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    O significadohistrico da

    Revoluo deOutubro*

    DOMENICO LOSURDO **

    Esplendor e misrias dabelle poqueA Unio Sovitica cede o lugar Santa Rssia, a bandeira vermelha

    tricolor czarista, Leningrado volta a se chamar So Petersburgo, os sovietes

    so bombardeados ou dissolvidos por Bris lltsin para serem substitudospelas dumas, de feliz memria czarista, numerosos partidos comunistas, entreos quais o italiano, mudam precipitadamente de nome para sublinhar suadiferena com respeito ao processo histrico iniciado com o Outubro de1917: a nostalgia do bons tempos antigos se difunde no apenas entre osleitores de folhetins transbordantes de amores e lgrimas dos rebentos dasdesaparecidas dinastias, mas tambm entre no poucos expoentes de umahistoriografia e jornalismo sempre mais acriticamente "revisionista" eencontra, enfim, sua consagrao nas tomadas de posio de Joo Paulo II,empenhado em retratar o nosso sculo como o sculo do pecado. Convmento dar uma espiada no mundo assim ternamente transfigurado pelossuspiros e pelas mistificaes da ideologia dominante, o mundo revirado ou

    Traduo de Eduardo Mei. Reviso e notas de Joo Quartim de Moraes. Publicamos os trs primeirostpicos do estudo intituladoDalla Rivoluzione dOttobre al nuovo ordine intemazionale. Os subttulos 2e 3 so do original, mas o ttulo geral destes trs primeiros tpicos ("Significado histrico da Revoluode Outubro") bem como o subttulo do 1 tpico ("Esplendor e misrias da belle poque") so nossos. Nooriginal este primeiro tpico no tem subttulo prprio. O leitor constatar que se trata de um excelentetrabalho histrico, que desmonta - como fina ironia, notvel erudio e firmeza intelectual - asimposturas da reao burguesa, desnudando os profundos vnculos entre liberalismo, fascismo,colonialismo e belicismo. Uma leitura indispensvel para quem leva a srio o tema da revoluosocialista.

    *Domenico Losurdo professor de Filosofia da Universidade de Urbino, Itlia. Autor de importantestrabalhos de Filosofia poltica, entre os quais se destacam: Democracia e bonapartismo. Triunfo edecandeza del sufragio universale, Ed. Bolatti Boringhieri, Turim eHegel, Marx e la tradizion liberale,Ed. Riuniti.

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    colocado radicalmente em crise pela revoluo bolchevique.

    Belle poque eancien regimeNo incio do sculo XX, nenhuma nuvem revolucionria parecia turvar a

    atmosfera encantada (para as cabeas coroadas e as classes dominantes) da bellepoque. Em 1910, at um funeral, o de Eduardo VII da Inglaterra, deu ocasio paraum extraordinrio desfile e uma impressionante demonstrao de fora e deesplendor dos potentados e dignatrios do antigo regime. No cortejo fnebre, atrs"da carroa de canho sobre a qual est colocado o corpo do soberano defunto",destacam-se o "ginete favorito do rei-imperador" e, mantido na coleira por um lacaioescocs, "Csar, o fox-terrier branco amadssimo pelo defunto rei". Depois, comorecorda Amo J. Mayer, desdobra-se um squito

    estupefaciente e grandioso. O rei Jorge V a cavalo guiava uma cintilante tropade reis, de duques reais e de prncipes herdeiros, todos igualmente a cavalo.

    Havia nove monarcas, sem exceo descendentes de Guilherme, o taciturno,dispostos em uma ordem de precedncia determinada pelo parentesco. Naprimeira fila. ladeando o novo rei ainda no consagrado, cavalgavam o duquede Connaught e o imperador Guilherme II da Alemanha, respectivamenteirmo e sobrinho de Eduardo. O kaiserGuilherme, o mais impvido entre ossenhores da guerra da Europa, destacava-se "firme em sua cela como umcentauro, seu semblante era severo e composto como o de uma esttuaromana". Nas sucessivas fileiras, cavalgavam Haakson da Noruega, Jorge daGrcia, Alfonso da Espanha, Fernando da Bulgria, Frederico da Dinamarca,Manuel de Portugal e Alberto da Blgica. Nessa augusta procisso, Nicolau daRssia era representado pelo irmo, o gro-duque Mikhail; Francisco Jos I doImprio austro-hngaro pelo herdeiro designado, o arquiduque Francisco

    Fernando; e Vtor Emanuel III da Itlia pelo primo, o duque de Aosta. Entreos notveis a cavalo encontravam-se ainda prncipes e duques representando aHolanda. a Sucia, a Romnia, o Montenegro, a Srvia. a Turquia, o Egito, oJapo, o Sio, os Estados alemes e a famlia real inglesa. O prncipe Tsai-taoda China e seu squito estavam na stima das doze carruagens de Estado,enquanto Theodore Roosevelt, que representava o presidente dos EstadosUnidos, William Howard Taft, ocupava a oitava juntamente com StephenPichon, ministro do Exterior da Frana, que representava o presidenteFallires.

    Trs anos depois, em fevereiro de 1913, a Rssia festejava o terceirocentenrio da dinastia Romanov: "o calendrio repleto de celebraesculminou na grandiosa, magnfica procisso do Palcio de Inverno catedral

    de Kazan para o solene Te Deum. A assemblia de dignatrios reunida para orito de ao de graas era composta, no diversamente do que no passado, poraristocratas, burocratas, oficiais e diplomatas, quase todos demais comcintilantes espadas no flanco e paramentados em resplandecentes uniformes

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    cobertos de adornos. Sim, o tempo parecia ter se interrompido, e durantetais festividades Nicolau 11, "o Imperador e autocrata de todas as Rssias",no podia deixar de reviver na memria a cerimnia que, em 1896, uma veztranscorrido o luto de um ano prescrito pela morte de Alexandre III, havia

    confirmado a sua ascenso ao trono. Naquela ocasio, documentou ohistoriador Marc Ferro, haviam lhe prestado homenagem Henrique daPrssia, irmo de Guilherme II, o prncipe de Connaught, irmo do rei daInglaterra, Nicolau de Montenegro, o prncipe herdeiro da Grcia, o daRomnia, trs gro-duques, uma rainha, dois monarcas reinantes, dozeprncipes herdeiros e outros dezesseis entre prncipes e princesas".

    A cerimnia esteve altura deste seleto pblico; recorda Mayer:Em 14 de maio, depois que o coro da corte acompanhou a Fanfarra deTchaikovski, a imperatriz viva Maria Fdorovna guiou o cortejo dirigido aomais sagrado templo da Rssia para a cerimnia de coroao, a coroacaminhou sob um baldaquino sustentado por dezesseis notveis de alto nvel,seu manto de cor prpura sustentado por quatro cavalheiros e dois mestres decaa. A imperatriz apenas havia tomado lugar na catedral, quando trinta e dois

    oficiais trouxeram-lhe um magnfico baldaquino sustentado por dezesseisestacas aos ps da Escadaria Vermelha, onde trinta e dois generais renderam-lhe a troca, mas foi s depois que oprotopop Janysev aspergiu gua benta nocaminho da procisso, e dois metropolitanos difundiram rios de incenso sobreos emblemas imperiais na entrada da catedral, que Nicolau e Alexandraemergiram para tomar lugar sob o baldaquino, e dirigir-se assim para o lugarda cerimnia. O imperador vestia o uniforme das Guardas Preobajenski e ascondecoraes das ordens de Alexandre e Sant'Andrea; sua consorte umhbito de brocado de prata bordado pelas freiras do convento Ivanvski, eadornado pelas insgnias da Ordem de Santa Catarina. Juntos na Igreja, foramescoltados at os dois preciosos tronos sagrados que remontam aos sculosXVII e XV, e o ritual leve incio.

    Inumerveis outras cerimnias do gnero (em Viena, em 1908, nosexagsimo aniversrio do interminvel reino de Francisco Jos; em Roma,em 1911, no qinquagsimo aniversrio do reino da Itlia sob os Savia; emPotsdam, em 1913, no vigsimo quinto aniversrio do reino de Guilherme 11)escandiram a belle poque. Neste momento, no obstante a hemofilia doherdeiro do trono vindo luz em 1913, a mesma dinastia Romanov pareceslida e at inabalvel, tanto mais que, longe de estar isolada, adapta-seperfeitamente paisagem poltica da poca, ainda em larga medida marcadapor um antigo regime que v fundir-se numa nica e harmnica famlia ascasas reinantes na Europa, sem distinguir ou inserir diafragmas entre aautocrtica Rssia, a Prssia militar-feudal e a liberal Inglaterra: primo deGuilherme 11, Nicolau 11 por sua vez sobrinho da rainha Vitria, e osHohenzollern, os Romanov e os Assia-Hannover gostam de se reunir, por o-

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    ocasies de festas e noivados, em torno de Cristiano IX, rei da Dinamarca,que como o chefe da famlia, sendo ao mesmo tempo, graas aosmatrimnios das filhas, o av do czar e o sogro do futuro Eduardo VII daInglaterra.

    Essas deslumbrantes cerimnias respondem tambm a uma acuradamanipulao poltico-social. Um ilustre terico da Inglaterra vitoriana, WalterBagehot, tinha na sua poca teorizado explicitamente que o consenso damultido considerada infantil devia ser obtido distraindo a sua ateno das"necessidades fsicas comuns" e canalizando seu entusiasmo para idias ouespetculos grandiosos e fascinantes, fazendo apelo "a algum vago sonho deglria, ou ao imprio ou ainda nacionalidade", a "algo de sugestivo queparea transcender a realidade" e a "vida ordinria".

    Tal manipulao no deixa de obter sucessos, ainda uma vez semdistino, no mbito da nica esplndida famlia europia do antigo regime,entre uma dinastia e a outra. Dois milhes de pessoas assistem religiosamenteaos funerais de Eduardo VII.

    Ainda mais impetuoso foi o entusiasmo mostrado pelos russos porocasio da coroao de Nicolau U. Marc Ferro ainda que' recorda que

    depois do destile, o pblico vindo de toda a Rssia se reagrupou no campoChoynka apinhando-se sobre os estrados para a tradicional distribuio depresentes. Desde as 6 da manh, cada um buscava obter os melhores lugares.De repente, a massa se precipitou para frente como se fosse seguida pelo fogo.As ltimas filas se espremeram sobre as primeiras em uma confusoindescritvel, e foram milhares as vtimas esmagadas e sufocadas. Poucosinsltnles depois, quando o pblico pde dar-se conta do ocorrido, nada maishavia a fazer. No cho foram recolhidos 1.282 cadveres e entre 9.000 e20.000 feridos".

    Aps ter assumido as despesas das exquias e conceder mil rublos paracada famlia atingida, o czar agradeceu ao povo russo pela sua impetuosamanifestao de afeto, "um comovente consolo depois desses difceis dias".

    Direitos civis, polticos e econmico-sociais

    O antigo regime a anttese da democracia. Do gozo dos direitospolticos so excludos, em primeiro lugar, as mulheres. Na Inglaterra,Emmeline Pankhurst, que dirige o movimento das eleitoras, obrigada avisitar periodicamente as prises ptrias. Mas Lenin observa que, no pasclssico da tradio liberal, no apenas as mulheres so privadas da cidadaniapoltica: o direito eleitoral " ainda limitado o bastante para excluir o estratoinferior propriamente proletrio"; alm disso, alguns estratos privilegiadoscontinuam a gozar do voto plural que ser completamente suprimido somente

    em 1948.

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    Tambm onde o sufrgio masculino tornou-se universal ou quaseuniversal, ele acaba neutralizado pela presena da Cmara Alta que apangio da nobreza e das classes mais privilegiadas. No Senado italiano tm

    assento, na qualidade de membros natos, os prncipes da Casa de Svia;todos os outros so nomeados em vida pelo rei, sobre indicao do presidentedo Conselho. O Senado italiano apresenta "numerosas semelhanas defamlia" com todas as outras Cmaras altas europias que, com exceo dafrancesa, no so eletivas, mas caracterizadas por "uma mescla dehereditariedade e de nomeao real". Na Gr-Bretanha, a Cmara Alta,excetuados poucos bispos e juzes, inteiramente hereditria. At no que dizrespeito ao Senado da Terceira Repblica francesa, que todavia tem nascostas uma srie ininterrupta de agitaes revolucionrias culminadas naComuna, de notar que ele resulta de uma eleio indireta e constitudo demodo a "garantir uma marcada super-representao das aldeias e dos

    pequenos centros contra Paris e as cidades maiores", em completa vantagem,assim, da conservao poltico-social.Se atravessamos o Atlntico, o quadro se apresenta, sob alguns aspectos,

    at pior. Contrariamente aos mitos correntes, tambm nos Estados Unidosestamos muito distantes do sufrgio "universal". Deixemos de lado os peles-vermelhas, ou melhor, os seus sobreviventes que tiveram reconhecida peloCongresso a qualidade de cidados americanos apenas em 1924 (Estadoscomo o Novo Mxico e o Arizona recusaram-lhes o direito de voto at 1948).No vo melhor as coisas no que concerne aos negros; mas deve-seacrescentar que no poucos brancos pobres esto excludos dos direitospolticos (as restries raciais e censitrias sero totalmente canceladas

    somente no decnio 1960-70).Mas da democracia como hoje a compreendemos fazem parte tambm os"direitos sociais e econmicos" sancionados pela Declarao universal dosdireitos do homem adotada pela ONU em 1948. Pois ento, foi o grandepatriarca do neoliberalismo, Friedrich August von Hayek, quem denunciou ofato de que a teorizao de tais direitos remete influncia por eleconsiderada funesta da "revoluo marxista russa".

    Naturalmente, o movimento operrio no esperou o 1917 para lutar peloreconhecimento de tais direitos. Mas a reao da classe dominante foifreqentemente brutal, e no apenas na Rssia czarista. Dois anos depois dafaustosa cerimnia da coroao de Nicolau II, em Milo o general BavaBeccaris recebe intrepidamente a tiros de canho a multido que protesta peloencarecimento do po, assassinando uma centena de indefesos e merecendocom este feito de armas uma alta condecorao do rei Umberto.

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    Nesse mesmo perodo, um eminente estadista americano (TheodoreRoosevelt que depois de exercer a presidncia dos Estados Unidosparticiparia do solene cortejo fnebre de Eduardo VII) formula nestes termossua filosofia poltica e social: a ordem "ser mantida a qualquer custo; se forpreciso disparar, dispararemos, e no tiros de festim ou acima das cabeas daspessoas"; "agrada-me ver as tropas ou a brava Guarda Nacional malhar amultido, sem excessivos escrpulos pelo derramamento de sangue"; "comofoi suprimida a Comuna de Paris, assim se podem suprimir os sentimentosque animam agora uma grande parte do nosso povo, tomando dez de seuslderes, colocando-os contra um muro e fuzilando-os. Penso que se chegar aisto".

    A chaga do racismo

    Os bons tempos antigos, idolatrados por todos os empenhados emdemonizar a Revoluo de Outubro, apresenta porm uma chaga ainda pior.

    Enquanto na Rssia czarista se aulam os pogroms contra os judeus, nosEstados Unidos a fria racista se desata contra os negros, os quais, alm dosdireitos polticos, so privados tambm dos mais elementares direitos civis.No primeiro ano do sculo XX, foram linchados nos Estados Unidos mais de100 negros e antes do estouro da primeira guerra mundial, a cifra salta paramais de 1.100. A crueldade dos racistas no conhece limites: no poucasvezes as vtimas so queimadas vivas. O apartheid estendido em algunscasos at aos elevadores. Assiste-se a uma "nova escravizao" dos negrosobrigados a trabalhar por salrios de fome impostos no pelo mercado, maspela fora bruta dos patres brancos. Um extremista chega at a teorizar anecessidade de "assassinar e riscar da superfcie da terra" os negros de modoa neutralizar "a ameaa nacional terrvel, infausta" que fazem pesar sobre a

    civilizao americana e "ariana". O mito ariano no foi utilizado apenas emrelao s populaes de cor. Na Itlia, uma difundida publicidadeestigmatiza os meridionais como uma raa inferior, no ariana,"mediterrnea" e "suja". Objeto de discriminao racial tornaram-se osrebeldes e marginalizados. Entre o fim do sculo XIX e o incio do XX,desenvolve-se nos Estados Unidos um movimento que pretende impedir aprocriao aos elementos inclinados ao delito, bloqueando assim atransmisso das tendncias criminosas e liberando a sociedade de um lastrointil: entre 1907 e 1915 trinta Estados decretam leis de esterilizao forada,que deve sujeitar, segundo a legislao de Indiana (o primeiro Estado que semove nessa direo), "delinqentes habituais, idiotas, imbecis e

    violentadores". No faltaram os que propugnaram a aplicao de tallegislao tambm aos vagabundos (no mais das vezes negros). Trata-se detendncias e idias que encontramos at em Winston Churchill!

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    O imprio e acolniaPorm, voltemos por um instante morte de Eduardo vn. O seu sucessor

    Jorge V, depois de ter sido coroado rei em Londres, toma parte na ndia, noano seguinte, da cerimnia que o eleva dignidade de imperador.

    Paramentados com as vestes da coroao, os longos mantos sustentados porpagens ricamente vestidos que eram vrios prncipes indianos, as SuasMajestades Imperiais subiram os degraus do palco que se elevava altssimo eisolado no centro do anfiteatro. Recostados sobre dois tronos resplandecentes

    circundados de objetos cerimoniais e emblemas, aceitaram as homenagensdos seus servidores e sditos. Lorde Hardinge, o governador geral, na suaveste poltica e com as flutuantes insgnias da Ordem da Estrela da ndia,subiu sobre o palco mantendo uma posio inclinada, e enfim, se ajoelhou ebeijou a mo do rei imperador. Depois que os membros do conselho do vice-rei cumpriram a sua reverncia aos ps do palco, foi a vez dos altivos eimponentes - mas submissos - marajs da ndia c dos chefes tribais das zonasde fronteira de render homenagem ao seu senhor. (A.J. Mayer)

    A esta esplndida cerimnia e a outras anlogas, com as quais as grandespotncias coloniais buscavam imprimir a representao da sua infinitasuperioridade na mente dos "indgenas", corresponde a realidade de umdomnio que se permite recorrer servido e a uma forma mais ou menos

    camuflada de escravido e at mesmo ao massacre em larga escala. Comoobservou Hannah Arendt, "a Blgica reduz a populao indgena (do Congo)de 20-40 milhes em 1890 para 8 milhes em 1911". Talvez o genocdio das"raas inferiores" parea indiretamente teorizado ou sugerido. TheodoreRoosevelt assim se exprime: "No chego ao ponto de crer que s ndio morto ndio bom, mas creio que, na prtica, verdade nove casos em cada dez;isso sem aprofundar demais o caso do dcimo".

    Nas colnias da Europa "civil" e liberal aparecem at campos deconcentrao, onde a Inglaterra entre 1898 e 1900, recolhe os beresrebeldes ou suspeitos, inclusive mulheres e crianas. Por causa das terrveiscondies de vida e da conseqente profuso de doenas e epidemias no

    interior dos campos de concentrao (a expresso comea a entrar em usoprprio a partir da guerra anglo-ber), a mortalidade atinge uma taxaelevadssima. A indignao generaliza-se na medida em que a repressoatinge uma populao de origem europia e no simples indgenas da frica.O tratamento infligido a esses ltimos assim descrito e justificado por umautor destinado a depois tornar-se clebre, antes de se tornar marca registradadas autoridades do Terceiro Reich: "Os beres cristos" - observa LudwigGumplowicz "consideram os homens da selva e os hotentotes no comohomens mas como seres que lcito exterminar guisa de caada nobosque".

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    Em busca de "uma pequena guerra vitoriosa"

    Vimos o terico da Inglaterra vitoriana teorizar a possibilidade e anecessidade de conquistar o consenso da multido infantil mediante "algo desugestivo" ou "algum vago sonho de glria". Nesta categoria incluem-secertamente as esplndidas cerimnias que vimos, mas tambm as expedies

    e as conquistas coloniais, bem como os conflitos de maiores dimenses: amultido que se esmaga para assistir coroao de Nicolau 11 ou aosfunerais de Eduardo VII acaba por morrer nas trincheiras e na lama daprimeira guerra mundial. "Uma pequena guerra vitoriosa", "uma pequenaesplndida guerra" o sonho, nos incios do sculo, do ministro de polcia dogoverno czarista e de Theodore Roosevelt. Na Itlia, Vilfredo Pareto se excitamais ainda, quando, em 1904, escreve: "Se h uma grande guerra europia, osocialismo jogado para trs pelo menos por um meio sculo e a burguesiafica salva durante esse tempo". E nos incios do gigantesco conflito,deflagrado em primeiro lugar por causa das insanveis contradies quelaceram as potncias imperialistas, mas que tambm utilizado pelas classes

    dominantes para desviar a ateno dos problemas internos, o clculo parecerealizar-se: em toda parte cria-se um clima de sagrada unio nacional que naRssia contagia, inesperadamente, tambm o marxista George Plekhnov e oanarquista Piotr Kroptkin, de modo que 1914 apresenta-se como "o ano deglria do czarismo; na Europa e no mundo entoa-se um coro que proclama ofim do marxismo e da luta de classes, dado que, como mais tarde observar,irnico e triunfante, Pareto, com a ecloso da guerra com a participao dosdiversos partidos socialistas, "o preceito do mestre [Marx]: 'proletrios detodos os pases, uni-vos' transformou-se implicitamente em outro: 'proletriosde todos os pases, assassinai-vos'''.

    Certamente, o delrio da multido dura pouco: a realidade das trincheiras

    se encarrega de faz-la tomar juzo; e com ela sobressaem em primeiro planoa lei marcial, os pelotes de execuo, as dizimaes (1). No Parlamento, oministro "reformista" Leonida Bissolati revoltado com os deputadospacifistas ou com todos os no suficientemente belicosos, urra: "pela defesado pas, eu estarei pronto para disparar sobre todos vocs!". Para no morrer,para no ser obrigado a morrer, no poucas vezes os soldados procedem automutilao: "tmpanos perfurados com pregos, cegueira procuradaespargindo nos olhos secrees blenorrgicas, abcessos obtidos com injeessubcutneas de benzina, petrleo ou piche, mos decepadas com golpes de

    1. Dizimar, no lgubre lxico militar, significa fuzilar um em cada dez soldados de uma unidade culpada deato de indisciplina.

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    sapa ou trituradas sob grandes pedras, tiros de arma de fogo disparados queima-roupa nas mos ou nos ps". Mas a justia militar tudo v, seusespies esto por toda parte, e no poucos dos automutilados acabamcondenados morte; para no perder tempo, um general italiano, Antonio

    Graziani, procede inspeo das trincheiras constantemente acompanhadodo peloto de execuo.

    Sim, o povo no quer a guerra; e, todavia - brada o democrata GuidoDorso -, veremos assim mesmo "uma minoria audaz e genial que arrastarpela goela esta turba de mulas e de covardes a morrer como heris ou avencer como triunfantes". Tambm gravemente feridos, estes "covardes" nosuscitam compaixo: um outro democrata, Gaetano Salvemini, observa aogoverno que desaconselhvel mand-los "passar o perodo deconvalescena em famlia porque os seus discursos sobre os perigos, osincmodos e as mortes em guerra teriam 'efeitos psicolgicosperigosssimos'''. No h salvao nem para os mutilados ou para os que

    ficaram abalados demais no nin1o: bom que se abstenham do matrin1nio- esta a respeitvel opinio do padre Gemelli, que sugere "remdioseugnicos negativos que tm o propsito de in1pedir ou ao menos limitar onascimento de indivduos portando no seu organismo ou na sua vida psquicaos traos indelveis do sofrimento padecidos pelos genitores por causa daguerra". Estamos, agora, para usar as palavras de Rosa Luxemburgo, no"genocdio": "a cante de canho carregada sobre os trens em agosto esetembro [1914] e patrioticamente exaltada, apodrece agora na Blgica, nosVosges(2), na Masria (3) em campos de morte sobre os quais o lucro passaa sua face inexorvel". As cerimnias com as quais a esplndida famlia doantigo regin1e celebrava o seu poder e a sua glria" esto suspensas: "cada

    soberano por graa divina aponta para aniquil-lo, exige e celebra "oextenn1io em massa" que, a partir de agora, "tomou-se assunto de todos osdias". O "genocdio" da primeira guerra mundial parece evocar outros. ARssia czarista (autocrtica mas envolvida em uma relao estreita dealiana e de solidariedade com os pases liberal-democrticos) deporta osudeus, suspeitos de pouca fidelidade, para zonas de confinamento. Um

    deputado da Duma asSin1 descreve as modalidades da operao: em Radom,na Polnia central, s 23 horas, "a populao informada que deveabandonar a cidade, com a an1eaa de que qualquer pessoa que for surpreen-

    2. Cadeia de montanhas separando a Frana da Alemanha na regio da Alscia e do Reno.

    3. Regio lacustre ao sul da costa bltica, historicamente disputada pelos prussianos e poloneses. Em 1914e sobretudo no glacial ms de fevereiro de 1915, russos e austro-alemes l travaram uma das maissangrentas batalhas I Grande Guerra.

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    dida na aurora ser enforcada (...) Devido falta de meios de transporte,velhos, invlidos e paralticos devem ser carregados. Polcia e gendarmestratam os judeus como criminosos. Um trem foi completamente lacrado;quando finalmente o reabriram, a maior parte dos que estavam dentroagonizava".

    Do meio milho de judeus deportados, cem mil no sobreviveram. Mas oclima de histeria e loucura contagioso: nos Estados Unidos o reverendoNevell Dwight Hillis "proclama do plpito a convico segundo a qual osalemes so geneticamente tarados e prope um plano de extermnio do povoalemo mediante a esterilizao forada de dez milhes de machos". Sim,Rosa Luxemburgo tem razo. Agora em todos os pases envolvidos no ferozconflito h uma "atmosfera de assassnio ritual", um clima que j fede a"soluo final". Este o mundo caro aos nostlgicos dos bons tempos

    antigos; este o mundo contra o qual se levanta a Revoluo de Outubro.

    Golpe de Estado ou revoluo?

    Em nossos dias, quase um lugar comum definir Outubro como umgolpe de Estado, mais ainda, culpado de ter enxotado "a democracia queestava se edificando sobre as l1Inas do czarismo e havia de levar o pas aoOcidente.

    O Ocidente, Kerenski e a democracia

    Em realidade, os governos e as burguesias dos pases da Entente(Inglaterra, Frana, Rssia e Itlia), depois de terem esperado que aderl1lbada do czarismo relanasse a participao da Rssia na guerra

    "democrtica" contra os Imprios Centrais (ustria-Hungria e Alemanha),viam com profunda desconfiana a nova situao e a "desordem" criadas coma revoluo de Fevereiro e se colocam na busca frentica de um homem forte. o prprio Alexandr Kerenski quem denuncia, nas suas memrias, o auxliode todos os gneros alimentcios fornecidos pelo Ocidente a todos os"compls militares" que visassem a "instaurao de uma ditadura".

    Se no so os seus aliados ocidentais, Kerenski que representa a causada democracia? O dirigente mencheviquc um fervoroso chauvinista,decidido a prosseguir a guerra a todo custo: mais tarde, confessarcandidamente que, nas suas intenes, a revoluo de Fevereiro devia servirpara tornar a deslanchar as operaes militares da Rssia, bloqueando

    qualquer tentativa de "paz separada".Mas a nova situao criada favorece o desenvolvimento dasreivindicaes nacionais dos povos tradicionalmente oprimidos pelo czaris-

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    mo: entre os primeiros a exigir a independncia esto a Polnia e a Finlndia.Disposto a concesses no que diz respeito Polnia j ocupada pelas tropasalems, o governo provisrio intransigente sobre a Finlndia. Ochauvinismo caminhapari passu com o no reconhecimento dos direitos dospovos oprimidos.

    Como logo fazem notar os bolcheviques: no " digno do socialismo, masnem mesmo do simples democratismo tratar deste modo as naes oprimidas"

    - observa Vladimir Ilich Ulianov, chamado Lenin, que portanto, ao menossobre este ponto, quem representa a causa da democracia.Guerra e mobilizao total

    A escolha pela continuao da guerra , ao mesmo tempo, uma escolhapelas medidas totalitrias impostas por uma guerra total. O zelo belicista dosmencheviques leva um dos seus, Plekhnov, a publicar um artigo (cheio dedesprezo no s para com os comunistas ou socialistas de esquerda, mastambm para com os "tolstoianos" e todos os "pacifistas chores") sobre "Opovo da Itlia" dirigido por Benito Mussolini, futuro lder do fascismo mas jneste momento empenhado em reivindicar o punho de ferro em prejuzodaqueles contra quem tambm brada o expoente menchevique.

    Em julho, Kerenski lana uma ofensiva militar: a palavra de ordemdominante a da disciplina que implica o frreo controle dos soldadospacifistas e at o recurso ao fuzilamento; conseqentemente, aumenta o peso e"a autoridade dos oficiais czaristas".

    Os sentimentos e a vida dos soldados e das massas urbanas contam bempouco: necessrio manter firmes os objetivos de guerra e demonstrar aosAliados que a nova Rssia est decidida a lutar e a prosseguir o massacreat o fundo: nos fins de julho, reintroduzida a pena de morte tambm para oscivis. Naturalmente, Kerenski sabe muito bem que tal linha poltica se chocacontra a crescente vontade de paz do povo russo e com a resistnciaorganizada de um partido poltico bem preciso, que o bolchevique.

    O brao de ferro inevitvel. A direita no seu complexo aspira a umLouis Cavaignac, o general que soube desbaratar impiedosamente a revoltaoperria de junho de 1848 em Paris e que, na Rssia, parece dever encamar nodirigente menchevique: "Tomado presidente do conselho a partir de julho esob a constante presso dos embaixadores dos aliados, Kerenski pensaseriamente em instaurar, nesta situao de emergncia, um tipo de ditadura";com tal fm1, vale-se da colaborao do general dos Cossacos e comandantesupremo, Lavr Georgevich Komilov, o qual, porm, tenta ele mesmo umgolpe de Estado, que pode ser contraminado s com a ajuda decisiva dopartido bolchevique.

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    A superioridade moral dos bolcheviques

    Cito aqui o historiador Ernst Noite, fervoroso anticomunista, que em talcircunstncia deixa escapar uma significativa descrio do comportamento

    dos bolcheviques:Eles opuseram um exrcito de agitadores s tropas avanadas do comandantesupremo para convenc-las de que, obedecendo aos seus oficiais, agiriamcontra os seus mais autnticos interesses, prolongando a guerra e aplainando aestrada para a restaurao do czarismo. E assim, na marcha sobre Petrogrado,e antes ainda em diversas localidades do pas, as tropas sucumbem fora depersuaso de argumentos que simplesmente articulavam os seus desejos e assuas angstias mais profundas e dos quais nem haviam tomado conscincia.Para nenhum dos oficiais presentes poderia ter sido possvel esquecer como osseus soldados debandavam, no sob o fogo das granadas, mas sob atempestade das palavras.

    Portanto, os bolcheviques logram bloquear a contra-revoluo,contrapondo de modo organizado fora militar do exrcito argumentos queencontram profunda ressonncia nos soldados. A sua superioridade no estno uso mais desenvolto da violncia. Compreende-se agora a influnciacrescente dos sovietes e a afirmao no seu interior da hegemonia dosbolcheviques, e compreende-se outrossim o alarme das classes dominantes:"Para a grande burguesia, para os chefes militares" da Rssia - observa ohistoriador Marc Ferro - chegada a hora de "pr fim ao duplo poder,desembaraar-se'dos sovietes, prender os bolcheviques e fuzilar osdirigentes".

    A tais preparativos no so completamente estranhos os mencheviques,agora convencidos da necessidade "de recorrer fora contra os seus irmos

    rebeldes", e isto contra os bolcheviques. Dada a irredutibilidade docontraste sobre o tema da guerra e da paz e em uma situao caracterizadapelo esfacelamento das estruturas estatais e da presena de um duplo poder (ogoverno provisrio de uma parte, os sovietes de outra), a prova de fora inevitvel, "e vo perguntar quem comeou".

    No apenas o recurso violncia no caracteriza exclusivamente a aodos bolcheviques, mas estes conquistam o poder poltico em primeiro lugarem virtude da hegemonia que logram exercitar no mbito do movimento demassa agora incontvel. Sobretudo, radicalizando-se, a rede dos sovietescomea a formar uma espcie de Estado paralelo ao qual provavelmente faltauma cabea: em outubro esta cabea o partido bolchevique.

    Inversamente, o Estado legal tem seguramente uma cabea, o governo

    provisrio, mas os vrios organismos no respondem mais s suas ordens nomomento em que os sovietes controlam a vida do pas. Em Petrogrado, mas

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    tambm em outras cidades e entre as tropas, os bolcheviques conquistaramagora a maioria no interior dos sovietes: sovietes dos deputados, sovietes doscomits de fbrica, sovietes dos comits de bairro etc. Podem assim apossar-se do poder e fortalecer-se graas a uma insurreio armada que abrevia, dealgum modo, sua tomada de controle sobre o pas.

    Algo diferente de um golpe de Estado! Quando depois de Outubro,Kerenski tenta uma contra-ofensiva, as tropas por ele reunidas debandam

    "sob o npeto da agitao", como ocorreu precedentemente com as tropas deKomilov. Citamos ainda uma vez Ernst Noite que todavia tambm fala emgolpe de Estado; porm, os fatos apresentados pelo historiador so umconstante esquecimento do parti pris do idelogo. Em realidade, no s aconquista mas tambm a conservao do poder por parte dos bolcheviquesno se logra explicar sem a sua capacidade de exercer uma hegemoniapoltica.

    Em 1919, enquanto est em curso a ofensiva contra o poder soviticodesencadeada por Alexandr Vasilievich Kolchak, Churchill se ope idiade uma trgua militar entre os dois beligerantes (que deveria ter tomadopossvel o socorro alimentcio para uma populao civil famlica) com um

    argumento sobre o qual vale a pena refletir: a trgua s teria prejudicado astropas de Kolchak, que acabariam por dissolver-se sob o choque da"propaganda bolchevique que ainda mais considervel que as armasbo1cheviques" .

    Como se v, um estadista "ocidental", sempre pronto a pintar obolchevismo como um fenmeno de pura violncia, que prefere o recurso sarmas e teme o confronto pacfico das opinies. Tanto mais ridculo resultaeste mito da ideologia dominante, se consideramos que o citado historiadoracaba reconhecendo a contragosto no s o forte consenso popular deOutubro, mas definitivamente a falta de alternativa revoluo bolcheviquee ao seu contedo socialista: "Este mpeto das grandes massas para se

    apropriar daquilo de que at ento estavam privadas - a autoestima, aparticipao, a cultura - assume as formas mais disparatadas, e mesmo seLenin o tivesse desejado, dificilmente teria podido impedir que os operriosassumissem o controle das fbricas e que falassem cada vez mais emsocialismo".

    A reao russa e a guerra como laboratrio do

    nazismo e do fascismo

    Quantos livros foram escritos para assimilar o comunismo aonazismo ou ao fascismo, como formas diversas de ditaduras ou de regimes

    totalitrios? Porm, se estudamos a histria da Rssia do sculo XX, damo-nos conta de que a ideologia e os mtodos que depois se tornaram prprios

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    do fascismo e do nazismo emergem e se desenvolvem progressivamentecomo reao exatamente ao movimento revolucionrio russo.

    Sindicatos amarelos e organizaes protofascistas

    Na tentativa de enfrent-lo, no incio deste sculo, um funcionrio do

    Ministrio do Interior do governo czarista, Sergei Vasilievich Zubatov, teveuma idia audaz: promover uma espcie de sindicato amarelo sob o olhovigilante da polcia, com o objetivo de arrancar do movimentotendencialmente socialista a sua base social. Todavia, tal iniciativa acaba porestimular uma transbordante agitao que, escapando a todo controle do alto,desemboca depois na revoluo de 1905. Nem por isto a reao czaristadesiste da tentativa de buscar instrumentos novos de luta, copiando,eventualmente, tambm dos prprios inimigos. Se malogrou a tentativa de prem p um sindicato amarelo, prenhe de um sinistro futuro revela-se emcontrapartida o recurso a uma outra medida radicalmente inovadora, primeira vista incompatvel com a ideologia tradicional da autocracia. Trata-se da organizao de um movimento poltico. que busca ganhar amploconsenso tambm entre os estratos populares, fazendo apelo a umademagogia ao mesmo tempo nacional e social. Tal movimento no hesita eminserir as massas na vida poltica, mas em apoio autocracia; faz apelo aosoperrios e aos camponeses para cerrar fileiras em torno do czar,contraminando as manobras dos agitadores e sobretudo dos intelectuaissubversivos denunciados como judeus e de qualquer maneira estranhos realidade nacional russa.

    O anti-semitismo permite manifestar o conflito poltico-social e coloc-lona conta das manobras e da agresso traioeira de um inimigo, insidioso eprfido, da nao; um inimigo que, sendo protagonista de uma espcie deguerra no declarada, pode e deve ser tratado com todos os rigores do cdigomilitar de guerra. Mas h um outro ponto a sublinhar: j alguns anos antes darevoluo de 1905, os falsrios da polcia secreta czarista forjaram osProtocolos dos sbios de Sion, em que os judeus so retratados comoempenhados por um lado em desenvolver um compl pelo domnio mundial epor outro em enriquecer-se ulteriormente, e parasitariamente, s expensas dopovo trabalhador, servindo-se alm disso para tais objetivos do movimentooperrio e socialista, o qual, por isso mesmo, includo entre os inimigos daSanta Rssia e das massas populares. Tudo isso aplaina a estrada para a fusoda demagogia social e nacional, para a teorizao de uma espcie desocialismo nacional, em ltima anlise para a criao de movimentos epartidos reacionrios com uma base social de massa (isto que constitui uma

    caracterstica essencial do fascismo e do nazismo).

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    Tal projeto ou tendncia torna-se mais claro ulteriormente, depois daRevoluo de Fevereiro. Agora no se trata mais de fazer referncia a umadinastia totalmente desacreditada e nem instituio monrquica enquanto

    tal; no nterim houve a experincia da primeira guerra mundial, celebrada nosdiversos pases como momento privilegiado de realizao de umacomunidade nacional intimamente coesa, que desmente de uma vez por todaso "mito" marxista da luta de classes e que, para salvaguardar a sua harmoniainterior, chamada a enxotar com punho de ferro os agitadores que doexterior buscam turv-la e manch-la. A experincia ideologicamentetransfigurada da comunidade das trincheiras, que aparentemente quebra asdiferenas de censo e de casta, fundindo todos os combatentes sem distinoem uma mstica unidade nacional, conduz teorizao de uma sorte desocialismo de guerra: e eis ento a possibilidade de atrair ex-revolucionrios(como Boris Savinkov, o ex-terrorista dos anos 1900-1905), j alinhados, nomomento da deflagrao do primeiro conflito mundial, a favor de umapresumida guerra de defesa nacional e patritica. Toma forma assim, paracitar o historiador francs Marc Ferro, "um modelo anti-revolucionrio queapresenta analogias com o modelo fascista". um juzo compartilhado porum respeitado historiador do anti-semitismo, Leon Poliakov, que caracterizaa Unio do Povo Russo e dos Cem Negros como "organizaesprotofascistas" .

    Reao antibolchevique e anti-semitismo

    Recrutando em particular nos meios anti-semitas, organizaes como aUnio do Povo Russo c os Cem Negros conseguem no poucos sucessos,como desponta tambm das intervenes alarmadas e dramticas de Lenin:semeando "a desconfiana e o dio entre as nacionalidades que ela oprime",

    recorrendo s "instigaes infames, a corrupo e a utilizao do lcool", areao czarista faz de tudo para empurrar "as massas inocentes aos pogrom",para "fazer incitar as rals da nossa maldita 'civilidade' capitalista". Para areao, o Outubro a prova decisiva do papel nefasto desenvolvido noprocesso revolucionrio pelos judeus, fortemente presentes no grupodirigente bolchevique. Na vspera da derrubada dos Romanov, o mesmoLenin a esclarecer que, exatamente enquanto vtimas preferenciais do "dioczarista", exatamente enquanto constituem "a nao mais oprimida e maisperseguida", os judeus fornecem "um alto percentual de dirigentes (emrelao ao nmero total da populao judaica) ao movimentorevolucionrio", e, sobretudo, "tm o mrito de dar, em comparao com as

    outras nacionalidades, um percentual mais elevado de internacionalistas". Areao, em contrapartida, no se cansa de bradar contra o compl. Poderosa-

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    mente alimentado pelos Brancos e pelas foras contra-revolucionrias, o anti-semitismo amplia, ulteriormente, a sua base social de massa. Seguem-sepogrom de dimenses macias. No fim de maro de 1919, enquanto promoveleis severssimas contra a agitao anti-semita, Lenin pronuncia um discursoque gravado em disco de modo a atingir tambm os milhes de analfabetos:"O dio contra os judeus se mantm firmemente apenas onde o jugo dosproprietrios de terras e dos capitalistas afundou os operrios nas trevas daignorncia. Apenas pessoas completamente ignorantes, completamenteembrutecidas, podem acreditar nas calnias difundidas contra os judeus. Soresduos da Idade Mdia (...)". Desponta mais uma vez o alarme (:10dirigente bolchevique, ainda que, contrariamente sua anlise, ou s suasesperanas, poucos anos depois o anti-semitismo tenha acabado por espalhar-se tambm em um pas nitidamente mais desenvolvido e onde oanalfabetismo na prtica havia desaparecido. Como foi justamente observado,

    os crimes nazistas relegaram a segundo plano os massacres das geraesprecedentes, de modo que poucos esto a par do preldio que se desenvolveude 1918 a 1920.

    Vimos o carter "protofascista" que tendeu a assumir a reao contra arevoluo de 1905; uma tendncia que se acentua ulteriormente em 1917 eno curso da luta contra o Outubro. Nesse sentido, alguns historiadores (emparticular Konrad Heiden) so da opinio que a poltica nazista tem "as suasfontes espirituais na Rssia dos Czares, no ambiente dos Cem Negros e dosRussos 'puros'''. Os emigrados russos exercem um papel importante nadifuso do anti-semitismo. Ainda assim, o nascente movimento nazista tira daemigrao russa e antibolchevique no s idias, mas tambm meios

    financeiros at militantes e quadros em medida no negligencivel.O Ocidente e o mito do compl judeu-bolchevique

    Porm, para compreender adequadamente o ltimo ponto preciso terpresente que, se por um lado foi duramente combatido pelos bolcheviques, oanti-semitismo encontra um terreno muito frtil em todo o Ocidente. Tambmnos pases de tradio liberal mais consolidada, prospera, depois do Outubro,o mito da conspirao mundial judaico-bolchevique, para cuja difusocontriburam poderosamente os emigrados russos em fuga do pas dossovietes. O mesmo Poliakov, de modo algum indulgente em relao aoEstado nascido da revoluo bolchevique, acaba por reconhecer: "Todos ospases burgueses esto expostos propaganda dos Brancos que em ltima

    anlise se reduz equao 'bolchevismo = judasmo'''.Para Churchill, Lenin o grande mestre e chefe de uma seita formidvel,a mais formidvel do mundo". Para que no reste nem a sombra de uma dvi-

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    da, eis que o estadista ingls intervm, alguns dias depois, com um ulterioresclarecimento: "Querem destruir toda f religiosa que consola e inspira onimo humano. Crem no soviete internacional dos judeus russos e polacos.Ns continuamos a crer no Imprio britnico". Na Inglaterra, no bastammeias medidas; remontam at a Revoluo francesa e tambm neladescobrem ou redescobrem a secreta trama judaica. Trata-se, como se v, deuma velha tese, mas que, foi ento novamente reativada e renovada por umaautora inglesa, Nesta Webster, logo citada favoravelmente por WinstonChurchill. tese da continuidade do compl judaico da Revoluo francesa de Outubro talvez faltasse um elo. A lacuna logo preenchida: os ''tipgrafosoficiais de Sua Majestade" tratam de imprimir a edio inglesa dosProtocolos dos sbios de Sion, pouco tempo depois citada com grandeevidncia pelo Times, como prova ou indcio da ameaadora manobraconspiratria que estava encurralando o Ocidente.

    Tal o terror suscitado pela revoluo de Outubro que a tese do compljudaico-bolchevique" atravessa o Atlntico e atinge um pas no qual, ataquele momento, o fenmeno do anti-semitismo era quase desconhecido,mesmo porque o tradicional bode expiatrio era constitudo por um diferentegrupo tnico, isto , pelos negros. Primeiramente com a guerra e depois coma revoluo de Outubro, a situao muda: a cruzada contra o perigo judaico-bolchevique adquire vigor suficiente a ponto de gabar-se da participao naprimeira fila tambm de Henry Ford, o magnata da indstria automobilstica,que funda com tal propsito uma revista de grande tiragem, o Dearbornindependem: os artigos nela publicados so reunidos em novembro de 1920em um volume, O judeu internacional, claro que logo torna-se um ponto de

    referncia do anti-semitismo internacional, a ponto de poder ser considerado"sem dvida o livro que mais contribuiu para a celebridade dos Protocolos nomundo". verdade que, algum tempo depois, Ford obrigado a renunciar sua campanha, mas nesse nterim foi traduzido na Alemanha e encontrougrande fortuna.

    Mais tarde, hierarcas nazistas de primeiro plano, como von Schirach e atHenrich Himmler, diriam que se inspiraram nele ou que dele tomaram assementes. O segundo, em particular, narra ter compreendido "apericulosidade do judasmo" apenas a partir da leitura do livro de Ford: "paraos nacional-socialistas foi uma revelao". Segue depois a leitura dosProtocolos dos sbios de Sion: "Estes dois livros nos indicaram a via a ser

    percorrida para livrar a humanidade aflita do maior inimigo de todos ostempos, o judeu internacional"; como claro, Himmler faz uso de umafrmula que ecoa o ttulo do livro de Henry Ford. Poderia tratar-se detestemunho em parte interessante e instrumental. um dado de fato, porm,

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    que nos colquios de Hitler com Dietrich Eckart, a personalidade que tevesobre ele a maior influncia, o Henry Ford anti-semita est entre os autoresmais freqente e positivamente citados. E, por outro lado, segundo Himmler,

    o livro de Ford teria exercido, juntamente com os Protocolos, um papeldecisivo no apenas em sua formao como tambm na do Fhrer. O fato que O judeu internacional continua a ser publicado com grande honra noTerceiro Reich com prefcios que sublinham o decisivo mrito histrico doautor e industrial americano (ao ter trazido luz a "questo judaica") eevidenciam uma sorte de linha de continuidade de Henry Ford a Adolf Hitler.H de se acrescentar que, ainda em nossos dias, o livro do magnataamericano da indstria automobilstica continua apreciadssimo nosambientes neonazistas (na Itlia foi publicado pelas Edizioni di Ar e ocupabela posio, juntamente com os discursos de Hitler, no catlogo da editorade Franco Giorgio Freda).

    Dospogroms ao genocdio

    Voltemos Rssia. No curso da sua guerra no declarada e "contrria aodireito dos povos" (Gramsci), o Ocidente no hesita em aliar-se com as forasmais reacionrias e at com os grupos anti-semitas. Reconstruamos os fatossempre guiados por historiadores no suspeitos de simpatias filo-bolcheviques. No vero de 1918, as foras britnicas desembarcadas no norteda Rssia procedem a uma propaganda macia com panfletos anti-semitaslanados pelos ares. Alguns meses depois, verificam-se pogroms deassombrosas propores nos quais perdem a vida cerca de sessenta miludeus: "Diz-se que os aliados, agora empenhados na sua invaso da Rssia,

    tinham apoiado secretamente os pogroms" (segundo narra o historiadorGeorge L. Mosse). E portanto daquilo que foi chamado o "preldio" do

    genocdio nazista participam no apenas grupos da Bielorssia, mas tambmas foras da Entente. Emerge aqui uma linha de continuidade que, dospogroms tradicionais da Rssia czarista, conduz, atravs dos massacres emlarga escala perpetrados pelos Brancos, ou seja, pelas tropas anti-bolcheviques apoiadas pela Entente e atravs, outrossim, da psicose docompl hebraico-bolchevique que transborda tambm no Ocidente, at onazismo e a soluo final. Ainda durante a segunda guerra mundial, nasregies da Europa oriental ocupadas pelo Terceiro Reich, pogroms locais,atiados ou encorajados pelas autoridades nazistas, so chamados a flanquearou a estimular aquela que ento se apresentava como a "soluo final".

    Na vertente oposta de notar que, no curso da segunda guerra mundial,

    ao celebrar o 24 aniversrio da Revoluo de Outubro e falando Moscoucercada pelo exrcito nazista, Stalin denuncia o Terceiro Reich como "uma

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    cpia do regime reacionrio que na Rssia existiu sob o nome de czarismo":os hitleristas "organizam pogroms medievais contra os judeus, assim comoos organizava o regime czarista". Por severo que possa ser o juzo sobre a

    atitude do desapiedado ditador assumida contra as minorias nacionais etnicas (includos os judeus) e sua identidade cultural e religiosa, Stalinaponta de qualquer modo para um problema de continuidade histrica sobreo qual convm refletir: depois da revoluo bolchevique, o uso dosProtocolos dos sbios de Sion. passa das mos da polcia czarista e da reaorussa, atravs de Henry Ford, para as da Gestapo que, depois da OperaoBarbarossa (4), apressa-se a completar no Leste a caa ao judeu j iniciadapelas tropas brancas apoiadas pela Entente anglo-francesa.

    Da guerra ao fascismo

    M as nesse ponto no se pode deixar de fazer ao menos uma consideraode carter geral que ultrapassa os confins da Rssia. No se compreende nada

    do fascismo e do nazismo sem ter presente o clima que se cria em toda aEuropa em seguida deflagrao da primeira guerra mundial, justificada,legitimada e talvez liricamente cantada e transfigurada por um alinhamentovariado mas amplssimo, com respeito ao qual apenas os bolcheviques erevolucionrios tm a coragem de colocar-se na oposio. Ao menos nosprimeiros meses, a conflagrao e carnificina desumanas so freqentementecelebradas como algo de "grande e maravilhoso" (Max Weber):arregimentando toda a populao em uma mobilizao total e fundindo-a emuma comunidade nacional aparentemente harmnica, toda animada pelo corode um sentimento patritico que no quer saber nada de conflitos polticos esociais, a guerra se apresenta s classes dominantes, para alm dos objetivos

    imperiais perseguidos, como a soluo longamente buscada para umproblema angustiante; ela vivida, para usar as palavras do historiador inglsGeorge L. Mosse, "como instrumento para abolir a estrutura de classes" e prdefinitivamente fora do jogo o movimento operrio organizado e omarxismo. Na Itlia, j alguns anos antes, Benedetto Croce havia acusado ossocialistas de terem destrudo a "conscincia da unidade social" e selamentava da "decadncia geral do sentimento de disciplina social; osindivduos no se sentem mais ligados a um grande todo, submetidos a ele,nele cooperantes, tirando o seu valor do trabalho que cumprem no todo". Em1914, a guerra j iniciada (mas a Itlia ainda no se alinhara no flanco daEntente), Croce parece individualizar a realizao do cobiado "grande todo"

    4. Operao Barbarossa foi o nome de cdigo nazista para o plano de invaso da Unio Sovitica,desencadeado pelas hordas hitlerianas a 22 de junho de 1941.

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    na Alemanha imperial, toda unida no seu esforo de guerra, do qual participalealmente, na sua grande maioria, tambm o movimento socialista e sindical:

    "Para mim acendeu-se a esperana de um movimento proletrio enquadradoe resoluto na tradio histrica de um socialismo de Estado e nao (...)Creio que os socialistas alemes, que se sentiram um todo com o Estadoalemo e com a sua frrea disciplina, sero os verdadeiros. promotores dofuturo da sua classe". O "grande todo" longamente cobiado econstantemente colocado em perigo pela teoria marxista da luta de classesencarna-se agora, aos olhos do filsofo idealista, na organizao emilitarizao de toda a populao e da classe operria, a qual longe ento deconstituir-se uma ameaa para a classe dominante, aceita docilmente imolar-se sobre o campo de batalha. Ainda vrios anos depois - o fascismo j est nopoder -, Croce continua a celebrar a "fornalha de fuso" da guerra e acontrapor o patriotismo de Mussolini e dos socialistas alemes ao

    irresponsvel pacifismo daqueles italianos (para no falar comunistas). O"socialismo de Estado ou de nao" no parece estar distante do programapoltico daquele que inicia a marcha que o conduz enfim a tornar-se guia dofascismo louvando primeiro o intervencionismo e depois, agitando, emcontraposio ao movimento operrio e marxista, a palavra de ordem de uma"trincheirocracia" fundada sobre o "trabalho que volta das trincheiras". Tantomais esta aproximao resulta legtima se temos presente o fato de que, aocelebrar o "socialismo de Estado ou de nao", Croce lembra o ltimoAntonio Labriola, "socialista e patriota, e at imperialista, fautor da guerra,fautor das conquistas coloniais". No h dvida: o filsofo napolitano no seafastar jamais do liberalismo (no privado de simpatias, ao menos

    inicialmente, pela energia anti-socialista e anticomunista das brigadasfascistas); resta o fato de que os motivos aqui vistos acabam por ser herdadose radicalizados pelo fascismo e pelo nazismo os quais buscaram "superar" omarxismo e a luta de classes, ocultando os conflitos sociais internos medianteum "socialismo" de guerra, que realiza a unidade do "grande todo" graas "fornalha de fuso" das aventuras militares e das agresses imperialistas.Pois ento, a tudo isto tm o mrito de terem se contrapostos, desde o estourodo primeiro conflito mundial, Lenin e os bo1cheviques. Por esta sua atitude,so estigmatizados por Croce como estpidos "moralistas polticos", dadoque pem em discusso o direito do Estado de sacrificar os prprios cidadosou sditos sobre o altar da sua vontade de potncia. Togliatti responde aofilsofo liberal acusando-o de querer afastar "o Estado da conscincia dos

    indivduos", pondo "entre eles um abismo (...). O Estado volta a ser umaabstrao, porque se lhe tirou o sustento concreto da vontade moral dosindivduos". " um resqucio da antiga transcendncia, uma sombra do velho

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    Deus". E ento, o Estado que, segundo Croce, tinha o direito de empenhar-selivremente na guerra seguindo o seu instinto vital e de potncia e sacrificandoem massa os seus cidados, tal Estado aparece aos olhos de Togliatti como

    nada mais que a superficial secularizao do velho Moloch devorador dehomens. Contra tal devorador Estado-Deus, e a sua totalitria pretenso dedispor de poder absoluto de vida e de morte sobre seus cidados ou sditosestourava a revoluo de Outubro. Esta ltima representa, para Togliatti, arecusa conseqente de toda "concepo poltica que atribui ao Estado umavontade supra-individual" .

    Falncia e refundao do marxismo

    Ao motivo ideolgico do "grande todo" e da "fornalha de fuso" conectase, imediatamente, um outro. Em 1917, ao sublinhar o que considera afalncia ou superao do marxismo, Croce escreve: "O conceito de potncia ede luta, que Marx tinha transportado s classes sociais, parece agoraretornado das classes aos Estados". Mais uma vez, o conflito poltico-social externalizado: a luta de classes cede o lugar adeso do proletrio respectiva burguesia nacional em luta contra um inimigo externo. Tinha idoainda mais longe, no ano anterior, o nacionalista Enrico Corradini que haviaprocurado obter um consenso social de massa para a guerra apresentando-acomo um embate entre naes proletrias e naes burguesas.

    Tambm este ulterior motivo herdado e radicalizado pelo fascismo enazismo os quais depois justificaram ou celebraram a segunda guerra mundialcomo uma luta moral contra a "plutocracia" e pela conquista de parte dasnaes "proletrias" do indispensvel "lugar ao sol". Desde a deflagrao doprimeiro conflito mundial, toda a cultura e propaganda burguesa ressoa comogrito de triunfo pela adeso dos partidos socialistas carnificina em ato. Na

    Itlia, o nacionalista Maurizio Maraviglia escreve em 6 de agosto de 1914:"A busca dos pretextos do socialismo revolucionrio c internacionalista e dademocracia radical c pacifista, forados a refundar os seus firmes propsitos ea inclinar-se diante do grandioso fenmeno da guerra, ao mesmo tempoalgo ridculo e piedoso". Com particular satisfao, o mencionado autorlembra a confisso de "alguns amigos sindicalistas, agora de acordo emconsiderar lorotas sem sentido "todos aqueles lugares comuns que havamosrepetido por tantos anos sobre o proletariado internacional que ao estourar deuma nova guerra surgiria como um nico homem a intimar o 'alto l' aos reise aos exrcitos". No, a guerra c a paixo chauvinista eram mais fortes quequalquer internacionalismo, como demonstrava tambm a parbola de Benito

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    88 O SIGNIFICADO HISTRICO DA REVOLUO DE OUTUBRO

    Mussolini que "no brada mais contra o militarismo vampiro, mas falamelodramaticamente do solo ptrio". A comprazer-se com a falncia do"mito" do internacionalismo e da paz est tambm Vilfredo Pareto, o qualobserva: em 1920 se dizia que "os proletrios e especialmente os socialistas ateriam impedido com a greve geral ou de outro modo. Depois de to belosdiscursos, vem a guerra mundial. A greve geral no se v; ao contrrio, nosvrios parlamentos, os socialistas aprovaram as despesas para a guerra, ouno lhes fizeram muita oposio", mas sim, como j tnhamos visto, o famoso"proletrios de todos os pases uni-vos" achou-se implicitamentetransformado em "proletrios de todos os pases assassinai-vos". Tambmdeste grito de triunfo, os beneficirios ltimos acabam sendo os movimentosfascistas ou fascistides, os quais, na Rssia como em outros pases europeus,se difundem tambm na medida em que podem declarar falidodefinitivamente o socialismo fundado sobre a luta de classes no interior c

    sobre o internacionalismo e a paz entre as naes e proclamar o advento deuma "comunidade" cimentada no interior pela guerra e projetadaagressivamente para o exterior. Os bolcheviques e os comunistas escolhemum caminho oposto: da constatao da falncia da Segunda Internacionalfazem proceder a necessidade de uma refundao do movimento operrio cmarxista que os impede de recair na vergonha da adeso ao "genocdio" daguerra imperialista e de assistir impotente - ou pior, cmplice - difuso de mitospolticos e sociais turvos e j grvidos do fascismo.