, não igno-ras que as tuas afirmativas constituirão a basede um processo, cujo resultado será a tua conde-nação. Sabes que o Imperador tem sido justo emagnânimo para todos os que se arrependem atempo de atitudes como a tua, desarrazoadas e in-felizes. Porque não renuncias, agora, a semelhan-tes bruxedos? - Negar a fé cristã seria trair a própria cons-ciência - replicou o liberto calmamente. - Além

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disso, nada fiz que me pudesse induzir ao arre-pendimento . - Mas não eras um escravo ? Se vieste decondição penosa e miseranda, porque não transigircom as tuas idéias pessoais em sinal de gratidãopara com aqueles que te deram a independência? - No cativeiro nunca deixei de cultivar a ver-dade, como a melhor maneira de honrar os meussenhores; mas, ainda assim, sempre tive um outrojugo, suave e leve - o de Jesus. E agora, acreditoque o Divino Senhor me convoca ao testemunho !.. - Cavas o abismo de teus males com as pró-prias mãos - disse o lictor com indiferença. E acentuando as palavras, com o mais fundointeresse, acrescentou: - Agora, faz-se mister digas onde se reúnemessas assembléias, para que as autoridades se orien-tem na campanha de expurgar a cidade dos elemen-tos mais perigosos. - Pompônio Gratus - replicou Nestório alti-vamente -, não posso esclarecer-te neste particular,pois o sincero adepto de Jesus não conhece a de-lação nem sabe fugir à responsabilidade da sua fé,acusando seus irmãos. O lictor irritou-se, revidando com acrimônia: - E não temes os castigos que te forçarãoa fazê-lo em tempo oportuno? - De modo algum. Chamados ao testemunhode Jesus - Cristo, não podemos temer conveniênciasmundanas. Pompônio, contudo, esboçou um gesto expres-sivo, como quem se havia lembrado de uma pro-vidência nova, e acentuou: - Aliás, temos outros recursos para encontraresses conspiradores idiotas. Ouviremos, ainda hoje,

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nesta chefia, os que prestaram as devidas infor-mações a teu respeito. - Sim - replicou o liberto sem se perturbar -, esses poderão esclarecer melhor a justiça do Império. Em seguida, um grupo de soldados armadosa caráter saía da Prefeitura, escoltando os doisacusados até à Prisão Mamertina, onde foram alo-jados num dos mais úmidos calabouços. Não bastaram somente os novos informes dePausanias, que o lictor Pompônio Gratus, conformeautorização do censor Fábio Cornélio, fizera ques-tão de convocar para lhe facilitar as investigações. Nesse mesmo dia um vulto penetrava na resi-dência de Lólio Úrbico, ao cair das sombras docrepúsculo, para dar idêntica denúncia. Era Hatéria, que, independentemente de Pau-sanias, também fora às catacumbas, em descargodas suas atividades odiosas, pondo em jogo a suahabilidade e astúcia para trazer Cláudia Sabinainteirada de quanto ocorria. Assim que, antes de regressar a Tibur, apósuma semana de repouso no lar, a antiga plebéianotificou a Quinto Bíbulo os ajuntamentos do Cris-tianismo além da Porta Nomentana, pintando-lhequadros terroristas, de feição a exacerbar o receiodas conjuras, que caracterizava os administradorespolíticos da época. Numerosos destacamentos de pretorianos com-pareceram ao cemitério abandonado, na reuniãosubseqüente. Centenas de prisões foram efetuadas. Os calabouços escuros do Capitólio e os cár-ceres do Esquilino ficaram repletos e a circunstân-cia mais grave é que, entre os prisioneiros, figu-ravam pessoas de todas as classes sociais.

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Irritado, o Imperador mandou que se instau-rassem processos individuais, a fim de apurar todasas responsabilidades isoladas, designando numerososdignitários da Corte para a devassa imprescindível. Élio Adriano nunca procedeu como Nero, queordenava o extermínio dos cristãos sem cogitar daculpa de cada indivíduo, de conformidade com osdispositivos legais, conforme a evolução jurídicado Estado Romano; mas também não perdoou, ja-mais, aos adeptos do Cristo que tivessem a coragemmoral de não trair a sua fé, perante a sua auto-ridade, ou de seus prepostos. O inquéríto começou terrível e sombrio. Famílias desesperadas de dor acorriam às pri-sões, implorando piedade aos algozes. Quantos abjurassem da crença em Jesus, dian-te da imagem de Júpiter Capitolino, jurando-lheeterna fidelidade, podiam regressar livremente aolar, retomando os bens da liberdade e da vida; osque se não prosternassem ante o ídolo romano,mantendo inabalável a fé cristã, podiam contar como flagício e, quiçá, com a morte . Entre mais de três centenas de criaturas, ape-nas trinta e cinco reafirmaram a sua fé em Jesus--Cristo, com sinceridade e fervor irredutíveis . Para essas, as portas do cárcere se fecharam,sem piedade e sem esperança. Entre os conde-nados, estavam Nestório e seu filho, que, fiéis aJesus, repousavam nos seus desígnios misericordio-sos, convictos de que qualquer sacrifício, em favorda sua causa, era uma porta aberta para a luz epara a liberdade .

A Visita Ao Cárcere

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A notícia desses acontecimentos repercutiu naresidência de Helvídio Lucius, originando as maistristes inquietações e angustiosas expectativas. Apesar da fé que lhe fortalecia o coração, ajovem Célia sentiu-se tocada de profunda amar-gura e a sua única consolação era a possibilidadede ouvir o avô paterno, que, a esse tempo, já liaàvidamente os Evangelhos e as Epístolas de Paulo,agasalhando no íntimo a mesma fé que iluminavajá tantos heróis e mártires. Ambos, horas a fio, em confidências cariciosas,deixavam-se ficar no terraço palaciano do Aven-tino, a observar a fita extensa e clara do Tibre,ou embevecendo-se na contemplação do céu. Ovenerando Cneio Lucius reconfortava-lhe o espí-rito abatido, com a sua palavra conceituosa e ex-periente. Citavam agora os mesmos textos evan-gélicos, exteriorizando, simultaneamente, análogasimpressões . Quanto a Alba Lucínia, depois de ouvir as maisenérgicas exprobrações do velho pai, concernentesàs denúncias de Pausanias, sentia-se mais confor-tada com a certeza de que o marido regressariabreve e definitivamente ao lar, obedecendo a ines-peradas ordens do Governo Imperial. A pobre senhora atribuía esse júbilo às precesde Túlia e da filha, agradecendo ao novo deus, naintimidade de seu espírito, porquanto o regressode Helvídio era um bálsamo para o seu coraçãoatormentado . Com efeito, decorridos poucos dias, o tribunovoltava aos penastes com um suspiro de satisfaçãoe de alívio, depois de cumprir integralmente todasas obrigações que o prendiam ao recanto das pre-dileções do César.

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Informado a respeito de Nestório e da suaatitude, o patrício se surpreendeu penosamente, de-sejando com sinceridade desviar o ex-cativo da si-tuação delicada em que se encontrava; mas, logoque soube que era também o pai de Ciro, ressur-gido em Roma para lhe agravar as preocupaçõesmorais, Helvídio Lucius fez um gesto de espanto ede incredulidade . Entretanto, ouviu, até ao fim,a narrativa do sogro, molestando-se profundamentecom a conduta da esposa em permitir que a filhacomparecesse a uma reunião condenável, ao seu ver. Alba Lucínia, todavia, soube acatar todas asreprimendas com a humildade necessária à harmo-nia doméstica e, longe de o desgostar ainda maiscom qualquer lamentação, calou as próprias má-goas, ocultando-lhe o procedimento odioso de LólioÚrbico, bem como os seus receios a respeito deCláudia Sabina, em vista das confidências de Túliaque lhe haviam ferido profundamente o coração.A nobre senhora, nas suas elevadas qualidades dedevotamento ao lar e de reflexão nos problemasgerais da vida, operou verdadeiros milagres de afe-to e dedicação, para que a tranqüilidade espiritualvoltasse ao íntimo do esposo amado. No dia seguinte ao seu regresso, Helvídio Lu-cius tomou todas as providências para avistar-secom Nestório na Prisão Mamertina. O aparecimento de Ciro, na Capital do Império,representava para ele um fato inverossímil. Nãopodia crer que o seu liberto de confiança, cujasatitudes lhe haviam conquistado a maior simpatia,pudesse ser o pai de um homem que o seu coraçãodetestava. Queria, assim, certificar-se da verdadepor si mesmo . Além do mais, se os acontecimentosnão fôssem verdadeiros, empenharia todo o seu

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prestígio pessoal junto do Imperador, a fim de evi-tar o martírio e a morte do prisioneiro. A realidade, porém, haveria de contrariar esseintuito, sem resquícios de fantasia. Chegado ao presídio, conseguiu de Sixto Plócio,oficial que superintendia o estabelecimento, umalicença incondicional, de modo a se avistar com oprisioneiro como bem entendesse. Dentro em pouco, varava corredores e desciaescadas subterrâneas, ladeando celas imundas, ondea luz era de uma escassez terrível e clamorosa, enão tardou a encontrar Nestório ao lado do filho.Ambos estavam magros, desfigurados, a tal pon-to que o patrício, fosse pelo abatimento físico dorapaz, fosse pelas sombras que os cercavam, nãoreconheceu Ciro de pronto, dirigindo-se ao libertonestes termos, que profundamente o comoveram : - Nestório, já sei os motivos que te trouxe-ram ao cárcere, mas não hesitei em vir até aquipara ouvir-te pessoalmente, tal a estranheza queme causou a relação das ocorrências! Havia nas suas palavras um tom de sensibi-lidade e de simpatia feridas, que o ex-escravo rece-beu como bálsamo dulcificante para o seu coração. - Senhor - respondeu respeitosamente -agradeço do íntimo da alma o vosso impulso gene-roso... Nestas celas jazem também loucos e lepro-sos, e, contudo, não vacilastes em trazer ao vossomísero escravo a palavra de exortação e de con-forto!. . - Nestório - continuou Helvídio com genero-sa deferência -, meu sogro relatou-me, a teu res-peito, certos fatos que me custa acreditar, a despeitode sua honorabilidade de homem público e do seupaternal interesse para comigo.

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Nesse ínterim, pai e filho contemplavam, an-siosos, aquele de quem poderia depender a sua li-berdade, notando-se que Ciro se encolhera a umcanto, temendo a atitude de ansiedade suspeitosacom que Helvídio Lucius o observava. O tribuno prosseguiu : - Não pude aceitar, integralmente, o que medisseram e vim certificar-me, por mim mesmo, como teu depoimento pessoal. E, acentuando as palavras, perguntou, abrup-tamente : - És de fato cristão? - Sim, senhor - murmurou o interpelado,como se respondesse constrangidamente, em facede tão grande generosidade. - Prometi a Jesus,no sacrário da consciência, que não renegaria aminha fé em tempo algum. O tribuno esfregou o rosto, num gesto muitoseu, quando contrariado, acrescentando em tom demágoa : - Nunca pensei que houvera colocado um cris-tão na intimidade do meu lar e, no entanto, vimaté aqui sinceramente desejoso de pleitear a tualiberdade . - Agradeço-vos, senhor, de todo o meu cora-ção e jamais esquecerei o vosso alvitre - ajuntouNestório com dolorosa serenidade. - Interessando-me pela tua sorte - prosse-guiu Helvídio constrangidamente -, procurei o se-nador Quirino Brutus, incumbido pela autoridadeimperial da instrução do processo atinente aos agi-tadores do Cristianismo, vindo a saber, ainda on-tem, que treze dos implicados receberam a sentençade banimento perpétuo e vinte e dois foram con-denados à morte pelo suplício.

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Apesar do seu fervor religioso, ambos os pri-sioneiros ficaram lívidos. Helvídio Lucius, porém, continuou impertur-bável. - Entre estes últimos, vi o teu nome e o deum rapaz que me disseram ser teu filho . Que medizes a tudo isso ? Não desejarás, porventura, abju-rar uma fé que nada te facultará a não ser a mor-te infamante pelos suplícios mais atrozes? E essehomem que te acompanha? será de fato teu filho?Dize uma palavra que me esclareça ou me propor-cione elementos para uma defesa justa... - Senhor - acudiu o liberto invocando todasas suas energias para não fracassar no testemu-nho -, minha gratidão pelo vosso interesse gene-roso há-de ser eterna! Vossas palavras me sensi-bilizam todas as fibras do coração!. . Ouvindo-vos,sinto que deveria seguir vossos passos com humil-dade e submissão, através de todos os caminhos;mas, é também por amor que não posso ceder emminha fé, à própria tentação da liberdade !... Jesusexerce em mim um jugo divino e suave... Emboravos ame, senhor, não posso trair a Jesus nas atuaiscircunstâncias de minha vida... Se o Mestre deNazaré deixou que o imolassem na cruz, puro einocente, pela redenção de todos os pecadores destemundo, porque me haveria de escusar ao sacrifí-cio, quando me sinto cheio da lama do pecado?Jamais poderei, em consciência, abjurar uma féque constituiu a luz de minha alma, por toda a vida!..A morte não me atemoriza, porque, além do mar-tírio e do sepulcro, esplende uma alvorada imortalpara o nosso espírito ! Helvídio Lucius ouvia, surpreso, aquela demons-tração de esperança numa vida espiritual, que sua

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mentalidade estava longe de compreender, enquan-to Nestório continuava a falar, pousando, então,no rapaz que o acompanhava, os olhos úmidos eternos : - Entretanto, senhor, sou pai e, como pai,sou ainda muito humano! Não vos interesseis pormim, imprestável e doente, para quem a conde-nação à morte pela causa de Jesus deve representaruma bênção divina!. . Mas, se vos for possível,salvai meu filho, de modo que ele viva para vosservir!. . Ciro acompanhava a atitude paterna com idên-tico espírito de fervor e decisão, como que desejosode protestar contra aquela rogativa, demonstrandotambém preferir o sacrifício; mas o liberto conti-nuava entre lágrimas mal contidas, dirigindo-se aotribuno, que o ouvia eminentemente impressionado: - Agora, senhor, sei de todo o pretérito amar-gurado e doloroso e lamento o proceder de meufilho na vossa casa de Antipátris! . . Mas peço-vosperdão para as inquietudes da sua mocidade ! . . .Meu pobre Ciro obedeceu à impulsividade do cora-ção, sem dar ouvidos ao raciocínio, com que sedeveria aconselhar, mas, na amargura destas mas-morras sombrias, deu-me a sua palavra de que, sevolver à liberdade, nunca mais erguerá os olhospara a criança adorável, que é um arcanjo do céuno âmbito do vosso lar... Se assim o exigirdes,senhor, Ciro poderá sair de Roma para sempre, demaneira a nunca mais vos perturbar a felicidadedoméstica! . . Helvídio Lucius, porém, fechara o semblante,em atitude de quem tomara implacável decisão. Da generosidade mais pura, passara à negativamais violenta, dada a presença do seu ex-cativo de

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Antipátris, a quem os seus princípios não poderiamtolerar, nunca. - Nestório - exclamou em tom quase rude -,sabes da simpatia que sempre me inspiraste, mas,se nunca te supus cristão e conspirador, muito me-nos chegaria a pensar que pudesses ter engendradoum homem como esse. Como vês, não posso in-tervir a favor de ambos. . . Certas árvores morrem,às vezes, pelo apodrecimento dos galhos ! . . Vimaqui para socorrer-te, mas encontrei uma realidadeintolerável para o meu espírito. Destarte, prefe-rirei esquecê-los, antes de tudo. - Senhor... - murmurou ainda o liberto,como se desejasse reter a sua amizade, pedindo-lheperdão, para morrer com a certeza de que o tribu-no lhe havia reconhecido o sincero agradecimento. Helvídio Lucius, contudo, lançando a ambosum olhar contrafeito, ajustava a toga para reti-rar-se quanto antes, exclamando impulsivamente : - É impossível ! Dito isso, deu costas aos prisioneiros e, cha-mando os dois guardas que o acompanhavam, re-tirou-se apressado, enquanto os dois condenadosalongavam o olhar para fixar-lhe o porte firmee austero, e aguçavam o ouvido para escutar osseus derradeiros passos nas lajes da prisão, comose percebessem, pela última vez, a esperança queos poderia reconduzir à liberdade. Nestório sentia-se sufocado, mas a nuvem desuas lágrimas, como que se rompera para atenuar--lhe as amarguras, enquanto Ciro se lhe lançavaaos pés, beijando-lhe as mãos, a murmurar: - Meu pai ! meu pai ! . . Ambos desejavam retornar ao sol claro da vida,sentir as emoções da Natureza, mas o ambiente

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abafado do cárcere asfixiava. Todavia, na tarde imediata, Sixto Plócio, rece-bendo as ordenações da justiça imperial, separavaos treze prisioneiros destinados ao exílio perpétuo,reunindo os demais numa cela menos triste e lar-gamente espaçosa. Os dois libertos foram retirados do cubículoem que se encontravam, transportados para juntodos demais condenados. A nova cela também demorava na parte sub-terrânea, mas, de um dos seus lados, podia ver-seo céu através de reforçadas grades. Descera o crepúsculo, entornando sobre a ci-dade as suas tintas maravilhosas, mas todos aque-les corações atormentados contemplaram o casarioe o horizonte, tomados de infinita alegria. Ao longe, no firmamento, acendiam-se, na telamuito azul, as primeiras estrelas!... Policarpo, o venerável pregador da Porta No-mentana, transportado do Esquilino para o Capi-tólio, a fim de reunir-se aos companheiros, traçouno ar uma cruz com a mão calosa e encarqui-lhada.. Então, todos os irmãos de fé, em cujonúmero se contavam algumas mulheres, se pros-ternaram e, contemplando o céu romano, formosoe constelado, começaram a cantar hinos de devo-ção e de alegria. Esperanças versificadas, que de-viam subir a Jesus, traduzindo o amor e a confiançadaqueles corações resignados, que viviam embeve-cidos nas suaves promessas do seu Reino... Aos poucos, as vozes se elevavam, harmoniosase argentinas, nas estrofes de hosana e de esperan-ça! Seres espirituais, imperceptíveis, ajoelhavam-sejunto dos condenados, a cujos ouvidos chegavamos ecos suaves das cítaras do invisível...

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Então, alguns pretorianos que lhes montavamguarda, escutando-lhes os cânticos de fé, compa-raram a voz daqueles corações angustiados a so-luços de rouxinóis apunhalados em pleno luar, navastidão do espaço. Enquanto os prisioneiros aguardam o dia re-servado ao sacrifício, acompanhemos nossas per-sonagens no desdobramento de sua vida cotidiana. Depois de uma visita a Tibur, Élio Adrianocertificou-se do valioso concurso de Helvídio Lu-cius às suas caprichosas edificações, convidando-oa visitá-lo com a família, a fim de lhe testemunharo seu reconhecimento. No dia aprazado, com exceção de Célia, quenão podia dissimular o seu abatimento, compare-ciam ao ágape, que o Imperador lhes oferecia, otribuno e sua família, acompanhado de Caio Fa-bricius e Fábio Cornélio. Adriano os recebeu com amabilidade extrema,versando as palestras da tarde os mais variadosassuntos atinentes à vida social e política do Im-pério . Em dado instante, após as libações habituais,Adriano dirigiu-se a Helvídio Lucius, nestes termos: - Meu amigo, o principal escopo do meu con-vite é agradecer-te a preciosa colaboração prestadaaos meus planos em Tibur. Francamente, as tuasrealizações excederam a minha expectativa maisotimista ! - Obrigado, Augusto ! - respondeu o patrí-cio, emocionado e satisfeito. E como se houvera transportado a sua palavraos objetivos diferentes, o Imperador obtemperou comevidente interesse: - Quando se efetua o enlace de tua filha ?

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Pretendo fazer uma viagem demorada pela Grécia,antes de me recolher a Tibur de modo definitivo,mas não desejaria partir sem contemplar a falece-da de dos nubentes. Designando Caio, que experimentava a maioralegria à vista do interesse imperial pela sua si-tu ação, Helvídio replicou: - Augusto, muito nos honra com a vossagenerosa atenção. O enlace de minha filha dede-de tão somente do noivo, que está aliciando à ex-pertencia da vida, antes de atender aos reclamosdo amor. - Que é isso, Caio? - perguntou o Impera-dor num largo sorriso. - Que esperas ainda? SeVênus ainda não te bateu fortemente às portas daalma, não pode entreter com promessas o coraçãoque te aguarda em primaveras de amor. - Vossa palavra, ó César - respondeu o in-ter pelado como um perfeito augustino -, confor-ta-me o espírito como os raios do Sol; entretanto,tendo de substituir Vênus por Juno em meu san-tuário doméstico, aguardo a oportunidade propíciaà minha tranqüilidade futura. Élio Adriano fez um gesto expressivo, fixandoem Helvídio Lucius o seu olhar enigmático, e acres-centando: - O ensejo esperado deve estar chegando ago-ra. Afirmava a sabedoria dos antigos que melhorfala aos pais o bem que se faz aos filhos, razãopor que tomo o dote da jovem Helvídia ao meucuidado. Resolvi doar-lhe uma propriedade delicio-sa nas imediações de Cápua, ao pé do Vulturno,onde o fruto das vinhas e das oliveiras bastariapara entreter a felicidade de uma família durantecem anos de existência, sem outras preocupações

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de ordem material. Um sopro de alegria animou todos os semblan-tes, desenhando-se, com especialidade, nos de Hel-vídio Lucius e sua mulher, que se entreolharamfelizes, tomados de sincero reconhecimento pela es-pontânea generosidade do Imperador, a quem FábioCornélio se dirigiu com a mais respeitosa cortesia,agradecendo em nome de todos a régia dádiva. Caio Fabricius, não podendo conter a sua ale-gria, apertou as mãos da noiva, exclamando : - Depois da palavra de Fábio, queremos con-firmar nosso reconhecimento à vossa magnanimi-dade, ó Augusto! Vossa lembrança expressa a ge-nerosidade e o poder do senhor do mundo!... Ejá que depende de mim a fixação do matrimô-nio, marcá-lo-emos para o mês próximo, como vosapraz!. . Todo o nosso desejo é que nos honreiscom a vossa presença, porquanto, em face de vossapaternal proteção, sentimos que os deuses nos aben-çoam e guiam ! . . - Sim - ponderou Adriano pensativo -, nomês vindouro pretendo realizar minha última via-gem pela Itália e pela Grécia. Prometi aos amigosde Atenas que não me recolheria a Tibur antes delevar-lhes a minha visita derradeira! Antes de meausentar, pretendo comemorar com festejos públi-cos a inauguração dos novos edifícios da cidade ( 1 ) .Aproveitaremos, então, a oportunidade para que seefetive a tua ventura . Alba Lucínia tinha os olhos úmidos, abraçandoa filha alegremente, e assim terminava o banquetecom júbilo inexcedível. No dia imediato, o Imperador ordenou todasas providências para a doação e, enquanto HelvídioLucius e família se preparavam convenientemente

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para o evento familiar, Caio Fabricius dirigia-seà antiga "Terra da Lavoira", a fim de conhecer aregião em que ficava a sua futura vivenda. Todavia, a par dos grandes júbilos, persistiamas graves preocupações e as grandes dores. Helvídio e sua mulher não podiam forrar-seà contrariedade que os martirizava intimamente,ao verem que Célia definhava, apesar dos esforçosque ela mesma fazia, mercê das energias poderosasda sua fé, a fim de não amargurar o coração dosgenitores . Comparando a filha a uma flor mirrada etriste, o tribuno aumentava o seu ódio às idéiascristãs, recordando Ciro com aversão e rancor. Odoloroso contraste do destino de suas filhas era-lheobjeto de profundas meditações. Interessava-se porambas, com o mesmo afeto; contudo, mau gradoà boa intenção, a mais nova parecia afastada dasua devoção paternal. Não sabia freqüentar os am-bientes sociais, nem se integrava convenientementeno ritmo doméstico, como fora de desejar. Seusolhos jamais haviam manifestado qualquer interessepelas fantasias da juventude e, mergulhados emcismas constantes, pareciam fixar-se noutros ru-mos, que o seu espírito paternal jamais puderadefinir com acerto. Ao seu conceito, ela era vítimade umas tantas fraquezas que, no seu zelo, atri- (1) Entre as numerosas edificações de Adriano, du-rante o seu reinado, conta-se, como das mais modernas, ofamoso castelo de Santo Ângelo. - Nota do Emmanuel.Bulia à influência dos princípios cristãos, no conví-vio dos escravos, lá na Palestina.. . Ainda bem queHelvídia seria ditosa e isso, de algum modo, o con-solava! . . Quanto a Célia, ele e a esposa maistarde levá-la-iam a terras estranhas, onde a sua

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sensibilidade doentia pudesse modificar-se a con-tento. Enquanto o tribuno desenvolvia todos os es-forços por dissimular tais conjeturas, multiplica-vam-se no lar os júbilos festivos. Mas, ao passo que aumentavam as esperançase as alegrias familiares, Célia verificava que os seuspadecimentos morais lhe superavam as própriasforças. A notícia da condenação de Ciro, como cons-pirador, acabrunhava-lhe profundamente o coração.Além disso, bastaria uma palavra só, do Impera-dor, para que os terríveis suplícios se consumas-sem. Aquelas perspectivas angustiosas lhe anula-vam todas as esperanças. Ao seu lado, o enxovalda irmãzinha cobria-se de pérolas e de flores! Porsi, não lhe invejava a ventura, mas desejava con-servar a vida do eleito do seu destino . Orava sem-pre, mas as suas preces estavam eivadas das an-gústias terrenas, sem a leveza suave de outrostempos, que as fazia ascenderem ao céu. Agora,as vibrações espirituais mesclavam-se de ansieda-des amargas e dolorosas!. . Desejava ver Ciro,ouvir-lhe a palavra, saber da sua boca que o seucoração continuava forte e resignado diante da mor-te, a fim de que a sua alma haurisse ânimo nacoragem dele, mas não podia pensar nisso. Os paisnão lho consentiriam nunca. Tão penosas reflexõesforam-lhe invadindo o cérebro, enfraquecendo-o. Em poucos dias, o organismo não se mantinhade pé. Todavia, Alba Lucínia, com o bom-sensoque lhe caracterizava as iniciativas, lembrou a con-veniência de transportá-la para o Aventino, ondese trataria convenientemente junto do velho avôe de Márcia, que a adoravam.

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Aceito o alvitre, Cneio Lucius veio buscá-lapessoalmente, com paternal solicitude. Em sua casa a jovem melhorara do estadofebril que tanto a debilitava, mas o singular aba-timento moral zombava de todos os cuidados dovenerável ancião, que inventava mil modos de res-tabelecer a alegria da netinha adorável. Certo dia, pondo em jogo os seus processospsicológicos cheios de ternura, acercou-se da neta,exclamando com profunda bondade : - Célia, minha querida, pesa-me o coraçãover-te assim abatida e doente, apesar de todos osesforços do nosso amor desvelado. E como lhe visse as lágrimas brilhando à flordos olhos, continuou carinhoso : - Também eu, minha filha, no imo da cons-ciência, sou hoje um adepto do Cristianismo, comtodo o fervor do meu espírito! Conheço a essênciados Evangelhos, levado pelas afetuosas sugestõesda tua alma cândida e generosa ! . . . Para mim, nãovalem mais, agora, os sacrifícios aos nossos ve-lhos deuses, silenciosos e frios, mas tão somenteas ofertas do nosso próprio coração àquele quevela por nossos destinos, do seu trono das Alturas!Mas ouve, filhinha: não sabes que Jesus não quera morte do pecador? Não lhe conheces o ensina-mento, cheio de vida e de alegria? E como se adivinhasse as mágoas que lacera-vam aquele coração afetuoso e crente, tinha tam-bém os olhos úmidos. A neta recebeu-lhe as palavras como se fôssemum bálsamo suave, respondendo : - Sim, compreendo tudo isso e rogo a Jesusme conceda forças, a fim de encontrar nos seusexemplos a razão da minha própria vida...

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Essa resposta, porém, ficava a meio, uma ondade lágrimas invadia-lhe os olhos grandes, serenos,como se hesitasse em confessar ao venerando ve-lhinho a sua preocupação dolorosa e incessante. Cneio Lucius, contudo, abraçou-a ternamente,ao mesmo tempo que ela murmurava em voz sú-plice : - Avozinho, prometo ter fé e triunfar de todosos sofrimentos, mas desejava ver Ciro antes da suamorte. O respeitável ancião compreendeu quão difícilseria satisfazer tal desejo, mas respondeu sem pes-tanejar: - Vê-lo-ás comigo, amanhã pela manhã. Fa-larei a teus pais, ainda hoje, a esse respeito. A jovem lançou-lhe um olhar jubiloso e pro-fundo, no qual se podia ler a mais terna de todasas alegrias, misto de amor e gratidão . A tarde, uma liteira saía do Aventino, condu-zindo o venerável patrício à casa do filho, que, aolado da esposa, lhe recebeu a rogativa com o maisfundo constrangimento a lhe transparecer no rosto. Alba Lucínia, na sua sensibilidade de mulher,compreendeu de pronto que a concessão aos de-sejos da filha era justa, convindo atender àquelasúplica ansiosa. O tribuno, porém, relutava consigo mesmo e,se não opunha uma negativa formal, era tão so-mente em atenção ao interventor, que, em lhe serpai, era também seu mestre e o melhor amigo detoda a vida. - Mas, meu pai - obtemperou depois de lon-ga meditação -, esse pedido articulado pela suaboca me surpreende profundamente. Tal medida,posta em prática, atrairá sobre nossa casa e nome

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numerosos comentários e suspeitas. Que diriam osadministradores do cárcere se vissem minha filhaa interessar-se por um condenado ? - Filho - replicou Cneio Lucius imperturbá-vel -, compreendo e justifico os teus escrúpulos,mas precisamos considerar que Célia pode piorar,fatalmente, se lhe recusarmos a satisfação dessedesejo. Além disso, sou eu próprio que me propo-nho acompanhá-la. Quanto à nossa entrada na pri-são, livre da curiosidade maledicente, já pensei nomelhor meio de consegui-la. Levarei minha netana qualidade de pupila da minha casa, como se forafilha de um sentenciado, pois bem sabemos que osprisioneiros não vão morrer como cristãos, mascomo conspiradores e revolucionários. Com as prer-rogativas de que disponho, penetrarei no cárcereem sua companhia, sem a presença importuna dosfuncionários ou dos pretorianos, de modo que so-mente eu presenciarei o que venha a ocorrer entreambos ! Helvídio ouvia-o, silencioso. Mas o venerávelpatrício, sem desistir dos seus propósitos, tomou--lhe as mãos entre as suas, murmurando humil-demente : - Concorda! Não negues à tua filha, enfer-ma, a satisfação de um desejo tão justo!. . Alémdisso, filho, recorda-te que se trata de um simplesencontro pela última vez . . . Ao espírito do tribuno repugnava a idéia deque a filha fosse visitar o servo odiado, com o seuconsentimento; mas, havia tamanha ternura naspalavras paternas que o seu coração cedeu de cho-fre àquela atitude de carinho e de humildade. Fixando o generoso velhinho, como se estivesseanuindo tão só por consideração a ele, seu pai e

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maior amigo, murmurou um tanto contrafeito: - Pois bem, meu pai, que se faça a sua von-tade! Deixo a seu critério a solução do caso. E dando a entender que o assunto lhe desa-gradava, falou de outras coisas, levando o anciãopara o interior, onde se intensificavam os prepara-tivos para os esponsais de Helvídia. Cneio Lucius, que entendia a alma do filhodesde pequeno, gabou-lhe todos os empreendimen-tos com bom humor e alegria, opinando com oti-mismo sobre todos os seus feitos e regozijando-se,simultaneamente, com as suas iniciativas, a evi-denciar no semblante uma satisfação espontânea esincera, como se nenhuma preocupação lhe povoassea mente. Nas primeiras horas do dia imediato, a liteirado venerável patrício estacionava junto à PrisãoMamertina, enquanto ele e a neta, que se disfar-çara em trajes muito simples, dentro de um largopeplo que lhe dissimulava os próprios traços fisio-nômicos, entravam no tenebroso edifício, salientan-do-se que Sixto Plócio, previamente avisado, vinhareceber Cneio Lucius e aquela que ele apresentavacomo filha adotiva de sua casa, facultando-lhes amáxima liberdade para tratar com os prisioneiros. Na cela espaçosa onde se aglomeravam os vintee dois sentenciados, penetravam os primeiros cla-rões do Sol como se fossem uma bênção. Nestório e Ciro, reunidos aos demais, estavamprofundamente desfigurados. A alimentação defi-ciente, as perspectivas angustiosas, os castigos apli-cados no cárcere, tudo se conjugava para lhes aba-ter as forças físicas. Todavia, nos olhos serenosde todos os condenados havia um clarão sublimadoe ardente, exteriorizando energias misteriosas. Vi-

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viam da fé e pela fé, colocando todas as esperançasnaquele Reino divino que Jesus lhes prometera emcada ensinamento. Volúsio e Lépido, dois pretorianos de plenaconfiança dos administradores do presídio, condu-ziram os visitantes ao apartamento dos condenados. Um grito de júbilo escapou-se do peito de Ciroao avistar a figura de Célia, que caminhava paraele com um sorriso carinhoso, embora amargo.Nestório não sabia expressar o reconhecimento quelhe inundava a alma, pois que, embora não se reve-lasse um companheiro de convicção, Cneio lhesestendia os braços generosos. A princípio, a emoção e alegria emudeceu unse outros; mas a jovem patrícia, num impulso natu-ral e muito feminino, observando a penosa situaçãodo bem-amado de sua alma, desatara em prantoconvulsivo, enquanto o velho avô murmurava combenevolência e carinho : - Chora, filha! . . as lágrimas fazem-te bemao coração!. . E, bondosamente, como se deferisse ao moçoliberto a tarefa de consolá-la, afastou-se com Nes-tório para outro ângulo da cela, apresentando-lheo ex-cativo os demais condenados. Quase a sós, os dois jovens podiam trocar assuas impressões derradeiras. - Célia, como te entregas ao sofrimento dessemodo? - perguntou o mancebo invocando todasas suas forças para revelar coragem e serenida-de. - Não será melhor morrer pelo Mestre, a quemtanto amamos? Estou muito reconhecido a Jesus ,ao receber tua visita nesta cela erma e triste . Des-de que fui preso, tenho suplicado fervorosamenteà sua misericórdia não me permitisse morrer sem

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consolar-te!... Ainda esta noite, querida, sonhei que haviachegado ao Reino do Senhor, aí vendo muitas luzese muitas flores.. Chegando aos pórticos dessesparaísos indefiníveis, lembrei-me do teu coração esenti uma saudade profunda!... Queria encontrar--te para penetrar no Céu, contigo. . . Sem a tua com-panhia, as moradas de luz me pareceram menosbelas, mas um ser divino, desses a quem deveremoschamar anjos de Deus, acercou-se, esclarecendo-mecom estas palavras: - Ciro, breve baterás a estasportas, livre de qualquer laço dos que ainda te pren-dem ao corpo perecível ! Manifesta a tua gratidãoa esse Pai de misericórdia que te concede tantasgraças, mas não penses em repouso quando as lutasapenas começam! Terás de ressarcir, ainda, muitosséculos de erro e treva, de ingratidão e impenitên-cia!... Reconforta o espírito abatido, na contem-plação dos planos sublimados da Criação, para quepossas amar a Terra com as suas experiências maispenosas, que valem também por divino aprendizado,na escola do amor de Deus!... Então, querida, pedi àquela entidade pura ecarinhosa que, depois da morte, me auxiliasse arenascer junto de ti, fôsse com a responsabilidadedas riquezas terrestres, ou na condição da maiormiséria. E sei que Jesus, tão poderoso e tão bom,há-de conceder-me essa graça. Não chores mais!desanuvia o coração nas promessas divinas do Evan-gelho ! . Suponhamos que vou fazer uma longa viagem,imposta pelas circunstâncias... mas, se Deus per-mitir, estarei de volta ao mundo, no dia imediato,a fim de nos encontrarmos novamente. Como seráesse reencontro? Não importa sabê-lo, porque, de

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qualquer forma, sempre nos amamos pelo espírito,dentro de nossas realidades imortais! Promete-me que serás alegre e forte, esperan-do a minha volta. Não permitas que energias des-truidoras te maculem o coração!. . E presumindo que a jovem pudesse, mais tarde,enfarar-se do próprio destino, acentuou: - Confio no teu valor, espero que jamais es-tranhes a posição social que o Senhor te haja con-cedido. Nas horas angustiadas da vida, recorda-teque, depois do amor de Deus, deveremos honrarpai e mãe acima de todas as coisas, sacrificando--nos por eles com a melhor das nossas energias ! . . . Ela deixara de chorar, mas uma névoa de tris-teza lhe invadira os olhos desencantados. Contem-plava-o à sua frente, com uma ternura que o co-ração não saberia jamais definir. Noivo ou irmão?Por vezes, sentia no íntimo que ele deveria tambémser filho. As almas gêmeas amam-se em curso deeternidade, confundindo-se na alternativa contin-gente dos elos do espírito. Aspiram a uma felici-dade pura e imortal e só vivem felizes quandointegradas na união eterna e indissolúvel. Na fortaleza moral que lhe ocultava as maisdolorosas emoções, o mancebo continuava: - Dize-me, Célia, que amarás sempre a vida,que terás muita fé e me esperarás, cheia de con-fiança.. Quero enfrentar o sacrifício com a cer-teza de que prosseguirás, como sempre, forte naluta e conformada com os desígnios do Criador ! . . . - Sim - murmurou ela com uma cintilaçãode fé a lhe brilhar nos olhos -, por ti, nunca odia-rei a vida! Através da minha confiança nas pro-messas do Cristo, rejubilarei quando chegares...tornarei a sentir a branda carícia da tua presença

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carinhosa, pois meu coração identificará o teu entremil criaturas, porque te tenho amado como Jesusnos ensinou, com dedicação celestial. - Assim, querida - murmurou o jovem con-fortado -, foi sempre assim que idealizei o teu co-ração humilde e generoso. - Ciro - disse a donzela candidamente -, rogoa Jesus que nos conserve a fé nas angústias destahora! Esperarei a tua volta, cheia de confiança emti, sabendo que me quiseste sempre, tal como teamei ! . . Depois de uma pausa, olhos umedecidos, con-tinuou emocionada: - Sabes? lembro-me agora de nossa excursãoao lago de Antipátris... Recordas-te? Eu estavasurpresa por te ver, quando a onda me colheu, im-pelida pelo vento... Hoje, pergunto se não seriamelhor ter morrido. Aprenderia a amar a Jesus,fora de um mundo como este, e haveria de espe-rar-te na outra vida com o meu amor grande esanto!... Ainda sinto a emoção do minuto em queme salvaste, trazendo-me à tona ! . . . - É verdade - atalhou o rapaz fazendo opossível por não trair a emoção daquelas remi-niscências -, mas, recordando tudo isso, não somoslevados a crer que Jesus, desejava, como ainda de-seja, a tua vida? Não fui eu quem te salvou, maso Mestre Divino, que te queria na Terra. - Sim - obtemperou comovida -, continua-rei implorando a Jesus que te permita voltar, con-forme prometes! O mundo, Ciro, é sempre um lagorevolvido pelo vento das paixões e, no fundo daságuas, há sempre vasa que sufoca as mais nobresaspirações do espírito. Que Jesus não me faltecom a tua companhia no futuro, pois quero viver

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para servi-lo na claridade de tua memória, quehonrarei em toda a vida!. . - Célia, não duvides do Senhor nem descreiasda minha volta . Pensarei sempre em ti, como nunca te esqueço... E para dissipar as amargas expectativas domomento, voltou-se para trás, revolvendo um col-chão imundo, ali colocado à guisa de cama, de láretirando um pedaço de pergaminho que ofereceuà jovem, acrescentando: - Ainda anteontem escrevemos aqui um hinopara glorificar o Mestre no dia do sacrifício. Lem-brei que deveria sugerir aquela música que te en-sinei, sob os cedros de tua casa, sendo aceita aminha ideia. Desde esse instante, querida, minhagrande preocupação foi conseguir os recursos pre-cisos para deixar-te uma cópia, pois tinha convic-ção de que Jesus me concederia a dita de rever-te.Há aqui um pretoriano chamado Volúsio, bastantesimpático ao Cristianismo, que me facultou os ele-mentos precisos para a grafia destes versos. Entregando-lhe o fragmento de pergaminho,acentuava: - Guarda este hino que constitui a minhalembrança antes da partida! Todos nós colabora-mos na formação do poema, mas, lembrando-me danossa eterna afeição, encaixei aí algumas rimas,nas quais traduzi minhas esperanças. Dedico-as ati, para confirmar-te a dedicação de todos os mo-mentos ! - Deus te abençoe e te proteja! - exclamoua jovem patrícia, guardando a preciosa lembrança. Ambos se entreolharam com a poderosa atra-ção dos seus sentimentos purificados, mas CneioLucius, depois de haver conversado longamente comNestório e seus companheiros, examinando todos

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os detalhes da prisão, aproximava-se com um sor-riso complacente . Conhecendo a sentimentalidade da neta, diri-giu-lhe a palavra nestes termos: - Filha, as horas voam, estou à tua disposi-ção para quando desejes regressar. Ela acercou-se do respeitável ancião, que sefazia acompanhar pelo liberto de seu filho, pou-sando em Nestório o olhar melancólico, mas o ex--cativo veio-lhe ao encontro com estas palavras : - Célia, tua vinda a este cárcere representapara nós a visita de um anjo. Não te impressionea nossa condenação, que aos olhos de Deus deveser útil e justa. Dizia a inspiração de Paulo quea morte é o nosso último inimigo. Venceremos,pois, mais essa etapa, com Jesus e por Jesus. Ape-sar disso, não te esqueças de que a dádiva da vidaé um bem precioso que o Céu nos confia. Para aalma fervorosa, o melhor sacrifício ainda não é oda morte pelo martírio, ou pelo infamante opró-brio dos homens, mas aquele que se realiza coma vida inteira, pelo trabalho e pela abnegação sin-cera, suportando todas as lutas na renúncia de nósmesmos, para ganhar a vida eterna de que nosfalava o Senhor em suas lições divinas! Célia sentiu que a sua fé atingia um grau su-perior, mediante aquelas exortações amigas e cari-nhosas, e voltando-se para Ciro, que, com o olhar,parecia recomendar-lhe que as ouvisse, respondeu,comovida : - Sim, guardarei tuas palavras com o respei-toso amor de uma filha. Acercando-se do avô, pediu-lhe permissão paradespedir-se de ambos os condenados, e, aproximan-do-se do jovem, que ocultava a comoção no imo

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dalma, guardou-lhe as mãos entre as suas por ummomento, beijando-as levemente. - Deus te proteja! - disse em voz baixa,quase imperceptível. Em seguida, acercou-se de Nestório, a quemabraçou respeitosamente, depositando-lhe um ósculona fronte. Ambos os sentenciados desejavam agradecer,mas não o puderam . Uma força poderosa pareciaembargar-lhes a voz . Ficaram imóveis, silenciosos,enquanto Cneio Lucius, tocado pela cena comove-dora, se despedia com um leve aceno. Contudo, até o fim, Ciro mostrava no rostouma expressão de fortaleza, num sorriso carinho-so que consolava profundamente a alma gêmea dasua... Mais um gesto de adeus naquele silêncio queas palavras profanariam, e a porta do cárcere ran-geu de novo nos seus gonzos sinistros e terríveis. Nesse instante, o sorriso do moço cristão de-sapareceu-lhe do rosto desfigurado. Dirigiu-se paraas grades da prisão, agarrando-se aos varões comoum pássaro sedento de luz e liberdade. Seus olhosansiosos espraiaram-se pelo exterior, buscando ver,pela última vez, a liteira que deveria reconduzir asua amada. Mas, aos poucos, sua juventude inquieta vol-tava-se para Jesus, com todo o fervor de suasaspirações apaixonadas. Desprendeu-se dos varõesrígidos e ajoelhou-se. A luz do Sol, que esplendiana manhã alta, banhou-lhe as faces e os cabelos.Orava, rogando a Jesus fortaleza e esperança. Aclaridade solar parecia inundar-lhe a fronte comas graças do Céu, mas, mesmo assim, deixando pen-der a cabeça, escondeu o rosto nas mãos emagre-

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cidas, para chorar humildemente .

Nas Festas De Adriano

Cneio Lucius notou que a visita da neta aoscondenados produzira efeitos grandemente benéfi-cos. Apesar do abatimento, Célia mostrava-se co-rajosa na fé, mais calma e bem disposta. Contudo,o velho avô, considerando a sensibilidade do seuafetuoso coração de menina, providenciou junto dosfilhos para que ela ficasse em sua companhia atéa passagem das festas do casamento de Helvídia. Neste ínterim, não podemos esquecer que aesposa de Lólio Úrbico, novamente em Roma, iafrequentes vezes à Suburra, onde mantinha os maisíntimos colóquios com a vendedora de sortilégins,já conhecida. Horas a fio, Cláudia e Plotina trocavam ideiasà surdina, assentando providências criminosas ouarquitetando planos sinistros, salientando-se queHatéria, havendo conquistado o máximo da estimados patrões, trazia a antiga plebeia informada detodos os fatos atinentes à vida íntima do casal. Nas vésperas do enlace de Helvídia, vamos en-contrar a Capital do Império na agitação caracte-rística das épocas festivas. Preparando-se para a sua derradeira romagema um dos centros mais antigos do mundo, Adrianodesejava brindar o povo romano com espetáculosinesquecíveis. Em tais ocasiões, a autoridade política afere-malan do sentimento popular, alimentando-lheas vibrações de extravagância e de alegria. A inau-guração de novos edifícios, os preparativos da via-gem e a adesão do povo ao programa oficial jus-

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tificavam os mais altos caprichos da magnanimidadeimperial. Por toda parte verificava-se o frêmitodos trabalhos extraordinários, enchendo a cidadede improvisações transformadoras. Construções denovas arcadas, pontes ou aquedutos provisórios, dis-tribuições de trigo e vinho, organização de présti-tos religiosos, homenagens a templos especializados,loterias populares e, por fim, o circo com as suasnovidades inexcedíveis. O povo esperava sempre tais manifestações,com júbilo incontido. Instalado no Palatino, Élio Adriano cogitavade distrair as massas romanas, organizando come-morações dessa natureza, movimentando as auto-ridades e induzindo a guardar, porém, intimamente,o objetivo principal de todas as atividades, que era ode sua viagem à Grécia, cujas graças já lhe ha-viam conquistado a mais ampla simpatia. O grandeImperador, classificado na História como o maiorbenfeitor das cidades antigas, onde se havia ergui-do o berço da cultura e da civilização, projetavaas melhores construções para Atenas, bem como oestudo especializado das ruínas de toda a Hélade,de modo a beneficiar o patrimônio grego na me-dida de todos os seus recursos. No limiar dos acontecimentos, vamos encontraro soberano na intimidade de Cláudia Sabina e deFlegon, seu secretário de confiança, analisando ospormenores do cruzeiro que as galeras imperiaishaveriam de fazer pelas águas mediterrâneas. A certa altura, Adriano interpela o secretário: - Senécio, já cumpriste minhas ordens concer-nentes à expedição dos convites? - Por Júpiter! - exclamou Flegon satisfei-to - nunca me esqueceria de cumprir, a preceito,

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uma determinação de Augusto . - Como vê - disse o Imperador, dirigindo-sea Cláudia -, tudo está pronto e em ordem de mar-cha. Entretanto, necessito de alguém que me acom-panhe, não tanto com o senso de arte ou de crítica,mas com o propósito de trabalho, atento ao meudesejo de transportar para Tibur algumas colunascélebres e outras soberbas relíquias das ruínas deFócida e Corinto. Tenciono ornar os nossos edifícioscom os tesouros do mundo antigo. Não poderei dis-pensar, no meu retiro de Tibur, as visões do jardimdos deuses, com as suas sugestões preciosas aomeu espírito. A mulher do prefeito ouviu-o com particularatenção e, aproveitando a oportunidade para reali-zar seus projetos, aventou, fingindo o maior desin-teresse: - Divino, o filho de Cneio figura na lista dosvossos convidados? - Não. Helvídio Lucius seria um excelentecompanheiro, mas, abstive-me de incomodá-lo, aten-to as suas condições especialíssimas de homem ca-sado e chefe de família. - Ora - replicou displicentemente a antigaplebeia -, haveis de permitir discorde um tanto dovosso pensar, a respeito . Acaso não tenho tambémum lar a exigir dedicação e cuidados? Não vouseparar-me do esposo, que aqui ficará retido pelosdeveres do seu cargo? No entanto, considero-mehonrada em vos acompanhar, obedecendo à circuns-tância de representardes, para nós outros, o sobe-rano e o chefe magnânimo. Acredito que o genrode Fábio pensará comigo, sem discrepância. Daquia dois dias, realizam-se os esponsais da sua filhamais velha, sob as vossas vistas magnânimas. Ele

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que recebeu tantos favores de vossas mãos gene-rosas, poderia desdenhar o ensejo de vos ser útilem alguma coisa? Depois de uma pausa em que seus olhos fixa-ram profundamente o Imperador, de modo a reco-lher o íntimo efeito de suas palavras, continuou : - Conhecendo pessoalmente as obras de Tibur,que tanto seduzem o gosto artístico, penso que sóum esteta como Helvídio poderia operar o milagrede escolher o precioso material e superintender oseu transporte para Tibur. Além do mais, Divi-no, creio que essa viagem, ausentando-nos de Romapor mais de um ano, seria sobremaneira agradávelao seu ânimo de patrício!. . Novas possibilidades,novas realizações e novas perspectivas, penso, lhegranjeariam vantagens para a própria família, vis-to que o Império, representado em vossa magnani-midade, saberia recompensar-lhe todos os méritos. Elio Adriano meditou um instante, enquanto osecretário tomava alguns apontamentos. A seguir, levando em conta as observações deCláudia, que o fixava ansiosa, respondeu solícito : - Tens razão. Helvídio Lucius é o homemque procuro. Sabina fez um gesto expressivo de satisfação,enquanto o Imperador incumbia Flegon de levarem seu nome o respectivo convite. Colhido pelo mensageiro no meio das ativida-des festivas do lar, o tribuno surpreendeu-se gran-demente. Não esperava um ato daquela natureza.Outrem poderia honrar-se com a gentileza; ele, po-rém, sentimental por índole, preferia a paz domés-tica, longe do turbilhão de bagatelas frívolas daCorte. A viagem à Grécia, em tais condições, afi-gurava-se-lhe aborrecida e inoportuna. Além dis-

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so, deveria partir dentro de uma semana. E quempoderia pensar no regresso? O soberano estavahabituado a fazer excursões longas e freqüentes,através do mundo antigo. Na viagem de 124, esti-vera ausente de Roma por mais de três anos con-secutivos, e tanto se apaixonara por Atenas quechegara ao extremo de se iniciar, pessoalmente, nosmistérios de Elêusis. Todavia, antes que as reflexões penosas lheanulassem de todo o ânimo, chamou a esposa aotablino, onde examinaram atentamente o assunto. - Por mim - exclamou o tribuno com o seuespírito resoluto -, procurarei esquivar-me, desis-tir do convite. Essas ausências de Roma, com aseparação da família, transtornam-me o pensamen-to. Sinto-me deslocado, aborrecido, insatisfeito. Alba Lucínia ouvia-lhe as afirmativas com ocoração alarmado . Para o seu espírito sensível,semelhantes perspectivas eram assaz amargas eperturbadoras. Certo, Cláudia Sabina iria tambémà Hélade distante, e por tempo que ninguém pode-ria precisar. Anuir à viagem do esposo era entre-gá-lo às seduções inferiores daquela mulher, cujossentimentos inconfessáveis a sua intuição femininapressentia. Mas não só isso a preocupava. A suasituação em Roma tornar-se-ia novamente penosadurante a ausência do companheiro . Lólio, sem dú-vida, voltaria a assediá-la com mais veemência eteimosia. Pensou em falar a Helvídio, cientificá-lo detodos os fatos ocorridos na sua ausência, expor-lhecom sinceridade os seus escrúpulos, mas, logo, àmente lhe veio a figura paterna. Fábio Cornéliodependia, absolutamente, do prestígio e do apoiodo prefeito, e do seu velho genitor dependiam sua

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mãe e seus irmãozinhos inexperientes. Num relance, a nobre senhora compreendeu aimpossibilidade de manifestar suas queixas diretas,em tais circunstâncias da vida, e, recordando-seainda da gentileza do Imperador para com a fi-lha, assegurando-lhe generosamente o futuro, sen-tiu que a voz da gratidão deveria falar mais altoque as conveniências pessoais. - Helvídio - murmurou ela depois de viverintensamente as suas lutas íntimas -, ninguémmais que eu poderá sentir a tua ausência. Sabesque a tua presença no lar constitui a minha pro-teção e a de nossa família, mas o dever, querido.onde fica o dever nas atuais circunstâncias de nossavida? O convite do Imperador não deverá repre-sentar para nós uma prova de confiança? E agenerosidade de Adriano para conosco? A dádivade Cápua não se verificou de modo a cativar-nospara sempre? - Tudo isso é verdade - confirmou o tribunocalmamente -, mas eu odeio esse totalitarismo doImpério, que nos rouba a autonomia individual enos anula a própria vontade. - Contudo, precisamos refletir para nos adap-tarmos às circunstâncias - obtemperou a esposa,de maneira a confortar o espírito abatido do com-panheiro . - Não é somente a política que me impres-siona desagradàvelmente - disse Helvídio desaba-fando -, é também a perspectiva da nossa sepa-ração por tempo indefinido! Longe do teu coraçãoponderado e carinhoso, sinto-me passível de es-morecimento ante o assédio das tentações de todaespécie, que me dificultam as iniciativas necessá-rias. Além do mais, terei de partir em companhia

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de pessoas que me não são simpáticas, e cujasrelações sociais detesto sem restrições. Alba Lucínia compreendeu as alusões indiretasdo companheiro exacerbado e, tomando-lhe as mãosafetuosamente, exclamou com meiguice : - Helvídio, muita vez quem odeia é que nãosoube amar convenientemente. Façamos por man-ter a harmonia e a paz na esfera de nossas rela-ções. Como a concepção do dever fala mais altonas tradições do nosso nome, acredito que partirássem te deixares perder nos sentimentos inferio-res!. . Sê calmo e justo, certo de que ficarei oran-do por ti, amando-te e esperando-te. Essa doceperspectiva não te será um consolo de todas ashoras? Depois de uma pausa meditativa das ponde-rações da companheira, o tribuno atraiu-a ao co-ração, beijando-a agradecido. - Sim, querida, os deuses hão-de ouvir-te aspreces pela nossa ventura. Também sinto que odote de Helvídia exige mais este sacrifício; contu-do, ao regressar, tomaremos as providências indis-pensáveis à modificação de nossa vida. Alba Lucínia experimentou um brando alívioao reconhecer que suas palavras haviam tranquili-zado o companheiro, mas, voltando ao seu pequenomundo doméstico, passou a refletir na sua amar-gurada situação pessoal, considerando as penosasprovações que o destino lhe reservava no curso davida. Debalde insulava-se no santuário do lar, nosintervalos de suas atividades intensas, implorandoa proteção das divindades que lhe haviam presi-dido ao matrimônio. Apesar do fervor com queo fazia, os deuses de marfim pareciam-lhe frios,implacáveis, e, no torvelinho das alegrias domés-

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ticas, o sorriso ocultava muitas lágrimas silencio-sas, que não lhe borbulhavam dos olhos, mas es-caldavam o coração. Entre as clarinadas do júbilo geral, surgiramas festas adrianinas e, com elas, a data auspiciosados esponsais da filha de Helvídio Lucius. As cerimônias núpcias constituíram um dosacontecimentos mais notáveis para a sociedade deentão, a elas concorrendo o que Roma possuía demais distinto nas camadas do patriciado . Fábio Cornélio, desejando comemorar a ventu-ra da neta de sua predileção, fora fértil em inven-tar os mais belos jogos de iluminação, no parqueda residência de seus filhos. Por toda parte, aroma de flores maravilho-sas, em todos os recantos cantigas e trovas apai-xonadas a confundirem-se com os sons das cítarase atabales, tangidos por mãos de mestres exímios...Enquanto os escravos se cruzavam apressados emsatisfazer o capricho dos convivas, dançavam bai-larinos famosos ao estribilho melodioso dos alaúdes.Pequenos lagos, improvisados à guisa de aquáriosnaturais, ostentavam plantas soberbas do Orientee peixes exóticos provocavam a admiração de quan-tos se deliciavam com as alegrias da noite . Todo o cenário festivo fora preparado a cará-ter, com previsão e requintes de bom gosto, salien-tando-se a piscina, onde barcos graciosos e levesse pejavam de ninfas e trovadores, e a arena naqual, de remate à festa, dois escravos jovens eatléticos perderam a vida sob os gládios poderososde lutadores mais fortes. Nenhuma lacuna se observava, exceto a ausên-cia de Cneio Lucius, que, segundo informavam osanfitriões, permanecia no Aventino, ao lado da outra

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neta enferma. No dia seguinte, enquanto Helvídia e Caio par-tiam para Cápua sob uma chuva de flores e sebem estivessem no zênite as festividades do povo,Alba Lucínia não conseguia dissipar a onda de re-ceios que lhe assaltara o coração. Sua consciênciasentia-se tranqüila em relação ao que alvitrara aomarido, considerando que a gratidão de ambos,ao Imperador, não admitia tergiversações quanto àviagem à Grécia. Mas Helvídio Lucius lhe falarados próprios temores, com respeito às tentações...Suas mãos ainda sentiam o calor das dele, ao ter-minar as confidências amargurosas. Estaria certa,incitando-o a aceitar os novos encargos impostospelo Império? Não deveria, igualmente, defender oesposo de todas as situações difíceis, determina-das pela política com as suas inquietações perver-soras ? . . Nasceu-lhe, então, a idéia de procurar CláudiaSabina e pedir, com humildade, a sua interferência.Semelhante atitude não se compadecia com as tra-dições de orgulho da sua estirpe, mas o desejo dobem, aliado à vibração da sinceridade pura, pode-ria, a seu ver, modificar as intenções bastardasque, porventura, vivessem no coração daquela cria-tura fatal. Desde que percebera a indecisão de Helvídio,sentiu a necessidade de cooperar ativamente paraa sua tranqüilidade moral, desviando dele todos osperigos, com a mobilização das forças poderosas doseu afeto, que chegava a vencer os imperativosdo orgulho inato. Assim foi que, depois de muito meditar, no diaimediato ao casamento de Helvídia deliberou pro-curar Cláudia Sabina, pela primeira vez, no seu

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palácio do Capitólio . Sua liteira foi recebida no átrio com geral ale-gria, mas a mulher do prefeito, não obstante oesforço sobre-humano para dissimular a contrarie-dade que lhe causava a visita inesperada, recebeu-acom enfado e altivez. A mulher de Helvídio, contudo, apesar do or-gulho que a hierarquia do nascimento lhe avivarano coração, mantinha-se serena e digna na sua ati-tude de sincera humildade . - Senhora - explicou a filha de Júlia Spin-ter após as saudações usuais -, venho até aquisolicitar seus bons ofícios para nossa tranqüilidadedoméstica . - As suas ordens! - retrucou a antiga ple-beia assumindo ares de superioridade e cortandoa palavra da interlocutora. - Terei o máximo pra-zer em lhe ser útil. Não lhe sendo possível devassar os sentimen-tos mais íntimos da esposa de Lólio Úrbico, a seurespeito, a nobre senhora prosseguiu com simpli-cidade : - Acontece que o Imperador, com o cavalhei-rismo e a magnanimidade que lhe marcam as atitu-des, convidou meu marido para acompanhá-lo àGrécia, onde talvez se demore mais de um ano.Helvídio, porém, tem numerosos trabalhos em pers-pectiva e que dizem com a nossa tranquilidadefutura. A referida excursão, com a honrosa in-cumbência que lhe foi confiada, representa paranós um motivo de honra e alegria, e, contudo, re-solvi apelar para o seu prestígio generoso juntodo César, a fim de que dispense meu marido dessacomissão . - Oh ! mas isso iria transtornar completa-

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mente os planos de Augusto - disse Cláudia Sa-bina com visível ironia. - Então a esposa de Hel-vídio não se alegrará de compartilhar com ele asagrada confiança do Império? Não me consta queuma patrícia de nascimento fugisse, algum dia, decomungar com o marido nos esforços preciosos queelevam o homem às culminâncias do serviço oficial. Alba Lucínia escutava-a, surpreendida, enten-dendo integralmente aqueles conceitos irônicos eatrevidos. - Atender a um pedido dessa natureza é hu-manamente impossível - prosseguiu com expres-sões fisionômicas quase brutais. - Helvídio Luciusnão poderá esquivar-se ao programa administra-tivo, julgando, desse modo, que o seu coração demulher venha a conformar-se com as circunstâncias. A filha de Fábio Cornélio ouvia-lhe as pala-vras mordentes, recordando as confidências de Tú-lia relativamente ao passado do esposo. Atentavapara os gestos da antiga plebéia, elevada pelo des-tino às melhores posições nos círculos da nobreza,e sentia, no todo de suas expressões contrafeitas eestranhas, um vasto complexo de odiosos sentimen-tos recalcados. Somente o ciúme poderia transfor-má-la de tal modo, a ponto de modificar os traçosmais graciosos da fisionomia. Não contavam elas a mesma idade, mas pos-suíam ambas os mesmos atrativos físicos da mu-lher formosa que ainda não chegou ao outono davida e guarda as melhores prendas da primavera.Ao passo que Alba Lucínia atingira os trinta eoito anos, Cláudia chegara aos quarenta e dois,apresentando as duas as mesmas disposições democidade refletida. Notando que Alba Lucínia lhe reparava todos

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os gestos, analisando-lhe as mínimas expressõescom a sua observação inteligente e guardando todaa sua superioridade em face dos seus conceitosapressados, a esposa de Úrbico irritou-se profundamente . - Afinal - exclamou quase ríspida, para apatrícia que a escutava em silêncio -, a senhorapede-me o inexeqüível. Pois fique sabendo que atra-vessamos uma época difícil em que as mulheres sãoobrigadas a abandonar os companheiros ao saborda sorte. Eu mesma, possuindo o prestígio parao qual vem apelar, não consigo ladear semelhantescontingências. Casada com o prefeito dos preto-rianos, já lhe ouvi dos próprios lábios a dolorosaafirmativa de que não poderá querer-me nunca. Assim falando, fixou na interlocutora os olhoschamejantes de cólera, enquanto Alba Lucínia sen-tia o coração pulsar, precipite. - E sabe a senhora quem é a mulher quedetém as preferências de meu marido? - pergun-tou a antiga plebéia com expressão odienta, inde-finível . A nobre patrícia recebeu-lhe a alusão atrevida,de olhos úmidos, nos quais transparecia a digni-dade da alma. - O seu silêncio - murmurou Sabina arro-gante - dispensa maiores explicações. Alba Lucínia levantou-se de faces purpureadas,exclamando com dignidade: - Enganei-me lamentàvelmente, supondo quea sinceridade de uma esposa honesta e mãe dedi-cada lhe comovesse o coração. Em troca de meussentimentos leais, recolho insultos de uma ironiamordaz e injustificável. Não a condeno. A educa-ção não é a mesma para todas as pessoas de umacomunidade social e temos de subordiná-la ao sen-

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so da relatividade. Além do mais, cada qual dá oque tem. E, sem mesmo despedir-se, caminhou desas-sombradamente até o átrio, onde a liteira a espe-rava, cercada de servos atenciosos, enquanto Cláu-dia Sabina como que petrificada no seu ódio, antea lição de superioridade e desprezo recebida, es-boçava um riso nervoso que explodiria logo apósem saraivada de impropérios contra as escravas. Na intimidade do lar, Alba Lucínia orou, su-plicando aos deuses fortaleza e proteção. A viagemdo marido se efetuaria sem delongas e ela nãojulgava oportuna qualquer revelação a Helvídio,acerca das suas contrariedades íntimas. Conforma-da com os fatos, ficaria em Roma, crente de quemais tarde poderiam florir as suas esperanças depaz e felicidade no ambiente doméstico. Urgia con-servar a harmonia e a coragem moral do compa-nheiro, de modo que o seu coração pudesse supor-tar todas as dificuldades e vencer galhardamenteas situações mais penosas. Ocultando as lágrimasíntimas, a pobre senhora lhe preparou todos ospetrechos de viagem com o máximo carinho. Hel-vídio partiria com o seu amor e com a sua con-fiança e isso lhe devia bastar ao coração sensívele generoso. Entretanto, o último dia das festividades adria-ninas alvorecera e os protocolos da Corte obriga-vam Alba Lucínia a acompanhar o esposo, nasderradeiras exibições do circo, onde Nestório e ofilho deveriam ser sacrificados. A perspectiva de semelhante espetáculo gela-va-lhe o sangue, antevendo o horror das cenasbrutais do anfiteatro, organizadas por espíritos in-sensíveis.

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Recordou-se de que, na antevéspera, acompa-nhara Helvídia e Caio Fabricius ao Aventino paraas despedidas do avô e de Célia, notando que apobrezinha estava profundamente desfigurada pelasamarguras do seu grande e infortunado amor. Ocoração materno experimentava, ainda, o calor doabraço afetuoso da filha, que lhe dissera ao ouvi-do, em voz quase imperceptível: no último espe-táculo, Ciro morrerá. Revia-lhe os olhos úmidosao dar-lhe, resignada, semelhante notícia, lembran-do, ao mesmo tempo, a generosidade com que Céliaacolhera a ventura da irmã, que, sorridente, feliz,partia para as delícias de Cápua, com os seus votosfraternos de felicidade e de paz . Alba Lucínia meditou longamente os doloro-sos problemas que lhe atormentavam o espírito,ponderando a necessidade de ocultá,-los, dia a dia,sob o véu das alegrias disfarçadas e mentirosas,e demorando-se amargurada nos porquês do sofri-mento e nos contrastes da sorte. Era, porém, imprescindível que buscasse mo-dificar as suas disposições espirituais. Com efeito, daí a poucas horas Helvídio lherecordava as obrigações protocolares e não foi sememoções penosas que ajustou a túnica de gala, en-tregando-se às escravas para as bizarrias expressõesdo penteado em voga. A tarde, observada à risca a tradição dos cor-tejos, as alegrias populares desbordavam no circo,entre ditérios e gargalhadas. A caravana do César já havia chegado sob umachuva de aplausos ensurdecedores. Num palanque dourado, Élio Adriano cerca-va-se dos patrícios e dos augustinos de maior no-meada, entre os quais as personagens aristocráticas

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desta narrativa. Em torno da tribuna de honraestavam as vestais, formando um quadro magní-fico, e as fileiras hierárquicas dos mais altos re-presentantes da Corte. Senadores de mantos pur-purinos, chefes militares com as suas armadurasprateadas e brilhantes, dignitários imperiais, con-fundiam-se em linhas ordenadas simetricamente,sobre verdadeiro oceano de cabeças humanas -- aplebe que dava expansão à sua alegria. Na tribuna imperial sucediam-se as libações,quando o soberano se dirigiu a Lólio Úrbico nestestermos: - Decretei o suplício e a execução dos conspi-radores para a tarde de hoje, em atenção aos belosserviços com que a prefeitura dos pretorianos vemilustrando os feitos do Império. - Aliás, Divino - retrucou o prefeito comum sorriso -, devemos esse grande esforço a FábioCornélio, cuja dedicação extrema aos serviços doEstado se vem tornando cada vez mais notória noscírculos administrativos. O velho censor agradeceu com um aceno areferência direta ao seu nome, enquanto Adrianoobtemperava: - Tive o cuidado de excluir da sentença todosos elementos reconhecidamente romanos, que figu-ravam entre os agitadores entregues à justiça.Mandei libertar a maioria no período das primeirasprovidências processuais, exilando definitivamentepara as Províncias os treze elementos mais exal-tados, restando apenas vinte e dois estrangeiros,ou sejam, judeus, efésios e colossenses. - Divino, vossas deliberações são sempre jus-tas - exclamou o censor Fábio Cornélio, ansiosopor desviar o assunto, de modo a não recordar o

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caso de Nestório que, garantido por seu genro, tra-balhara nos próprios serviços de pergaminhos daPrefeitura. Aproveitando a pausa natural, o orgulhoso pa-trício acentuou: - Mas, a grandeza do espetáculo de hoje éverdadeiramente digna do César! Ainda não havia terminado a frase quandotodos os presentes alongaram o olhar para o cen-tro da arena, onde, após os coleios exóticos dosdançarinos, iam iniciar-se as caçadas fabulosas.Atletas jovens começaram a lutar com tigres fe-rozes, apresentando-se igualmente elefantes e antí-lopes cães selvagens e auroques de chifres pon-tiagudos. De quando em quando, um caçador caía en-sanguentado, sob aplausos delirantes, seguindo-setodos os números da tarde ao som de hinos queexacerbavam o instinto sanguinário da multidão. Por vezes, os gritos de "cristãos às feras" e"morte aos conspiradores", explodiam sinistramen-te da turba enfurecida. Ao fim da tarde, quando os últimos raios doSol caíam sobre as colinas do Célio e do Aventi-no, entre as quais se ostentava o circo famoso, osvinte e dois condenados foram conduzidos ao cen-tro da arena. Negros postes ali se erguiam, aosquais os prisioneiros foram atados com grossascordas presas por elos de bronze. Nestório e Ciro confundiam-se naquele peque-no grupo de seres desfigurados pelos mais duroscastigos corporais. Ambos estavam esqueléticos equase irreconhecíveis. Apenas Helvídio e sua mu-lher, extremamente compungidos em face do su-plício infamante, notaram a presença dos seus anti-

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gos libertos entre os mártires, fazendo o possívelpor esconder o mal-estar que a cena cruel lhescausava. Os condenados, com exceção de sete mulheresque se trajavam de "indusium", estavam quase nus,munidos somente de uma tanga que lhes cobriaa cintura, até os rins. Cada qual foi colocado aum poste diferente, enquanto trinta atletas negrosda Numídia e da Mauritânia compareciam na arenaao som das harpas que se casavam estranhamentecom os gritos da plebe. Havia muito que Roma não presenciava aquelascenas, dado o caráter morigerado e tolerante deAdriano, que sempre fizera o possível por evitaros atritos religiosos, vendo-se, então, um espetáculoespantoso. Enquanto os gigantes africanos preparavamos arcos, ajustando-lhes flechas envenenadas, osmártires do Cristianismo começaram a entoar umcântico dulçoroso. Ninguém poderia definir aque-las notas saturadas de angústia e de esperança. Debalde, as autoridades do anfiteatro manda-ram intensificar o ruído dos atabales e os sonsestrídulos das flautas e alaúdes, a fim de abafar asvozes intraduzíveis do hino cristão. A harmoniadaqueles versos resignados e tristes elevava-se sem-pre, destacando-se de todos os ruídos, na sua ma-jestosa melancolia. Nestório e Ciro também cantavam, dirigindoos olhos para o céu, onde o Sol dourava as derra-deiras nuvens crepusculares. As primeiras setas foram atiradas ao peito dosmártires com singular mestria, abrindo-lhes rosasde sangue que se transformavam, imediatamente,em grossos filetes de sofrimento e morte, mas o

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cântico prosseguia como um harpejo angustiado,que se estendia pela Terra obscura e dolorosa..Na sua melodia misturavam-se, indistintamente, asaudade e a esperança, as alegrias do céu e osdesenganos do mundo, como se aquele punhado deseres desamparados fosse um bando de cotoviasapunhaladas, librando-se nas atmosferas da Terra,a caminho do Paraíso : Cordeiro Santo de Deus, Senhor de toda a Verdade, Salvador da Humanidade, Sagrado Verbo de Luz!... Pastor da Paz, da Esperança, De Tua mansão divina, Senhor Jesus, ilumina As dores de nossa cruz!... Também tiveste o Calvário De dor, de angústia, de apodo, Ofertando ao mundo todo As luzes da redenção; Tiveste a sede, o tormento, mas, sob o fel, sob as dores, Redimiste os pecadores Da mais triste escravidão! Se também sorveste o cálice De amargor e de ironia, Nós queremos a alegria De padecer e chorar... Pois, ovelhas tresmalhadas, Nós somos filhos do erro, Que no mundo do desterro Vivemos a Te esperar. Dá, Senhor, que nós possamos Viver a felicidade Nas bênçãos da Eternidade

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Que não se encontram aqui; O júbilo de reencontrar-Te Nos últimos padeceres, Acende em nós os prazeres De bem morrermos por Ti!.. Senhor, perdoa os verdugos De tua doutrina santa! Protege, ampara, levanta Quem no mal vive a morrer. . A caminho do Teu reino, Toda a dor se transfigura, Toda a lágrima é ventura, O bem consiste em sofrer!... Consola, Jesus amado, Aqueles que nós queremos, Que ficarão aos extremos Da saudade e do amargor; Dá-lhes a fé que transforma Os sofrimentos e os prantos Nos tesouros sacrossantos Da vida de Teu amor!... Outras estrofes elevaram-se ao céu como so-luços de resignação e de esperança... Com o peito crivado de setas que lhe exau-riam o coração, e contemplando o cadáver do filhoque expirara antes dele, dada a sua fraqueza or-gânica, Nestório sentiu que um turbilhão de lem-branças indefiníveis lhe afloravam ao pensamentojá vacilante, confuso, nas vascas da agonia . Comos olhos sem brilho pelas ânsias da morte arreba-tando-lhe as forças, percebeu a multidão que osapupava, escutando-lhe ainda os alaridos anima-lescos.. . Fitou a tribuna imperial, onde, certo, es-tariam quantos lhe haviam merecido afeição purae sincera, mas, dentro de emoções intraduzíveis,

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viu-se também, nas suas recordações confusas, natribuna de honra, com a toga de senador, enfeita-do de púrpura... Coroado de rosas (1) aplaudia,também ele, a matança de cristãos que, sem ospostes do suplício nem flechas envenenadas a lhestraspassarem o peito, eram devorados por ferashediondas e insaciáveis... Desejou andar, mover--se, porém, ao mesmo tempo sentia-se ajoelhadojunto de um lago extenso, diante de Jesus Naza-reno, cujo olhar doce e profundo lhe penetravaos recônditos do coração... Genuflexo, estendia asmãos para o Mestre Divino, implorando amparo emisericórdia... Lágrimas ardentes queimavam-lheas faces descarnadas e tristes... Aos seus olhos moribundos, as turbas furiosasdo circo haviam desaparecido... Foi quando um vulto de anjo ou de mulher (2)caminhou para ele, estendendo-lhe as mãos cari-nhosas e translúcidas. . . O mensageiro do céu ajoe-lhara-se junto do corpo ensangüentado e afagou-lheos cabelos, beijando-o suavemente. O antigo es-cravo experimentou a carícia daquele ósculo divinoe seu espírito cansado e enfraquecido adormeceu deleve, como se fôra uma criança. Em toda a arena vibraram radiações invisí-veis, dos mais elevados planos da espiritualidade . . .Seres abnegados e resplandecentes estendiam fra-ternalmente os braços para os companheiros queabandonavam o invólucro perecível, nos testemu-nhos da fé, pela injúria e pelo sofrimento. (1) Nestório era a reencarnação do orgulhoso senadorPúblio Lentulus Cornélio. (Vide "Há Dois Mil Anos...".) (2) Lívia. (Vide "Há Dois Mil Anos...".) - Notas deEmmanuel. Daí a minutos, enquanto os serviçais do an-

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fiteatro retiravam dos postes de martírio os des-pojos sangrentos, aos gritos de aplauso da turbaensandecida, Helvídio Lucius, na tribuna de hon-ra, apertava nervosamente as mãos da esposa, dan-do-lhe a entender as comoções inexplicáveis quelhe vagavam no íntimo, enquanto ela, obrigada amanter as atitudes protocolares, cravava no com-panheiro os olhos molhados. Mas, no palácio do Aventino, naquela tardelímpida e serena, o espetáculo fora talvez mais co-movente pela sua majestade dolorida e silenciosa. Recolhidos a uma sala de repouso, Cneio Lu-cius e a neta observavam todos os movimentosexternos das festividades adrianinas, reparando quea onda de povo se represara no circo para os der-radeiros números do programa. Ao empalecer do céu romano, a jovem buscouo fragmento de pergaminho em que Ciro escreveraas oitavas rimadas do último hino, exclamando parao velhinho, suavemente: - Avô, a esta hora Nestório e Ciro devemestar caminhando para o sacrifício! Acreditas, vovô, que os nossos amados podemvoltar do Céu para nos suavizar o destino? - Como não, minha filha? Pois se Jesus pro-meteu vir ao encontro de quantos se reúnam, nestemundo, em seu nome, como não permitirá volta-rem seus mensageiros, que nos amam já desta vida? Célia ergueu para o ancião os grandes olhostristes, iluminados por uma candidez maravilhosa. Em seguida, levantou-se muito serena, dirigin-do-se à larga janela que dava para o Tibre, cujaságuas refletiam os matizes da hora crepuscular. Fixando o pergaminho, leu todo o conteúdo,silenciosamente, cantando depois em voz quase im-

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perceptível todos os versos do hino cristão e de-tendo-se, de modo particular, na última estrofe,relendo-a com uma lágrima e procurando adivinharnela o pensamento do seu eleito. O venerando patrício ouvia-lhe a voz terna,como se escutasse uma ave implume, abandonadae só, entre os invernos do mundo, sem poder exte-riorizar as emoções que lhe assaltaram o íntimodolorido . As mais tristes meditações povoavam-lhe o cé-rebro, sentia o coração bater acelerado, num ritmoassustador. De alma confrangida, observava a neta que 'se voltava agora para o céu, como se buscasse en-tre as nuvens do azul vespertino o coração queidolatrava . Alguns minutos rolaram, longos e penosos parao seu pensamento exausto e magoado. Em dado instante, quando o firmamento jáhavia de todo desmaiado, a jovem fixou no Alto,com mais atenção, os olhos ternos e profundos,como se estivesse vislumbrando alguma visão quea extasiasse. Parecia abstraída de todas as sensações domundo exterior, de todos os objetos que a rodea-vam, figurando-se não perceber a presença do pró-prio avô, que lhe acompanhava o êxtase, comovi-damente . Decorridos instantes, todavia, os braços mo-viam-se de novo, como se as expressões que lheeram características retomassem o curso da reali-dade e da vida. - É verdade ! - suspirou Cneio Lucius numquase murmúrio . - Vovô - disse então com uma placidez di-

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vina a lhe brilhar nos olhos -, vi um bando depombas alvas, no céu, como se houvessem saído docirco do martírio ! . . - Sim, filha - respondeu Cneio Lucius an-gustiado, depois de levantar-se para contemplar oazul sereno -, devem ser as almas dos mártires,remontando à Jerusalém celeste ! . . Profundo silêncio fizera-se entre ambos. A ansiedade de seus corações, na grandezamelancólica do momento, falava mais que todas aspalavras. Célia, porém, rompeu aquela divina quietude,interrogando: - Vovô, já leste o Sermão da Montanha, emque Jesus abençoa todos os que sofrem ?!. . - Sim . . - respondeu o ancião amargurado. - Certamente - retornou a jovem com a suainocência carinhosa e desvelada - Jesus preferiuque eu ficasse no mundo, sem o amor de Ciro, asofrer o sacrifício da separação e da saudade, a fimde me salvar um dia, para o Céu, onde se reúnemtodos os seus bem-aventurados!. . Cneio Lucius sentiu profundamente a doceresignação daquelas palavras. Desejou responder,exortando-a à sublime perseverança daquele sacri-fício, mas tinha o velho peito sufocado. Atraiu,contudo, a neta de encontro ao coração, beijando--lhe a fronte enternecidamente. Seus cabelos bran-cos misturavam-se com a farta cabeleira jovem,como se a sua velhice veneranda fosse uma noiteestrelada osculando uma aurora. Ao longe, ouviam-se ainda as últimas algazar-ras do povo, mas o firmamento de Roma tocara-sede beleza sublimada e misteriosa. A imensa tran-quilidade do crepúsculo parecia povoar-se de sagra-

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dos apelos do Infinito. Então, os dois, fitando o Tibre e o Céu, emprece silenciosa, começaram a chorar...

SEGUNDA PARTE

A Morte De Cneio Lucius

Dois meses havia que o Imperador e seusáulicos preferidos tinham deixado Roma. Naquele fim de primavera do ano 133, a vidadas nossas personagens, na Capital do Império, cor-ria em aparente serenidade. Alba Lucínia concentrava na filha e nos ca-rinhos paternos a sua vida diuturna, sentindo-se,porém, muito combalida, devido às intensas preo-cupações morais, não somente pela ausência domarido, como pela atitude de Lólio Úrbico, que,vendo-se senhor do campo e abusando da autori-dade de que dispunha na ausência do César, re-dobrava os seus assédios com mais empenho eveemência. A nobre senhora tudo fazia para ocultar umasituação tão amarga e, todavia, o conquistador pros-seguia, implacável, nos seus propósitos desvairados,mal suportando o adiamento indefinido de suas es-peranças inconfessáveis. Anteriormente, a esposa de Helvídio tinha emTúlia Cevina a amizade de uma irmã carinhosa edesvelada, que sabia reconfortá-la nos dias de pro-vações mais ásperas ; mas, antes da viagem doCésar, o tribuno Máximo Cunctator fôra designadopara uma demorada missão política na Ibéria dis-tante, levando a esposa em sua companhia. Alba Lucínia via-se quase só, na sua angústia

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moral, porquanto não podia revelar aos velhos pais,tão extremosos, as lágrimas ocultas do seu coraçãoatormentado. Frequentemente, deixava-se ficar, horas a fio,a conversar com a filha, cuja simplicidade de es-pírito e cujo fervor na crença a encantavam, mas,por maiores que fossem os seus esforços, não con-seguia dominar a fraqueza orgânica que começavaa preocupar o círculo da família. Um fato viera perturbar, ainda mais, a exis-tência aparentemente tranqüila dos nossos amigos,na Capital do Império. Cneio Lucius adoecera gra-vemente do coração, o que para os médicos, de ummodo geral, era coisa natural, atento à idade. Debalde foram empregados elixires e cordiais,tisanas e panaceias. O venerável patrício dia a diase mostrava mais debilitado. Entretanto, Cneio de-sejava viver ainda um pouco, até o regresso do fi-lho, a fim de apertá-lo nos braços, antes de morrer.Nos seus extremos de afeição paternal, queria re-comendar-lhe o amparo às duas irmãs Publícia eMárcia, esclarecendo a Helvídio todos os seus de-sejos. Mas, o experiente conhecimento das obri-gações políticas forçava-o a resignar-se com ascircunstâncias. Élio Adriano, de acordo com os seushábitos, não regressaria antes de um ano, na me-lhor das hipóteses. E uma voz íntima lhe diziaque, até lá, o corpo esgotado deveria baixar, des-feito em cinzas, à paz do sarcófago. Algo triste,nada obstante os valores da sua fé, o venerávelancião alimentava no cérebro meditações graves eprofundas, acerca da morte. Célia, apenas, com as suas visitas, lograva ar-rancá-lo, por algumas horas, dos seus dolorososcismares .

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Com um sorriso de sincera satisfação, abra-çava-se à neta, dirigindo-se ambos para a janelafronteira ao Tibre, e, quando a jovem lhe falavada alegria do seu espírito, com o poder orar numlocal tão belo, Cneio Lucius costumava esclarecer: - Filha, outrora eu sentia a necessidade dosantuário doméstico com as suas expressões exte-riores... Não podia dispensar as imagens dos deu-ses nem prescindir da oferta dos mais ricos sacri-fícios; hoje, porém, dispenso todos os símbolosreligiosos para auscultar melhor o próprio coração,recordando o ensino de Jesus à Samaritana, ao pédo Garizim, de que há-de vir o tempo em que oPai Todo-Poderoso será adorado, não nos santuá-rios de pedra, mas no altar do nosso próprio espí-rito . . . E o homem, filhinha, para encontrar-se comDeus no íntimo de sua consciência, jamais encon-trará templo melhor que o da Natureza, sua mãee mestra... Conceitos que tais eram expendidos a cadainstante, nos colóquios com a neta. Ela, por sua vez, transformava as esperançasdesfeitas em aspirações celestiais, convertendo osofrimento em consolo para o coração do idolatra-do velhinho. Seu espírito fervoroso, com a subli-me intuição da fé que lhe ampliava a esfera decompreensão, adivinhava que o adorado avô nãotardaria muito a ir-se também a caminho do tú-mulo . Lamentava antecipadamente a ausência da-quela alma carinhosa e amiga, convertida em refú-gio do seu pensamento desiludido, mas, ao mesmotempo, rogava ao Senhor coragem e fortaleza. Num dia de grande abatimento físico, CneioLucius viu que Márcia abria a porta do quarto,de mansinho, com um sorriso de surpresa. A filha

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mais velha vinha anunciar-lhe a chegada de alguémmuito caro ao seu espírito generoso. Era Silano,o filho adotivo, que regressava das Gálias. O pa-trício mandou-o entrar, com o seu júbilo carinhosoe sincero. Levantou-se, trêmulo, para abraçar orapaz que, na juventude sadia dos seus vinte edois anos completos, o apertou também nos braços,quase chorando de alegria. - Silano, meu filho, fizeste bem em vir! -exclamou serenamente. - Mas, conta-me ! vens aRoma com alguma incumbência de teus chefes? O rapaz explicou que não, que havia solicitadouma licença para rever o pai adotivo, de quem sesentia muito saudoso, acrescentando os seus pro-pósitos de se fixar na Capital do Império, casoconsentisse esclarecendo que o seu comandante nasGálias, Júlio Saulo, era um homem grosseiro ecruel, que o submetia a constantes maus tratos ,a pretexto de disciplina. Rogava ao pai que o pro-tegesse junto das autoridades, impedindo-lhe o re-gresso. Cneio Lucius ouviu-o com interesse e retrucou : - Tudo farei, na medida dos meus recursos,para satisfazer teus justos desejos. Em seguida, meditou profundamente, enquantoo filho adotivo lhe notava o grande abatimentofísico. Saindo, porém, dos seus austeros pensamentos,Cneio Lucius acrescentou: - Silano, não desconheces o passado e, umdia, já te falei das circunstâncias que te trouxe-ram ao meu coração paternal. - Sim - respondeu o rapaz em tom resig-nado -, conheço a história do meu nascimento, masos deuses quiseram conceder ao mísero enjeitado

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do mundo um pai carinhoso e abnegado, como vós,e não maldigo o destino. O ancião levantou-se e, depois de abraçá-locomovido, caminhou pelo quarto, apoiando-se comesforço. Em dado instante, deteve os passos vaga-rosos, diante de um cofre de madeira decorado deacanto, abrindo-o cuidadosamente. Dentre os pergaminhos dessa caixa-forte, retirou um pequeno medalhão, dirigindo-se ao rapaz com estas palavras: - Meu filho, os enjeitados não existem paraa Providência Divina. Nem mesmo remontando aopretérito deves alimentar, no íntimo, qualquer má-goa, em razão da tua sorte. Todos os destinos sãoúteis e bons, quando sabemos aproveitar as possi-bilidades que o Céu nos concede em favor da nossaprópria ventura... E, como se estivesse mergulhando o pensa-mento no abismo das recordações mais longínquas,prosseguiu depois de uma pausa: - Quando Márcia te beijou pela primeira vez,nesta casa, encontrou sobre o teu peito de recém--nascido este medalhão, que guardei para entre-gar-te mais tarde. Nunca o abri, meu filho. Seuconteúdo não podia interessar-me, pois, fosse qualfosse, terias de ser para mim um filho muito ama-do . . . Agora, porém, sinto que é chegada a ocasiãode to entregar. Diz-me o coração que não vivereimuito tempo. Devo estar esgotando os últimos diasde uma existência, de cujos erros peço o perdãodo Céu, com todas as minhas forças. Mas, se meencontro próximo do túmulo, tu estás moço e tensamplos direitos à existência terrestre... Possivel-mente, viverás em Roma doravante, e é bem pos-sível chegue o momento em que terás necessidadede uma lembrança como esta... Guarda-a, pois,

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contigo . Silano estava profundamente tocado nas fibrasmais sensíveis do coração. - Meu pai - exclamou comovido, recolhendoo medalhão zelosamente -, guardarei a recordaçãosem que o conteúdo me interesse . Também eu, dequalquer modo, não reconheceria outro pai senãovós mesmo, em cuja alma generosa encontrei opróprio carinho maternal que me faltou nos maisrecuados dias da vida. Ambos se abraçaram com ternura, continuandoa palestra afetuosa, sobre fatos interessantes daProvíncia ou da Corte. Nessa mesma noite, o venerável patrício re-cebeu a visita de Fábio Cornélio, de quem solicitouas providências favoráveis às pretensões do filhoadotivo . O censor, muitíssimo sensibilizado em vista dassolenes circunstâncias em que o pedido era feito,examinou o assunto com o máximo interesse, demodo que, em pouco tempo, obtinha a transferên-cia de Silano para Roma, utilizando-lhe os serviçosna própria esfera de sua gestão administrativa efazendo do rapaz um funcionário de sua inteiraconfiança. Considerando o ingresso daquela nova perso-nagem na esfera de suas relações familiares, AlbaLucínia recordou as confidências de Túlia, mas pro-curou arquivar, com cuidado, as suas impressõesíntimas, aceitando de bom grado a amizade respei-tosa que Silano lhe demonstrava. No lar de Helvídio Lucius, contudo, a situaçãomoral se complicava cada vez mais, em face dasarremetidas de Lólio Úrbico, que, de modo algum,se decidia a abandonar as suas criminosas pre-

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tensões. Certo dia, à tarde, quando Alba Lucínia e Céliaregressavam de um dos habituais passeios ao Aven-tino, receberam a visita do prefeito dos pretorianos,cuja fisionomia torturada demonstrava inquietaçãoe profundo abatimento. A jovem recolheu-se ao interior, enquanto anobre patrícia iniciava a sua conversação amisto-sa e digna. O prefeito, porém, depois de algunsminutos, a ela se dirigiu, quase desvairadamente,nestes termos : - Perdoe-me a ousadia reiterada e imperti-nente, mas não me posso furtar ao imperativo dossentimentos que me avassalam o coração . Será pos-sível que a senhora não me possa conceder umaleve esperança ? ! . . . Debalde tenho procurado es-quecê-la... A lembrança dos seus atrativos e pe-regrinas virtudes está gravada em meu espíritocom caracteres poderosos e indeléveis!. . O amorque a senhora em mim despertou é uma luz indes-trutível, ardente, acesa em meu peito para toda aeternidade!. . Alba Lucínia escutava-lhe as declarações amo-rosas tomada de temor e espanto, sentindo-se in-capaz de traduzir a repugnância que aquelas afir-mativas lhe causavam. Enceguecido, porém, na sua paixão, o prefeitodos pretorianos continuava: - Amo-a profunda e loucamente... De hámuito, e bem jovem, tudo tenho feito para esque-cê-la, em obediência às linhas paralelas dos nossosdestinos; mas o tempo mais não fez que aumentaressa paixão, que me invade e anula todos os meusbons propósitos. Confio, agora, na sua magnani-midade e quero guardar no peito mísero uma tênue

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esperança ! . . Atenda às minha súplicas ! Conce-da-me um olhar! Sua indiferença me fere o cora-ção com a perspectiva dolorosa de nunca realizarmeu sonho divino de toda a vida... Adoro-a! suaimagem me persegue por toda parte, como umasombra... Porque não corresponder a essa dedi-cação sublime que vibra em minha alma? HelvídioLucius não poderia ser, nunca, o coração destina-do ao seu, no que se refere à compreensão e aoamor ! . . Quebremos o arganel das convenções quenos separam, vivamos os anseios de nossa alma.Sejamos felizes com a nossa união e o nosso amor!... Estupefata, Alba Lucínia calava-se, sem ati-nar com as respostas precisas, na tortura de suasemoções . Todavia, por detrás das cortinas, uma cenasignificativa se verificara. Dirigindo-se distraidamente, para a sala de re-cepções, Célia surpreendera as atitudes de Hatéria,que, qual sombra, se detinha no corredor, à escutadas palavras do prefeito, proferidas em voz altae imprudente . Acercando-se do local, ouviu, também ela, asúltimas frases apaixonadas do marido de Cláudia,fazendo-se pálida de surpresa dolorosa. Apesar de ouvir, distintamente, quanto o pre-feito houvera pronunciado, notou que sua mãe semantivera em estranho silêncio. Seria possível umatal afeição sob aquele teto? O coração inocentenão desejava dar guarida aos pensamentos inferio-res e injuriosos à castidade materna. Desejou orar,antes de tudo, a fim de que o seu espírito não ce-desse aos julgamentos precipitados e menos dignos;mas urgia dali afastar a criada antes que a situaçãose complicasse, a ponto de incidir na maledicência

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e na curiosidade dos próprios servos. - Hatéria, que fazes aqui? - perguntou bon-dosamente. - Vim trazer as flores da patroa - respondeufingindo despreocupação -; entretanto, temia per-turbar a tranquilidade da senhora e do senhor pre-feito, que tanto se estimam. A cúmplice de Cláudia Sabina frisou as últimaspalavras com tamanha simplicidade, que a própriaCélia, na santa ingenuidade da sua alma carinhosa,não percebeu qualquer malícia. - Está bem . Dá-me as flores que eu mesmaas entregarei à mamãe. Hatéria retirou-se imediatamente, para evitarsuspeitas, enquanto Célia, colocando as rosas numjarrão da ante-sala, recolhia-se ao quarto, de co-ração opresso, extravasando na prece sincera aslágrimas dolorosas da sua alma intranqüila. O silêncio da mãe a impressionara profunda-mente . Seria possível que ela amasse aquele ho-mem? Teriam surgido divergências íntimas, tão pro-fundas, entre seus pais, para que uma hecatombesentimental viesse desabar naquela casa semprebafejada de afeições tão puras?. . Não ouvira apalavra materna responder ao conquistador com aenergia merecida. Aquele mutismo lhe apavoravao coração. Seria crível que as paixões do mundohouvessem dominado a genitora, tão digna e tãosincera, na ausência de seu pai ? As mais doloro-sas conjeturas lhe povoavam a mente superexcitadae dolorida . Todavia, fez o propósito íntimo de não deixartransparecer as suas dúvidas e inquietações. Ocoração de filha recusava-se a crer na falência ma-terna, mas, mesmo assim, raciocinava no seu foro

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cristão que, se Alba Lucínia prevaricasse algumdia, seria chegado o momento de, como filha, tes-temunhar-lhe o mais santificado amor, com as su-blimes demonstrações de uma renúncia suprema. Agasalhando essas disposições, seu espírito ca-rinhoso sentiu-se confortado, relembrando os pre-ciosos ensinamentos de Jesus. No entanto, a esposa de Helvídio, sem que afilha chegasse a ouvir-lhe as palavras indignadas,depois de longa pausa, revidara com energia: - Senhor, tenho tolerado sempre os vossosinsultos com resignação e caridade, não somentepelos laços que vos ligam a meu pai, como pelaexpressão de cordialidade entre vós e meu esposo;mas a paciência também tem os seus limites. Onde a vossa dignidade de patrício adquiriutão baixo nível, inconcebível nos mais vis malfei-tores do Esquilino?! Lá no ambiente provinciano,nunca supus que em Roma os homens de governose valessem de suas prerrogativas para humilharmulheres indefesas, com a hediondez de paixõesinconfessáveis. Não vos envergonhais da vossa conduta, ten-tando nodoar a reputação de uma casa honesta ede uma mulher que se honra em cultivar as maiselevadas virtudes domésticas? Em que condiçõestentais esse crime inaudito! Vossas incríveis decla-rações, na ausência de meu marido, valem por ver-gonhosa traição e a mais torpe das covardias ! . . . Atentai bem para o vosso procedimento ina-creditável ! As portas acolhedoras desta casa, quese abriram constantemente para vos receber comoamigo, estão abertas para vos expulsar como aum monstro ! . . De faces incendidas, Alba Lucínia manifestava

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o seu ânimo resoluto, em tão angustiadas circuns-tâncias. Indignada, apontava a porta ao conquis-tador, convidando-o a retirar-se. - Senhora, é assim que se recebe uma afeição sincera? - resmungou Lólio Úrbico em voz surda. - Não conheço o código da prevaricação enunca pude compreender a amizade pelo caminhoda injúria - esclareceu a nobre senhora com oheroísmo da sua energia feminina. Ouvindo-a e percebendo-lhe a virtude indomá-vel, o prefeito dos pretorianos abriu a porta pararetirar-se, exclamando colérico: - Há-de ouvir-me com mais benevolência nou-tra ocasião. Tenho paciência inesgotável! E saiu precipitadamente, para as sombras danoite, que já se havia fechado sob o céu parda-cento. Vendo-se só, a patrícia deu expansão às lágri-mas amargas que se lhe represavam no íntimo.A saudade do marido, as preocupações morais, osinsultos do conquistador impiedoso, a falta de umcoração amigo que lhe pudesse recolher e compar-tilhar as amarguras, tudo contribuía para adensaras nuvens que lhe toldavam o raciocínio. Debalde buscou a filha consolá-la em suas an-gustiosas inquietações. Três dias passaram, amar-gurados e tristes. Célia podia, apenas, avaliar a angústia mater-na, mas não conseguia estabelecer a causa dosseus pesares, sentindo-se ainda atormentada e con-fusa com as declarações do prefeito. Abstraindo-se,todavia, de qualquer pensamento que pudesse in-firmar a dignidade materna, buscou esquecer oassunto, multiplicando os testemunhos carinhosos. Alba Lucínia, a seu turno, ponderava com

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amargura a nefasta influência que Lólio Úrbico esua mulher exerciam nos destinos de sua família,rogando com fervor aos deuses-lares compaixão e misericórdia. A situação prosseguia com as mesmas carac-terísticas dolorosas, quando, um dia, o velho servoBelisário, pessoa da confiança de Cneio Lucius ede seus familiares, veio avisar que o estado desaúde do ancião se agravara inesperadamente. Már-cia lhes dava ciência do fato, esperando fossem aoAventino com a urgência possível. Dentro de uma hora a liteira de Helvídio es-tava a caminho. Em pouco tempo, Célia e sua mãe defronta-vam o bondoso velhinho, que as recebeu com umlargo sorriso, não obstante o visível abatimento or-gânico. A cabeça encanecida repousava nos tra-vesseiros, de onde não se podia mais erguer, masas mãos enrugadas e alvas acariciaram a nora ea neta com inexcedível ternura. Alba Lucínia no-tou-lhe o esgotamento geral, surpreendendo-se com seu aspecto. A fulguração estranha dos olhosdava ensejo às mais tristes perspectivas. As primeiras perguntas, respondeu o enfermocom serenidade e lucidez : - Nada houve que justificasse tantos temoresde Márcia... Acredito que, amanhã mesmo, tereirecuperado o ritmo normal da vida. O médico jáveio e providenciou o necessário e oportuno... E notando o profundo abatimento da esposade Helvídio, acrescentou: - Que é isso, minha filha? Vens atender aum doente, mais enferma e abatida que ele pró-prio ? . . . Tua fraqueza dá-me cuidados . . . Tens osolhos fundos e as faces descoradas e tristes ! . A esse tempo, percebendo que o avô desejava

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dirigir-se mais particularmente a sua mãe, Céliaretirou-se para junto de Márcia, que lhe confiavaas suas apreensões sobre o estado de saúde do venerável ancião. Alba Lucínia, sentando-se à beira do leito, beijou a destra do enfermo com amor e enternecimento . Queria desculpar-se da impressão que lhe cau-sara, pretextar uma enxaqueca ou alegar outromotivo banal com que pudesse justificar o seuabatimento, mas, soberana tristeza apoderara-se doseu espírito. Além de todos os pesares, algo lhesegredava ao coração que o velho sogro, amadocomo pai, estava a partir para as névoas do tú-mulo. Diante dessa dolorosa perspectiva, seus olhoso contemplavam com a ternura piedosa do seucoração feminino. Em vão procurou um pretexto,no íntimo, para não incomodá-lo com as suas rea-lidades amargas e, todavia, o olhar estranho e ful-gurante de Cneio Lucius parecia perscrutar a ver-dade em si mesma. - Calas-te, filha?. . - murmurou ele, depoisde esperar por minutos a resposta às carinhosasinterpelações. - Alguém chegou a ferir-te o cora-ção afetuoso e desvelado ? Teu silêncio dá-me aentender uma dor moral muito grande . . . Sentindo que o enfermo lhe identificara o an-gustioso estado da alma, Alba Lucínia deixou rolaruma lágrima, filha do seu coração dilacerado . - Meu pai - não vos preocupeis comigo nemvos assuste esta lágrima! Sinto-me presa dos maisestranhos e torturantes pensamentos... A ausên-cia de Helvídio, os problemas do lar e agora avossa saúde abalada, constituem para mim um com-plexo de pensamentos amargos e indefiníveis ! .Mas os deuses hão-de apiedar-se da nossa situação,protegendo Helvídio e restituindo-vos a saúde pre-

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ciosa ! . . - Sim, filha, mas não é só isso o que te aca-brunha - retrucou Cneio Lucius com o aeu olharsereno e percuciente -, outras mágoas te constrin-gem o coração ! . . Há muito venho meditando nocontraste da vida que levavas na Província, coma que experimentas aqui, no báratro das nossasconvenções sociais. . . Teu espírito sensível, por cer-to, vem ferindo-se nos espinhos das estradas áspe-ras dos nossos tempos de decadência e contrastesdolorosos!... E, como se a sua análise sondasse mais fundo,acrescentou: - Sinto, ainda, que determinadas pessoas donosso círculo social hão dilacerado teu coração pro-fundamente... Não é verdade?. . Fixando-lhe os olhos calmos e luminosos, cujatransferência não admitia subterfúgios, a esposade Helvídio replicou com um suspiro de angústia: - Sim, meu pai, não vos iludis ; contudo, es-pero que confieis em mim, pois dentro da grandezados nossos códigos familiares saberei cumprir osdeveres de esposa e mãe, acima de quaisquer cir-cunstâncias. O venerável patrício meditou longamente comose buscasse, no íntimo, uma solução para consoloda nora, sempre considerada como filha extremosae digna. Em seguida, como se houvera escutado as vo-zes silenciosas do próprio coração, acrescentou : - Já ouviste dizer que temos várias vidasterrenas? - Como, meu pai ? Não compreendo . - Sim, alguns filósofos mais antigos nos dei-xaram no mundo essas verdades consoladoras. Lu-

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tei contra elas desde os estudos da mocidade, fielàs nossas tradições mais respeitáveis; contudo, avelhice e a enfermidade possuem também as suasgrandes virtudes!. . As experiências humanas en-sinaram-me que precisamos de várias existênciaspara aprender e nos purificarmos. . . Agora que meencontro no limiar do sepulcro, as mais profundasmeditações me visitam a mente . A questão dasaidas sucessivas aclarou-se, com toda a beleza desuas prodigiosas conseqüências. A velhice faz-mesentir que o Espírito não se modifica tão só comas lições ou com as lutas de um século, e a enfer-midade me fez reconhecer no corpo uma vestimen-ta pobre, que se desfaz com o tempo. Viveremosalém-túmulo com as nossas impressões mais vivase mais sinceras, e retornaremos à Terra para con-tinuar as mesmas experiências, em favor de nossaevolução espiritual. Percebendo que a nora lhe ouvia a palavrafilosófica, tomada de profunda surpresa, o vene-rando ancião acentuou: - Estas considerações, filha, vêm-me do ínti-mo para esclarecer-te que, apesar da decrepitudeportadora da morte, tenho o espírito vivaz e re-pleto das mesmas disposições e esperanças. Sema certeza da imortalidade, a vida terrestre seriauma comédia estúpida e dolorosa. Mas eu sei quealém do túmulo outra vida floresce e novas possi-bilidades felicitarão o nosso ser. Por essa razão, vibro com as tuas dores deagora, crendo, porém, que no futuro a Providên-cia Divina nos concederá novas experiências e ca-minhos novos... Os que hoje nos odeiam ou nosperseguem, poderão ser convertidos ao bem como nosso amor desvelado e compassivo. Quem sabe?

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Após esta vida, poderemos voltar, resgatando osnossos corações para o Céu e auxiliando a reden-ção dos inimigos. Tenhamos fé, piedade e esperan-ça, considerando que o tempo deve ser para nósum patrimônio divino ! . . De acordo com o ele-vado princípio das vidas múltiplas, os laços dosangue ensejam as mais sublimes possibilidades detransfundirmos a torpeza do ódio, ou dos senti-mentos inconfessáveis, em algemas cariciosas deabnegação e de amor... Sem forças físicas para defender os filhos que-ridos das ciladas e perigos do mundo, guardo asminhas esperanças afetuosas para o porvir aindalongínquo, sem descrer da sabedoria que rege ostrabalhos e provações da existência terrena. Cneio Lucius estava fatigado. As palavras sá-bias e inspiradas saíam-lhe da garganta, com difi-culdade indefinível. Além disso, Alba Lucínia nãolhe compreendeu as exortações carinhosas e trans-cendentes. Atribuiu-as, intimamente, a possíveisalterações mentais, decorrentes do seu estado fí-sico. Mostrando-se mais forte, em face das pró-prias amarguras, fez sentir ao ancião que o seuestado requeria repouso e deveria abster-se de es-forços prolongados e inadequados ao momento. O sábio patrício percebeu a incompreensão danora esboçando um sorriso carinhoso e resignado. Daí a momentos, a esposa de Helvídio confia-va aos de casa as suas impressões, relativamenteao estado mental do enfermo, o que, conforme es-clarecera Márcia, não era surpresa, desde que ogeneroso velhinho manifestara as suas simpatiaspelas doutrinas cristâs. Somente Célia compreendeu a situação, cor-rendo a consolá-lo . Com a sua ternura imensa,

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abraçou-se ao avô, enquanto ele lhe advertiu: - Sei porque assim me beijas e abraças...É pena que todos os nossos não possam compre-ender os princípios que nos esclarecem e consolamo coração ! . . Aos outros, não deverei falar coma franqueza com que permutamos nossos pensa-mentos. . . A ti, portanto, cumpre-me confessar quemeu corpo está vivendo as derradeiras horas. Daquia pouco, terei partido para o mundo da verdade,onde cessam todos os convencionalismos humanos.Em vez de confiar-te a teus pais, confio os meusfilhos ao teu coração ! . . Sinto que Helvídio e Lu-cínia experimentam muitas amarguras no ambientede Roma, do qual, há muito, se desabituaram...Sacrifica-te por eles, filhinha.. . Se sobrevierem si-tuações difíceis, ama-os ainda mais... Tu que melevaste ao Evangelho, deverás recordar que Jesusafirmava-se como remédio dos enfermos e pecado-res . . . Sua palavra misericordiosa não vinha paraos sãos, mas para os doentes, e as mãos para salvaras ovelhas tresmalhadas do seu aprisco divino...Não temas a renúncia ou o sacrifício de todos osbens do mundo. . . A dor É o preço sagrado de nossaredenção... Se Deus apiedar-se de minha indigên-cia espiritual, virei do mistério do túmulo para tefortalecer com o meu amor, se tanto for preciso. . . Enquanto a neta lhe ouvia a palavra, alta-mente emocionada, mas serena em sua fé, o vene-rando patrício continuava, depois de longa pausa: - Desde ontem, sinto que vou penetrando emuma vida nova e diferente... Ouço vozes que mechamam ao longe, e seres luminosos e imperceptí-veis para os outros me cercam o leito, desola-dos... Pressinto que o corpo não tardará a cairna agonia... mas, antes disso, quero dizer-te que

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estarás sempre no coração do avôzinho, seja ondee como for. Sua palavra tornava-se morosa e arquejante,mas a jovem, compreendendo a situação do queridoenfermo, amparou-lhe a cabeça alva de neve, commais cuidado e maior ternura. - Célia - murmurou com dificuldade-, todosos meus desejos referentes à vida... material...estão expressos... em carta a Helvídio. No cofrede minhas... lembranças... Minha consciência depecador... está em preces e sei... que Jesus nãodesprezará minhas súplicas. . . Mas desejaria. .. re-citasses a oração do Senhor, nesta hora extrema.. . Seus lábios moviam-se ainda, como se a quedasúbita das energias impedisse a elocução, mas aneta, alma temperada na fé ardente e nas grandesemoções das angústias terrestres, compreendeu oolhar calmo e profundo do agonizante, e começoua murmurar, retendo as próprias lágrimas: - Pai nosso, que estais no Céu, santificadoseja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, sejafeita a vossa vontade, assim na Terra, como nosCéus... Tranquilamente, terminou, como se as suaspalavras houvessem alcançado o Paraíso. O ancião fixou nela o olhar carinhoso, comose, no silêncio da hora extrema, houvesse concen-trado na sua afeição os derradeiros pensamentos. Cheia de cuidados, Célia ajeitou-lhe os traves-seiros, depois de um beijo molhado de pranto, di-rigindo-se em seguida ao interior, onde cientificousua mãe do que ocorria. Cneio Lucius havia caído em abatimento pro-fundo. A dispnéia implacável interceptara-lhe detodo a palavra e ele entrou em agonia lenta, que

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devia durar mais de setenta horas.. De nada valeram os recursos médicos do tem-po, com as suas fricções e beberagens. O mori-bundo perdia o "tônus vital", aos poucos, em meiodas mais dolorosas aflições. As lágrimas de Márcia e Publícia misturaram--se às de Alba Lucínia e filha, ante os rudespadecimentos do velhinho adorado. Um servo foiexpedido a toda pressa para Cápua, requisitandoa presença de Caio Fabricius e sua mulher, quepoderiam, talvez, chegar a Roma para as derradei-ras homenagens. Na manhã do terceiro dia de agonia dolorosa,como sói acontecer com as pessoas de idade avan-çada, Célia percebeu que o avô estava nas derra-deiras impressões da existência terrestre... a res-piração era quase imperceptível, um frio intensocomeçava a invadir-lhe os pés e as mãos. Todos os familiares compreenderam que che-gara o instante supremo... Márcia, nas suas ex-pressões de amargura resignada, sentou-se juntodo venerando genitor, aconchegando-lhe a cabeçaentre os joelhos, carinhosa, enquanto Célia lhe se-gurava as mãos frias e enrugadas... com a almaem prece fervorosa, suplicando a Jesus recebesseo avô na luz de sua misericórdia, a jovem cristã,no êxtase da sua fé, sentiu que a câmara espaçosase enchia de claridades estranhas e indefiníveis.Figurou-se-lhe divisar seres luminosos, aéreos, acruzarem a alcova em todas as direções... Porvezes, chegava a lhes fixar os traços fisionômicos,embora não os identificasse, surpreendendo-se coma visão de túnicas alvinitentes, semelhantes a lar-gos peplos de neve translúcida... Todavia, entre aqueles seres radiosos entreviu

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alguém que lhe era conhecido . Era Nestório, quea confortava com um afetuoso sorriso . Compreen-deu, então, que os bem-amados que nos precedemno túmulo vêm dar as boas-vindas aos que atin-giram o último dia na Terra.. Naquele minutoluminoso, seu coração enchia-se de carinhoso júbiloe de radiosas esperanças... Desejou falar ao vultode Nestório, perguntando-lhe por Ciro, mas abste-ve-se de pronunciar qualquer palavra, receosa deque a sua abençoada visão se desfizesse... Contu-do, como se os pensamentos mais íntimos fossemouvidos pelo amigo desencarnado, percebeu que oex-escravo lhe falava, ouvindo a sua voz, estra-nhamente, como se o fenômeno obedecesse a umnovo meio de audição intracerebral. - Filha - parecia-lhe dizer o Espírito Nestó-rio, afetuosamente -, Ciro já veio e vê-lo-ás bre-ve ! . . Acalma o coração e guarda a tua fé semdesdenhar o sacrifício ! . . . Adeus ! . . . Junto de al-guns amigos desvelados, aqui viemos buscar o co-ração de um justo ! . . Com os olhos marejados de pranto, a filha deHelvídio notou que Nestório abraçara-se ao mori-bundo, enquanto uma força invencível a arrancavado êxtase, fazendo-a voltar à vida comum. Como se houvera chegado de outro plano, ou-viu que Márcia e sua mãe pranteavam e certifi-cou-se de que o moribundo deixara escapar o últimosuspiro. Cneio Lucius, com a consciência edificada noslargos padecimentos de uma longa vida, partira aoamanhecer, quando o maravilhoso Sol romano co-meçava a dourar as eminências do Aventino comos primeiros beijos da aurora... Então, um luto pesado se abateu sobre o pa-

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lácio que, por tantos anos, havia servido de ninhoaos seus grandes sentimentos. Durante oito dias,seus despojos ficaram expostos à visitação pública,na qual se confundiam nobres e plebeus, por lhetrazerem, todos, um pensamento agradecido. A notícia do infausto acontecimento foi man-dada a Helvídio pelo correio do próprio Imperador,enquanto Caio e a esposa chegavam da Campânia,a fim de assistir às derradeiras homenagens aomorto ilustre e querido. Cneio Lucius não tivera o conforto da presençade Helvídio, mas Cornélio fez questão de tomartodas as providências para que não lhe faltassemas honras do Estado. Assim, o venerando pa-trício, justamente conhecido e estimado por suasvirtudes morais e cívicas, antes de baixar ao túmulo, recebeu as homenagens da cidade em peso.

Calma E Sacrifício

Helvídio Lucius encontrava-se entre a Tessáliae a Beócia, quando lhe chegou a notícia do faleci-mento do pai . Inútil cogitar de uma visita a Roma,com o fim de confortar o coração desolado dosseus, não somente porque muitos dias já se haviamescoado, como também devido aos seus labores in-tensos, no cargo a ele confiado pelos caprichos doImperador. Entre os mármores e preciosidades da antigaFócida, em cujas ruínas era obrigado a utilizar osseus talentos na escolha de material aproveitávelàs obras de Tibur, sentiu no coração um vácuoimenso . O genitor era para ele um amparo e umsímbolo. Aquela morte deixava-lhe na alma uma sau-dade imorredoura.

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Os longos meses de separação do ambientedoméstico decorriam pesadamente. Debalde atirava-se ao trabalho para fugir aodesalento que, amiúde, lhe invadia o coração. Embora a comitiva imperial permanecesse emAtenas, junto de Adriano, ele nunca estava livredas convenções sociais e políticas, no ambiente desuas atividades diuturnas. Sobretudo Cláudia Sa-bina nunca o abandonava na faina do esforço co-mum, cooperando na sua tarefa com decisão e comêxito, reconquistando-lhe a simpatia e amizade deoutros tempos. Helvídio Lucius, porém, se lhe ad-mirava a capacidade de trabalho, não poderia tran-sigir no tocante aos sagrados deveres conjugais,guardando a imagem da esposa no santuário desuas lembranças mais queridas, com lealdade e ve-neração. Recebia as suas cartas afetuosas e con-fiantes. como um estímulo indispensável aos seusfeitos e acariciava a esperança de regressar a Romaem breve tempo, como alguém que aguardasse an-sioso o dia de paz e liberdade . Desde muito, porém, o generoso patrício traziao íntimo onusto de preocupações e de sombras. A esposa de Lólio Úrbico, modificando os pro-cessos de sedução, apresentava-se agora, a seusolhos, como amiga devotada e fiel, irmã dos seusideais e de suas preocupações. No fundo, a antigaplebeia conservava a paixão desvairada de sempre,acompanhada dos mesmos propósitos de vingançapara com Alba Lucínia, considerada como usurpa-dora da sua ventura. O tribuno, entretanto, observando-lhe as dedi-cações reiteradas e aparentemente sinceras, come-çou a acreditar no seu desinteresse, verificando aconfortadora transformação dos sentimentos da sua

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profunda capacidade para o artificialismo. CláudiaSabina, contudo, continuava a querê-lo desvairada-mente. O constante adiamento de suas esperançasrepresava-lhe a paixão com mais violência. No ín-timo, experimentava os padecimentos de uma leoaferida, mas a verdade é que, a cada investida doseu afeto, Helvídio lhe fazia perceber o carátersagrado das obrigações matrimoniais de ambos, in-diferente ao seu olhar ansioso e às suas aspiraçõesinconfessáveis. A mulher de Lólio Úrbico desejavaser amada, assim, com tanta fidelidade e devota-mento, mas os sentimentos grosseiros do coraçãonão lhe deixavam perceber as vibrações mais no-bres do espírito. Sabia, tão somente, que amavaHelvídio Lucius com todos os impulsos do seu tem-peramento lascivo. Para realizar os seus propósitosinconfessáveis, não recuaria. Odiava Alba Lucíniae não trepidaria em lhe impor a vingança maiscruel, desde que conseguisse voltar às delícias doantigo amor, feito de exclusividade e violência . Cláudia percebeu que o tribuno, apegado àsconcepções do dever, poderia ser vencido tão so-mente por uma dissimulação a toda prova, e porisso cercava Helvídio de atenções carinhosas e cons-tantes dedicações. Quando, acidentalmente, se re-feria à esposa ausente, tinha o cuidado de elogiá-la,esforçando-se por colorir os conceitos com o melhortom de sinceridade. Desse modo, o filho de Cneio Lucius se foiprendendo, novamente, na teia de encantos daquelamulher, concedendo-lhe uma atenção indevida, sen-sibilizado nas fibras mais íntimas do coração, em-bora nunca chegasse a olvidar as suas obrigaçõesmais sagradas. Cláudia Sabina, contudo, afagava novas espe-

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ranças. Aos seus olhos, bastaria afastar do caminhoa figura incômoda de Alba Lucínia, para assegu-rar a sua bastarda felicidade. Certo dia, a esposa do prefeito, fingindo dis-tração nas palavras, como de costume, asseveroua Helvídio, em íntima palestra: - A última carta de uma das minhas amigas,de Roma, dava-me a conhecer um pormenor curio-so da vida de meu marido. Musônia avisa-me deque Úrbico passa em sua casa quase todo o tempode que dispõe nos seus labores de Estado. - Em minha casa? - perguntou o tribuno,ruborizado, adivinhando a malícia de semelhanteinformação . - Sim - respondeu Cláudia, aparentando amaior indiferença -, sempre notei em meu maridosingular predileção por sua família. Lucínia e suafilha sempre foram alvo de suas gentilezas espe-ciais. Aliás, isso não nos pode surpreender. FábioCornélio, desde muitos anos, tem sido o seu melhoramigo . - Sim, isso é incontestável - exclamou Hel-vídio algo desapontado com semelhantes alusõesao seu lar. Sabina percebeu que aquele instante era favo-rável para iniciar o tenebroso plano e, fingindointeresse pela paz doméstica de Helvídio Lucius,acrescentou sem piedade : - Meu amigo, aqui entre nós, devo dizer-lheque meu marido não é um homem que justifiqueos mais preciosos costumes do ambiente romano.Avalie quanto me custa fazer-lhe esta confidência,mas desejo zelar pela paz do seu lar, acima detudo . Hipócrita e impulsivo por índole, Lólio Úr-bico tem feito numerosas vítimas, no campo de suas

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aventuras de conquistador inveterado. Temo-lhe afrequência à sua casa, por sua mulher e por suafilha. Helvídio fêz-se pálido, mas Cláudia, perceben-do o efeito de suas palavras, prosseguia impiedo-samente : - Vivemos uma época de surpresas temero-sas, na qual as mais sólidas reputações baqueiamimprevistamente... Desde que me casei com o pre-feito, venho experimentando uma série de prova-ções. Suas aventuras amorosas têm-me acarretadograndes dissabores, dado o clamor das vítimas, ame repercutirem no coração... - Por Júpiter! - murmurou o tribuno for-temente impressionado - não posso contestar assuas apreciações, mas quero crer que Fábio Cor-nélio não se poderia enganar por tantos anos, ele-gendo no prefeito um de seus melhores amigos. - Sim, esse argumento parece forte à primeiravista - respondeu Sabina com argúcia -, masconvém lembrar que o meu amigo recomeça a suavida na Capital do Império, depois de muitos anosacostumado à tranquilidade da Província. O tempodemonstrará que o censor e o prefeito se identi-ficaram muito em uns tantos negócios do Estado.Ambos são compelidos a se respeitarem e a sequererem mutuamente, mas, quanto à conduta in-dividual, sabem os deuses da realidade de minhasafirmativas . Helvídio Lucius desviou a palestra para outrosassuntos, reconhecendo a delicadeza daquelas ob-servações sobre a honorabilidade de outrem e apropósito do seu lar; mas, quando Sabina se reti-rou, sentiu-se envenenado de preocupações injusti-ficáveis e profundas. Que significariam as visitas

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reiteradas do Lólio Úrbico a sua casa? PorventuraAlba Lucínia ter-se-ia esquecido dos seus sagradosdeveres? Fábio Cornélio prender-se-ia tanto aos in-teresses materiais, a ponto de olvidar o nome eas respeitáveis tradições da família? Na mente dotribuno, as numerosas cogitações íntimas se bara-lhavam em tormenta. Ainda bem que aquela au-sência dolorosa estava prestes a findar. Élio Adria-no já expedira as ordens para que largassem daItália as galeras para o regresso. Em Roma, porém, a situação de Alba Lucíniae da filha chegava ao auge do sofrimento moral.Várias vezes, Célia percebera os colóquios de suamãe com o impiedoso conquistador, mas, dada asua timidez, não podia perceber a repulsa da geni-tora, diante da infâmia e da cruel ousadia. Lucí-nia, a seu turno, algumas vezes deparara com o pre-feito dos pretorianos em visita à sua casa, quandode suas curtas ausências junto das amigas, encon-trando o implacável perseguidor em conversaçãocom a filha, que o acolhia com a tolerância dosseus bons sentimentos, de modo a não ferir o co-ração materno, salientando-se que a esposa de Hel-vídio temia, sinceramente, a presença daquele ho-mem cruel, transformado em demônio do seu lar. A nobre senhora, abatida e doente, pensou emexpor a situação ao velho pai e, todavia, considerouque o censor já deveria ter percebido, de longadata, a sua posição angustiosa, do ponto de vistamoral, supondo, portanto, que, se ele silenciava, éque lhe sobravam ponderosas razões para fazê-lo. Muitas vezes tentou falar à filha sobre tãodelicado assunto, supondo-a também vítima das per-seguições insidiosas do inimigo da sua paz; toda-via, Célia, com a sua natural pudicícia, jamais deu

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ensejo às confidências maternais, desviando o cursodas conversações e multiplicando os carinhos paracom ela, em cujo coração adivinhava as mais an-gustiosas inquietações. Afinal, quando faltavam dois meses para oregresso definitivo de Helvídio, Alba Lucínia aca-mou-se, extremamente abatida. Mais de um ano fazia que o Imperador seausentara. Foram catorze meses de angústias para a filhade Fábio Cornélio, cuja saúde não pudera resis-tir ao embate das provações mais penosas. Célia,igualmente, tinha as faces descoradas e tristes.Através dos seus traços, podia observar-se o en-fraquecimento orgânico. As preocupações filiais setraduziam por longas noites de insônia, que acaba-ram por lhe arruinar a saúde, antes vigorosa . Coma sua ternura inata, ela tudo fazia por consolar amãezinha combalida. Dos portos da Itália foram enviadas quatrograndes galeras para o regresso de Adriano e suacomitiva . A primeira embarcação, chegada ao li-toral da Atica, foi disputada pelos elementos maisávidos de retornar ao ambiente romano, entre osquais Cláudia Sabina, que pretextava a necessidadede voltar quanto antes, considerando os apelos doseu círculo doméstico. Helvídio Lucius estranhou aquela pressa, masnão podia adivinhar o alcance de seus planos. Eletambém desejaria regressar, urgentemente, mas eraobrigado a atender ao convite do Imperador, parafazer-lhe companhia na embarcação de honra, quechegaria a õstia oito dias depois das primeirasgaleras . Daí a alguns dias, a mulher do prefeito dos

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pretorianos chegava à Capital do Império, com oavanço de uma semana, de molde a cogitar darealização dos sinistros projetos de vingança quelhe trabalhavam a mente . O marido recebeu-a coma frieza habitual e os servos da casa, com a an-gústia que a sua presença lhes facultava. Cláudia Sabina teve meios de fazer chegar amatéria a notícia de sua volta, encarecendo-lhe a vi-sita com a possível urgência. Em frente de sua cúmplice, a quem dispensavaO máximo de generosidade, a antiga plebéia disse--lhe ansiosamente: - Hatéria, chegou o momento de jogar a úl-tima cartada na minha partida. Realizarei meu pro-jeto sem vacilar nas minhas atitudes, e, quanto ati, receberás agora o prêmio da tua dedicação. - Sim, senhora - retrucava a serva com oolhar cúpido, considerando a propina. - Como vai a mulher de Helvídio? - A patroa vai muito abatida, e doente . - Ainda bem - murmurou Sabina satisfei-ta - isso favorece a execução dos meus planos. E depois de fixar na companheira os olhosansiosos, acentuou de maneira singular: - Hatéria, estás preparada para o que possaacontecer ? - Sem dúvida, minha senhora. Entrei em casado patrício Helvídio Lucius, para vos servir, exclu-sivamente . - Não te arrependerás por isso - disse Sabi-na com decisão. - Ouve-me : estamos ao termo damissão que te retém junto de Alba Lucínia. Es-pero do teu esforço o último serviço de colaboraçãona minha tarefa de amplo desagravo do passadodoloroso. Tenho sido generosa contigo, mas desejo

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assegurar o teu futuro pelos bons serviços que me hás prestado. Que desejas para descanso da tua velhice no seio da plebe desamparada ? Depois de pensar um momento, a velha servamurmurou satisfeita, como se já houvesse reali-zado, no íntimo, todos os cálculos imprescindíveisa uma resposta mais exata. - Senhora, sabeis que tenho uma filha casa-da, cujo marido vem arcando com a maior misérianos seus dias de tormento e de pobreza. Valério,meu genro, teve sempre grande amor à vida docampo; mas, em sua penosa condição de libertopobre, jamais conseguiu amealhar o suficiente paraadquirir um trato de terra, onde pudesse fazer afelicidade da família. Meu ideal, portanto, é pos-suir um sítio longe de Roma, onde me recolhessejunto dos filhos e dos netos que me estimarão,como hoje, nos dias próximos da decrepitude e dainvalidez para o trabalho. - Teus desejos serão satisfeitos - exclamoua mulher do prefeito, enquanto Hatéria a escutava,cheia de alegria -; vou indagar o custo de umsítio aprazível e, no momento oportuno, dar-te-eia quantia necessária. - E que devo fazer agora para lograr seme-lhante ventura? - Escuta - disse Cláudia com gravidade -,de hoje a uma semana Helvídio Lucius deverá estarde volta. Na tarde de sua chegada, deverás procu-rar-me para receber instruções. Nesse mesmo dia,terás o dinheiro necessário para realizar teus de-sejos. Por agora, vai-te em paz e confia em mim. Hatéria estava radiante com as perspectivasdo futuro, sem levar em conta os meios criminososque haveria de empregar para atingir seus fins. No dia seguinte, pela manhã, uma liteira mo-

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desta saía da residência de Lólio Úrbico, em direçãoà Suburra. Será inútil esclarecer que se tratava de Cláudia Sabina, dirigindo-se à conhecida casa da ven-dedora de sortilégios, com quem haveria de concluiros seus projetos sinistros. A feiticeira de Cumas recebeu-a sem surpresa,como se estivesse à sua espera. Depois de mergulhar as mãos ávidas na alu-vião de sestércios que Cláudia lhe trazia, Plotinaconcentrou-se diante da trípode que já conhecemos,falando em seguida: - Senhora, o momento é único ! Deveremoscuidar de todos os pormenores, quanto ao que voscumpre fazer, a fim de que se não percam os nos-sos melhores esforços. Cláudia Sabina pôs-se a meditar num planominucioso que a feiticeira submetia ao seu critério. Plotina falava em voz muito baixa, como sereceasse as próprias paredes, tal a ignomínia dassugestões criminosas. Finda a longa exposição, a consulente retrucoupensativa: - Mas, não seria melhor exterminar a rival ?Tenho alguém em sua casa que se poderá incumbirdo último golpe. Sei que conheces os filtros maisviolentos e que mos podes fornecer hoje mesmo. - Senhora - as vossas ponderações são ra-zoáveis, mas deveis recordar que a morte do corposó aproveita aos assuntos de ordem material ; e,em nosso caso, eles são de ordem espiritual, tor-nando-se indispensável um golpe infalível. Quemnos dirá que o homem amado voltará aos vossosbraços se a companheira descer às cinzas de umtúmulo ? Os que partem para o Além costumam

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deixar uma saudade duradoura, alimentando sem-pre uma paixão inextinguível. E enquanto a esposa do prefeito consideravaas estranhas insinuações como certas e justas, Plo-tina continuava : - É preciso instilar o ódio no coração dohomem desejado para que a vossa ventura sejaefetiva. Para atingirmos esse fim, necessária setorna flagelar a alma, abatendo-a e destruindo-a. - Sim, as tuas advertências são assaz judi-ciosas e não devo desprezá-las, mas, de conformi-dade com o teu plano, meu marido deverá desa-parecer.. - E que vos importa isso, se a sua morte sefaz necessária? Não forçais o destino para gozara felicidade possível com outro homem ? - Sim, teu projeto é o melhor, porquanto che-gaste a prever todas as conseqüências. E, como se apostrofasse a figura imagináriada rival, vítima da sua insânia e do seu ódio, acen-tuou com os olhos perdidos no vácuo: - Alba Lucínia deverá viver!.. Relegada auma plana inferior, com a sua vergonha, padeceráo desprezo e a execração que tenho padecido!... Plotina levantara-se. De um armário esquisi-to, retirou frascos e pacotes que entregou à cliente,com observações especializadas. Aceitando de alma aberta o plano odioso, Cláu-dia Sabina saiu, prometendo voltar. Daí a dias, Elio Adriano com a sua imponentecomitiva entrava pela Porta õstia, aclamado pelaonda espessa do patriciado e do povo. O Imperador, com a sua predileção pelas relí-quias da antiguidade, recomendou a Helvídio supe-rintendesse todo o serviço de descarga das peças

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curiosas da Fócida, destinadas a Roma. O tribuno,porém, delegando a incumbência a um dos seusprepostos de confiança, dirigiu-se à cidade, paraabraçar a esposa e a filha. Lucínia e Célia receberam-no com transportesde júbilo indizível. O tribuno, porém, abraçou-as tomado de enorme surpresa. Ambas se encontravam desfiguradas e doentes. Nada obstante, trocaram-se impressões carinhosas, cheias do encantamento e do júbilo dese reverem. Assinalando essa comovedora alegria, o generoso patrício, amante do lar, retirou de pequena caixa um soberbo bracelete de pedras preciosas, que entregou à esposa como lembrança de Atenas e deu à filha uma formosa pérola adquiridana Acaia, como recordação da Grécia longínqua. Depois, foi um longo desfiar de reminiscênciasamigas e doces, Alba Lucínia teve de confiar aomarido todas as peripécias da enfermidade, agoniae morte de Cneio Lucius. Enquanto a cidade se repletava de espetáculospara ilustrar o regresso do Imperador, Helvídio Lu-cius e os seus entretinham-se em palestra cariciosa,matando as saudades recalcadas. Todavia, quando os derradeiros clarões do Solpreludiavam o crepúsculo, o patrício disse à espo-sa, com grande ternura: - Agora, querida, regressarei a õstia, ondesou obrigado a pernoitar ainda hoje. Amanhã estarei definitivamente reintegrado em casa, a fim de organizarmos a nossa vida nova. Já me avistei com Fábio Cornélio, que acompanhou o Imperador ao lado do prefeito, mas somente amanhã poderei estarcom Márcia, para ouvi-la acerca de meu pai e dos seus últimos desejos. - Mas, as responsabilidades em õstia são as-sim tão imperiosas? - perguntou Alba Lucíniapreocupada. - Para os serviços do Imperador não

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teria bastado a ausência de mais de um ano? - Sim, querida, faz-se mister cumprirmos o dever nas suas características mais severas. Adriano incumbiu-me da verificação de todas as relíquias transportadas da Grécia e não posso confiar tãosomente no trabalho dos servos, dado o valor considerável da carga em apreço. Mas, não te amofines com isso !... Lembra-te de que amanhã aqui estarei para concertar os nossos planos familiares. Alba Lucínia aquiesceu com um sorriso triste,como se estivesse em face do inevitável. Seu co-ração, porém, desejava a presença do companheiropara confiar-lhe, imediatamente, os seus íntimos dissabores. Ao cair da tarde, a liteira de Helvídio saía de casa apressadamente. Alba Lucínia recolhia-se ao leito, cheia de novas esperanças, enquanto a filha voltava às suas meditações. Alguém, contudo, saía da residência do tribuno, cautelosa e apressadamente, sem despertar a curiosidade dos serviçais domésticos. Era Hatéria que se dirigia para o Capitólio. Cláudia Sabiná recebeu-a sôfrega, fazendo-a entrar num gabinete mais discreto e falando-lhe nestes termos: - Ainda bem que vieste mais cedo! Tenho de tomar muitas providências. - Aguardo as vossas ordens - respondeu acriatura na sua fingida humildade. - Hatéria - volveu Sabina com voz quaseimperceptível -, estou vivendo horas decisivaspara o meu destino. Confio em ti como se confiasseem minha própria mãe. E entregando-lhe pesada bolsa, com o preçoda traição, acrescentava: - Aqui está o prêmio da tua dedicação emfavor da minha felicidade. São economias com quepoderás adquirir um sítio, longe de Roma, conforme desejas. Hatéria, cúpida, recebia a pequena fortuna,deixando transparecer estranha alegria nos olhos

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fulgurantes. A mulher de Lólio Úrbico, todavia, continuava em tom discreto : - Em troca da minha generosidade, exijo-te, contudo, segredo tumular, ouviste? - Essa exigência me é muito grata, creia - dizia a cúmplice. - Confio na tua palavra. E depois de uma pausa, olhos perdidos novácuo, como a antever os seus feitos horríveis, acentuou: - Conheces a coluna lactária, no mercado de legumes? (1) - Sim, não fica longe do Pórtico de Otávia.Há muitos anos, por ali perambulei, a fim de obser-var as criancinhas abandonadas. - Neste caso não me será difícil explicar-te o que pretendo. Começou a falar com a velha serva em vozmuito baixa, expondo-lhe os seus projetos, enquan-to Hatéria a ouvia muito admirada, mas aquiescen-do a todas as sugestões. Cláudia Sabina parecia alucinada. Olhar abs-trato, a expressão fisionômica tinha um quê desinistro. Como que concentrada no só propósitode efetivar os seus planos, dirigia-se à velha serva maquinalmente : - Hatéria - disse, entregando-lhe um peque-nino frasco -, esse filtro dá repouso físico e sonoprolongado... Ao ministrá-lo, é preciso que AlbaLucínia descanse tranquilamente... Confiando-lhe outro frasco, afoitamente acrescentava: - Leva também este ! Terás necessidade de tudo isso... E, enquanto a serva guardava os elementos do crime, acentuava: - Que os deuses da minha vingança nos protejam... Até que enfim, chegou o instante da desforra... Sim, Hatéria, amanhã Helvídio Lucius saberá para todos os efeitos, que a esposa lhe foiinfiel, apresentando-lhe o fruto de um crime... Aescolha da criança ficará ao teu critério... Podereicontar absolutamente contigo ?

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- Pela fé no poder de Júpiter, podeis confiar em mim, senhora. Irei à coluna lactaria, depois da meia-noite, e levarei comigo a criança. (1) A coluna lactaria no mercado de legumes, ouFórum Olitorium, era o local onde se expunham, diaria-mente, os recém-nascidos injetados. Os recém-nascidossão ali abandonados diariamente, às dezenas... Assentada a combinação sinistra, a noite jáhavia desdobrado sobre Roma o seu manto de som-bras espessas. Todavia, enquanto Hatéria retornava à casados amos, Cláudia Sabina privava-se das festas no-turnas do Imperador, encaminhando-se à Porta deÕstia apressadamente.. Encontrando-se lá com o filho de Cneio Lucius,solicitou-lhe o favor de uma palavra em particu-lar, no que foi imediatamente atendida. - Helvídio - falou a perversa criatura coma sua facilidade de dissimulação -, aqui estou paraprevenir-te, reservadamente, de graves acontecimen-tos, aliás, já por mim previstos, quando na Grécia. - Mas, que acontecimentos? - interrogou opatrício com ansiedade. - Deves estar preparado para ouvir-me, poisacredito que o prefeito dos pretorianos, com a bruteza dos seus sentimentos, chegou a macular a honra da tua casa. - Impossível ! - exclamou o tribuno com veemência. - Entretanto, deves ouvir Alba Lucínia imediatamente, verificando até que ponto conseguiuLólio Úrbico introduzir-se no teu lar. - Eu não posso duvidar de minha mulher se-quer um minuto - revidou com sinceridade. - Queres ou não ouvir-me até o fim, paraconheceres os pormenores do fato? - perguntouSabina encolerizada.

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- Ouvi-la-ei com prazer, desde que o assunto não se refira à minha família e à honra da minha casa. - É possível que tua opinião amanhã se modifique. E, despedindo-se bruscamente do homem desuas paixões, que sabia defender as tradições dolar e da família, a antiga plebéia regressava ao Capitólio, mais que nunca interessada no desdobramento dos seus sinistros desígnios. O gênio do mal,que lhe falava no coração, preparava para aquelanoite os acontecimentos mais terríveis. Enquanto a vemos, pela madrugada, a examinar documentos e pergaminhos no gabinete de LólioÚrbico, acompanhemos Hatéria até o mercado delegumes. A sociedade romana já se havia habituado aver junto da coluna lactaria os míseros enjeitadinhos. Esse local de triste memória, onde muitas mães abnegadas acolhiam pobres crianças abandonadas, constituía como que os primórdios das fa-mosas "rodas-de-expostos", nos estabelecimentos de caridade cristã, que floresceriam mais tarde para o mundo. A claridade mortiça da Lua, antes do amanhe-cer, a velha serva verificou a presença de três mí-seros pequeninos. Um deles, porém, chamou-lhe aatenção pelos seus suaves vagidos de recém-nato.Era uma criancinha de traços delicados e nobres,que a cúmplice de Cláudia pode examinar, minu-ciosamente, à luz de uma tocha. O enjeitadinho,com roupas muito pobres, parecia nascido de pou-cas horas. Hatéria tomou-o nos braços, quase comenlevo, considerando intimamente: esta criança deveser um digno rebento de patrícios romanos!.. Quepenoso romance não se ocultará no seu vestidinhoroto e ordinário... Levou-o consigo, penetrando na casa dos amoscom todo o cuidado.

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Amanhecia... À noite, a criminosa adicionara o narcótico aosremédios de sua senhora. Entrou no quarto onde a esposa de Helvídiorepousava, tranquilamente, depôs a criança ao seulado, envolvendo-a no ambiente tépido das coberturas. Em seguida, preparou ali toda a encenaçãonecessária, sem que a pobre vítima do filtro quea mergulhara em longo e pesado sono pudesse perceber o que se passava. Todavia, o pequenino começou a chorar fraca-mente, embora a serva criminosa fizesse o possívelpor acalmá-lo. No quarto contíguo ao de sua mãe, dado oruído insólito, Célia despertava. Acordou aturdida e sensibilizada. Acabava desonhar que se encontrava, novamente, no cemitériotriste da Porta Nomentana, como na memorávelnoite em que pudera rever o bem-amado de suaalma. Figurou-se-lhe contemplar Ciro a seu lado,enquanto Nestório mantinha a mesma atitude dassuas antigas prédicas, perguntando : - quem é mi-nha mãe e quem são os meus irmãos? Tinha océrebro ainda preso de emoções carinhosas, e asmais ternas lembranças no coração de menina emoça... Nesse instante, o ruído insólito chegava-lheaos ouvidos. Vagidos de criança? Que significariaaquilo ? Levantou-se, apressada, com o pensamento an-sioso, mergulhado em dolorosas perspectivas. Notando o movimento de alguém que se apro-ximava, Hatéria fez menção de retirar-se à pressa,mas a jovem já havia transposto a porta, verificando-lhe a presença. Contemplando a criança ao lado de sua mãe

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adormecida e os sinais evidentes de quanto caracteriza o lugar de um parto, presumiu adivinhar o drama com as amargas suspeitas do seu coração filial. Um turbilhão de pensamentos penosos surpreendeu-lhe o cérebro enfraquecido. Sim, aquela criancinha deveria ter nascido ali, como conseqüência fatal de uma tragédia inesquecível. - Hatéria - exclamou num gemido -, que significa tudo isso? - Vossa mãe, esta noite, minha boa menina - respondeu a serva criminosa, sem se perturbar -, deu à luz um pequenino... - É incrível ! - soluçou a filha de Helvídiocom a voz estrangulada. , - Entretanto é a verdade - revidou Hatériaem voz muito baixa -; não dormi, auxiliando a se-nhora em seus sofrimentos ! E, apontando para a infortunada consorte dotribuno, exclamava quase tranqüila : - Agora ela dorme... e precisa repousar. Célia não podia definir a intensidade dolorosados pensamentos que a empolgavam. Nunca acre-ditara que sua mãe pudesse prevaricar na ausênciapaterna. Seu coração carinhoso sempre fora, ao seuver, um modelo de virtudes, um símbolo de hones-tidade. Certamente Lólio Úrbico levara a infâmiaaos mais pavorosos extremos. Ela bem que lheouvira as palavras de conquistador desalmado ecruel ! Além de tudo, sua mãe há muito que andava doente. Com certeza, seu coração bondoso e honesto estava cheio de tormentos da compunção e do arrependimento. Sentia pela mãe um enterne-cimento infinito. Seu pai regressara na véspera,cheio de novas esperanças. Ela surpreendera lágrimas nos olhos maternos, pranto esse que deveria ser de júbilo intenso e de comovedora alegria.Quanto não haveria sofrido o coração materno naqueles longos meses de expectativas angustiosas !Alba Lucínia, porém, sua mãe e melhor amiga,

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tinha agora um filhinho que não era uma flor dotálamo conjugal. Helvídio Lucius não lhe perdoa-ria nunca. Célia conhecia a enfibratura do pai, assazgeneroso, mas demasiadamente impulsivo. Além detudo, a sociedade romana não admitia transigên-cias em se tratando de tragédia como aquela, noseio do patriciado. Com as lágrimas a borbulha-rem-lhe dos olhos, naquelas ríspidas e singularesmeditações, a jovem cristã lembrou-se do sonhodaquela noite, e pareceu-lhe ainda ouvir Nestórioa repetir as palavras do Evangelho - "Quem éminha mãe e quem são meus irmãos?" - Levandoas suas lembranças ainda mais longe, recordou aexortação nas vésperas do sacrifício, quando afir-mara que a melhor renúncia por Jesus não erapropriamente a da morte, mas a do testemunhoque o crente fornece com os exemplos da sua vida.Depois, a figura do avô surgiu, espontânea, em suamente. Parecia-lhe que Cneio voltava do túmulopara recomendar-lhe, mais uma vez, a tranquili-dade do pai e a ventura da mãe, nas provas aspér-rimas... De olhos molhados, aproximou-se do pequenino,que abrira os olhos pela primeira vez, às primeirasclaridades do dia... O enjeitadinho fêz um movi-mento com os braços minúsculos, como se os le-vantasse para ela, suplicando-lhe conforto e afeto.Célia sentiu que as suas lágrimas caíam-lhe norosto alvo e minúsculo, experimentando no coraçãouma ternura infinita. Retirou-o com cuidado comose o fizesse a um irmãozinho... Sentiu que o cora-çãozinho batia-lhe de encontro ao seu, como o deuma ave assustada, sem direção e sem ninho...Seu espírito, como que tocado de sentimentos mis-teriosos e inexplicáveis, estava também povoado das

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mais profundas emoções maternas... Depois de alguns minutos, em que Hatéria acontemplava surpreendida, Célia ajoelhou-se aos pésda serva, exclamando comovedoramente no seu su-blime espírito de sacrifício : - Hatéria, minha mãe é honesta e pura! Estacriança que vês nos meus braços é meu filho ! Se--lo-á, meu filhinho, agora e sempre, compreendes? - Jamais o direi - respondeu a cúmplice deCláudia, aterrada. - Mas, ouve! Tu que foste a confidente deminha mãe ajuda-me a salvá-la !.. Pelo amor detuas crenças, confirma os meus propósitos !... Mi-nha mãe precisa cuidar de meu pai no curso davida e meu pai a adora! Se ela errou, porque nãoauxiliarmos a sua felicidade, devolvendo à sua almaa ventura merecida? Minha mãe nunca erraria demoto próprio !.. Foi sempre boa, carinhosa e fiel...Só um homem muito perverso poderia induzi-laa uma falta dessa natureza, pelos caminhos docrime !.. Lacrimejante, enquanto a criada a escutavaestarrecida, continuava: - Cede aos meus desejos! Esquece o que vis-te esta noite, considerando que os tiranos dos nos-sos tempos costumam raptar nobres damas, apli-cando-lhes filtros de esquecimento ! Minha pobremãe deve ter sido vítima desses processos miserá-veis!.. Quero salvá-la e conto contigo!... Dar-te-eitodas as minhas jóias mais preciosas. Meu pai nãocostuma dar-me dinheiro em espécie, mas tenhodele e de meu avô as lembranças mais ricas..Ficarão contigo! Vendê-las-ás, onde quiseres... Ar-ranjarás uma pequena fortuna... - Mas, e a menina ? - murmurou Hatéria

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espantada com o imprevisto dos acontecimentos -já pensou que essa idéia do sacrifício é impossível?Com quem ficaríeis no mundo? Vosso pai, porven-tura, suportaria ver-vos assim, como mãe de umacriança infeliz? - Eu.. - exclamou a jovem com atitudesreticenciosas, como se desejasse lembrar alguémque a pudesse valer em tão dolorosas circunstân-cias - eu... ficarei com Jesus!... Em seguida, ante o silêncio de Hatéria, que lheobedecia maquinalmente, todo o cenário foi trans-portado ao seu quarto, enquanto Célia conchegavao pequenino ao coração, entregando à serva ambi-ciosa todas as jóias mais preciosas e guardando,apenas a pérola que Helvídio lhe dera na véspera. Alba Lucínia, contudo, saíra do seu torpor,repentinamente. Aturdida com os efeitos do nar-cótico, estava surpresa, ouvindo no quarto da filhaos vagidos da criança. Divisando o vulto de Hatéria através de umacortina, chamou-a em voz alta para certificar-sedo que ocorria. A criada criminosa, porém, apareceu-lhe defrente, lívida e aterrada... Levando as mãos à cabeça num gesto de fin-gido desespero, exclamava com esgares estranhos : - Senhora!... Senhora! que grande des-graça!... A esposa do tribuno, com o coração a lhe sal-tar do peito, pálida e aturdida, ia interrogar aserva, quando alguém transpôs a porta e penetrouno aposento. Era Helvídio. O genro de Fábio não consegui-ra conciliar o sono. Depois das insinuações pérfi-das de Sabina, parecia que veneno atroz lhe destruía

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todas as forças do coração. Trabalhou intensa-mente para que as horas da noite lhe fôssem me-nos amargurosas e, todavia, ao dealbar da aurora,montara um cavalo veloz que o transportou, célere,a casa, para consolidar a sua tranqüilidade espi-ritual, junto da mulher e da filhinha. Lá chegando, ainda ouviu a velha serva excla-mar desesperada: - Uma desgraça!.. uma grande desgraça:... Enquanto Lucínia o contemplava aflita e amar-gurada, Helvídio Lucius caminhava para ela e paraa criada, com o semblante carregado e triste... - Explica-te, Hatéria!.. - teve forças paramurmurar a pobre senhora, aflitamente. Nesse instante, porém, depois de longa prece,a jovem cristã surgiu, quase cambaleante, à portada alcova materna. Tinha os olhos vermelhos e tristes, a roupamal posta, os cabelos em desalinho. Acalentado emseus braços afetuosos, o pequerrucho se acalmara,qual pássaro que houvesse reencontrado o ninhotépido. Helvídio e sua mulher contemplaram a filha,surpresos e aterrados. - Mas, que significa tudo isso ? - explodiuo tribuno dirigindo-se à serva. Célia quis explicar-se, mas a voz estrangula-ra-se-lhe na garganta, enquanto Hatéria esclarecia: - Meu senhor, a menina, esta noite... Contudo, ante o olhar duro do patrício, a suavoz se perdia nas reticências dos remorsos e dasdúvidas, quanto às terríveis conseqüências da suainfâmia. Célia, porém, cheia de fé na Providência Divi-na e sinceramente desejosa de sacrificar-se por sua

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mãe, ajoelhara-se, humilde, exclamando com vozquase firme : - Sim, meu pai... minha mãe... pesa-me aconfissão da minha falta, mas esta criança é meufilho !... O tribuno sentiu que uma comoção desconhe-cida invadiu-lhe todo o ser. A cabeça andava-lheà roda, ao mesmo tempo que lividez de mármorecobria-lhe as feições, vincadas de cólera e angústia.Os mesmos fenômenos fisiológicos passavam-se comsua mulher, cujos olhos aterrados não encontravamlágrimas para chorar. Alba Lucínia, contudo, ain-da teve energia para murmurar, olhando o Alto : - Deus do céu !.. Célia, porém, genuflexa, enquanto Hatéria er-guia a cabeça, fria e impassível, exclamava com opranto da sua humildade : - Se puderdes, perdoai à filha que não con-seguiu ser feliz ! Sei o crime cometido e aceito deboa vontade as consequências da minha falta! De olhos baixos, com as lágrimas a aljofrarema face do inocentinho, a jovem continuava diri-gindo-se ao pai, que a ouvia estarrecido, como seo pavor daquela hora o houvesse petrificado: - Na vossa ausência, andou nesta casa o es-pírito de um tirano!.. Recebido como amigo, asse-diou minha mãe com todos os seus processos deinfâmia... Ela, porém, como sabeis, foi sempre fiele pura!.. Reconhecendo-lhe a virtude incorruptí-vel, o prefeito dos pretorianos abusou da minhainocência, levando-me ao que vedes !... Nunca con-fessei a mamãe as faltas de minha alma, mas, estanoite senti a realidade da minha desventura! Noauge dos sofrimentos, busquei o auxílio de Hatéria,para salvar a vida deste inocentinho!.

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E erguendo os olhos súplices para a criadaimpassível, a jovem acrescentava: - Não é verdade, Hatéria? Lucínia e o esposo não queriam acreditar noque viam, mas a serva criminosa confirmava com fingida amargura: - É verdade... - Sei que as nossas tradições não me perdoam a falta - continuava Célia, tristemente -,mas toda a minha mágoa vem do fato de havermaculado o lar paterno, aceitando uma afronta edando margem à desonra!.. Não posso ser per-doada, mas vede o meu arrependimento e tendecompaixão do meu espírito abatido! Expiarei ocrime como as circunstâncias exigirem, e, se forindispensável a morte para lavar a mácula, sabereimorrer com humildade !.. As lágrimas embargavam-lhe a voz, não obs-tante sentir-se amparada por braços intangíveis doplano espiritual, no instante penoso do sacrifício. Helvídio Lucius, saindo do seu pasmo, deualguns passos em direção à esposa trêmula, per-guntando com voz estranha e quase sinistra: - Lólio Úrbico é, de fato, esse infame? Alba Lucínia, experimentando a queda de todasas suas energias, recordava o seu calvário domés-tico, em face das investidas do conquistador, cujaperseguição à filha o seu espírito adivinhara. Lon-ge de sentir toda a realidade tenebrosa daquelascenas que o gênio criminoso de Cláudia Sabina ha.-via idealizado, murmurou fracamente : - Sim, Helvídio, o prefeito tem sido o ver-Diogo impiedoso da nossa casa! - Mas, meu coração não quer acreditar noque os meus olhos vêem - murmurou o tribunosurdamente. Célia continuava genuflexa, olhos nevoados de

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lágrimas, amparando o pequenino que chorava. Alba Lucínia contemplava a filha, tomada deamargura e de assombro. Agora, presumia com-preencher as esquivanças da filhinha a todos ospasseios, nos derradeiros tempos, para só concho-gerai ao insulamento do seu quarto, engolfada empreces e meditações. Atribuía o retraimento deCélia à morte do avô, que lhes deixara a ambas asmais penosas saudades. Entretanto, sua descem-fiança de mãe entendia, agora, que o conquistadorcovarde havia abusado da inexperiência de sua filha.Muitas vezes, receara sair deixando-a só, no lar,porquanto a intuição materna há muito lhe Adair-tia que Lólio Úrbico buscaria vingar-se escutam-do as suas terríveis ameaças. Agora, a realidadeamarga torturava-lhe o espírito. - Lucínia - continuou Helvídio sombrearem-te -, explica-te !.. Não terias exercido nesta casaa preciosa vigilância materna? É verdade que oprefeito dos pretorianos insultou a tua dignidade?... - Helvídio - soluçou com voz tremente -,tudo que ocorre é absolutamente estranho e in-crível, mas o fato aí está patente, atestando arealidade mais amarga ! Desconfiava que a nossapobre filha fosse também vítima do perverso ame-GO de meu pai, porquanto, de minha parte, venhosofrendo, desde que partiste, as mais atrozes per-seguisses, traduzidas em contínuas ameaças, dada aminha resistência aos seus inconfessáveis desejos... Ante o esboroar de suas últimas esperanças,com a palavra sincera da esposa que se mostravaamargurada e surpreendida, o orgulhoso patríciodeixou-se dominar completamente pelas realidadesaparentes daquela hora trágica. De punhos cerrados, olhos duros e sombrios

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a revelarem disposições inflexíveis de vingança, Eu-vadio Lucius exclamou com voz terrível, dominadastodas as suas expressões fisionômicas por um ricto de angústia: - Vingar-me-ei do infame, sem piedade !... E contemplando a filha que permanecia de joe-lhos e de olhos baixos, como se evitasse o olharpaterno, acentuou terrivelmente: - Quanto a ti, deverás morrer para resgataro crime hediondo !.. Iniciando os meus desgostos,com o preferir aos escravos, acabaste arruinandoo meu nome, levando esta casa a uma situaçãoexecrável ! Mas, saberei lavar a mancha criminosacom as minhas decisões implacáveis !.. Dito isso, o orgulhoso tribuno arrancou ace-rado punhal, que reluziu à luminosidade do Sol ma-tinal, mas Alba Lucínia, de um salto, prevendo-lhea resolução inflexível, susteve-lhe o braço, excla-mando angustiada: - Helvídio, pelos deuses e por quem és...Não basta a dor imensa da nossa vergonha e danossa desventura?!... Queres agravar nossos pa-decimentos com a morte e com o crime? Não! Issonão!.. Acima de tudo, Célia é nossa filha! Nesse instante, o tribuno lembrou-se repentina-mente das rogativas amoráveis do genitor, na maisprofunda recordação, como a pedir-lhe calma, re-signação e clemência. Pareceu-lhe que Cneio Luciusregressava das sombras do sepulcro para lhe su-plicar pela neta idolatrada, cooperando nas exorta-ções da esposa. Então, sentindo o coração saturado de um sofrimento moral indefinível, acentuou com voz cavernosa: - Os deuses não permitirão seja eu um mise-rável filicida... Mas, esmagarei o traidor como seesmaga uma víbora!

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E, voltando-se de repente para a filha humi-lhada, sentenciou com energia: - Poupo-te a vida, mas, doravante estás defi-nitivamente morta para a nossa desdita imensu-rável, porque tua indignidade não te permite vi-ver mais um minuto sob o teto paterno !. Ésmaldita para sempre!.. Foge para qualquer par-te, sem te lembrares de teus pais ou do teu nasci-mento, porque Roma assistirá ao teu funeral embreves dias ! Serás estranha ao nosso afeto !.. Nãonos recordes, nunca, nem busques o passado. poiseu poderia exterminar-te nos meus impulsos!.. Célia continuava na sua atitude humilde, dejoelhos, mas aos seus ouvidos ressoavam as pala-vras decisivas do pai orgulhoso e ofendido no seuamor-próprio. - Vai-te, foge, maldita !.. Ergueu-se ela, então, cambaleante, endereçan-do à mãe um derradeiro olhar, no qual pareciaconcentrar toda a sua crença e toda a sua espe-rança... Alba Lucínia retribuiu-lhe o gesto afetuo-so, fixando-a com a sua ternura dolorosa. Pare-ceu-lhe descobrir na limpidez daquele olhar toda ainocência da alma piedosa e cristã da desventuradafilha; todavia, o seu coração maternal agradeciaintimamente aos deuses o lhe haverem poupado a vida... Compreendendo a inflexibilidade da ordem pa-terna, Célia deu alguns passos vacilantes e, saindopor uma porta lateral encontrou-se em plena rua,sem direção nem destino, enquanto atrás dela sefechavam as portas do lar paterno, para sempre. Depois de exprobrar a conduta da esposa, cul-pando-a pela indiferença e falta de vigilância, eapós prometer recompensar o silêncio de Hatéria,ameaçando-a também com o cárcere, caso viesse

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a verificar-se o contrário, mandou um servo dosmais prestimosos à residência dos sogros, chaman-do-os a sua casa com a maior urgência. Dentro de uma hora, Fábio Cornélio e sua mulher encontravam-se junto do casal, inteirando-se de todo o acontecido. Enquanto o coração de Júlia Spinter se sentiatocado das mais dolorosas emoções, o velho e or-gulhoso censor exclamava convictamente : - Sim, Helvídio, vamos procurar o traidorquanto antes, a fim de o exterminar, sejam quaisforem as consequências; mas, devias ter aniquiladoa filha, pois o sangue deve compensar os prejuízosda vergonha, segundo os nossos códigos de hon-ra !.. Mas, enfim, ela estará moralmente mortapara sempre. Depois de eliminarmos Lólio Úrbico,faremos que as cinzas de Célia venham de Cápuapara serem recolhidas em Roma, ao jazigo da família. Ao passo que as duas senhoras, mãe e filha,ficavam no aposento, sucumbidas, consolando-se re-ciprocamente e rogando a proteção dos deuses paraa tragédia inesperada e dolorosa, Fábio e Helvídiodirigiram-se apressadamente para o Capitólio, a fimde exterminarem o inimigo, como se o fizessem auma serpente imunda e venenosa. Todavia, uma surpresa, tão grande quanto aprimeira, os esperava. No palácio do prefeito dos pretorianos o mo-vimento era desusado e estranho. Antes de atingirem o átrio, os dois patríciosforam informados de que Lólio Úrbico havia fale-cido minutos antes, acreditando-se que se tratavade um suicídio. A morte do marido constava do programa si-nistro de Cláudia, agora dona de opulento patri-mônio financeiro, porquanto, desse modo, não ficaria

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voz alguma que pudesse elucidar Helvídio Lucius,quanto à infâmia que a antiga plebéia acreditavahaver atirado ao nome de sua esposa. Além disso,alta madrugada, Sabina tomara de um dos perga-minhos em branco, assinados pelo prefeito, e escre-veu, com perfeita imitação caligráfica, um bilhetelacônico, no qual se confessava enfarado da vida,e rogava a Flávio Cornélio, amigo de todos os tem-pos, perdoasse o dano moral que lhe causara. Penetrando, aturdidos, na casa do inimigo mor-to, Fábio e Helvídio foram abordados por Cláudia Sabina, que lhes apareceu lacrimosa, naquela manhã trágica. Depois de se lastimar, comentando a tétricaresolução do esposo em desertar da vida, Sabinaentregava ao censor o último bilhete de Úrbico, quedizia grafado pelo marido à última hora, deixandotransparecer curiosidade a respeito daquele pedi-do de perdão, injustificável e estranho. Desejava,assim, conhecer os primeiros resultados do traba-lho tenebroso de Hatéria, esperando ansiosamente, dos lábios de Helvídio ou de alguma alusão de Fábio as informações indiretas que o seu espírito vingativo ansiosamente aguardava. O censor e o genro, entretanto, receberam osuposto bilhete de Úrbico com secura e indiferença.E como era preciso dizer alguma coisa em face da-quele imprevisto, Fábio Cornélio acrescentou : - Guardarei este bilhete como prova do seudesequilíbrio mental nos últimos momentos, pois sóassim se justifica este pedido. E agora, minha se-nhora - acentuou enigmàticamente para Cláudia, que o ouvia com atenção -, há-de perdoar a nossa ausência, porquanto cada qual tem os seus infortúnios... O velho patrício estendia-lhe as mãos em des-pedida mas, sentindo a sua curiosidade fundamenteaguçada por aquelas expressões, a antiga plebéia

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interrogou com interesse, como a provocar algumesclarecimento de Helvídio Lucius, que se fecharaem mutismo enigmático. - Infortúnios? mas que desejais dizer comisso ? Pretendeis abandonar-me nesta situação ? Quala razão de sairdes assim, desta casa, quando o ca-dáver de um amigo e chefe exige testemunhos deveneração e amizade? Porventura aconteceu algode grave a Alba Lucínia?.. Notava-se que a última pergunta transpiravaum sentido misterioso. Ela esperava que Helvídiolhe falasse da sua tragédia doméstica, dos seus pro-fundos desgostos conjugais, da infidelidade da es-posa, conforme previa e decorria dos seus planos.Seu coração bastardo aguardava que o homem ama-do, naquele instante, iria dispensar-lhe as atençõesamorosas tão ardentemente aneladas naqueles úl-timos meses, em que os seus sentimentos mesqui-nhos haviam acariciado tão grandes esperanças.O tribuno, porém, mantinha-se impassível, como setivesse os lábios petrificados. Fábio Cornélio, todavia, sem trair a fibra or-gulhosa, esclarecia Sabina nestes termos: - Minha filha vai bem, graças aos deuses,mas também nós acabamos de ser feridos no maisíntimo do coração! Um emissário da Campânia nostrouxe, esta manhã, a dolorosa notícia da morterepentina de minha neta solteira, que se encontravajunto da irmã, numa estação de repouso. Esta arazão que nos impede prestar ao prefeito as der-radeiras homenagens, porquanto vínhamos justa-mente comunicar-lhe a imediata partida para Cá-pua, a fim de promover o transporte das cinzas!... Dito isso, os dois homens despediram-se seca-mente, saindo a passo firme, no burburinho dos

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amigos e dos servos apressados, que emulavam nopatentear a Lólio Úrbico a bajulação derradeira. Ante a cena enigmática, Sabina deixava vagaro pensamento em conjeturas. Hatéria ter-se-ia es-quecido de cumprir cegamente as suas ordens? Queocorrera com a rival, cujas notícias a deixavamperplexa, quando tudo premeditara com tanta se-gurança? Os preconceitos sociais, contudo, as obri-gações daquela hora extrema, que a sua própriamaldade havia provocado, não lhe permitiam cor-rer como louca no encalço da cúmplice, fosse ondefôsse, para matar a curiosidade. Enquanto o seu espírito se perdia em divaga-ções ansiosas, Fábio Cornélio e o genro dirigiam-seao Imperador, obtendo a necessária licença para aprecisa viagem a Campânia, cedendo-se-lhes, incon-tinenti, uma galera confortável que os receberia emÕstia, de modo a abreviar a viagem o mais possível. Naquela mesma tarde, a embarcação saía doporto mencionado, conduzindo a família ao seu destino, salientando-se que Helvídio Lucius não se esquecera de levar Hatéria com os outros serviçais de sua confiança. Enquanto o patriciado romano rende homena-gens ao prefeito dos pretorianos e a galera deHelvídio se afasta conduzindo em seu bojo quatrocorações angustiados, sigamos a jovem cristã nassuas primeiras horas de amargura e sacrifício. Saindo da casa paterna, Célia atravessou ruase praças, receosa de encontrar alguém que a reco-nhecesse no seu doloroso caminho... Conchegava o pequenino de encontro ao cora-ção, como se ele fôra seu próprio filho, tal o enter-necimento que a sua figurinha lhe inspirava. Depois de errar longamente, presa de acerbasmeditações, sentiu que o Sol ia muito alto e pre-

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cisava cuidar da nutrição do inocentinho. Atraves-sara os bairros aristocráticos, encontrava-se agorajunto à ponte Fabricius ( 1 ) , cheia de cansaço, ex-tenuada. Além do Tibre, surgiam as modestas edi-ficações dos judeus e dos libertos pobres; ali estavaa famosa Ilha do Tibre, onde outrora se erguiamos templos de Júpiter Licaônio e o de Esculápio..A seu lado passavam os filhos da plebe, inquietose apressados. De vez em quando, surgiam solda-dos da marinha, da frota de Ravena, aquarteladosno Trastevere e que lhe deitavam olhares libidino-sos. Cansada, dirigiu-se a uma casa de judeus,onde uma mulher do povo lhe deu de comer, pro-vendo-a de tudo quanto necessitava o pequenino.Mais confortada, levando uma pequena provisão de (1) A Ponte Fabrícius foi depois denominada Ponto diQuatri Capi, em vista de uma estátua de Janus Quadrifons,posta à entrada da praça. Foi construída de pedra, depoisda conjuração de Catilina. - Nota de Emmanuel.leite de jumenta, a filha de Helvídio continuou a dolorosa peregrinação pelas vias públicas, como se aguardasse uma inspiração feliz para o seu penoso destino. A tarde, porém, voltou ao mesmo ponto, nasproximidades do qual fora socorrida pelos mais humildes. Triste e só, descansou num dos ângulos daponte Fabricius, ora contemplando os transeuntesmal vestidos, ora fixando as águas do Tibre, como coração envolto em dolorosas cismas. Aos poucos, o Sol se escondia lentamente, dou-rando ao longe as derradeiras nuvens do horizonte. Um vento frio, cortante, começava a soprarem todas as direções. Contemplando os operáriospobres que se recolhiam aos lares, a jovem cristãaconchegou mais fortemente ao peito a mísera crian-cinha. Sentindo-se desalentada, começou a orar e

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lembrou-se de que Jesus também andara no mundo,ao desamparo, experimentando um suave consolonessa reminiscência evangélica. Contudo, pungentesaudade do lar feria-lhe o coração sensível e cari-nhoso. Mulheres do povo, depois das fainas peno-sas do dia, regressavam a casa com uma auréolade júbilo tranqüilo a lhes transparecer no rosto, enquanto que ela, filha de patrícios, se sentia acabrunhada ante as incertezas da sorte e exposta ao frio cortante do crepúsculo... Estreitando sempre o pequenino, como se quisesse furtá-lo ao ar glacial da tarde, mau grado à sua fé e resignação, não pôde conter o pranto, refletindo amargamente no seu penoso destino!.. As grandes nuvens, batidas de sol, esmaeciam-se pouco a pouco, dando lugar às primeiras estrelas.

Estrada De Amargura

Desembarcando num porto da Campânia, nasproximidades de Cápua, Helvídio Lucius adiantou-sea todos os familiares, a fim de preparar os filhospara a consecução dos seus desejos. Caio Fabricius e sua mulher sofreram rudegolpe com as revelações inesperadas a respeito dairmã, e, obedecendo às determinações do tribuno,criaram o ambiente necessário para que os círculosaristocráticos da cidade recebessem a notícia dacasa, enquanto os sacerdotes do templo, sem des-prezarem as largas compensações financeiras queHelvídio oferecia, facilitavam a solução do assunto,guardando-se assim, para sempre, todas as recorda-ções da jovem num punhado de cinzas. Após receberem as homenagens da sociedadepatrícia de Cápua, que não deixou de estranhar omisterioso acontecimento, Fábio Cornélio e todosda família retornaram prestes a Roma, onde pro-

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moveram o funeral com a maior simplicidade, embora ao gosto da época e consoante as exigências da tradição familiar. Todavia, enquanto as supostas cinzas de Céliabaixavam ao sarcófago, nova dor assaltava o círcu-lo doméstico das nossas personagens. Profundamente ferida nas fibras mais sensí-veis do coração materno, Júlia Spinter, não conse-guindo suportar tão fundo desgosto, acrescido aosmuitos que lhe minavam a existência, abandonaraa Terra inopinadamente, sem que os íntimos pu-dessem, ao menos, prever-lhe a aproximação damorte, que se verificou dentro de uma noite, emconsequência de um colapso cardíaco. Novo luto envolveu a casa de Helvídio, expe-rimentando Alba Lucínia os mais atrozes padeci-mentos íntimos. A esse tempo, Fábio Cornélio, dadoo desaparecimento de Lólio Úrbico, havia recebidonovos encargos do Imperador, encargos que lhedeferiram grandes poderes e graves responsabili-dades na solução de todos os problemas financeiros. A morte da esposa encheu-lhe o coração deestranho pesar. Buscou, contudo, reagir às forçasque lhe deprimiam o ânimo, prosseguindo na sua tarefa de domínio, com o mesmo orgulho que lhe temperava o caráter. Sentindo-se muito a sós, Helvídio Lucius e aesposa planejaram voltar à tranquilidade provin-ciana da Palestina, mas o falecimento imprevistoda nobre matrona impedia-lhes, de novo, a execu-ção dos projetos há muito acarinhados, atento oinsulamento em que ficaria o velho censor, cujocoração orgulhoso e frio lhes dera sempre as maisinequívocas provas de amor e dedicação. Elucidando a situação de todas as persona-gens, resta-nos lembrar Cláudia Sabina, após o des-fecho singular dos acontecimentos dolorosos que

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ela mesma sinistramente engendrara. Morto o ma-rido e sabendo frustrados todos os seus planos,procurou em vão ouvir Hatéria, que, elevada a umaposição de redobrada confiança no lar de Helví-dio Lucius, dispusera-se a não abandonar jamaisa casa, receosa das suas represálias. De posse dagrande soma que lhe dera o tribuno em troca doseu silêncio, a velha serviçal chamara o genro ea filha à residência dos patrões, onde lhes entregouparte da pequena fortuna, com a qual adquiriu, em seu nome, um belo sítio em Benevento, lá arrumando os filhos, até que ela se dispusesse a partir para a vida rural. Cláudia Sabina, apesar dos esforços despendidos, nunca mais pôde ouvir-lhe a palavra, porquanto, se Hatéria jamais se ausentava de casa, também Fábio Cornélio detinha poderes cada vez maisfortes, na cidade imperial, obrigando-a, indiretamente, a manter-se em silêncio e a distância. Foi assim que a antiga plebeia se retirou de Roma para Tibur, acompanhando as futilidades da Corte de Adriano, cujos últimos tempos de reinado se carac-terizaram por uma indiferença cruel. Rodeada de servos, mas em pleno ostracismosocial, a viúva do prefeito dos pretorianos adqui-rira uma chácara tranqüila, onde devia passar largos anos, requintando o seu ódio em detestáveis meditações. Depois destas notícias breves, retomemos o ca-minho de Célia para acompanhar-lhe a dolorosa peregrinação. Deixando a Ponte Fabricius, ela caminhou aoléu, procurando alcançar a ilha do Tibre, onde se acotovelava a multidão dos pobres. Aos derradeiros clarões da tarde, buscou atra-vessar a Ponte Cestius, encontrando num trechodo caminho uma mulher do povo, de semblantealegre e humilde. Célia assentara-se, por instantes,ajeitando o pequenino. Sentiu, porém, que o olharda desconhecida lhe penetrava brandamente o coração.

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Nesse comenos, experimentando a secreta con-fiança que lhe inspirava aquela mulher simples,traçou com a destra, na poeira do solo, um pequenosinal da cruz, mediante o qual todos os cristãosda cidade se reconheciam. Ambas trocaram, então, um olhar expressivode simpatia, enquanto a desconhecida se aproxi-mava, exclamando bondosamente: - És cristã ? - Sim - sussurrou Célia em surdina. - Estás desamparada? - perguntou a des-conhecida, discretamente, revelando nas palavrasbreves a máxima cautela, de modo a não seremsurpreendidas como adeptas do Cristianismo. - Sim, minha senhora - revidou Célia, algoconfortada com aquele interesse espontâneo -, es-tou só no mundo com este filhinho. - Então, vem comigo, é possível que te sejaútil em alguma coisa. A neta de Cneio Lucius seguiu-a, sôfrega deproteção, no pélago de incertezas em que se acha-va. Atravessaram a Ponte Cestius, calmamente,como velhas amigas que se houvessem encontrado,dirigindo-se para um quarteirão de casas pobres. Distanciadas da multidão, a mulher do povo,sempre carinhosa, começou a falar: - Minha boa menina, chamo-me Orfília e soutua irmã na fé! Logo que te avistei, compreendique estavas só e desamparada no mundo, preci-sando do auxílio de teus irmãos! Estás moça eJesus é poderoso.. Surpreendi lágrimas nos teusolhos, mas não deves chorar quando tantos irmãosnossos têm padecido atrozes sacrifícios nos temposamargos que atravessamos... Célia ouvia-a consolada, mas, intimamente, não

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sabia como proceder em tão difíceis circunstâncias,nas quais uma companheira de crença se lhe reve-lava com toda a sinceridade. Enquanto Orfília calava um instante, a filha de Helvídio agradecia-lhe em breves palavras: - Sim, minha senhora, estou comovida e nãosei como agradecer-lhe. - Sou lavadeira - continuou a plebéia coma sua simplicidade de coração -, mas tenho a ventura de possuir um marido piedoso e cristão, que não se cansa de me proporcionar no trabalho e no conchego do lar os mais sagrados testemunhosde nossa fé ! Vais conhecê-lo !.. Chama-se Horá-cio e terá prazer quando souber que te podemosser úteis de algum modo... Tenho, também, um fi-lho de nome Júnio, que constitui a nossa esperançapara o futuro, quando em nossa pobreza materialestivermos imprestáveis para o trabalho !.. E, aproximando-se cada vez mais da casinhapobre, acrescentava: - E tu, minha irmã, que te aconteceu paratrazeres um semblante tão triste e amarguradoassim?.. Tão jovem e com um filhinho nos bra-ços, tão formosa e tão desventurada?... - Fiquei viúva e abandonada - exclamouCélia de olhos molhados -, mas espero em Jesusalcançar o necessário a mim e a meu filho... Ainda não havia terminado as explicaçõestimidamente formuladas, quando transpuseram oumbral de uma sala muito pobre e quase desguarnecida. Dois homens conversavam à claridade frouxade uma tocha e logo se ergueram para recebê-las. Devidamente apresentada ao pai e ao filho, Célia notou que Horácio tinha, de fato, um aspecto conselheiral e bondoso, observando, porém, no filho, algo que a desagradou de pronto, um olhar de moço leviano e frívolo, cheio de fantasia e de loquacidade.

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- Sabes, mãe - exclamou o rapaz como seguardasse todas as qualidades de um porta-novas -,o grande acontecimento que abalou toda a cidade? Enquanto Orfília fazia um gesto de estranheza,Júnio continuava: - A primeira notícia que abalou hoje as pro-ximidades do Fórum, pela manhã, foi a da mortedo prefeito Lólio Úrbico, que se suicidou escan-dalosamente, obrigando o governo a numerosashomenagens! - É estranho - exclamou a interpelada -,muitas vezes vi em público esse homem fidalgo, deporte orgulhoso e varonil. Ainda ontem eu o vi noscarros de triunfo, nas festas do Imperador. Seurosto transbordava alegria e, no entanto... - Ora - interpôs o chefe da casa -, atravessamos uma fase dolorosa de terríveis surpresas para todas as classes sociais. Quem nos poderá afiançar com certeza, que o prefeito dos pretoria-nos se tenha suicidado realmente? No mês findo,a cidade assistiu a dois acontecimentos como esse e,no entanto, soube-se depois que os dois patríciossuicidas foram assassinados cruelmente por sicáriosda sua própria grei. Célia, encostada a um canto, como se fora umajovem mendiga, ouvia aquelas notícias, amarga-mente impressionada. A estranha morte de LólioÚrbico aterrava-a. Embora inquieta, fazia o possí-vel para não trair as mais vivas emoções. - Mas o dia não se caracterizou somente porisso - continuava Júnio, loquaz -; disseram-me noForum que alguns cristãos foram presos quandoreunidos próximo do Esquilino, bem como que ocensor Fábio Cornélio e família partiram para Cápua, a fim de trazerem para aqui as cinzas de uma filha do tribuno Helvídio Lucius, lá falecida recentemente...

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A jovem cristã recolheu a notícia com espanto,compreendendo a gravidade da sua condição pe-rante os parentes orgulhosos e inexoráveis. Seuespírito chocava-se tristemente, em face de notíciastão amargurosas... A mente lhe veio a idéia deregressar a casa e repousar o corpo alquebrado...Nunca se afastara do lar, a não ser quando des-cansava junto do avô enfermo, no palácio do Aven-tino. Lembrou os servos amigos e dedicados, in-vocou todos os recantos do ninho paterno com osseus aspectos peculiares. Uma saudade imensa desua mãe invadia-lhe o íntimo e, contudo, o coraçãolhe afirmava, por secreta intuição, que seus olhosnunca mais voltariam a refletir a placidez do larpaterno, a não ser quando abandonasse o ergás-tulo do mundo. Consoante as informações de Júnio,compreendeu que as portas da casa paterna lheestavam fechadas para sempre... Simbolicamentemorta, não poderia voltar aos seus senão comosombra... Observando-a de olhos úmidos e reconhecen-do-lhe o enorme cansaço, Orfília procurou quebrara frivolidade dos assuntos, dirigindo-lhe a palavra bondosamente : - E tu, minha querida menina, por pouco nãocontinuávamos a nossa história. Afirmas-te viúva?Mas, que lástima !.. Assim tão nova! Tomando-a pela mão, para conduzi-la ao in-terior sob o olhar surpreso dos dois homens quereparavam a nobreza de traços da desconhecida ,continuava : - Entremos, filha !... Está muito frio e pareces fatigada. Além disso, precisamos cuidar da alimentação do pequeno. Vem! Enquanto Célia exorava a Jesus que a inspi-rasse em tão difíceis circunstâncias, compreendendo após as notícias de Júnio, que não poderia expor

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àquela amiga ocasional a realidade da sua situação,Orfília prosseguia com interesse: - Mas, como te chamas, minha irmã? Enviu-vaste há muito tempo ? E não tens outra amizadepor ti ?. A filha de Helvídio, medindo a delicadeza domomento, deu um nome suposto, exclamando: - Enviuvei há quatro meses apenas e estouinteiramente desamparada, com este filhinho depoucos dias. Tenho experimentado todos os sofri-mentos de uma infortunada filha da plebe, mastenho guardado a fé em Jesus, como único refúgio.Ainda agora, a sua caridade fraterna, recolhendo--me a esta casa, foi para mim o testemunho vivoda proteção do Mestre Divino, a cuja misericórdiatenho endereçado todas as minhas súplicas!. , Não somente Orfília, mas o marido e o filhoa ouviram penalizados. - E quais os teus projetos, minha filha? -perguntou a dona da casa, compungida. A tal pergunta, Célia lembrou-se de Cneio Lu-cius, que lhe havia prometido amparo em todosos momentos difíceis, se o Senhor o permitisse, e,implorando-lhe um alvitre valioso, com as vibra-ções silenciosas do seu pensamento, retrucou comcerta firmeza: - Tenho necessidade de sair de Roma naprimeira oportunidade. Infelizmente, faltam-me osrecursos necessários, mas espero que Jesus me aju-dará... Tenho alguns parentes nos arredores deNápoles e nos confins da Campânia. Quero recor-rer a todos eles, porquanto não poderia aqui viversem elementos para me sustentar e ao meu pobrefilhinho. - Isso é justo - respondeu Orfília branda-

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mente -, eu e Horácio poderemos ajudar-te nasprimeiras providências. - Aliás - replicou o chefe da família, comum gesto paternal -, Júnio terá de viajar aindaeste mês, como empregado do Fórum, levando do-cumentos de pouca importância até Gaeta! Munidados pequenos recursos que poderemos arranjar, es-tarás habilitada a encetar nova diligência para tereunires aos teus parentes. Célia ouvia-lhe a palavra, confortada e agra-decida, enquanto Orfília tomava a criança paranutri-la convenientemente, obrigando a jovem atomar, por sua vez, um prato de caldo. - Essa idéia é bem lembrada - disse Orfíliadirigindo-se ao marido - os nobres poderão diri-gir-se a Nápoles no bojo de luxuosas galeras, masnós, os humildes, temos de nos valer dos mais po-bres recursos. - Tudo, porém, está na pauta da misericór-dia divina - glosou Horácio, convicto. E dirigindo-se ao filho, enquanto a mulher si-lenciava, perguntou: - Quando partes? - Acredito que dentro de duas semanas. - Pois bem, Orfília, até lá, buscaremos provernossa irmã do indispensável à sua viagem. Célia esboçou um sorriso de agradecimento,sentindo-se bem, ao lado daqueles corações simplese generosos. Daí a pouco repousava com o pequenito, numacama humilde, mas muito limpa, que a dona dacasa lhe preparou, junto do seu próprio quarto. A filha de Helvídio Lucius, ajeitando carinho-samente a criancinha entre as coberturas pobres,começou a orar, meditando nas dolorosas peripé-

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cias daquele dia inolvidável. Quando se sofre, avida é qual turbilhão de pesadelos intensos. Ao seuespírito combalido, pareceu-lhe estar apartada dosseus há muitos anos, tal a angústia martirizantedas horas intermináveis em que vagara pelas viaspúblicas, sem destino e sem nenhuma esperança..Sem perder de vista a criancinha, sentiu que aospoucos o organismo exausto cedia ao sono repa-rador. Adormeceu, então, tranqüila, como se nasasas da noite o espírito fugisse temporàriamentedo ergástulo, livre da realidade dolorosa. Durante duas semanas, valendo-se da proteçãode Orfília e seu esposo, a jovem cristã preparouo seu e o vestuário do pequeno. Com os elementosque os amigos lhe proporcionaram, talhou fatospobres e singelos, com os quais empreenderia oseu roteiro de humildade. Aonde iria? Não poderia sabê-lo ao certo. Não conhecia Nápoles senão através das des-crições do velho avô, quando fazia viagens imagi-nárias no intuito de ilustrar a neta estremecida. Possivelmente, não chegaria até Nápoles, nemmesmo à Campânia, onde guardava a recordaçãoda irmã e de Caio Fabricius, domiciliados em Cá-pua. Inútil presumir qualquer auxílio da irmã, por-quanto, certamente, Helvídia e o esposo, cientesdo que ocorrera em Roma, não lhe poderiam per-doar, em hipótese alguma. Entretanto, predispunha-se a partir, cheia deconfiança em Deus. No instante oportuno Jesushaveria de abençoar-lhe os passos, guiando-os aum destino certo. No complexo de suas meditações,recordava-se, incessantemente, da palavra do avôno dia do sacrifício de Ciro e Nestório, esperandoque os mensageiros do Senhor ou as almas dos

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entes queridos regressassem do túmulo para lheorientar o coração no dédalo das ansiedades angus-tiosas. Receosa de complicações, a jovem nunca saiudo humilde quarteirão transteverino, onde fora aco-lhida, até que um dia, ao dealbar da aurora, des-pediu-se da amiga com lágrimas nos olhos. O carro de Júnio fora preparado de véspera,de modo que a partida se efetuasse ao amanhecer.Orfília e Horácio estavam igualmente comovidos,mas, obedecendo ao imperativo das provações ter-renas, Célia aboletava-se no interior da viatura,construída à guisa de diligência dos tempos medie-vais, onde acomodou o saco de roupas e a largaprovisão de alimentos para o inocentinho, que Or-fília não se esquecera de preparar carinhosamente. Abraços carinhosos, votos de ventura e, daía instantes, sob o frio intenso da manhã, Júnioestalava o pequeno chicote no dorso dos animais,através das vias públicas. Célia rogava a Jesus que lhe fortalecesse oespírito angustiado, dando-lhe coragem para en-frentar as sendas procelosas da vida... Ao despe-dir-se de Roma, olhos nevoados de pranto, pare-ceu-lhe mais intenso o martírio íntimo, sentindoo coração azorragado pelas saudades impiedosas.Contemplando, porém, o pequenino meio adorme-cido em seus braços, experimentava uma força in-coercível que a sustentaria em todos os sacrifícios. Os primeiros raios do Sol começavam a invadiro céu escampo, quando o carro transpôs a PortaCaelimontana ( 1 ) , entrando os cavalos, logo após,a largo trote, na Via Ãpia... Defrontando ascampinas romanas no trecho em que se erguia oadmirável aqueduto de Cláudio, a filha de Helvídio

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embevecia-se na contemplação da Natureza, com oespírito mergulhado em preces carinhosas e pro-fundas meditações. Passava pouco de dez horas quando defron-taram Alba Longa, com o seu casario simples econfortável. Júnio, com reflexos enigmáticos no olhar, fêzque a companheira de viagem e o pequenino to-massem ligeira refeição, antes de iniciarem a as-censão dos montes do Lácio. Prosseguindo pelos caminhos orlados de árvo-res e flores silvestres, atingiram Arícia, cercada deoliveiras viçosas e de hortos imensos. Mais tardealcançavam Genciano, vila graciosa e afortunada ,ao pé do lago Nemi, em cujas bordas floriam in-términos roseirais. Célia trazia o espírito engolfado em meditaçõescariciosas, em face do encanto maravilhoso da pai-sagem, cuja beleza ultrapassava todos os quadrosda Palestina guardados na sua retentiva para sem-pre. Por toda parte, oliveiras amigas, laranjeirasem flor, hortos imensos e bem cuidados, roseirasperfumadas e detalhes preciosos que o homem docampo organizara. Fosse pela influência cariciosa do ar embal-samado de aromas, ou pelo cansaço da longa ex-cursão, a criança adormecera no colo da jovemmãezinha que o céu lhe dera, enquanto ela lheacariciava o rosto minúsculo com os mais ternosdesvelos. (1) A Porta Caelimontana foi chamada, mais tarde,Porta de São João. - Nota de Emmanuel. Enquanto a sombra do arvoredo atenuava osraios quentes do Sol vespertino, Júnio, que nuncaestava silencioso, chamando a atenção da compa-

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nheira de viagem para esse ou aquele pormenordo caminho, começou a falar-lhe de assunto estra-nho. A jovem corou, pediu-lhe recordasse a tra-dição cristã dos pais, que a haviam tratado gene-rosamente, suplicando-lhe que a deixasse em pazna sua dolorosa viuvez, ao léu da sorte. Notou,porém, que o rapaz estava saturado dos vícios daépoca, figurando-se-lhe que o filho dos seus pro-tetores era insensível às suas rogativas mais ar-dentes. Repelido nas suas propostas indecorosas,o filho de Horácio exclamava para a sua vítima,deixando transparecer no semblante uma repugnan-te expressão de abutre ferido. - Estamos próximo de Velitrae, onde pernoi-taremos, e como terás de prosseguir comigo atéGaeta, espero convencer-te amanhã. Do contrário... Célia enguliu o insulto, lembrando-se dos seusdeveres de orar e vigiar e conservando o pensa-mento em preces fervorosas, a fim de que o DivinoMestre, por seus mensageiros, lhe inspirasse o me-lhor caminho. Daí a instantes, entravam na bela cidade, edi-ficada em tempos remotos pelos volscos e berçodo grande Augusto. Velitrai, mais tarde Velétri,assenta num grande outeiro, oferecendo as mais for-mosas perspectivas topográficas ao viajante. Seuscrepúsculos são tocados de suave e maravilhosabeleza... Contemplando o Oriente, vêem-se os mon-tes da Sabina unidos aos barrancos profundos dacidade e, à tarde, quando o Sol desaparece, a nevedas montanhas mistura-se à neblina da noite, pro-porcionando prismas visuais do mais deslumbrante efeito. Júnio colheu as rédeas à frente de uma hos-pedaria do mais humilde aspecto. Recebido comdemonstrações de alegria por seus antigos conhe-

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cidos, providenciava imediatamente a hospedagemde Célia com a criança, recolhendo os animais à estrebaria. A jovem cristã, após a refeição da tarde, bus-cou o silêncio do quarto para refletir e orar. Júniomarcara o prosseguimento da viagem, ao alvorecer.Todavia, ela estava tomada de angústia e de in-certeza. O filho de seus benfeitores não pareciadotado dos elevados sentimentos paternos. Aqueleolhar arisco parecia indicar a peçonha de um ofí-dio. Seus gestos eram atrevidos, as idéias indife-rentes às noções do dever e da responsabilidade. Noite alta, uma serva da casa veio saber sea hóspede reclamava alguma coisa, encontrando-ainquieta e aflita, pensando no que pudesse acon-tecer ao seu amanhã doloroso e cheio de ameaças. Depois de amargas reflexões, deliberou, inspi-rada pelos amigos do Invisível, retirar-se da esta-lagem nas primeiras horas da madrugada, por fugira qualquer perversidade do inimigo de sua paz íntima. Assim, antes do alvorecer, afastou-se a medodo casarão desconhecido. Apertando o pequeninode encontro ao peito, experimentava o coração alhe bater aceleradamente. Jamais enfrentara situa-ções tão difíceis e, todavia, confiava que Jesus asocorreria com os alvitres necessários. Deixando Velétri à esquerda, tomou corajosa-mente um largo caminho, sobraçando o pequeninoe o seu saco de bagagens pobres, caminhando até ocompleto alvorecer e encontrando-se na antiga vilade Cora, famosa pelo seu templo de Castor e Pólux.Ali, uma mulher do povo recolheu-a por minutos,munindo-a de novas provisões; considerando a suapenosa jornada, com o inocentinho ao colo. Continuando a caminhar, possuída de estranhaforça, como se alguém lhe guiasse os passos, ape-

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sar do rumo incerto, achou-se em breve à margemdo rio Astura, atravessando aldeias pequeninas,onde havia sempre um bom coração a lhe prodi-galizar uma gentileza fraterna. Antes do meio-dia, defrontou humildes carre-teiros, assalariados pelos ricos senhores da regiãonos trabalhos de transporte, salientando-se que umdeles, de aspecto patriarcal, ofereceu-lhe um lugara seu lado, mitigando-lhe a dor dos pés. Em breve, assim instalada num veículo bastan-te ligeiro para a época, a jovem cristã divisava,à frente, as famosas Lagoas Pontinas, vasto terre-no sem inclinação, para onde convergem as pesadasmassas dágua de alguns rios. Célia atravessava numerosos grupos de casas,aldeias nascentes ou antigas cidades em ruínas, de-tendo os olhos tristes, com mais insistência, nashumildes edificações de Forápio ( Forum Appü ) ,onde as tradições cristâs de Roma asseveravam quese dera o encontro de Paulo de Tarso com os seusirmãos da cidade de César. Dentro de suas meditações, a viajante defron-tava Anxur, mais tarde Terracina, de onde saíapor escarpada encosta da montanha, passando pelasruínas bem conservadas de castelos antigos, dosmais remotos dominadores. Da culminância, seusolhos abrangiam toda a região das Lagoas céle-bres, bem como vasta extensão do mar Tirreno. Aí, porém, sentiu o coração gelado e dolorido.Era dali, daquela estrada hostil e montanhosa, queo idoso cocheiro, benfeitor e amigo, deveria retro-ceder, em obediência às ordens recebidas. Entardecia. O velho lidador da gleba despe-diu-se da companheira, com os olhos umedecidos.Por todo o caminho, Célia se conservara triste e

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silenciosa, mas, percebendo que o seu benfeitor es-tava receoso e sensibilizado por ter de abandoná-laem sítio tão ingrato, e a tais horas, disse-lhe cora-josamente : - Adeus, meu bom amigo ! Que o céu lhe re-compense a bondade. Seu oferecimento generosoevitou-me grande cansaço pelo caminho!... - Ides a Fondi? - perguntou o bom do velhocom carinhoso interesse. - Não precisarei chegar até lá - respondeua jovem com inaudita coragem -; a propriedadede meus parentes está muito próxima. - Ainda bem - replicou ele mais conforma-do -, temia que precisásseis caminhar ainda muito pois estas regiões são infestadas de feras e ban-didos. - Fique descansado - disse Célia ocultandoa própria angústia -, estas estradas não me sãodesconhecidas. Além do mais, estou certa de queo céu me protegerá, amparando o meu filhinho... O generoso carreiro ao ouvir a invocação docéu, descobriu-se respeitoso na sua simplicidadede alma devotada a Deus e, depois de estender adestra à jovem desconhecida, preparou-se para des-cer a montanha, onde fôra tão somente para aten-der a solicitação da sua graciosa passageira, des-cendo pelas mesmas sendas escarpadas, a fim decumprir em Anxur a incumbência que levava. Célia viu-o desaparecer nas curvas íngremes,acompanhando-lhe o veículo com o olhar triste eansioso. Desejava também retroceder, mas um re-ceio imenso dos homens impiedosos, que não sabe-riam respeitar-lhe a castidade, a impelia a buscaro desconhecido, entre as sombras espessas das flo-restas do Lácio.

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Com o pensamento em prece, caminhou quasemecânicamente, observando, angustiada, que se avi-zinhavam as sombras do crepúsculo... A estrada corria por um vale apertado, ven-do-se-lhe de um lado o oceano, e do outro a cadeiadas montanhas. Os derradeiros raios do Sol dou-ravam a cúpula imensa, quando seus olhos divisa-ram, à esquerda, uma gruta providencial, forma-da pelos elementos da Natureza. Era, porém, umaedificação natural tão imponente, que bastou umexame mais acurado para que se recordasse daslições do avô, em outros tempos, identificando olocal com as suas reminiscências dos estudos como avôzinho. Aquela gruta era o local famoso ondeSejano havia salvado a vida de Tibério, quando oantigo Imperador, ainda príncipe, se dirigia comalguns amigos para as cidades da Campânia. Sen-tindo-se rodeada pelos clarões mortiços da tarde,dirigiu-se para o interior, onde uma cavidade natu-ral parecia bem disposta para o descanso de umanoite. Agradecendo a Jesus o encontro de um pou-so como aquele, ajeitou as roupas pobres que tra-zia para acomodar o pequenino, colhendo, em se-guida, grandes braçadas de musgo selvagem, quecaíam das árvores idosas e forrando o leito depedras com o maior carinho. Quando procuravainterceptar a passagem para a cavidade em querepousaria, com pedras e ramos verdes, encarandoa possibilidade do aparecimento de algum animalbravio, eis que lhe chega aos ouvidos o tropel decavalos trotando, aceleradamente, ao longo do ca-minho... Guardando o pequerrucho nos braços, correupara a frente, desejosa de se comunicar com al-guém, para afastar do espírito aquela triste im-

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pressão de soledade, esperançosa de que a Provi-dência Divina, por intermédio de um coração bon-doso, lhe evitasse a amargura daquela noite quese prefigurava angustiosa e dolorida... Seria um carro, ou seriam cavaleiros generososque lhe estenderiam mãos fraternas? Também po-diam ser ladrões a cavalo, perdidos na floresta embusca de aventuras... Considerando esta últimahipótese, tentou retroceder, mas três vultos desta-caram-se ao seu lado, na sombra da noite, impe-dindo-lhe a retirada, porquanto, sofreados com for-ça, os garbosos cavalos interromperam o troteacelerado e ruidoso. Criando novo alento, ao influxo das energiaspoderosas que fluíam do Invisível para o seu es-pírito, a filha de Helvídio perguntou : - Ides a Fondi, cavalheiros? Ao ouvir-lhe a voz, alguém, que parecia o chefedos dois outros, exclamou com voz aterrada: - Urbano ! Lucrécio ! - acendam as lanternas. Célia reconheceu aquela voz dentro da noite ,com uma nota de terrível espanto. Tratava-se de Caio Fabricius, que regressavade Roma, deixando a esposa em companhia dospais, compelido por suas obrigações imperiosas emCápua, depois do suposto funeral de Célia, confor-me as combinações da família. Reconhecendo-o pela voz, a jovem cristã expe-rimentou os mais angustiosos receios, entremeadosde esperanças. Quem sabe a sua situação poderiamodificar-se, em face daquele encontro imprevisto? Antes que as suas cogitações tomassem longocurso duas lanternas brilharam no ambiente. O esposo de Helvídia contemplou-a, aterrado.A visão de Célia, sozinha e abandonada, sustendo

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nos braços a criança que ele supunha seu filho,comoveu-lhe o coração; todavia compreendendo agravidade dos acontecimentos de Roma, de con-formidade com as informações dolorosas do sogro,tratou de disfarçar a emoção, imprimindo no rostoa mais fria indiferença: - Caio !... - implorou a jovem com umainflexão de voz intraduzível, enquanto a luz lhebanhava o semblante abatido. -Conheceis-me? - perguntou o orgulhoso patrício. - Porventura me desconheces, tu ? - Quem sois ? - Pois será preciso abrir-te os olhos ? - Não vos reconheço. - Estarei, acaso, com a fisionomia transfor-mada a tal ponto? Não te recordas da irmã de tuamulher? - perguntou súplice. - Minha esposa - concluiu o viajante, en-quanto os dois servos o contemplavam altamentesurpreendidos - possuía apenas uma irmã, quemorreu há Ito dias. Estais evidentemente equi-vocada porquanto, ainda agora, venho de Roma,onde assisti ao seu funeral. Aquelas palavras foram pronunciadas com frie-za indefinível. A filha de Helvídio Lucius fixou nele os olhosmareados de lágrimas e o semblante transfiguradode infinita amargura. Compreendeu que era inútilafagar qualquer esperança de voltar ao seio dafamília. Para todos os efeitos estava morta, e parasempre. Figurou-se-lhe acordar, mais intensamente,para a sua realidade dolorosa, mas, sentindo quealguém lhe amparava o espírito em tão angustioso transe, exclamou : - Compreendo!... O esposo de Helvídia, contudo, aparentando má-

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xima frieza, de modo a não trair seus sentimentosdiante dos servos, replicou : - Senhora, se vos valeis desse expediente paraobter o dinheiro preciso às vossas necessidades, euvo-lo dou de bom grado. Mas, quando o orgulhoso romano revolvia abolsa para cumprir esse desígnio, ela lhe respondeucom nobreza e dignidade: - Caio, segue em paz o teu caminho!... Guar-da o teu dinheiro, pois uma bênção de Jesus valemais que um milhão de sestércios!.. Extremamente confundido, o marido de Helví-dia recolheu a bolsa, dirigindo-se contrariado aosservidores, nestes termos : - Apaguem as lanternas e prossigamos aviagem ! E observando a consternação de ambos os es-cravos, eminentemente impressionados com aquelacena, acrescentou com altanaria: - Que esperam mais para cumprir minhas or-dens? Não nos impressionemos com os incidentesdo caminho. Nunca passei pelas estradas de Anxursem encontrar uma louca como esta! Como se fossem repentinamente despertadospor ordens mais severas, Urbano e Lucrécio obede-ceram às exigências do senhor, apagando as luzesque bruxuleavam na escuridão da noite e, daí ainstantes, os três cavaleiros recomeçavam a mar-cha, como se coisa alguma houvesse acontecido. Caio Fabricius era generoso, mas a falta deCélia, aos olhos da família, era assaz grave paraque pudesse ser perdoada. A ninguém revelariaaquele encontro, ainda porque, entre ele e sua mu-lher, havia o compromisso de absoluto sigilo a talrespeito. Resolveu, assim, sufocar todos os estos

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de compaixão pela infeliz cunhada. Quanto a esta, com os olhos mareados de lá-grimas, ficou como petrificada, a ouvir o compas-sado trote dos animais que se afastavam, até queum silêncio profundo e misterioso se fez sentir portoda parte, dentro da floresta sombria. Vendo que Caio se afastava, teve ímpetos, nasua fragilidade feminina, de suplicar o seu auxílio ,rogando-lhe a caridade de conduzi-la até ao povoa-do de Fondi, onde, por certo, encontraria alguémque a abrigasse por uma noite. Todavia, permane-ceu muda, como se a insensibilidade do cunhadolhe houvesse enregelado a própria alma. Chorou longamente misturando em orações aslágrimas amargas, de olhos fitos no céu, onde ape-nas lucilavam raras estrelas... A passos vacilantes voltou à gruta selvagemque a Natureza havia edificado. Lá dentro, acomodou a criança da melhor ma-neira e entrou a meditar amargamente. Os ventos do Lácio começaram a sussurraruma sinfonia triste estranha, e, de longe em longe,até aos seus ouvidos chegavam os ecos dos lobosselvagens, ululando na floresta... Célia sentiu-se abandonada mais que nunca.Profundo desânimo se lhe apoderou do espírito,sentindo que, apesar da fé, a fortaleza moral des-falecia em face de tão penosos padecimentos..Lembrou, uma a uma, todas as suas alegrias do-mésticas recordando cada familiar, com as parti-cularidades encantadoras do seu extremoso afeto.Nunca o sofrimento moral lhe atingira tão fundoo coração sensível !... Enquanto as lágrimas silen-ciosas lhe rolavam dos olhos, lembrou-se, mais quenunca, das exortações de Nestório nas vésperas do

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sacrifício, rogando a Jesus lhe concedesse forçaspara as renúncias purificadoras.. Mergulhada em profunda escuridão, acarinha-va o rosto do pequenino, receosa de um ataque derépteis, enxugando as lágrimas, para melhor pen-sar no futuro, sem perder a sua confiança na misericórdia de Jesus. Foi então que, com surpresa e pasmo dos seusolhos aflitos, emergiu da sombra um ponto lumi-noso, avultando com rapidez prodigiosa, sem queela atinasse, de pronto, com o que se passava...Aturdida e surpresa, acabou por divisar a seu ladoa figura do avô, que lhe enviava ao coração ator-mentado o mais terno dos sorrisos... Tamanha era a sua amargura, tanto o fel doseu coração angustiado, que não chegou a mani-festar a menor estranheza. Dentro das claridadesda sua fé, recordou, imediatamente, a lição evan-gélica das aparições do Divino Mestre a Maria Ma-dalena e aos Discípulos, estendendo para o avô osbracos ansiosos. Para o seu espírito dolorido, avisão de Cneio Lucius era uma bênção do Senhoraos seus inenarráveis martírios íntimos. Quis falar,mas, ante a figura radiosa do velhinho bom, a vozmorria-lhe na garganta sem conseguir articularuma palavra. Todavia, tinha os olhos aljofradosde pranto e havia em seu rosto uma tal expressãode sublimidade, que dir-se-ia mergulhada em pro-fundo êxtase. - Célia - sussurrou o Espírito carinhoso ebenfazejo - Deus te abençoe nas tormentas aspér-rimas da vida material !... Feliz de ti, que ele-geste o sacrifício, como se houvesses recebido umadeterminação grata do Mestre!... Não desfaleçasnas horas mais amargas, pois entre as flores doCéu há quem te acompanhe os sofrimentos, forta-

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lecendo as fibras do teu espírito desterrado! Ja-mais te suponhas abandonada, porquanto, do Além,nós te estendemos mãos fraternas. Todas as dores,filhinha, passam como a vertigem dos relâmpagosou como os véus da neblina desfeitos ao Sol..Só a alegria é perene, só a alegria alcança a eter-nidade. Realizando-nos interiormente para Deus,nós compreendemos que todos os sofrimentos sãovésperas divinas do júbilo espiritual nos planosda verdadeira vida! Conhecemos a intensidade dosteus padecimentos, mas, coerente com a tua féconserva o pensamento sempre puro! Crendo sa-crificar-te por tua mãe, estás cumprindo uma dasmais formosas missões de caridade e de amor, aosolhos do Cordeiro... Jamais agasalhes a idéia deque o sentimento materno se houvesse desviadoalgum dia do código da lealdade e da virtude do-méstica, mas recebe todos os sofrimentos comoelementos sagrados da tua própria redenção espi-ritual ! Tua mãe nunca faltou à fidelidade conjugale o teu espírito de abnegação e renúncia receberáde Jesus a mais farta messe de bênçãos. Ouvindo aquelas palavras que lhe caíam comobálsamo divino no coração desalentado, a filha deHelvídio deixava que as lágrimas de conforto ín-timo lhe rolassem das faces, como se o pranto,somente, lhe pudesse lavar todas as amarguras.Ela identificava o avô carinhoso e amigo, ali, a seulado, como nos dias mais venturosos da sua exis-tência. Nimbado de uma luz suave e doce, CneioLucius sorria-lhe com a benevolência de coraçãoque sempre lhe demonstrara. Escutando-lhe a re-velação da integridade moral da genitora, Céliareconsiderou as ocorrências dolorosas do lar. Bas-tou que esboçasse tais pensamentos, sem exprimi-

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-los verbalmente, para que a respeitável entidadeespiritual a esclarecesse, nestes termos : - Filha, não cogites senão de bem cumpriros desígnios do Senhor a teu respeito... Não per-mitas que os teus pensamentos voltem ao passadopara se eivarem de aflições e amaritudes da vidaterrestre! Não queiras estabelecer a culpa de al-guém ou apontar o desvio de quem quer que seja,porque há um tribunal de justiça incorruptível, quelegisla acima das nossas frontes !... Para ele nãohá processos obscuros, nem informações inexatas!Se essa justiça sublime determinou a tua marchapelos carreiros da calúnia e do sacrifício, é queessa estrada conviria mais ao teu aperfeiçoamentoe às fórmulas de trabalho que te competem. Nuncamais voltarás ao aconchego do lar paterno, ao qualte sentirá ligada pelos elos inquebrantáveis dasaudade e do amor, através de todos os caminhos,mas essa separação de tua alma dos nossos afetosmais queridos será como um ponto de luz imor-redoura, assinalando a transformação dos nossosdestinos? Teu sacrifício, filhinha, há-de ser paratodo o sempre um marco renovador de nossas ener-gias espirituais no grande movimento das reencar-nações sucessivas, em busca do amor e da sabe-doria! Ampliando os meus recursos para regressaràs lutas terrestres, abençôo a tua dor, porque atua renúncia é grande e meritória aos olhos de Jesus. Foi aí que ela, conseguindo romper as emoçõesque a asfixiavam, exclamou com voz amargurada e dolarida: - Mais do que as palavras, meu coração, queo vosso espírito pode perscrutar, pode dizer-vos daminha alegria e reconhecimento!... Protetor e ami-go, guia desvelado de minhalma, já que vindes das

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sombras do túmulo para trazer-me as mais consoladoras verdades, ajudai-me a vencer nos embates dolorosos da vida!... Animai-me! Inspirai-me com a vossa sabedoria e o vosso amor compassivo!Não me deixeis desorientada, nestas penhas esca-brosas !.. Avô, meu coração tem andado tristecomo esta noite, e o desalento e a amargura cla-mam no meu íntimo como os lobos ferozes queuivam nestas selvas !.. Doravante, porém, sabereique vos tenho junto a mim !... Caminharei cons-ciente de que me seguireis os passos em buscada felicidade real !.. Rogai a Jesus que eu desem-penhe austeramente todos os meus deveres ! E, so-bretudo, amparai também o inocentinho, cuja vidabuscarei proteger em todas as circunstâncias !. A voz de Célia, todavia, experimentava um estacato. Ouvindo-lhe as súplicas com a mesma expressão de serenidade e de carinho no olhar, Cneio Lucius avançou vagarosamente até o leito impro-visado do pequenino, iluminando-lhe o rostinho alvo com um gesto da sua destra radiosa e exclamando num sorriso : - Eis, filhinha - disse apontando a criancinha -, que Ciro cumpriu a promessa, regressando prestes ao mundo para estar mais perto do teu coração, sob as bênçãos do Cordeiro !. - Como não mo revelastes antes? - mono-logou a jovem intimamente possuída de sublime alvoroço. - é que Deus - exclamou a entidade gene-rosa, adivinhando-lhe os pensamentos - quer quetodos espiritualizemos o amor, buscando-lhe as ex-pressões mais puras e mais sublimes. Recebendoum enjeitadinho como teu irmão, sem te deixaresconduzir por qualquer disposição particular, sou-beste santificar, ainda mais, tua afeição por Ciro, no laço indissolúvel das almas gêmeas, a caminho das mais lúcidas conquistas espirituais na redenção suprema... - Sim - falou a jovem patrícia dentro doseu júbilo espiritual -, agora compreendo melhor

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o meu enternecimento, e já que me trouxestes aocoração uma alegria tão doce, ensinai-me comodevo agir, dai-me uma orientação adequada, paraque eu possa cumprir irrepreensivelmente todos osmeus deveres... - Filha, a orientação de todos os homens estádelineada nos exemplos de Jesus-Cristo! Não temoso direito de tolher a iniciativa e a liberdade dosentes que nos são mais caros, porque, no caminhoda vida, o esforço próprio é indispensável! Lutacom energia, com fé e perseverança, para que oreino do Senhor floresça em luz e paz na tua pró-pria vida... Mantém a tua consciência sempre purae, se algum dia a dúvida vier perturbar teu cora-ção, pergunta a ti mesma o que faria o Mestreem teu lugar, em idênticas circunstâncias... Assimaprenderás a proceder com firmeza, iluminando astuas resoluções com a luz do Evangelho !... Depois de uma pausa em que Célia não sabiase fixava a personalidade sobrevivente do avô, ouse despertava o enjeitadinho para rever nos seusolhos, mais uma vez, as recordações do bem-amado,Cneio Lucius acentuou : - Depois de tantas surpresas empolgantes ede tanta fadiga, precisas descansar! Repousa o cor-po dolorido que ainda terá de sustentar muitaslutas... Continua com a mesma oração e vigilân-cia de sempre, pois Jesus não te abandonará nomar proceloso da vida!... Então, como se um poder invencível lhe anu-lasse as possibilidades de resistência, Célia sentiu--se envolvida num magnetismo doce e suave. Aospoucos, deixou de ver a figura radiosa do avô, quese postara a seu lado qual sentinela afetuosa con-tra a incursão de todos os perigos... Um sono

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brando cerrou-lhe as pálpebras cansadas e, abra-çada ao pequenito, dormiu tranquilamente até queos primeiros raios do Sol penetrassem na grutaanunciando o dia.

De Minturnes A Alexandria

Enquanto a vida familiar de Fábio Cornéliotranscorria, na cidade imperial, sem acidentes dig-nos de menção, sigamos a filha de Helvídio Luciusna sua via dolorosa. Levantando-se pela manhã, Célia alcançou apovoação de Fondi, em cujas cercanias uma cria-tura generosa acolheu-a por um dia, com ternurae bondade. Foi o bastante para se reconfortar dascaminhadas ásperas e longas e, no dia seguinte,punha-se novamente a caminho em direção de Itri,a antiga Urbs Mamurrarum, aproveitando o mes-mo traçado da Via Ãpia. Em caminho, teve a satisfação de encontrara carreta de Gregório, o mesmo carreiro humildeque a deixara, na antevéspera, nas montanhas deTerracina, circunstância que lhe trouxe ao coraçãomuita alegria. Nas dificuldades e dores do mundo,a fraternidade tem elos profundos, jamais faculta-dos pelos gozos mundanos, sempre fugazes e transitórios. Gregório ofereceu-lhe o mesmo lugar ao seulado, num gesto de proteção que a jovem aceitou,considerando-o uma bênção do Alto. Desta vez, reconheceram-se como dois bonsamigos de outros tempos. Falaram da paisageme dos pequenos acidentes da viagem, rematandoGregório com uma pergunta cheia de interesse: - Tem a senhora outros parentes além deFondi? Não me pareceu pequeno o sacrifício em

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aventurar-se a uma jornada tão longa como a de anteontem... Como consentiram prosseguisse outra viagem a pé ? - Sim, meu amigo - respondeu buscando des-viar a sua afetuosa curiosidade -, meus parentesde Fondi são paupérrimos e não desejo voltar aRoma sem rever um tio enfermo, que reside em Minturnes. (1) - Ainda bem - murmurou o generoso plebeu,satisfeito com a resposta -, sendo assim, podereilevá-la hoje até ao fim da sua jornada, pois voualém das lagoas da cidade. A marcha continuou entre as gentilezas deGregório e os agradecimentos de Célia, que lheapreciava a bondade, comovida. Somente ao cair da tarde o veículo atingiu osarredores da cidade famosa. Despedindo-se do carinhoso companheiro, a jo-vem cristã atentou na paisagem soberba que sedesdobrava aos seus olhos. Uma formosa vegetaçãolitorânea repontava dos terrenos alagadiços, numdilúvio de flores. A primeira porta da cidade es-tava a alguns metros, e, todavia, o seu amor pelaNatureza fê-la estacionar junto das grandes árvo-res do caminho. O Sol, em declínio, enviava à telafdorida os seus raios agonizantes. Dominada porgrandiosos pensamentos e experimentando um novoalento de vida, com a palavra de verdade e de con-solação que o avô lhe trouxera na véspera, dosconfins do túmulo, começou a orar, agradecendo aJesus as suas graças sublimes e infinitas. (1) Minturnes, mais tarde passou a chamar-se Tra-jetta. - Nota de Emmanuel. No seu caricioso embevecimento, contemplou afigurinha mimosa que se agitava em seus braçose beijou-lhe a fronte num arroubo de espiritua-lidade.

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Na véspera, haviam recebido a hospitalidadeda Natureza, mas, agora, ante as fileiras de case-bres ali próximos da estrada, consultava a si mes-ma sobre o melhor meio de recorrer à piedadealheia, contando, porém, como das outras vezes ,com o amparo de Jesus, que lhe forneceria a inspi-ração mais acertada, por intermédio dos seus lúcidos mensageiros. Foi então que reparou numa choupana rodeada de laranjeiras, onde a vida parecia ser a mais simples e mais solitária. Seu aspecto singelo emergia do arvoredo a duzentos metros do local em quese encontrava, mas, como que atraída por algum detalhe que não poderia definir, Célia alcançou a trilha e bateu à porta. Brilhavam no céu as primeiras estrelas. Depois de muito chamar, sentiu que alguémse aproximava com dificuldade, para dar voltas ao ferrolho. E não tardou tivesse diante dos olhos surpre-sos uma figura patriarcal e veneranda, que a aco-lheu com solicitude e simpatia. Era um velho de cabelos e barbas completamente encanecidos. As cãs prateadas realçavam-lhe os nobres traços romanos, irrepreensíveis. Aparentava mais de setenta anos, mas o olhar estava cheio de ternura e de vida, como se os seus raciocínios estivessem em plenitude de maturidade.Estendendo-lhe as mãos encarquilhadas e trêmulas,Célia notou pequena cruz a pender-lhe do peito,fora da toga descolorida e surrada. Grandemente emocionada e compreendendo quese encontrava à frente de um velho cristão, mur-murou humilde : - Louvado seja Nosso Senhor Jesus - Cristo ! - Para sempre, minha filha! - respondeu o ancião, esboçando num sorriso o júbilo que aquela saudação lhe causava. - Entra na choupana do mísero servo do Senhor e dispõe dele, teu servo,igualmente. A filha de Helvídio Lucius explicou, então, que

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se encontrava no mundo ao desamparo, com umfilhinho de poucos dias, abençoando a hora feliz debater à porta de um cristão, que, desde aquele ins-tante, passaria a encarar como um mestre. Desdelogo, estabeleceu-se entre ambos uma cordialidadee um afeto mútuos, tão expressivos, tão puros, quepareciam radicados na Eternidade. Ouvindo-lhe a história, o ancião de Minturnesfalou-lhe com brandura e sinceridade: - Depois de examinar a tua situação, minhafilha, hás-de permitir te assista como um pai ouirmão mais velho, na fé e na experiência. É que,também, tive uma filha, perdida há pouco tem-po, justamente quando vinha buscá-la para acom-panhar-me no meu voluntário e bendito degredona África... Parecia-se extraordinàriamente con-tigo e terei grande ventura se me olhares com amesma simpatia que me inspiraste. Ficarás nestacasa o tempo que quiseres, ou necessitares... Vivosó, após uma existência fértil de prazeres e deamarguras... Antigamente, a afeição de uma fi-lha ainda me prendia o coração a cogitações mun-danas, mas agora vivo somente na minha fé emJesus - Cristo, esperando que a sua palavra de mi-sericórdia me chame breve ao seu reino, para averificação da minha indigência! Sua voz entrecortava-se de suspiros, como seos mais atrozes padecimentos íntimos lhe azorra-gassem o coração, ao evocar reminiscências. - Há mais de um ano - continuou - aguar-do oportunidade para regressar a Alexandria, maso deperecimento físico parece advertir-me que embreve serei forçado a entregar o corpo à terra daCampânia, mau grado ao desejo de morrer no pou-so solitário a que transportei o meu espírito..

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Enquanto ele fazia uma pausa, a jovem aven-tou despreocupadamente: - Sois romano, presumo, pelos traços incon-fundíveis da vossa fisionomia patrícia. Fitando-a bem nos olhos, como se quisessecertificar-se de toda a pureza e simplicidade dalmada sua interlocutora, o ancião respondeu pausadamente : - Filha, tua condição de cristã e a candidez que se irradia de tua alma obrigam-me a maior sinceridade para contigo!... Nesta cidade ninguém me conhece, tal comosou !.. Desde o dia em que me consagrei à insti-tuição cristã da qual participo no Egito longínquo,chamo-me Marinho para todos os efeitos. Dentroda nossa comunidade de homens sinceros e cren-tes, desprendidos dos bens materiais, fizemos votosolene de renúncia a todas as regalias efêmerasda Terra, a todas as suas alegrias, de modo a nosunirmos ao Senhor e Mestre com a compreensãoclara e profunda da sua doutrina. Enquanto osdéspotas do Império tramam a morte do Cristia-nismo, supondo aniquilá-lo com o suplício dos adep-tos, fora de Roma organizam-se as forças podero-sas que hão-de agir no futuro, em defesa das idéiassagradas ! Em todas as Províncias da Ásia e daÁfrica os cristãos se articulam em sociedades pací-ficas e laboriosas, e guardam os escritos preciososdos Discípulos do Senhor e dos seus seguidoresabnegados, protegendo o tesouro dos crentes parauma posteridade mais piedosa e mais feliz!. Enquanto Célia o escutava com carinhoso in-teresse, o ancião de Minturnes continuava, depoisde uma pausa, como que preparando o próprio pen-samento para maior clareza das suas recordações. - A outrem filha, não poderia confiar o quete revelo esta noite, levado por um impulso do co-

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ração... Talvez meu espírito esteja acercando-se do sepulcro e o Mestre Amado queira advertir, indiretamente, a alma culpada e dolorida. Há qualquer coisa que me compele a confessar-te o passado com as suas inquietudes e incertezas... Não poderia explicar-te o que seja... Sei, apenas, que a inocência do teu olhar de cristã, de filha piedosa e meiga, faz nascer-me no peito exausto os bens divinos da confiança!... Meu verdadeiro nome é Lésio Munácio, filhode antigos guerreiros, cujos ascendentes se nota-bilizaram nos feitos da República... Minha mo-cidade foi uma esteira longa de crimes e desvios,aos quais se entregou o meu espírito frágil, vistoo desconhecimento do ensino de Jesus... Não tre-pidei, noutros tempos, em brandir a espada homi-cida, disseminando a ruína e a morte entre os seresmais humildes e desprezados... Auxiliei a perse-guição aos núcleos do Cristianismo nascente, levan-do mulheres indefesas ao martírio e à morte, nosdias das festas execráveis !... Ai de mim, porém !...Mal sabia que um dia ecoaria em meu íntimo amesma voz divina e profunda que soou para Paulode Tarso a caminho de Damasco! Depois dessa vidaaventurosa, casei-me tarde, quando as flores dajuventude já se despetalavam no outono da vida!Antes não o fizesse!... Para conquistar o afeto dacompanheira, fui compelido a gastar o impossível,lançando mão de todos os recursos! Sem prepara-ção espiritual, construí o lar sobre a indigência maistriste! Em pouco tempo, uma filhinha graciosa vi-nha iluminar o âmago escuro das minhas reflexõessobre o destino, mas, atormentado pelas necessi-dades mais duras a fim de mantermos em Romao nosso padrão de vida social, senti que a pobreesposa, tomada de ilusões, não beberia comigo ocálice da pobreza e da amargura! Com efeito, em

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breve o meu lar estava ultrajado e deserto!.. O questor Flávio Hilas, abusando da amizadee da confiança que eu lhe dispensava, seduziu mi-nha mulher, desviando-a ostensivamente do santuário doméstico, para escárnio de minhas esperanças e de meus sofrimentos... Desejei sucumbir para furtar-me à vergonha, mas o apego à filhinha me advertia de que esse gesto extremo significava apenas covardia... Pensei, então, em procurar FlávioHilas e a esposa infiel, para trucidá-los sumària-mente com um golpe de espada, mas, quando bus-cava realizar o sinistro intento, encontrei um ve-lho mendigo junto ao templo de Serápis, que meestendeu a destra dilacerada, não para imploraresmola, mas para dar-me um fragmento de perga-minho que tomei sôfrego, como se recebesse secre-ta mensagem de um amigo. Depois de alguns pas-sos reconheci com assombro que ali se achavamgrafados alguns pensamentos de Jesus - Cristo e que,depois, vim a saber serem os do Sermão da Montanha... Junto a esse hino dos bem-aventurados, estavaa participação de que alguns amigos do Senhor sereuniriam junto dos velhos muros da Via Salária, naquela noite!... Retrocedi para colher informes do mendigo; não o encontrei, porém, nem pude jamais obter notícias dele. Aqueles ensinamentos do Profeta Galileu en-cheram-me o coração... Parece que somente nasgrandes dores pode a alma humana sentir a gran-deza das teorias do amor e da bondade.. Volteia casa sem cumprir os malsinados propósitos, e,considerando a inocência de minha filha, cujoscarinhos infantis me concitavam a viver, fui à as-sembleia cristã, onde tive a felicidade de ouvirpregadores valorosos, das verdades divinas. Lá se congregavam homens sofredores e hu-milhados, entre os quais alguns conhecidos meus,

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que as fúrias políticas haviam atirado ao sofrimen-to e ao ostracismo.. Criaturas humildes ouviama Boa Nova, de mistura com elementos do patri-ciado, que as circunstâncias da sorte haviam con-duzido à adversidade... Para todos, a palavra deJesus constituía um consolo suave e uma energiamisteriosa... Em todos os semblantes, à claridadetriste das tochas, surgia uma expressão de vidanova que se comunicou ao meu espírito cansadoe dolorido... Naquela noite regressei a casa comose houvera renascido para enfrentar a vida! No dia seguinte, porém, quando menos o es-perava na quietação de minha alma, eis que umpelotão de soldados me cercava a residência e con-duzia-me ao cárcere, sob a mais injusta acusação...É que, naquela noite, o inditoso Flávio Hilas foraapunhalado em misteriosas circunstâncias. Diantedo seu cadáver, minha própria mulher jurou foraeu o assassino. Argüida a calúnia, busquei inter-por minhas relações de amizade para recuperar aliberdade e poder cuidar da pobre filha recolhida,então, por mãos generosas e humildes do Esqui-lino; mas os amigos responderam-me que só o di-nheiro poderia movimentar, a meu favor, os aparelhos judiciários do Império, e eu já não o possuía... Abandonado no cárcere, impossibilitado de jus-tificar-me, visto haver comparecido à assembleiacristã naquela noite, preferi silenciar a comprome-ter os que me haviam proporcionado consolação aoespírito abatido... Espezinhado nos meus sentimen-tos mais sagrados, esperei as decisões da justiçaimperial tomado de indefinível angústia. Afinal, dois centuriões foram notificar-me a sentença iníqua. As autoridades, considerando a extensão do crime, cassavam-me todos os títulos e prerrogati-

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vas do patriciado, condenando-me à morte, visto o questor assassinado ter sido homem da confiança de César... Recebi a sentença quase sem surpresa, embora desejasse viver para servir àquele Jesus, cujos ensinos grandiosos haviam sido a minha luznas sombras espessas do cárcere, e cumprir, igualmente, os deveres paternais para com a filhinha abandonada pela ternura materna... Esperei a morte com o pensamento em prece,mas, a esse tempo, existia em Roma um homemjusto, pouco mais moço que eu, cujo pai fora camarada de infância do meu genitor. Esse homem conhecia o meu caráter defeituoso, mas leal. Chamava-se Cneio Lucius e foi pessoalmente a Trajanoadvogar a causa da minha liberdade. Afrontandoas iras de Augusto, não trepidou em lhe solicitarclemência para o meu caso e conseguiu que o Imperador comutasse a pena para o banimento da Corte, com a supressão de todas as regalias que o nome me outorgava... Enquanto o ancião fazia uma pausa, a jovemcomeçou a chorar comovidamente, em face da alu-são ao avô, cuja lembrança lhe enchia o íntimo de vivas saudades. - Uma vez livre - prosseguiu o velho deMinturnes -, aproximei-me de antigos companhei-ros que comigo haviam provado do mesmo cálicecom as perseguições de ordem política e que já par-tilhassem da mesma fé em Jesus - Cristo.. Bani-dos de Roma e humilhados, dirigimo-nos à África,onde fundamos um pouso solitário, não longe deAlexandria, a fim de cultivarmos o estudo dos tex-tos sagrados e conservar, simultaneamente, os te-souros espirituais dos apóstolos. Deixando a Capital do Império, confiei minhaúnica filha a um casal amigo, cuja pobreza ma-terial não lhe deslustrava os sentimentos nobres.Provendo o futuro da filhinha com todos os recur-sos ao meu alcance, parti para o Egito cheio denovos ideais, à luz da nova crença! Nas severas

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meditações e austeros exercícios espirituais a queme submeti, cheguei a olvidar as grandes lutas epenosas amarguras do meu destino !. O descanso da mente em Jesus aliviou-me detodos os pesares. O único elo que ainda me pren-dia à Península era justamente a filha, então jámoça, e cuja afetividade desejava transportar parajunto de mim, na África longínqua... Depois devinte anos no seio da nossa comunidade, em precese meditações proveitosas, solicitei do nosso diretorespiritual a necessária permissão para recolher umfamiliar ao nosso retiro. Referi-me a um familiar,pois desejava convencer minha pobre Lésia de quedeveria partir em minha companhia, em trajesmasculinos, considerando o ensino de Jesus de queexistem no mundo os que se fazem eunucos por amor a Deus... Os estatutos da comunidade não permitem mu-lheres junto de nós outros, por decisão de AufídioPrisco, ali venerado como chefe, sob o nome deEpifânio... Não era meu propósito menosprezaras leis da nossa ordem e sim arrebatar a filhinhaao ambiente de seduções desta época de decadênciaem que as intenções mais sagradas são colhidaspelos lobos da vaidade e da ambição, que ululamno caminho... Desejaria conservá-la, junto de mim,no mais santo dos anonimatos, até que conseguissemodificar as disposições de Epifânio, acerca dosregulamentos da nossa ordem, atentas as circuns-tâncias especiais da minha vida!... Obtendo a necessária permissão para vir àPenínsula, aqui aportei há quase dois anos, experi-mentando a angústia de reencontrar minha Lésianos derradeiros instantes de vida... Descrever-temeu sofrimento com a separação da filha querida,depois de ausente tantos anos e de haver acaricia-

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do tão grandes esperanças, é tarefa superior àsminhas forças... Acompanhei-lhe os despojos aosepulcro, para onde mandei transportar, pouco de-pois, os dos carinhosos amigos que lhe haviam ser-vido de pais, também vitimados pela peste, que, hátempos, flagelou toda a população de Minturnes!... Ai de mim, que não mereci senão angústias etormentos, nas estradas ásperas da existência, emvista dos meus crimes inomináveis na juventude!... Resta-me, contudo, a esperança no amor doCordeiro de Deus, cuja misericórdia veio a estemundo arrebatar-nos da humilhação e do pecado... Avizinhando-me do túmulo, rogo ao Senhorque me não desampare... Além do sepulcro, sin-to que esplende a luz dos seus ensinamentos, num Reino de paz misericordiosa e compassiva ! Certamente, lá me esperam a filha idolatrada e os amigos inesquecíveis. A terra florescente da Campâ-nia, pressinto-o, guardará em breve o meu corpo combalido; mas, além das forças exaustas da vida material, espero encontrar a verdade consoladora da nossa sobrevivência ! Receberei de boa vontade o julgamento mais severo, do meu passado delituoso, e, renunciando a todos os sentimentos pessoais,hei-de aceitar plenamente os desígnios de Jesus nasua justiça equânime e misericordiosa !. O ancião de Minturnes falava comovido, com oolhar lúcido, fixo no Alto, como se estivesse diante de um plenário celeste, com a serenidade da sua fé robusta e ardente. Mas, chegando ao termo das confidências do-lorosas, observou que Célia tinha os olhos rasosde lágrimas, a ponto de não poder falar de pron-to, tal a comoção que lhe estrangulava a voz noimo do peito dolorido. - Porque choras minha filha - ajuntou combrandura -, se a minha pobre história de velhonão te pode interessar diretamente o coração?

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A filha de Helvídio não respondeu, dominada pela emoção do momento, mas o ancião continuava, surpreso e melancólico : - Acaso terás também uma história amargu-rada quanto a minha? Apesar da fé ardente quepressinto em teu espírito, não se justifica tamanhasensibilidade espiritual na tua idade. Dize, filha,se tens o coração igualmente tocado por uma úl-cera dolorosa... Se as dores te pesam na almadesiludida, recorda a palavra do Mestre, quandoexortava em Cafarnaum: - "Vinde a mim todosvós que trazeis no íntimo os tormentos do mundoe eu vos aliviarei..." É verdade que não estás àfrente do Messias de Deus, mas, ainda aqui, deve-remos lembrar a lição de Jesus, aceitando o cari-nho do Cireneu que o ajudou a carregar a cruz !.Ele, que era a personificação de toda a energia do amor, não hesitou em aceitar o amparo de um filho humilde do infortúnio... Também eu sou um mísero pecador, filho das provações mais ásperase espinhosas; mas, se puderes, lê em meu coraçãoe verás que no meu íntimo palpita, por ti, a afe-tividade de um pai. Tua presença desperta-me inex-plicável e misteriosa simpatia... Confiei ao teuespírito o que diria somente à filhinha adorada,que me precedeu nas sombras do túmulo. Se tesentes sobrecarregada dos pesares do mundo, di-ze-me algo de tuas dores. Repartirás comigo osteus sofrimentos e a cruz das provas te parecerá mais leve !.. Ouvindo aquelas exortações carinhosas e es-pontâneas, que não mais ouvira desde a morte doavô, cujo nome fora ali pronunciado pelo anciãode Minturnes, como um ponto de referência à sua confiança, Célia, depois de acomodar o pequenino adormecido, sentou-se ao lado do seu benfeitor, com a intimidade de quem o conhecesse de muitotempo, e, com a voz entrecortada de reticências da sua emoção profunda, começou a falar:

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- Se me tendes chamado filha, permitireis vosbeije as mãos generosas, chamando-vos pai, pelasafinidades mais santas do coração. Acabastes de invocar um nome que me obrigaa chorar de emoção, no tumulto de recordaçõestambém amargas e dolorosas... Confiarei em vós,qual o fiz sempre ao carinhoso avô, que relembras-tes agradecido. Também eu venho de Roma, pelosmesmos caminhos ásperos de amargor e sacrifício.Reconhecida à vossa confiança, revelarei igualmen-te o meu romance infortunoso, quando a mocidadeparecia sorrir-me em plena floração primaveril. Abandonada e só, receberei, por certo, da vos-sa experiência nas estradas da vida o bom conse-lho que me habilite a fixar-me em qualquer parte,a fim de cumprir a missão de mãe, junto destepobre inocentinho! Desde Roma, venho experimen-tando a mais atroz necessidade de me comunicar com um coração afetuoso e amigo, que me possa orientar e esclarecer. Nas minhas caminhadas encontrei por toda parte homens impiedosos, queme envolviam com olhares de corrupção e volup-tuosidade.. Alguns chegaram a insultar minhacastidade mas roguei insistentemente a Jesus aoportunidade de encontrar um espírito benfazejo ecristão, que me fortalecesse!. Sentindo-se tomada por inexplicável confiança,enquanto o velhinho de Minturnes a ouvia surpre-so, embora a imensa serenidade que lhe transpa-recia do olhar a filha de Helvídio Lucius começoua desfiar o seu romance, cheio de lances intensose comovedores. Confessando-se neta do magnâni-mo Cneio, o que sensibilizou profundamente o in-terlocutor, narrou-lhe todos os episódios da suavida, desde as primeiras contrariedades de meninae moça, na Palestina, e terminando a longa narra-

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tiva com a visão do avô, na noite precedente, quan-do forçada a pernoitar na gruta de Tibério. Ao concluir, tinha os olhos inchados de chorar,como alguém que muito se demorara em alijar docoração o peso da amargura. O ancião alisava-lhe os cabelos, comovidamen-te, como se o fizesse a uma filha após longa ausên-cia repleta de saudades angustiosas, exclamando por fim : - Minha filha, propondo-me confortar-te, éo teu próprio coração de menina, nos mais belosexemplos de sacrifício e coragem, que me conso-la !. Para mim, que, muitas vezes, agasalhei omal e extraviei-me no crime, os sofrimentos daTerra significam a justiça dos destinos humanos;mas, para o teu espírito carinhoso e bom, as prova-ções terrestres constituem um heroísmo do Céu !.Deus te abençoe o coração fustigado pelas tempes-tades do mundo, antes das florações da primavera.Das alegrias do Reino de Jesus, Cneio Lucius de-verá regozijar-se no Senhor pelos teus heróicosfeitos... Sinto que a sua alma, enobrecida na prática do bem e da virtude, segue-te os passos como sentinela fidelíssima !... Depois de longa pausa, em que Marinho pare-ceu meditar no futuro da graciosa companheira, disse paternalmente: - Enquanto narravas teus padecimentos ínti-mos, considerava eu a melhor maneira de ajudar-teneste meu ocaso da vida! Compreendo a tua si-tuação de jovem abandonada e só, no mundo, como pesado encargo de cuidar de uma criancinha aco-lhida em tão estranhas circunstâncias. Aconselharque voltes ao lar, não o posso fazer, conhecendoa rigidez dos costumes em determinadas famíliasdo patriciado. Além disso, a casa paterna considera-te morta para sempre, e a palavra carinhosa de Cneio Lucius só poderia ter valor inestimável para nós, que lhe compreendemos o alcance e a

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sublime revelação. Ante os seus conceitos, temosde admitir a plena inocência de tua mãe, mas, seregressares a Roma, a aparição desta noite nãobastaria para elucidar todos os problemas da si-tuação, mantendo-se as mesmas características desuspeição a teu respeito. E tu sabes que entre adúvida e a verdade é sempre melhor o sacrifício,pois a verdade é de Jesus e vencerá tão logo a suamisericórdia julgue a vitória oportuna. Velho conhecedor dos nossos tempos de deca-dência e desmantelos morais, sei que, ante a tuajuventude, quase todos os homens moços, cheios dematerialidade, se curvarão com ignominiosas pro-postas. A destruição do meu lar será sempre umatestado vivo das misérias morais da nossa época. Ponderando as tuas dificuldades, desejo sal-var-te o coração de todos os perigos, evitando-teas ciladas dos caminhos insidiosos; entretanto, aenfermidade e a decrepitude não me possibilitammais a tua defesa... Em Minturnes, quase todosme odeiam gratuitamente, em virtude das idéiasque professo. Um cristão sincero, por muito tempoainda, terá de sofrer a incompreensão e a torturados algozes do mundo, e somente não me levamao sacrifício, nas festas regionais que aqui seefetuam, atenta a minha velhice avançada e dolo-rosa, de rugas e cicatrizes... Apresentar um ve-lho mísero às feras potentes ou ao exercício dosatletas da devassidão e da impiedade, poderia pa-recer entranhada covardia, razão pela qual me julgo poupado. Não possuo, pois, nenhuma relação de amizade que te possa valer neste transe. Lembra-te de que, ainda agora, eu te faleido meu antigo projeto de levar a filha ao Egito,em trajes masculinos, de modo a arrebatá-la deste

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antro de corrupção e impenitência. Esse gesto deum pai é bem de um coração amoroso, em francodesespero quanto ao porvir espiritual desta região da iniquidade. Contemplando a tua inerme juventude carre-gada de tão nobres sacrifícios, receio pelos teus dias futuros mas rogo a Jesus que nos esclareça o pensamento. Após alguns minutos de recolhimento, a jovemretrucou: - Mas, meu desvelado amigo, não me consi-derais como vossa própria filha?. O ancião de Minturnes, no clarão sereno dosgrandes olhos, deixou transparecer que entenderaa alusão e revidou bondosamente: - Compreendo; filha, o alcance de tuas palavras, mas, estarás sinceramente decidida a mais esse nobre sacrifício ? - Como não, se em torno de mim surgem asmais temerosas perseguições? - Sim, tuas ações nobilíssimas dão-me a en-tender que devo confiar nas tuas resoluções. Poisbem; se teu espírito se sente disposto à luta peloEvangelho, não vacilemos em preparar-te as estra-das por vindouras! Ficarás nesta casa pelo tempoque desejares, se bem esteja convicto de que nãotardará muito a minha viagem para o Além. Amanhã mesmo entrarás nos teus novos trajes, a fim de facilitar a tua ida para a África, no momento oportuno. Serás "meu filho" aos olhos do mundo, para todos os efeitos. Chamarei amanhã a estacasa o pretor de Minturnes, a fim de que ele cuideda tua situação legal, caso eu venha a falecer.Tenho o dinheiro necessário para que te transpor-tes a Alexandria e, antes de morrer, deixar-te-eiuma carta apresentando-te a Epifãnio, como meusucessor legítimo na sede da nossa comunidade.Lá, tendo empregadas todas as derradeiras eco-nomias que consegui retirar de Roma nos tempos

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idos, é possível que não te criem embaraços paraque te entregues a uma vida de repouso espiri-tual na prece e na meditação, durante os anos que quiseres. Epifânio é um espírito enérgico e algo dogmá-tico em suas concepções religiosas, mas tem sidomeu amigo e meu irmão por largos anos, duranteos quais as mesmas aspirações nos uniram nestavida. As vezes, costuma ser ríspido nas suas de-cisões, caracterizando tendências para o sacerdócioorganizado, que o Cristianismo deve evitar com to-das as suas forças, para não prejudicar o messia-nismo dos apóstolos do Senhor; mas, se algum diafores ferida por suas austeras resoluções de chefe,lembra-te de que a humildade é o melhor tesouroda alma, como chave-mestra de todas as virtudese recorda a suprema lição de Jesus nos braços domadeiro!.. Em todas as situações, a humildadepode entrar como elemento básico de solução paratodos os problemas!... - Sim, meu amigo, sinto-me abandonada e sóno mundo e temo o assédio dos homens perverti-dos. Jesus me perdoará a decisão de adotar outrostrajes aos olhos dos nossos irmãos da Terra, mas,na sua bondade infinita, sabe ele das necessidadesprementes que me compelem a tomar essa insólitaatitude. Além do mais, prometo, em nome de Deus,honrar a túnica que vestirei, possivelmente, emAlexandria, a serviço do Evangelho... Levarei co-migo o filhinho que o Céu me concedeu, e supli-carei a Epifânio me permita velar por ele sob océu africano, com as bênçãos de Jesus ! Que o Mestre te abençoe os bons propósitos, filha.... - respondeu o ancião com uma expressão de júbilo sereno. Ambos se sentiam dominados por intensa ale-gria íntima, como se fossem duas almas profunda-

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mente irmanadas de outros tempos, num reencontrofeliz, depois de prolongada ausência. Já os galos de Minturnes saudavam os pri-meiros clarões da madrugada. Beijando as mãosdo velho benfeitor, com os olhos rasos de lágrimas,a jovem patrícia buscou, desta vez, o repouso no-turno com a alma satisfeita, sem as angustiosaspreocupações do dia seguinte agradecendo a Jesuscom a oração do seu amor e do seu reconhecimento. No outro dia, a gente pobre daquele arrabaldede Minturnes ficou sabendo que um filho do anciãochegara de Roma para assistir-lhe os dias derra-deiros. Aproveitando os trajes antigos, que o seu ben-feitor lhe apresentava para resolver a situação,Célia não hesitou em tomar o novo indumento, porfugir à perseguição irreverente de quantos pode-riam abusar da sua fragilidade feminina. O velho Marinho apresentava-a aos raros vi-zinhos que se interessavam pela sua saúde, comosendo um filho muito caro, e explicando que eleenviuvara recentemente, trazendo o netinho parailuminar as sombras da sua desolada velhice. A filha dos patrícios, travestida agora pelaforça das circunstâncias num garboso rapaz im-berbe, ocupava-se carinhosamente de todos os servi-ços domésticos, buscando servir ao ancião generosocom a mais desvelada solicitude. Um fato, porém, veio impressionar amargamente o coração sensível de Célia. Fosse pelo trato deficiente que recebera até ali, ou pelas privações suportadas em tantas milhas de caminho, o pequenito começou a definhar, apresentando em breve todos os sintomas de morte inevitável. Debalde o ancião empregou todos os recursos ao seu alcance, para assegurar a vida bruxuleante do inocentinho.

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Tocada nas fibras mais sensíveis do seu co-ração, em virtude das revelações do avô, quantoà personalidade de Ciro, a jovem sentiu no íntimodorido a repercussão dilatada de todos os padeci-mentos físicos do pequenino. Desejava amparar-lhea existência com todas as energias do seu espíritodilacerado, operar um milagre com todas as suasforças afetuosas para arrebatá-lo às garras da mor-te, mas em vão misturou lágrimas e preces nosseus arrebatamentos emotivos. Contemplando-lhe a agonia, a criança pareciafalar-lhe à alma carinhosa e sensível, com o olharcintilante e profundo, no qual predominavam asexpressões de uma dor estranha e indefinível. Por fim, após uma noite de insônia dolorosa,Célia rogou a Jesus fizesse cessar, na sua miseri-córdia, aquele quadro de intensa amargura. Cheiade fé, rogava ao Cordeiro de Deus que reconduzisseo seu bem-amado ao plano espiritual, se esses eramos seus desígnios inescrutáveis. Ela, que tanto oamava e tanto se havia sacrificado para conser-var-lhe a luz da vida, estaria conformada com asdecisões do Alto, como no dia em que o vira mar-char para o sacrifício, exposto à perversidade doshomens impiedosos. Como se fora ouvida a sua rogativa dolorosa,cheia de lágrimas de fé e esperança na bondadedo Senhor, o inocentinho fechou os olhos da carne ,para sempre, ao desabrochar da alvorada, como se o seu coração fôsse uma andorinha celeste que, receosa das invernias do mundo, remontasse célere ao Paraíso. Sobre o corpinho enrijecido, a filha de Helvídio carpiu a sua dor intraduzível, com lágrimas ardentes, experimentando a amargura das suas esperanças desfeitas e dos seus sonhos maternos desmoronados...

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Todavia, a palavra sábia e evangélica do anciãode Minturnes ali estava para reerguê-la de todosos abatimentos e, depois da hora angustiada daseparação, ela buscou entronizar a saudade no san-tuário de suas preces humildes e fervorosas. Sim, seu coração carinhoso sabia que Jesusnão desampara, nunca, o espírito das ovelhas tres-malhadas nos abismos do mundo e, refugiando-sena oração, esperou que viessem do Alto todos osrecursos espirituais necessários ao seu reconforto.s vizinhos humildes impressionavam-se, sobrema-neira, com aquele rapaz, de cujo semblante delica-do irradiava-se uma terna simpatia, de mistura àtristeza inalterável, que tocava a sua personalidadede singulares encantos.. Uma noite serena, quando a alma cariciosa daNatureza se havia plenamente aquietado, Célia re-colheu-se depois do serão habitual com o generosovelhinho, que lhe era como um pai devotado pelocoração, sentindo que força estranha lhe adormen-tava o cérebro exausto e dolorido. Dentro em pouco, sem se dar conta da sur-presa e do aturdimento, viu-se diante de Ciro, quelhe estendia as mãos carinhosas, com um olhar desúplica e reconhecimento intraduzível. - Célia - começou por dizer suavemente, en-quanto ela se concentrava em doce emoção paraouvi-lo -, não renegues o cálice das provaçõesredentoras, quando as mais puras verdades nos fe-licitam o coração !. Depois de algum tempo natua companhia, eis-me de novo aqui, onde devohaurir forças novas para recomeçar a luta !.. Nãoentristeças com as circunstâncias penosas da nos-sa separação pelas sendas escuras do destino. Ésminha âncora de redenção, através de todos os ca-

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minhos! Jesus na infinita extensão de sua mise-ricórdia, permitiu que a tua alma, qual estrela domeu espírito, descesse das amplidões sublimes eradiosas para clarificar meus passos no mundo.Luz da abnegação e do martírio moral, que salvae regenera para sempre!... Se as mãos sábias e justas de Deus me fize-ram regressar aos planos invisíveis, regozijemo-nosno Senhor, pois todos os sofrimentos são premissasde uma ventura excelsa e imortal ! Não te entre-gues ao desalento, porque, antigamente, Célia, meuespírito se tingiu de luto quase perene, no faustode um tirano ! Enquanto brilhavas no Alto comoum astro de amor para o meu coração cruel, de-cretava eu a miséria e o assassínio! Abusando daautoridade e do poder, da cultura e da confiançaalheias, não trepidei em destruir esperanças cari-ciosas, espalhando o crime, a ruína e a desolaçãoem lares indefesos! Fui quase um réprobo, se nãocontasse com o teu espírito de renúncia e dedica-ção ilimitadas ! Ao passo que eu descia, degrau adegrau, a escada abominável do crime, no preté-rito longínquo e doloroso, teu coração amoroso eleal rogava ao Senhor do Universo a possibilidade do sacrifício!... E, sem medir as trevas agressivas e pavoro-sas que me cercavam, desceste ao cárcere de mi-nhas impenitências !... Espalhaste em torno daminha miséria o aroma sublime da renúncia san-tificante e eu acordei para os caminhos da rege-neração e da piedade ! Tomaste-me das mãos, comose o fizesses a uma criança desventurada, e en-sinaste-me a erguê-las para o Alto, implorando aproteção e misericórdia divinas! Já de algúns sécu-los teu espírito me acompanha com as dedicaçõessantificadas e supremas ! É que as almas gêmeas

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preferem chegar juntas às regiões sublimes da Paze da Sabedoria, e, dentro do teu amor desveladoe compassivo, não hesitaste em me estender asmãos dedicadas e generosas, como estrela que re-nunciasse às belezas do céu para salvar um vermeatolado num pântano, em noite de trevas perenes.E acordei, Célia, para as belezas do amor e da luze, não contente ainda, por me despertares, me vensauxiliando a resgatar todos os débitos onerosos..Teu espírito, carinhoso e impoluto, não vacilou emsustentar-me, através das estradas pedregosas etristes que eu havia traçado com a minha ambiçãoterrível e desvairada! Tens sido o ponto de refe-rência para minha alma em todos os seus esforçosde paz e regeneração, na reconquista das glóriasespirituais. Ao teu influxo pude testemunhar mi-nha fé, no circo do martírio, selando, pela primei-ra vez, minha convicção em prol da fraternidadee do amor universal! Por ti, desterro de mim oegoísmo e o orgulho, sustentando todas as batalhasíntimas, na certeza da vitória! Voltando ao mundo, fui novamente arrebatadodos teus braços materiais, em obediência às pro-vas ríspidas que ainda terei que sustentar por largotempo! Jesus, porém, que nos abençoa do seu tro-no de luz e misericórdia, de perdão e bondade in-finita, permitirá que eu esteja contigo nos teustestemunhos de fé e humildade, destinados à exal-tação espiritual de todos os seres bem-amados quegravitam na órbita dos nossos destinos! E se Deusabençoar minhas esperanças e minhas preces sin-ceras, voltarei denovo para junto do teu coração,nas lutas ásperas.... Espera e confia sempre!.Na sua magnanimidade indefinível, permite o Se-nhor possamos voltar dos caminhos almos do tú-

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mulo, para consolar os corações ligados ao nossoe ainda retidos nos tormentos da carne... Somentelá, nas moradas do Senhor, onde a ventura e aconcórdia se confundem, poderemos repousar noamor grande e santo, marchando de mãos dadaspara os triunfos supremos, sem as inquietações eprovas rudes do mundo!. Por muito tempo a voz cariciosa de Ciro falou--lhe ao coração, propiciando-lhe ao espírito sen-sível as mais santas consolações e as mais docesesperanças ! No auge do seu deslumbramento espi-ritual, a jovem cristã experimentou as mais como-vedoras alegrias, desejando que aquele minuto glo-rioso se prolongasse ao infinito... Quando a palavra do bem-amado parecia fi-nalizar com um brando estacato, em vibraçõessilenciosas e profundas, Célia rogou-lhe que a acom-panhasse em todos os seus lances terrestres, im-plorando-lhe assistência e proteção em todas ascircunstâncias da vida; confiou-lhe seus pesaresmais secretos e angustiosas expectativas, quanto ànova situação, mas Ciro parecia sorrir-lhe bondo-samente, prometendo-lhe carinho incessante, atra-vés de todos os percalços e reafirmando a sua con-fiança no amparo do Senhor, que não haveria de abandoná-los... No dia seguinte, ei-la reanimada, deixandotransparecer no semblante a serenidade íntima do seu espírito. O velhinho notou, com alegria, aquela mudan-ça e, como se estivesse em preparativos constantespara a jornada do túmulo, não perdeu o ensejopara esclarecer a jovem sobre os problemas quea esperavam na vida solitária de Alexandria. Com solicitude extrema, dava-lhe notícia de todos os pormenores da vida nova a encetar, fornecendo-lhe o nome de antigos companheiros de fé e dando conta de todos os costumes da comunidade.

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Célia em trajes masculinos, ouvia-lhe a pala-vra carinhosa e benevolente, com o desejo íntimode prolongar indefinidamente aquela vida bruxu-leante, de modo a nunca mais separar-se daquelecoração bondoso e amigo; mas, ao revés de suasmais caras esperanças, o estado do ancião agra-vou-se repentinamente. Todos os esforços forambaldados para lhe restituir o "hônus vital" do planofísico e, assistido pela jovem, que tudo fazia porvê-lo restabelecido, o velho Marinho recebeu a vi-sita do pretor da cidade, que, cedendo a instantespedidos, vinha receber-lhe as derradeiras recomen-dações. Apresentando a jovem como filho, o moribun-do ordenou que lhe fossem entregues todas as suasparcas economias, antecipando que ele deveria par-tir para a África, tão logo se verificasse o seuóbito. - Marinho - interpelou a autoridade, depoisdas necessárias anotações -, será possível que estejovem participe das tuas superstições? O generoso velhinho compreendeu o alcance dapergunta e respondeu com desassombro: - De mim e por mim, não precisaremos cogi-tar das convicções religiosas, aqui de todos conhe-cidas, desde que entrei nesta casa! Sou cristão esaberei morrer, íntegro, na minha fé !. Quantoa meu filho, que deverá partir para Alexandria ,a fim de amparar nossos interesses particulares,tem o espírito livre para escolher a idéia religiosaque mais lhe aprouver. O pretor olhou com simpatia para o jovemtriste e abatido, e exclamou : - Ainda bem !. Despedindo-se do moribundo, cujos instantes

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de vida pareciam prestes a extinguir-se, a autorida-de deixava-os ambos com a precisa liberdade paratrocarem as derradeiras impressões. Marinho fez ver, então, à sua pupila, que aque-la resposta hábil destinava-se a fazer que o pre-tor de Minturnes lhe cumprisse a vontade, semrelutância, dentro dos dispositivos legais, recomen-dando-lhe todas as providências que a sua morteexigiria da sua inexperiência. Célia ouvia-lhe asexortações roucas e entrecortadas, extremamenteacabrunhada mas, como em todas as penosas cir-cunstâncias da sua vida, confiava em Jesus. Após uma agonia excruciante de longas horas,em que a filha de Helvídio viveu momentos de in-descritível emoção, o generoso Marinho abando-nava o mundo, depois de longa existência, povoadade pesadelos terríveis e dolorosos. Seus olhos sefecharam para sempre, com uma lágrima, ao tom-bar do dia. Piedosamente, diante de alguns rarosassistentes, Célia fechou-lhe as pálpebras, num ges-to carinhoso, e, ajoelhando-se, como se quisessetransformar as brisas da tarde em mensageiras dosseus apelos ao Céu, deixou que o coração se di-luísse em lágrimas de saudade, suplicando a Jesusrecebesse o benfeitor no seu reino de maravilhas,concedendo-lhe um recanto de paz, onde a alma exausta lograsse esquecer as tormentas dolorosas da existência material. Dada a sua qualidade de cristão confesso, ovelho de Minturnes teve uma sepultura mais quesingela, que a filha do patrício encheu com as flo-res do seu afeto e mergulhando na sombra de umasoledade quase absoluta. Dentro de poucos dias, o pretor entregou-lhea pequena soma, que Marinho lhe deixava, um pou-co mais que o suficiente para a viagem em deman-

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da da África distante. E, numa radiosa macha deprimavera, carregando no íntimo a sua serenidadetriste e inalterável, a moça cristã, depois de umaprece longa e angustiosa sobre os túmulos humil-des do pequenino e do ancião, na qual lhes rogavaproteção e assistência, tomou o lugar que lhe com-petia numa galera napolitana que periodicamenterecebia passageiros para o Oriente. Sua figura triste, metida em roupas masculi-nas, atraía a atenção de quantos lhe faziam com-panhia eventual no grande cruzeiro pelo Mediter-râneo, mas, profundamente desencantada do mundo,a jovem se mantinha em silêncio quase absoluto. O desembarque em Alexandria verificou-se semincidentes dignos de menção. Todavia, seguindo asrecomendações do benfeitor, junto dos seus conhe-cidos da cidade, viera a saber que o monastériodemorava a algumas milhas de distância, pelo quehouve de tomar um guia até o local do seu recolhimento. O mosteiro, isolado, distava da cidade dez lé-guas mais ou menos, em marcha de quase um diaapesar dos bons cavalos atrelados ao veículo. A filha de Helvídio defrontou o grande e si-lencioso edifício na hora crepuscular, empolgadapela visão do casario amplo, entre a vegetaçãoagreste. Sentiu, porém, um singular descanso men-tal naquela soledade imponente que parecia acolhertodos os corações desolados. Puxando o cordel que ligava o portão de en-trada, ouviu, ao longe, os sons de pesada sineta ,cujo ruído estranho parecia despertar um giganteadormecido. Daí a instantes, os velhos gonzos rangiam pe-sadamente, deixando entrever um homem trajadocom uma túnica cinzento-escura, semblante grave e

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triste, que interpelava a jovem transformada numrapaz de fisionomia tristonha, nestes termos : - Irmão, que desejais do nosso retiro de me-ditação e oração? - Venho de Minturnes e trago uma carta demeu pai, destinada ao Sr. Aufídio Prisco. - Aufídio Prisco ? - perguntou o porteiroadmirado. - Não é ele, aqui, o vosso superior? - Referi-vos ao pai Epifânio? - Isso mesmo. - Escutai-me - ponderou o irmão porteirocomplacente -, sois, porventura, o filho de Mari-nho, o companheiro que daqui partiu há cerca dedois anos, a fim de vos trazer ao nosso recolhi-mento ? - É verdade. Meu pai chegou, há muito tem-po, aos portos da Itália, onde nos encontramos,todavia, sempre doente, não logrou a ventura deacompanhar-me à soledade das vossas orações. - Morreu? - revidou o interlocutor extre-mamente admirado. - Sim, entregou a alma ao Senhor, há muitos dias. - Que Deus o tenha em sua santa guarda! Dito isso, pôs-se a meditar um instante, comose tivesse o pensamento mergulhado em precesfervorosas. Em seguida, contemplou com muita ternurao jovem humilde e triste, exclamando significati-vamente : - Agora que já sei donde vindes e quem sois,eu vos saúdo em nome de Nosso Senhor Jesus--Cristo ! - Que o Mestre seja louvado – respondeu a filha de Helvídio Lucius, com os seus modos singelos.

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- Não haveis de reparar vos tenha recebidocom prudência, à primeira vista... Atravessamosuma fase de intensas e amarguradas perseguições,e os servos do Senhor, no estudo do Evangelho,devem ser os primeiros a observar se os lobos chegam ao redil com vestes de cordeiro. - Compreendo... - Não desejo aborrecer-vos com indagaçõesdescabidas, mas, pretendeis adotar a vida monás-tica? - Sim - respondeu a jovem timidamente -,e, assim procedendo, não só obedeço a uma vocaçãoinata, como satisfaço a uma das maiores aspira-ções paternas. - Estais informado das exigências desta casa? - Sim, meu pai mas revelou antes de morrer. O irmão porteiro deitou o olhar para todosos lados e, observando que se encontravam a sós,exclamou em voz discreta: - Se trazeis a esta casa uma vocação purae sincera, acredito que não tereis dificuldade emobservar as nossas disciplinas mais rígidas; con-tudo, devo esclarecer-vos que pai Epifânio, comodiretor desta instituição, é o espírito mais ríspidoe arbitrário que já conheci na minha vida. Esteretiro de oração é o fruto de uma experiência queele começou com o vosso digno pai, há mais de vinte anos. A princípio, tudo ia bem, mas, nos últimos anos, o velho Aufídio Prisco vem abusando largamente da sua autoridade, máxime depois da partida do Irmão Marinho para a Itália. Daí para cá, pai Epifânio tornou-se despótico e quase cruel.Aos poucos vai transformando este pouso do Senhorem caserna de disciplina militar, onde ele recebeua educação dos primeiros anos. A neta de Cneio Lucius ouvia-o profundamente admirada.

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Pela amostra da portaria, seu espírito observador compreendeu, de pronto, que o retiro dos filhos da oração estava igualmente repleto das intrigas mais penosas. Todavia, enquanto coordenava as suas considerações íntimas, o Irmão Filipe continuava: - Imaginai que o nosso superior vem trans-formando a ordem de todos os ensinamentos, crian-do as mais incríveis extravagâncias religiosas. Emcontraposição aos ensinamentos do Evangelho, obri-ga-nos a chamar-lhe "pai" ou "mestre", nomes queo próprio Jesus se negou a aceitar na sua missãodivina. Além de inventar toda a sorte de traba-lhos para os quarenta e dois homens desencanta-dos do mundo que estacionam aqui, vem aplicandoas lições de Jesus à sua maneira. Se bem nadapossamos revelar lá fora, a bem do caráter cristãoda nossa comunidade, é lastimável observar quetodo o recinto está cheio de símbolos que nos re-cordam as festividades materiais dos deuses cruéis.E nada poderemos dizer em tom de crítica ou decensura, porquanto o pai Epifânio manda em nós como um rei. A jovem ainda não conseguira manifestar asua opinião, dada a fluência com que o porteirodiscorria, quando lhes chegou o ruído de uns passosfortes que se aproximavam, Filipe calava-se, comoquem já estivesse habituado a cenas como aquelas,e, modificando a expressão fisionômica, exclamoucom voz abafada : - É ele!... Célia, metida nos seus trajes estranhos e po-bres, não conseguiu dissimular o espanto. No limiar de uma porta ampla, surgia a figura de um velho septuagenário, cujos caracteres fisionômicos apresentavam a mais profunda expressão de convencionalismo e orgulhosa severidade. Vestia-se como um sacerdote romano nos grandes dias

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dos templos politeístas e, apoiado a uma bengala expressiva, passeava por toda parte o olhar fulgurante, como a procurar motivos de irritação e desagrado. - Filipe ! - exclamou ele em tom intempestivo. - Mestre - exclamou o irmão da portaria,com a mais fingida humildade -, apresento-voso filho de Marinho, que o seu coração de pai nãopôde acompanhar até aqui, dada a surpresa damorte, em Minturnes. Ouvindo aquele esclarecimento inesperado, Epifânio caminhou para o jovem que lhe era inteiramente desconhecido, pronunciando quase secamente a saudação evangélica, como se fora um leãoutilizando a legenda de um cordeiro : - Paz em nome do Senhor! Célia respondeu, conforme o seu venerando amigo lhe havia ensinado antes da morte, entregando ao superior da comunidade a carta paternal. Depois de passar ràpidamente os olhos pelo pergaminho, Epifânio acentuou com austeridade : - Marinho deve ter morrido com todo o seu idealismo de cigarra. E como se houvera pronunciado aquele conceito tão somente para si mesmo, acrescentou com a sua expressão severa, dirigindo-se à jovem: - Desejas, de fato, permanecer aqui? - Sim, meu pai - respondeu o suposto rapaz, entre tímido e respeitoso. - Continuar as tradições de meu pai foi sempre o meu desejo, desde a infância. Aquele tom humilde agradou a Epifânio, quelhe falou menos agressivo: - Sabes, porém, que a nossa organização é constituída de cristãos convertidos, que possam cooperar em nossos esforços não somente com o valor espiritual, mas também com os recursos financei-ros imprescindíveis às nossas realizações ? Teu pai não te deixou pecúlio algum, após haver baixado ao sepulcro em Minturnes? - Minha herança cifrou-se, apenas, ao capital

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indispensável à viagem até Alexandria. Entretan-to - acentuou inocentemente -, meu pai revelou--me, há tempos, que a sua pequena fortuna foi empregada aqui, asseverando-me que a administração da casa saberia acolher-me, recordando os seus serviços. - Ora - revidou Epifânio, evidenciando con-trariedade -, fortuna por fortuna, todos os quedescansam neste retiro tiveram-na no mundo, tra-zendo os seus melhores valores para esta casa. - Mas meu pai - implorou Célia com sincerahumildade -, se existem aqui os que descansam,devem existir igualmente os que trabalham. Se nãotenho dinheiro, tenho forças para servir a institui-ção nalguma coisa. Não me negueis a realizaçãode um ideal tanto tempo acariciado. O superior parecia comovido, revidando com ênfase: - Está bem. Farei por ti quanto estiver ao meu alcance. E mandando Filipe ao interior, em busca de um grande livro de apontamentos, iniciou minucioso interrogatório: - Seu nome? - O mesmo de meu pai. - Onde nasceu? - Em Roma. - Onde recebeu o batismo? - Em Minturnes. E após as detalhadas inquirições, Epifânio falou-lhe ríspido, investido na sua austera superioridade : - Atendendo à tua vocação e à memória deum velho companheiro, ficarás conosco, laborandonos serviços da casa. Quero, contudo, esclarecer--te que, aqui dentro, faço cumprir rigorosamenteo Evangelho do Senhor, de acordo com a minhavontade, inspirada do Alto. Depois de muitos anosde experiência, reconheci que o pensamento evan-gélico terá de organizar-se segundo as leis huma-

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nas, ou não poderá sobreviver para a mentalidadedo futuro. Os cristãos de Roma, como os da Pa-lestina, padecem de uma hipertrofia de liberdadeque os leva, instintivamente, à disseminação de todos os absurdos. Aqui, todavia, a disciplina cristã haverá de caracterizar-se pela abdicação total da própria vontade. A jovem escutou-o serenamente, guardando noíntimo as suas impressões particulares, de quantolhe era dado observar, enquanto Epifânio a enca-minhava ao interior, apresentando-a aos demaiscompanheiros. Transformada no Irmão Marinho, Célia passou a viver a sua vida nova, singular e desconhecida. O mosteiro vasto onde se reuniam mais dequatro dezenas de cristãos ricos, desiludidos dosprazeres do mundo, era bem um dos pontos departida do segundo século para o Catolicismo epara o sacerdócio organizado sobre bases econômi-cas, eliminativas de todas as florações do messianismo. Reparou que ali não mais havia a simplicidadedas catacumbas. A simbologia pagã parecia inva-dir todos os departamentos da casa. Aqueles ro-manos convertidos não dispensavam as fórmulas deoração aos seus antigos deuses. Por toda partependiam cruzes grandes e pequenas, talhadas emmármores ou madeira, esculturadas em moldes diversos. Havia salas de preces em que repousavam imagens do Cristo, de marfim e de cera prateada, dormindo inertes entre verdadeiros tufos de rosase violetas. O culto exterior do politeísmo parecia redivivo, indestrutível e inelutável. Para a sua manutenção, notava ela a mesma intriga dos padres flamíneos, de Roma, figurando-se-lhe que o Evangelho, ali, constituía mero pretexto para galvanizaras crenças mortas. O espírito formalista de Epifânio buscara dotar o estabelecimento de todas as convenções imprescindíveis.

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Um sino anunciava a mudança das meditações,a hora do trabalho, das preces, das refeições, e otempo destinado ao repouso do espírito. O sentido de espontaneidade da lição do Se-nhor no Tiberíades, por conciliar a possibilidade ea necessidade dos crentes, havia desaparecido. Aconvenção implacável de Epifânio regulamentavatodos os serviços. O mais interessante é que, naqueles monasté-rios remotos da África e da Ásia, onde se acolhiamos cristãos receosos das perseguições inflexíveis daMetrópole, já existiam as famosas horas do Capí-tulo, isto é, a reunião íntima de todos os membrosda comunidade, para repasto das intrigas e dospontos de vista individuais. Célia estranhou que, dentro de um institutocristão por excelência, pudessem vigorar aberraçõescomo essa que vinha diretamente dos colégios ro-manos, onde pontificavam sacerdotes flamíneos ouvestais; mas era obrigada a aceitar as ordens superiores, sem deixar transparecer o seu desencanto.Condenando, embora, tais manifestações nocivas doculto exterior, a filha de Helvídio em breve conquistaria a admiração e confiança de todos, pela retidão do proceder, a evidenciar os mais elevados atos de humildade e compreensão do Evangelho.De trato amicíssimo, com o amável das suas palavras carinhosas e amigas, o Irmão Marinho transformava-se no ímã de todas as atenções, edificando as afeições mais puras naquele convívio singular. Contudo, alguém havia ali que guardava omais venenoso despeito em face da sua vida pura.Esse alguém era Epifânio, cujo espírito despóticoe original. se habituara a mandar em todos oscorações, com brutalidade e aspereza. A circuns-tância de nada encontrar no filho do antigo com-

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panheiro, que merecesse censura, irritava-lhe o es-pírito tirânico. Nas horas do Capítulo, observavaque as opiniões do Irmão Marinho triunfavam sem-pre, pela sublime compreensão de fraternidade ede amor, de que davam pleno testemunho. A jovem,porém, não obstante estranhar-lhe as atitudes, nãopodia definir os gestos rudes do superior, dentroda sua candidez espiritual. Certo dia, na hora consagrada às intrigas edevassas, que antecederam, no Catolicismo, o ins-tituto da confissão auricular, cheio de austeridadee artificialismo, Epifânio fez longa preleção sobreas tentações do mundo, dizendo dos seus caminhosabomináveis e das trevas que inundavam o coraçãode todos os pecadores, envolvendo todas as coisasda vida na sua condenação e na sua fúria religiosa. Terminada a palestra fanática, solicitou, aomodo das primeiras assembléias cristãs, que todosos irmãos se pronunciassem sobre a preleção, mas,enquanto todos aprovavam os conceitos, irrestrita-mente, Célia, na sua inocente sinceridade, replicou : - Mestre Epifânio, vossa palavra é extrema-mente respeitável para quantos laboram nesta casa,mas, peço licença para ponderar que Jesus nãodeseja a morte do pecador... Suponho justo quenos refugiemos neste retiro, até que passe a ondasanguinária das perseguições aos adeptos do Cor-deiro ; todavia, amainada a tempestade, acho im-prescindível que regressemos ao mundo, mergu-lhando-nos em suas lutas dolorosas, porque, semesses campos de sofrimento e trabalho, não pode-remos dar o testemunho da nossa fé e da nossacompreensão do amor de Jesus. O diretor espiritual lançou-lhe um olhar som-brio, enquanto toda a assembléia parecia satisfeita

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com a oportunidade daquele esclarecimento. - No próximo Capítulo prosseguiremos, então,com os mesmos estudos - disse Epifânio em tomquase rude visivelmente contrariado com o argumento irretorquível, apresentado contra a sua inovação despótica, em detrimento dos ensinamentos evangélicos. No dia seguinte, o Irmão Marinho foi chamado ao gabinete do superior, que lhe dirigiu a palavra nestes termos : - Marinho, nosso Irmão Dioclécio, provedordesta casa há mais de dez anos, encontra-se alque-brado, doente, e eu preciso confiar esse encargo aalguém, cuja noção de responsabilidade me dispen-se de sindicâncias e cuidados especiais. Dessarte,de amanhã em diante, ficarás com o encargo de irao mercado mais próximo, duas vezes por semana,de modo a cuidares convenientemente das pequenasprovisões do mosteiro. A jovem acolheu a recomendação, agradecendoa confiança a ela deferida e, com semelhante pro-vidência, a palavra de Epifânio, nos dias do Capítulo, já não seria perturbada pelas suas observações simples e portadoras dos melhores esclarecimentos evangélicos. O mercado distava três léguas do convento,porquanto estava situado numa grande povoaçãona estrada de Alexandria. Desse modo, em suacaminhada a pé, sobraçando dois cestos enormes,a filha de Helvídio era obrigada a pernoitar naúnica estalagem ali existente, visto ter de esperara parte da manhã seguinte, quando o mercado exibia os seus produtos. Aquelas jornadas semanais cansavam-na sobre-maneira, a princípio; mas, pouco a pouco, foi-sehabituando ao novo imperativo de suas obrigações.Aproveitando a solidão dos caminhos para os me-lhores exercícios espirituais, não só relia velhos

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pergaminhos que continham os princípios do Evan-gelho e as narrativas dos Apóstolos, como exerci-tava as mais sadias meditações, nas quais deixavao coração evolar-se em preces cariciosas ao Senhor. No mosteiro todos os irmãos respeitavam-na.Por seus atos e palavras, ela centralizava os afetos gerais, que lhe cercavam o espírito de consideração e de amor desvelado... Três anos passaram, sem que um só dia desseprova de desânimo ou de revolta, de indecisão oude amargura, consolidando cada vez mais as suastradições de virtude irrepreensível. Na povoação mais próxima, igualmente, ondeos serviços do mercado a convocavam ao cumprimento do dever, todos lhe apreciavam os generosos dotes dalma, mormente na hospedaria em que pernoitava duas vezes por semana. Acontece, porém, que Menênio Túlio, o hospe-deiro, tinha uma filha de nome Brunehilda, quereparara os belos traços fisionômicos do Irmão Ma-rinho, tomada de singulares impressões. Embaldese ataviava para lhe provocar a atenção semprevoltada para os assuntos espirituais, irritando-se,intimamente, com a sua afetuosa indiferença, sem-pre cordial e fraterna. Longos meses transcorreram, sem que Brune-hilda pudesse desvendar o mistério daquela almaesquiva, cheia de beleza e delicada masculinidade,aos seus olhos, enquanto o Irmão Marinho, dentrode suas elevadas disposições espirituais, nunca che-gou a perceber a bastardia dos pensamentos e in-tenções da jovem, que, tantas vezes, o cumulavade gentilezas cariciosas. Foi então que Brunehilda, desenganada nosseus propósitos inconfessáveis, passou a relacionar--se com um soldado romano, amigo de seu pai eda família, recém-chegado da Capital do Império

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e cheio de ousadias e atitudes insinuantes. Em breve, a filha do estalajadeiro inclinava-separa o desfiladeiro da perdição, ao passo que osedutor da sua alma inquieta e versátil se ausen-tava propositadamente, regressando a Roma, de-pois de obter o consentimento dos superiores. Abandonada à sua prova aspérrima, Brunehildaprocurou disfarçar os seus angustiosos pensamen-tos íntimos. Com a alma tomada de inquietaçõesem face da severidade dos princípios familiares,desejava morrer de modo a eliminar todos os res-quícios da falta e desaparecendo para sempre. Faltava-lhe, porém, o ânimo para realizar tão odioso crime. Dia chegou, contudo, em que não mais pôdeocultar, aos olhos paternos, a realidade. Recolhendo-se ao leito na véspera de recebero fruto dos seus amores, foi obrigada a cientificarMenênio de quanto ocorria. Tomado de dor selva-gem, o coração paterno obrigou a filha a confes-sar-se plenamente, a fim de poder vingar-se. Bru-nehilda, contudo, no instante de revelar o nome dequem a infelicitara, sentiu o pavor da situação,dizendo caluniosamente: - Meu pai, perdoai-me a falta que vos deson-ra o nome, respeitável e impoluto, mas quem melevou a transigir tão penosamente com os sagradosprincípios familiares, que nos ensinastes, foi o Ir-mão Marinho com a sua delicadeza capciosa.. Menênio Túlio sentiu o coração abrir-se emchaga viva. Nunca poderia imaginar semelhantecoisa. O Irmão Marinho consolidara no seu conceito as mais confortadoras esperanças, e ele confiava na sua conduta como confiaria no melhor dos amigos. Mas, ante a evidência dos fatos, exclamou emvoz ríspida:

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- Pois bem, minha casa não ficará com essamancha indelével. Tua prevaricação não desonraráo nome de minha família, porque ninguém saberáque acedeste aos propósitos criminosos do infame!Eu mesmo levarei a criança a Epifânio, a fim deque os seus sequazes considerem a enormidade des-se crime ! Se tanto for necessário, não desdenhareiempunhar a espada em defesa do círculo sagradoda família, mas preferirei humilhá-los, devolvendoao sedutor o fruto da sua covardia!.. Com efeito, dissimulando a dor imensa do seucoração e do seu lar, Menênio Túlio, no dia seguin-te, ao alvorecer, marchou para o mosteiro levandoconsigo um pequeno cesto, de que um mísero pe-quenino era o singular conteúdo. Chamado à portaria pelo Irmão Filipe, quandoo Sol ia alto, a fim de atender à insistência do vi-sitante o superior da comunidade ouviu os impro-périos de Menênio, com o coração gelado de rancor.Cientificado de todas as confissões de Brunehilda, em relação a Marinho, mestre Epifânio mandou chamá-lo à sua presença, com a brutalidade dos seus gestos selvagens. - Irmão Marinho - exclamou o superior paraa filha de Helvídio que o escutava, amargurada esurpreendida -, então é assim que demonstrasgratidão a esta casa? Onde se encontram as tuasavançadas concepções do Evangelho, que não teimpediram de praticar tão nefando delito? Rece-bendo-te no mosteiro e confiando-te uma missão detrabalho neste retiro do Senhor, depositei nos teusesforços uma sagrada confiança de pai. Entretanto, não hesitaste em lançar o nosso nome ao escândalo, enxovalhando uma instituição que nos é sumamente venerável ao espírito !

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Observando a miserável criança, junto do estalajadeiro, que lhe não correspondia à saudação, a jovem interrogou, enquanto Epifânio fazia uma pausa: - Mas, de que me acusam? - Ainda o perguntas? - revidou Menênio Tú-lio, de faces congestas. - Minha desventurada filharevelou-me a tua ação torpe, não vacilando em le-var ao meu lar honesto a lama da tua concupis-cência. Estás enganado se supões que minha casavá acolher o fruto criminoso das tuas desregradaspaixões, porque esta miserável criança ficará nestacasa, a fim de que o pai, infame, resolva sobre o seu destino. Depois de pronunciar estas palavras acrescidasde impropérios ao suposto conquistador da filha, o estalajadeiro retirou-se, ante o pasmo de Célia e de Epifânio, deixando ali a criança mísera, em completo abandono. A jovem compreendeu, num relance, que o mun-do espiritual exigia um novo testemunho da suafé e, enquanto caminhava, quase serenamente, paratomar nos braços o inocentinho, o superior da co-munidade a advertia colérico : - Irmão Marinho, esta casa de Deus não podetolerar por mais tempo a tua escandalosa presença.Explica-te ! Confessa as tuas faltas, a fim de quea minha autoridade possa cuidar das providênciasoportunas e necessárias!.. Célia em poucos instantes, mergulhou o pen-samento dolorido nas meditações indispensáveis, e,valendo-se da mesma fé intangível e cristalina quelhe havia orientado todos os penosos sacrifícios dodestino, exclamou com humildade: - Pai Epifânio, quem comete um ato dessanatureza é indigno do hábito que nos deve aproximar do Cordeiro de Deus ! Estou pronto, pois, a aceitar com resignação as penas que a vossa autoridade me impuser...

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-- Pois bem - replicou o superior na sua or-gulhosa severidade -, deves sair imediatamente domosteiro, levando contigo essa criança miserável!.. Nesse instante, porém, quase todos os religiosos se haviam aproximado, observando a relevância da cena. Custava-lhes crer na culpabilidade do Irmão Marinho, que ali se encontrava humilde, evi-denciando a mais consoladora serenidade no brilho calmo dos olhos úmidos.E, sentindo que todos os companheiros eramsimpáticos à sua causa, a filha de Helvídio, comuma inflexão de voz inesquecível, ajoelhou diantede Epifânio e pediu: - Meu pai, não me expulseis desta comuni-dade para sempre!... Não conheço as regiões quenos rodeiam ! Sou ignorante e encontro-me doente!Não me desampareis, considerando a palavra doDivino Mestre, que se afirmava como o recursode todos os enfermos e desvalidos deste mundo !Se tenho a alma indigna de permanecer neste re-tiro de Jesus, dai-me a permissão de habitar o ca-sebre abandonado ao pé do horto. Eu vos prometotrabalhar de manhã à noite, no amanho da terra,a fim de esquecer os meus desvios.. Pai Epifânio,se não me concederdes essa graça, por mim, con-cedei-a por este pequenino abandonado, para quemviverei com todas as forças do meu coração!.. Chorava copiosamente ao fazer a dolorosa ro-gativa. No íntimo, o orgulhoso Aufídio Prisco, quedesejava aplicar o Evangelho à sua maneira, quisnegar, mas, num relance, notou que todos os companheiros da comunidade estavam comovidos e apiedados. - Não resolverei por min. - clamou exasperado -, todos os membros do mosteiro deverão considerar estranhos e descabidos a tua solicitação. Todavia, consultados os companheiros, para

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quem a jovem caluniada erguia os olhos súplices,houve um movimento geral favorável à filha deHelvídio. Epifânio não conseguiu a desejada recusa e, endereçando aos seus benfeitores um carinhoso olhar de agradecimento, o Irmão Marinho abandonou o recinto, erguendo corajosamente acriancinha nos braços e retirando-se para a choupana abandonada, ao pé do imenso horto do mosteiro. Dessa vez, Célia não se entregou à peregrinação por caminhos ásperos, mas só Deus poderia testificar dos seus imensuráveis sacrifícios. Com inauditas dificuldades, buscou adaptar-se com o pequenino, à sua nova vida, à custa dos mais ingentes trabalhos, na sua soledade dolorosa, a cujas angústias alguns irmãos do mosteiro estendiam mãos carinhosas. Lembrando-se de Ciro, cercava o pequenito detodos os cuidados, esperando que Jesus lhe concedesse forças para o integral cumprimento de suas provações. Durante o dia, trabalhava exaustivamente nocultivo das hortaliças, aproveitando os crepúsculospara as meditações e os estudos, que pareciam po-voados de seres e de vozes carinhosas do Invisível. Dia houve em que uma pobre mulher do povopassava pelo sítio, a pé, com um filhinho quaseagonizante, buscando as estradas de Alexandria àcata de recursos. Era de tarde. Batendo à portahumilde do Irmão Marinho, este lhe levantou asfibras da alma abatida, convidando-a às preciosasmeditações do Evangelho. Solicitado com insistên-cia pela humilde criatura para impor as mãos, qualfaziam os apóstolos de Jesus, sobre o doentinho,tal o ambiente de confiança e de amor que sabiacriar com as suas palavras, Célia, entregando-se aesse ato de fé, pela primeira vez, teve a venturade observar que o pequeno agonizante recuperavao alento e a saúde, num sorriso. Então, a mu-lher do povo prosternou-se ali mesmo, rendendo

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graças ao Senhor e misturando as suas lágrimas com as do Irmão Marinho, que também chorava de comoção e agradecimento. Desde esse dia, nunca mais a casinhola do horto deixou de receber os pobres e aflitos de todas as categorias sociais, que lá iam rogar as bênçãos de Jesus, através daquela alma pura e simples,santificada pelos mais acerbos sofrimentos.

O Caminho Expiatório

Enquanto Célia cumpre a sua missão de cari-dade à luz do Evangelho, voltemos a Roma, ondevamos encontrar as nossas antigas personagens. Dez anos haviam corrido na esteira infinita doTempo, desde que Helvídio Lucius e família haviamexperimentado as mais singulares viravoltas do destino. Apesar de dissimularem as amarguras no meiosocial em que se agitavam, Fábio Cornélio e famí-lia sentiam o coração inquieto e angustiado, desdeo dia infausto em que a filha mais moça de AlbaLucínia se ausentara para sempre, pelas injunçõesdolorosas do seu desditoso destino. Na intimidadecomentava-se, às vezes o que teria sido feito da-quela que Roma relembrava tão somente como sefora uma querida morta da família. A esposa deHelvídio, essa, remoia os mais tristes padecimentosmorais, desde a manhã fatal em que fora cientifi-cada dos fatos ocorridos com a filhinha. Nos seus traços fisionômicos, Alba Lucínia nãoapresentava mais a jovialidade franca e a espon-taneidade de sentimentos que sempre deixara trans-parecer nos dias felizes, em que o seu semblante parecia prolongar, indefinidamente, as linhas graciosas da primeira mocidade. Os tormentos íntimos vincavam-lhe as faces numa expressão de angústia recalcada. Nos olhos tristes parecia vagar um fantasma de desconfiança, que a perseguia por toda parte. Os primeiros cabelos

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brancos, filhos do seu espírito atormentado, figuravam-lhe na fronte como dolorosa moldura da sua virtude sofredora e de-solada. Nunca pudera esquecer a filha idolatrada,que surgia no quadro de sua imaginação afetuosa,errante e aflita sob os signos tenebrosos da mal-dição doméstica. Por muito que a sustentasse apalavra amiga e carinhosa do esposo, que tudo fa-zia por manter inflexível a sua fibra corajosa eresoluta, moldada nos princípios rígidos da famíliaromana, a pobre senhora parecia sofrer indefini-damente, como se uma enfermidade misteriosa aconduzisse traiçoeiramente para as sombras do tú-mulo. De nada valiam as festas da Corte, os es-petáculos, os lugares de honra nos teatros ou nosdivertimentos públicos. Helvídio Lucius, se bem fizesse o possível porocultar as próprias mágoas, buscava levantar, emvão o ânimo abatido da companheira. Como pai,sentia, muitas vezes, o coração torturado e aflito,mas procurava fugir ao seu próprio íntimo, ten-tanto distrair-se no turbilhão das suas atividadespolíticas e nas festas sociais, onde comparecia ha-bitualmente, levado pela necessidade de escapar àsmeditações solitárias, nas quais o coração paternomantinha os mais acerbos diálogos com a razão preconceituosa do mundo. Assim, sofria intensamente, entre a indecisão e a saudade, a energia e o arrependimento. Muitas mudanças se haviam operado em Roma,desde o evento doloroso que lhe mergulhara a fa-mília em sombras espessas. Élio Adriano, após muitos anos de injustiça ecrueldade, desde que transferira a Corte para Ti-bur, havia partido para o Além, deixando o Impérionas mãos generosas de Antonino, cujo governo secaracterizava pelos feitos de concórdia e de paz,

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na melhor distribuição de justiça e de tolerância.O novo Imperador, contudo, conservava Fábio Cor-nélio como um dos melhores auxiliares da suaadministração liberal e sábia. Ao antigo censoragradava, sobremaneira, essa prova da confiançaimperial, salientando-se que, na sua velhice deci-dida e experimentada, mantinha-se em posição defranca ascendência perante os próprios senadorese outros homens de Estado, obrigados a lhe ouvi-rem as opiniões e pareceres. Um homem havia que crescera muito na con-fiança do antigo censor, tornando-se o seu agenteideal em todos os serviços. Era Silano. Satisfeitopor cumprir uma recomendação afetuosa do seuvelho amigo de outros tempos, Fábio Cornélio fize-ra do antigo combatente das Gálias um oficial in-teligente e culto, a quem prestavam o máximo dehonrarias. Silano representava, de algum modo, asua força de outra época, quando a senectude nãose aproximava, obrigando o organismo ao mínimode aventuras. Para o velho censor, o antigo reco-mendado de Cneio Lucius era quase um filho, emcuja virilidade poderosa sentia ele o prolongamentodas suas energias. Em todas as empresas, ambosse encontravam sempre juntos, para a execuçãode todas as ordens privadas de César, criando-seentre os seus espíritos a mais elevada atmosferade afinidade e confiança. Ao lado das nossas personagens, uma haviaque se fechara em profundo enigma. Era CláudiaSabina. Desde a morte de Adriano, fora relegadaao ostracismo social, recolhendo-se de novo ao ano-nimato da plebe, de onde emergira para as maisaltas camadas do Império. De suas aventuras,ficara-lhe a fortuna monetária, que lhe permitia

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residir onde lhe aprouvesse, com todas as comodi-dades do tempo. Desgostosa, porém, com o retrai-mento absoluto das amizades espetaculosas dos bonstempos de prestígio social, adquirira pequena chá-cara nos arredores de Roma, num modesto subúr-bio entre as Vias Salária e Nomentana, onde passoua viver entregue às suas dolorosas recordações. Não faltavam boatos acerca de suas atividadesnovas e algumas de suas mais antigas relaçõeschegavam afiançar que a viúva de Lólio Úrbicocomeçava a entregar-se às práticas cristãs, nas catacumbas, esquecendo o passado de loucuras e desvios. Na verdade, Cláudia Sabina tivera os primei-ros contactos com a religião do Crucificado, massentia o coração assaz intoxicado de ódio para iden-tificar-se com os postulados de amor e singeleza.Decorridos dez anos, não conseguira saber o resul-tado real da tragédia que armara na esteira doseu destino. Vivera com a terrível preocupação dereconquistar o homem amado, ainda que para issotivesse de movimentar todos os bastidores do crime.Seus planos haviam fracassado. Sem o apoio deoutros tempos, quando o prestígio do marido lhepropiciava uma turba de aduladores e de servos,nada conseguira, nem mesmo a palavra de Hatéria,que, amparada por Helvídio, retirara-se para o seu sítio de Benevento, onde passou a viver na companhia dos filhos, com a máxima prudência, necessária à própria segurança. Cláudia Sabina encontrara algum conforto parao remorso que lhe mordia a alma, mas não pode-ria nunca, a seu ver, conciliar o seu ódio e o seuorgulho inflexíveis com a exemplificação daqueleJesus crucificado e humilde, que prescrevera a humildade e o amor como fulcro de todas as venturas terrenas.

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Debalde ouvira os pregadores cristãos das assembléias a que comparecera com a sua curiosidade sôfrega. As teorias de tolerância e penitência não encontraram eco no seu espírito intoxicado.E, sentindo-se desamparada no íntimo, com as pe-nosas recordações do passado criminoso, a antiga plebéia julgava-se folha solta, ao sabor dos ventos impetuosos. De quando em quando, entretanto, assaltava-a o pavor da morte e do Além desconhecido. Desejava uma fé para o coração exausto daspaixões do mundo; mas, se de um lado estavamos antigos deuses, que lhe não satisfaziam ao ra-ciocínio, do outro estava aquele Jesus imaculado esanto inacessível aos seus anseios tristes e odio-sos. Por vezes, lágrimas amargas aljofravam-lheos olhos escuros e, contudo, bem percebia que aque-las lágrimas não eram de purificação, mas de de-sespero, irremediável e profundo. Carregando noíntimo o esquife pesado dos sonhos mortos, Cláu-dia Sabina penetrava no crepúsculo da vida, qualnáufrago cansado de lutar com as ondas de ummar tormentoso, sem a esperança de um porto, nadesesperação do seu orgulho e do seu ódio nefandos. O ano de 145 corria calmo, com as mesmasrecordações amargas dos nossos amigos, quandoalguém nas primeiras horas da manhã de um so-berbo dia de primavera, batia à porta de Helvídiocom singular insistência. Era Hatéria, que, em singulares condições demagreza e abatimento, foi levada ao interior da casae recebida por Alba Lucínia, com simpatia e agrado. A antiga serva parecia extremamente aflita eperturbada, mas expunha com clareza os seus pen-samentos. Solicitou à antiga patroa a presença deseu pai e do esposo, a fim de explanar um assunto grave.

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A consorte de Helvídio conjeturou que a mulher desejava falar particularmente de algum assunto de ordem material, que a interessasse em Benavento. Diante de tanta insistência, chamou o velhocensor que, desde a morte de Júlia, passara a re-;sidir em sua companhia, convidando igualmente oesposo a atender à solicitação de Hatéria, que lhesgranjeara, desde o drama de Célia, singular consi- ,deração e especial estima. Com espanto dos três, a serva pedia um compartimento reservado, de modo a tratar livremente do assunto. Fábio e Helvídio julgaram-na demente, mas adona da casa os convidou a acompanhá-la, a fim desatisfazer o que julgavam mero capricho. Reunidos num gracioso cubículo junto do tablino, Hatéria falou nervosamente, com intensa palidez no semblante : - Venho aqui fazer uma confissão dolorosae terrível e não sei como devo expor meus crimesde outrora!... Hoje, sou cristã, e perante Jesuspreciso esclarecer aos que me dispensaram, no pas-sado, uma estima dedicada e sincera... - Então - perguntou Helvídio, julgando-a sob a influência de uma perturbação mental - és hoje cristã? - Sim, meu senhor - respondeu de olhos brilhantes, enigmáticos, como que tomada de resolução extrema -, sou cristã, pela graça do Cordeiro de Deus, que veio a este mundo remir todos ospecadores... Até há pouco, preferiria morrer avos revelar meus dolorosos segredos. Tencionavabaixar ao túmulo com o mistério terrível do meucriminoso passado, mas, de um ano a esta parte,assisto às pregações de um homem justo, que, nosconfim de Benevento, anuncia o reino dos céus,com Jesus - Cristo, induzindo os pecadores à repa-ração de suas faltas. Desde a primeira vez queouvi a promessa do Evangelho do Senhor, sinto o

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coração ingrato sob o peso de um grande remorso.Além disso, ensina Jesus que ninguém poderá ira Ele sem carregar a própria cruz, de modo a se-gui-lo... Minha cruz é o meu pecado... Hesiteiem vir, receosa das conseqüências desta minha re-velação, mas preferi arrostar com todos os efeitosdo meu crime, pois, somente assim, pressinto queterei a paz de consciência indispensável ao traba-lho do sofrimento que há-de regenerar minha almaDepois da minha confissão, matai-me se quiserdes!Submetei-me ao sacrifício! Ordenai a minha mor-te !... Isso aliviará, de algum modo, a minha cons-ciência denegrida!.. No Alto, aquele Jesus ama-do, que prometeu auxílio sacrossanto a todos oscultivadores da verdade, levará em conta o meu arrependimento e dará consolo às minhas mágoas, concedendo-me os meios para redimir-me com a sua misericórdia !... Então, ante a perplexidade dos três, Hatériacomeçou a desdobrar o drama sinistro da sua vida.Narrou os primeiros encontros com Cláudia Sabina,suas combinações, a vida particular de Lólio Úrbi-co, o plano sinistro para inutilizar Alba Lucíniano conceito da família e da sociedade romana; aação de Plotina e o epílogo do trágico projeto, queterminou com o sacrifício de Célia, cuja lembrançalhe embargava a voz numa torrente de lágrimas,em recordando a sua bondade, a sua candura, oseu sacrifício... Narrativa longa, dolorosa... Pormais de duas horas, prendeu a atenção de FábioCornélio e dos seus, que a escutavam estupefatos. Ouvindo-a e considerando os pormenores daconfissão, Alba Lucínia sentiu o sangue gelar-se--lhe nas veias, tomada de singular angústia. Hel-vídio tinha o peito opresso, sufocado, tentando emvão dizer uma palavra. Somente o censor, na sua

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inflexibilidade terrível e orgulhosa, mantinha-se fir-me, embora evidenciando o pavor íntimo, com umaexpressão desesperada a dominar-lhe o rosto. - Desgraçada ! - murmurou Fábio Cornéliocom grande esforço - até onde nos conduziste coma tua ambição desprezível e mesquinha!... Crimi-nosa! Bruxa maldita, como não temeste o peso denossas mãos ? Sua voz, porém, parecia igualmente asfixiadapela mesma emoção que empolgara os filhos. - Vingar-me-ei de todos !. - gritou o ve-lho censor com a voz estrangulada. Nesse instante, Hatéria ajoelhou a seus pés emurmurou : - Fazei de mim o que quiserdes ! Depois deme haver confessado, a morte me será um docealívio !... - Pois morrerás, infame criatura - disse ocensor desembainhando um punhal, que reluziu àclaridade do Sol, através de uma janela alta e estreita. Mas, quando a deStra parecia prestes a descer,Alba Lucínia, como que impelida por misteriosaforça, deteve o braço paterno, exclamando : - Para trás, meu pai ! Cesse para sempre atragédia em nossos destinos!.. Que adianta maisum crime ? Mas, ao passo que Fábio Cornélio cedia, atônito, marmórea palidez se estendia ao rosto da desventurada senhora, que tombou redondamente no tapete, sob o olhar angustiado do marido, pres- suroso no acudi-la. Lançando, então, um olhar de fundo desprezoa Hatéria, que auxiliava o tribuno a acomodar asenhora num largo divã, o velho censor acentuou: - Coragem, Helvídio!.. Vou chamar um mé-dico imediatamente. Deixemos esta maldita bruxa

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entregue à sua sorte ; mas, hoje mesmo, mandarei eliminar a infame que nos envenenou a vida para sempre.. Helvídio Lucius desejava falar, mas não sabiase devia aconselhar ponderação ao sogro impul-sivo, ou socorrer a esposa, cujos membros esta-vam frios e rijos, em conseqüência do traumatismomoral. Amparando Alba Lucínia no divã, enquantoHatéria se dirigia ao interior para tomar as pro-vidências primeiras, Helvídio Lucius viu o sogroausentar-se, pisando forte. Por mais que fizesse, o tribuno não conseguiucoordenar idéias para resolver a angustiosa situa-ção. Levada ao leito, Alba Lucínia parecia sob oimpério de uma força destruidora e absoluta, quenão lhe permitia recobrar os sentidos. Debalde omédico administrava poções e preconizava unguen-tos preciosos. Fricções medicamentosas não deramo menor resultado. Apenas os movimentos convul-sos do pesadelo acusavam a pletora de energiasorgânicas. As pálpebras continuavam cerradas e arespiração opressa, como a dos enfermos prestes aentrar em agonia. Enquanto Helvídio Lucius se desdobrava emcuidados e procurava tranquilizar-se, Fábio Corné-lio dirigiu-se ao gabinete e, chamando Silano emparticular, falou-lhe austero: - Mais que nunca, preciso hoje da tua dedi-cação e dos teus serviços! - Determinai! - exclamou o oficial, pressuroso. - Necessito hoje de uma diligência punitiva,para eliminar uma antiga conspiradora do Império.Há mais de dez anos, observo-lhe as manobras,porém, só agora consegui positivar os seus crimespolíticos e resolvi confiar-te mais essa tarefa de

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singular relevância para minha administração. - Pois bem - exclamou o rapaz serenamen-te -, dizei do que se trata e cumprirei vossas or-dens com o zelo de sempre. - Levarás contigo Lídio e Marcos, porquantonecessito auxiliar-te com dois homens de inteiraconfiança. E, em voz discreta, indicou ao preposto o nomeda vítima, sua residência, condições sociais e tudoquanto pudesse facilitar a execução do sinistro mandado. Por fim, acentuou com voz cavernosa: - Mandarei que alguns soldados cerquem achácara, de modo a prevenir qualquer tentativa deresistência dos fâmulos; e, depois de ordenares aabertura das veias dessa mulher infame, dirás quea sentença parte de minha autoridade, em nomedas novas forças do Império. - Assim o farei - retrucou o emissário resoluto. - Trata de agir com a maior prudência. Quan-to a mim, volto agora a casa, onde reclamam a minha presença. A tarde, aqui estarei para saber do ocorrido. Enquanto Silano arrebanhava os auxiliaresdestinados à empresa, Fábio Cornélio regressavaao lar, onde baldos se faziam todos os recursos mé-dicos para despertar Alba Lucínia do seu torporestranho. Movimentando todos os servos, HelvídioLucius tudo fazia para despertar a companheira.Como louco, seu coração diluía-se amargamente emtorrentes de lágrimas, e era improficuamente querecorria às promessas silenciosas aos deuses fami-liares. Enquanto Hatéria se sentava humildementeà cabeceira da antiga patroa, o tribuno desdobra-va-se em esforços inauditos e Fábio Cornélio pas-seava de um lado para outro, agitado, no interiorde um gabinete próximo, ora esperando as melho-

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ras da enferma, ora contando as horas, a fim deconhecer o resultado da comissão sinistra. Com efeito, de tarde, o emissário do censor,rodeado de soldados e dos dois companheiros deconfiança que deveriam penetrar na residência deCláudia, chegara ao aprazível sítio, arborizado eflorido, onde a antiga plebeia se entregava às suasmeditações, no doloroso outono de sua vida. A viúva de Lólio Úrbico passara o dia entreguea reflexões amargas e angustiosas. Como se umaforça misteriosa a dominasse, experimentara as sen-sações mais tristes e incompreensíveis. Em vão,passeara pelos deliciosos jardins da principesca re-sidência, onde as avenidas graciosas e bem cuida-das se saturavam dos fortes perfumes da Prima-vera. Sentimentos estranhos e intraduzíveis sufo-cavam-lhe o íntimo, como se o espírito estivessemergulhado em amaríssimos presságios. Buscoufixar o pensamento em algum ponto de referênciasentimental e, todavia, o coração estava indigentede fé, qual deserto adusto. Foi com a alma imersa em penosos cismaresque viu aproximar-se, com grande surpresa, o des-tacamento de pretorianos. Tomada de emoção, lembrando-se do que re-presentavam aquelas pequenas expedições de ter-ror, noutros tempos, recebeu no seu gabinete ooficial que a procurava acompanhado de dois ho-mens espadaúdos e atléticos, com os quais trocarasignificativos olhares. - Ao que devo a honra de vossa visita? -perguntou depois de sentar-se, dirigindo a Silanoum olhar de curiosidade intensa. - Sois, de fato, a viúva do antigo prefeitoLólio Urbico?

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- Sim... - replicou a interpelada com displicência. - Pois bem, eu sou Silano Plautius e aquiestou por ordem do censor Fábio Cornélio, que,depois de longo processo, expediu a última sentençacontra a vossa pessoa, esperando eu que saibaismorrer dignamente, dada a vossa condição de cons-piradora do Império... Cláudia ouviu aquelas palavras sentindo queo sangue se lhe gelava no coração. Uma palidezde alabastro lhe cobriu a fronte, enquanto as têm-poras batiam aceleradamente. Estendeu precipita-damente as mãos a um móvel próximo, tentandoutilizar uma grande campainha, mas Silano deteve--lhe o gesto, exclamando com serenidade: - É inútil qualquer resistência! A casa estácercada. Encomendai aos deuses os vossos últimospensamentos !. A esse tempo, obedecendo aos sinais conven-cionais Lídio e Marcos, dois gigantes, avançavampara Cláudia Sabina, que mal se levantara, cam-baleante... Enquanto o primeiro a amordaçava im-piedosamente, o segundo avançou, cortando-lhe ospúlsos com uma lâmina acerada.. Cláudia, todavia, sentindo o horror da situaçãoirremediável, entregava-se aos verdugos sem resistência, endereçando, porém, a Silano um olhar inesquecível. Fosse, contudo, pelo pavor daquele minuto inol-vidável, ou em vista de qualquer emoção irresis-tível e profunda, o sangue da desventurada não va-zava das veias abertas. Dir-se-ia que abrasadoraemoção sacudia todas as suas forças psíquicas, con-trariando as leis comuns das energias orgânicas. Ante o fato insólito e raramente observado nassentenças daquela natureza, e observando o olharangustioso e insistente que a vítima lhe dirigia,

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como a suplicar-lhe que a ouvisse, o oficial ordenouque Lídio sustasse o amordaçamento, a fim de quea condenada pudesse fazer as suas recomendaçõese morresse tranqüila. Aliviada do arrocho, Cláudia Sabina exclamouem voz soturna: - Silano Plautius, meu sangue se recusa avazar, antes que te confesse todas as peripéciasda minha vida! Afasta os teus homens deste gabi-nete e nada temas de uma mulher indefesa e mo-ribunda!.. Altamente impressionado, o filho adotivo deCneio Lucius ordenou aos companheiros se retiras-sem para uma sala próxima, enquanto Cláudia, asós com ele, atirou-se-lhe aos pés, com as veiasgotejantes, dizendo amargamente : - Silano, perdoa o coração miserável que tedeu a vida!... Sou tua mãe, desgraçada e crimi-nosa, e não quero morrer sem te pedir que me vin-gues ! Fábio Cornélio é um monstro. Odeio-o ! Meupassado está cheio de sombras espessas !.. Mas,quem te fez hoje um matricida é mandatário demuitos crimes ! O pobre rapaz contemplava a vítima, tomadode doloroso espanto. Uma brancura de neve subi-ra-lhe ao rosto, denunciando comoções íntimas ; to-davia, se os olhos refletiam ansiedade angustiosa,os lábios continuavam mudos, enquanto a viúva deLólio Úrbico lhe beijava os pés, desfeita em pranto. Então, era ali que estava o mistério do seunascimento e da sua vida? Dolorosa emoção domi-nou-o e Silano prorrompeu em soluços, que lherebentavam do peito saturado de angústias. Desdea morte de Cneio, vinha alimentando o desejo deesclarecer o mistério do seu nascimento. Muitas

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vezes projetou constituir família e sentia-se desar-mado perante os preconceitos sociais, pensando nofuturo da prole. Em determinadas ocasiões, expe-rimentava o desejo de abrir o pequeno medalhãoque o venerando protetor lhe confiara nas vascasda morte e, contudo, um receio atroz da verdadeparalisava-lhe os propósitos. Enquanto as mais penosas reflexões lhe obum-bravam o raciocínio, Cláudia, de joelhos, contava--lhe, detalhe por detalhe, a história dolorosa dasua vida. Estarrecido ante aquelas verdades pro-nunciadas por uma voz que se abeirava do túmulo,Silano inteirava-se das suas primeiras aventurasamorosas, do seu encontro com Helvídio Lucius,nos tumultos aventurosos da vida mundana, da suaincerteza quanto à paternidade legítima e da re-solução de confiá-lo a Cneio, onde sabia existir amais carinhosa dedicação pelo nome de Helvídio,circunstância que garantiria ao enjeitado um dito-so porvir; dos golpes da sorte posterior desposandoum homem de Estado; de suas combinações comFábio Cornélio, em tempos idos, para a execuçãode sentenças iníquas no seio da sociedade romana,omitindo, porém, o drama terrível da sua vida emrelação a Alba Lucínia. Sentindo que a iminênciada morte agravava o ódio pelo censor, que a de-terminara, e por sua família, Cláudia Sabina, dandocurso aos derradeiros desvios da sua alma, deixoutransparecer que a morte de Lólio úrbico, misteriosa e inesperada, fôra obra de Fábio Cornélio e seus sequazes, ávidos de sangue, a fim de acarretarem a sua ruína. Nos últimos instantes, levada pelo negrume doseu ódio tigrino, não vacilara em arquitetar o derradeiro castelo de calúnias e mentiras, para levar a desolação à família detestada.

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Aquelas terríveis confidências soavam aos ouvidos do oficial como um clamor de vinganças que reivindicassem desforços supremos. Todavia, em consciência, não lhe bastavam apenas as emoções para identificar a verdade. Necessitava de algumacoisa que lhe falasse à razão. Mas, como se Cláudia Sabina lhe adivinhasseos pensamentos, foi logo ao encontro das suas va-cilações silenciosas : - Silano, meu filho, Cneio Lucius não te con-fiou um pequeno medalhão, que envolvi nas tuasroupinhas de enjeitado? - Sim - disse o rapaz extremamente pertur-bado -, trago comigo essa lembrança... - Nunca o abriste? - Nunca... Nesse instante, porém, o emissário de Fábiorevolveu uma bolsa que trazia sempre consigo, re-tirando o pequeno medalhão que a condenada con-templou ansiosamente. - Aí dentro, meu filho - disse ela -, escrevium dia as seguintes palavras: Filhinho, eu te con-fio à generosidade alheia com a bênção dos deuses.- Cláudia Sabina. Silano Plautius abriu o medalhão, nervosamen-te, conferindo, uma por uma, todas as palavras. Foi aí que uma emoção violenta lhe abaloutodas as faculdades. Acentuou-se a brancura demármore que se lhe estampara na fronte. O olharinquieto e triste tomou uma expressão vítrea, depavor e assombro. As lágrimas secaram como seum sentimento lhe aflorasse nalma. Cláudia Sabi-na, sentindo-se nos derradeiros instantes, contem-plava, ansiosa, aquelas transformações súbitas. Como se houvera sentido a mais radical de todas as metamorfoses, o rapaz inclinou-se para a vítima e gritou aterrado :

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- Mãe!... minha mãe !.. Nas suas expressões havia um misto de sen-timentos indefiníveis e profundos; elas se lhe es-capavam do peito como um grito de saciedade afe-tuosa, depois de muitos anos de inquietação e de angústia. Recebendo aquela suprema e doce manifesta-ção de carinho na hora extrema, a condenada, coma voz a extinguir-se, falou : - Meu filho, perdoa-me o passado vil e tene-broso !.. Os deuses me castigam fazendo-me pe-recer às mãos daquele a quem dei a vida !.. Meufilho, meu filho, apesar de tudo, amo essas mãosque me trazem a morte !. O pupilo de Cneio Lucius inclinara-se sobre otapete manchado de sangue. Num gesto supremo,que evidenciava sua angústia e o esquecimento doabandono materno, para considerar somente o des-tino doloroso que o conduzira ao matricídio, tomounas mãos a cabeça exânime da condenada, cujoolhar, parecia, agora, rejubilar-se com os pensa-mentos enigmáticos e criminosos de sua alma. Verificou-se, então, um fenômeno interessante.Como se houvera satisfeito cabalmente o últimodesejo, o organismo espiritual de Cláudia Sabinaabandonava o corpo terrestre. Satisfeita a suavontade psíquica, o sangue começou a jorrar emborbotões intensos e rubros, dos pulsos abertos.. Sentindo-se nos braços do oficial, que a enca-rava alucinado, voltou a dizer em voz entrecortada: - Assim... meu filho... sinto... que me..perdoas!.. Vinga-me!... Fábio... Cornélio...Deve morrer... Os singultos da agonia não lhe permitiram con-tinuar, mas os olhos enviavam a Silano as maissingulares mensagens, que o rapaz interpretavacomo apelos supremos de desforra e vingança.

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Quando um calor de cera lhe cobriu a frontecontraída num ricto de pavor angustiado, o men-sageiro do censor abriu as portas, apresentando-seaos companheiros com a fisionomia transtornada. Seu olhar fixo e terrível parecia de um louco.No íntimo, as mais fortes perturbações mentaispremiam-lhe o espírito desolado. Sentia-se o maisínfimo e o mais desgraçado dos seres. Apenas comuma palavra de ordem, colocou-se a caminho, devolta ao centro urbano, enquanto os servos dedi-cados de Cláudia lhe amortalhavam o cadáver, entre lágrimas. Embalde Lídio e Marcos, bem como outros pre-torianos amigos lhe chamavam a atenção para esseou aquele detalhe da empreitada, porquanto SilanoPlautius mantinha um silêncio inflexível e sombrio. A idéia de que Fábio Cornélio lhe conhecia opassado doloroso, não vacilando em fazê-lo assas-sino de sua mãe, bem como as histórias caluniosasde Cláudia Sabina, à extrema hora, a respeito docensor e do seu procedimento no passado, provo-caram-lhe uma perturbação cerebral intraduzível.O pensamento de que para o resto dos seus diasdevia considerar-se um matricida, atormentava-o,sugerindo-lhe os mais horríveis projetos de vin-gança. Dominado por sentimentos inferiores, aca-riciava um punhal que descansava nas armaduras,antegozando o instante em que se sentisse vingadode todos os ultrajes experimentados na vida. Era noitinha quando penetrou no imponenteedifício onde Fábio Cornélio o esperava, num gabi-nete soberbo e amplamente iluminado. O velho censor recebeu-o com visível interessee, buscando isolar-se dos presentes, inquiriu-o num canto da sala: - Então, que novas me trazes ? Tudo bem ? Silano fitava-o de olhos gázeos, como presa

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das mais atrozes perturbações. - Mas, que é isso? - insistia o censor extre-mamente conturbado - estás enfermo?!.. Queteria acontecido?... Fábio Cornélio não pôde prosseguir, porque,sem dizer palavra, qual um alucinado em crise ex-trema, o oficial desembainhou o punhal, celeremen-te, cravando-o no peito do censor, que caiu redondamente, gritando por socorro. Silano Plautius contemplava a sua vítima coma "fácies" terrível dos dementes, sem dar o mínimosinal de responsabilidade.. Na sua indiferença,via o sangue do velho político escapar-se a jorrospela ferida entre a garganta e a omoplata, enquan-to o ferido, nos estertores da morte, lhe dirigia umolhar terrível... Foi nesse instante que os nu-merosos guardas rodearam o antigo protegido deCneio Lucius, eliminando-lhe igualmente a vida emrápidos segundos. Debalde, o oficial tentou resistiraos pretorianos e a outros amigos do assassinado ,porque, em poucos minutos, estava reduzido a fran-galhos pelos golpes de espada, com que pagava aafronta ao Estado, com a perpetração do seu crime. A notícia correu a cidade celeremente. Assistido pelos amigos mais dedicados, Helví-dio Lucius precisou invocar todas as forças paranão fraquejar sob golpes tão rudes. Dada a situação delicada em que se encontravaa esposa, providenciou para que os despojos san-grentos fossem levados à residência, com especialcuidado, a fim de que o quadro sinistro e dolorosonão agravasse a moléstia de Alba Lucínia, na hipó-tese de suas melhoras, após a síncope prolongada. Um correio célere foi despachado para Cápua,chamando Caio Fabricius e sua mulher a Roma,

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imediatamente. Entre as preocupações mais acerbas e impos-sibilitado de comunicar o peso que lhe oprimia ocoração a qualquer amigo, dadas as penosas cir-cunstâncias familiares em jogo, o filho de Cneiovertia lágrimas dolorosas ao lado da esposa entrea vida e a morte, enquanto Márcia assumia a di-reção de todos os protocolos sociais, em sua resi-dência para atender a quantos visitavam os des-pojos dos dois desaparecidos. Alba Lucínia despertara e, contudo, vagava-lheno olhar uma expressão de alheamento do mundo.Pronunciava palavras ininteligíveis, que HelvídioLucius daria a vida para compreender. Percebia-seque ela perdera a razão para sempre. Além disso,as síncopes renovavam-se periodicamente, como seas células cerebrais, à pressão de uma força incoer-cível, rebentassem, vagarosamente, uma por uma... Obedecendo aos imperativos da situação, o tri-buno expediu ordens para que os funerais do sogroe do irmão adotivo se efetuassem com a celeridadepossível, tanto assim, que, antes de uma semana,chegavam, da Campânia, Helvídia e o esposo, semalcançarem as cerimônias fúnebres, e penetrandono lar paterno tão somente para se ajoelharem àcabeceira de Alba Lucínia que, desde a véspera,entrara em dolorosa agonia... A presença dos filhos constituiu para o tribu-no um suave consolo, mas, ao seu espírito dilace-rado figurava-se não haver consolação bastante, nomundo, para o coração humilhado e ferido. Tocado nas fibras mais sensíveis, via agonizara esposa, lentamente, como se um sicário invisívellhe houvesse cravado no coração acerado punhal.Diante da morte, cessavam todos os seus poderes,

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todas as suas dedicações carinhosas. Submerso numoceano de lágrimas, guardando entre as suas asmãos frias da companheira, Helvídio Lucius nãoabandonou o aposento, nem mesmo para atenderao apelo dos filhos recém-chegados. Pressentindoque a morte lhe arrebataria em breve a esposaidolatrada, conservava-se à sua cabeceira, domina-do pelas meditações mais atrozes. De quando em quando, emergia do abismo desuas reflexões, exclamando amargamente como seguardasse a convicção de que era ouvido pela moribunda : - Lucínia, pois também tu me abandonas?Desperta, ilumina de novo a minha soledade!..Se te ofendi alguma vez, perdoa-me. Mais não fizque te amar muito !.. Vamos. Atende. Eu vence-rei a morte para te guardar em meus braços ! Lu-tarei contra todos ! Junto de ti, terei forças paraviver reparando os erros do passado; mas que fa-rei sozinho e abandonado se partires para o mis-tério? Deuses do céu! não bastariam as ruínas domeu lar, os destroços de minha felicidade domés-tica para me redimir aos vossos olhos? Tende com-paixão do meu ser desventurado! Que fiz para pa-gar tão pesado tributo ?.. E contemplando o céu, como se estivesse vis-lumbrando os numes que presidem aos destinoshumanos, apontava a esposa agonizante, redizendoem voz abafada e dolorida : - Deuses do bem, conservai-lhe a vida !... Entretanto, como se as suas rogativas mor-ressem apagadas diante de uma esfinge, Alba Lu-cínia desprendia-se do mundo com uma lágrimasilenciosa, ao amanhecer, enquanto os clarões ru-bros do Sol tingiam as primeiras nuvens do céuromano, ao caricioso despontar da aurora.

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Percebendo-lhe o derradeiro suspiro, HelvídioLucius ensimesmou-se numa tristeza indizível. Nosolhos agora secos e esquisitos, perpassava uma ex-pressão de revolta contra todas as divindades aseu ver insensíveis aos seus padecimentos e apelosdesesperados. A residência do tribuno cobriu-se,então, de crepes negros, enquanto a sua silhuetaagoniada permanecia junto à urna magnífica queencerrava os despojos da companheira, qual sen-tinela que se houvera petrificado em desespero. Enérgico e impassível, respondia aos apelosafetuosos dos amigos com monossílabos amargos,enquanto Caio, Helvídia e a bondosa Márcia fa-ziam as honras da casa. Após uma semana de homenagens da sociedaderomana, efetuou-se o funeral da inditosa senhora,que tombara, qual ave ferida, no seu profundo amormaterno, enquanto o marido, curtindo a mais angustiosa soledade, se sentia desamparado e ferido para sempre. Amargurada e silenciosa, Hatéria permanecerana casa, até o instante em que os carros mortuá-rios acompanharam Alba Lucínia às sombras dosepulcro. Impressionada com as tragédias que a sua re-velação havia desfechado dentro daquele lar outroratão feliz, sentiu-se humilhada no mais íntimo docoração. Muitas vezes, nas horas terríveis da ago-nia da ex-patroa, dirigira o olhar súplice ao tri-buno, a fim de verificar se lhe perdoara, de modoa tranqüilizar a consciência abatida. Helvídio Lucius parecia não vê-la, indiferente à sua presença e a sua vida... Experimentando sinistro remorso, Hatériaabandonou a casa de Helvídio, onde se sentia comoverme asqueroso, tal a angústia dos seus tristespensamentos na dolorosa noite caída sobre a casa

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do tribuno, após o funeral. Fazia frio. As sombras noturnas eram espes-sas, impenetráveis como as angústias que lhe ge-lavam o coração... A permanência ali, porém, de-pois do enterro, não mais era possível, em vistadas amarguradas emoções que lhe vibravam nalma. A velha criada saiu, então, demandando o Tras-tevere, onde possuía antigas relações de amizade.Interessante é que, no percurso pelas ruas estreitas,seguira trajeto idêntico ao da jovem Célia, quandocompelida a abandonar o lar paterno... Depois demuito caminhar, deteve-se perto da Ponte Fabri-cius, temendo prosseguir. Era quase meia-noite eas proximidades da ilha do Tibre estavam desertas.Quis retroceder, premida por uma força inexplicá-vel, como se pressentisse algum perigo iminente,quando dois homens mascarados se aproximaram,quais massas escuras que se movessem rápidasentre as pesadas sombras da noite. Tentou gritar,mas era tarde. Um deles atirava-se rápido a ela,amordaçando-a fortemente. - Lucano - dizia baixinho o desconhecido aenvolver-lhe o rosto com uma toalha grossa -,apalpa-a depressa! Urge terminar o serviço!... - Ora essa - dizia o companheiro decepcio-nado -, trata-se de uma velha desprezível ! - Não desanimes ! - prosseguiu o outro -palpita-me que é boa presa. Vamos! Essas velhascostumam trazer o dinheiro oculto no seio, quandosão ardilosas e avarentas!... O bandido que tinha as mãos livres levou-asao tórax da velha criada de Helvídio Lucius, sen-tindo que o seu coração batia acelerado. De fato,era ali que Hatéria guardava, numa bolsa refor-çada, todo o cabedal sonante das suas economias.

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Encontrando-lhe o pequeno tesouro, ambos os mal-feitores esboçaram um sorriso de satisfação e, obe-decendo a um sinal do companheiro, Lucano bateufortemente na cabeça da vítima amordaçada, comuma pequena bengala de ferro, exclamando comvoz sumida, quando percebeu que ela desmaiara: - Assim, sempre é melhor! Amanhã não po-derás relatar a proeza aos vizinhos, para que asautoridades nos venham incomodar. Em seguida, arrastaram a vítima atordoadapelos golpes rijos, atirando-a sem piedade nas águaspesadas do rio que rolava silenciosamente. Haté-ria teve assim os seus últimos instantes, como aexpiar o torpe delito do passado culposo. Todavia após examinarmos a derradeira pro-vação da velha cúmplice de Cláudia Sabina, volte-mos a seguir Helvídio Lucius na sua pesada noitede sofrimentos íntimos. Somente no dia imediato ao funeral da mu-lher, conseguiu o tribuno reunir os filhos numgabinete privado, confidenciando-lhes as tristes re-velações que desfecharam nos terríveis aconteci-mentos, aniquiladores da sua ventura para todo o sempre. Terminada a impressionante narrativa, Caio Fa-bricius contou à esposa e ao sogro o encontro comCélia, dez anos antes, quando se dirigia à Cam-pânia, chamado por interesses urgentes. Jamaisaludira ao fato, considerando o voto formal de selembrarem da jovem tão somente como de umamorta sempre querida. Nunca esquecera aquelequadro triste, da cunhada abandonada na solidãoda noite, junto à montanha de Terracina, e muitavez recriminou-se por se haver mantido indiferen-te e surdo aos seus apelos. Helvídia e seu pai ouviam-no tomados de mágoa e assombro.

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Somente aí, no exame de todos os sacrifíciosda filhinha, ponderando os seus tormentos moraispara isentar a família dos golpes da desventurae da calúnia, o filho de Cneio Lucius conseguiudespertar o resquício da sua sensibilidade, paraapegar-se de novo à vida. A narrativa do genrovinha indiciar que Célia vivia em qualquer parte.Lembrou-se da esposa e pôs-se a pensar que, seAlba Lucínia ainda estivesse na Terra, sentiriaimenso júbilo se pudesse abraçar de novo a filhadesprezada. Certamente, do Céu, a companheiraquerida haveria de lhe orientàr os passos, aben-çoaria o seu esforço. E um dia, quando a provi-dência dos deuses permitisse, a alma da esposa lheguiaria o coração ulcerado até à filha, para quepudesse morrer beijando-lhe as mãos. Mergulhado nessas cogitações angustiosas, comuma serenidade triste a clarear seus passos, Hel-vídio Lucius conseguiu chorar de maneira a aliviara íntima angústia. Suas lágrimas, agora que Hel-vídia as enxugava com carinho, eram como essaschuvas benéficas que lavam o céu, após o fragorda tempestade. Então, como se o animasse uma esperançanova, o tribuno converteu todas as dores na preo-cupação de reencontrar a filhinha expulsa do lar,fosse onde fosse, para alívio da consciência. Dese-java morrer para reunir-se à companheira bem--amada, mas quisera levar-lhe também a certezade que Célia reaparecera, e que, de joelhos, haviasuplicado o perdão da filha, a quem não puderacompreender. Com esse propósito, encaminhou-seà Campânia com os filhos, de regresso a Cápua,e, depois de alguns dias de repouso, dispensandoa companhia de qualquer servo, a fim de entregar-

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-se sozinho às investigações necessárias, partiupara o Lácio, apesar de todas as súplicas de Hel-vidia para que aceitasse, ao menos, a companhia do genro. Triste e só, o velho tribuno perambulou inu-tilmente por todas as cidades próximas de Ter-racina, estacionando longo tempo junto à gruta deTibério, a evocar as penosas recordações do genro.A despeito de todos os esforços, foi em vão queviajou a Itália inteira. Assim que, decorrido um ano da morte de Lu-cínia, regressou a Roma, abatido e desolado como nunca. Sentindo-se profundamente desamparado, eraqual árvore frondosa, singularmente insulada naplanície extensa da vida. Enquanto mantinha aseu lado as outras companheiras, podia suportaros furacões violentos que desciam dos montes, mas,destruídos os troncos próximos, cuja presença afortalecia, era agora incapaz de resistir aos ventosmais leves dos vales obscuros da dor e do destino. Recolhido ao gabinete, recebia tão somente avisita dos amigos mais íntimos, cuja palavra nãotrouxesse ao seu espírito atormentado qualquerlembrança do passado infortunoso. Um dia porém, um escravo veio anunciar an-tigo camarada de infância, Rúfio Propércio, cujahistória amarga dos últimos tempos ele bem co-nhecia. Apesar das suas próprias lutas, conhece-ra-lhe todas as desgraças e infortúnios. Helvídio Lucius mandou-o entrar, sôfregamen-te, como irmão de dores e martírios íntimos. Trocadas as primeiras impressões, Rúfio Pro-pércio advertiu : - Caro Helvídio, depois de tão longa separa-ção, surpreende-te a minha fortaleza moral anteas hecatombes dolorosas da existência. Devo expli-

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car-te o porquê da minha resignação e serenidade.É que, hoje, abandonei nossas crenças inexpres-sivas para apegar-me a Jesus - Cristo, o Filho deDeus Vivo !.. - Será possível? - exclamou o tribuno interessado. - Sim, hoje compreendo melhor a vida e ossofrimentos neste mundo. Somente nos tesourosdo ensino cristão encontrei a força indispensável àcompreensão da dor e do destino. Só Jesus, coma sua lição de piedade e misericórdia, pode salvar--nos do abismo de nossas angústias profundas parauma vida melhor, que não comporta os enganose desilusões amargas da Terra... E enquanto Helvídio Lucius o ouvia, assom-brado por encontrar um amigo íntimo estabilizadona fé ardente e pura, entre os escombros da época,Propércio acrescentava: - Já que te sentes igualmente ferido pelo des-tino, porque não freqüentares conosco as reuniõescristãs, onde eu te poderia acompanhar? É bempossível que encontres no Evangelho a paz alme-jada e a energia imprescindível para triunfar detodos os tormentos da vida. Ouvindo o carinhoso convite do amigo de in-fância, o tribuno lembrou-se instintivamente da fi-lha, das suas convicções. Sim, fora o Cristianismoque lhe dera tamanhas forças para o sofrimentoe para o sacrifício. Além disso, recordou as figurasde Nestório e Ciro, que haviam caminhado para amorte sem um gemido, sem uma queixa. Como que cedendo a uma súbita resolução,respondeu resoluto: - Aceito o convite. Onde é a reunião? - Numa casa humilde, junto à Porta Ãpia. - Pois bem, irei contigo.

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Rúfio despediu-se, prometendo buscá-lo à noi-tinha, enquanto ele passava o resto do dia em co-gitações graves e profundas. A hora convencionada, demandaram o local dasassembleias humildes, onde, pela primeira vez, Hel-vídio Lucius ouviu a leitura do Evangelho e oscomentários singelos dos cristãos. A princípio, es-tranhou aquele Jesus que perdoava e amava atodos, com o mesmo carinho e a mesma dedicação.Mas, no curso de numerosas reuniões, entendeumelhor o Evangelho e, apesar de lhe não sentiras lições inteiramente, admirava o profeta simplese amoroso, que abençoava os pobres e os aflitosdo mundo, prometendo um reino de luz e de amor,para além das ingratas competições da Terra. Seu esforço na aquisição da fé seguia o cursocomum, quando um pregador famoso surgiu, umdia, naquele núcleo de gente simples e bondosa.Tratava-se de um homem ainda novo, inteligentee culto, de nome Saulo Antônio, que fizera da exis-tência um sacrossanto apostolado, no trabalho daevangelização. Sua palavra inflamada e vibrante sobre osAtos dos Apóstolos, logo após a partida do Cor-deiro para as regiões da luz, impressionara o tri-buno profundamente. Pela primeira vez, escutavaum intelectual, quase sábio, a exaltar as virtudesdos seguidores do Cristo, fazendo comparações ex-traordinárias entre o Evangelho e as teorias dotempo, que ele se habituara a considerar como no-tas de evolução, inexcedíveis. Terminada a preleção inspirada e brilhante,Helvídio acercou-se do orador, exclamando com sinceridade: - Meu amigo, trago-lhe meus votos para que

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a sua palavra iluminada continue a clarear os caminhos da Terra. Desejava, porém, ouvi-lo sobre uma dúvida que me nasceu há tempos no coração. E enquanto o pregador lhe acolhia as palavrascom profunda simpatia, continuou : - Não duvido dos atos dos Apóstolos de Jesus,mas estranho que, de há muito tempo para cá,não haja mais, na Terra, organizações privilegiadascomo a dos antigos seguidores do Cristo, que pos-sam aliviar nossas dores e esclarecer-nos o coraçãonos sofrimentos!.. - Meu irmão - replicou o orador sem se per-turbar -, antes de recorrermos aos intermediários,urge prepararmos o coração para sentir a inspi-ração direta do Cordeiro. A sua objeção, porém,é muito justificável. Contudo, cumpre-me esclarecerque as vocações apostólicas não morreram para omundo. Em toda a parte elas florescem sob asbênçãos de Deus, que nunca se cansou de enviar aténós os mensageiros de sua misericórdia infinita. E depois de ligeira pausa, como se desejassetransmitir uma impressão fiel de suas reminiscên-cias mais íntimas, Saulo Antônio acrescentou con-victamente : - Faz alguns anos, era eu inimigo acérrimodo Cristianismo e dos seus divinos postulados; to-davia, bastou a contribuição de um verdadeiro dis-cípulo de Jesus, para que meus olhos se aclarassembuscando o verdadeiro caminho... Ainda hoje, láestá ele, franzino e humilde como uma flor doCéu, inaclimatável entre as urzes da Terra... Tra-ta-se do Irmão Marinho, que, nos arredores deAlexandria, constitui uma bênção de Jesus, perma-nente e divina, para todas as criaturas.. Imagemdo bem, personificação da perfeita caridade evan-

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gélica, vi-o curar leprosos e paralíticos, restituiresperanças e fé aos mais tristes e mais empederni-dos ! Ao seu tugúrio miserável acorrem multidõesde aflitos e desamparados, que o venerável apóstolodo Cordeiro reanima e consola com as lições pro-fundas de amor e de humildade! Depois de pere-grinar pelas sendas mais escuras, tive a dita deencontrar a sua palavra carinhosa e benevolente, que me despertou para Jesus, dos negrores do meu destino !... Sentindo-lhe a profunda sinceridade, HelvídioLucius interrogou ansioso : - E esse homem extraordinário recebe a to-dos indistintamente ?... - Todas as criaturas lhe merecem atenção e amor. - Pois meu amigo - revidou o tribuno noseu íntimo desconsolo -, não obstante minha po-sição financeira e a consideração pública que des-fruto em Roma, trago o coração acabrunhado edoente como nunca... As lições do Evangelho têmsustentado, de algum modo, meu espírito abatido.Contudo, sinto necessidade de um remédio espiri-tual que, suavizando-me as dores íntimas, me levea compreender melhor os divinos exemplos do Cor-deiro... Suas referências chegam a propósito, poisirei a Alexandria buscar a consolação desse após-tolo, mesmo porque, uma viagem ao Egito, nasatuais circunstâncias da minha vida, far-me-á gran-de bem ao coração... No dia seguinte, o filho de Cneio Lucius deuos primeiros passos para efetuar a excursão coma presteza possível. E antes que a galera largasse de óstia, come-çou a concentrar as suas esperanças naquele IrmãoMarinho, cujas virtudes famosas eram veneradasem todas as comunidades cristãs e havido por emis-

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sário de Jesus, destinado a sustentar no mundo astradições divinas dos tempos apostólicos.

No Horto De Célia

Nos arredores de Alexandria, a filha de Hel-vídio havia granjeado a melhor e merecida famade amor e bondade. Transferida para aquela região de gente pobree humilde, convertera todas as recordações maisqueridas, bem como as suas dores mais íntimas,em hinos de caridade pura, que se evolavam aoCéu entre as bênçãos de todos os sofredores in-felizes. O sofrimento e a saudade como que lhe mode-laram as feições angélicas porque, no semblantecalmo, esbatia-se um traço indefinível de visão ce-lestial... A vida de ascetismo, de abnegação e re-núncia dera-lhe uma nova "fácies" que deixavatransparecer nos olhos, serenos e brilhantes, a pu-reza indefinível dos que se encontram prestes a atin-gir as claridades radiosas de outra vida. Havia muito, começara a entisicar e, contudo,não abandonara a faina apostolar junto dos sofre-dores. De tarde, lia o Evangelho, ao ar livre, paraquantos lhe buscavam o amparo espiritual, expli-cando os ensinos de Jesus e de seus divinos segui-dores, fazendo crer, nesses momentos, que umaforça divina dela se apossava. A voz, habitualmen-te débil, ganhava tonalidades diferentes, como seas cordas vocais vibrassem ao sopro de uma divinainspiração. Conservava-se no mesmo tugúrio, ao pé dohorto, cujos trabalhos rudes nunca deixaram de lhemerecer atenção e carinho. Todos os irmãos do

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mosteiro, exceto Epifânio, buscavam-lhe agora aconvivência, acatando-lhe as elucidações evangélicase cooperando nos seus esforços. A jovem romana, transformada em irmão ca-rinhoso dos infelizes, guardava as mesmas dispo-sições íntimas de sempre, cheia de fé e esperançano Senhor de bondade e sabedoria. O pequeno enjeitado de Brunehilda, depois delhe suavizar a soledade, por alguns anos, com osseus carinhos e sorrisos, havia falecido, deixando-aamargurada e abatida mais que nunca. Impressio-nada com o acontecimento, Célia deprecara fervo-rosamente e, uma noite, quando se entregava àsolidão de suas preces e meditações, divisou a seulado o vulto de Cneio Lucius, contemplando-a cominfinita ternura. - Filha querida, não te magoe essa nova se-paração do ser idolatrado! Prossegue na tua fé,cumprindo a missão divina que o Senhor houve porbem deferir à tua alma sensível e generosa! Depoisde perfumar, por alguns anos, a tua senda terrena,o Espírito de Ciro volve de novo ao Além parasaturar-se de forças novas ! Não desanimes pelasaldade que te punge o coração sensibilíssimo, poisnossa alma semeia o amor na Terra para vê-lo flo-rir nos Céus, onde não chegam as tristes inquieta-ções do mundo !... Além do mais, Ciro tem neces-sidade dessas provações, que lhe hão-de temperara vontade e o sentimento para os gloriosos feitosdo seu porvir espiritual !... Nessa altura, a amorável entidade deteve-secomo que intencionalmente, a fim de observar oefeito de suas palavras. Desfeita em lágrimas, a jovem falou mental-mente, como se palestrasse com o avô no adito do coração:

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- Não duvido de que todas as dores nos sãoenviadas por Jesus, a fim de aprendermos o cami-nho da redenção divina, mas, qual a razão dessasvidas temporárias de Ciro na Terra? Se ele temchegado a viver no ambiente humano, ainda neces-sitado das experiências terrestres, porque vem amorte decepando as nossas esperanças? - Sim - replicou a entidade amorosamente ,são as leis da prova que regem os nossos destinos. - Mas Ciro, há alguns anos, não chegou amorrer pelo Divino Mestre, no martírio e no sacrifício ? - Filha, entre os mártires do Cristianismo, háos que se desprendem do mundo em missão sacros-santa e os que morrem para os mais penososresgates... Ciro é do número destes últimos... Emséculos anteriores, foi um déspota cruel, extermi-nando esperanças e envenenando corações... Mer-gulhado depois na luta expiatória, renegou as doressantificantes e enveredou pela senda ignominiosado suicídio. É justo, pois, que agora aprecie osbenefícios da luta e da vida, na dificuldade de osreadquirir para a sua redenção espiritual, ansio-samente colimada. As experiências fracassadas hão--de valorizar o seu futuro de realizações e esforçosnobilíssimos. Em face da dor e do trabalho, noporvir que se aproxima, seu coração amará todosos detalhes da luta redentora. Saberá prezar notrabalho ingente e doloroso os recursos sagradosda sua elevação para Deus, reconhecendo a gran-deza do esforço, da renúncia e do sacrifício!... Confortada com os esclarecimentos do mentorespiritual, logo entreviu outra entidade de sem-blante nobre e triste, a contemplá-la num misto dealegria e amargura. Estranhando a visão, sentiu que a palavra ca-

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rinhosa do avô esclarecia : - Não te surpreendas nem te assustes! Tuamãe, hoje no plano espiritual, aqui vem comigo,trazer-te o coração bondoso e agradecido !... Dolorosas emoções lhe vibraram no íntimo, porforça daquelas revelações inesperadas. As lágrimasse fizeram mais amargas e copiosas. Duvidava daprópria vidência, lembrando o passado com os seusespinhos e sombras desoladoras. Mas, anjo ou som-bra, o Espírito Alba Lucínia, como que submer-so num véu de tristeza impenetrável, aproximou-see lhe beijou as mãos. Célia desejava que aquela entidade triste ebenfazeja lhe dissesse algo ao coração. A sombramaterna, porém, continuava muda e consternada.Contudo, sentiu que, na mão direita que a sombraosculara, persistia uma sensação indefinível, comose, com o seu beijo, Alba Lucínia trouxesse tam-bém uma lágrima ardente e dolorida. Ante o choque inesperado, a jovem romana notou que ambas as entidades escapavam novamente ao seu olhar. Nessa noite, meditou sobre o passado, maisQue em outros dias, entregando a Jesus as suaspreocupações e as suas mágoas, rogando ao Senhorlhe fortificasse o espírito, a fim de compreender ecumprir integralmente os santos desígnios da suavontade divina. No dia imediato ao de suas amargas reflexõesconcernentes ao passado doloroso, grande multidãobuscava-lhe os fraternos serviços. Eram velhinhosdesolados à cata de uma palavra consoladora eamiga, mulheres das povoações mais próximas, quelhe traziam os filhinhos enfermos, sem falar dasmuitas pessoas procedentes de Alexandria, em busca de lenitivo espiritual para os dissabores da vida.

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A medida que as cercanias do mosteiro seenchiam de viaturas, seu vulto franzino e melan-cólico desdobrava-se em esforços inauditos paraconsolar e esclarecer a todos. De vez em quando, um acesso de tosse sobre-vinha, provocando a piedade alheia ; ela, porém,transformando a sua fragilidade em energia espi-ritual inquebrantável, parecia não sentir o aniqui-lamento do corpo, de modo a manter sempre acesaa luz da sua missão de caridade e de amor. De tarde, invariavelmente, procedia às leiturasevangélicas, ouvidas pelos visitantes numerosos epela gente simples do povo. Foi aí, aos lampejos do crepúsculo, que seusolhos atentaram numa viatura elegante e nobre,de cujo interior saltava Helvídio Lucius, que o seucoração filial identificou imediatamente. O antigotribuno, encontrando a pequena assembléia ao arlivre, procurou acomodar-se como pôde, enquantonos traços fisionômicos do Irmão Marinho surgiamos sinais da emoção que lhe vibrava na alma..Entretanto, sua palavra prosseguia sempre, satu-rada de intensa ternura, em minudente comentárioà parábola do Senhor. O irmão dos infortunados edos doentes falava das pregações do Tiberíades, comose houvesse conhecido a Jesus de Nazaré, tal a fide-lidade e a amorosa vibração da sua palavra. Enlevado na contemplação do maravilhoso qua-dro, o filho de Cneio Lucius fixou o famoso mis-sionário, tomado de surpresa estranha! Aquela voz,aquele perfil lembrando um mármore precioso, bu-rilado pelas lágrimas e sofrimentos da vida, nãolhe recordavam a própria filha? Se aquele IrmãoMarinho vestisse a indumentária feminina, racioci-nava o tribuno vivamente interessado, seria a ima-

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gem perfeita da filhinha que ele vinha buscandopor toda a parte, sem consolação e sem esperança.Assim conjeturando, seguia-lhe a palavra, cheio desurpresa cariciosa. Ninguém ainda lhe falara do Evangelho comaquela clareza e simplicidade, com aquela unçãode amor e firmeza, que, instintivamente, lhe pene-travam o coração, propiciando-lhe um brando con-solo. Fizera a viagem de Óstia a Alexandria, aba-tido e enfermo. Seu estado orgânico chegara adespertar o interesse de alguns amigos romanos,a ponto de msistirem pelo seu imediato regressoà metrópole. Profundo cansaço transparecia-lhe dosolhos tristes, de uma tristeza inalterável e de umpenoso desencanto da vida. Mas, ao ouvir aqueleapóstolo extraordinário, cheio de benevolência ebrandura, experimentava no imo um alívio salutar.A brisa vespertina afagava-lhe levemente o ros-to, com os derradeiros reflexos do Sol a diluir-seem nuvens distantes. A seu lado, concentrada, amultidão dos pobres, dos enfermos, dos desventu-rados da sorte, em preces fervorosas, como se es-perassem todas as felicidades do Céu para os seusdias tristes. A poucos passos, a figura esbelta e delicadado irmão dos infortunados e aflitos, que lhe falavaao coração com maravilhosa suavidade. A Helvídio Lucius pareceu-lhe que fora trans-portado a um país misterioso, cheio de figuras apos-tólicas e sentia-se, entre aqueles crentes anônimos,na posse de um bem-estar indizível. Desde a dolorosa desencarnação da companhei-ra, tinha o espírito mergulhado num véu de amar-guras atrozes. Nunca mais desfrutara tranquilidadeíntima, sob o peso de suas angústias pungentes.

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Entretanto, os ensinamentos do Irmão Marinho,suas considerações e suas preces, proporcionavam--lhe intraduzível esperança. Figurou-se-lhe que bas-tava aquele instante breve para que pudesse re-erguer a confiança num futuro espiritual, pleno derealidades divinas. Sem poder explicar a causa dasua emotividade, começou a chorar silenciosamente,como se somente naquele instante houvesse afei-çoado, de fato, o coração às belezas imensas doCristianismo. Terminadas as interpretações e aspreces do dia, enquanto a multidão se retirava co-movida, Célia deixara-se ficar no mesmo ponto, semsaber que norma adotar naquelas circunstâncias.No íntimo, contudo, agradecia a Deus a graça su-blime de surpreender o espírito paterno tocado desuas luzes divinas, suplicando ao Senhor permitisseao seu coração filial receber a necessária inspira-ção dos seus augustos mensageiros. Na quase imobilidade de suas conjeturas, na-quele momento grave do seu destino, foi despertadapela voz de Helvídio Lucius que se aproximara,exclamando : - Irmão Marinho, sou um pecador desencan-tado do mundo, que vem até aqui atraído por vos-sas virtudes sacrossantas. Venho de longe e bastouum momento de contacto com a vossa palavra eensinamentos para que me reconfortasse um pouco,experimentando mais fé e mais esperança. Dese-java falar-vos... A noite, contudo, não tarda etemo aborrecer-vos... A humildade dolorida daquelas palavras deraà jovem cristã uma idéia perfeita de todos os tor-mentos que haviam aniquilado o coração paterno. Helvídio Lucius já não apresentava aquele por-te ereto e firme que o caracterizava como legíti-

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mo cidadão do Império e da sua época. Os lábiostranquilos, de outrora, ajustavam-se num ricto detristeza e angústia indefiníveis. Os cabelos estavamcompletamente brancos, como se um inverno im-placável e rijo lhe houvesse despejado na cabeçaum punhado de neve indestrutível. Os olhos, aque-les olhos que tantas vezes lhe patentearam umaenergia impulsiva e orgulhosa, eram agora melan-cólicos, espraiando-se com humildade sincera portoda parte, ou dirigindo-se com expressões súpli-ces para o Alto, como se de há muito estivessemmergulhados nas mais angustiosas rogativas. Célia compreendeu que uma tempestade do-lorosa e inflexível havia desabado sobre a almapaterna, para que se pudesse realizar aquela metamorfose. - Meu amigo - murmurou de olhos úmi-dos -, rogo a Deus que se não dissipem as vossasimpressões primeiras e é em seu nome que vosofereço a minha choupana humilde! Se vos apraz,ficai comigo, pois terei grande júbilo com a vossapresença generosa!... Helvídio Lucius aceitou o delicado oferecimen-to, enxugando uma lágrima. E foi com enorme surpresa que reparou nocasebre onde vivia, conformado, o irmão dos infelizes. Em poucos instantes o Irmão Marinho arran-jou-lhe um leito humilde e limpo, obrigando-o arepousar. Guardando nalma uma alegria santa,a jovem se movia de um lado para outro e nãotardou levasse ao tribuno surpreso um caldo subs-tancioso e um copo de leite puro, que lhe conforta-ram o organismo. Depois, foram os remédios ca-seiros manipulados por ela mesma, com satisfaçãointraduzível. A noite caíra de todo com o seu cortejo de

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sombras, quando o Irmão Marinho se assentou àfrente do hóspede, encantado e comovido com tan-tas provas de carinhoso desvelo. Falaram então de Jesus, do Evangelho, casan-do harmônicas as opiniões e os conceitos acerca doCordeiro de Deus e da exemplificação de sua vida. De vez em quando, o tribuno contemplava ointerlocutor, com o mais acentuado interesse, guar-dando a impressão de que o conhecera alhures. Por fim, dentro do profundo bem-estar quesentia renascer-lhe no íntimo, Helvídio Lucius ponderou: - Cheguei ao Cristianismo qual náufrago, apósas mais ásperas derrotas do mundo ! Sinto que oDivino Mestre endereçou à minha alma todos osapelos suaves da sua misericórdia; no entanto, euestava surdo e cego, no âmbito de lamentáveis des-varios. Foi preciso que uma hecatombe desabasseem meu lar e sobre o meu destino, para que nofragor da tempestade destruidora, conseguisse rom-per as muralhas que me separavam da nítida com-preensão dos novos ideais florescentes para a men-talidade e o coração do mundo. Jamais confiei a alguém os episódios pungen-tes da minha vida, mas sinto que vós, apóstolo deJesus e seguidor do Mestre na exemplificação dobem, podereis compreender minha existência, aju-dando-me a raciocinar evangelicamente, para quecumpra os meus deveres nestes últimos dias deatividade terrena. Nunca, em parte alguma, deixeide experimentar uma tal ou qual dúvida que medesconsola; aqui, porém, sem saber porquê, expe-rimento uma tranqüilidade desconhecida. Julgo de-ver confiar em vós, como em mim mesmo !. Hámuito, sinto necessidade de um conforto direto, esomente a vós confio as minhas chagas, na expec-

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tativa de um auxílio carinhoso e fraterno!. - Se isso vos faz bem, meu amigo - obtempe-rou a jovem, enxugando uma lágrima discreta -podeis confiar no meu coração, que rogará ao Se-nhor pela vossa paz espiritual em todos os transes da vida... E enquanto o Irmão Marinho lhe acariciavaa cabeça encanecida prematuramente, atormentadopor dolorosas recordações, Helvídio Lucius, sem sa-ber explicar o motivo de sua confiança, começoua contar-lhe o penoso romance da sua existência.De vez em quando, a voz tornava-se abafada poruma que outra lembrança ou episódio. A cada pau-sa o interlocutor, comovido, respondia ao seu es-tado dalma com essa ou aquela advertência, traindoas próprias reminiscências. O tribuno surpreendia--se com isso, mas atribuía o fato às faculdadesdivinatórias, presumíveis no apóstolo do amor e dacaridade pura, que tinha à sua frente. Depois de longas horas de confidência, em queambos choravam silenciosamente, Helvídio concluía: - Aí tem, Irmão Marinho, minha história amar-gurada e triste. De todas as tragédias lembradas,guardo profundo remorso, mas o que mais me aca-brunha é lembrar que fui um pai injusto e cruel.Um pouco mais de calma e um pouco menos deorgulho, teria chegado à verdade, afastando os gê-nios sinistros que pesavam sobre o meu lar e omeu destino!... Relembrando esses acontecimentos,ainda hoje me sinto transportado ao dia terrívelem que expulsei do coração a filha querida. Des-de que me certifiquei da sua inocência, procuro-a,ansioso, por toda parte; parece-me, contudo, queDeus, punindo meus atos condenáveis, entregou-meaos supremos martírios morais, para que eu com-preendesse a extensão da falta. É por isso, Irmão,

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que me sinto réu da justiça divina, sem consolaçãoe sem esperança. Tenho a impressão de que, parareparar meu grande crime, terei de andar como ojudeu errante da lenda, sem repouso e sem luz nopensamento. Pela minha exposição sincera e amar-gurada, compreendeis, agora, que sou um pecadordesiludido de todos os remédios do mundo. Porisso, resolvi apelar para a vossa bondade, a fim deme proporcionardes um lenitivo. Vós que tendesiluminado tantas almas, apiedai-vos de mim que souum náufrago desesperado! As lágrimas abafaram-lhe a voz. Célia também o ouvia de olhos molhados, sen-tindo-se tocada em todas as fibras do seu coraçãode filha meiga e afetuosa. Desejou revelar-se ao pai, beijar-lhe as mãosencarquilhadas, dizer-lhe do seu júbilo em reen-contrá-lo no mesmo caminho que a conduzia paraJesus... Quis afirmar que o amara sempre e ol-vidara o passado de prantos dolorosos, a fim depoderem ambos elevar-se para o Senhor, na mesmavibração de fé, mas uma força misteriosa e incoer-cível paralisava-lhe o ímpeto. Foi assim que murmurou carinhosamente : - Meu amigo, não vos entregueis de todo aodesânimo e ao abatimento! Jesus é a personificaçãode toda a misericórdia e há-de, certamente, confor-tar-vos o coração ! Creiamos e esperemos na suabondade infinita!... - Mas - obtemperava Helvídio Lucius na suasinceridade dolorosa - eu sou um pecador que sejulga sem perdão e sem esperança! - Quem não o seria neste mundo, meu amigo?- exclamou Célia cheia de bondade. - Porventura,não seria destinada a todos os homens a lição da

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"primeira pedra"? Quem poderá dizer "nunca errei",no oceano de sombras em que vivemos? Deus éo juiz supremo e na sua misericórdia inexaurívelnão pode cobrar aos filhos um débito inexistente!...Se vossa filha sofreu, houve, em tudo, uma lei de provações, que se cumpriu conforme com a sabedoria divina!... - No entanto - gemeu o tribuno em vozamarga -, ela era boa e humilde, carinhosa e jus-ta! Além do mais, sinto que fui impiedoso, peloque, experimento agora as mais rudes acusaçõesda própria consciência!... E como se quisesse transmitir ao interlocutor aimagem exata das suas reminiscências, o filho deCneio Lucius acrescentou, enxugando as lágrimas : - Se a vísseis, Irmão, no dia fatídico e dolo-roso, concordaríeis, certo, em que minha desventu-rada Célia era qual ovelha imaculada a caminharpara o sacrifício. Não poderei esquecer o seu olharpungente, ao afastar-se do aprisco doméstico, aosegregar-se do santuário da família, honrado sem-pre pela sua alma de menina com os atos maisnobres de trabalho e renúncia! Recordando essesfatos, vejo-me qual tirano que, depois de se aban-donar a toda sorte de crimes, andasse pelo mundomendigando a própria justiça dos homens, de modoa experimentar o desejado alívio da consciência! Ouvindo-lhe as palavras, a jovem chorava co-piosamente, dando curso às suas próprias reminis-cências, eivadas de dor e de amargura. - Sim, Irmão - continuou o tribuno angus-tiado -, sei que chorais pelas desventuras alheias;sinto que as minhas provas tocaram igualmente ovosso coração. Mas, dizei-me!... que deverei fazerpara encontrar, de novo, a filha bem-amada? Seráque também ela tenha buscado o Céu sob o látego

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das angústias humanas? Que fazer para beijar-lhe,um dia, as mãos, antes da morte? Essas perguntas dolorosas encontravam tão so-mente o silêncio da jovem, que chorava comovida.Breve, porém, como tomada de súbita resolução,acentuou: - Meu amigo, antes de tudo precisamos con-fiar plenamente em Jesus, observando em todos osnossos sofrimentos a determinação sagrada da suasabedoria e bondade infinitas! Não desprezemos,porém, o tempo, a lastimar o passado. Deus aben-çoa os que trabalham e o Mestre prometeu amparodivino a quantos laborem no mundo, com perseve-rança e boa vontade!... Se ainda não reencontras-tes a filhinha carinhosa, é necessário dilatar oslaços do sangue, a fim de que eles se conjuguemnos laços eternos e luminosos da família espiritual.Deus velará por vós, desde que, para substituir oafeto da filha ausente, busqueis estender o coraçãoa todos os desamparados da sorte... Há milharesde seres que suplicam uma esmola de amor aossemelhantes ! Debalde mostram os braços nus aosque passam, felizes, pelos caminhos floridos de es-peranças mundanas. Conheço Roma e o turbilhão de suas misériasangustiosas. Ao lado das residências nobres dasCarinas, dos edifícios soberbos do Palatino e dosbairros aristocráticos, há os leprosos da Suburra,os cegos do Velabro, os órfãos da Via Nomentana,as famílias indigentes do Trastevere, as negras mi-sérias do Esquilino !.. Estendei vosso braço àsfilhas dos pais anônimos, ou dos lares desprotegi-dos da fortuna !... Abracemo-nos com os miserá-veis, repartamos nosso pão para mitigar a fomealheia ! Trabalhemos pelos pobres e pelos desgra-

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çados, pois a caridade material, tão fácil de serpraticada, nos levará ao conhecimento da caridademoral que nos transformará em verdadeiros discí-pulos do Cordeiro. Amemos muito !.. Todos osapóstolos do Senhor são unânimes em declarar queo bem cobre a multidão de nossos pecados! Todavez que nos desprendemos dos bens deste mundo ,adquirimos tesouros do Alto, inacessíveis ao egoís-mo e à ambição que devoram as energias terrestres.Convertei o supérfluo de vossas possibilidades fi-nanceiras em pão para os desgraçados. Vesti os nus,protegei os orfãozinhos! Todo o bem que fizermosao desamparado constitui moeda de luz que o Se-nhor da Seara entesoura para nossa alma. Um dianos reuniremos na verdadeira pátria espiritual, ondeas primaveras do amor são infindáveis. Lá, nin-guém nos perguntará pelo que fomos no mundo,mas seremos inquiridos sobre as lágrimas que en-xugamos e as boas ou más ações que praticamosna estância terrena. E, de olhos fixos, como a vislumbrar paisagenscelestes, prosseguia : - Sim, há um reino de luz onde o Senhornos espera os corações! Façamos por merecer-lheas graças divinas. Os que praticam o bem são co-laboradores de Deus no infinito caminho da vida...Lá, não mais choraremos em noite escura, comoacontece na Terra. Um dia perene banhará a fron-te de todos os que amaram e sofreram nas es-tradas espinhosas do mundo. Harmonias sagradasvibrarão nos Espíritos eleitos que conquistaremessas moradas cariciosas !... Ah ! que não faremosnós para alcançar esses jardins de delícia, onderepousaremos nas realizações divinas do Cordeirode Deus ? ! Mas, para penetrar essas maravilhas ,

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temos de início o trabalho de aperfeiçoamento in-terior, iluminando a consciência com a exemplifi-cação do Divino Mestre! Havia no olhar do Irmão Marinho um clarãosublimado, como se os olhos mortais estivessemdescansando nesse país da luz, formoso e fulgu-rante, que as suas promessas evangélicas descre-viam. Lágrimas serenas deslizavam-lhe dos olhoscalmos. selando a verdade das suas palavras. Helvídio Lucius chorava, sensibilizado, sentindoque as sagradas emoções da jovem lhe invadiamigualmente o coração, num divino contágio. - Irmão Marinho - disse a custo -, pres-sinto a realidade luminosa dos vossos conceitos epor isso trabalharei indefessamente, a fim de obtera precisa paz de consciência e poder meditar namorte, com a beleza de vossas concepções. Prati-carei o bem, doravante, sob todos os aspectos epor todos os meios ao meu alcance, e espero queJesus se apiede de mim. - Certo, o Divino Mestre nos ajudará - con-cluiu a jovem, acariciando-lhe os cabelos brancos. A noite ia adiantada e Célia, deixando o cora-ção paterno banhado de consoladoras esperanças,recolheu-se a um mísero cubículo, onde, desfeitaem pranto, rogou a Cneio Lucius a esclarecessenaquele transe difícil, por isso que o afeto filialse apossava de suas fibras mais sensíveis. Sorrindo piedoso e calmo, o Espírito do velhi-nho correspondeu-lhe às súplicas, dizendo do seuintenso agradecimento a Deus, por ver o filho entreas luzes cristas, mas advertindo que a revelaçãoda sua identidade filial era, naquelas circunstân-cias, inaproveitável e extemporânea, e encarecendoaos seus olhos a delicadeza da situação e as reali-

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zações do porvir. Fortalecida e encorajada, Célia preparou a pri-meira refeição da manhã, que o tribuno ingeriu,sentindo um novo sabor e experimentando as me-lhores disposições para enfrentar de novo a vida. Sabendo da sua antigs predileção pelo ambien-te rural, o Irmão Marinho levou-o a visitar o hortoextenso, onde, à custa de seus esforços e trabalhosingentes, o mosteiro de Epifânio possuía um ver-dadeiro parque de produção sadia e sem preço. Nos grandes talhões da terra, elevavam-se ár-vores frutíferas, cultivadas com esmero, salientan-do-se as seções de legumes e a zona bem cuidadaonde se alinhavam animais domésticos. Sob as ra-magens frondosas descansavam cabras mansas, aconfundirem-se com as ovelhas de lã clara e macia.Além, pastavam jumentas tranquilas e, de quandoem quando, nuvens de pombos passavam alto emrevoada alegre. Entre as verduras, brincavam osfios móveis de um grande regato e, em tudo, obser-vava Helvídio Lucius cuidadosa limpeza, convidan-do o homem à vida bucólica, simples e generosa. De espaço a espaço, encontravam um velhinhohumilde ou uma criança sadia, que o Irmão Mari-nho saudava com um gesto de ternura e bondade. Fundamente impressionado com o que via, ofilho de Cneio Lucius acentuou, comovidamente : - Este horto maravilhoso dá-me a impressãode um quadro bíblico! Entre estas árvores respiroo ar balsâmico, como se o campo aqui me falassemais intimamente à alma ! Esclarecei-me ! Quais osvossos elementos de trabalho ? Quanto pagais aostrabalhadores dedicados, que devem ser os vossosauxiliares ?.. - Nada pago, meu bom amigo, cultivo este

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horto há muitos anos e é daqui que se abasteceo mosteiro, do qual tenho sido modesto jardineiro.Não tenho empregados. Meus auxiliares são anti-gos moradores da vizinhança, que me ajudam gra-ciosamente, quando podem dispor de alguma folga.Os demais, são crianças da minha modesta escola, fundada há mais de cinco anos para satisfazer as necessidades da infância desvalida, dos povoados mais próximos !... - Mas, que segredo haverá nestas paragens- exclamou Helvídio respirando a longos haus-tos -, para que a terra se mostre tão dadivosa eexuberante ? - Não sei - disse o Irmão dos pobres, comsingeleza -, aqui tão somente amamos muito aterra! Nossas árvores frutíferas nunca são corta-das, para que recebamos as suas dádivas e as suasflores. Os cordeiros nos dão a lâ preciosa, as cabrase as jumentas o leite nutritivo, mas não os deixa-mos matar, nunca. As laranjeiras e oliveiras são asnossas melhores amigas. As vezes, é à sua sombraque fazemos nossas preces, nos dias de repouso.Somos, aqui, uma grande família. E os nossos la-ços de afeto são extensivos à Natureza. Fornecendo as explicações que Helvídio acei-tava atenciosamente, enumerava fatos e descreviaepisódios de sua observação e experiência próprias,imprimindo em cada palavra o cunho de amor esimplicidade do seu espírito. - Um dia - explicou com um sorriso infantil- observamos que os cabritos mais idosos gosta-vam de perseguir os cordeirinhos mansos e peque-ninos. Então, as crianças da escola, recordando queJesus tudo obtinha pela brandura do ensinamento,resolveram auxiliar-me na criação das ovelhas edas cabras, construindo para isso um só redil...

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Ainda pequenos, uns e outros, filhos de mães dife-rentes, eram reunidos em todos os lugares e, como amparo dos meninos, levados às nossas preces eaulas ao ar livre. As crianças sempre acreditaramque as lições de Jesus deviam sensibilizar os pró-prios animais e eu as tenho deixado alimentar essaconvicção encantadora e suave. O resultado foique os cabritos brigões desapareceram. Desde en-tão o redil foi um ninho de harmonia. Crescendojuntos, comendo a mesma relva e sentindo semprea mesma companhia, uns e outros eliminaram asinstintivas aversões!... Por mim, observando essaslições de cada instante, fico a pensar como seráfeliz a coletividade humana quando todos os ho-mens compreenderem e praticarem o Evangelho?... O tribuno ouviu a historieta na sua radiosasimplicidade, com lágrimas nos olhos. Fixando o interlocutor, Helvídio Lucius acen-tuou, deixando transparecer um brilho novo no olhar: - Irmão Marinho, estou compreendendo, ago-ra, a exuberância da terra e a maravilha da pai-sagem. Todos esses feitos são um milagre do de-votamento com que vindes consagrando todas asenergias à terra benfazeja. Tendes amado muitoe isso é essencial. Por muitos anos, fui tambémhomem do campo, mas, até agora, venho exploran-do o solo apenas com o interesse comercial. Agoracompreendo que, doravante, devo amar também aterra, se algum dia regressar à lavoura. Hoje entendo que tudo no mundo é amor e tudo exige amor. A jovem ouvia as considerações paternas, enlevada nas suas esperanças. Três dias ali ficou Helvídio Lucius, a edifi-car-se naquela paz inalterável. Horas de tranqui-lidade suave, em que todas as amarguras terrestres

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como por encanto se lhe aquietavam no íntimo docoração entristecido. Por vezes, Célia teve ímpetos de lhe comunicaras carinhosas emoções do seu coração filial e, con-tudo estranha força parecia coarctar-lhe a vonta-de, dando-lhe a entender que ainda era prematuraqualquer revelação. Por fim, ao despedir-se, mais fortalecido e con-fortado, o tribuno falou : - Irmão Marinho, parto com o espírito tocadode novas disposições e de outras energias paraenfrentar a luta e as tristes expiações que me com-petem na Terra!.. Rogai a Deus por mim, pedia Jesus que eu tenha o ensejo e a força de pôrem prática os vossos conselhos. Volto a Roma coma idéia do bem a cantar-me nalma. Seguirei vossassugestões em todos os passos e, nesse escopo, ébem possível que o Senhor satisfaça as minhasjustas aspirações paternas. Logo que possa, re-gressarei para abraçar-vos !... Jamais poderei es-quecer o bem que me fizestes ! Ela tomou-lhe, então, a destra e beijou-a deolhos úmidos, enquanto o tribuno considerava, co-movido, aquele gesto de humildade. Ansiosamente, deteve-se a contemplar o carroque o transportava, de volta a Alexandria, até queele se sumisse ao longe, numa nuvem de pó. Fechando-se então, no seu cubículo, abriu umapequena caixa de madeira trazida de Minturnes, naqual guardava a túnica com que saíra de casa nodia amargurado do seu exílio. Entre as poucaspeças, repousava a pérola que o pai lhe trouxerada Fócida, única jóia que lhe ficara, depois de to-talmente espoliada pela criminosa ambição de Ha-téria. E revirava nas mãos, entre lágrimas, os obje-

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tos antigos e simples de suas cariciosas lembranças. Elevando-se, em prece a Deus, rogou não lhefaltassem as energias indispensáveis ao cumprimen-to integral de sua missão. Quanto a Helvídio Lucius, de regresso, sentia--se como que banhado numa corrente de pensamen-tos novos. O Irmão Marinho, a seus olhos, era um símboloperfeito dos dias apostólicos, quando os seguidoresde Jesus operavam no mundo, em seu nome. Desembarcando em Nápoles, dirigiu-se para Cá-pua, onde foi recebido pelos filhos com excepcionaisdemonstrações de carinho. Caio e a esposa exultaram com as suas me-lhoras físicas e espirituais, apenas estranhando queregressasse do Egito com tantas idéias de caridadee beneficência. Depois de esclarecê-los, quanto ao Irmão Ma-rinho e à fascinação que ele exercera no seu espí-rito, Helvídio Lucius acentuou : - Filhos, sinto que não poderei viver muitotempo e quero morrer de conformidade com a dou-trina que abracei de coração. Voltarei agora aRoma e tratarei de preparar o porvir espiritual,conforme as minhas novas concepções. Espero queme não contrariem os últimos desejos. Dividirei nos-sos bens e a terça parte ser-lhes-á entregue emtempo oportuno. O restante, buscarei movimentarde acordo com a minha crença nova. Conto com oauxílio de ambos, neste particular. No íntimo, Caio e Helvídia atribuíram a súbitatransformação paterna a sortilégio dos cristãos,que, a seu ver, teriam abusado da sua situação defraqueza e abatimento, em face dos muitos abalosmorais. Nada obstante, com a generosidade que a

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caracterizava, a esposa de Fabricius acentuou : - Meu pai, não ouso discutir vossos pontosde fé, pois, acima de qualquer controvérsia religio-sa, estão o nosso amor e o vosso bem-estar! Pro-cedei como melhor vos prouver. Financeiramente,não há preocupar-vos com o nosso futuro. Caioé trabalhador e eu não tenho grandes pretensões.Além do mais, os deuses velarão sempre por nós,como o têm feito até agora. Portanto, podereisagir, sempre confiante em nosso afeto e acatamen-to às vossas decisões. Helvídio Lucius abraçou a filha, em sinal dejúbilo pela sua compreensão, enquanto Caio, numsorriso, esboçava o seu assentimento. Voltando a Roma dos seus dias de triunfo emocidade, o orgulhoso patrício estava radicalmentetransformado. Seu primeiro ato de verdadeira con-versão a Jesus foi libertar todos os escravos dasua casa, providenciando solicitamente pelo futuro deles. Afrontando os perigos da situação política, nãofêz mistério de suas convicções religiosas, exaltavaas virtudes do Cristianismo nas esferas mais aris-tocráticas. Os amigos, porém, o ouviam penaliza-dos. Para os de sua esfera social, Helvídio Luciuspadecia as mais evidentes perturbações mentais,provenientes da tragédia dolorosa que lhe encherao lar de um luto perpétuo e angustioso. O tribuno,todavia, como se prescindisse de todas as honra-rias exigidas pelos de sua condição, parecia ina-cessível aos conceitos alheios e, com assombro detodas as suas relações, dispôs da maioria dos benspatrimoniais em obras piedosas, com as quais osórfãos e as viúvas se beneficiavam. Seus compa-nheiros humildes da Porta Ápia se regozijaram como ardor evangélico de que dava, agora, pleno tes-

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temunho, auxiliando-lhes os esforços e defenden-do-os publicamente. Não mais se entregou aos óciossociais, porquanto, às vezes, pela manhã, era vistono Esquilino ou na Suburra, no Trastevere ou noVelabro, buscando informações dessa ou daquelafamília de indigentes. Não só isso. Visitou os des-cendentes de Hatéria, procurou-a no intuito de per-doar-lhe, mas não encontrou sequer notícias, poisninguém conhecia o trágico fim da velhinha, ocorri-do no mesmo sentido oculto por ela utilizado paraa prática do mal. O tribuno, todavia, aproveitou aestada em Benevento para ensinar aos membrosdaquela família, que se considerava integrada nasua tutela, os métodos seguidos pelo Irmão Mari-nho no trato carinhoso da terra. Em seguida, ei-lona herdade de Caio Fabricius, onde assumiu volun-tàriamente a direção de numerosos serviços rurais,utilizando aqueles processos que jamais poderia es-quecer, tornando-se amado como um pai pelos querecebiam, de boa vontade, suas idéias novas e interessantes. Todavia, depois de tantos e benéficos labores,o antigo tribuno adoeceu, sobressaltando o coraçãodos filhos e dos amigos. Assim esteve um mês, combalido e padecente,quando um dia, melancólico e trêmulo, chamou afilha e lhe disse com a maior ternura: - Helvídia, sinto que meus dias neste mundoestão contados e desejava rever o Irmão Marinho,antes de morrer. Ela lhe fez sentir a inconveniência da viagem,mas o tribuno insistia com tanto empenho que aca-bou anuindo, com a condição de fazer-se acompa-nhar pelo genro. Helvídio Lucius recusou, porém,alegando não desejar interromper o ritmo domés-

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tico. Resolveram então, que seguisse acompanhado por dois servos de confiança, na previsão de qualquer eventualidade. Sentindo-se melhor com a consoladora perspec-tiva de voltar a Alexandria e rever os sítios ondelograra tanto conforto para o espírito abatido, otribuno preparou-se convenientemente, não obstan-te os temores da filha, que lhe beijou as mãos en-ternecida, de coração pressago, quando o viu partir. Helvídio Lucius estreitou-a nos braços com umolhar intraduzível, contemplando em seguida a pai-sagem rural, melancolicamente, como se quisesseguardar na retina um quadro precioso, observadopela última vez. Caio e sua mulher, a seu turno, não consegui-ram ocultar as lágrimas afetuosas. Com o espírito de resolução que o caracteri-zava, o filho de Cneio Lucius não se deu conta dostemores e inquietações dos filhos, partindo serena-mente, seguido pelos dois servos de Caio Fabricius,que o não abandonavam um só instante. Contudo, antes que a embarcação aproasse aAlexandria ele começou a sentir a recrudescênciado seu mal orgânico. A noite, não conseguia for-rar-se à dispnéia inflexível e, durante o dia, sentia--se tomado de profunda fraqueza. Fazia mais de um ano que conhecera de pertoo Irmão Marinho. Um ano mais, de trabalhos in-cessantes ao serviço da caridade evangélica. E Hel-vídio Lucius, que se deixara fascinar pelo espíritocarinhoso do irmão dos infortunados e humildes,não queria morrer sem lhe demonstrar que apro-veitara as lições sublimes. Não sabia explicar a sim-patia infinita que o monge lhe despertara. Sabia,tão somente, que o amava com arroubos paternais.Assim, vibrando de júbilo por haver aplicado os

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seus ensinamentos com dedicação e destemor, aguar-dava ansioso o instante de revê-lo e cientificá-lode todos os seus feitos, que, embora tardios, lhehaviam calmado extraordinàriamente o coração. De Alexandria ao mosteiro, viajou numa liteiraespecial, com o conforto possível. Ainda assim,chegou ao destino grandemente combalido. O Irmão Marinho, por sua vez, estava vivendoos derradeiros dias do seu apostolado. Os olhosse lhe havia tornado mais fundos e, no rosto,pairava uma expressão dolorosa e resignada, comose tivesse absoluta certeza do próximo fim. O reencontro de ambos foi uma cena comove-dora e tocante, porque Célia também esperava an-siosa o coração paterno, crente de que, em breve,partiria ao encontro dos entes queridos que a pre-cederam nas sombras do sepulcro. Havia meses,interrompera as prédicas porque todos os esfor-ços físicos lhe produziam hemoptises. Todavia, osestudos evangélicos continuavam sempre. Os Ir-mãos do mosteiro se incumbiram de prosseguir natarefa sagrada, e os velhos e as crianças substi-tuíam-na nos serviços do horto, onde as árvorescobriam-se de flores novamente. Foi debalde queEpifânio, então tocado pelos atos de sacrifício ehumildade daquela alma generosa, tentou levá-lapara um aposento confortável e lavado de Sol, nointerior do mosteiro, a fim de lhe atenuar os pade-cimentos. Ela preferiu a casinhola singela do hor-to, fazendo questão de ficar no insulamento dassuas meditações e das suas preces, convicta de queo pai voltaria e desejando revelar-se-lhe, antes de morrer. Era quase noite fechada quando o patrício lhebateu à porta, atormentado por singulares padeci-mentos.

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Recebeu-o com intenso júbilo, e, embora fra-quíssima, providenciou a acomodação imediata dosservos em singela dependência distante, logo vol-tando ao interior, onde Helvídio a esperava aflito,dado o agravo súbito de todos os seus males. Debalde lhe trouxe a jovem os recursos da suamedicina caseira, porque, de hora a hora, o tribunoexperimentava a dispneia, cada vez mais intensa,enquanto o coração lhe pulsava em ritmo precipitoso.. A noite ia adiantada quando Helvídio Lucius,fazendo a filha sentar-se junto dele, murmurou comdificuldade : - Irmão Marinho... não cuides mais do meucorpo... Tenho a impressão de estar vivendo osúltimos instantes... Guardava o secreto desejo demorrer aqui, ouvindo as vossas preces, que me en-sinaram a amar a Jesus... com mais carinho.. Célia começou a chorar amargamente, perce-bendo a realidade dolorosa. - Chorais ? ?.. sereis sempre o irmão... dosinfelizes e desditosos... Não me esqueçais nas vossas orações... E, lançando à filha um olhar inolvidável e tris-te, continuava na voz reticenciosa da agonia: - Quis voltar para dizer-vos que procurei pôrem prática as vossas lições sublimes. Sei que ou-trora fui um perverso, um orgulhoso... Fui peca-dor, Irmão, vivia longe da luz e... da verdade.Mas... desde que me fui daqui, tenho procuradoproceder conforme me ensinastes... Dispus da maiorparte dos bens em favor dos pobres e dos maisdesfavorecidos da sorte... Procurei proteger asfamílias desventuradas do Trastevere, busquei osórfãos e as viúvas do Esquilino... Proclamei minhacrença nova entre todos os amigos que me ridicu-lizaram... Doei uma casa aos companheiros de fé,

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que se reúnem perto da Porta Apia...Busqueitodos os meus inimigos e lhes pedi perdão parapoder repousar o pensamento atormentado... Per-manecendo muitos meses na herdade de meus fi-lhos, ensinei o Cristianismo aos escravos, dando--lhes notícias do vosso horto, onde a terra recebea mais elevada cooperação de amor... Então, viaque todos trabalhavam como me ensinastes... Emcada moeda que oferecia aos desgraçados, eu vosvia abençoando o meu gesto e a minha compreen-são... Não tenho coragem de me dirigir a Jesus...Sinto-me fraco e pequenino diante da sua gran-deza... Pensava assim em vós, que conheceis adolorosa história da minha vida... Pedireis pormim ao Divino Mestre, pois as vossas orações devemser ouvidas no Céu... Fizera uma pausa na exposição dolorosa, en-quanto a jovem se mantinha em silêncio, orandocom lágrimas. Sentando-se a custo, porém, o patrício tomou--lhe a destra e, fixando-lhe os olhos percucientes,continuou em voz entrecortada a revelar as suasderradeiras esperanças e desejos: - Irmão Marinho, tudo fiz com a mesma as-piração paterna de encontrar minha filha no planomaterial... Buscando os pobres e desamparadosda sorte, muitas vezes julguei encontrá-la, resti-tuída ao meu coração... Desde que me fiz adeptodo Senhor, creio firmemente na outra vida... Creioque encontrarei além do sepulcro todos os afetosque me antecederam no túmulo e quisera levar àminha companheira a certeza de haver reparadoos erros do passado doloroso...Minha esposa foi

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sempre ponderada e generosa e eu desejava levar-lhe a notícia...De haver reparado os impulsos doutros tempos, quando não sentia Jesus no coração... E como se desejasse mostrar o seu últimodesencanto, o moribundo concluía, depois de uma pausa: - Entretanto... Irmão... o Senhor não me considerou digno dessa alegria... Esperarei, então, o seu breve julgamento, com o mesmo remorso e com o mesmo arrependimento... Ante aquele ato de humildade suprema e desuprema esperança no Senhor Jesus, o Irmão Ma-rinho levantou-se e, fitando-o de olhos úmidos ebrilhantes, exclamou : - Vossa filha aqui está, esperando a vossavinda!... Haveis de reconhecer que Jesus ouviu asnossas súplicas !.. Helvídio despediu um olhar penetrante, cheiode amargura e de incredulidade, enquanto, pelas fa-ces pálidas, lhe escorria copioso o suor da agonia. - Esperai ! - disse a jovem num gesto cari-nhoso. E volvendo rápida ao interior, desfez-se doburel, e vestiu a velha túnica com que se ausentarado lar no momento crítico do seu doloroso destino,colocando ao peito a pérola da Fócida que o pailhe ofertara na véspera do angustioso aconteci-mento. E dando aos cabelos o seu penteado antigo,penetrou no quarto ansiosamente, enquanto o mo-ribundo verificava a sua metamorfose, assomadode espanto. - Meu pai ! meu pai !... - murmurou enla-çando-lhe o busto, com ternura, como se naqueleinstante conseguisse realizar todas as esperançasda sua vida. Mas, Helvídio Lucius, com a fronte empastadade álgido suor, não teve forças para externar a

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alegria íntima, colhido de surpresa e assombro in-definíveis. Quis abraçar-se à filha idolatrada, bei-jar-lhe as mãos e pedir-lhe perdão, na sua alegriasuprema. Desejava ter voz para dizer do júbiloque lhe dominava o coração paterno, inquirindo-ae expondo-lhe os seus sofrimentos inenarráveis.A alegria intensa havia rompido, porém, as suasderradeiras possibilidades verbais. Apenas os olhos,percucientes e lúcidos, refletiam-lhe o estado dalma,dando conta da sua emoção indescritível. Lágrimassilenciosas começaram a rolar-lhe pelas faces descarnadas, enquanto Célia o osculava, murmurando ternamente : - Meu pai, do seu reino de misericórdia Jesusouviu as nossas preces ! Eis-me aqui. Sou vossafilha !... Nunca deixei de vos amar !... E como se quisesse identificar-se por todos osmodos aos olhos paternais, no instante supremo, acrescentava: - Não me reconheceis? Vede esta túnica! Éa mesma com que saí de casa no dia doloroso...Vedes esta pérola? É a mesma que me destes navéspera de nossas provações angustiosas e rudes...Louvado seja o Senhor que nos reúne aqui, nestahora de dor e de verdade. Perdoai-me se fui obri-gada a adotar uma indumentária diferente, a fimde enfrentar a minha nova vida! Precisei dessesrecursos para defender-me das tentações e furtar--me à concupiscência dos homens inferiores !... Des-de que saí do lar, tenho empregado o tempo emhonrar o vosso nome... Que desejais vos diga ain-da, por demonstrar minha afeição e meu amor?.. Mas, Helvídio Lucius sentia que misteriosaforça o arrebatava do corpo; uma sensação desconhecida lhe vibrava no íntimo, envolvia-o numa atmosfera glacial.

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Ainda tentou falar, mas as cordas vocais estavam hirtas. A língua paralisara na boca intumescida. Todavia, atestando os profundos sentimentos que lhe vibravam no coração, vertia copiosas lá-grimas, envolvendo a filha adorada num olhar amo-roso e indefinível. Esboçou um gesto supremo, de-sejando levar as mãos de Célia aos lábios, masfoi ela quem, adivinhando-lhe a intenção, tomou-lheas mãos inertes, frias, e osculou-as longamente.Depois, beijou-lhe a fronte, tomada de imensa ter-nura !... Ajoelhando-se em seguida, rogou ao Senhor,em voz alta, recebesse o espírito generoso do pai,no seu reino de amor e de bondade infinita !... Com lágrimas de afeto e de agradecimento aoAltíssimo, cerrou-lhe as pálpebras no derradeirosono, observando que a fisionomia do tribuno es-tava, agora, nimbada de paz e serenidade. Por instantes permaneceu genuflexa e viu queo ambiente se enchera de numerosas entidades de-sencarnadas, entre as quais se destacavam os perfisde sua mãe e do avô, que ali permaneciam de sem-blante calmo e radiante, estendendo-lhe os braços generosos. Figurou-se-lhe que todos os amigos do tribunoestavam presentes no instante extremo, a fim delhe escoltar a alma regenerada, aos luminosos pá-ramos do Cordeiro de Deus. Aos primeiros clarões da aurora, deu as ne-cessárias providências, solicitando a presença dosservos do morto, que acorreram pressurosos ao chamado. Novamente reintegrada no seu hábito de monge, Célia encaminhou-se ao mosteiro e comunicou o fato à autoridade superior, rogando providências. Todos, inclusive o próprio Epifânio, auxiliaramo Irmão Marinho na solução do assunto.

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Os serviçais de Caio Fabricius explicaram, porém, que seus patrões, em Cápua, estavam certosde que o viajante não poderia resistir aos percalçosda viagem mais que penosa, e os haviam esclare-cido sobre as personalidades a quem se deveriamdirigir em Alexandria, para que os despojos vol-tassem à Campânia, caso o tribuno falecesse. E assim, de manhã bem cedo, um grupo dequatro homens, inclusive os dois servos aludidos,transportavam o cadáver de Helvídio Lucius paraa cidade próxima. Encostada à porta da sua choupana e ante oolhar dos irmãos do mosteiro que a acompanha-vam, Célia contemplou a liteira fúnebre até quedesaparecesse ao longe, entre nuvens de pó. Quando o grupo desapareceu nas derradeirascurvas da estrada, Célia sentiu-se só e abandonada,como nunca. A revivescência da afeição paterna,em tais circunstâncias, lhe havia trazido amargu-rosa tristeza. Jamais a angústia do mundo se apos-sara tão fortemente de sua alma. Buscou o refú-gio da prece e, todavia, figurou-se-lhe que as maispesadas sombras lhe haviam invadido o ser. Nãotinha desesperado o coração, nem o senso do infor-túnio lhe consentia queixumes e lamentações. Mas,uma saudade singular dos seus mortos bem-ama-dos enchia-lhe, agora, o coração, de um como filtromisterioso de indiferentismo para o mundo. Co-meçou a fixar o pensamento em Jesus, mas, embreve, as rosas de sangue começaram a brotar desua boca, num fluxo contínuo. Alguns irmãos amigos acercaram-se, enquantoEpifânio, tocado no mais fundo do coração, man-dava transferi-la para o mosteiro com a maior so-licitude.

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De nada valeram, porém, os recursos médicose as supremas dedicações da extrema hora. As hemoptises se prolongavam, assustadora-mente, sem ensejarem qualquer esperança. Na sua velhice cheia de unção e arrependimen-to, o superior tudo envidava para restituir a saúdeao jovem monge, cujas virtudes se impuseram comosímbolo de amor e de trabalho... Dois dias se passaram, de angústia infinita. Durante aquelas horas torturantes, Epifâniodeu ordem para que as visitas fossem recebidas.Pela primeira vez, as portas do convento se abri-ram para os populares e os velhinhos das redonde-zas se aproximaram do Irmão Marinho, cheios delágrimas sinceras. Um a um, acercaram-se da jovem, beijando-lheas mãos trêmulas e descarnadas. - Irmão Marinho - dizia um deles -, tu nãodeverias morrer !.. Se partires agora, quem en-sinará o bom caminho às nossas filhas? - E quem ensinará o Evangelho aos nossosnetos? - clama um outro, disfarçando as lágrimas. Mas a jovem, de olhar firme e sereno, excla-mava com bondade : - Ninguém morre, meus irmãos! Não nos pro-meteu Jesus a vida eterna?... Para cada qual, tinha um olhar de ternura ea luz cariciosa de um sorriso. Na noite imediata agravaram-se de maneiraatroz os seus padecimentos. Compreendendo que o fim se aproximava, ovelho Epifânio perguntou-lhe algo, quanto aos seusúltimos desejos, e ela, erguendo para o superior oolhar sereno, acentuou : - Meu pai, rogo que me perdoeis se alguma

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vez vos ofendi por atos ou por palavras!... Oraipor mim, para que Deus tenha compaixão de mi-nha alma... e se é permitido pedir-vos alguma coi-sa... desejo ver as crianças da escola, antes de morrer... Epifânio ocultou as lágrimas levando as mãosao rosto, e, antes do amanhecer, três irmãos saírampelos povoados mais próximos, a fim de reunir ospequeninos, por satisfazer os últimos desejos da agonizante. Depois do meio-dia, todas as crianças da escola penetraram o quarto, respeitosas. O Irmão Marinho, contudo, recostado nas al-mofadas, enviava-lhes um sorriso bom e compassi-vo, embora o peito lhe arfasse penosamente. Num gesto extremo chamou-as a si, inquirindoa cada uma sobre os estudos, o trabalho, a escola... Os meninos, mal percebendo a hora dolorosa,sentiam-se à vontade, enquanto Célia lhes sorria. - Irmão Marinho - dizia um pequenote deolhos graves -, todos nós, lá em casa, temos pedido a Deus pelas vossas melhoras ! - Obrigado, meu filho !... - dizia a agoni-zante, fazendo o possível por dissimular os sofrimentos. Em seguida, era uma pequenina interessante no seu vestidinho pobre, a balbuciar em tom dis- creto : - Irmão Marinho, pai Epifânio não deixou que eu plantasse a roseira ao pé do redil e me re- preendeu àsperamente. - Que tem isso, filhinha?... Pai Epifânio tem razão... o redil não é lugar das flores... Plan- tarás a roseira nova perto da janela. Lá ela rece- berá mais Sol... E tu darás ao pai Epifânio a primeira flor.. - Olha, Irmão - repetia outro pequenito de cabelos despenteados -, as ovelhas esta noite nos

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deram dois novos cordeirinhos. - Tratarás deles, meu filho !... - dizia a jovem com dificuldade. - Irmão - exclamava outro menino -, tenhorogado a Jesus que te devolva a saúde preciosa. - Meu filho... - dizia a agonizante -, nós não devemos pedir ao Senhor isso ou aquilo, e sim a compreensão de sua vontade que é soberana e justa.. Mas, em face da inquietude infantil que a ro- deava, exclamou, desejando concentrar as derradei- ras energias para a prece: - Filhinhos... cantem... para mim... Entre as crianças deu-se ligeiro tumulto, quan- to à escolha do hino a ser cantado. Foi, então, que uma pequenita lembrou que o Sol se preparava para mergulhar no horizonte. fa- zendo sentir aos companheiros que, nessa hora, o Irmão Marinho preferira sempre o "Hino do En- tardecer", ensinado a todos com carinho fraternal. Então, todos, de mãos dadas, rodearam o leito, no qual a enferma oferecia a Deus os seus derra- deiros pensamentos, enquanto todos os irmãos da comunidade observavam, chorando, à distância, a cena comovedora e dolorosa. Mais alguns minutos e elevaram-se aos céus as notas cristalinas do cântico singelo: Louvado sejas, Jesus! Na aurora cheia de orvalho, Que traz o dia, o trabalho, Em que andamos a aprender. Louvado sejas, Senhor! Pela luz das horas calmas, Que adormenta as nossas almas No instante do entardecer... O campo repousa em preces,

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O céu formoso cintila, E a nossa crença tranqüila Repousa no teu amor; É a hora da tua bênção Nas luzes da Natureza, Que nos conduz à beleza Do plano consolador. É nesta hora divina, Que o teu amor grande e augusto Dá paz à mente do justo, Alívio e conforto à dor! Amado Mestre abençoa A nossa prece singela, Faze luz sobre a procela Do coração pecador! Vem a nós! Do céu ditoso Ampara a nossa esperança, Temos sede de bonança, De amor, de vida e de luz! Na tarde feita de calma, Sentimos que és nosso abrigo, Queremos viver contigo, Vem até nós, meu Jesus!.. Célia ouvia o hino das crianças, em seus últi-mos acordes. Figurou-se-lhe que a sala humildeestava povoada de artistas inimitáveis. Eram todosjovens graciosos e crianças risonhas, que empu-nhavam flautas e harpas siderais, alaúdes e tim-bales divinos. Desejou contemplar os meninos dasua escola humilde e falar-lhes, mais uma vez, dasua alegria infinda, mas, ao mesmo tempo, sentiu--se rodeada de seres carinhosos que, sorridentes,lhe estendiam os braços. Ali estavam seus pais,o venerando avô, Nestório, Hatéria, Lésio Munácioe a figura encantadora de Ciro, como que envolta

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num peplo de neve translúcida... A um gesto daamorável entidade Cneio Lucius, Ciro avançavaestendendo-lhe os braços. Era o gesto de carinho que o seu coração esperara toda a vida!... Quis falar da sua felicidade e gratidão ao Senhor dos Mundos, mas, sentia-se exausta, como se chegassede uma luta extenuante. Guardando-lhe a fronte nas mãos, sob a mú-sica do carinho, Ciro lhe dizia de olhos úmidos : - Ouve, Célia! Este é um dos sublimes can-tos de amor, que te consagram na Terra! Ela não viu que as crianças ansiosas lhe co-briam de lágrimas as mãos imóveis e alvas, abra-çando ternamente o seu cadáver de neve... A umsó tempo, todos os irmãos do mosteiro se lançaramcomovidos para os seus despojos, ao passo que, noplano invisível, um grupo de entidades amigas ecarinhosas conduzia numa onda de luz e perfumes,aos páramos do Infinito, aquela alma ditosa demártir.

Nas Esferas Espirituais

Prestando as derradeiras homenagens ao IrmãoMarinho, os religiosos do mosteiro conheceram averdade dolorosa. Só então, certificaram-se de queo caluniado irmão dos pobres e da infância desva-lida era uma virgem cristã, que exemplificava, entreeles, as mais elevadas virtudes evangélicas. Diante do fato imprevisto e passada a como-ção do espanto, todos os monges inclusive Epifânio,se prosternavam humildes, banhados no pranto dacompunção e do arrependimento. Debalde procuraram investigar a origem e an-tecedentes da jovem mártir, para só conservaremda sua pessoa e dos seus feitos imorredoura lem-

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brança, a fim de poderem, mais tarde, justificar asua exemplificação santificante. Cheio de amargura, o velho superior da comu-nidade reclamou a presença de Menênio Túlio e dafilha, para que se esclarecesse a pérfida calúnia,mas, ante o cadáver da virgem cristã e recordandoa sua humildade, Brunehilda perdeu a razão, parasempre. Nunca mais a figura de Célia foi olvidada pelosreligiosos, pelos crentes, pelos desventurados e pelosaflitos. Convertida em símbolo de amor e piedade,sua memória centralizou, nos arredores de Alexan-dria, os votos e rogativas das almas fervorosas e sinceras. Mas, acompanhando nossas principais perso-nagens à vida do além-túmulo, antes de iniciaremnovas lutas remissoras, vamos encontrá-las em gru-pos dispersos, conforme o seu estado consciencial,às vésperas de regressarem, convocadas ao esforçocoletivo nos sagrados institutos da família. A exceção de Célia, chamada a um mundo su-perior, onde lhe foi concedida a tarefa de velarpela evolução dos seus entes bem-amados, os de-mais permaneciam nas esferas mais próximas daTerra, regiões de trabalho e de luta, buscando cadaqual armazenar energias novas para subseqüentesesforços no plano material. De todo o grupo, as personalidades de CláudiaSabina, Lólio Úrbico, Fábio Cornélio e Silano Plau-tius eram as que se conservavam nas regiões maisrasas e mais sombrias, atento o doloroso estado deconsciência que as caracterizava. Em esferas mais elevadas, Helvídio Lucius jun-to de quantos lhe foram familiares, inclusive Ciro,repousavam do trabalho, esforçando-se, em conjunto, por fixar as bases espirituais, asseguradoras de êxito futuro.

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Algumas personagens, como Nestório e Poli-carpo, faziam grandes excursões pelos arredoressombrios do planeta, cooperando com os mensagei-ros de Jesus, que pregavam a Boa Nova aos espí-ritos desalentados e sofredores, levando a efeitoo mais sadio aprendizado evangélico para as lutasdo futuro nos ambientes terrenos, onde prossegui-riam, mais tarde, no abençoado labor de redençãodo passado culposo. A vida cariciosa do plano espiritual constituía,para todos, um conforto suave. Continuamente, os grandes portadores das de-terminações divinas ensinavam aí as verdades doMestre, enchendo os corações de paz e de esperança. As almas afins, reunidas em grupos familiares,sabem apreciar, fora das vibrações pesadas do mun-do físico, os bens supremos da verdade e da paz,sob os laços sublimes do amor e da sabedoria. Examinadas as disposições felizes dessas es-feras, cuja intimidade encantadora não poderemosdescrever aos leitores humanos, vamos encontrar oagrupamento de Cneio Lucius na região de repou-so em que todas as nossas personagens se encon-travam, embaladas na carícia suave de numerososafetos dos séculos longínquos. Tudo era uma carinhosa esperança nos coraçõese um generoso propósito nas almas. Os nobres projetos, com vistas ao porvir, su-cediam-se uns aos outros. No grupo em que a tranqüilidade se estam-pava no espírito de todos os componentes, espera-va-se Júlia Spinter que, em companhia de Nestório,descera aos ambientes inferiores do orbe terrestre,tentando acordar com o seu amor os sentimentosentorpecidos do companheiro, que se mantinha nas

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mesmas atitudes de ódio e vingança. - É inútil - dizia Cneio Lucius, bondosa-mente, dirigindo-se aos filhos e aos amigos -, éinútil mantermos propósitos de vindita depois daslutas terrestres, pois a reencarnação, nesse caso,soluciona todos os problemas ! Na minha últimaida a Roma, tive ocasião de ver o Imperador ÉlioAdriano no corpo miserável do filhinho de uma es-crava. Desde essa hora, tenho ponderado bastanteos nossos deveres e a necessidade de recebermoscom o maior amor a vontade divina. - Sim - exclamava Lésio Munácio, então pre-sente -, nas minhas excursões evangélicas pelaszonas inferiores, tenho encontrado antigos nobresde nossa época, que suplicam a Deus uma novaoportunidade na Terra, sem escolherem as condi-ções do futuro aprendizado. - O conhecimento no Espaço - aventava Hel-vídio Lucius - parece que nos enche o coraçãode profunda dedicação pelo sofrimento. Em faceda grandeza divina e reconhecendo, aqui, a nossainsignificância, sentimo-nos capazes de todas astarefas de redenção, porquanto, agora, aos nossosolhos, os maiores feitos da Terra são ações humil-des e pequeninas. - Grande é a misericórdia de Jesus - diziaCneio - que nos concedeu os patrimônios da vida eterna. Enquanto a conversação ia animada com oconcurso de Alba Lucínia e da sua antiga serva,regressaram Nestório e Júlia Spinter da sua excur-são de amor e de fraternidade. A velha matrona trazia o semblante contrafeito,fornecendo aos companheiros o testemunho de suaamargura e de suas lágrimas. - Então, minha mãe - exclamou Lucínia,

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abraçando-a, ao mesmo tempo que usava a linguagem amiga e carinhosa da Terra -, conseguiste alguma coisa?... - Por enquanto, filhinha - retrucava JúliaSpinter enxugando as lágrimas -, todos os meusesforços resultam inúteis. Infelizmente, Fábio nãotrabalha, intimamente, por adquirir a suprema com-preensão das grandes leis da vida. Encarceradonos seus pensamentos tristes, não cede, absoluta-mente, às minhas súplicas !... - Entretanto - elucidava Nestório aos com-panheiros, que lhe ouviam a palavra com inte-resse -, Policarpo já se prepara, junto de quantoso acompanham na luta, para a próxima reencar-nação coletiva. A nossa não poderá tardar muito.O único obstáculo que parece retardar nossa mar-cha é a ausência de uma compreensão perfeitadaquele inolvidável ensinamento de Jesus, quantoao perdão de setenta vezes sete vezes. - Bastaria perdoarmos para que o Senhornos permitisse voltar ao trabalho santificante? -perguntou Cneio Lucius, intencionalmente. - Sim - esclarecia Nestório na sua fé -, operdão sincero é uma grande conquista da alma. Nesse comenos, Cneio Lucius preparava os fi-lhos que se entreolhavam com alguma tristeza, peladificuldade que tinham em esquecer os atos de Ló-lio Úrbico e de Cláudia Sabina. - De minha parte - dizia Júlia Spinter re-signada -, não tenho coisa alguma a perdoar aosoutros. Desde a minha desencarnação roguei insis-tentemente a Jesus que me fizesse esquecer todasas expressões de orgulho e amor-próprio. - Muito bem, minha irmâ - advertia Cneiocom um sorriso sereno -, um coração feminino éinacessível aos sentimentos de ódio e represália.

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E como percebera que os presentes relembra-vam, no íntimo, os atos de Cláudia, em face de suaalusão generalizada, acrescentou com bondade : - A mulher que odeia é uma dolorosá exce-ção no caminho da vida, pois Deus confiou às almasfemininas o seu ministério mais santo, no seio dacriação infinita! Todos compreenderam os seus generosos pen-samentos e louvavam as suas idéias fraternais,quando Hatéria murmurou : - Tenho suplicado ao Senhor dos Mundos queme faça digna de viver junto de Cneio Lucius nosmeus próximos trabalhos. - Ora, filha - retrucou o ancião com um sor-riso -, bem sei que nada valho, mas terei imensojúbilo se te puder ser útil alguma vez... Apenaste recomendo que, de futuro, deves temer o dinhei-ro como o pior inimigo da nossa tranquilidade. Todos sorriram a essa alusão e a palestra con-tinuou animada. Algum tempo se passou, ainda, enquanto oscorações das nossas personagens se retemperavamnas idéias do amor e do bem, da fraternidade e daluz, esperando as novas lutas. Um dia, porém, um mensageiro das alturas veioconvocar o grupo de Cneio Lucius a comparecerperante os numes tutelares que lhe presidiam osdestinos, de modo a efetuar-se a livre escolha dasprovações futuras. Examinados os projetos de esforço, com a livrecooperação de todos os que se achavam em con-dições evolutivas, imprescindíveis ao ato de reso-lução e de escolha, na esfera da responsabilidadeindividual, o grupo de Cneio Lucius continuava aguardando as determinações superiores para regressar à Terra.

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De vez em quando, observavam-se, entre asnossas personagens, pequeninas impressões como estas: - Uma das situações que mais receio - ex-clamava Helvídio Lucius - é a vida em comumcom Lólio Úrbico, pois temo que ele reincida nastendências inferiores da sua personalidade. - Convencê-lo-emos pela dedicação e pelo amor- esclarecia Alba Lucínia. - Tenho suplicado aJesus que nos conceda forças para tanto e estareiconstantemente ao teu lado, a fim de podermostransfundir os seus sentimentos em fraternidade eafeição espiritual. - Sim, meus filhos - ponderava o experientee generoso Cneio Lucius -, precisamos amar muito !Somente com a renúncia sincera poderemos alcan-çar o reino de luz, prometido pelo Salvador. Entretodos os que ficarão sob a nossa responsabilidade,no porvir, uma alma existe, credora da nossa com-paixão mais profunda!.. E como Helvídio e a companheira silencias-sem, adivinhando-lhe os pensamentos, o ancião con-tinuou : - Refiro-me a Cláudia Sabina, que ainda temo coração como um deserto árido. As últimas visi-tas que lhe fiz, na região das sombras, deixaram--me envolto num véu de amargura!... Remorsosterríveis transformaram-lhe o mundo psíquico numcaos de angustiosas perturbações ! Debalde lhe te-nho falado de Deus e de sua inesgotável miseri-córdia, porquanto, na caligem de seus pensamentos,não consegue perceber as nossas advertências con-soladoras. Alba Lucínia e o companheiro ouviram-no co-movidos e, todavia, abstiveram-se de comentar odoloroso assunto.

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Hatéria, entretanto, que lhe bebia àvidamenteas palavras, objetou, deixando entrever os amargosreceios que lhe povoavam a mente: - Meu generoso protetor, já fui notificada deque o meu roteiro de lutas se verificará em linhasparalelas ao de Cláudia Sabina, em vista de meuserros imperdoáveis; contudo, suplico o vosso am-paro, apesar das novas energias que me felicitama alma. Cláudia é autoritária e insinuante e, sehoje se encontra acabrunhada e ensandecida, emvirtude dos sofrimentos no plano invisível, não du-vido que, novamente na Terra, procure retomar asua feição de orgulho e mandonismo. - Filha - ponderava o ancião com um levesorriso -, Jesus velará por nós, concedendo-nos a força precisa para o desempenho dos nossos deveres mais sagrados. Júlia Spinter acompanhava as impressões detodos com amoroso interesse e exclamava, por vezes: - Eu tudo daria por cultivar em nosso meio,no porvir que se aproxima, a paz perpétua e aharmonia duradoura. Repararei minhas faltas dopassado, buscando compreender a essência do Cris-tianismo, para cuja luz eterna hei-de conduzir ocoração de Fábio, com o amparo do Cordeiro deDeus que há-de ouvir minhas sinceras rogativas.. A vida do grupo do venerando Cneio Luciusdecorria, assim, em expectativas promissoras parao futuro. Cada qual, erguendo muito alto o cora-ção, buscava apreender, cada vez mais e melhor,os ensinamentos de Jesus, de modo a recordar asua claridade sublime entre as sombras espessas da Terra. Os grupos afins de Policarpo e de Lésio Mu-nácio já haviam regressado aos labores do mundo,quando as nossas personagens foram chamadas àdeterminação superior, a fim de baixarem aos tor-

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mentos e lutas purificadoras do ambiente terrestre. Tomados de veneração e de esperança, acomo-daram-se perante os executores da justiça divina,enquanto ao seu lado estacionava quase uma cen-tena de companheiros, incluindo escravos, serviçaise amigos de outrora. No recinto espiritual, de beleza maravilhosa,intraduzível na pobre linguagem humana, havia acariciosa vibração de uma prece coletiva, que seescapava de todos os peitos, plenos de receio e de esperança. - Irmãos - começou de dizer um mentor di-vino, a cuja responsabilidade estava afeta a dire-ção daquele amistoso conclave -, breve estareis denovo na Terra, onde sereis convocados a praticaros divinos ensinamentos adquiridos no plano espi-ritual !... Agradeçamos à misericórdia do Senhor,que nos concede as preciosas oportunidades do tra-balho a favor de nossa própria redenção, em mar-cha incessante para o amor e para a sabedoria.Vós que partis, amai a luta redentora, como sedeve amar uma alvorada divina! Aqui, sob a luzda bondade infinita do Cordeiro de Deus, a almaegressa do mundo pode descansar de suas profun-das mágoas. Os corações ulcerados se retemperamjunto à fonte inesgotável do consolo evangélico;mas, acima de nossas frontes, há um reino de amorperene e de paz inolvidável, que necessitamos con-quistar com os mais altos valores da consciência !Adquiristes aqui os mais elevados conhecimentos,em matéria de sabedoria e amor; experimentasteso bafejo de sublimes consolações, como somentepoderá senti-las o Espírito liberto das sombras eangústias materiais; observastes a beleza e a ven-tura que aguardam, no Infinito, as almas redimi-das; todavia, é necessário regressardes à carne

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a fim de poderdes experimentar o valor do vossoaprendizado ! É na Terra, escola dolorosa e ben-dita da alma, que se desdobra o campo imenso denossas realizações. Os erros de outrora devem serreparados lá mesmo, entre as suas sombras angus-tiosas e espessas !... Enquanto se reparam, na suasuperfície, os desvios das épocas remotas, faz-semister aplicar nas suas estradas sombrias os ensi-namentos recebidos do Alto, em virtude do acrés-cimo de misericórdia de Jesus, que não nos desam-para. Na Terra está o aprendizado melhor, e aquivigora o exame elevado e justo. Lá é a sementei-ra, aqui a colheita. Voltai novamente aos carreirosterrestres e reparai o passado doloroso!. Abra-çai os vossos inimigos de ontem, para vos aproxi-mardes dos vossos benfeitores no porvir ! Fechaias portas da exaltação no mundo e sede surdos àsambições ! Edificai o reino de Jesus no imo, porque,um dia, a morte vos arrebatará de novo às angús-tias e mentiras humanas, para as análises provei-tosas. A exemplificação de Jesus é o modelo detodos os corações. Não vos queixeis da orientaçãoprecisa, porque, em toda parte do mundo, como emtodas as idéias religiosas e doutrinas filosóficas,há uma atalaia de Deus esclarecendo a consciên-cia das criaturas ! O mundo tem as suas lágrimaspenosas e as suas lutas incruentas. Nas suas sen-das de espinhos torturantes se congregam todos osfantasmas dos sofrimentos e das tentações, e se-reis compelidos a positivar os vossos valores in-trínsecos. Amai, porém, a luta como se os seusbenefícios fossem os de um pão espiritual, impres-cindível e precioso !... Depois de todas as conquis-tas que o plano terrestre vos possa proporcionar,sereis, então, promovidos aos mundos de regene-

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ração e de paz, onde preparareis o coração e ainteligência para os reinos da luz e da bem-aven-turança supremas !... A palavra sábia e inspirada do esclarecido men-tor do Alto era ouvida com singular atenção. Em dado instante, porém, sua voz esclareceu,depois de uma pausa: - Agora, irmãos bem-amados, encontrareisaqui os adversários de ontem, para a conciliaçãoe para os trabalhos futuros. Escolhestes e delineas-tes o mapa de vossas provas, porquanto já possuísa noção de responsabilidade e a precisa educaçãopsíquica, para colaborar nesse esforço dos vossosguias!... Nossos irmãos infelizes, entretanto, ain-da não possuem essas condições evolutivas e serãocompelidos a aceitar as decisões daqueles gêniostutelares, que lhes acompanham a trajetória na tra-ma dos destinos humanos... E esses gênios do bemdeliberaram que eles vivam convosco, que apren-dam nos vossos atos, que vibrem nas vossas expe-riências do futuro! Os executores dessas elevadasresoluções os trouxeram a todos, a fim de se pro-cessar a decisão final com o vosso concurso, nestaassembleia de divinos ensinamentos. Tendes, pois,o direito de escolher, entre eles, os companheirosdo porvir, sem vos esquecerdes de que, nestes mo-mentos, pode o nosso coração dar as melhores pro-vas de compreensão daquele "amai-vos uns aosoutros", da lição do Evangelho, onde repousa abase da nossa suprema evolução para os planos divinos !... Nossas personagens entreolharam-se ansiosas. A esse tempo, contudo, algumas entidades pe-netravam no recinto. Atrás dos vultos nobres dealguns Espíritos caridosos e amigos, vinham Cláu-dia Sabina, Fábio Cornélio, Silano Plautius, Lólio

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Úrbico e, um pouco distantes, numerosos servos deoutrora, comparsas dos mesmos erros e das mes-mas ilusões dos nossos amigos, como, por exemplo,Pausânias, Plotina, Quinto Bíbulo, Pompônio Gra-tus, Lídio, Marcos e outros, enquanto o recinto sepovoava de suas vibrações estranhas, saturadas deamargura indefinível. A maior parte demonstrava surpresa amargae dolorosa. Quase todos se conservavam cabisbaixos e tris-tes, fazendo ouvir, de quando em quando, sotuçosdolorosos. Observando a penosa impressão dos filhos esentindo que ambos se encontravam sob as tenazesde indecisão angustiosa, Cneio Lucius suplicava aoSenhor que o inspirasse quanto à melhor maneirade sacrificar-se pelos filhos bem-amados, concilian-do o seu afeto com as próprias necessidades deles,em face do futuro. Então, viu-se que o generoso velhinho levanta-va-se com desassombro e serenidade e, caminhandopara a desolada Cláudia Sabina, que não ousaraerguer os olhos saturados de lágrimas, falar-lhecom infinita brandura: - Já que a misericórdia de Jesus-Cristo mefaculta a escolha dos que viverão comigo, conside-rar-te-ei, minha irmã, desde já como filha, a quemdevo consagrar uma afeição duradoura e divina!... E, abraçando-a, concluía : - De futuro permanecerás no meu lar, a fimde transfundirmos o ódio e a vingança em frater-nidade sublime e sacrossanta!... Comerás do nossopão, participarás das minhas alegrias e das minhasdores, serás irmã de meus filhos !... Cláudia Sabina soluçava, sensibilizada pelo amor

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daquela alma devotada e generosa. Hatéria, levantando-se, caminhou até Cneio Lu-cius e lhe beijou as mãos, que, naquele instante,estavam luminosas e translúcidas. A esse tempo, Júlia Spinter amparava o co-ração desolado do companheiro, abraçando SilanoPlautius e prometendo-lhe o seu auxílio devotadoe amigo, no curso das lutas planetárias. Foi aí que Helvídio Lucius e Alba Lucínia selevantaram e, dirigindo-se a Lólio Úrbico, que seajoelhara como oprimido por um tormento impla-cável, estenderam-lhe os braços fraternos, prome-tendo-lhe amor e dedicação. Continuando a mesma obra de solidariedade edevotamento, todos chamaram a si esse ou aqueleantigo servo, bem como os comparsas de seus fei-tos passados, a fim de associá-los aos seus esforços no futuro. Terminada essa tarefa bendita, o mentor dareunião perguntou serenamente: - Todos estais certos de haver suficiente-mente perdoado? Amargurado silêncio... No íntimo, as nossaspersonagens experimentavam, ainda, certas dificul-dades para esquecer o passado. Helvídio Lucius nãoolvidara as perseguições de Lólio Úrbico ; Alba Lu-cínia não esquecera as ações de Sabina, e FábioCornélio, por sua vez, apesar dos sofrimentos, nãose sentia capaz de perdoar o crime de Silano. A indecisão era geral, mas uma luz branda emisericordiosa começou a verter do Alto, atingindoem cheio todos os corações. Sem exceção de umsó, todos os membros do grupo de Cneio Luciuscomeçaram a chorar, possuídos de emoção inde-finível.

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A um só tempo, divisaram no Alto a figura sublime de Célia, que lhes acenava cheia de ternura e de carinho. Movidos, então, por um doce mistério, deramguarida a um perdão sincero e puro, sentindo-sereciprocamente tocados de profunda piedade. Como se as substâncias do ambiente fôssemsensíveis ao estado íntimo dos presentes, uma cla-ridade doce e branda começou a fazer-se em tor-no, enquanto a maioria das nossas personagenschorava enternecida. Entremostrando um sorriso suave, o mentorexclamou : - Graças à misericórdia do Altíssimo, sintoque todos regressais aos planos terrestres com umavibração nova, que vos edifica o coração e a cons-ciência nas mais formosas expressões de espiri-tualidade ! Que as bênçãos do Senhor encham deluz e de paz os vossos caminhos no porvir!... Sedefelizes! Todos os segredos da ventura estão noamor e no trabalho da consciência redimida !...Esquecei o passado umbroso e dolorido e atirai-vosà luta remissora, com heroísmo e humildade...Sinto que estais irmanados pela mesma vibraçãode piedade e faço votos a Deus para que compreen-dais, em todas as circunstâncias, que somos irmãospelas mesmas fraquezas e pelas mesmas quedas,a caminho da redenção suprema, nas lutas do In-finito !... Em face da palavra carinhosa e sábia do men-sageiro divino que os dirigia, os nossos amigossentiam-se confortados por uma nova luz, que lhesesclarecia o imo com a mais bela compreensão daexistência real. A visão de Célia havia desaparecido, mas, comose a sua grande alma estivesse assistindo à cena

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comovedora através das luminosas cortinas do Ili-mitado, ouviu-se em vibrações cariciosas, provindasdo Alto, um hino maravilhoso, cantado por cente-nas de vozes infantis, derramando em todos os co-rações a coragem e o amor, a consolação e aesperança... As estrofes harmoniosas atravessa-vam o recinto e elevavam-se para as Alturas emnotas melodiosas, subindo para o sólio de Jesus,qual incenso divino! Era um brado de fé e de inci-tamento, que fazia nascer nas almas dos presentesas mais piedosas lágrimas. Em seguida, sob as preces dos carinhosos ami-gos e benfeitores espirituais, que ficavam no planoinvisível, todos os membros do grupo de Cneio Lú-cius abandonavam o recinto, reunidos numa cara-vana fraterna, em direção às esferas mais inferioresque envolvem o planeta terrestre. Nessa hora, havia entre todos o bom desejode consolidar uma paz íntima, antes de recomeçar a luta. Foi então que Cláudia Sabina, num gesto es-pontâneo, aproximou-se de Alba Lucínia e exclamoucom angustiada expressão : - Não me atrevo a chamar-vos irmã, pois fuioutrora o impiedoso verdugo de vosso coração sen-sível e bondoso !... Mas, por quem sois, pelos sen-timentos generosos que vos exornam a alma, per-doai-me mais uma vez. Fui o algoz e vós a vítima;todavia, bem vedes aqui a minha ruína dolorosa.Dai-me o vosso perdão para que eu sinta a clari-dade do meu novo dia !... Cneio Lucius contemplou a nora, com evidenteansiedade, como a implorar-lhe clemência. Alba Lucínia compreendeu a gravidade daque-le instante e, vencendo as hesitações que lhe tur-bavam o espírito, murmurou comovida:

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- Estais perdoada... Deus me auxiliará aesquecer o passado, para que a genuína fraterni-dade se faça entre nós, nas lutas do futuro!... Júlia Spinter fitou a filha, deixando transpa-recer o júbilo que lhe ia no coração, em vista doseu gesto generoso; ao mesmo tempo que CneioLucius envolvia a companheira de Helvídio numolhar caricioso de satisfação e de profundo reco-nhecimento. Enquanto a maioria das personagens trocavaidéias sobre o porvir, surgia, ao longe, a atmosferado planeta terrestre, envolta num turbilhão de som-bras espessas. Alguém falou com voz melancólica e imponente, do seio da caravana: - Eis a nossa escola milenária!... Decididos na sua fé, olhos para o Alto, implo-rando a misericórdia divina, guiados todos eles pelasforças esclarecidas do bem, que os envolviam, pe-netraram a atmosfera planetária, habilitados a umacompreensão cada vez mais elevada e mais nobre,dos valores eficientes do trabalho e da luta. Apenas Nestório se conservava em oração jun-to dos fluidos terrenos, notando-se-lhe os olhosmareados de lágrimas, na comoção daquela horacheia de apreensões e de esperanças. - Senhor - exclamava o antigo escravo, evo-cando amargurosas lembranças -, novamente naTerra, escola abençoada de nossas almas, contamoscom a vossa misericordiosa complacência, a fim decumprirmos todos os nossos deveres, a caminho doarrependimento e da reparação. Auxiliai-nos naluta! Somente os séculos de trabalho e dor poderãoanular os séculos de egoísmo, orgulho e ambição,que nos conduziram à iniquidade !... Perdoai-nos,

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Jesus! Dignai-vos abençoar nossas aspirações sin-ceras e humildes !.. Ensinai-nos a amar o planetacom as suas paisagens procelosas, a fim de poder-mos encontrar, nas sendas terrestres, a luz da nossaregeneração espiritual, a caminho do vosso reinode paz indestrutível !... Entre as lágrimas de suas rogativas, Nestório foi o último a imergir na vastidão dos fluidos planetários. Do Alto, porém, emanava uma claridade bran-da e compassiva. Toda a caravana sentiu o bafejodivino de uma esperança nova, atirando-se ao am-biente da Terra, tomada de uma coragem redentora.Reconfortados na meditação e na prece, os cora-ções adivinhavam que a luz da Providência Divinaseguiria as suas experiências na dor e no trabalho,como uma bênção.

Fim.

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