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5 de Outubro de 1910 - 25 de Abril de 1974: duas revoluções distintas por causas comuns. 1 Augusto José Monteiro Valente Introdução Analisando a história contemporânea de Portugal, facilmente se reconhece o protagonismo dos militares nas grandes transformações operadas na sociedade. Desde 1820 todas as mudanças de regime ou foram protagonizadas por militares, ou tiveram uma participação militar mais ou menos relevante. Assim aconteceu, nomeadamente, em 24 de Agosto de 1820, em 5 de Outubro de 1910, em 28 de Maio de 1926 e em 25 de Abril de 1974. Nesses momentos históricos, a intervenção militar quase nunca, ou nunca mesmo, assumiu um carácter institucional ou generalizado, e os militares desempenharam sobretudo um papel de precursores da acção política ou, simplesmente, de seus principais apoiantes, porventura na ausência de consciencialização cívica da maioria dos portugueses, de legitimação social do novo regime, ou como garantes transitórios da nova ordem. Quando agiram politicamente os militares foram também determinados por motivações próprias da sua condição, mas o peso relativo destas, a dimensão do seu envolvimento e as lógicas organizacionais foram 1 Comunicação apresentada no dia 25 de Abril de 2011, em iniciativa promovida pela Câmara Municipal de Miranda do Corvo. Publicado em “República e Democracia”, Edição Câmara Municipal de Miranda do Corvo e Edições Minerva Coimbra, 2011.

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5 de Outubro de 1910 - 25 de Abril de 1974: duas

revoluções distintas por causas comuns.1 Augusto José Monteiro Valente

Introdução

Analisando a história contemporânea de Portugal, facilmente se

reconhece o protagonismo dos militares nas grandes transformações

operadas na sociedade. Desde 1820 todas as mudanças de regime ou foram

protagonizadas por militares, ou tiveram uma participação militar mais ou

menos relevante. Assim aconteceu, nomeadamente, em 24 de Agosto de

1820, em 5 de Outubro de 1910, em 28 de Maio de 1926 e em 25 de Abril

de 1974.

Nesses momentos históricos, a intervenção militar quase nunca, ou

nunca mesmo, assumiu um carácter institucional ou generalizado, e os

militares desempenharam sobretudo um papel de precursores da acção

política ou, simplesmente, de seus principais apoiantes, porventura na

ausência de consciencialização cívica da maioria dos portugueses, de

legitimação social do novo regime, ou como garantes transitórios da nova

ordem. Quando agiram politicamente os militares foram também

determinados por motivações próprias da sua condição, mas o peso relativo

destas, a dimensão do seu envolvimento e as lógicas organizacionais foram 1 Comunicação apresentada no dia 25 de Abril de 2011, em iniciativa promovida pela Câmara Municipal

de Miranda do Corvo. Publicado em “República e Democracia”, Edição Câmara Municipal de Miranda do Corvo e Edições Minerva Coimbra, 2011.

2

significativamente diferentes, muito embora pareça poder conclui-se haver

uma relativa analogia de factores políticos estruturais e de motivações

concretas, obviamente salvaguardando o distanciamento temporal e,

consequentemente, a natureza distinta das conjunturas. Na realidade, se a

água não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte, por vezes

verificam-se semelhanças entre acontecimentos históricos que fazem

pensar o contrário.

Analisemos então comparativamente as revoluções de 5 de Outubro de

1910 e de 25 de Abril de 1974, colocando a enfâse nos aspectos militares.

1 º O problema colonial e a crise dos regimes

A revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 e a revolução

democrática de 25 de Abril de 1974 aconteceram em momentos de fim de

regime, e, em ambos as situações, a acção revolucionária teve sobretudo

um papel de acelerador do colapso final.

A crise da Monarquia Constitucional. 2

Após o Ultimato inglês de Janeiro de 1890 a Monarquia Constitucional

entrou em crise, isolada internacionalmente e contestada por sectores

sociais cada vez mais amplos. A política colonial de várias nações

europeias e a competição internacional pelo domínio do continente

africano, criaram a Portugal problemas graves, e, curiosamente, o maior

deles aconteceu precisamente com o seu principal aliado – a Inglaterra.

2 Cf.v.g. Maria de Fátima Bonifácio, “A Monarquia Constitucional 1807-1910”, Texto Editores, Lda.,

Alfragide, 2010.

3

Com o Ultimato ficou esgotado o projecto colonial da Monarquia, e, a

partir dele, acentuou-se irreversivelmente a decadência desta.

Nos anos anteriores o País havia-se transformado em quase todos os

sentidos, de tal modo que se tornara evidente a necessidade de dar um rumo

diferente à vida política nacional. Apesar de um pequeno progresso no

último terço do século, o regime monárquico não evoluíra para um sistema

constitucional estável, progressivo e firme. A manipulação das eleições e o

caciquismo faziam da artificialidade do sistema a sua falha mais séria,

criando um fosso entre povo e o pequeno círculo de dirigentes. Os

primeiros clamores de dissentimento despontaram sobretudo nas cidades,

onde se concentrava uma população mais evoluída.

O Ultimato deu ao republicanismo o pretexto para se transformar num

amplo movimento de renovação nacional, com particular incidência junto

da juventude estudantil e dos sectores intelectuais. A escalada de

indignação e exaltação precipitou um primeiro movimento revolucionário

na cidade do Porto, em 31 de Janeiro de 1891. Apoiado nos conselhos dos

«Vencidos da Vida», que defendiam o fortalecimento e engrandecimento

do poder real, D. Carlos rompeu a partir de então com a prática anterior do

seu pai, esquecendo a Carta Constitucional, começando a intervir na vida

política e dando cobertura a sucessivos governos em ditadura.

Procurando contrabalançar o fracasso do projecto do «mapa cor-de-

rosa», os governos monárquicos envolveram-se nas chamadas «Campanhas

de Pacificação Africanas», com vista afirmação do domínio português

sobre os territórios coloniais, fundamentais para a economia nacional. Mas

o País vivia em constante situação de crise financeira. Em 1898, a

Inglaterra e a Alemanha assinaram uma convenção secreta de partilha das

colónias portuguesas de Angola, Moçambique e S. Tomé, no caso de

incumprimento por parte de Portugal da sua dívida externa, confirmando

que o País nada contava na cena internacional. Os problemas financeiros

4

davam aos republicanos argumentos fáceis para atacar os sucessivos

governos. Mas se a crise financeira era séria, a crise moral era ainda pior.

A agravar a situação, o rotativismo monárquico entrou em crise no

alvorecer do século XX, com cisões nos principais partidos, prenunciando a

falência do regime. Sucederam-se algumas tentativas falhadas de rebeliões

militares. Em Abril de 1906 amotinaram-se os marinheiros dos cruzadores

D. Carlos I e Vasco da Gama, as primeiras revoltas em toda a história da

Marinha, confirmando que a Marinha, na sua maioria, já não era

monárquica. A situação agravou-se nos meses de Fevereiro e Março do ano

seguinte, com a eclosão de protestos e greves académicas. O

republicanismo tinha obtido muitos adeptos entre os estudantes

universitários e dos liceus, no seio dos quais a Maçonaria e a Carbonária

também recrutava crescentes apoios. A resposta de João Franco foi o

amento da repressão, mas, em lugar de restabelecer a ordem, fez explodir

os ânimos, conduzindo à segunda tentativa de revolta republicana, a 28 de

Janeiro de 1908, e ao Regicídio três dias depois. O apoio à ditadura fora

fatal para D. Carlos. A Monarquia agonizava.

Apesar das tentativas de «acalmação», a Monarquia nunca mais

recuperaria. Seguiram-se dois anos de instabilidade política e social, com

vários governos que se sucederam de modo pouco pacífico, num quotidiano

aparentemente tranquilo mas na realidade desconfiado da «acalmação» que

lhe fora prometida. Imberbe, reservado, mal preparado, vacilante, com a

sua vontade aprisionada e tutelado por sua mãe, D. Manuel II contrastava

em tudo com a fortaleza de convicções de seu pai. Instalaram-se os

dissídios, mesmo nos próprios arraiais monárquicos, corroídos por

recriminações e suspeições. Teixeira de Sousa, último presidente do

ministério, desagradou sobremaneira à maioria dos monárquicos, devido às

medidas que procurou implementar, algumas inspiradas no programa

republicano. O sector mais conservador do regime, civil e militar, retirou-

5

lhe definitivamente a confiança, bem como ao Rei, começando a advogar a

intervenção do Exército para sanear o regime e varrer os republicanos, e

procurando aliciar para a intentona o capitão Paiva Couceiro, mentor do

grupo dos «Africanistas», vistos por esta ala como os genuínos

representantes da Nação.

Era contudo já demasiado tarde para todos os grupos conspiradores, e

também para o liberal Teixeira de Sousa. Os planos de contra-revolução e

de reforma haviam perdido a oportunidade. Os resultados das eleições

gerais de Agosto de 1910 atiraram definitivamente os dirigentes

republicanos para a via revolucionária, convictos de que o sistema

monárquico do caciquismo inviabilizava qualquer esperança evolutiva pela

via eleitoral. Animado pelo apoio popular maioritário em Lisboa, que

aquelas eleições haviam confirmado, o Partido Republicano dotou-se de

um novo Directório apostado na acção directa, e, tendo garantido a

fidelidade maçónica e a operacionalidade dos carbonários, decidiu pôr em

marcha a revolução. E a 5 de Outubro a República triunfou finalmente na

Rotunda, culminando uma luta de trinta e quatro anos.

O colapso do Estado Novo.3

A questão colonial foi igualmente a causa remota do fim do Estado

Novo.

A contestação internacional à política colonial de Salazar, a eclosão, no

início dos anos sessenta, da guerra colonial e o isolamento de Portugal

perante a comunidade internacional marcaram o início irreversível do

declínio do regime. Logo em Abril de 196 foi dado o primeiro sinal, com

3 Cf.v.g. Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988), Edições

Afrontamento, Porto, 1990.

6

tentativa de golpe de Estado dirigida pelo general Botelho Moniz. Seguiu-

se, na viragem do ano, a tentativa insurreccional a partir de Beja.

Apesar de não haver conduzido de imediato a uma situação de crise do

regime, tendo até provocado um surto de desenvolvimento económico nos

primeiros anos, a guerra colonial motivou grandes transformações na

sociedade portuguesa, e o colonialismo transformou-se na verdadeira base

material de sustentação do regime. Mas, ao mesmo tempo, o colonialismo e

a guerra foram gerando contradições políticas, económicas e sociais,

fazendo aumentar as tensões e conflitos a níveis sem precedentes na

história do regime, com expressões mais significativas primeiramente no

sector operário e no meio académico. Também o surto de desenvolvimento

económico acabou por ser bloqueado pela lei do condicionamento

industrial, pelo isolamento internacional, pelos crescentes encargos

financeiros com a guerra, e pela falta de mão-de-obra em consequência da

vaga de emigração clandestina e das crescentes mobilizações de jovens

para as frentes de combate.

Coincidindo com a morte de Salazar e a ascensão de Marcelo Caetano,

o ano de 1969 marcou o início a crise final do Estado Novo. Agravou-se a

conflitualidade entre as várias facções do bloco no poder, pondo em causa a

forma organizativa do Estado Novo. E intensificou-se a contestação social

nos sectores laborais e, sobretudo, nos meios académicos, com

manifestações e greves de dimensões nunca antes conhecidas.

As eleições de 1969 e de 1973 desfizeram todos os equívocos. Incapaz

de ultrapassar as divergências políticas, Marcelo Caetano recuou nas

tímidas medidas de abertura que ensaiara, ficando prisioneiro dos sectores

mais radicais. Temendo a destruição dos interesses instalados e, sobretudo,

a alteração da política oficial em relação às colónias, os ultras exigiram-lhe

o regresso à matriz central e original do Salazarismo, originando uma crise

de hegemonia que acentuou a crise de legitimação do regime.

7

A percepção do colapso criou as condições para o aumento das

exigências por parte dos sectores da oposição democrática, centradas

sobretudo na reivindicação das liberdades cívicas e políticas, na

institucionalização da democracia, no regresso de Portugal ao seio da

comunidade internacional e de uma relação política diferente com as

colónias.

A contestação ao regime acabou por contagiar as próprias Forças

Armadas, que eram o mais forte sustentáculo do regime e da guerra

colonial. E foram estas que, vencida a facção militar mais conservadora,

fizeram precipitar o fim do Estado Novo, em 25 de Abril de 1974.

Em resumo. A questão colonial foi a causa próxima comum dos

colapsos da Monarquia Constitucional e do Estado Novo. Os percursos

finais dos dois regimes foram em quase tudo muito idênticos,

salvaguardando a excepção da guerra colonial, que não teve paralelo com

as «Campanhas de Pacificação Africanas». O início do declínio foi, em

ambos, acompanhado do aumento da contestação social, de revoltas

militares, do reforço do autoritarismo e da repressão e de tentativas

militaristas ultra-reaccionárias. As tímidas experiências de moderação e

abertura ensaiadas, em lugar de atenuarem a conflitualidade interna e de

conduzirem à almejada liberalização, acabaram por surtir efeitos contrários,

aprofundando as contradições e os dissídios no poder político, alargando o

campo da luta política por parte das oposições e precipitando as revoluções

que lhes puseram termo. Nestas, foi fundamental para o seu êxito o papel

desempenhado pelos militares, embora este tenha sido mais decisivo em 25

de Abril de 1974 do que em 5 de Outubro de 1910. E em ambas, foi o povo

que transformou os acontecimentos em autêntica revolução.

2 º A problemática militar e as motivações profissionais

8

É relativamente consensual a afirmação de que a Revolução de 25 de

Abril de 1974 começou por um golpe militar conduzido pelo Movimento

das Forças Armadas, a que se seguiu uma revolução popular. Na realidade,

a componente militar foi dominante na primeira fase dos acontecimentos,

se não mesmo exclusiva. O Exército foi o ramo mais comprometido nos

acontecimentos, e os capitães a componente maioritária - daí o nome de

«Movimento dos Capitães» por que ficou conhecido.

Em contrapartida, a participação militar na Revolução de 5 de Outubro

de 1910 foi reduzida, a Marinha foi o ramo decisivo e os subalternos e

sargentos foram os principais elementos envolvidos. Factores de ordem

profissional contribuíram para esta diferença de comportamentos dos

militares nas duas revoluções.

Os militares e a crise da Monarquia4

No final do século XIX, o Exército encontrava-se em acentuada

decadência, envelhecido, pouco instruído, desleixado, tecnicamente

atrasado, mal remunerado e socialmente desprestigiado. A sua principal

função era o policiamento da província, a vigilância de feiras, romarias e

procissões. A preparação propriamente militar era muito reduzida, as

promoções eram demoradas, e os oficiais em regra idosos eximiam-se a

qualquer iniciativa ou responsabilidade. Ao posto de capitão só se chegava

à volta dos quarenta e cinco anos de idade, e ao generalato quase aos

setenta anos.

No Exército, a maioria dos oficiais permanecia alheada da política,

aceitando passivamente a ordem estabelecida. Os altos escalões 4 Cf. v.g. Maria Carilho, “Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no Séc. XX – Para uma

explicação sociológica do papel dos militares”, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, Lisboa, 1985.

9

hierárquicos, comprometidos com o rotativismo, nem por absurdo

concebiam a hipótese de uma alteração do regime, e alguns sectores

conservadores mais radicais advogavam mesmo o reforço militarista da

Monarquia, apoiados, primeiro, em Mouzinho de Albuquerque e, mais

tarde, em Paiva Couceiro. Mas nos postos inferiores um número

significativo de oficiais mostrava abertura às ideias republicanas, e, com

maior extensão e activismo, o mesmo acontecia entre os sargentos. Por seu

turno, os cabos e soldados, na sua generalidade, eram pouco sensíveis a um

discurso essencialmente urbano, mas na Revolução de 5 de Outubro de

1910 alguns deles, ganhos sobretudo pela Carbonária, desempenhariam um

papel importante na tomada das unidades e na resistência na Rotunda. Na

Marinha, em contrapartida, com melhor espírito de corpo, mais contactos

com o exterior, quase total concentração em Lisboa e maior proximidade

com o activismo revolucionário, a propaganda republicana e o

recrutamento maçónico e, sobretudo, carbonário recolhiam apoios mais

fortes em todas as classes.

A influência revolucionária fazia-se sentir sobretudo na capital, onde se

localizavam os altos comandos, os serviços de administração, os

estabelecimentos de ensino, os arsenais militares, e em cujo porto se

encontravam os principais navios de guerra, o que facilitava as acções de

propaganda do Partido Republicano, da Maçonaria e da Carbonária. A

iniciação dos militares ao republicanismo acontecia também durante a

frequência dos cursos preparatórios nas escolas superiores, condição

obrigatória para o ingresso na Escola do Exército, locais onde era grande o

fervor revolucionário nos últimos anos da Monarquia, e onde aquelas

associações secretas recrutavam crescentes simpatizantes.

Na viragem do século, havia uma forte corrente favorável a uma

remodelação absoluta e completa das instituições militares, por forma a que

se tornassem mais proveitosas para o País, quer assegurando a paz no

10

interior, quer mostrando-se capazes de reagir eficazmente contra qualquer

agressão estrangeira.5 As principais reivindicações centravam-se na

implementação do recrutamento obrigatório, geral e pessoal, na

reestruturação dos exércitos metropolitano e colonial, na alteração do

sistema de promoções, na modernização tecnológica e na transformação da

organização militar numa instituição autónoma e prestigiada, subordinada

ao poder civil e ao serviço na Nação. Mas, até ao final da Monarquia,

perante o imobilismo rotativista e as pressões da hierarquia conservadora,

fracassaram todas as tentativas de reformas de fundo. As consequências

foram o alastramento da frustração e do descontentamento, sobretudo entre

os graduados dos escalões inferiores, intelectualmente e tecnicamente

melhor preparados. E a convicção de que as mudanças ansiadas jamais

lograriam êxito na vigência do regime monárquico fez evoluir vários destes

quadros para o campo republicano.

Após o Regicídio, a política de «acalmação» não conseguiu travar nem

o descontentamento, nem o crescimento do movimento republicano. A

situação começou a semear a dúvida quanto à eficácia das medidas de

transigência adoptadas pelo regime. Reunidos no «Bloco de Defesa

Monárquico», os sectores civis e militares mais conservadores começaram

a conspirar abertamente. Alguns procuraram aliciar primeiramente o

general Vasconcelos Porto, antigo ministro da Guerra de João Franco.

Perante a sua recusa, voltaram-se então para Paiva Couceiro. Mas o seu

grupo de apoiantes militares não representava na realidade mais do que

uma pequena minoria de oficiais, e este foi o seu grande equívoco. 6

Conhecedores desta situação, os republicanos reforçaram a

organização, uniram esforços com a Maçonaria e a Carbonária, criaram

5 Cf. Morais Sarmento, tenente-coronel, “Pela ordem!”, Revista Militar N º 16, 31 de Agosto de 1891. 6 Cf. Vasco Pulido, “Um Herói Português – Henrique Paiva Couceiro”, Alêtheia Editores, Lisboa, 2006,

pp. 53-69.

11

uma Junta Revolucionária e uma Comissão Militar. E, na madrugada do dia

4 de Outubro, militares, marinheiros e civis armados iniciaram a revolta e

com o povo proclamaram a República na manhã seguinte.

A participação dos militares na Revolução continua a suscitar

controvérsia entre os investigadores, defendendo uns que ela foi

essencialmente militar e enfatizando outros o papel dos civis organizados

em torno da Carbonária. Em que ficar?

O movimento revolucionário apoiou-se inicialmente num plano militar

que previa o envolvimento activo de dezenas de oficiais e sargentos, de sete

das dez unidades do Exército aquarteladas em Lisboa, dos principais navios

de guerra e de cerca de um milhar de marinheiros. Mas apenas alguns

oficiais isolados, cerca de duas dezenas de sargentos e poucos mais cadetes,

cabos e soldados reagiram activamente à hora fixada; e somente o

Regimento de Infantaria N º 16 e o Regimento de Artilharia N º 1 foram

lançados na Revolução, ficando as restantes unidades comprometidas

neutras ou apoiantes da Monarquia durante quase todo o tempo de luta. O

núcleo revolucionário inicial de militares e civis entrincheirado na Rotunda

não contava com mais de 400 ou 500 homens. Por seu turno, na Marinha, o

Quartel dos Marinheiros sublevou-se à hora prevista, mas a força que dele

partiu não logrou alcançar o seu objectivo; e os cruzadores S. Rafael,

Adamastor e D. Carlos somente pela madrugada e tarde do dia 4 foram

controlados pelos revoltosos. Que acontecera?

O inesperado assassinato de Miguel Bombarda levara o Governo a

determinar a prevenção geral das unidades de Lisboa, e vários graduados

comprometidos com a revolução ficaram sem condições, ou coragem, para

levarem a cabo as acções que lhes haviam sido atribuídas. Fracassou

também o apoio da Carbonária às operações militares em diversos locais;

falhou igualmente a acção de coordenação dos líderes políticos,

convencidos do fracasso do plano; e fraquejou inicialmente a mobilização

12

popular. As primeiras horas foram de incerteza, confusão, angústia e

desânimo, levando muitos a abortar as instruções que haviam recebido.

Mas, apesar da inferioridade numérica, o potencial de fogo dos

revolucionários era maior que o das forças monárquicas, mercê sobretudo

da superioridade em artilharia, sustando as tentativas de assalto à Rotunda.

Durante a manhã e tarde do dia 4, com a entrada em acção dos cruzadores

da Marinha, a situação começou a inverteu-se, obrigando D. Manuel a

abandonar precipitadamente o Palácio das Necessidades. Por fim, a ameaça

do desembarque de centenas de marinheiros em diversos pontos da capital

acabou por fazer passar à defensiva as forças monárquicas, apesar de

contarem com mais de 3.500 homens. Os populares armados e o povo de

Lisboa tomaram então conta das ruas, e a Revolução saiu vencedora na

madrugada do dia 5 de Outubro.

Em suma, os planos militares saldaram-se num fracasso bilateral, tanto

da parte dos revolucionários, como das forças que os combateram, e foi a

acção decisiva do povo que fez triunfar a Revolução. Mas a intervenção

dos militares republicanos foi fundamental para iniciar Revolução, para

defender a Rotunda nos momentos cruciais e para neutralizar as tentativas

de assalto ensaiadas pelas forças monárquicas. São pois parciais e redutoras

ambas as hipóteses acima referidas.

Os militares e o colapso do Estado Novo.7

A eclosão da guerra colonial provocou efeitos de variada ordem no seio

das Forças Armadas, que se revelariam decisivos para a queda do regime.

7 Cf.v.g. Manuela Cruzeiro, “Vasco Lourenço – do Interior da Revolução”, âncora Editora, Lisboa, 2009,

e Augusto Monteiro Valente, “Movimento dos Capitães”, in “Guerra Colonial”, Diário de Notícias, pp. 548-553.

13

Logo em Abril de 1961 ocorreu a tentativa de golpe de Estado liderada pelo

ministro da Defesa Nacional, general Botelho Moniz.

No plano estritamente militar, a intensificação da guerrilha em Angola

e o seu alargamento à Guiné e a Moçambique provocaram uma crescente

mobilização de efectivos militares e de quadros, sobretudo no Exército, que

no ano de 1974 atingiram uma totalidade de quase 150.000 homens, só

conseguidos pela crescente milicianização e africanização das forças

armadas. 8

As maiores necessidades de graduados verificavam-se nos postos de

furriel/2° sargento, alferes e capitão, uma vez que as operações de

contraguerrilha eram conduzidas principalmente por pequenas unidades. Os

primeiros eram na sua quase totalidade milicianos. Nos quadros

permanentes, o principal problema residia na demorada formação e

progressão na carreira, incompatíveis com as exigências da guerra. Os

critérios para ingresso na Academia Militar tornaram-se por isso mais

permissivos, e a duração dos cursos e dos períodos de permanência em

subalterno foram encurtados. Mas as expectativas goraram-se a partir de

1963, com a inversão da tendência de crescimento do recrutamento de

candidatos.9

O Governo procurou ultrapassar o problema através de medidas

casuísticas com vista ao aliciamento de oficiais milicianos para a carreira

militar. As consequências foram, entre outras, a perda do controlo político

e ideológico sobre os escalões inferiores da oficialidade, a desvalorização

da carreira militar e o agravamento das tensões corporativas entre os

oficiais com formação normal na Academia Militar e os restantes.

8 Evolução dos efectivos totais em Angola, Guiné e Moçambique (referidos a 31 de Dezembro): 1961 –

49422; 1963 – 71296; 1965 – 97181; 1967 – 113791; 1969 – 121251; 1971 – 135775; 1973 – 149090. 9 Evolução das admissões à Academia Militar: 1961 – 257; 1962 – 267; 1963 – 187; 1964 – 139; 1965 –

129; 1966 – 90; 1967 – 96; 1968 – 114; 1969 – 36; 1970 – 70; 1971 – 103; 1972 – 81; 1973 – 88.

14

A guerra colonial produziu ao mesmo tempo efeitos significativos na

motivação geral dos militares, e dos quadros permanentes em particular. O

contacto com uma realidade muito diferente daquela que era divulgada pela

propaganda do regime, o desgaste provocado por sucessivas comissões, o

acumular de dúvidas quanto à legitimidade da guerra e à sua solução

militar, favoreceram uma progressiva e progressista tomada de consciência

política. Citando Eduardo Lourenço, os “herdeiros de Mouzinho”

“descobrem por sua conta os limites ou a mentira congenital da versão

colonialista que deviam ajudar a salvaguardar” 10 .

Entretanto, nos três teatros de operações a situação agravava-se

continuamente, com a abertura de novas frentes e a utilização de melhor

armamento pela guerrilha. Entre os militares do quadro permanente foi-se

fortalecendo a convicção de que o regime mais facilmente aceitaria uma

derrota militar que a abertura de negociações com movimentos de

libertação. Instalou-se então, sobretudo entre os oficiais, o receio de as

Forças Armadas serem de novo transformados no bode expiatório do

insucesso político do Governo, como acontecera em 1961 com a Índia.

Estavam criadas as condições para os militares passarem à acção

política. A primeira tomada de posição contra a política colonial ocorreu

em Abril de 1973, quando cerca de 400 oficiais contestaram a iniciativa do

regime de organização do I Congresso dos Combatentes do Ultramar. Mas

o factor aglutinador do «Movimento dos Capitães» seria, contudo, de

natureza profissional, provocado pela publicação de legislação que inverteu

as normas vigentes sobre a antiguidade relativa e os critérios de promoção

entre oficias de diferentes origens.

As novas disposições foram consideradas inaceitáveis pelos oficiais

oriundos de cadetes da Academia Militar. Seguiu-se uma onda de protestos

10 Eduardo Lourenço, “O Labirinto da Saudade”, Publicações Dom Quixote, 2 ª edição, Lisboa, 1982, p.

47.

15

com uma dimensão nunca antes vista. Alarmado, o Governo corrigiu

precipitadamente o decreto, mas apenas parcialmente, salvaguardando os

interesses dos oficiais superiores mas deixando de lado os capitães e

subalternos. E em 9 de Setembro de 1973, cerca de uma centena e meia de

oficiais dos quadros permanentes reuniram-se numa herdade alentejana

perto de Évora, para discutir uma tomada de posição conjunta. Nascia o

«Movimento dos Capitães».

O Governo recuou. Mas era já tarde. Tomando consciência de que a

resolução dos problemas da carreira militar era indissociável da

recuperação do prestígio da instituição, e que tal só seria possível com uma

clara demarcação das Forças Armadas relativamente à política colonial e ao

próprio regime, a contestação evoluiu rapidamente para a conspiração

política. E só tardiamente o Governo, e os sectores a ele ligados, se

aperceberam desta alteração qualitativa.

Desavindos com Marcelo Caetano, os integracionistas do regime,

encabeçados pelo general Kaúlza de Arriaga, tentaram ainda um golpe de

Estado para afastar aquele do poder e liquidar a contestação militar. Mas

acabaram por fracassar. A organização do movimento militar decidiu então

acelerar os preparativos. Alargou-se aos três ramos das Forças Armadas,

dotou-se de um programa político e aproximou-se dos generais que lhe

mereciam maior confiança – Costa Gomes e Spínola. Mas o segundo

jogava num projecto próprio e autónomo, só coincidente com o do

Movimento no objectivo de derrubar o Governo, e iria tentar pô-lo em

prática. A publicação do seu livro “Portugal e o Futuro” foi o primeiro

passo nesse sentido.

Pressionado pelo Presidente da República, Marcelo Caetano tentou

reagir, encenando uma manifestação de apoio à política colonial por parte

das mais elevadas chefias militares, exonerando depois aqueles dois

generais. E, em desespero de causa, enveredou pela repressão dos

16

principais oficiais da direcção do Movimento. Deixou de ser possível

recuar ou adiar por muito mais tempo a acção militar. Spínola tentou ainda

reverter a seu favor a situação, com o falhado «Golpe das Caldas da

Rainha». Mas, em lugar de o conseguir, acabou por favorecer os planos do

Movimento ao pôr em evidência as fragilidades das defesas do regime.

A comissão militar do Movimento das Forças Armadas, chefiada pelo

major Otelo Saraiva de Carvalho, ultimou entretanto o plano operacional,

distribuiu-o às unidades e realizou as últimas coordenações. E na

madrugada do dia 25 de Abril de 1974 desencadeou uma ampla e bem

conduzida operação militar que em poucas horas neutralizou as poucas,

fracas e desconexas resistências. Surpreendido pela dimensão e força do

movimento militar e com o amplo apoio popular, Marcelo Caetano

capitulou em poucas horas.

Em síntese. Tanto na Revolução de 5 de Outubro de 1910, como na

Revolução de 25 de Abril de 1974 as motivações mobilizadoras da

generalidade dos militares nelas comprometidos começaram por ser

sobretudo de natureza profissional, ainda que em alguns deles, poucos, se

fizessem sentir já outro tipo de fundamentos. A progressiva tomada de

consciência política fê-los evoluir progressivamente para o campo

republicano e democrático, respectivamente.

Em 5 de Outubro de 1910 foi bastante reduzido o número de oficiais,

sargentos, cabos e soldados do Exército activamente intervenientes nos

acontecimentos e maior e mais decisivo o papel dos marinheiros, embora o

número dos militares comprometidos com o movimento republicano fosse

muito superior. Em contrapartida, em 25 de Abril de 1974 os militares

assumiram total protagonismo na primeira fase da acção libertadora, numa

ampla movimentação que envolveu cerca de 700 oficiais, sendo 367

capitães, 201 majores e os restantes distribuídos pelos outros postos, de

17

alferes a general, um quantitativo que elimina à partida qualquer propósito

de comparação com o 5 de Outubro de 1910. A diferença de

comportamentos nas duas revoluções teve a ver, principalmente, com a

longa Guerra Colonial e com os seus efeitos nas Forças Armadas,

sobretudo, no Exército, arrastando-as para uma situação de deslegitimação

perante a opinião pública e de quase colapso militar, que não teve paralelo

com a crise que se viveu nos últimos anos da Monarquia.

Outro aspecto que, no plano militar, diferencia e, simultaneamente,

aproxima as duas revoluções, diz respeito à graduação dos protagonistas

mais implicados na génese dos movimentos e na execução das operações -

tenentes e sargentos no 5 de Outubro, capitães e majores no 25 de Abril -,

se bem que em ambos os acontecimentos se tivesse verificado também o

envolvimento de outros quadros de mais elevada graduação, mas em

número limitado, e não contando com os numerosos cabos e soldados. Ou

seja, em ambas as revoluções a força militar proveio dos quadros mais

novos, daqueles que estavam mais directamente em contacto com as

realidades, dos que mais sofriam as suas consequências e dos que mais

descomprometidos se encontravam relativamente aos regimes políticos que

lhes incumbia defender.

Um último ponto importante a registar, e que distingue muito

claramente as duas revoluções, tem a ver com lógica organizacional dos

militares. Em 5 de Outubro de 1910 a lógica organizacional foi exterior às

Forças Armadas, assumida sobretudo pelo Partido Republicano, pela

Maçonaria e pela Carbonária. Os principais oficiais do Exército que

integraram a Comissão Militar - capitão Sá Cardoso, capitão Afonso Pala e

tenente Hélder Ribeiro - eram membros activos da Maçonaria. Da Marinha

eram igualmente maçons o chefe militar da Revolução, almirante Cândido

dos Reis, também elemento importante da Carbonária, e os tenentes

Mendes Cabeçadas e Carlos da Maia que tomaram o comando do

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cruzadores Adamastor e D. Carlos. Em contrapartida, no 25 de Abril de

1910, a lógica organizacional foi exclusivamente militar - “Tudo se passou

em «família», entre militares sobretudo”11 , conclui Eduardo Lourenço.

3 º Causas comuns nas duas revoluções.

O 5 de Outubro de 1910

Como atrás se referiu, o republicanismo assumiu progressivamente um

carácter de movimento de renovação nacional, sobretudo entre os sectores

intelectuais e urbanos. Por impulso, sobretudo, do movimento da «Geração

de 70» e da agitação intelectual das «Conferências do Casino», as novas

ideias haviam inundado o País. Portugal, a sua história e o seu destino

foram então vivamente discutidos e problematizados, despertando uma

nova atitude sobre a realidade nacional. O Partido Republicano, fundado

em 1876, bebeu muita da sua inspiração ideológica original nesse

movimento cultural, muito embora a aspiração republicana fosse sobretudo

herdeira da corrente esquerdista do vintismo, do autêntico espírito

constitucional, da ideologia setembrista e das motivações das rebeliões da

Maria da Fonte e da Patuleia, tendo começado a concretizar-se mediante a

oposição à feição conservadora do liberalismo.

O ideário republicano caracterizava-se por um leque aberto de

tendências que se inseriam num mesmo horizonte iluminista, e que se foi

conformando e consolidando ao longo dos anos. Doutrinar, educar e fazer

evoluir a maior parte da população foram as suas principais linhas

programáticas, que imprimiram ao republicanismo nos primeiros tempos

uma atitude sobretudo pedagógica e doutrinadora de novos valores sociais,

sob o impulso de insignes figuras como Elias Garcia e José Falcão. 11 Eduardo Lourenço, Ibidem.

19

Reportando-se ao sistema político vigente, os republicanos

contrapunham: à Carta Constitucional de 1826 adoptada pela Monarquia, o

modelo da Constituição de 1822, assente na supremacia do poder

legislativo; ao poder divino, vitalício e hereditário do rei, a soberania

nacional e o carácter electivo e temporário dos cargos políticos; à

dependência e às afrontas externas, nomeadamente da Inglaterra, o

patriotismo; ao regime de privilégios individuais, de sangue e de classe, a

prevalência do interesse público sobre o particular e a igualdade de todos

os cidadãos perante a lei; à ideia liberal individualista, a superioridade da

comunidade, a cidadania participativa e os direitos sociais; ao voto

censitário, o sufrágio universal; ao clericalismo, a laicidade, traduzida na

separação das Igrejas do Estado, no registo civil, nas leis da família e na

educação pública obrigatória. Ou seja, o ideário republicano, muito para

além do objectivo político de operar uma mudança de regime,

consubstanciava ainda, fundamentalmente, um vasto conjunto de novos

valores que pretendiam dar corpo ao sonho de um Portugal moderno e a

uma autêntica ética republicana de bem público, utilidade comum, interesse

público e vontade geral, colocando a tónica na finalidade com que o poder

era exercido.

A dimensão comunitária foi uma das principais marcas do

republicanismo português. O indivíduo era identificado como cidadão que

só existia enquanto membro da comunidade, donde resultaram os traços

fundamentais da ética republicana: a superioridade do interesse público

sobre os privilégios individuais; a devoção ao serviço à comunidade; a

exigência de honradez e austeridade no exercício dos cargos; o zelo pelo

bom uso dos recursos nacionais; a moral da solidariedade e da fraternidade;

a igualdade no direito à educação e ao ensino, como condição para o

exercício pleno da cidadania, entre outros.

20

Infelizmente a República nasceu num período de grande complexidade

interna e externa, e a sua vida seria de uns curtos dezasseis anos. Herdou

um país com um persistente défice financeiro, atravessado por conflitos

políticos, sociais e religiosos, num contexto de crise europeia que

prenunciava a guerra mundial que explodiria quatro anos depois. A

República, por sua vez, gerou novos conflitos e agravou alguns dos

anteriores.

Têm existido distorções interpretativas sobre a I República, porventura

por resquícios da propaganda do Estado Novo. Mas a verdade é que, apesar

das dificuldades e do curto tempo de vigência, a I República levou a efeito

reformas importantes para fazer entrar Portugal na modernidade,

designadamente nos domínios do direitos civis, da laicização do Estado (a

reforma institucional mais importante), das leis da família, do registo civil,

da educação e do ensino, da assistência, do serviço militar, lançando

também as bases para a retoma do desenvolvimento económico do país. A

sua grande falha terá estado na transformação das mentalidades, que nunca

se chegou a fazer.

Depois, com a ditadura e o Salazarismo foi o atabafar das reformas e do

espírito da I República, sobrevivendo desta apenas uma memória

progressivamente mais ténue e a semântica republicana no texto

constitucional.

O 25 de Abril de 1974

A Revolução de 25 de Abril de 1974 refundou a República, restaurou e

aprofundou a liberdade e a democracia, pôs termo à guerra colonial, lançou

as bases para uma nova relação com as antigas colónias e mudou o rumo de

Portugal do Atlântico para a Europa.

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Aprendendo com os erros e omissões da primeira, a II República

realizou finalmente as promessas do 5 de Outubro de 1910:

institucionalizou o sufrágio directo universal, tanto masculino como

feminino; integrou os direitos económicos, sociais e culturais no alargado

conjunto dos direitos fundamentais dos cidadãos; consagrou a participação

cívica como um dos pilares Estado de direito democrático ao mesmo nível

da representação; promoveu um melhor equilíbrio dos poderes dos órgãos

de soberania; e instaurou o poder local e as regiões autónomas.

Em abono da verdade, terá de reconhecer-se que os avanços

conseguidos com a Revolução de 25 de Abril de 1974 foram enormes, quer

em termos dos direitos dos cidadãos, quer em termos da justiça social e do

desenvolvimento, designadamente nos domínios da democratização do

ensino, da saúde, socorro e assistência, da habitação e da segurança social,

do nível geral de vida da população, das infra-estruturas básicas e de

comunicação, e sobretudo, na emancipação dos cidadãos e na autêntica

revolução das mentalidades.

4 º Conclusão

Procurou evidenciar-se as analogias entre as transições da Monarquia

para a I República e do Estado Novo para o II República, bem como as

causas comuns que foram bandeiras dos novos regimes.

Tanto no caso da Monarquia Constitucional como do Estado Novo

ambos os regimes estavam mergulhados num processo de decadência

irreversível, fechados num círculo vicioso, desacreditados perante a opinião

pública, criticados pelos seus próprios partidários e contestados por

sectores cada vez mais amplos da sociedade, incluindo os militares.

Em 5 de Outubro de 1910, citando Douglas Wheeler, “a maioria dos

comandantes das unidades não era suficientemente pró-monárquica ou anti-

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republicana para se opor ao que parecia ser a vontade das classes médias e

baixas das cidades” 12. Em 25 de Abril de 1974, apoiando-nos agora em

Boaventura de Sousa Santos, “as forças armadas portuguesas foram

obrigadas a deslegitimar a guerra que não tinham podido ou sabido vencer

(...). Mas deslegitimar a guerra equivalia a recusar continuar a guerra,

equivalia, enfim, a recusar servir o regime. Privado do seu aparelho militar,

o regime colapsou” 13.

O 5 de Outubro de 1910 foi muito menos militar do que civil e popular,

foi um autêntico movimento revolucionário civil-militar. Em contrapartida,

o 25 de Abril de 1974 foi um pronunciamento militar que a espontânea

adesão do povo transformou em revolução. Em ambas os casos foi

fundamental a acção dos militares, mas foi o povo que teve o papel

decisivo.

Foram duas revoluções distintas mas semelhantes nas grandes causas

que as motivaram. Em boa verdade, o 25 de Abril de 1974 complementou o

5 de Outubro de 1910, retomando os grandes ideais do republicanismo, e

refundando e aprofundando a República: corrigiu os desequilíbrios dos

órgãos do poder político, estabelecendo a eleição directa do Presidente da

República e dupla dependência do Governo; superou as limitações do

sistema representativo, consagrando a cidadania participativa com igual

dignidade; alargou os direitos fundamentais dos cidadãos, instituindo o

Estado social e a descentralização política e administrativa.

Voltando a Eduardo Lourenço, “a democracia instaurada pela

Revolução de Abril, em 1974, nasceu acompanhada da vontade de inventar

um outro destino para Portugal. Um destino inédito, excepcional no

12 Douglas L. Wheeler, “ História Política de Portugal de 1910 a 1926”, Publicações Europa-América,

Lda, Mem Martins, p. 72. 13 Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988)”, Edições

Afrontamento, 1990, p. 27.

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contexto ocidental da Europa, nada menos que o de uma democracia

popular ”14 . Mas não seria esse o modelo que os constituintes escolheriam.

Trinta e sete anos depois da revolução libertadora de 25 de Abril de

1974, Portugal está de novo a braços com uma crise interna e externa grave

– política, económica, financeira e ética. E, como na I República, os

sectores mais atingidos são os ligados ao mundo do trabalho e aos direitos

económicos e sociais dos cidadãos.

Confrontados com uma crise semelhante, os republicanos, em lugar de

promoverem uma maior legitimação da República, enredaram-se em

disputas internas e em práticas corruptoras de captação de votos, movidos

sobretudo por projectos pessoais e partidários de conquista do poder,

acabando por transformar a crise de legitimação numa crise de legitimidade

do próprio regime. E a II República, a actual, parece estar a seguir-lhe o

exemplo.

É fundamental compreender que a superação da crise em que Portugal

está hoje, uma vez mais, mergulhado passa fundamentalmente por mais

democratização da vida nacional. A chave para a sua resolução está nas

mãos dos cidadãos. Só com maior envolvimento destes nos problemas

nacionais, com maior exigência na transparência e moralização da vida

política, com mais participação activa na procura das soluções, enfim, com

mais cidadania e mais democracia será ultrapassada a crise. Afinal, ao cabo

de trinta e sete anos, o que continua por realizar é a autêntica

republicanização da República, ou, por outras palavras, a efectiva

democratização da Democracia. Porque, como ensinou Raul Proença: “Há

só uma maneira de aprender a liberdade: é exercê-la. Só ela é capaz de

fazer homens livres”15 .

14 Eduardo Lourenço, “Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade”, Gradiva, Lisboa, 1999,

p. 69. 15 Raul Proença, in “Obra política de Raul Proença”, volume IV, Seara Nova, 1975, p- 96.